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248 Perambulando pelo centro histórico de Lisboa: urbanidade, o flâneur e as qualidades visuais da cidade Vicente del Rio Paisagem – é nisso que a cidade de fato se transforma para o flâneur. Ou mais precisamente: para ele, a cidade cinde-se em seus polos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e fecha-se em torno dele como um quarto. (Benjamin, 2007, p. 462) Logo em minha primeira viagem à Europa, ainda como estudante de arquitetura, aprendi o quanto suas cidades, particularmente os centros históricos, podem nos ensinar. Desde então aprendo muito caminhan- do, observando e vivenciando cidades da Europa sempre que posso. Nunca fico cansado de explorar a paisagem e o desenho de suas ruas e lugares, as dimensões sociais e histórias presentes em suas morfologias. Os centros históricos combinam qualidades em ambientes cativantes, geralmente cheios de vida, onde podemos perambular por horas sem nos cansar. Acima de tudo, adoro “experienciar” a urbanidade das ci- dades como um flâneur, descobrindo e redescobrindo qualidades do seu desenho urbano e aprendendo muito com isso. Seguidamente gosto de perambular por cidades, particularmen- te centros históricos, nem sempre com propósito específico e por ca- minhos que me levam a descobrir, ou redescobrir, lugares. Sempre fico plenamente engajado com o que vejo e sinto, tentando assimilar tudo Nota: Todos os desenhos deste artigo foram feitos pelo autor. Publicado em P. Rheingantz, R. Pedro & A. Szapiro (Orgs.), Qualidade do Lugar e Cultura Contemporanea; Porto Alegre: Editora Sulina, 2016.

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Perambulando pelo centro histórico de Lisboa:urbanidade, o flâneur e as qualidades visuais da cidade

Vicente del Rio

Paisagem – é nisso que a cidade de fato se transforma para o flâneur. Ou mais precisamente: para ele, a cidade cinde-se em seus polos dialéticos. Abre-se para ele como paisagem e fecha-se em torno dele como um quarto. (Benjamin, 2007, p. 462)

Logo em minha primeira viagem à Europa, ainda como estudante de arquitetura, aprendi o quanto suas cidades, particularmente os centros históricos, podem nos ensinar. Desde então aprendo muito caminhan-do, observando e vivenciando cidades da Europa sempre que posso. Nunca fico cansado de explorar a paisagem e o desenho de suas ruas e lugares, as dimensões sociais e histórias presentes em suas morfologias. Os centros históricos combinam qualidades em ambientes cativantes, geralmente cheios de vida, onde podemos perambular por horas sem nos cansar. Acima de tudo, adoro “experienciar” a urbanidade das ci-dades como um flâneur, descobrindo e redescobrindo qualidades do seu desenho urbano e aprendendo muito com isso.

Seguidamente gosto de perambular por cidades, particularmen-te centros históricos, nem sempre com propósito específico e por ca-minhos que me levam a descobrir, ou redescobrir, lugares. Sempre fico plenamente engajado com o que vejo e sinto, tentando assimilar tudo

Nota: Todos os desenhos deste artigo foram feitos pelo autor.

Publicado em P. Rheingantz, R. Pedro & A. Szapiro (Orgs.), Qualidade doLugar e Cultura Contemporanea; Porto Alegre: Editora Sulina, 2016.

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que posso. A cidade e seus diversos componentes físicos e culturais vão se revelando, pouco a pouco, assim como revelam as suas qualidades: algumas vezes de longe, de modo previsível, outras vezes surpreenden-do, mas sempre tornando o caminhar um prazer, fazendo da cidade um cenário de eterno aprendizado.

Nesse processo, o desenho – principal instrumento do arquite-to-urbanista – é a melhor forma de “curtir” o lugar, de representá-lo e analisá-lo. Ressalto aqui a importância do sketch, ou croqui, e do de-senho não apenas como um meio para se observar e representar um lugar, mas como instrumento de análise e descobertas. Isso se torna ainda mais importante no mundo de hoje, onde a facilidade de uso e o fotorrealismo dos meios de representação digitais deslumbram tanto que acabam tomando-os um fim em si próprios, ofuscando a essência do representado e despersonalizando-o. Diferentemente de uma ren-derização perfeita da coisa inexistente, um bom croqui é uma fusão in-consciente entre o lápis ou caneta, o lugar e a personalidade do seu criador (Richards, 2013). Por outro lado, nada como a simplicidade e a rapidez do croqui para facilitar o desenvolvimento conceitual do pro-jeto, viabilizando a ligação mente/papel e o processo de pensamento gráfico (Laseau, 2001). Em recente artigo, o arquiteto Michael Graves (2012) comenta que a arquitetura não pode se divorciar do desenho, não importa quanto avance a tecnologia, pois eles são parte do pro-cesso de raciocínio. Para Graves, desenhar no computador é como ou-vir as palavras de um livro contado em voz alta, enquanto o desenho à mão seria o equivalente a ler, que nos permite sonhar um pouco e fazer associações além do sentido literal das palavras no papel. Assim, entendo o desenho como meio de representação e análise que revela e viabiliza o desenho como desígnio e processo.

Neste capítulo apresento uma breve discussão sobre o significa-do de urbanidade e de flâneur, fundamentais para se pensar, analisar, e projetar a cidade. Esses significados justificam o uso dos croquis de observação como método (absolutamente empírico, pessoal e subjeti-

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vo) para o estudo das qualidades visuais do desenho urbano que são fundamentais à urbanidade, instigam o flâneur e alimentam suas ex-pectativas. Faço isso utilizando Lisboa, maravilhosa cidade pela qual tenho enorme fascínio e admiração e que tenho tido a oportunidade de visitar seguidamente.

Nunca me canso de explorar Lisboa, sua paisagem urbana, sua geografia, seu urbanismo, seu desenho urbano e suas arquiteturas: uma cidade de profundo sentido histórico e vida social e cultural rica e intensa. É no seu centro histórico onde todas as suas qualidades se combinam e geram ambientes cativantes, onde se pode caminhar por horas sem se dar conta. Trata-se de uma área de aproximadamente 350 hectares que, apesar da famosa topografia lisboeta, pode ser perfeita e confortavelmente percorrida a pé (walkable) e encontra-se muito bem servida por transporte coletivo. Em minhas andanças por Lisboa eu simplesmente me deixo curtir a urbanidade e as qualidades urbanísti-cas que vejo e sinto, como um flâneur armado de um olho inquieto, uma mente curiosa, uma câmara e um caderno para croquis.

Sobre urbanidade e o flâneur

Urbanidade é um termo que traduz um entendimento/significa-do rico e poderoso, mas impossível de se traduzir em palavras. A busca por urbanidade tem sido uma constante no campo do planejamento e desenho urbano. Os dicionários definem urbanidade como aquilo re-lacionado à vida urbana e ao contexto da cidade, com se ter boas ma-neiras e saber como se comportar socialmente; unem-se, portanto, as dimensões física, social e cultural. Entendo urbanidade como a capaci-dade de se presenciar diferenças e em se experienciar o “outro” numa cidade (Baudelaire apud Sennett, 1990, p. 123), e sobre estar imerso na esfera pública e escapar da “tirania da individualidade” (Sennett, 1974). Urbanidade é reconhecer e aceitar diferentes pontos de vista

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na cidade: culturais, políticos e sociais. Ela se encontra na vitalidade e diversidade da cidade e seus espaços (Jacobs, 1961) ou, simplesmente, na dimensão humana da cidade (Gehl, 2010). Para os fenomenologis-tas, a urbanidade reflete a dimensão existencial da cidade (Norberg- Schulz, 1979), relaciona-se com uma multiplicidade de pequenos atos que tornam o lugar atemporal (Alexander, 1979) e define a qualidade da cidade que nos faz sentir em casa quando no espaço público (Aguiar, 2012). Mas mesmo que não possamos expressar a ideia de urbanidade com a exatidão das palavras e a reconheçamos, acima de tudo, como um sentimento perante a cidade, a urbanidade é o objetivo mais nobre da nossa profissão na construção do lugar (placemaking).

Uma forma fundamental de se experienciar a urbanidade é o ca-minhar, mais especificamente perambular ou caminhar sem propósito específico. Isso nos remete à figura do flâneur, que, em francês, signifi-ca uma pessoa que perambula ou um observador urbano – um termo surgido no século XIX em Paris, um tempo e lugar em que a cultura e a vida urbana estavam sofrendo profundas mudanças. Naquela épo-ca, a cultura francesa era o paradigma da sociedade ocidental e todos os olhos voltavam-se para Paris como modelo de cidade. De um lado, pelas ordens de Napoleão III e as mãos de Haussman, Paris sofria um processo de modernização e de profundas transformações físicas. Cria-va-se uma Paris monumental com bairros inteiros sendo renovados, o tecido urbano rasgado por novos bulevares e pontuado por praças e monumentos, e a dimensão pública da arquitetura moldada por rígidas diretrizes. Por outro lado, os parisienses e particularmente a crescen-te burguesia experienciavam uma vida pública intensa e cosmopolita, animada por uma multiplicidade de lojas e galerias, restaurantes, ca-fés e mesas nas calçadas, além de uma forte cena cultural representada pelos teatros, livrarias e casas de espetáculo. Um grupo extraordinário de pintores e escultores (tais como Manet, Gaugin, Monet, Van Gogh, Toulouse-Lautrec, Rodin e Matisse), escritores e poetas (tais como Vi-tor Hugo, Alexandre Dumas, Júlio Verne, Émile Zola, Paul Valéry e Char-

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les Baudelaire) impulsionava um ambiente criativo por toda a cidade. Fazer parte deste cenário urbano Parisiense e tornar-se visível publi-camente transformava-se num importante valor da burguesia e das classes ascendentes. O filósofo Walter Benjamin chamava Paris de “a capital do século XIX” e diversos teóricos identificam este período e o processo que então ocorria como o nascimento da modernidade. David Harvey (2003), por exemplo, chama Paris de “capital da modernidade”.

Durante esse período, o poeta e filósofo Charles Baudelaire criou a figura literária do flâneur: aquele que tem prazer em peram-bular e explorar as ruas da cidade, observando sua vida e seus perso-nagens, experienciando a rua como uma narrativa. O flâneur represen-ta um estilo de vida que só se tornou possível na Paris moderna e no tipo de sociedade que ela representa. Em sua obra, Walter Benjamin (2007) não apenas explora o flâneur como um observador urbano, um emblemático explorador da experiência da vida urbana moderna, mas também adota o conceito como um método de análise: o de observa-dor participante. Assim, em sua flanagem (que em português gerou o verbo “flanar”), o flâneur perambula e participa das cenas que vê e analisa, imbuído de seu espírito. Para David Harvey (2003), o flâneur representa a ascensão da classe média parisiense e a sua necessidade de mostrar-se em um lugar público e demonstrar a sua disponibilidade de tempo (o que o distanciaria da classe trabalhadora) nos bulevares, praças e demais lugares públicos, particularmente nas galerias comer-ciais (arcades, em francês), onde sua presença evidenciava o poder do dinheiro, como também notou Benjamin (2007).

No Brasil do começo do século XX, as crônicas do carioca João do Rio revelavam o melhor estilo do flâneur, que ele definia como aque-le que perambula com inteligência pelas ruas, fator de vida e alma das cidades, contagiado com “o vírus da observação ligado ao da vadiagem” (Rio, 2012, p. 31). As crônicas de João do Rio, organizadas no livro A alma encantadora das ruas, documentaram sua experiência flanando por um Rio de Janeiro que se transformava, assim como Paris havia fei-

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to, numa metrópole moderna, palco de profundas transformações físi-cas e sociais e repleta de personagens.

As qualidades da cena urbana

No campo do urbanismo e desenho urbano, vários autores su-blinharam a importância da percepção visual da cidade em movimento e de sua urbanidade, particularmente através de suas qualidades visuais, como já notei em obra anterior (del Rio, 1990). Embora todos os sentidos contribuam para nossa percepção, a visão é o dominante e a principal fonte de imagens mentais e de conhecimento do mundo. Por exemplo, Camilo Sitte (apud Collins; Collins, 1965), no início do século, e Gordon Cullen (1961), no final dos anos 1950, em contraponto ao modernismo racionalista, notavam que, uma vez que o pedestre percebe o espaço urbano em movimento, as ruas sinuosas e humanizadas, com constantes mudanças, novidades e surpresas nos quadros visuais são essenciais para o interesse, a apreciação estética e a fruição da urbanidade.

Em seu famoso livro Morte e vida das grandes cidades america-nas (1961), Jane Jacobs também defendeu que o papel central da rua era gerar espaço público para as interações sociais cotidianas e que ela deveria gerar suficientes estímulos visuais. O pós-modernismo e, mais recentemente, o movimento do new urbanism buscam resgatar a experiência visual e social do pedestre na rua como um dos fatores fundamentais na urbanidade ou, como muitos preferem, placemaking (Dutton, 2000). Jan Gehl (1987; 2010), famoso pesquisador e engajado consultor internacional em humanização de cidades, também aponta a importância da dimensão visual para a urbanidade e a experiência do lugar.

Ferris Jabr (2014) parece discutir o flâneur quando nota como o andar estimula o cérebro, deixa-o livre para divagar e nos ajuda a

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pensar, “superpondo o mundo que vemos diante de nós com um des-file de imagens do teatro da mente” – estado mental que a neurociên-cia liga a “sacadas” e ideias inovadoras. Sob o ponto da psicologia da Gestalt, a atratividade e estética do espaço da rua também são essen-ciais para a percepção, a identidade e a imageabilidade, além de afe-tar nosso comportamento (Lynch, 1960; Smith, 1974; Kopec, 2006). Descontinuidades nas fachadas, alterações de perspectivas, variedade, contrastes, pontos focais, percepção de figura-fundo, etc. cativam o olhar e o interesse do observador. Igualmente, a área de saúde ressalta a importância da percepção do nosso entorno em nossa saúde mental através de inúmeros estudos recentes que têm demonstrado a rela-ção entre a qualidade da rua e os índices de obesidade (atualmente tratada como epidemia nos EUA): ruas e espaços públicos interessan-tes, seguros e cativantes tendem a levar as pessoas a andar mais. Reid Ewing e outros, tomando por base uma pesquisa para a Robert Wood Johnson Foundation – especializada na relação entre ambiente e saúde pública – destacam os aspectos físico-visuais que incentivam o pedes-tre a caminhar: imageabilidade, recinto, escala humana, transparência, complexidade, coerência, legibilidade e conexões (Ewing et al., 2006; Ewing; Clemente, 2013).

Com isso pretendo reforçar a utilidade da figura do flâneur, que representa a pessoa que é afetada, direta e indiretamente, intencional e não intencionalmente, pela urbanidade e o desenho da cidade através de suas percepções como observador participante. Foi abraçando esse conceito que eu, seguidamente, perambulo pelas ruas de Lisboa obser-vando, sendo atraído, me perdendo, explorando a cidade e sua vida e buscando espaços cujas qualidades urbanas me engajavam em minha exploração visual, fazendo de minha flanagem um prazer e uma expe-riência memorável.

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Flanando por Lisboa

Nas linhas que seguem, revelo algumas das minhas flanagens através de uma série de breves comentários sem qualquer intenção “científica”, ilustrados por croquis a lápis ou caneta hidrográfica pon-ta fina, alguns rápidos outros mais caprichados, realizados in loco e a partir do quanto esses lugares me atraíram e emocionaram. Para mim, são parte essencial da urbanidade de Lisboa e de qualquer grande ci-dade. Minhas flanagens e comentários a seguir, repito, concentram-se nas qualidades visuais, embora, evidentemente, qualquer flanagem também seja influenciada por todos os nossos sentidos (olfato, tato, au-dição e, por que não, paladar), além de nossa imaginação.

Complexidade e surpresa

Qualquer flanagem alimenta-se da composição visual dos luga-res, dos espaços que se apresentam adiante de nós e das opções que percebemos em nossos próximos passos e no nosso desejo de continuar a caminhar e experienciar a cidade. Descontinuidades na morfologia, ângulos inesperados e becos sem saída, pontos de decisão múltiplos, passagens estreitas e misteriosas, revelações súbitas, contrastes, vistas sucessivas, tensões visuais estimulantes – Gordon Cullen (1961) nota que essas qualidades urbanísticas, as emoções e o drama que elas nos revelam dependem da dinâmica entre o lugar onde nos encontramos e as vistas que se revelam ao longo do nosso caminhar, numa combinação que ele chama de visão seriada. Para Peter Smith (1974, p. 236), “a pai-sagem urbana criativa é aquela que estimula a mente [...] gerando ima-gens e motivando a exploração”. Nesta mesma trilha, Amos Rapoport (1977) define complexidade ambiental como quando a mente sente-se atraída por uma multiplicidade de informações e opções de comporta-mento. Um flâneur encontra muito disso nas ruas do centro histórico de Lisboa, em particular na morfologia medieval do Alfama, na Mouraria e na Graça, e no urbanismo de colina do Bairro Alto. (Figuras 1 e 2)

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Figuras 1 & 2: Complexidade e surpresas no desenho urbano mantem a mente curiosa e o caminhar mais recompensador. O desenho desta ruela no Alfama (acima) e um edifício em arco sobre a Rua dos Acadêmicos (abaixo)

com a deflexão no desenho da rua são convites para se explorar além.

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Vitalidade e robustez

A presença de atividades humanas e sociais é fundamental para a percepção da qualidade e do senso do lugar (Canter, 1977; Gehl, 1987; 2010; Whyte, 1980; Lynch, 1981). O flâneur é atraído por atividades que animam e dão sentido às ruas e aos espaços que ele percorre. Um lugar robusto possui variedade de usos, densidades, atividades e op-ções comportamentais que podem sustentar a sua vitalidade ao longo do tempo, constantemente atraindo diferentes tipos de frequentadores (Bentley et al., 1985). As ruas, praças e espaços públicos de Lisboa en-chem-se de vida por conta da mistura de tipos residenciais e da mul-tiplicidade de pequenos estabelecimentos comerciais, restaurantes e bares com mesas nas calçadas, quiosques de comidinhas e café nas praças. Muitos desses lugares dinamizam-se mais ainda em momentos de festividades e manifestações. A Figura 3 representa a Praça Camões, lugar popular para se “estar” (hang out) de dia ou à noite e um dos fa-voritos para encontros e todo tipo de manifestação social. Marcado pelo monumento ao poeta e um quiosque de café e comidas, seu desenho simples apoia diversos tipos de comportamento social e individual e adapta-se bem à topografia, oferecendo estacionamento subterrâneo. Por conta dos múltiplos usos a sua volta, sua localização no tecido ur-bano, das vias estruturais e inúmeras opções de transporte coletivo que por ali passam, a Praça Camões é um “nó”, segundo a clássica definição de Lynch (1960). A Figura 4 mostra popular quiosque histórico no Jar-dim do Príncipe Real, que serve apenas cafezinhos, enquanto, na outra esquina, outro quiosque abre exclusivamente na hora do rush para cer-veja e charutos, sempre atraindo uma pequena multidão de jovens.

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Figuras 3 & 4: Espaços robustos como a Praça Camões no Bairro Alto (acima) são nos sociais e incorporam câmbios e adaptações ao longo do tempo. Quiosques de café,

bebidas, e comidinhas criar e animam lugares, injetando vitalidade na esfera publica, como no Parque do Príncipe Real (abaixo).

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Fechamento e conexões

Os estudiosos em desenho urbano concordam que o sentido de fechamento de um espaço público (enclosure), com uma boa definição de suas bordas e facilitando o senso de posição do indivíduo e sua per-cepção de território, possuem profundas implicações psicológicas e são qualidades fundamentais do lugar (Alexander et al., 1977; Smith, 1974; Rapoport, 1977; Bonnes; Secchiaroli, 1995). As corretas proporções entre um espaço e suas bordas (edifícios e elementos da paisagem) fazem-nos sentir confortáveis, protegidos e em controle do ambiente percebido ao nosso redor. Um espaço com bordas claras e acessos visí-veis, que se percebe bem definido e controlável, é um espaço defensível. Bordas definidas podem levar nossa flanagem a outros espaços através de conexões no tecido urbano, contribuindo com a acessibilidade e a continuidade espacial. A percepção de como se pode sair de um lugar e de como se conectar ao contexto imediato parece ser tão importante quanto a sensação de fechamento e de espaço defensável: essas quali-dades são complementares. Espaços bem definidos por suas bordas e um tecido fluido, bem conectado marcam constantemente a experiên-cia do flâneur no centro histórico de Lisboa. Excelente exemplo de lugar bem definido por suas bordas é a Praça do Comércio, cercada por um conjunto arquitetônico integrado, de linhas harmoniosas, em três la-dos, e pela borda do Rio Tejo; observam-se as diversas conexões com o resto do tecido e com a cidade mais além, no caso, as encostas do Alfama (Figura 5). Desde a Rua Cecílio de Souza, um surpreendente e elegante desenho de rampas duplas leva ao Jardim do Príncipe Real, excelente momento em que se revelam conexões entre diferentes espaços e níveis do tecido urbano (Figura 6).

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Figuras 5 & 6: A Praça do Comercio e um excelente exemplo de espaco bem definido por edificios em tres de suas bordas e o Rio Tejo, mas que tambem revela conexoes com a cidade e a paisagem mais alem (acima). Uma conexão inusitada ao Jardim do Príncipe Real, um par de elegantes rampas que se iniciam e terminam juntas, num

excelente exemplo de desenho urbano barroco (abaixo).

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Transparência e vistas

Transparência é a qualidade que nos permite ver (ou perceber) aquilo que se encontra além de uma borda, ou seja, outras atividades das quais podemos participar ou lugares para os quais podemos nos deslocar (Cullen, 1961; Ewing et al., 2006). A transparência dos lugares também está diretamente ligada à sensação de segurança e ao conceito de “olhos da rua”, sugerido por Jacobs (1961), e faz parte das suges-tões para os espaços defensáveis de Oscar Newman: janelas, portas e aberturas sobre os espaços coletivos. Quando a borda se abre para um horizonte mais distante ou um ponto focal definido, lidamos com vis-tas, algumas apenas lampejos, que capturam o olhar e atraem o flâneur. Essas qualidades do desenho urbano, tanto quanto as de fechamento e conexões, estão intimamente ligadas na condição humana e nossa ne-cessidade topológica de localizar o nosso corpo no espaço e sentir-nos confortáveis com o lugar, ao mesmo tempo em que nos sentimos atraí-dos pelos espaços além devido ao controle visual e às conexões perce-bidas entre esses lugares: o aqui e o lá. No centro de Lisboa, as ruas e os espaços públicos são definidos por tipologias edilícias fortemente mar-cadas por portas e janelas, cujo ritmo e características geram forte di-nâmica entre o público e o privado (Figura 7). Por outro lado, a perfeita adaptação do tecido urbano à topografia em conjunto com os processos históricos da cidade também contribuem para manter o flâneur constantemente atraído por transparências e vistas. Lisboa é uma cidade de miradouros e pontos de onde se dominam vistas sobre os vales, as colinas e o rio (Figura 8). Arquiteturas históricas definem o espaço de quase todos os miradou-ros oficiais, sempre animados por quiosques de lanches e café.

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Figuras 7 & 8: A transparência dos edifícios ajudam a vitalizar as ruas do centro histórico de Lisboa, como na Rua Marcos Portugal junto a Praça das

Flores (acima). O jogo entre forma urbana e topografia constantemente revela vistas surpreendentes como esta do castelo de São Jorge e a Mouraria

desde o Miradouro da Graça (abaixo).

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Legibilidade e coerência

Legibilidade é a qualidade de desenho que sugere a facilidade com que uma cidade ou um lugar pode ser navegado e compreendido como um todo, enquanto coerência se refere ao grau percebido de or-dem visual (Lynch, 1960; 1981; Ewing; Clemente, 2013). Para a forma-ção de mapas cognitivos claros da cidade, o cérebro humano necessita de uma forma legível em seus aspectos formais gerais, relações relati-vamente claras entre seus elementos (ruas, bairros, topografia, etc.) e conjuntos coerentes de espaços e arquiteturas. Essas qualidades são contrapontos à fome que o flâneur tem por surpresas e complexida-des em seu caminhar, mas são igualmente fundamentais ao provê-lo de momentos de tranquilidade e um entendimento sobre o todo. Em geral, ruas e espaços de alta legibilidade são pontos robustos de grande vita-lidade, de destaque no tecido e pontuados por marcos e monumentos, tornando-se lugares fortemente significantes na flanagem e no mapa cognitivo do flâneur. Desde o topo do Parque Eduardo VII, onde se vis-lumbram o vale e as colinas em que Lisboa nasceu, nossa vista segue o grande eixo que atravessa a cidade e a Baixa Pombalina, culminando no rio Tejo. A legibilidade do centro histórico de Lisboa e a coerência entre as suas partes são definidas pelos processos históricos, pela re-lação fluida entre cidade e topografia e o modo pelo qual o tecido e as arquiteturas se adaptam a essas condições (Figuras 9 e 10). A coerência também se dá por conta do respeito entre as arquiteturas de diferentes períodos históricos.

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Figuras 9 & 10: No centro histórico de Lisboa, a clara relação entre o tecido urbano, as colinas, e o Rio Tejo gera um forte mapa cognitivo, como se nota desde o alto do

Parque Eduardo VII (acima). Isso é reforçado por caminhos bem definidos, arquiteturas coerentes, e fortes nós, como na Praça do Rossio (abaixo).

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Riqueza arquitetônica

Em circunstâncias normais, o sentido da visão é dominante no ser humano e a arquitetura é a única arte da qual não podemos fu-gir, uma vez que não podemos evitar vivenciá-la em nosso cotidiano (Cullen, 1961). Ao nos movermos na cidade, a arquitetura está sempre presente nas edificações (estilo, forma, ornamentos, cores, etc.), na pai-sagem urbana (pavimentação, mobiliário, plantas, etc.) e nos elementos escultóricos (estátuas, fontes, etc.). A arquitetura do centro histórico de Lisboa possui uma grande riqueza em ornamentos, equilíbrio, ritmo e contrastes controlados, e as calçadas e praças são famosas por seus fabulosos mosaicos em pedras portuguesas (Figuras 11 e 12). Todos esses elementos dão grande valor à percepção visual da cidade, agregando surpresa e complexidade ao incitar o olhar a estar atento, apreciar os detalhes e compreendê-los. Eles também colaboram com a legibilidade e a coerência ao agregar caráter e identidade a uma rua, uma área, ou à cidade inteira. A riqueza arquitetônica gera um grão fino de deleite estético à ex-periência do flâneur, mantendo o seu olhar constantemente engajado.

Figura 11 – A riqueza visual do lugar nas arquiteturas historicas, coerencia entre estilos, e detalhes. A Igreja de Sao Roque e a Santa Casa de Misericordia.

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Personalização e valores comunitários

Um desenho urbano responsivo permite que residentes e usuá-rios encontrem formas de personalizar os lugares, deixando as suas marcas nas edificações, nos espaços e nos tempo, apropriando-se do ambiente construído e fazendo-o uma expressão de si próprios. Em Lisboa, é comum vermos elementos e toques pessoais às arquiteturas, tais como roupas penduradas a secar nas janelas, vasos de flores em sacadas, riqueza de cores, azulejos especiais, etc. A própria transparên-cia das bordas arquitetônicas, através das múltiplas janelas, deleita o flâneur, permitindo construir uma miríade de histórias individuais em sua imaginação. A personalização soma um grau maior de complexida-de e valor à riqueza arquitetônica, uma vez que se trata de expressão espontânea e mutante ao longo do tempo. Espaços tornam-se lugares como expressão do conjunto de ações individuais e coletivas sobre eles, geralmente como resultado de processos colaborativos entre vizinhos,

Figura 12 – No Largo do Carmo, exemplo de espaco bem proporcionado e contido por suas bordas, o elaborado desenho do piso e a elegante fonte do

Seculo XVIII soma a riqueza visual do conjunto.

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e tornam-se expressão viva dos valores comunitários. O centro histó-rico de Lisboa é também grande exemplo disso, seus espaços públicos e semipúblicos decorados e adaptados pela comunidade para as ani-madas festas e eventos religiosos tradicionais ou becos apropriados e decorados pelos vizinhos. A percepção da personalização e dos valores comunitários permite ao flâneur usar a sua imaginação para conectar as pessoas aos lugares e vivenciar a riqueza das histórias individuais e coletivas expressas através da arquitetura e do desenho urbano.

Inspiração final

Difícil dar término a este capítulo tamanho o poder de atração que as paisagens, os espaços e as arquiteturas podem exercer sobre o flâneur e as lições que podemos aprender, principalmente tratando-se de cidade tão atrativa e envolvente quanto Lisboa. O andar atento pelo centro desta magnífica cidade nos ensina como as composições urba-nísticas influenciam a nossa percepção do espaço e o nosso comporta-mento, principalmente fazendo do andar um prazer e um processo de descobertas e conhecimento contínuo.

Relações entre espaços construídos e topografia; propriedade e integração das tipologias arquitetônicas; escalas, texturas e materiais; paisagens dos pisos e detalhes; coerência e ordem visual; imageabili-dade e legilidade; continuidades e transparências; sentido do recinto e domínio de vistas; densidade, complementariedade e intensidade de usos: são inúmeros aspectos do bom desenho urbano que a flanagem nos demonstra e os croquis nos permitem vivenciar, captar, analisar e representar, captando um pouco a mágica dos lugares muito mais do que através da fotografia.

Talvez a conclusão mais importante que eu possa sugerir seja que o arquiteto urbanista deve se utilizar do conceito de flâneur, um observador participante por excelência, durante o processo projetual,

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e que ele/ela se imagine experienciando os seus planos e projetos, cur-tindo a urbanidade imaginária e as experiências visuais que possam gerar. Se essas flanagens forem memoráveis, então os novos lugares ur-banos saindo de suas pranchetas (ou computadores) terão uma grande chance de serem bem-sucedidos.

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Perambulando pelo centro histórico de Lisboa:urbanidade, o flâneur e as qualidades visuais da cidade

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