o edifício como articulador da urbanidade

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A BIBLIOTECA E A CIDADE O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE ORIENTADOR PROF. DR. ANTONIO CARLOS BAROSSI COORIENTADORA PROFA. DRA. MARTA BOGÉA POR NICOLAS LE ROUX 2013 - 2014

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Pesquisa de Iniciação Científica realizada sob orientação de Marta Bogéa e Antonio Carlos Barossi. Trata de relações entre desenho urbano e desenho do edifício dentro das dinâmicas sociais do espaço.

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A BIBLIOTECA E A CIDADEO EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE

ORIENTADOR PROF. DR. ANTONIO CARLOS BAROSSICOORIENTADORA PROFA. DRA. MARTA BOGÉA

POR NICOLAS LE ROUX

2013 - 2014

“[O]s gregos, ao contrário de civilizações posteriores, não consideravam a

função de legislar como atividade política. Em sua opinião, o legislador era como

o construtor dos muros da cidade, alguém cujo trabalho devia ser executado e ter-

minado antes que a atividade política pudesse começar. [...] Antes que os homens

começassem a agir, era necessário assegurar um lugar definido e nele erguer uma

estrutura dentro da qual se pudessem exercer todas as funções subsequentes; o es-

paço era a esfera pública da polis e a estrutura era a sua lei; legislador e arquiteto

pertenciam à mesma categoria. [...]

[A] convivência dos homens sob a forma de polis parecia garantir a imperecibi-

lidade das mais fúteis atividades humanas - a ação e o discurso - e dos menos tangíveis

e mais efêmeros ‘produtos’ do homem - os feitos e as histórias que deles resultam. A

organização da polis... é uma espécie de memória organizada. [...]

Segundo esta auto-interpretação, a esfera política resulta diretamente da ação

em conjunto, da ‘comparticipação de palavras e atos’. A ação, portanto, não apenas

mantém a mais íntima relação com o lado público do mundo, comum a todos nós, mas é

a única atividade que o constitui. [...] A rigor, a polis não é a cidade-estado em sua loca-

lização física; ... Trata-se do espaço de aparência, no mais amplo sentido da palavra, ou

seja, o espaço no qual eu apareço aos outros e os outros a mim. [...] Privar-se dele sig-

nifica privar-se da realidade que, humana e politicamente, é o mesmo que a aparência.”

Hannah Arendt,

trecho de “Action”, capítulo V do livro A Condição Humana (1958)

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX4

SUMÁRIO

PRIMEIRA PARTE O EDIFÍCIO E A CIDADE

INTRODUÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO

OBJETIVOS

METODOLOGIA

DAS RELAÇÕES ENTRE A ARQUITETURA E O URBANISMO

AS EXPERIÊNCIAS DOS CEU E DE MEDELLÍN

- OS CEU

- OS PARQUES-BIBLIOTECA DE MEDELLÍN

- MUROS OU PORTAS?

DA ARQUITETURA DE BIBLIOTECAS

- BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA E MIDIATECA DE TOULOUSE

- BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SEATLE

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- PARQUE-BIBLIOTECA ESPAÑA

O EDIFÍCIO E O ESPAÇO PÚBLICO: UM ESTUDO

- REAL GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA, RIO DE JANEIRO

- CENTRE GEORGES POMPIDOU, PARIS

- SESC POMPEIA, SÃO PAULO

- PRAÇA DAS ARTES, SÃO PAULO

ESTRUTURAS MÓVEIS

O SISTEMA DE ÔNIBUS-BIBLIOTECA

HIPÓTESE DE PROJETO

- O EDIFÍCIO

- AS NAVES E OS PORTOS

66

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72

74

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93

93

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A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 5

SEGUNDA PARTE PROJETO COMO PESQUISA

DISTRIBUIÇÃO DAS SEDES

ESCOLHA DO TERRENO

ENTENDENDO O CONTEXTO URBANO DA PERIFERIA

ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO

A QUADRA ENQUANTO UNIDADE TERRITORIAL

A BIBLIOTECA

- PROGRAMA -

102

104

110

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122

130

138

- RELAÇÃO COM O ENTORNO IMEDIATO -

- REFERÊNCIA DE PROJETO -

- O EDIFÍCIO E A ITINERÂNCIA -

- PONTOS DE ANCORAGEM -

O PROJETO COMO PESQUISA

BIBLIOGRAFIA

142

148

152

154

160

162

PRIMEIRA PARTEO EDIFÍCIO E A CIDADE

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX8

O filósofo alemão Martin Heidegger disse que “um local somente se torna um lugar

quando o apropriamos culturalmente”. 1 Isso significa que a cidade necessita de bons

espaços de convívio que possibilitem o encontro e a troca cultural e social. Por

muito tempo esses espaços podem ter sido as praças ou as esplanadas, frequen-

tadas de modo democrático por pessoas de todos os tipos. Contudo, na sociedade

cada vez mais movida pelo ritmo frenético e pela autodestruição dos espaços de

convívio urbanos, os ambientes de encontro podem adquirir novas formas, no

interior dos edifícios.

Nesse contexto, os equipamentos públicos se tornam importantes media-

dores da vida urbana, provendo de possibilidades culturais e espaciais seus en-

tornos. O projeto da Praça das Artes (2012, obra em construção), concebido pelo

escritório Brasil Arquitetura e inaugurado parcialmente há pouco tempo no cen-

tro de São Paulo, é uma evidência de que um projeto pontual de edifício também

pode ser uma intervenção urbanística, com potencial de alterar seu entorno. Lá,

se optou por conectar três ruas pelo miolo da quadra ao liberar todo o térreo para

que se torne mais uma passagem em meio à já permeável malha urbana da região.

É uma tentativa não apenas de gerar uma apropriação do lugar por parte dos

usuários do entorno, mas também de propor novas situações:

“A Praça das Artes foi isso, uma apropriação de um lugar como ele esta-

va e se ofereceu, mas ao mesmo tempo foi uma provocação de novas si-

1 | HEIDEGGER, Martin. Apud BRITTO; PEDROTTI, disponível em: http://www.archdaily.com.br/97751/mais-seguranca-requer-melhores-espacos-publicos/. Acesso: 17/03/2013.

INTRODUÇÃO E PROBLEMATIZAÇÃO

tuações urbanas, uma preparação para futuras transformações naquele

espaço urbano.” 2

“Não existe uma decisão de embelezar a quadra, existe uma decisão de

deixar uma passagem pra trazer as pessoas pra dentro e fazê-las se en-

contrarem.” 3

Com o projeto ainda inacabado, é impossível saber quais serão as conse-

quências de se optar por essa solução que altera o entorno, mas fica claro que

aquela parcela de cidade não será mais a mesma, e que o edifício-extensão do

Teatro Municipal é um elemento estruturador do arredor.

Por outro lado, ao analisarmos projetos com intenções semelhantes que

obtiveram sucesso comprovado, podemos observar as vantagens de se pensar o

edifício de modo articulado com a cidade. Um dos exemplos mais famosos em São

Paulo talvez seja o Conjunto Nacional, na Avenida Paulista. Obra modernista,

ele se utiliza de um dos conceitos do movimento arquitetônico para criação espa-

ços de convívio – o edifício elevado sobre pilotis – coadunando usos e se abrindo

para a rua. Assim, ele se torna um equipamento público que constrói o entorno

e estrutura a quadra. Suas passagens são tão importante quanto as próprias ruas

2 | FANUCCI, Francisco. In: “Brasil Arquitetura, entrevista com Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci”, Revista Contraste. São Paulo, LPG-FAUUSP, 2013, p. 48.3 | FERRAZ, Marcelo. In: “Brasil Arquitetura, entrevista com Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci”, Revista Contraste. São Paulo, LPG-FAUUSP, 2013, p. 48.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 9

e a mistura de usos é uma solução urbana para problemas que enfrentamos nas

grandes cidades.

Problematizado isso, podemos ir mais adiante e analisar o formato dos

equipamentos públicos da cidade perante as novas demandas da sociedade con-

temporânea. Para tanto, a biblioteca pública entra como elemento de destaque,

tendo em vista seu caráter ancestral de instituição social e fruto do imaginário

coletivo que carrega uma imensa carga simbólica. Assim como Otavio Leonídio

e Luiz Fernando Martha observam no livro “Midiateca da PUC-RIO” (2006, obra

em construção), ela é mais do que sua definição material de coleção de livros pre-

servados e disponíveis para leitura, é o desejo universal de reunir o conhecimen-

to e a memória ancestrais.

Contudo, esse edifício, considerado um “monumento precioso para a na-

ção” pelo arquiteto Étienne Louis Boullée, está colocado à prova hoje. Com o ad-

vento das novas tecnologias e o bombardeio de informações cada vez mais fáceis

de serem acessadas via internet, muitos questionam o futuro das bibliotecas. As-

sim, várias tentativas de substituição de livros por versões digitais dos mesmos

já foram postas em prática em alguns países e até chegou a se cogitar a futura

obsolescência de edifícios destinados à abrigar livros impressos.

Mesmo assim, pensadores como um dos maiores historiadores contempo-

râneos do livro e da literatura Robert Darnton parecem convencidos de que as

bibliotecas estão asseguradas pelo fato de que “uma cópia digitalizada não pode

ser substituto adequado para o original”, e que as novas tecnologias não vieram

para substituir o livro, mas sim para se somar ao suporte tradicional: o papel.

Ao mesmo tempo, vemos que o papel da biblioteca é muito maior do que

armazenar e disponibilizar livros. Seus salões de leitura são historicamente

um ambiente compositor importante do edifício. Eles promovem o isolamento

físico e intelectual dos hiperestímulos do mundo contemporâneo e são, até

hoje, parte de uma prática social importante, mantendo-se cheios diariamente

em diversos países.

No projeto do Office for Metropolitan Architecture (OMA) para a Biblio-

teca Central de Seatle (1999-2004), nos Estados Unidos, essas problemáticas são

levantadas e o edifício se propõe a encontrar soluções que mostrem que essa ins-

tituição não está ultrapassada, mas sim que deve ser repensada para adquirir im-

portância ainda maior na articulação da cidade. Para o OMA, “numa época onde a

informação pode ser acessada de qualquer lugar, é a simultaneidade de todas as mídias

e, mais importante, sua curadoria conteudística que tornarão a biblioteca vital.”

Dessa forma, esse projeto trabalha com a articulação dos espaços, tornan-

do-se um importante ponto de encontro na cidade com seus andares-praça conec-

tados de forma inteligente, separando espaços de convívio de espaços de trabalho

ao mesmo tempo que os mantém conectados entre si e com a rua. O programa

está estruturado dentro de dois grandes grupo: os “espaços contidos” e os “espaços

que contém”. O primeiro, formado por cinco usos da biblioteca, gerou volumes

que foram sobrepostos de forma deslocada e unidos por uma pele fortemente

esticada, gerando áreas intersticiais, onde estão localizados usos comuns especí-

ficos de forma dinâmica e expressiva, formando os “espaços que contém”. Dessa

forma, o segundo grupo se organiza de forma excêntrica por elementos diagonais

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX10

e abertos, enquanto o primeiro, de uso mais direcionado, se instala em volumes

ortogonais e contidos, para que tenham eficiência operacional correspondente.

As grandes diagonais da Biblioteca de Seatle anunciam seus vastos espaços

públicos, enquanto o volume modulado é funcional e prático. Combinados, estes

modos de articulação espacial geram um equipamento público que desafia não

apenas as convenções de estilo, mas também as de planejamento arquitetônico

antigas e conservadoras. Isto está bem expresso na proposta feita pelo projeto

sobre o que é a área de disponibilização de livros de uma biblioteca. Em Seatle, o

OMA cria um sistema organizacional de livros inovador – o qual batiza de “Es-

piral de Livros” – onde todos eles estão dispostos ao longo de uma fita que segue

uma rampa em espiral e possui capacidade para se adequar a uma coleção muitas

vezes maior à existente hoje na biblioteca.

Contudo, os exemplos inovadores não estão apenas nos mais novos proje-

tos estrangeiros. Em 1936, Mario de Andrade propôs uma biblioteca móvel que

circularia pela cidade através de diversos veículos que possuiriam parte do acervo

e o levariam para pontos específicos da cidade periodicamente. Essa ideia foi ado-

tada e existe até hoje no sistema de Ônibus-Biblioteca Mario de Andrade. Ela já

deixou de existir e voltou diversas vezes por dificuldades de infraestrutura, não

apenas nos seus módulos circulantes, mas principalmente por nunca ter possuí-

do um edifício sede projetado para receber os veículos de forma eficiente e fazer

a articulação entre o acervo fixo e o itinerante. Mesmo assim, o sistema atende

bairros desprovidos de recursos culturais, facilitando o acesso ao livro e incenti-

vando o interesse pela leitura como forma de apoiar a ação educativa da escola,

oferecendo oportunidades de enriquecimento cultural.

O conceito de arquitetura móvel já foi bem trabalhado por diversos ar-

quitetos, com soluções bastante interessantes. Renzo Piano tem alguns projetos

de sucesso nesse tema e, dentre eles, podemos destacar o Laboratório Móvel da

UNESCO (1979).

Nesse projeto, o objetivo era produzir um módulo itinerante que seria colo-

cado em centros de cidades degradados para promover atividades com intuito de

reabilitar essas áreas. O laboratório consiste em um corpo que não está atrelado

à máquina que o transporta – um cubo carregado por um pequeno caminhão. A

partir do momento em que ele é colocado no chão, suas paredes, formadas por

painéis articulados, se desdobram para gerar nichos de atividades. Uma tenda

dobrável é instalada como cobertura e o cubo de pouco mais de dois metros de

lado passa a configurar uma área coberta de mais de 36 metros quadrados.

Podemos concluir que tanto a Biblioteca Mario de Andrade quanto o Labo-

ratório da UNESCO:

“São arquiteturas itinerantes, mescla de mecânico e construto, e, às ve-

zes, não são incluídas no ‘vocabulário’ ou na prática da disciplina, pois

navios, trens, carros, etc. são associados a design e engenharia. Configu-

ram, no entanto, espaços de atividade humana e, por conseguinte, con-

figuram arquitetura.” 4

4 | BOGÉA, Marta, Cidade Errante: Arquitetura em movimento. São Paulo, Senac, 2009.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 11

BIBLIOTECA CENTRAL DE SEATLE, OMA ÔNIBUS-BIBLIOTECA

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX12

São formas de pensar arquitetura e articular a cidade sem necessariamente

construir edifícios nas áreas carentes. Apresentam suas vantagens ao levarem as

atividades, por exemplo a de biblioteca, à regiões onde elas não existem, dando a

liberdade para a população se apropriar dos usos de um edifício sem a necessida-

de de se deslocar até ele. Isso é uma forma de integrar essa parcela da sociedade,

que fica excluída muitas vezes pelas enormes dificuldades impostas pelos grandes

centro urbanos no que tange a mobilidade e o crescimento não planejado das

cidades que afasta as pessoas da infraestrutura.

Entretanto, temos outros exemplos que devem ser levados em conside-

ração e que talvez tenham feito o caminho inverso para atingir o sucesso. Na

Colômbia, as bibliotecas têm sido usadas como instrumento para qualificar bair-

ros degradados e resolver grandes questões ligadas à articulação urbana em

diversas cidades.

Grande parte do país é urbanizado de forma irregular através da autocons-

trução, conformando imensas áreas de favela e bairros sem qualquer infraes-

trutura, que sofrem com problemas ligados à pobreza como violência, trafico de

drogas e falta de acesso ao ensino. Assim, umas das principais medidas dos go-

vernos municipais e federal da Colômbia é investir na construção de bibliotecas

de relevância regional ou municipal, não apenas nas áreas centrais, mas princi-

palmente na periferia.

Com isso, a biblioteca, apesar de ser uma construção pontual, tem ca-

ráter de intervenção urbanística de influência até municipal. Isso acontece ao

considerarmos que a implantação deste equipamento em formato de grande

porte em áreas periféricas trará não apenas facilidades locais como se tornará

atrativo de caráter extra-regional. Essa condição confere à comunidade onde

está implantada a biblioteca um edifício público que qualifica a região não ape-

nas ao promover a cultura e a educação através dos livros e de atividades de

ensino, mas também ao gerar espaços públicos de qualidade integrados à cidade

construída. Mais além, ao desenvolver um grande projeto de destaque arquite-

tônico e funcional em regiões periféricas, inverte-se a lógica do deslocamento

periferia-centro. A nova edificação pode conformar um marco para a região,

que passa a ser um atrativo para aqueles que habitam em outros sítios, fazendo

com que moradores das áreas centrais também possam desfrutar de estruturas

encontradas na periferia, e não apenas o contrário. Essa situação inverte o va-

lor que as áreas centrais de muitas cidades possuem por terem uma relevância

cultural superior as demais, independente da concentração populacional. Ou

seja, essa proposta encontrada na Colômbia busca equalizar as regiões urbanas

e acabar com a “má distribuição de cidade”.

Talvez seja possível dizer que os Centro Educacionais Unificados (CEU), im-

plantados no governo Marta Suplicy em São Paulo, partem de um objetivo seme-

lhante. São praças-equipamento que disponibilizam estruturas antes pouco en-

contradas nas regiões periféricas e buscam se inserir nas áreas pobres da cidade

como articuladores da região, sendo apresentados por um de seus idealizadores, o

professor Dr. Alexandre Delijaicov da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da

USP, como Centros de Estruturação Urbana. Mas é importante destacar também

que, na Colômbia, a ideia foi aplicada junto com um plano mais abrangente do que

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 13

LABORATÓRIO MÓVEL DA UNESCO, RENZO PIANO

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX14

a construção de edifícios. Dessa forma, alguma bibliotecas são articuladas com

conjuntos habitacionais populares, promovendo a mistura de usos como forma

de conectar os projetos. Mais do que isso, a profissão de bibliotecário passou a ser

muito mais valorizada e os acervos das bibliotecas são vastos e de alta qualidade.

Isso também contribuiu muito para o sucesso dos projetos, que talvez não tives-

sem obtido o mesmo desempenho urbanístico sem esses conceitos.

São muitos os exemplos que podemos encontrar de edifícios articuladores

da cidade e, dentre eles, as bibliotecas se destacam por sua importância históri-

ca e conceitual. Mantendo suas portas abertas ao público desde o Renascimento

mesmo com todas as mudanças culturais e materiais trazidas pelos anos, elas se

mostram uma conquista, prova de que os livros são a melhor forma de armazena-

mento de informações e devem estar disponibilizados em bibliotecas, que devem

ser públicas. Estão sofrendo um recente processo de revisão de conteúdo e forma-

to para se adequar à novas tecnologias, dando origem às midiatecas. Mas acima

de tudo, continuam a intrigar os arquitetos com a ideia de dar uma forma limita-

da e finita para algo que conceitualmente é ilimitado e infinito: o conhecimento.

A pesquisa tem como proposta estudar como criar edifícios que articulem bem as

grandes questões urbanas de forma a construir uma cidade interligada e que pos-

sibilite sua apropriação por parte dos habitantes. Dessa forma, a ideia é entender

como um projeto localizado está construindo a cidade como um todo, partindo do

pressuposto de que ela se forma da união de inúmeros projetos pontuais, que de-

vem se articular independentemente da simultaneidade de suas construções. Vi-

sa-se também entender como se constroem os espaços de convívio dos habitantes

e como se projeta espaços de transição entre as diferentes hierarquias espaciais

do âmbito público e privado.

Aliado a isso, o estudo do edifício da biblioteca se justifica na sua impor-

tância histórica para formação das cidades, tanto filosoficamente, no plano das

ideias, quanto praticamente, tendo em vista seu caráter cultural e pedagógico

para o desenvolvimento de uma sociedade. Assim, a biblioteca oferece um gran-

de potencial como edifício público que pode abrigar funções responsáveis pela

qualificação de seu entorno e até mesmo de sua cidade. Não obstante, essas fun-

ções deixam de ser as mesmas que se mantiveram desde sua criação para agregar

emergentes possibilidades de adaptação às novas mídias e dinâmicas urbanas.

Dessa forma, visa-se entender e propor como um edifício pode qualificar

seu entorno física, cultural e socialmente. Concomitantemente, pretende-se es-

tudar, dentro de toda sua complexidade, a biblioteca como equipamento público

de grande potencial e importância, buscando uma alternativa ao questionamento

real de seu valor na atual situação de desenvolvimento tecnológico e disponibili-

dade maciça de informações para qualquer um que possua conexão on line.

OBJETIVOS

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 15

A pesquisa está vinculada ao Grupo de Pesquisa em Projetos de Arquite-

tura de Equipamentos Públicos (GPPAEP), coordenado pelo Prof. Dr. Alexandre

Delijaicov 5, ao orientador da pesquisa Antonio Carlos Barossi 6 e à coorientadora

Marta Bogéa 7. O GPPAEP é um grupo formado por estudantes e professores com

intuito de reunir pesquisadores com a mesma abordagem para que uma pesquisa

complemente a outra em encontros periódicos e trocas de informações. Enten-

de-se assim que trabalhos diferentes podem se complementar, enriquecendo a

pesquisa e o repertório dos membros do grupo. Ao mesmo tempo, a proposta dele

é produzir projetos de edifícios, a partir do momento que se considera projeto

como forma de pesquisa, já que para todo desenho de arquitetura é necessário

uma pesquisa aprofundada sobre diversos assuntos como fundamentação teóri-

ca para viabilizar bons resultados.

Com isso em vista, o objetivo do trabalho a ser desenvolvido é a produção

de um novo projeto, ou seja, de desenhos, textos e modelos tridimensionais que o

representem. Portanto, é o desenvolvimento do projeto de uma biblioteca guiado

por pesquisas, estudo de edifícios já existentes e análise de obras. Esse embasa-

5 | O Professor Dr. Alexandre Delijaicov também coordena o grupo de infraestruturas que pesquisa o hidro anel metropolitano, além de ser um dos formuladores e projetadores dos Centros Educacionais Unificados, sistema de equipamentos públicos em São Paulo.6 | O Professor Dr. Carlos Antonio Barossi já orientou trabalhos de conclusão de curso e participou de bancas de TCC sobre arquitetura de bibliotecas.7 | A Professora Dra. Marta Bogéa tem doutorado no tema arquitetura móvel, que gerou o livro “Cidade Errante” além de já ter coordenado o workshop “Tecer Tramas” em 2010 sobre o ônibus-biblioteca.

mento teórico deve orientar a escolha de parâmetros do projeto, como o terreno

de implantação, o partido, o desenho e a justificativa urbana. O produto final deve

se concretizar, então, com textos que apontem conclusões e descobertas a cerca

da arquitetura de edifícios na construção da cidade e em um projeto de biblioteca

que se utilize delas para a proposição de uma solução urbana e edificável.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX16

A princípio, o método de trabalho está dividido em três vertentes: pesquisa bi-

bliográfica, análise de projetos existentes e desenvolvimento de um meta-projeto.

Para tanto, o estudo se iniciará debruçado na bibliografia específica, de onde se-

rão levantados e problematizados os principais conceitos a serem empregados no

projeto. A pesquisa estará amparada por livros, revistas e sites que possibilitem o

estudo de conceitos arquitetônicos e urbanísticos que visem a integração do edi-

fício com a cidade e que tratem de premissas e desafios da elaboração do projeto

de uma biblioteca.

Ademais, o estudo de projetos existentes de bibliotecas se dará por leitura

crítica de textos e imagens referentes a pelo menos três exemplos diferentes, que

permitam a compreensão de como cada situação lidou com as problemáticas en-

contradas para esse desafio projetual. Para melhor compreensão, croquis esque-

máticos, diagramas e estudos volumétricos serão bem vindos.

Outra forma desejada de estudo é a visita à campo e conversa com arquite-

tos. Para tanto, uma ou mais bibliotecas serão selecionadas para análise presen-

cial do projeto ou em entrevistas com arquitetos, de forma a compreender seu

processo construtivo e sua organização espacial de forma mais clara. Algumas

possibilidades são a nova Biblioteca Brasiliana José Mindlin da Universidade de

São Paulo, o Ônibus-Biblioteca Mario de Andrade, a Midiateca da PUC-RIO e a

Biblioteca São Paulo.

Em se tratando de um estudo urbano e arquitetônico, que envolve di-

versos fatores complexos que não fazem parte das ciências exatas, um dos prin-

cipais métodos utilizados na pesquisa será a comparação. Ao analisar projetos

e situações e coloca-los lado a lado, podemos tirar conclusões preciosas que nos

permitam avançar em nossos estudos.

Por fim, o desenvolvimento de um projeto – ou anteprojeto – será a for-

ma de assimilar a compreensão dos vários itens analisados e principalmente

é uma forma concreta de aprendizado, já que um estudante de Arquitetura e

Urbanismo necessita não apenas da teoria, mas também da prática para uma

boa formação. Essa é a maneira de aprendizado do pensamento de projeto, das

técnicas de desenho e representação e de concretizar um estudo em forma de

solução espacial e construtiva.

Dessa forma, em conjunto com o Grupo de Estudos em Projeto de Arqui-

tetura de Equipamentos Públicos da FAUUSP, orientado pelo Prof. Dr. Alexandre

Delijaicov, a pesquisa estará articulada a encontros regulares com outros pesqui-

sadores e profissionais que juntos organizam entrevistas com arquitetos e ur-

banistas, visitas à obras, levantamento de dados e desenvolvimento de projetos

de frentes variadas. Compreende-se, então, uma complementaridade de conhe-

cimentos e práticas que enriquece a pesquisa e a torna parte de estudos maiores.

METODOLOGIA

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 17

Cidades como São Paulo carecem de espaços públicos hoje mais do que nunca. São

cidades que cresceram em ritmo acelerado em um período em que o pensamento

urbanístico foi negligenciado em função da implementação do automóvel, que

passou a ser o cidadão protagonista. Essas cidades não tiveram o mesmo tempo

de crescimento que as cidades antigas na Europa, por exemplo, cresceram em

poucas décadas, se estendendo por dezenas de quilômetros, de forma que gran-

de parte do que foi construído pelo poder público para acompanhar essa expan-

são foram infraestruturas de transporte automobilístico e quando muito alguns

equipamentos públicos de primeira necessidade, como creches e postos de saúde.

O planejamento de espaços públicos passou longe desse crescimento e a maior

parte das praças e áreas verdes ficou restrita à restos de traçados viários como

rotatórias, alças de acesso e bifurcações. Não é necessário dizer que não são ade-

quadas ao uso e se tornam espaços esquecidos pelas pessoas. Ademais, restaram

as calçadas para o uso público. Contudo, quando existem, ou são muito estreitas

e abarrotadas de postes, árvores e canteiros, ou não são nem caminháveis, dei-

xando aos pedestres a escolha de caminhar pelo próprio leito carroçável. Mesmo

quando possuem dimensão para receber os passantes, as calçadas ainda não pro-

videnciam uma capacidade do usuário utiliza-la como espaço público. Podemos

observar, por exemplo, que avenidas largas e movimentadas como a Avenida

Paulista e a Avenida Faria Lima em São Paulo possuem pouquíssimos bancos ou

lugares para as pessoas sentarem. Jan Gehl, fundador da empresa da empresa de

Consultoria de Qualidade Urbana Gehl Architects, ressalta em seu livro Cidades

para pessoas que “uma boa cidade pode ser reconhecida pela quantidade de pes-

DAS RELAÇÕES ENTRE A ARQUITETURA E O URBANISMO

soas que não estão andando”. Se a cidade oferece qualidade de vida, isso se reflete

na quantidade de pessoas que estão utilizando o espaço público não apenas para

circular, mas também para descansar, comer, estudar, etc.

Considerado isso, devemos entender que em uma cidade como essa, não

devemos esperar uma remodelação completa dos espaços como forma de corri-

gir os erros que acompanharam seu crescimento. Estamos lidando com cidades

consolidadas, que não possuem mais espaço para grandes projetos de desenho

urbano como o de Cerdà para Barcelona e estamos trabalhando com a premissa

de que não se pode querer refazer tudo do zero como dizia Le Corbusier sobre

Paris. Sobre isso, Rem Koolhaas escreve:

“If there is to be a “new urbanism” it will not be based on the twin fanta-

sies of order and omnipotence; it will be the staging of uncertainty; it will

no longer be concerned with the arrangement of more or less permanent

objects but with the irrigation of territories with potential; it will no lon-

ger aim for stable configurations but for the creation of enabling fields

that accommodate processes that refuse to be crystallized into definiti-

ve form; it will no longer be about meticulous definition, the imposition

of limits, but about expanding notions, denying boundaries, not about

separating and identifying entities, but about discovering unnameable

hybrids; it will no longer be obsessed with the city but with the manipu-

lation of infrastructure for endless intensifications and diversifications,

shortcuts and redistributions – the reinvention of psy- chological space.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX18

PRAÇAS EM SÃO PAULO VERDE = PRAÇAS, CINZA = LEITO CARROÇÁVEL, AZUL = ÁGUA, BRANCO = ÁREA EDIFICADA

OS TRÊS PRIMEIROS DESENHOS SÃO BASEADOS EM PRAÇAS ENCONTRADAS EM SÃO PAULO. VEMOS QUE SE TORNAM ILHAS EM MEIO AO TRÁFEGO DE AUTOMÓVEIS. NÃO SE RELACIONAM NEM COM OS EDIFÍCIOS NEM COM RIOS OU CÓRREGOS – ESTES ÚLTIMOS TAMBÉM FICAM ISOLADOS DOS PEDESTRES.

TRÊS DESENHOS DE BAIXO REPRESENTAM FORMAS COMO AS PRAÇAS SE RELACIONAM COM OS EDIFÍCIOS E COM OS RIOS EM OUTRAS CIDADES OU EM RAROS CASOS EM SÃO PAULO. SÃO CONTINUAÇÕES DA CALÇADA E MANTÉM CONTATO DIRETO COM AS ATIVIDADES URBANAS.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 19

Since the urban is now pervasive, urbanism will never again be about

the new only about the “more” and the “modified.” It will not be about the

civilized, but about underdevelopment.” 8

O que Koolhaas nos diz é que a nova forma de pensar o urbanismo não

pode ser a de idealizar grandes planos urbanos que busquem um desenho cor-

reto e fixo para a cidade, mas sim buscar a inteligência de adaptar, de modificar

os espaços existentes e transformá-los de acordo com as novas necessidades da

sociedade contemporânea. Devemos pensar a cidade através de solução sistêmi-

cas que saibam manipular a infraestrutura para permitir quantas modificações

forem necessárias.

Tendo isso em vista, entra a importância dos equipamentos públicos no

pensamento urbano contemporâneo. Agora, esses edifícios adquiriram novas

funções, muito mais abrangentes do que aquelas para as quais são planejados

tradicionalmente. Para compreender isso, podemos nos debruçar sobre um

curioso caso que apareceu nos jornais de São Paulo em janeiro de 2014. Após

conseguir uma liminar da justiça, um shopping da cidade conseguiu proibir o

uso de seu espaço para atividades de encontro cotidiano e lazer, tornando proi-

bido o uso do centro comercial para qualquer um que não tenha o objetivo de

fazer compras. Isso nos mostra uma importante informação sobre São Paulo.

Ela carece tanto de espaços públicos que centros comerciais privados passam a

desempenhar essa função, mesmo que sem intensão. Muito mais grave do que

8 | KOOLHAAS, Rem. S,M,L,XL, OMA. New York: The Monicelli Press, 1995, pp. 959/971.

isso, os lugares de encontro e de lazer são mal distribuídos na cidade, e os mais

pobres acabam sendo os mais prejudicados, já que quanto mais próximo das

periferias, existem menos praças, parques, calçadas e possibilidades de espaços

de estar. As pessoas passaram a se apropriar de estruturas urbanas que não são

projetadas como espaços públicos como forma de compensar a carência da cida-

de. A transformação do Elevado Costa e Silva em São Paulo em parque aos do-

mingos é um dos maiores exemplos disso. Mesmo sem acessos fáceis, banheiros

públicos, arborização, bancos ou qualquer outro tipo de adaptação do Elevado,

as pessoas passaram a utiliza-lo como se ele tivesse sido pensado para isso.

É dessa forma que os equipamentos públicos nos interessam nessa pes-

quisa. Como se pode levar espaços públicos para a cidade e torna-los articula-

dores da vida urbana com a implementação de um edifício? Trata-se de uma

intervenção pequena mas com grande potencial de alteração do espaço. Vemos

isso acontecendo em lugares como os Sescs. São equipamentos públicos que le-

vam uma série de atividades para comunidades da cidade e tem o potencial de

fornecer espaços públicos muito utilizados. O Sesc Pompeia 5 , por exemplo,

mais do que as atividades que proporciona, trouxe em seu desenho uma nova

rua interna que se torna um ambiente de extrema vitalidade durante o dia.

Mesmo assim, ainda possui uma vida limitada ao períodos em que os portões

estão abertos e perde a oportunidade de se tornar uma conexão da região.

Um fenômeno que nos interessa considerar nessa pesquisa também é a

histórica separação entre arquitetura e urbanismo na construção das cidades

brasileiras. Não é o objetivo aqui tentar precisar uma data para esse processo,

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX20

5 SESC POMPEIA: PLANTA E USOVEMOS NA PLANTA COMO OS ESPAÇOS INTERNOS DOS EDIFÍCIOS SE CONECTAM ATRAVÉS DA RUA PRINCIPAL ATÉ CHEGAREM AO DEQUE DE MADEIRA LINEAR QUE SERVE COMO PRAÇA. A FOTO MOSTRA A COMBINAÇÃO DE MATERIAIS DA CONSTRUÇÃO E A LIBERDADE DE USO QUE PERMITE QUE CRIANÇAS CORRAM E BRINQUEM COMO EM UMA RUA DA CIDADE.(IMAGEM CRIADA PARA ILUSTRAR UM TEXTO DA REVISTA CONTRASTE 2)

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 21

nem mesmo se aprofundar em seus motivos, mas devemos tem em mente que ele

existe para que possamos nos posicionar em relação a ele. O que se deve entender

é que por anos, os problemas urbanos ficaram restritos à decisões políticas des-

preocupadas com a forma. Enquanto isso, os arquitetos realizaram suas maiores

obras dentro de lotes limitados aos muros.

O que pretendo dizer com isso é que as obras arquitetônicas não tem con-

tribuído com a geração de urbanidade, pois deixaram de ter relevância para além

de seus muros. Mesmo do ponto de vista paisagístico não existe um pensamento

do conjunto dos edifícios construídos na cidade, o que é mais um fator de des-

qualificação do espaço, que se torna quase que autoconstruído. Mesmo em casos

como os Sescs e outros equipamentos públicos vemos que do edifício para fora

não existe melhoria do espaço, às vezes até mesmo uma piora, já que os muros são

deixados voltados para a rua, que se torna pouco ativa e perigosa. Se observar-

mos mais uma vez o Sesc Pompéia, perceberemos que sua entrada, na Rua Clélia,

torna a rua convidativa e muito utilizada. Contudo, na fachada da rua Barão do

Bananal, encontramos apenas uma grande muro que se estende por quase toda

ela, com exceção de uma entrada secundária do teatro que nunca é utilizada por

questões que também se relacionam com a gestão do conjunto. Isso torna a rua

Barão do Bananal um espaço opressivo que transmite insegurança e não é nada

convidativo ao pedestre. Sobre isso, Jane Jacobs escreve:

“...uma rua movimentada consegue garantir segurança; uma rua de-

serta não.

[...]

Uma rua com infraestrutura para receber desconhecidos e ter a segu-

rança como trunfo devido à presença deles – como a rua dos bairros

prósperos – precisa ter três características principais:

Primeira, deve ter nítida separação entre espaço público e espaço pri-

vado. O espaço público e o privado não podem misturar-se, como nor-

malmente ocorre em subúrbios ou em conjuntos habitacionais.

Segunda, devem existir olhos para a rua, os olhos daqueles que pode-

mos chamar de proprietários naturais da rua. Os edifícios de uma rua

preparada para receber estranhos e garantir a segurança tanto deles

quanto dos moradores devem estar voltados para a rua. Eles não podem

estar com os fundos ou um lado morto para a rua e deixa-la cega.

E terceira, a calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente,

tanto para aumentar na rua o número de olhos atentos quanto para in-

duzir um número de suficiente de pessoas dentro dos edifícios da rua a

observar as calçadas. [...]” 9

Essa cisão entre essas duas áreas do conhecimento parece ter afetado em

muito a forma como elas são tratadas até hoje no Brasil. Os urbanistas ficaram mui-

to voltados à problemas sociais – que são alarmantes em nosso país – como o direito

à moradia adequada, e deixaram a preocupação com a forma para os arquitetos.

9 | JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX22

RUA BARÃO DO BANANAL, LADO DO SESC POMPÉIA(FOTO TIRADA DO GOOGLE STREET VIEW)

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 23

Contudo, limitados a atuar dentro dos lotes segundo a legislação construtiva, esse

pensamento espacial não ganhou um caráter urbano. São poucos os edifícios em

São Paulo que conseguiram integrar uma alteração extra-lote no seu desenho.

Esse trabalho parte então do interesse de trazer um caráter mais urbano aos

projetos de edifícios públicos. Nos dias de hoje eles já vem desempenhando funções

muito mais abrangentes que dizem respeito a vida em espaço público e à promoção

de atividades culturais, de ensino e lazer. Muito mais do que isso, a implantação de

um edifício deve levar em conta os efeitos de sua arquitetura para o entorno e de

como seu desenho pode trazer mais vitalidade e qualidade de espaço para as ruas

e para o bairro.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX24

Como ponto de partida desta pesquisa, escolhi dois estudos de caso de projetos

com os quais tive contato durante minhas atividades acadêmicas e extracurri-

culares. O primeiro é o projeto dos Centros Educacionais Unificados (CEU) que

tem como um de seus idealizadores o professor da FAUUSP Alexandre Delijaicov,

que também é coordenador do Grupo de Pesquisa em Equipamentos Públicos da

FAUUSP. O segundo são os Parques-Biblioteca de Medellín, que conheci em uma

palestra ministrada por Alejandro Echeverri – um dos idealizadores do projeto

– na Biblioteca Mario de Andrade em 2013. Ambos os projetos tem como carac-

terística fundamental a implantação de edifícios de equipamentos públicos em

áreas da cidade que sofrem com problemas sociais e ambientais com o objetivo de

levar certos princípios urbanísticos para a região à fim de requalificá-la. Os urba-

nistas colombianos que elaboraram os Parques-Bibliotecas tiveram contato com

os projetos dos CEU em São Paulo em uma experiência de aprendizado mútuo, o

que leva os projetos colombianos a apresentarem diversas semelhanças concei-

tuais, além de várias diferenças, nos permitindo estabelecer uma comparação dos

dois casos.

- OS CEU -

“O atual projeto dos CEU constitui mais um passo em uma longa histó-

ria de interação entre arquitetos e educadores no desenvolvimento de

propostas para enfrentar a perversidade do processo de urbanização

das nossas cidades” 10

Os CEU são produto de um diálogo intenso entre educadores e arquitetos que

colocam a escola como objeto de transformação de agrupamentos populacionais

heterogêneos da cidade de São Paulo. Sendo assim, a escola passa a ser entendida

como instrumento de estruturação da cidade e da sociedade. Eles são herdeiros

de um conceito de escola anterior proveniente de da mescla da concepção pro-

gramática do educador Anísio Teixeira e da forma arquitetônica moderna dos

arquitetos Hélio Duarte e Diógenes Rebolças, as escolas parque. É justamente o

caráter de proposta pedagógica vinculada à proposta arquitetônica que tornou

as escolas parque um projeto tão interessante e que torna os CEU um objeto de

estudo valioso.

Nas escolas parque as atividades previstas foram estruturadas em três con-

juntos dispostos das mais variadas formas em terrenos amplos e ajardinados, in-

terligados por marquises. Os blocos de ensino (salas de aula, museu e biblioteca),

administração e recreação (área esportiva e galpão coberto para o recreio) forma-

vam conjuntos que tinham ênfase nas atividades de socialização dos alunos entre

si e destes com a comunidade local.

O projeto dos CEU, seguindo um caminho parecido, agrupa o programa

em três conjuntos volumétricos. O maior, em forma de grelha ortogonal, engloba

10 | ANELLI, Renato Luiz Sobral. Centros Educacionais Unificados: arquitetura e educa-ção em São Paulo. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitex-tos/05.055/517. Acessado em: 10/12/2013

AS EXPERIÊNCIAS DOS CEU E DE MEDELLÍN

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 25

salas de aula, refeitórios, biblioteca, programa de inclusão digital, padaria-escola,

áreas para exposições e para convivência. O menor, em forma de disco elevado do

solo, abriga a creche. O terceiro é um paralelepípedo de cinco andares que reúne o

teatro, ginásio esportivo e sala de ensaios de música. Tudo isso é feito com estru-

turas pré-moldadas disponíveis no mercado que possibilitam a execução rápida

de várias unidades dos CEU, sendo feitas 21 na primeira fase e 24 na segunda.

Para atenuar o efeito desse processo construtivo foram utilizados alguns recursos

arquitetônicos simples os quais Renato Anelli destaca:

“Alguns recursos de projeto, como o recuo da estrutura horizontal do

segundo pavimento em relação ao plano externo da grelha e a forma im-

plantação dos painéis de vedação do bloco de teatro, denotam a intenção

dos autores em atenuar o impacto dessa opção construtiva, usualmente

associada às construções fabris. Assim, o forte aspecto tectônico é sub-

metido a uma visualidade geométrico-abstrata onde os volumes prin-

cipais procuram uma pureza formal tencionada apenas por pequenos

volumes agregados que acentuam acessos e circulações e conferem uma

certa escala humana à forma. Participam do conjunto duas torres cilín-

dricas de caixa d’água, dispostas para conferir um contraponto vertical

à horizontalidade dominante e marcar o acesso principal.” 11

11 | ANELLI, Renato Luiz Sobral. Centros Educacionais Unificados: arquitetura e educa-ção em São Paulo. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitex-tos/05.055/517. Acessado em: 10/12/2013

Os três volumes permitem um leque de opções de implantação que podem

variar com o terreno com a escolha do arquiteto responsável. Existem dois par-

tidos de implantação mais comuns: a distribuição perpendicular dos edifício, fa-

zendo com que o espaço entre eles remeta à uma praça urbana; o alinhamento

dos blocos em um longo edifício único. A grelha ortogonal da estrutura permite

flexibilidade na configuração para se adaptar a variações no programa e diferen-

tes implantações. Mesmo assim, a degradação urbana e social da periferia de São

Paulo dificulta uma interação mais aberta com o tecido urbano circundante, que

muitas vezes se torna desconexo do equipamento.

O CEU quer inaugurar uma nova urbanidade nos bairros onde é implan-

tado. Mais do que isso, ele introduz aos habitantes dessas comunidades conceitos

pouco presentes em suas vidas como atividades culturais relacionadas à musica

e ao teatro e uma nova forma de se relacionar com o meio ambiente. Como a

ocupação descontrolada das periferias tomou quase todo o espaço livre, os espa-

ços que restaram para a implantação de equipamentos públicos se tornaram as

áreas de preservação como várzeas e nascentes. Os arquitetos dos CEU tiraram

proveito disso e introduziram o partido de incorporar rios e córregos no ambiente

urbano. Redesenhando as margens e integrando às praças esportivas e piscinas

eles deram um novo significado aos cursos d’água, que deixaram de ser os fundos

das edificações.

No atual governo de São Paulo está sendo criado pela prefeitura o conceito

de “Territórios CEU”. Trata-se da tentativa de tornar os CEU parte de um sistema

de equipamentos e espaços públicos interligados. É um refinamento do conceito

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX26

CEU ROSA DA CHINAPODEMOS OBSERVAR FACILMENTE NA PLANTA OS VOLUMES UTILIZADOS PARA CONSTITUIR O COMPLEXO. A FOTO MOSTRA QUE AO VIVO, TAMBÉM SE PERCEBE AS FORMAS QUE IDENTIFICAM CADA FUNÇÃO DO PROGRAMA.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 27

de equipamento público que caminha no sentido das praças de equipamentos e

visa um caráter mais metropolitano. Trata-se de instalar novos CEU próximos à

edifícios públicos de outras naturezas e possibilitar uma requalificação do entor-

no visando uma conexão entre todos esses espaços públicos através de ciclovias e

calçadas que permitam a transformação desse “território” em um espaço público

qualificado e contínuo.

O conceito de “sistema” é algo estudado também por outro laboratório de

pesquisas da FAUUSP. O Quapá trabalha em cima do que chama de sistema de

espaços livres. Para entender esse conceito é necessário enxergar que “espaços

livres” não são a mesma coisa que “espaços verdes”, são na verdade qualquer es-

paço livre de construção. Isso significa que todas as áreas não edificadas da cidade

fazem parte desse sistema, desde praças e parques até ruas e vielas. Dessa forma,

para construir um sistema qualificado de espaços livres, deve-se pensar todas as

formas de relações entre esses espaços e como se dá sua leitura volumétrica e

paisagística.

“A qualidade espacial urbana está diretamente vinculada à existência

de inúmeros e generosos espaços livres, diversificados, tratados paisa-

gisticamente, arborizados, equipados, bem mantidos, atendendendo às

variadas demandas sociais. Entende-se ainda que a realização da esfera

pública exige espaços livres amplamente acessíveis para o seu desenvol-

vimento.

Os espaços livres são essenciais para a superação de significativos

problemas ambientais enfrentados pelas cidades brasileiras e lugares

fundamentais para a construção da sociedade verdadeiramente demo-

crática e justa.

O sistema de espaços livres (SEL) não se define somente a partir dos

seus elementos constituintes, mas também das relações entre todos os

espaços livres de edificações urbanos, independentemente de sua dimen-

são, qualificação estética e funcional, de sua localização, sejam eles públi-

cos ou privados.

A idéia de sistema se apóia sobretudo na vinculação funcional e am-

biental, já que fisicamente somente os espaços públicos estão conectados

entre si, principalmente pelo sistema viário. Nele, ruas, avenidas e vielas

estão totalmente conectadas permitindo ao usuário, em tese, o acesso vi-

sual ou ainda físico tanto às construções e aos espaços livres a elas vin-

culados, assim como a parques, praças, calçadões e aos demais espaços

livres públicos.

Devido a este papel integrador e por seu intermédio se dar grande

parte da vida urbana cotidiana, tanto no quesito circulação como das de-

mais atividades sociais, tem-se que as vias podem ser consideradas como

os mais importantes espaços livres públicos de qualquer cidade.” 12

É, portanto, fundamental incluir um pensamento sistêmico em interven-

12 | MACEDO, Silvio Soares. Os sistemas de espaços livres e a constituição da esfera pública contemporânea no Brasil. 1ª Edição. São Paulo: FAUUSP, 2013.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX28

TERRITÓRIO CEUEXEMPLO DE FUNCIONAMENTO: TERRITÓRIO CEU TATUAPÉ(IMAGENS RETIRADAS DO SITE DA PREFEITURA DE SÃO PAULO)

TERRITÓRIO CEUEXEMPLO DE FUNCIONAMENTO: TERRITÓRIO CEU JOSÉ BONIFÁCIO(IMAGENS RETIRADAS DO SITE DA PREFEITURA DE SÃO PAULO)

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 29

ções urbanas, já que em uma cidade todos os espaços já estão conectados, mas

poucas vezes pensados. Vemos também a importância da relação os edifícios com

a rua – que por serem os principais espaços livres da cidade – já que eles alteram

não só a percepção desse espaço mas também a forma como ele funciona. Assim,

a provocação de Alexandre Delijaicov ao tratar os CEU como Centros de Estru-

turação Urbana deve-se à necessidade de enxergar esse potencial nos edifícios

públicos, quando bem implantados e sistematizados, podem trazer grandes mu-

danças para as comunidades locais.

- OS PARQUES-BIBLIOTECA DE MEDELLÍN -

Nos últimos anos, a Colômbia tem se tornado um país de referência no manejo e

planejamento de suas cidades. Bogotá – a capital – já foi tema de bienais de arqui-

tetura pelo mundo, mostrando como a implementação de políticas públicas liga-

das ao planejamento territorial e a implantação de projetos arquitetônicos e ur-

banísticos tem reduzido drasticamente os índices de criminalidade e melhorando

a qualidade de vida da cidade. Há alguns anos, Bogotá era um lugar que poucas

pessoas desejariam conhecer e quiçá morar, pois apresentava elevadas taxas de

pobreza, violência, tráfico de drogas e outros indicadores de baixa qualidade de

vida. Contudo, essa situação vem mudando e Bogotá passou a ser um exemplo

internacional de como lidar com grandes problemas urbanos.

O arquiteto colombiano Carlos Niño Murcia discute em uma entrevista re-

alizada para a Bienal de Arquitetura de Veneza de 2006 a arquitetura pública re-

cente de Bogotá. Nela ele destaca que as cidades se estruturam em três elementos

fundamentais: os monumentos, as residências e o espaço públicos. O primeiro, diz

ele, são as instituições, criadas pela sociedade para assegurar sua coesão e seu de-

senvolvimento. Ela e seus valores se representam através dos edifícios públicos,

que devem ter um caráter público e aberto, uma localização privilegiada e uma

maior elaboração de seus materiais e elementos de plasticidade e espacialidade.

Em Bogotá, foram implantadas pelo governo municipal três grandes bibliotecas

públicas em áreas da cidade onde não havia esse tipo de equipamento. O intuito

foi levar a comunidades carentes a oportunidade de possuir e utilizar a boa ar-

quitetura. Desse ponto de vista, Murcia considera que elas obtiveram sucesso e

ajudaram no acesso ao serviço e a requalificação das regiões. Mesmo assim, ele

reconhece que a Biblioteca de El Tinal, por exemplo, poderia ter sido melhor im-

plantada, pois careceu de acesso fácil via transporte público e gerou uma esplana-

da muito grande e pouco utilizada, a qual ele compara a Brasília.

Num caminho muito parecido com o de Bogotá, a cidade de Medellín pas-

sou a fazer reformas urbanas que também obtiveram grandes resultados. Apesar

de se tratar de uma cidade bem menor – Bogotá possui cerca de oito milhões de

habitantes enquanto Medellín possui aproximadamente três – era uma das mais

violentas e dominadas pelo tráfico de drogas em todo país. Sua geografia única em

forma de grande vale – cuja área mais alta está a mais de mil metros de altura da

várzea do Rio Medellín – isolava completamente as populações mais pobres nos

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX30

topos de morro onde não existia quase nenhuma infraestrutura de mobilidade ou

equipamentos públicos que atendessem a população.

Pensando nisso, foi elaborado um plano de “acupuntura urbana”, espalhan-

do pequenos projetos pontuais pela cidade visando uma requalificação geral. Essa

estratégia permitiu melhorar os espaços que já existiam em vez de refaze-los do

zero. Ao mesmo tempo, ao espalhar igualmente pela cidade essas intervenções,

foi evitado um processo de expulsão populacional e gentrificação.

Esse trabalho foi dividido em cinco conceitos. O primeiro é trabalhar os

espaços de fronteira, o qual buscou direcionar os projetos para áreas de conflito e

disputa de poder entre diferentes comunidades da cidade, ou onde o acesso é difi-

cultado por falta de infraestrutura de transposição. Dessa forma, visa-se entregas

melhor as regiões e os habitantes.

O segundo ponto seria dar visibilidade à cidade através de uma discussão

integrada dos problemas urbanos. Nela, foram envolvidos desde a população ca-

rente até empresários e grandes comerciantes. Seguido disso, existe a preocupa-

ção com a rua, entendendo que se trata do principal espaço público da cidade.

Assim, foram recuperadas calçadas, ruas de carro se tornaram peatonais, foram

implementados mobiliário urbano e nova iluminação.

O quarto ponto é cultura e comunicação. Foram criados inúmeros programas

culturais e educacionais vinculados à projetos arquitetônicos, servindo como forma

de tirar as crianças das drogas e da violência. Por último, foi destacado a beleza dos

novos edifícios públicos. “Os edifícios mais belos devem estar nas comunidades mais

pobres”, destacou Alejandro Echeverri em palestra na Biblioteca Mario de Andrade.

Para execução desse plano, o principal objeto de requalificação utilizado

foram equipamentos públicos, em especial as bibliotecas. Chamadas de parque-

biblioteca elas sempre acompanharam a implementação de espaços livres públi-

cos abertos em sua implantação, recuperando os espaços existentes. Quando era

necessária a desapropriação de casas para a construção desses edifícios, os proje-

tos passavam a abarcar a parte residencial também, de forma de toda a população

sempre era realocada para a mesma área em conjuntos habitacionais integrados

ao espaço públicos criado. Ao mesmo tempo, sempre se buscou integrar nas in-

tervenções a implementação de novas infraestruturas de transporte, como o me-

trocable, que é uma espécie de teleférico que ajuda a vencer os grandes desníveis

de Medellín.

Todos os projetos de edifício e espaço públicos implantados na cidade fo-

ram resultado de concursos internacionais. Dessa forma, cada um deles possui

propostas diferentes e arquiteturas originais, que levam uma identidade única

seus bairros. Essa estratégia também contribuiu para trazer mais visibilidade in-

ternacional à cidade, que passou a ser um novo polo de atração turística e de

investimentos dentro do país

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 31

IMPLANTAÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS EM ÁREAS DE DIFÍCIL ACESSO EM MEDELLÍN

REQUALIFICAÇÃO DAS RUAS EM MEDELLÍN, TRANSFORMAÇÃO EM RUAS COMPARTILHADAS POR CARROS E PEDESTRES

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX32

PARQUES-BIBLIOTECA EM MEDELLÍNPARQUE-BIBLIOTECA SAN JAVIER (ACIMA); PARQUE-BIBLIOTECA LA LADERA (ABAIXO)

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 33

- MUROS OU PORTAS? -

Apesar de apresentarem naturezas muito similares, os CEU e os parques-biblio-

teca de Medellín possuem formas de intervenção muito distintas. O que nos cabe

analisar nessa pesquisa não são tanto as diferenças programáticas dos edifícios

em cada caso, mas a forma de interação deles com o espaço público e como cada

um foi capaz de intervir nas dinâmicas do bairro ou da cidade.

A direção dessa pesquisa é a mesma da filosofia do escritório de consultoria

de qualidade urbana Gehl Architects quando se trata do pensamento conjunto

das formas urbanas. Ela é uma crítica a forma como são tratadas as políticas ur-

banas tradicionalmente, que separam em departamentos diferentes problemas

como o trânsito, a arborização, as calçadas, as praças, os parques, os edifícios, etc.

São departamentos que não se dialogam e buscam resolver cada desafio de forma

isolada. O resultado é que uma transformação urbana que poderia resolver diver-

sos problemas da cidade ao mesmo tempo acaba tratando apenas de um e muitas

vezes gerando inúmeros outros.

Essa crítica já foi feita por arquitetos brasileiros também. Em seu trabalho

denominado Vazios de água o escritório de arquitetura MMBB problematiza e

repensa a forma como são feitos os “piscinões” em São Paulo. Eles são uma for-

ma criada pela prefeitura para ajudar na drenagem de água durante períodos de

chuvas fortes. São basicamente grandes poços cavados no chão em áreas onde

os alagamentos são constantes para onde deve correr a água durante as chuvas.

Dessa forma, são evitadas enchentes nessas áreas, mas o que se ganha em troca

é um imenso fosso no meio da cidade que não pode ser acessado por ninguém e

não possui nenhuma função paisagística. O que os arquitetos do MMBB apon-

tam é que se os piscinões fossem responsabilidade não apenas da secretaria que

lida com drenagens, mas também daquela que lida com espaços públicos, trânsito,

ruas e parques, eles poderiam se tornar áreas muito mais úteis na cidade, pois

além de ajudar na contenção das águas pluviais ainda poderiam gerar áreas qua-

lificadas de uso público e transporte.

O que se pretende com esse pequeno desvio de assunto é justamente indi-

car o primeiro ponto de comparação entre CEU e parques-biblioteca. Como é tra-

dição no Brasil, a implementação dos CEU não envolveu intervenções para além

de seus portões. Isso significa que apesar de sua proposta de estruturação urbana,

eles não trouxeram consigo melhoria da infraestrutura de transportes, tão pouco

requalificação de espaços públicos vinculados ao seu entorno. Os únicos espaços

públicos que podem ser considerados ficam dentro de seus portões e, portanto,

não configuram espaços realmente urbanos, pois são inacessíveis por parte do

tempo. Considerando que os CEU são escolas, é justificável a existência de áreas

descobertas de uso controlado, pois deve haver a preocupação com as crianças.

Contudo, não foram abertos outros espaços que possam se configurar como pra-

ças ou largos do bairro, e portanto, não contribuíram com o combate à carência

desses espaços no meio urbano paulista. Em muitos casos, mesmo gramados não

utilizados nas atividades dos conjuntos ficam dentro das cercas, se tornando es-

paços perdidos tanto para o equipamento público quanto para a cidade.

Os parques-biblioteca, por outro lado, estão sempre acompanhados tan-

to de uma implantação vinculada a infraestruturas de deslocamento na cidade

quanto da doação de áreas livres públicas qualificadas para os bairros. Sendo as-

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX34

ESQUEMA DO FUNCIONAMENTO DA GESTÃO PÚBLICADESENHOS FEITOS COM BASE EM APRESENTAÇÃO DO ESCRITÓRIO GEHL PARA O PROJETO DE REQUALIFICAÇÃO DO VALE DO ANHANGABAU EM SÃO PAULO EM PARCERIA COM A SP URBANISMO. EM VERMELHO, ESPAÇO URBANO PENSADO DE FORMA SEGREGADA;EM VERDE, ESPAÇO URBANO PENSADO DE FORMA CONJUNTA.

Calçadas Órgão Y

EdifíciosÓrgão Y

Arborização Órgão W

Espaço PúblicoÓrgãos Y, H, W, M, N, Y

ViasÓrgão H

IluminaçãoÓrgão M

Transporte PúblicoÓrgão N

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 35

sim, se tornam mais acessíveis e agregam mais à qualidade de vida dos habitantes

de seu entorno. Em suma, diferente do que acontece nos CEU, junto ao projeto

dos edifícios das bibliotecas de Medellín existe também um projeto paisagístico

dos espaços livres.

Um importante elemento que logo sobressai aos olhos quando compara-

mos essas duas propostas de intervenção urbana é a forma dos edifícios. Sobre

isso podemos levantar algumas questões, contudo é necessário entendermos as

duas estratégias de projeto e o contexto no qual foram feitas. Os CEU partiram

de uma opção por estruturas pré-moldadas que pudessem ser facilmente adqui-

ridas no mercado e que permitissem aos arquitetos da prefeitura projetar todas

as unidades em um curto período de tempo. Para isso, foram elaborados módu-

los construtivos que pudessem ser feitos com esses elementos pré-fabricados e

que permitissem diversas formas de combinação. Por outro lado, os parques-

biblioteca são frutos de concursos internacionais. Isso permitiu que os edifícios

resultantes obtivessem formas muito mais variadas e conseguissem uma inte-

gração maior aos terrenos de implantação, pois cada projeto teve um escritório

de arquitetura único pensando cada área e com menos limitações construtivas

do que no caso dos CEU.

Sem levantar questões relacionadas à verba pública, é importante perce-

ber que enquanto em São Paulo foram construídos 21 CEU em um governo e 23

no outro, em Medellín foram construídos aproximadamente cinco parques-bi-

blioteca. Isso significa que as escalas de implantação desses projetos foram muito

diferentes, até porque as cidades possuem tamanhos muito distintos. De qual-

quer forma, o que se quer observar com isso é que talvez a opção por módulos

construtivos de forma tão limitada tenha prejudicado a implantação dos CEU no

que tange o diálogo com o terreno, por mais que sempre se tenha buscado isso

em seus projetos. Além disso, a repetição desses módulos pela cidade possui a

vantagem da construção rápida e de criar uma certa identidade visual para os

CEU, mas acaba tornando eles edifícios menos convidativos, tratando todos os

bairros sem buscar uma identidade – ao contrário do que foi uma das intenções

dos projetos de Medellín.

O título desse texto é, portanto, um questionamento ao modelo de edifício –

não apenas público – que se tem feito no Brasil. Existem basicamente dois modos

de lidar com o controle de pessoas ao espaço “privado” de um edifício: cerca-lo,

impedindo o acesso à seu terreno, mas podendo deixar as portas do objeto cons-

truído sempre abertas; ou fechando as portas do edifício, mas deixando o espaço

livre do terreno aberto e integrado completamente à cidade. Em geral, a primeira

opção é o que acontece em nossas cidades, onde tanto os edifícios habitacionais

como muitos dos equipamentos públicos e prédios comerciais muram seus terre-

nos ficando livres para desenhar os edifícios sem preocupações de como ele deve

impedir a entrada de não usuários.

A vantagem de escolher o muro é que ele permite ao desenho do edifí-

cio uma integração muito maior entre o ambiente interno e externo (restritos

ao lote). Isso dá uma sensação de liberdade ao usuário, que passa do céu aberto

ao edifício sem mesmo perceber. É o caso, por exemplo, da Faculdade de Arqui-

tetura e Urbanismo da USP, projetada por Vilanova Artigas. Apesar de não pos-

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX36

suir muros diretamente, o edifício está protegido pelos muros da universidade que

distanciam a cidade do edifício. Ele pode, então, privar-se das portas e criar um

grande térreo livre que dá acesso ao interior da faculdade, de forma que não existe

qualquer possibilidade de controle de entrada de pessoas, tornando espaços inter-

nos e externos quase um só. Entretanto, em algum momento essa solução agride

o meio urbano, pois necessitou ignorá-lo. No caso da FAU, isso acontece a dezenas

de metros de distância, quando o muro da universidade encontra a cidade. Nessa

fronteira, são gerados espaços de conflito, pois as ruas que margeiam essa enorme

parede se tornam mais agressivas, mais perigosas e perdem o caráter urbano. O

espaço público que poderia se integrar ao restante da cidade, permitindo que os

transeuntes desfrutassem de espaços públicos e tivesses contato direto não com

muros, mas com edifícios ativos, fica nas mãos de um público restrito.

O mesmo acontece em muitos outros prédios de São Paulo, principalmente

quando se trata de edifícios habitacionais. É comum a criação de condomínios

cercados, onde o edifício, isolado no lote, não busca contato com a rua. Assim, a

interface entre o espaço público e o privado se dá por muros, cercas e guaritas,

em uma relação prejudicial a urbanidade. É gerado um espaço livre que, apesar de

ser privado, está em contato com a rua pública, mas que não pode ser acessado.

O edifício não se propõe a participar da vida urbana e cria sua própria lógica de

funcionamento, que ignora a cidade e suas dinâmicas.

Ao observarmos os CEU, podemos notar que sua implantação buscou um

caráter próximo ao da FAU. Os edifícios são permeáveis e integrados ao espaço ex-

terno. Por outro lado, seu terreno é cercado e seus espaços livres desconectados da

cidade. O própria necessidade de criar aterros para abrigar os módulos constru-

tivos dos edifícios acaba gerando muros de arrimo que se voltam para a rua. Em

Medellín, houve um cuidado maior em criar uma interface entre edifício e espaço

livre público, de forma que esses conflitos se tornam menos frequentes. De qual-

quer forma, mais uma vez devemos lembrar que se tratam de programas distintos

e contextos diferentes, de forma que não se podem distingui-los entre melhor ou

pior, apenas foram analisados aspectos de seus edifícios que nos interessam.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 37

FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO MURO DA USP NA AVENIDA POLITÉCNICA

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX38

EXEMPLOS DE INTERAÇÃO DO EDIFÍCIO COM A RUARUA DOUTOR MARTINS DE OLIVEIRA EM SÃO PAULO (ACIMA); CALLE MAYOR EM MADRID (ABAIXO).

RELAÇÃO DOS EDIFÍCIOS COM A RUACEU FEITIÇO DA VILA EM SÃO PAULO (ACIMA); PARQUE-BIBLIOTECA ESPAÑA EM MEDELLÍN (ABAIXO)

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 39

Como já foi dito anteriormente nesse trabalho, os equipamentos públicos pos-

suem um valor simbólico muito grande dentro da cidade, pois tratam-se de si-

nais da vontade coletiva expressos através da arquitetura e se tornam pontos

de referência na dinâmica urbana. Ao mesmo tempo, enfrentamos mudanças

na sociedade que alteram as demandas por espaços públicos e redefinem as fun-

ções dos edifícios de uso coletivo. Devemos lembrar também que eles trazem

uma função social muito forte, e são capazes de resolver problemas urbanos

como a violência e as drogas com o tratamento dos espaços públicos e com o

poder de trazer classes sociais diferentes para o mesmo lugar, tornando-se um

espaço mais democrático.

A biblioteca é, dentre os equipamentos públicos, um dos que mais tem a

capacidade de trazer mudanças sociais e urbanas significativas para seu entor-

no caso possua um projeto e um plano para isso. Ela é também um dos equipa-

mentos que mais teve seu programa alterado ao longo dos anos com o advento

das novas tecnologias de mídia e dos novos potenciais que ela passou a abrigar.

Dessa forma, podemos listar alguns exemplos de como novas utilidades podem

ser incorporadas as bibliotecas para que se tornem importantes catalizadores de

transformação em seus bairros.

Para começar, mesclar serviços para a comunidade dentro do edifício

pode ser muito útil. Incluir um centro-creche na biblioteca pode contribuir tan-

to para o aprendizado infantil quanto para atender a novas dinâmicas urbanas

como o ingresso de mães de família no mercado de trabalho. Fomentar a co-

municação através da possibilidade de acesso à vários meios de informação e

serviços de alfabetização e cursos de idioma ajuda a comunidade a se integrar

ao mercado de trabalho e ao mundo ao seu redor.

A biblioteca também pode oferecer formas de valorização da cultura e da

história através da promoção de eventos culturais, contadores de história e até

mesmo a inclusão de um centro de referência urbana e formação cívica, onde

existe um espaço para o debate de questões locais e transparência do governo nas

obras públicas. Pode servir também de lugar público de encontro, com exibição de

filmes ao ar livre, instalações artísticas temporárias, mesas de xadrez e áreas de

brincadeira ao ar livre relacionadas à área de leitura infantil.

É importante explorar também o fato de que a biblioteca pode impulsionar

o comércio local. Não apenas ela serve de vetor de atração para seu entorno, que

passa a ser mais ativo, como também pode incluir em seu programa algumas fun-

ções como café, loja de livros usados, espaço para locação para pequenas galerias

de arte e para eventos.

Partindo de um pensamento sistêmico, devemos garantir que o acesso à

biblioteca seja fácil, conectando-a ao metrô, aos ônibus, aos carros, às bicicletas

e aos pedestres. Ao mesmo tempo, deve-se buscar uma ativação dos espaços pú-

blicos, podendo ser incluída, por exemplo, uma praça de uso público que permita

uma conexão dos espaços internos e externos do edifício. Dessa forma, também

podem ser oferecidas áreas agradáveis de estar tanto dentro como fora da biblio-

teca, incluindo serviços como ponto de uso de wi-fi gratuito, por exemplo.

Mas é essencial destacar que para que a biblioteca tenha sucesso, ela deve

ter um projeto que inclua todas as possíveis funções. Mais do que isso, a gestão

DA ARQUITETURA DE BIBLIOTECAS

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX40

dela é uma das formas mais importantes de manutenção de sua atividade, sendo

necessário uma constante revisão dos programas oferecidos e visando a qualida-

de e diversidade do acervo.

A seguir, serão apresentados alguns estudos de caso de projetos de bi-

bliotecas que nos ajudam a compreender melhor como trazer todas as funções

de um edifício desse porte para o desenho. Assim, poderemos começar a com-

preender melhor questões de organização do programa, desenho dos ambientes

e relação dos espaços que devem ser consideradas no projeto de uma biblioteca.

Foram escolhidos projetos que possuem novas propostas na forma de lidar com o

tema em questão e ao mesmo tempo que possuem alguma relevância nas dinâmi-

cas urbanas de suas cidade.

BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA - E -

MIDIATECA DE TOULOUSE

Esses dois projetos foram selecionados para estudo pela oportunidade que tive de

visitá-los pessoalmente em Julho de 2013. Embora seus desenhos técnicos não es-

tejam disponíveis para consulta, os textos que existem a respeito deles e a vivên-

cia que tive de seus espaços e suas cidades permitiu que fosse desenvolvida uma

análise muito importante sobre seu funcionamento, forma e simbologia. Desse

modo, através de fotos e croquis feitos por mim, tentarei descrever os elementos

presentes nesses edifícios que interessam à essa pesquisa.

A Biblioteca Nacional da França, localizada em Paris, foi resultado de um

importante concurso internacional que reuniu mais de 200 escritórios de ar-

quitetura de diversos países. Era de interesse da França a construção de um

novo símbolo nacional e um marco para Paris. Essa foi também a estratégia

utilizada para criar um novo eixo de urbanização na cidade. A região onde foi

inserida a biblioteca era um antigo polo industrial da cidade que estava pas-

sando por uma fase de mudanças. Era, então, necessário indicar que esse novo

eixo é uma importante parte da cidade para atrair investimentos privados para

não transformar o bairro em um simples dormitório, e sim em uma região de

interesse municipal.

O projeto vencedor do concurso, do arquiteto francês Dominique Per-

rault, se consagrou ao propor uma forte simbologia e um por sua proposta de

ocupação. Com uma imensa área livre, a biblioteca serve como um respiro para

a tão adensada cidade de Paris. São 60 mil metros quadrados de praça pública e

um jardim interno com área de um acre em frente ao Rio Senna em um diálogo

constante com as ruas ao redor e com a paisagem natural da cidade. A praça

é formada pela cobertura da biblioteca e está em nível com a rua mais alta. 19

Conforme as ruas descem em direção ao rio, é formada uma grande escadaria

que, ao mesmo tempo que se impõe, convida os transeuntes à acessarem a bi-

blioteca ou mesmo a sentarem e observarem a orla do Senna. Sobre essa praça,

se erguem quatro grandes torres em forma de livro aberto que marcam as qui-

nas da biblioteca e olham para seu interior. Com um poder de Gestalt, elas de-

marcam esse imenso retângulo que pode ser compreendido à grande distância.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 41

FOTO DE SATÉLITE DA BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇAPERCEBE-SE A IMENSIDÃO DO PROJETO EM COMPARAÇÃO AO RESTANTE DA CIDADE

CROQUIS EXPLICATIVOSCORTE MOSTRA A RELAÇÃO DO PROJETO COM O RELEVO E PRESENÇA DE TRAÇOS HORIZONTAIS E VERTICAIS FORTES NO PROJETO (ACIMA); ESQUEMA QUE MOSTRA PLANTAS DAS TORRES CONFIGURANDO O ESPAÇO DA BIBLIOTECA E O GRANDE JARDIM INTERNO (ABAIXO)

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX42

Diferente do que são os monumentos na França, com seus grandes pórti-

cos, colunatas e frontões, a Biblioteca Nacional cria uma nova forma de conferir

importância ao edifício através da forma pura e da ortogonalidade. Também

são utilizados diversos materiais com uma combinação muito refinada, desde

a imensa escadaria em madeira até a vastas fachadas de vidro e aço. Cada ma-

terial é escolhido com precisão para conferir aos volumes e espaços diferentes

características que tomam proveito da tecnologia contemporânea. Através des-

ses recursos a biblioteca se impões sobre a cidade mas também se integra a ela

com cores muito urbanas e com uma regularidade e uma estabilidade formais

que amenizam sua imensidão.

Enquanto as torres abrigam escritórios públicos e espaços de pesquisa, a

biblioteca funciona no grande embasamento delas sob a praça pública. Sendo

assim, para acessa-la, o usuário deve descer em direção à grande floresta do

jardim central. Os principais pontos de descida são feitos por esteiras rolantes

à céu aberto e estão indicado de forma sutil pelas paredes que às acompanham,

mas que continuam a subir além do nível da praça depois que estas já encon-

traram o térreo.

Se apropriando de uma característica dos edifícios mais antigos, Domini-

que Perrault torna o jardim interno a principal janela da biblioteca que acontece

em cinco andares de anéis retangulares que circundam esse espaço de vegetação

criado para parecer uma floresta natural. Voltadas ao jardim estão as circulações

horizontais, com um pé direito imponente e paredes de vidro que vão do teto ao

chão. Esses corredores dão acesso aos diversos espaços da biblioteca e a floresta

confere ao edifício um sentimento de isolamento e paz que quase engana alguém

que não saiba que está no meio de uma das maiores metrópoles do mundo.

A Biblioteca Nacional da França é um projeto que se apoiou em caracte-

rísticas históricas de monumentos para criar uma nova forma de edifício que

explora ao máximo às novas tecnologias construtivas e o uso dos materiais de

modo sóbrio e equilibrado. Suas dimensões talvez sejam muito exageradas, e a

escala humana quase se perde em tamanha vastidão. Contudo, essa foi a opção do

arquiteto para anunciar a grandiosidade desse equipamento público de imenso

valor para a cidade e para o país.

>FOTOGRAFIAS DO EDIFÍCIO

AS FOTOGRAFIAS MOSTRAM A GRANDE ESCADARIA DE MADEI-RA E A IMPONENTE FACHADA DE VIDRO E AÇO QUE SE ERGUE

NAS TORRES SOBRE ELA.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 43

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX44

>ESTEIRAS E INDICAÇÕES DA ENTRADAS DA BIBLIOTECA

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 45

>JARDIM INTERNO

E CORREDORES DE CIRCULAÇÃO

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX46

HALL DE ENTRADA OESTE

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 47

FOTOGRAFIA DE SATÉLITE DA MIDIATECA DE TOULOUSEPERCEBE-SE O ALINHAMENTO DO EDIFÍCIO COM A AVENIDA E A PRAÇA PÚBLICA ATRÁS DELA

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX48

A Midiateca de Toulouse nos interessa por motivos similares, mas de outra

escala. Assim como em Paris, ela se torna um grande marco urbano da cidade.

Seguindo uma tradição francesa, ela foi implantada no eixo visual de uma im-

portante avenida e ganhou uma forma muito similar a de um arco do triunfo, se

apropriando de seu simbolismo para conferir valor ao edifício e dar à biblioteca

um significado comparável ao de uma grande conquista nacional. Mas além do

seu poder visual, o edifício tem uma interessante proposta urbana e de organiza-

ção do programa.

Apesar de seu rasgo central alinhado com o da avenida, o edifício não

pode ser cruzado por automóveis. Ao invés disso, cria uma passagem para pe-

destres e gera atrás de si uma praça pública de uso misto, onde existem prédios

públicos, comerciais, de serviços e habitacionais. Desse modo, a vitalidade ur-

bana é garantida pelos múltiplos usos ao mesmo tempo que o espaço público

ganha destaque através do edifício da midiateca. Ele mesmo possui um caráter

de mistura de usos interessante. Das duas torres do edifício a mais delgada é

uma escola de artes audiovisuais, enquanto apenas a mais robusta abriga real-

mente o programa da midiateca. A ligação entre as duas torres pode cima abriga

a parte administrativa do edifício.

Existe também uma ligação subterrânea entre as torres. Nela estão uma

saída de metro que permite acesso direto ao edifício e a parte infantil da bibliote-

ca. Esta última recebe a privacidade e o isolamento necessário para abrigar suas

atividades ao mesmo tempo que possui iluminação natural proveniente de sua

implantação circundada por um generoso rebaixamento. Desta forma, a passa-

>A MIDIATECA EM FORMA DE ARCO DO TRIUNFO

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 49

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX50

REBAIXAMENTO EM FRENTE À CRECHE E ÁREA INFANTIL

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 51

VÃO INTERNO, ESCADARIA PRINCIPAL E ILUMINAÇÃO ZENITAL

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX52

gem de pedestres que cruza o edifício pelo meio é dada por uma ponte sobre esse

fosso. Também está associado à biblioteca um ponto de empréstimo de bicicletas

do sistema público, localizado à frente dela. Sendo assim, o equipamento conse-

gue ser acessível através de diversos meios de transporte e sua forma dialoga com

os fluxos que cria.

Dentro da midiateca, os andares se organizam ao redor de um generoso

espaço cuja cobertura, no último andar, possui entrada de luz natural e contri-

bui para iluminar todo o edifício. Na parte oposta a entrada da biblioteca, neste

grande vazio, está a circulação vertical. Ela se destaca por uma grande escada

helicoidal de revestida por lâminas de metal que formam um grande redemoinho

que ascende ao céu. Atrás da escadaria estão os elevadores, que possuem paredes

de vidro de onde se pode ver tanto a parte de dentro como a de fora da midiateca.

Em seus andares se distribuem diversas funções: coleção de livros em fran-

cês, coleção de livros em outras línguas, computadores para estudo de idiomas,

salas de computação, coleção de filmes, televisões para assistir filmes, coleção de

CDs, poltronas onde se pode escutar os CDs, mesas de estudo e salas de ativida-

des. O empréstimo de materiais pode ser feito tanto com os recepcionistas de cada

andar como em máquinas de autoatendimento.

Todo o edifício é revestido com brises metálicos móveis que ajudam a bar-

rar o sol, mas podem ser abertos sempre que necessário. Sua cor avermelhada

remete à história de Toulouse, que é famosa por suas construções em tijolo que as

tornou“a cidade vermelha”. No térreo do edifício também está presente um pro-

grama interessante: um centro de referência urbana. Trata-se de um local onde a

prefeitura expõe as obras públicas que estão sendo realizadas e educa a população

sobre a cidade de forma transparente. Esse uso parece muito apropriado de estar

associado à uma midiateca (local de ensino e conhecimento) e incluso em um edi-

fício de relevância urbana.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 53

USUÁRIOS EM PONTOS DE LEITURA E DE AUTOATENDIMENTO DE EMPRÉSTIMO

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX54

>CENTRO DE REFERÊNCIA

URBANA E BRISES METÁLICOS AVERMELHADOS

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 55

- BIBLIOTECA MUNICIPAL DE SEATLE -

A Biblioteca Municipal de Seatle foi selecionada para este estudo pois apresenta

não apenas um interesse programático muito grande, como também estético e

estrutural. O programa do edifício e sua organização trazem invenções que mere-

cem ser estudadas. Foram elas que levaram tanto à forma final do edifício quanto

às suas soluções estruturais. Dessa relação, surge uma nova forma de pensar a

arquitetura e entender seu papel na contemporaneidade. O poder estético do edi-

fício deve ser menos considerado por questões de beleza do que por questões de

destaque e Gestalt. Sua forma exterior nos conta muito sobre sua planta e confere

à biblioteca o status de monumento de grande destaque.

O OMA criou, na Biblioteca de Seatle, um verdadeiro complexo de ativi-

dades mescladas de difícil compreensão através de apenas plantas e cortes. Isso

porque o pensamento tridimensional é a chave para desvendar o edifício. Depois

de uma leitura crítica e propositiva do extenso programa de atividades da biblio-

teca, os arquitetos reagruparam as funções da forma que consideraram mais efi-

caz, propondo novas divisões e possíveis significações do espaço. Foram definidos

então áreas de uso específico e áreas de uso mais livre. Aquelas, distribuídas em

paralelepípedos, foram sobrepostas de forma a não se encostarem. Depois, eles

ainda foram desalinhados, deixando de ter um centro em comum. Foi então que

uma pele esticada de vidro cobriu todos os blocos, ligando-os e gerando novos es-

paços entre eles. Foi essa estratégia de organização do programa que gerou então

a forma final do edifício. Foi algo espontâneo, não era possível saber seu formato

final até que tudo estivesse reorganizado.

Em uma observação mais geral, podemos dividir a lógica do programa da

seguinte maneira: os espaços de estacionamento e área técnica estão localizados

no subsolo; no térreo – que tem dois níveis acessados por ruas em cotas distin-

tas – estão as atividades mais públicas e próximas das atividades urbanas como

entradas, auditório, área infantil e jovem, centro do línguas, área de estudos,

café, loja e a coleção de livros de ficção; acima disso estão os andares de informa-

ção onde se pode usar computadores e pesquisar tudo que a biblioteca oferece,

funções que fazem a conexão entre o espaço público e o acervo da biblioteca; o

volume maior se encontra acima deste e abriga a coleção de livros de não ficção

e espaço de leitura principal; por fim, o último volume abriga a administração

geral da biblioteca.

Essa organização vertical do programa aproxima da rua as atividades mais

cotidianas e de interesse da população em geral. Ao mesmo tempo, permite criar

um espaço para o acervo principal que se impõe sobre a biblioteca e é capaz de

abrigar uma vasta coleção de livros. Fugindo da forma tradicional de acervos de

biblioteca, o OMA propõe que o volume que abriga a coleção funcione como uma

grande espiral, uma rampa contínua de dois graus de inclinação (o suficiente para

não prejudicar cadeirantes ou carrinhos de livros, mas ainda sim indicar uma cons-

tante subida) que comporta estantes com capacidade para muito mais livros do que

a coleção inicial da biblioteca. Desse modo, apesar da verticalização do acervo, ele

permanece como um espaço contínuo e totalmente conectado, onde se pode transi-

tar livremente sem a necessidade de interromper o percurso por causa de escadas

ou elevares. Essa engenhosa solução transforma o entendimento do usuário sobre

o edifício e permite uma nova forma de dinâmica do edifício vertical.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX56

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 57

<INFOGRÁFICOS MOSTRAM COMO FUNCIONAM OS BLOCOS DE ATIVIDADES

VEMOS COMO O PROGRAMA DEU FORMA AO EDIFÍCIO

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX58

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 59

<INFOGRÁFICO DOS ANDARES PÚBLICOSENTRADA PRINCIPAL PELA FOURTH AVENUE, PRIMEIRO NÍVEL PÚBLICO. DESTACAM-SE AS ÁREAS INFANTIL, DE ENSINO DE IDIOMAS E AUDITÓRIO. (IMAGEM DO MEIO)ENTRADA SEDUNDÁRIA PELA FIFTH AVENUE, SEGUNDO NÍVEL PÚBLICO. DESTACAM-SE ÁREA PARA JOVENS, AUDITÓRIO DE ARENA, ESTANTES DE LIVROS DE FICÇÃO, CAFÉ E LOJA. (IMAGEM DA DIREITA)

<INFOGRÁFICO DO ANDAR DE INFORMAÇÃOCHAMADO “MIXING CHAMBER” O ANDAR DE INFORMAÇÕES É O NÚCLEO DO PROJETO E CONECTA O PÚBLICO AO ACERVO. DESTACAM-SE AS ÁREAS DE INFORMÁTICA E DE PESQUISA DE LIVROS (IMAGEM DA ESQUERDA)

A suave inclinação do bloco de acervo e leitura também influencia na es-

pacialização dos outros blocos. No mezanino de informação o pé direito varia e

o piso ganha diferentes espacialidades e dinâmicas visuais. O mesmo ocorre no

último andar do acervo, onde o piso inclinado aliado à cobertura horizontal con-

ferida pelo bloco administrativo também cria uma variação de pé direito.

Um outro fator interessante para a dinamização e integração dos espaços

é o deslocamento horizontal dos blocos. Ao fazer isso, o OMA cria mezaninos

internos e pés direitos de diferentes alturas. No caso da parede de vidro inclinada

que vai do bloco público ao de acervo, é criado um grande vazio que confere ao

espaço uma sensação de quase estar ao ar livre. É aí que o bloco de informações

funciona como mezanino e mira o bloco público como se fosse uma praça urbana.

Em outros lugares, a inclinação da pele de vidro ganha outra função. Quando se

inclina para fora do piso, ela se transforma numa grande janela que olha para

o espaço público externo de cima e permite uma nova forma de relação entre o

interior e o exterior do edifício.

É importante perceber que, apesar do deslocamento horizontal dos blocos

ser bem variado, todos os andares ainda podem ser acessados pelas mesmas tor-

res de elevadores e escadas, permitindo uma funcionalidade melhor do edifício

como um todos. Pro outro lado, os usuários nunca são obrigados a utilizar essas

torres, já que existem escadas rolantes alternativas que se destacam no meio da

biblioteca com cores vibrantes, convidando as pessoas a subirem e descobrirem

todos os espaços públicos desse grande equipamento.

Para estruturar esse complexo edifício, o OMA utiliza, na maior parte do

projeto, uma estrutura relativamente simples de colunas alinhadas em grid que

passam por todos os andares. Contudo, em determinadas regiões do projeto fo-

ram incluídas vigas de aço inclinadas para permitir os grandes balanços dos blo-

cos deslocados ou para evitar que colunas invadissem certos espaços como o piso

público interno.

Algumas das propostas de espaço interno que mais chamam a atenção no

projeto além das já comentadas são: um auditório sem teto acessado por cima

através de um dos pisos públicos; a posição das estantes de livros de ficção em

leque, alterando a percepção espacial do vasto andar público e transformando-o

em uma floresta de livros; o uso de cores fortes para indicar espaços ou ativida-

des; o espaço de transição entre a calçada e o interior do edifício, onde existe um

estacionamento de bicicletas.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX60

<CORTE DO EDIFÍCIO COM DESTAQUE PARA O ACERVO E SEU FUNCIONAMENTO

PERCEBE-SE NO CORTE COMO AS DIAGONAIS DE VIDRO GERAM ESPAÇOS INTERNOS E VISUAIS

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 61

>NO CORTE, A TORRE DE CIRCULAÇÃO VERTICAL; NAS FOTOS,

A CIRCULAÇÃO ALTERNATIVA

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX62

DESTAQUE PARA AS ESTRUTURAS

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 63

DISPOSIÇÃO DAS PRATELEIRAS DE LIVROS DE FICÇÃO. ALÉM DE PLANTA EM LEQUE POSSUEM ALTURA BAIXA, POSSIBILITANDO INTEGRAÇÃO VISUAL DO ESPAÇO

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX64

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 65

O AUDITÓRIO ABERTO E AS JANELAS QUE OLHAM PARA BAIXO SÃO ALGUMAS INVENÇÕES DO EDIFÍCIO QUE O TORNAM ESPECIAL.

<AS FORTES DIAGONAIS DE VIDRO MARCAM O DESENHO DA BIBLIOTECA E CRIAM ESPAÇOS DE TRANSIÇÃO COMO A ENTRADA E AS ÁREAS PÚBLICAS

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX66

- PARQUE-BIBLIOTECA ESPAÑA -

Como parte do grande projeto de requalificação urbana de Medellín já abordado

nessa pesquisa, o Parque-Biblioteca España é um projeto resultado de um concur-

so internacional. Seu interesse para essa pesquisa existe por uma série de razões.

Além de seu grande sucesso na recuperação do espaço público do bairro onde se

insere, se tornou um equipamento de destaque que chamou a atenção do público

para os problemas de Medellín e para suas iniciativas de combate à eles. Esse

projeto lida não apenas com a dificuldade de se inserir em uma zona degradada

da cidade com terreno de difícil acesso, mas também com o fato de ser um em-

preendimento público de um país em desenvolvimento. Dessa forma, diferentes

dos projetos analisados anteriormente, que surgem em países com grande poder

econômico, a Biblioteca España se enquadra num contexto sociopolítico mais pró-

ximo do enfrentado no Brasil.

Dividindo o programa da biblioteca em três grandes blocos individuais, foi

possível estabelecer funções que podem ser acessadas de forma independente e

estão ligadas através de uma grande praça pública que se encontra no nível da

rua. Com uma implantação em forma de leque, os edifícios configuram essa praça

em diálogo com o volume das construções preexistentes. Ao mesmo tempo que

demarcam o espaço público sem a necessidade de grades ou muros, deixam ras-

gos na paisagem que permite a criação de mirantes de onde se pode ver a vasta

paisagem urbana de Medellín.

O que chama atenção à primeira vista nesse projeto é seu grande destaque

simbólico na comunidade onde se insere. Trata-se de um edifício que investiu

em um poder estético capaz de se destacar chamar a atenção dos cidadãos apara

esse novo espaço público da região. Mesmo assim, consegue manter uma forte

relação com a paisagem onde se insere e dialoga com ela de forma positiva. Ao ser

construído no alto de um dos morros da cidade, ele pode ser visto de longe e indi-

ca que naquela área atualmente pobre da cidade existe um equipamento público

de grande importância. Ao mesmo tempo, se disfarça na paisagem montanhosa

como se fizesse parte dela, onde poderiam existir três grandes rochas existem três

edifícios públicos.

Esse diálogo com a paisagem também se dá nos detalhes de aproveitamen-

to do terreno pelos edifícios. O arquiteto soube utilizar o grande desnível a seu

favor, sem a necessidade de significativas movimentações de terra de criação de

grandes platôs. Os cortes feitos no terreno receberam diretamente espaços in-

ternos dos edifícios, de forma que não são perceptíveis por fora. Por vezes, a co-

bertura desses espaços ajudou a configurar a praça pública de forma plana. Para

isso, o nível de acesso dos edifícios não é necessariamente através do piso mais

baixo, já que existem níveis acima e abaixo do nível da rua, mas que, pela forma

do terreno, não configuram exatamente subsolos, já que possuem janelas para o

lado oposto à praça. Essa solução permitiu, por exemplo, que o edifício que abriga

o auditório pudesse ter uma entrada por cima, fazendo com que a arquibancada

se aproveitasse do desnível preexistente.

De uma maneira diferente do que ocorre na Biblioteca de Seatle, a Biblio-

teca España também possui uma forma abstrata com a presença de fortes diago-

nais. O que as diferencia é o fato de, em Medellín, a forma exterior não ser uma

consequência da organização interna dos edifícios. A solução aqui é uma pele

> IMPLANTAÇÃO DOS

EDIFÍCIOS E MIRANTE FORMADO ENTRE ELES

>RELAÇÃO DOS EDIFÍCIOS

COM A PAISAGEM NATURAL E URBANA

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 67

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX68

que envolve os volumes de forma descolada e independente deles. Assim, não

se pode deduzir o formato interno dos blocos à partir de sua forma externa. Essa

estratégia permite uma solução estrutural mais simples que a do OMA, sem a

necessidade de vigas na diagonal ou grandes balanços, apenas lajes e colunas. Ao

mesmo tempo, o espaço que existe entre a pele e as lajes permite uma integração

entre os andares, que compartilham da mesma ventilação e das mesmas janelas.

É possível perceber todos os andares quando se está dentro dos edifícios.

Em uma observação mais detalhada também podemos destacar uma so-

lução interessante para o armazenamento dos livros. Todas as estantes estão lo-

calizadas nas bordas das lajes e possuem uma altura de aproximadamente 1,2

metros. Assim, funcionam também como parapeito e balcões que permitem uma

integração visual completa do espaço e liberam a parte central das lajes para as

mesas de leitura e estudos.

>CORTES DOS EDIFÍCIOS

PODEMOS NOTAR COMO O TERRENO FOI APROVEITADO NA PARTE INTERNA DOS EDIFÍCIOS E COMO ELA AJUDOU A

CRIAR A PRAÇA PÚBLICA

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 69

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX70

PERCEBEMOS A INTEGRAÇÃO ENTRE OS ANDARESE A DISPOSIÇÃO DAS ESTANTES

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 71

PERCEBE-SE COMO A FORMA INTERNA E EXTERNA DO EDIFÍCIO SÃO INDEPENDENTES

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX72

Um dos fatores de maior interesse nessa pesquisa é compreender como se dá a

relação do espaço construído com o espaço livre para que ambos se completem

e tragam qualidade de vida para a cidade. Em um estudo mais simplificado, pre-

tendo entender a relação da forma dos edifícios com o espaço livre resultante e

como isso pode contribuir para gerar bons espaços públicos e vitalidade para eles.

Assim, escolhi alguns edifícios públicos da arquitetura brasileira e internacional

como foco dessa análise. Esses edifícios foram escolhidos por terem algum tipo de

proposição em relação à geração de espaço público exterior relacionado ao edifí-

cio. Sendo assim, não se tratam apenas de obras que resolveram bem o desenho

ou se tornaram ícones da arquitetura, mas sim que trouxeram de alguma forma

uma intenção de elaboração do espaço livre.

- REAL GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA, RIO DE JANEIRO -

O primeiro edifício a ser analisado é também o mais antigo deles. O que existe

de tão especial no Real Gabinete Português de Leitura é sua relação com traçado

antigo da cidade do Rio de Janeiro. Ela nos remete às análises do antigo urbanista

Camillo Sitte, que nos interessa por ser muito pouco presente no pensamento

da arquitetura e das cidades brasileiras e nos permitir tecer novas observações

– apesar de publicadas há mais de cem anos – acerca da forma de se projetar

espaços públicos.

O EDIFÍCIO E O ESPAÇO PÚBLICO: UM ESTUDO

Apesar de ser uma biblioteca de grande importância na época em que

foi construída, com arquitetura luxuosa e forma imponente, o Real Gabinete se

mescla aos edifícios do quarteirão, dando continuidade à fachada da quadra. Em

vez de se isolar para ganhar destaque, o que lhe confere maior importância é

justamente seu diálogo com o conjunto. Essa configuração permite que se abra

uma praça seca em sua frente de lados não paralelos que sinalizam na direção

do Gabinete de Leitura. Assim como observou Sitte em seu livro quando diz que

das 255 igrejas de Roma, apenas seis não eram geminadas em algum dos lados.

Dessas seis, quase todas foram feitas em tempos modernos ou não eram católicas.

Mais do que isso, ele observa que os monumentos em geral (edifícios, estátuas,

chafarizes) nunca são colocados de forma centralizada no espaço público e isso

potencializa sua percepção e seu diálogo com o contexto.

Camillo Sitte nos dá uma visão mais artística do fazer urbano. Para ele, a

crítica ao pensamento moderno está no fato da implantação dos monumentos

ter passado a ser dada por regras puramente formais e geométricas, deixando

em segundo plano a sensibilidade aguçada dos arquitetos em compreender como

posiciona-los. Ele nos mostra como essa sensibilidade pode fazer falta e nos con-

ta o caso de David, de Michelangelo, que foi posicionada pelo próprio artista no

canto de uma praça ao lado de uma parede, mas que mais tarde foi movido para

um museu e teve sua réplica posicionada no centro geométrico da praça. Isso fez

com que David perdesse sua imponência, já que passou a ficar em campo aberto,

ao mesmo tempo que perdeu seu contato com o público, que não passava pela

estátua a menos que quisesse vê-la.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 73

REAL GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURAFOTO DO INTERIOR DO EDIFÍCIO (ACIMA)DEMONSTRAÇÃO DA RELAÇÃO DO EDIFÍCIO COM A MASSA CONSTRUIDA E COM A PRAÇA À FRENTE DELE (ABAIXO)

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX74

Basicamente, o urbanista nos mostra como algumas características de ci-

dades aparentemente autoconstruídas sem planejamento na realidade guardam

grandes segredos e sabedorias sobre a forma de se fazer a cidade. Saber escolher a

posição de monumentos, muito mais do que saber como valorizá-los visualmente,

também tem a ver com os fluxos e os usos do espaço, e tudo isso deve ser estudado

quando se projeta.

- CENTRE GEORGES POMPIDOU, PARIS -

Acompanhando a tradição parisiense na inserção do edifício, ele man-

tém suas extremidades juntas às calçadas, de forma que suas paredes delimitam

as ruas. Apesar disso, é mais do que perceptível a transgressão que faz em seu

desenho em relação aos edifícios de seu entorno, já que foge completamente da

lógica estilística do centro de Paris. Isso, somado ao seu gabarito levemente mais

alto que dos edifícios ao seu redor, lhe confere o destaque que mostra sua função

de monumento urbano.

É interessante em sua implantação o fato de delimitar uma grande praça

seca que está diretamente vinculada ao edifício. Ao mesmo tempo que ela per-

mite o respiro que a construção merece para ser vista, se torna um espaço vivo e

muito utilizado pelos habitantes e turistas.

Ao analisarmos a volumetria do Centre Georges Pompidou e seu entor-

no, vemos que ambos agem igualmente no sentido de delimitar a praça principal,

ao mesmo tempo que criam outras pequenas pracetas conectadas à ela. As formas

do museu e das massas formadas pelos edifícios do entorno são similares e fazem

com que ele se torne parte daquele tecido apesar de sua estética provocativa.

A praça se integra ao edifício através de seu térreo de vidro que permite

uma troca visual muito grande entre dentro e fora. Ao mesmo tempo, o sistema

de escadas rolantes e mirantes instalados na fachada do prédio fazem com que

essa integração continue até o último andar e o edifício passa a dialogar não

apenas com a praça que vê e enxerga, mas também com toda a paisagem urba-

na que permite ao visitante deslumbrar. A leve inclinação da praça no sentido

do edifício contribui para que ele receba atenção, já que direciona os grupos de

pessoas a se sentarem voltadas para ele. Em contrapartida, o lado oposto do

museu dialoga bem menos com a rua, e não se propõe a alterar a dimensão de

sua calçada. Mesmo assim, isso não se torna um problema a medida que o edi-

fício em frente garante a vitalidade das calçadas ao oferecer janelas e comércio

voltados para a calçada.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 75

IMPLANTAÇÃOCENTRE GEORGES POMPIDOUFOTOGRAFIAS DO EDIFÍCIO

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX76

CROQUI DE CORTECENTRE GEORGES POMPIDOUPERCEPÇÃO VOLUMÉTRICA

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 77

- SESC POMPEIA, SÃO PAULO -

Lina Bo Bardi criou uma pequena cidade quando projetou o Sesc Pompeia.

Com ruas e edifícios independentes, o equipamento público se tornou na ver-

dade vários e, dentro de si, se transformou no modelo de uma cidade. Um

ambiente urbano é composto por múltiplos edifícios com diversas funções. As

ruas conectam tudo, levando carros, pedestres e ciclistas para o comércio, a

praça, o esporte, o cinema, a escola, enfim, para todas as atividades que uma

cidade pode oferecer. Quando um edifício se fecha em si mesmo, ele corre o

risco de deixar de fazer parte dessa cidade e se tornar uma barreira, uma es-

pécie de câncer. São assim alguns shoppings ou condomínios residenciais cer-

cados, que obrigam a vida urbana a acontecer dentro de seus muros, tornando

o redor hostil ao pedestre e segregando as funções urbanas, que passam a ser

acessíveis apenas com auxílio do automóvel.

No Sesc Pompeia, acontece o mesmo que em uma cidade. As ruas são

praças que se tornam restaurantes, que se tornam clubes esportivos que se

tornam oficinas. Tudo tem vitalidade e está conectado. A posição dos edifícios

é que configura as ruas e praças, tornando-os espaços de transição e estar. Ati-

vidades culturais e apresentações não possuem espaço definido, mas possuem

espaços preparados para recebe-los tanto por sua configuração espacial – ora

coberta, ora descoberta; ora grande, ora diminuta – quanto por suas múltiplas

personalidades dadas pelo matérias e pela forma.

O maior pecado do Sesc Pompeia é, então, não ter levado essa vitalida-

de e urbanidade para além de seu interior. Não se pode culpar exatamente a

arquitetura dele por isso, já que grande parte do problema advém de decisões

administrativas. Em suma, muitas de suas ruas internas terminam em grades

e muros, impedindo um fluxo de grande potencial que poderia conectar as

atividades internas do Sesc com as do restante do bairro, como o shopping, o

mercado e as residências.

Um elemento importante em sua volumetria é o edifício de esportes,

o mais alto e de arquitetura mais chamativa. Ele cria uma importante marca

no território e indica um endereço coletivo de acesso público. Suas passare-

las externas tem um efeito semelhante às escadas do Instituto Georges Pom-

pidou, permitindo uma relação entre o interior e exterior do edifício que se

faz verticalmente. Elas também guardam uma característica interessante. Ao

conectarem os edifícios por cima da rua, ajuda a quebrar o conceito de lote ur-

bano. Claro que se a rua fosse aberta e se tornasse parte da cidade isso ficaria

mais evidente: o edifício atravessa o espaço público sem que um interrompa o

outro. Uma nova forma de entender a morfologia urbana.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX78

PEQUENAS PRAÇAS ENTRE

EDIFÍCIOS

GALPÕES PERMEÁVEIS

COM ATIVIDADES DIVERSAS

GALPÃO PRINCIPAL ATIVA A RUA INTERNA E DÁ AS COSTAS

PARA A RUA EXTERNA

PRAÇA LINEAR COM DEQUE DE MADEIRA

ELEMENTOS MAIS ALTOS

RUA INTERNA PRINCIPAL

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 79

ENTRADA PRINCIPALMERCADO

PRAÇA TIPO ILHA

SHOPPING

MUROS OU CERCAS

<SESC POMPEIAFOTOGRAFIAS DO EDIFÍCIO (ESQUERDA)VOLUMETRIA E ESPAÇOS (DIREITA)

IMPLANTAÇÃO

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX80

- PRAÇA DAS ARTES, SÃO PAULO -

A Praça das Artes, assim como já mencionado anteriormente, nos interessa por

trazer consigo um novo posicionamento na arquitetura contemporânea brasilei-

ra. Sua forma e implantação não apenas são muito propositivas como também

trazem uma solução muito interessante em relação à gestão e à já discutida duali-

dade entre muros e portas. Ao fazer uma releitura das galerias de lojas em miolos

de quadra, elemento muito presente no centro de São Paulo, esse equipamento

público cria uma praça pública com esse formato.

A vontade de tornar aquele espaço uma passagem conectada com o entor-

no levou os arquitetos a elevarem os edifícios do chão e a esconderem suas es-

truturas, de forma que não existem colunas no caminho. Desse modo, para quem

está nas ruas do entorno, existe um grande rasgo térreo na fachada contínua do

quarteirão que indica a entrada como se fosse o térreo do edifício. Para quem está

sob os edifícios, eles são apenas marquises em uma praça ora coberta, ora não. Já

para quem está no miolo da quara, é possível enxergar todas as ruas do entorno

numa simples girada de cabeça, tornando-se rápida a compreensão das múltiplas

possibilidades de caminhos.

A mesma vontade de liberar o térreo teve que lidar com a necessidade de

controle de entrada para o terreno em certos momentos. Para isso, diferente do

que é feito normalmente ao se elevar o edifício sobre pilotis, liberando o térreo

mas gerando a necessidade de cercas no entorno, o os edifícios foram colocados

diretamente na rua. Dessa forma, quando o acesso está fechado, existe um portão

junto ao edifício, ao mesmo tempo que é uma grade, é como a porta de qualquer

um dos edifícios da rua. Quando está aberto, o portão se esconde por sob o piso e

desaparece, mantendo a sensação da ausência de muros e de conexão total entre

o espaço público e o semi-publico.

A forma dos edifícios também nos interessa, não pela sua estética pura-

mente, mas pelo funcionamento de seu programa. Tratam-se de seis edifícios

com funções diferentes, mas que se unem física e esteticamente, gerando uma

linguagem única para o conjunto que não denuncia a primeira vista sua separa-

ção de atividades. Assim, Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci vão além do que

Lina fez com as passarelas do Sesc Pompeia e criam transposições através dos

próprios edifícios para quebrar o conceito de lotes urbanos e transpor o espaço

público sem interrompê-lo. Dessa forma, apesar de abrigarem diversas atividades

independentes, os edifícios se tornam um só. A volumetria variável dos corpos,

que surge da mistura entre o programa de cada um a relação com o espaço no qual

foi inserido, se torna aliada do conjunto e dá a ele uma linguagem em comum.

Mais do que isso, essa variação de gabaritos e formas quase se confunde com a

quadra onde a Praça das Artes se insere, pois, lá, edifícios altos, baixos, largos e

estreitos evidenciam uma certa ausência de ordenação.

Sendo assim, o diálogo que a Praça das Artes faz com seu entorno varia

de uma tentativa de manter a lógica desordenada e pluriformal da quadra e do

posicionamento de quebrar com a própria ideia de quadra e transformar aquele

espaço em algo novo.

>PRAÇA DAS ARTES

FOTOGRAFIAS DO EDIFÍCIO (ESQUERDA)IMPLANTAÇÃO (DIREITA)

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 81

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX82

PRAÇA DAS ARTESVOLUMETRIA E ESPAÇO PÚBLICO

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 83

A princípio parece estranho considerar o estudo de estruturas móveis como obje-

to de uma pesquisa que visa compreender as relações da arquitetura e do espaço

livre. Contudo, é fácil perceber que esse assunto é mais do que pertinente por

uma série de motivos. O primeiro e mais importante talvez seja o fato de que

será alvo de projeto deste trabalho o sistema de Ônibus-Biblioteca de São Paulo,

que envolve elementos circulantes. Porém, mais do que isso, é notável que a ar-

quitetura recente lida com a mobilidade e com a capacidade de produzir espaços

nômades. Diversos projetos da atualidade são feitos considerando a capacidade

de deslocamento dos corpos construídos. Desde casas montadas por módulos pré-

fabricados que abrigam cômodos prontos que se juntam no local de implantação

da residência até estruturas implantadas no espaço público por espaços de tempo

limitados, como é o caso do Pavilhão Itinerante da IBM, projetado por Renzo Pia-

no. Existem iniciativas parecidas com o próprio sistema de Ônibus-Biblioteca que

envolvem corpos em deslocamento, criando pequenos teatros e até mesmo cine-

mas à céu aberto que são montados temporariamente com módulos deslocáveis

que podem facilmente transitar entre diferentes regiões da cidade.

Essas estruturas são importantes, pois são formas da arquitetura se adap-

tar às dinâmicas urbanas e responder a novas demandas de forma prática e rá-

pida. Desse modo, não são necessárias grandes obras estáticas para responder a

problemas pontuais e fluidos. Pode-se dizer:

“Além disso, significa compreender arquitetura e cidade como fatos

relacionados de modo sistêmico e, portanto, em interferência mútua a

gerar (re)organizações. E não como fatos isolados, estanques e hierar-

quicamente distribuídos, como sugere a noção de infraestruturas como

subsídio ou base a partir da qual a arquitetura e a cidade se organizam.

Parece significativo, numa época de rápidas transformações, que se

pense em espaços onde, mais do que uma alucinante e incessante des-

truição, seja necessária uma materialidade que absorva as alterações.

Ao comparar os sólidos (que diante ao impacto sua forma permanece

inalterada ou é destruída) aos líquidos (ao impacto, sua forma se reor-

ganiza, assumindo outras configurações), Bauman fornece uma metá-

fora desafiadora para uma arquitetura que, nesta época de variações e

transformações, (re)organiza-se mais do que se destrua com os impactos

naturais.” 13

Mais recentemente foi criado um conceito de “praças de bolso” denomina-

dos parklets. Com a preocupação de qualificar o espaço público e repensar as formas

de uso das calçadas nas grandes cidades, essas pequenas praças podem ser implanta-

das sem a necessidade de reformas urbanas ou mesmo de grandes intervenções na

configuração da rua. Tratam-se de elementos pré-fabricados que possuem a dimen-

são de uma vaga de carro. São trazidos para regiões da cidade onde o uso das calçadas

é intenso e necessita de ampliação e onde opta-se por ceder parte do espaço destinado

ao automóvel para uso dos pedestres. Assim, eles são facilmente implantados e se

adaptam a diversas necessidades, trazendo consigo mobiliário urbano que envolve

13 | BOGÉA, Marta, Cidade Errante: Arquitetura em movimento. São Paulo, Senac, 2009.

ESTRUTURAS MÓVEIS

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX84

PAVILHÃO ITINERANTE DA IBM

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 85

INE ITINERANTE VEFAVE, CHILE

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX86

bancos, paradas de bicicleta, canteiros, entre outros. É uma solução fluida e simples

que abriga grande potencial de transformação.

Outra experiência do mesmo tipo feita no Canadá para a comemoração de seus

400 anos criou “praias móveis”. Na verdade são estruturas cujo conceito surgiu da

ideia de uma praia, já que são espaços conciliação social que reúnem pessoas de todos

os tipos e classes sociais. A ideia era criar uma paisagem que permitisse o mesmo tipo

de apropriação que uma praia, mas mesclada com um jardim. O resultado foi uma

instalação que funcionava como um grande tapete laranja que se dobrava e abria fu-

ros de forma a ser tornar ao mesmo tempo piso, banco, jardim e caixa de areia. Dessa

forma, diversas atividades podiam ser realizadas nessa simples estrutura. Ao mesmo

tempo, sua cor forte marca sua presença no território e atrai os transeuntes curiosos.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 87

PARKLETSPARKLETS NOS ESTADOS UNIDOS EM OKLAND (FOTO 1), SEATLE (FOTO 2) E SÃO FRANCISCO (FOTOS 3 E 4)

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX88

PLAGES, SPMB

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 89

Após algumas pesquisas, conversas com funcionários do Sistema de Ônibus-Bi-

blioteca e visita às suas instalações, pude compreender melhor seu funcionamen-

to e tecer algumas críticas e observações que servirão de base para a formulação

do projeto final. São 72 locais de parada dos ônibus, espalhados pelas regiões Nor-

te (18), Sul (27), Leste (24) e Oeste (03). E sempre há pedido para colocação de mais

Ônibus-Biblioteca.

O primeiro ponto importante diz respeito ao acervo. Como ela faz parte

do sistema municipal de bibliotecas, os volumes que possui são os mesmos com-

prados para todas as outras bibliotecas da rede, variando apenas naquilo que

recebe como doação. Mesmo assim, possui uma coleção própria para circular

nos ônibus, não necessitando de empréstimos de bibliotecas físicas. Por outro

lado, não existe um edifício exclusivo para abrigar seu acervo e seus funcioná-

rios, que dividem provisoriamente o espaço do edifício da Biblioteca Affonso

Taunay, localizado na Mooca.

Trata-se de um edifício térreo e de arquitetura simples, localizado dentro

de um complexo institucional que abriga outros equipamentos como postos de

saúde e postos da AACD. A Biblioteca Affonso Taunay fica distante de qualquer

rua, de forma que para acessá-la é necessário atravessar os portões desse comple-

xo e caminhar até o edifício, que tem a entrada voltada para o lado oposto, dando

às costas aos ingressantes. Ela não foi projetada para abrigar o sistema circulante,

de forma que os funcionários e o acervo dividem todos o mesmo espaço edifício

em um grande galpão separado da outra biblioteca por uma porta. Também não

existe nenhum planejamento da interface do edifício com os ônibus, que para

fazerem a carga e descarga de volumes apenas permanecem estacionados à céu

aberto em um pátio em frente ao galpão. O carregamento é feito de forma ma-

nual em caixotes de plástico que guardam livros previamente selecionados pelos

funcionários para serem distribuídos entre os ônibus.

Cada ônibus carrega cerca de quatro mil volumes entre livros, gibis, re-

vistas e jornais. A troca de acervo ocorre de quatro em quatro meses além de

eventuais reposições e complementações. Pela dificuldade de transportar com-

putadores, todo o sistema de empréstimos é feito manualmente. Os ônibus são

contratados de empresas que trabalham com o transporte público da cidade e

adaptados com estantes, pintura e um toldo para servirem à nova função. Eles

ficam estacionados nas próprias garagens da empresa, de forma que só utilizam

a central para troca de acervo e pela manhã para pegar os funcionários respon-

sáveis por cada ônibus.

As paradas dos ônibus ocorrem em locais onde existe dificuldade de acesso

ao sistema de bibliotecas, até porque possuem o mesmo acervo que as outras bi-

bliotecas municipais e seriam pleonasmos ambulantes caso não mantivessem certa

distância delas. São buscados pontos próximos a escolas e locais de passagem para

outras atividades, de forma que fiquem mais próximos de possíveis usuários. Ao

mesmo tempo, situam-se próximos a pequenos comércios onde os funcionários po-

dem almoçar e à escolas públicas onde eles podem utilizar o banheiro.

Esses pontos buscam ser fixos para que seja fácil encontrar os ônibus es-

tacionados, variando suavemente a localização quando há conflitos na região.

Normalmente eles se instalam em pequenas praças, por mais raras que sejam na

O SISTEMA DE ÔNIBUS-BIBLIOTECA

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX90

BIBLIOTECA AFFONSO TAUNAYIMPLANTAÇÃO DA BIBLIOTECA AFFONSO TAUNAY NO COMPLEXO INSTITUCIONAL DA MOOCA

FOTOGRAFIAS DA BIBLIOTECA E DO PÁTIO ONDE ESTACIONAM OS ÔNIBUS

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 91

RUA TAQUARI (ENTRADA DO COMPLEXO)RUA BRESSER (RUA MAIS PRÓXIMA DA BIBLIOTECA)

>MAPEAMENTO DAS PARADAS DO ÔNIBUS-BIBLIOTECA

O MAPEAMENTO FEITO PARA ESSA PESQUISA VISA COMPREENDER A DINÂMICA DO SISTEMA. EM VERMELHO ESTÁ A SEDE NA BIBLIOTECA AFFONSO TAUNAY, EM AMARELO ESTÃO TODAS AS

PARADAS ATUAIS DOS ÔNIBUS.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX92

periferia da cidade. Dessa forma, os ônibus-biblioteca oferecem também ativida-

des como sarau, clown, contadores de histórias, cordelistas e teatro de rua que

utilizam essas praças como palco de suas apresentações. O sistema é bastante

utilizado, principalmente por crianças e jovens durante a época de aulas.

Apesar de simples e com pouca infraestrutura o Sistema de Ônibus-Biblio-

teca se mostra um importante instrumento de combate à carência de bibliotecas

da cidade. Por mais que se trate de uma solução temporária – já que o ideal é que

cada bairro tenha sua própria biblioteca – ele faria bom uso de uma infraestru-

tura melhor elaborada que ampliasse seu potencial. Seria necessário repensar e

relação do acervo fixo com o acervo circulante e o local de trabalho dos funcioná-

rios de sua central. Poderiam também ser desenvolvidos desenhos de estruturas

móveis mais elaboradas que pudessem trazer em si propostas de uso diversas. As

paradas também merecem atenção, pois são os portos dessas naves e poderiam

dialogar melhor com elas, inclusive marcando melhor sua presença no bairro.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 93

O Sistema de Ônibus-Biblioteca guarda um potencial enorme do ponto de vista da

transformação urbana. Se houver um projeto realmente pensado para ele, pode-

se criar um sistema não apenas de empréstimo de livros, mas também de espaços

públicos em rede pela cidade. Ao mesmo tempo, um edifício sede adequado pode

aprimorar seu funcionamento e contribuir com a urbanidade de seu bairro, os

inúmeros pontos de parada podem se tornar pequenas intervenções locais que

levam novos espaços públicos para áreas carentes da cidade.

Aqui serão levantadas algumas hipóteses iniciais de projeto tanto para o

edifício central do sistema como para os portos de parada e suas naves. Em uma

próxima etapa elas serão desenvolvidas a nível de anteprojeto trabalhando o de-

senho e o funcionamento que podem toná-las viáveis.

- O EDIFÍCIO -

No caminho das discussões promovidas nesse trabalho, deve ser elaborado

um edifício que gere urbanidade para seu entorno, contribuindo com os espaços

públicos e se tornando um organizador das atividades do bairro e até mesmo da

cidade. Para isso, a condição atual da central do Sistema de Ônibus-Biblioteca in-

dica uma estratégia. Apesar de estar provisoriamente dividindo espaço com outra

biblioteca, essa situação não deve ser necessariamente um problema, pode ser

uma solução. Caso possuísse um edifício para uso exclusivo do controle de acervo

circulante, talvez estivesse em um lugar sem utilidade para os não funcionários.

HIPÓTESE DE PROJETO

Não existiria interesse por entrar no edifício, que não precisaria ser aberto ao pú-

blico. Contudo, ao possuir parte do prédio destinado ao acervo circulante e parte

ao uso de biblioteca, ele tem o potencial de gerar um importante equipamento

público multifuncional onde todas as atividades se complementam.

Quanto a construção desse novo edifício, temos que levar em consideração

alguns fatores. Se formos seguir a lógica dos CEU e das bibliotecas de Medellín,

ele deveria ser implantado em uma região periférica da cidade, onde existe gran-

de densidade populacional e a carência por espaços públicos e equipamentos de

cultura é muito elevada. Contudo, devemos lembrar que sua localização não pode

dizer respeito apenas a esses elementos, pois dele partem as naves para todas as

regiões da cidade, de sorte que ele deve ter uma posição razoavelmente central

em relação aos destinos delas.

Inicialmente me ocorreu que o edifício deveria se localizar em alguma re-

gião mais central da cidade, até porque São Paulo possui diversas áreas degrada-

das que necessitam de recuperação muito próximas à seu centro, como é o caso

do Brás e do Bom Retiro. Entretanto, após conversar com os funcionários do Ôni-

bus-Biblioteca, descobri que grande parte dos destinos estão localizados a mais de

uma hora de distância da central. Dessa forma, uma outra estratégia seria a cria-

ção de mais de uma administração, preferencialmente uma para cada região da

cidade. Assim, não apenas a cidade ganharia quatro novas bibliotecas fixas como

também tornaria mais eficiente esse sistema, que passaria a ter uma escala menor

de administração e poderia implantar mais paradas. Considerando o tamanho da

cidade de São Paulo e a demanda, essa opção se mostra muito promissora.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX94

EDES DO SISTEMA DE ÔNIBUS-BIBLIOTECA, HIPÓTESEMODELO ATUAL, COM UMA SEDE MAIS CENTRALIZADA NA CIDADE (ESQUERDA) HIPÓTESE DE MODELO, COM SEDES PARA CADA REGIÃO DA CIDADE (DIREITA)

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 95

Para a próxima etapa de trabalho, a pesquisa ganhará um caráter mais prá-

tico e se focará na escolha de um terreno em alguma das quatro regiões da cidade

para ser implantado um edifício sede do sistema de ônibus-biblioteca seguindo a

hipótese levantada. Também será elaborado um programa para o edifício, ava-

liando tanto as necessidades do sistema em geral quanto da própria biblioteca

e da comunidade onde se insere. Dessa forma, poderá se iniciar o processo de

projeto que resultara em um modelo de aplicação dos conteúdos problematizados

ao longo dessa pesquisa.

- AS NAVES E OS PORTOS -

A ideia de uma biblioteca itinerante é algo muito elaborado, sem dúvidas. Quando

foi criada por Mário de Andrade décadas atrás, ela se utilizou da mais nova tecno-

logia para poder existir: o automóvel. Contudo, mais de setenta anos se passaram

e pouco foi alterado em seu funcionamento, ainda se trata apenas de um ônibus

adaptado para comportar estantes de livros. Isso prova que não existe uma ne-

cessidade de aplicar grandes tecnologias da modernidade nesse modelo para que

ele tenha sucesso. Mesmo assim, com um bom projeto pensado para seu funcio-

namento, pode-se criar um sistema muito mais funcional e atraente para o uso.

Isso ajudaria a disseminar a cultura dos livros para as crianças e contribuiria mais

com a formação pessoal dos indivíduos, que é seu objetivo.

Para tanto, dois níveis de modificação podem contribuir com a melhoria do

sistema. O primeiro é nos módulos circulantes. Apesar de funcionais do ponto de

vista do deslocamento, eles deixam a desejar quando estacionados. A única en-

trada para seu acervo é a pequena porta do ônibus, tornando seu espaço interno

apertado e pouco integrado com o exterior. Não há também uma boa infraestru-

tura de apoio, o que torna as atividades realizadas no ônibus bastante manuais.

Por outro lado, é possível que as principais soluções estejam não nas naves,

mas nos portos. São eles as componentes fixas que podem ajudar na construção

de um endereço. Isso é muito importante, pois a atividade de uma biblioteca busca

incentivar um hábito: a leitura. Para que isso ocorra, é necessário que se tenha

essa componente estática. Assim como os monumentos são capazes de se torna-

rem pontos de referência no meio urbano guardando um importante significado,

esses portos podem adquirir funções similares. Se existirem portos estruturados,

projetados e prontos para receberem essas naves, passa a se configurar no bairro

quase a presença de uma biblioteca fixa. Eles indicam que ali existe um acervo,

que aquele é o lugar onde se vai para ler e aprender, por mais que esse acervo só

se torne disponível em determinados dias.

Mais do que isso, se as paradas dos ônibus fossem projetadas para eles, po-

deriam guardar elementos que contribuíssem com o funcionamento da biblioteca

ambulante que não precisassem ser carregados pelas naves. Esses elementos pas-

sariam a ser parte do bairro e poderiam ajudar na requalificação de seus espaços

públicos. Dessa forma tanto a biblioteca poderia propor mais atividades que se

utilizassem desses recursos quanto esses portos poderiam ser muito mais utiliza-

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX96

BIBLIOTECA CIRCULANTE ORIGINAL DE MÁRIO DE ANDRADE

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 97

>ÔNIBUS-BIBLIOTECA POR DENTRO

>PARADA DO ÔNIBUS

FOTO TIRADA EM VISITA MOSTA A SITUAÇÃO DAS PRAÇAS QUE RECEBEM OS ÔNIBUS-BIBLIOTECA. SEM PROJETOS E SEM MANUTENÇÃO, SE TORNA MAIS DIFÍCIL E POUCO ATRAENTE O

USO DESSES ESPAÇOS

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX98

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 99

dos mesmo quando não estiver acoplada a biblioteca. A exemplo disso podemos

citar espaços de leitura, pequenos palcos e arquibancadas que podem receber

apresentações de teatro, áreas cobertas de estar e até mesmo banheiros públicos

e quiosques comerciais.

A princípio, chegou-se a pensar em relacionar as paradas de ônibus aos

CEU, já que ambos acontecem em lugares relativamente próximos, na periferia

da cidade. Dessa forma, seria possível tornar os espaços dos CEU mais abertos

e integrados com a cidade e os portos poderiam receber um espaço projetado

mais dinâmico, dialogando com outras atividades. Foi feito um mapeamento para

entender a proximidade das paradas e desses equipamentos. Ele mostrou certa

proximidade, mas sempre com algum afastamento quando visualisado em escala

menor. Depois da pesquisa, pode-se compreender que não é de interesse do sis-

tema de ônibus-biblioteca essa proximidade, já que os CEU possuem biblioteca

municipais com acervos muito parecidos com o do sistema. Dessa forma, será

necessário pensar como tratar as paradas na situação na qual elas se encontram

atualmente.

<MAPEAMENTO DAS PARADAS DE ÔNIBUS-BLICLIOTECA E DOS CEUO MAPEAMENTO INDICA OS CEU EM VERMELHO E AS PARADAS DE ÔNIBUS EM AMARELO. APESAR DE PRÓXIMAS, NUNCA COINCIDEM REALMENTE

< LEITURA DAS PARADAS DO ÔNIBUS-BIBLIOTECATRÊS PARADAS FORAM SELECIONADAS PARA ANÁLISE RÁPIDA. AS PRAÇAS SÃO USUALMENTE DO TIPO ILHA, SEMPRE RODEADAS POR RUAS (CINZA) OU MUROS (VERMELHO). ISSO JÁ INDICA UM PRIMEIRO DEFEITO DESSE MODELO.

SEGUNDA PARTEPROJETO COMO PESQUISA

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX102

A partir dos estudos de caso realizados na primeira parte desta pesquisa e da pro-

blematização do Sistema de Ônibus-Biblioteca, foram propostos três novos edifí-

cios sede que comporiam essa rede. Com o intuito de multiplicar tanto o número

de bibliotecas públicas em áreas carentes quanto a quantidade de pontos de apoio

do sistema itinerante, esses três novos edifícios devem estar sediados em áreas

que facilitem a distribuição dos módulos móveis. Para tanto, foram determinados

três territórios de implantação das bibliotecas que estão ao mesmo tempo próxi-

mos a áreas carentes da cidade e centrais em relação aos pontos de parada do atu-

al Sistema de Ônibus-Biblioteca, de modo que atendem o maior número possível

de paradas de ônibus em curta distância.

Outro fator que contribuiu para a escolha desses territórios foi a conexão

com o sistema de transporte público de grande escala da cidade, como trens e

metrôs. Dessa forma, as bibliotecas, ao mesmo tempo que possuem um caráter co-

munitário local, podem se integrar à um sistema de rede e se tornarem importan-

tes pontos de atração de atividades culturais de caráter metropolitano, levando

mais atividades para suas regiões e promovendo um ambiente urbano mais ativo.

Com isso, se configura também um sistema de centros culturais integrados, como

é o caso do Sesc, no Brasil, ou dos Parques-Biblioteca de Medellín.

Cada um dos três territórios de implantação está localizado em uma das

regiões da cidade com mais destinos de ônibus biblioteca: sul, leste e norte. Fo-

ram determinados pontos de implantação em escala metropolitana que servem

de referência para a escolha de um terreno disponível próximo, que deve estar

localizado de modo a manter a lógica dessa escala metropolitana.

DISTRIBUIÇÃO DAS SEDES

No modelo atual do Sistema de Ônibus-Biblioteca, com um único ponto

de suporte, o edifício da biblioteca deve atender um raio de 28 kilômetros e 72

pontos de parada, com 12 ônibus partindo diariamente. No modelo proposto, esse

raio cai para 12 kilômetros. Dessa forma, é possível tanto desafogar o sistema re-

duzindo o número de paradas atendidas por biblioteca, quanto multiplicar essas

paradas e atender até 216 localidades. Sendo assim, não apenas mais bibliotecas

públicas são distribuídas em áreas carentes da cidade quanto dezenas de novas

regiões podem receber o acesso facilitado aos livros e à atividades ligadas a eles.

Para demonstrar essa proposta, optou-se por detalhar apenas um dos edi-

fícios de apoio. Através dele, serão estudados conceitos de relação com o entorno

e de funcionamento do edifício para que se torne um local de estruturação de

atividades urbanas e um ponto de atração do bairro. Através da compreensão

do local e do processo de projeto do edifício, será feito um processo investigativo

dos conceitos trabalhados na primeira parte do trabalho. Ao mesmo tempo, serão

estudados, também em forma de projeto, três paradas do sistema móvel da bi-

blioteca para que se compreenda melhor novas formas de relação do edifício com

esses outros pontos da cidade.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 103

SITUAÇÃOMAPA DAS PARADAS DO ÔNIBUS-BIBLIOTECA E RAIO DE ATUAÇÃO DA SEDE

PROPOSTAMAPA DAS PARADAS DO ÔNIBUS-BIBLIOTECA COM RAIOS DE ATUAÇÃO DAS NOVAS SEDES

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX104

Dentre os três territórios propostos, foi escolhido aprofundar o estudo do terri-

tório leste. Ele apresenta diversos fatores que o tornam um espaço de reflexão e

estudo importantes, que inclusive ajudam a compreender melhor o contexto da

região e suas potencialidades. Lá, estão acontecendo importantes intervenções

urbanas ligadas à realização da Copa do Mundo 2014, à Operação Urbana Rio

Verde-Jacu e à implantação de um grande parque linear ao longo do Rio Verde

que levanta inúmeras questões acerca da criação de espaços públicos e da ocupa-

ção urbana de margens de rios e córregos.

A região de Itaquera é formada historicamente pela instalação de bairros

caracterizados literalmente por uma condição domitória. Sendo uma região afas-

tada e diametralmente oposta ao vetor sudoeste de São Paulo – no qual se con-

centram os investimentos públicos e bairros de alta renda – verifica-se na área,

desde a década de 1950, a ocupação por bairros populares. Posteriormente, já na

década de 1980, seria instalado neste território também os primeiros conjuntos

habitacionais da COHAB, que impactariam de uma outra forma na malha que já

vinha se consolidando.

Ainda neste período, em 1988, chega à região a estação hoje denominada

Corinthians Itaquera da linha vermelha do Metro. Isto demonstra mais uma vez

a lógica de atuação urbana do Estado Patrimonialista1 que, consolidando a margi-

nalização das populações e bairros da Zona Leste, nunca proveu grandes investi-

mentos estruturais que favorecessem a constituição de uma cidade democrática,

1 | Termo utilizado pelo urbanista João Sette Whitaker para descrever o modelo de Estado que favorece aqueles que detêm o patrimônio financeiro.

policêntrica e dotada de um grau mínimo de urbanidade. Ao contrário disso, os

investimentos foram sempre na lógica radial de proporcionar a conexão da Zona

Leste ao centro, que concorda com o processo de urbanização com baixos salários,

consolidando a condição dos bairros domitórios de população operária que, justa-

mente pela situação de renda, não possuem acesso à outras localidades.

Considerando essas condições de urbanização de Itaquera, observa-se a

constituição de uma série de problemas socioterritoriais, dentre eles a situação de

mobilidade e acessibilidade. Trata-se de uma região extremamente fragmentada,

tanto pelo modelo de ocupação do solo adotado na implantação dos inúmeros

conjuntos habitacionais quanto pela presença das grandes estruturas e glebas in-

transponíveis. Somado a isso, a forma de manipulação do relevo gerou grandes

taludes e muros de arrimo que, mesmo quando não estão cercados ou murados,

se tornam obstáculos à fruição urbana.

Em meio a isso, a Operação Urbana e a Copa do Mundo vieram como ins-

trumentos de alteração do território com potenciais de compensar esses equívo-

cos passados e transformar a região para conferir maior urbanidade através da

instalação de atividades, empregos e de desenho urbano adequado. Apesar disso,

além de não realizarem com êxito essa transformação, podemos até mesmo con-

siderar que em alguns aspectos ela se deu de forma ainda mais prejudicial.

Como parte do Polo Institucional proposto pela Operação Urbana Rio Ver-

de-Jacu, o Estádio de Itaquera foi construído junto com algumas intervenções

urbanas pontuais. Todas as construções seguiram um modelo de ocupação do solo

pautado pelas conexões automobilísticas sem considerar o pedestre como agen-

ESCOLHA DO TERRENO

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 105

LOCALIZAÇÃO DO TERRENOÁREA EM ITAQUERA

LEITURA DA ÁREATALUDES E GRANDES GLEBAS ENCONTRADAS NA REGIÃO DE ITAQUERA DIFICULTAM A MOBILIDADE EM ESCALA LOCAL.

LEITURA DA ÁREAAVENIDAS SE TORNAM BARREIRAS NA MALHA URBANA E CONJUNTOS HABITACIONAIS GERAM GRANDES TERRENOS CERCADOS QUE DIFICULTAM A MOBILIDADE EM ESCALA LOCAL.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX106

te urbano. Foram construídos viadutos, ruas e avenidas de difícil travessia com

proporções exageradas para o pedestre. O estádio se implantou na região criando

grandes muros de arrimo e taludes deixando em segundo plano os percursos pe-

atonais. O entorno do estádio continua inabitado por outras atividades, de sorte

que qualquer percurso até ele não se dá de forma natural, conectada ao tecido

urbano. E mesmo o tipo de atividade trazida pela implantação desse equipamento

já foi apontada por alguns urbanistas como menos potencialmente qualificadora

da região do que o próprio Shopping Itaquera, que gerou empregos, comércio e

lazer para o bairro – mesmo que com uma implantação urbana tão questionável

quanto a do estádio.

Outro projeto proposto na Operação Urbana que já foi parcialmente implan-

tado é o Parque Linear do Rio Verde. Com o propósito de liberar as margens do rio

de construções e prevenir enchentes, o projeto propõe um extenso parque que vai

da região do Estádio de Itaquera até o Parque do Carmo e tem uma largura de mais

de cem metros. Contudo, com a maior parte das margens do rio já ocupadas por

construções, só foi possível implementar um pequeno trecho do projeto. Mesmo

assim, foi necessário remover moradores da área para viabilizar sua construção.

Era demanda da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente2 que o projeto

2 | A Lei Federal no12.651/12 define APP como: “II - Área de Preservação Permanente - APP: Área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. (artigo 3°, II) que é definida como “I - as faixas marginais de qualquer curso d’água natural, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: a) 30 (trinta) metros, para

do parque não se pudesse ter nenhum tipo de construção numa margem de 30

metros do rio e que uma margem de 15 metros fosse reservada exclusivamente

para o reflorestamento de vegetação nativa. Sendo assim, cria-se uma faixa de

mais de 60 metros de largura por toda a extensão do parque onde não podem

haver quaisquer tipo de construção, nem mesmo quadras esportivas, marquises,

banheiros públicos ou outros equipamentos de promoção de atividade pública. É

um modelo de tratamento do rio urbano que persiste na ideia de exclui-lo da vida

da cidade como forma de preservá-lo. Isso gera um extenso e largo trecho que

corta a cidade, mas onde atividades urbanas não podem acontecer.

Dessa forma, o único trecho do parque que já foi implementado apresenta

apenas um pequeno campo de futebol de terra batida, uma pequena marquise,

um espaço para esqueitistas, uma ponte de pedestres, um gramado generoso e

uma área arborizada. Não é possível chegar até o rio, pois ele é cercado para pro-

teger as árvores do reflorestamento. Além disso, nem tudo que foi projetado pelos

arquitetos foi realmente implementado, deixando de fora canteiros de plantas

olfativas e um espaço pensado para receber crianças de escolas para atividades

pedagógicas à céu aberto – programa demandado pelas próprias escolas da região.

Vinculada à todas essas questões se encontra a Favela da Paz. Localizada

entre o Rio Verde e o viaduto que leva os trens do metro da linha férrea ao esta-

cionamento, ela configura uma ocupação irregular e precária. Contudo, mais de

os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura (...); IV - as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água, qualquer que seja a sua situação topográfica, no raio mínimo de 50 (cinquenta) metros”. (artigo 4°, I e IV )

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 107

OPERAÇÃO URBANA RIO VERDE-JACUIMAGEM RETIRADA DE APRESENTAÇÃO DE SETEMBRO DE 2012 DA SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO URBANO. PERCEBE-SE UM PROPOSTA DE OCUPAÇÃO MUITO GENERALIZADA PAUTADA POR GRANDES EDIFÍCIOS SEM A PRESENÇA DE MORADIAS. O PARQUE LINEAR PODE SER VISTO À DIREITA AO LONGO DO RIO VERDE.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX108

300 famílias já habitam fixamente a área, tendo sido configurada uma comunida-

de que desenvolveu comércio e serviços próprios. Atualmente, ela sofre ameaça

de remoção vinculada à implementação da Operação Urbana com a justificativa

de estar ocupando uma área destinada à instalação de um trecho do parque li-

near. Com o apoio de acessórias técnicas, a comunidade do assentamento orga-

nizou um plano alternativo no qual prova que existe espaço para a implantação

do parque e para a manutenção das pessoas na mesma quadra – que é composta

majoritariamente por terrenos vazios ou subutilizados.

Desta forma, após um longo processo investigativo de territórios de atu-

ação, foi escolhido trabalhar em um terreno vinculado ao processo do Plano Al-

ternativo da Favela da Paz. Essa área se mostrou muito oportuna para o estudo

de implantação de um novo equipamento público. Ao mesmo tempo em que cor-

responde à uma região que já está sofrendo um processo de transformação, essa

área permite um estudo de como o edifício pode se relacionar tanto com outros

edifícios, quanto com estruturas como rios, viadutos e parques. É um terreno que

sintetiza muitas das questões que se colocam na cidade em termos de dificuldade

de incorporar estruturas pré-existentes à intervenções que visam trazer melho-

rias urbanas. Além disso, é uma área que já foi estudada antes, de sorte que apre-

senta uma base de trabalho rica.

>PARQUE LINEAR DO RIO VERDE

IMAGENS DE APRESENTAÇÃO DO PROJETO PARA O PARQUE DO RIO VERDE E FOTOGRAFIAS DO QUE FOI IMPLEMENTADO.

ACERVO DO ARQUITETO FÁBIO MARIZ.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 109

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX110

A busca por um terreno para a implantação do edifício da biblioteca foi verda-

deiramente complexa e reveladora. Segundo a discussão proposta pela pesquisa,

o objetivo inicial era compreender como o desenho do edifício de equipamento

público pode promover uma boa relação com o ambiente urbano e, por conse-

quência, proporcionar um ambiente urbanisticamente bem resolvido. Contudo,

durante o processo de levantamento de terrenos que poderiam servir de base

para esse estudo, inúmeros outros fatores foram sendo revelados e novas proble-

máticas surgiram.

Do modo como a pesquisa se encaminhou, o terreno de implantação do

edifício deveria se localizar na periferia da cidade, próximo aos destinos finais

do ônibus-biblioteca e atendendo a uma carência dessa região tanto por equi-

pamentos públicos quanto por arquitetura de qualidade. Muitas opções foram

levantadas, e diversos tecidos urbanos da periferia foram considerados. Dentre

eles, destacaram-se assentamentos precários, grandes vazios urbanos, bairros

residenciais autoconstruídos e tecidos completamente formados por conjuntos

habitacionais de interesse social.

Nesses tipos de tecido é difícil afirmar que um edifício consiga, sozinho,

trazer uma alteração da dinâmica urbana. A periferia paulista é muito fragmen-

tada e apresenta tecidos muito pouco consolidados. Diferente de áreas centrais

de grande parte das cidades, onde existe certo grau de coesão urbana, a periferia

de São Paulo apresenta níveis muito diversos de fragilidade urbanística. Essa ca-

racterística não está em fatores pontuais, mas sim no conjunto de sua lógica ur-

bana. Nas avenidas principais, onde deveria existir maior número de atividades

e de interesse pela cidade, é onde menos se encontra espaço para interações no

nível do pedestre. São áreas pensadas exclusivamente para o automóvel que, por

causa disso, tem em suas margens grandes vazios urbanos, galpões (muitas ve-

zes abandonados) ou edifícios monofuncionais de maior porte que não visam se

relacionar com o arredor – como hipermercados e grandes lojas. Isso torna essas

importantes artérias de conexão fortes barreiras urbanas.

O ambiente residencial autoconstruído é o predominante. Ele é configura-

do basicamente por casas em modelos muito similares construídas em uma lógica

urbana de loteamento. A ausência de desenho urbano e a presença maciça de mu-

ros e grades como elemento de interface entre espaço público e privado faz com

que seja gerado um ambiente onde o desenho da rua enquanto espaço livre passa

a ser resíduo da solução interna dos lotes. Nada se conecta com o passeio público

se não portas de garagens. Os moradores acabam por modificar esses passeios

de modo negativo ao adapta-lo para uso próprio, criando desníveis sequenciais

para facilitar o acesso do automóvel à garagem. A monofuncionalidade das ruas,

vinculada a condição dessas calçadas irregulares, estreitas e ocupadas por postes

e árvores promove a não fruição do espaço público e constrói uma urbanidade

deficiente, constantemente interrompida por terrenos vazios de grande porte.

Em meio a essa situação, pousam grandes conjuntos habitacionais. Desvin-

culados de qualquer relação com o tecido existente, esses conjuntos apresentam

tipologias repetidas que se isolam do contato com a rua, criando uma interface de

muros ainda pior do que o das casas autoconstruídas e reforçando a monofun-

cionalidade dos bairros e a necessidade de deslocamentos através de veículos. São

ENTENDENDO O CONTEXTO URBANO DA PERIFERIA

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 111

AVENIDAS PRINCIPAISIMAGENS DA AVENIDA ARICANDUVA NA ZONA LESTE DE SÃO PAULO MOSTRAM A LOGICA DE OCUPAÇÃO DOS EIXOS DE MOBILIDADE NA PERIFERIA PAULISTA, ONDE NÃO EXISTE VIDA NA ESCALA DO PEDESTRE.

AMBIENTE RESIDENCIAL AUTOCONTRUÍDOIMAGENS DA VILA RIO BRANCO NA ZONA LESTE DE SÃO PAULO MOSTRAM A FORMA TÍPICA DA PERIFERIA PAULISTA FORMADA POR CASAS.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX112

ambientes onde a escala do pedestre não está pensada em nível urbano, pois as

quadras são muito extensas e os edifícios isolados em condomínios.

Por fim, os assentamentos precários parecem ser os mais bem sucedidos

nesse meio. Apesar da fragilidade das construções e das péssimas condições de

habitabilidade de muitas das casas, o microambiente urbano dessas áreas é mais

coeso e interessante que o resto. Coeso porque apresenta uma relação das cons-

truções com os espaços livres muito mais forte, uma mistura de usos muito rica e

um sentimento de comunidade muito mais intenso. Interessante porque os espa-

ços livres se desenham à partir das edificações e ganham múltiplas formas, como

vielas de pedestres, pequenos largos e até mesmo praças, todos conectados a usos

diversos. Contudo, a ocupação do solo nessas áreas é muito alta e as precariedade

das construções é um problema crônico.

Dessa forma, em qualquer que seja o terreno de implantação de um equi-

pamento público na periferia, o desafio de criar urbanidade se mostra muito mais

complexo do que o de desenhar o edifício. O ambiente do assentamento precário

provavelmente é onde um equipamento público mais poderia se integrar à urba-

nidade existente. De todo modo, a falta de espaço livre nessa área impossibilita

que isso aconteça sem a necessidade de remoção de parte das construções. Já nos

outros ambientes, onde há terrenos vagos para implantação de edifícios, a manu-

tenção de seus parâmetros urbanos pode fazer com que o equipamento público

seja implantado de forma muito desconexa, e se torne mais um grande edifício

isolado da dinâmica urbana – principalmente no nível do pedestre.

Com isso em vista, é possível observar que grande parte dos edifícios de

equipamento público da periferia paulista não obtiveram sucesso em criar ur-

banidade para a cidade, pois estão inseridos na mesma lógica não urbana dessa

região. Ao implantar edifícios que teoricamente possuem potencial de transfor-

mação urbana sem alterar essa lógica de funcionamento da cidade suburbana,

eles aterrissam como naves e essa força se dissolve. É importante destacar que

grande parte dos edifícios possui um desenho padronizado que é repetido em

vários pontos da cidade com poucas alterações e isso torna sua implantação

ainda mais distante de uma capacidade de diálogo efetivo com o território e,

portanto, de alteração do mesmo. A arquitetura desses equipamentos muitas

vezes acaba nem se propondo a alterar a lógica de isolamento do edifício no ter-

reno, o que, aliado à gestão, resulta em prédios cercados por muros resolvidos

dentro de seu lote.

Por outro lado, não é possível saber se a alteração do desenho desses edi-

fícios, visando uma interação mais intensa com o espaço público e propondo um

desenho do espaço livre teria sucesso sem a alteração geral de parâmetros urba-

nos que predominam na periferia. Parece pouco provável que edifícios bem dese-

nhados em meio a um ambiente tão fragmentado possam trazer coesão urbana

para o território, até mesmo porque parte do que qualifica o desenho arquitetôni-

co é sua relação com o território.

Ao observarmos os edifícios que mais contribuem com a urbanidade da

cidade em outras áreas de São Paulo, podemos levantar alguns parâmetros de

comparação com a periferia. No caso do Conjunto Nacional, por exemplo, vemos

um edifício que possui um embasamento que ativa fortemente a rua. Acompa-

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 113

ASSENTAMENTOS PRECÁRIOSA IMAGEM DE CIMA MOSTRA A FAVELA DE PARAISÓPOLIS EM SÃO PAULO, ENQUANTO A DE BAIXO MOSTRA O CENTRO DE MADRID. ESSA COMPARAÇÃO FOI FEITA PARA MOSTRAR COMO EM AMBAS AS SITUAÇÕES O ESPAÇO PÚBLICO É COMFORMADO PELOS EDIFÍCIOS.

CONJUNTOS HABITACIONAISAS IMAGENS DE CIDADE TIRADENTES, NA ZONA LESTE DE SÃO PAULO, MOSTRAM COMO O AMBIENTE CONSTITUÍDO INTEIRAMENTE POR CONJUNTOS HABITACIONAIS GERA UMA PAISAGEM MONÓTONA E FRAGMENTADA, COM UM ESAÇO PÚBLICO INDEFINIDO.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX114

nhando o passeio público em todos os lados da quadra, proporcionando novos

percursos e um interesse por adentrar o edifício, o projeto cria um foco muito

importante de atividades no espaço público. Além disso, detalhes como uma mar-

quise que protege o pedestre das intempéries e um desenho de piso que continua

da calçada para o interior do edifício ajudam a construir um ambiente qualificado

que atrai usuários.

Entretanto, não é possível dizer que o desenho do Conjunto Nacional te-

ria a mesma força se o edifício não estivesse localizado na Avenida Paulista, em

uma das esquinas de maior atividade da cidade. Ao mesmo tempo em que ajuda a

construir esse ambiente urbano ímpar em São Paulo, ele se beneficia fortemente

dele. Não existiria interesse em cruzar a quadra pelo interior do edifício se a qua-

dra oposta não oferecesse diversos outros atrativos (habitação, comércio, servi-

ços, etc). Também não seria tão significativo o fato de a marquise criar uma prote-

ção na calçada, se na Avenida Paulista não passassem pessoas à pé naturalmente.

A periferia apresenta um ambiente verdadeiramente diferente. A dinâmi-

ca urbana dessas regiões não funciona da mesma forma que nas áreas centrais,

em parte pela carência de edifícios que busquem se relacionar com o espaço pú-

blico, em parte por uma conjuntura urbana mais complexa que envolve questões

históricas de formação socioespacial.

As figuras ao lado ajudam a evidenciar a configuração urbana da região

que será trabalhada. Nelas, pode ser visto todo o entorno da estação Corinthians

Itaquera da linha vermelha do metrô. Trata-se da área destinada a um futuro

polo institucional segundo a Operação Urbana Rio Verde-Jacu. Atualmente, já foi

implementado uma nova arena de futebol na área, bem como o já existente sho-

pping Itaquera, um Poupa Tempo projetado por Paulo Mendes da Rocha e uma

Fatec. Com o mapa de negativo dos espaços livres é possível compreender os pro-

blemas da distribuição espacial de território. É visível o enorme rasgo na costura

urbana da região no entorno direto da estação de metrô – uma área de mais de

1500 metros de uma ponta a outra. Nessa área não existem construções que não

as já apontadas e o espaço livre é completamente indefinido, sendo composto por

ruas, rotatórias e grandes áreas cercadas de posse privada e do Estado.

A ausência de edifícios habitacionais na região é um dos elementos de

maior fragmentação do espaço. Sem pessoas morando na região, não existe ativi-

dade naturalmente nessa imensa área. Ao mesmo tempo, não existem percursos

típicos de uma cidade a serem feitos. Nenhum transeunte encontra em seu per-

curso comércios, praças, pessoas varrendo a calçada ou passeando seu cachorro.

Isso pode parecer supérfluo, mas é o que torna um aglomerado de construções

uma cidade. Sem essas atividades o espaço se torna hostil até mesmo perigoso.

Não existe respeito ao pedestre, já que se instaura um modelo de deslocamento

pensado exclusivamente para o automóvel e os crimes ganham a liberdade de

não estarem sendo vistos por terceiros. Para Jane Jacobs, a questão da plurifun-

cionalidade dos bairros é essencial para garantir uma boa cidade:

“... O distrito, e sem dúvida o maior número de segmentos que o compõe,

deve atender a mais de uma função principal; de preferência, a mais de

duas. Estas devem garantir a presença de pessoas que saiam de casa em

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 115

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COMFIGURAÇÃO ESPACIAL DE ITAQUERAAO COMPARARMOS A FOTOGRAFIA DE SATÉLITE DE ITAQUERA COM A IMAGEM DE FIGURA-FUNDO DOS EDIFÍCIOS, PERCEBEMOS COMO O ESPAÇO LIVRE É INDEFINIDO E DESFRAGMENTADO E FICA EVIDENTE O GRANDE VAZIO URBANO DESSA REGIÃO.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX116

horários diferentes e estejam nos lugares por motivos diferentes, mas se-

jam capazes de utilizar boa parte da infraestrutura” 3

Contudo, essa monofuncionalidade não se encontra apenas nesse grande

vazio urbano. Logo à oeste podemos identificar outro grande trecho urbano que

se conforma por uma imensa quantidade de conjuntos habitacionais destinados

à famílias de baixa renda. Ao mesmo tempo em que as atividades não residen-

ciais são muito pontuais nessa área – conformadas em sua maioria escolas, postos

policiais e outros equipamentos públicos básicos – os espaços públicos da região

claramente não está configurada através de desenho urbano. Todos os edifícios

estão implantados no modelo de lote onde se resolvem dentro de suas grades e

muros. O espaço público é resultado de um processo de parcelamento do solo e

se torna indefinido e hostil. Os edifícios são implantados como se não houvesse

entorno, de sorte que sua forma independe de sua localização. Ele se torna um

carimbo, não uma construção urbana.

O restante da região é configurado basicamente por casas autoconstruí-

das dentro de seus lotes. Configuram o espaço público melhor do que a situação

anterior, pois sua proximidade e afastamento do leito carroçável razoavelmente

semelhante (por consequência de uma aproveitamento melhor do terreno pelo

morador e não por demanda do poder público) conseguem definir os quarteirões e

desenhar melhor a rua. Mesmo assim, ainda são construídos no sentido de buscar

3 | JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. 1ª edição. São Paulo: Martins Fontes,

2007.

se afastar da vida coletiva e criam uma interface agressiva com o espaço público,

configurada por portões e grades. A monofuncionalidade também impera nesses

bairros, muitas vezes por conta das próprias leis que criam os zoneamentos ex-

clusivamente residenciais. Atividades comerciais surgem num modelo informal,

nas próprias casas. É a cidade que tenta acontecer da forma que naturalmente

existe desde a Idade Média.

Finalmente, o que vemos é um espaço público esquecido, tratado em ter-

ceiro plano. Uma incapacidade de unir equipamentos públicos e infraestrutura

ao planejamento dos espaços livres públicos, de sorte que cada um é feito sepa-

radamente, como se assim pudesse ser. Vemos esquecido um conceito essencial

à vida humana sobre o qual a filósofa Hannah Arendt se debruçou em grande

parte de sua carreira. Ela define o homem dentro de três grupos de atividades que

ele realiza por natureza. Aquele que chama de “ação” só pode ocorrer no espaço

público, espaço de aparência, onde o homem aparece diante do coletivo e com ele

pode se relacionar. Pois no isolamento, as ações do ser humano nada significam,

é em público que elas passam a existir. E este espaço deveria ser projetado e as-

segurado em uma estrutura que garantisse que todas as ações subsequentes do

homem pudessem acontecer.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 117

O DESENHO DA CIDADE POR LÉON KRIERDESENHOS RETIRADOS DO LIVRO DRAWING FOR ARCHITECTURE DO URBANISTA EUROPEU LÉON KRIER. ATRAVÉS DE ESBOÇOS ELE CRITICA A FORMA URBANA DA PERIFERIA NA QUAL OS ESPAÇOS LIVRES NÃO SÃO CONFIGURADOS PELOS EDIFÍCIO, FICANDO DESTINADOS AO QUE SOBRA DO DESENHO DELES. TAMBÉM IRONIZA A MONOFUNCIONALIDADE DO SUBÚRBIO, DEMONSTRANDO SUA ETERNA DEPENDÊNCIA DO CENTRO E PROPONDO OUTRO MODELO DE CRESCIMENTO URBANO.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX118

O terreno escolhido inicialmente para a implantação do edifício da biblioteca foi

resultado de uma leitura do Plano Alternativo da Comunidade da Paz. Ele porpõe

a remoção parcial das famílias do assentamento precário para que sejam realoca-

das em edifícios nos terrenos vizinhos, que não servem a qualquer função social

do solo atualmente. Dessa forma, se libera um trecho da margem do Rio Verde

para que seja incorporado ao parque linear e um trecho ao longo do viaduto do

metro para que seja aberta uma rua. Sendo assim, restaria ainda um generoso

terreno vazio onde nada está proposto. Dessa forma, imaginou-se que essa gleba

pudesse se tornar a biblioteca, que poderia então fazer o elo de ligação de dife-

rentes espaços públicos – o parque, o rio e a avenida – e atividades urbanas que

acontecem na favela e nos novos edifícios.

Contudo, após diferentes tentativas de transformar essa proposta em pro-

jeto, ficou claro que não seria essa a solução. Optar por trabalhar na lógica onde a

favela permanece de modo parcial e não se sabe a configuração urbana do arre-

dor tornaria a biblioteca mais um edifício pensado numa lógica de isolamento da

cidade. Por mais que se propusesse um edifício conectado à rua e que trabalhasse

o controle de entrada para permitir uma melhor interface com o espaço público,

não seria possível configurar uma situação urbana completa sem considerar o

entorno construído. A gleba a ser trabalhada possuía dimensões muito grandes e

não seria possível utilizar seu espaço livre para configurar espaços públicos sem

saber como eles se relacionariam com o entorno imediato. O projeto do edifício

não basta para isso, é necessário que parta de um projeto urbano definido ante-

rior ou concomitantemente.

ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO

Assim, ficou estabelecido que seria trabalhada toda a quadra da gleba en-

quanto unidade territorial urbana. Como ela é inteiramente configurada por

grandes terrenos vazios – além do assentamento precário – e já existe uma pro-

posta de alteração do modelo de ocupação tanto por parte do Plano Alternativo

da Comunidade da Paz quanto pela Operação Urbana Rio Verde-Jacu, foi consi-

derado que alterar seus parâmetros urbanos não seria irreal. A escolha da quadra

enquanto unidade territorial permite pensar um trecho de cidade relevante o

suficiente para configurar seus próprios espaços e indicar possíveis configurações

urbanas mais gerais. Ao mesmo tempo, isso não significa projetar todos os edifí-

cios da quadra, mas sim os espaços livres públicos. Trata-se de colocar o projeto

urbano acima do projeto arquitetônico, o espaço público acima do privado. Desse

modo, não se visa definir a forma dos edifícios, mas sim o tipo de relação que pos-

suem entre si e com a cidade, bem como as funções que oferecem à ela.

Essa estratégia permite que se defina um modelo de ocupação para essa

unidade territorial que pode se dar tanto através da intervenção estatal quanto

do processo natural de construção da cidade. O terreno ainda pode ser comer-

cializado e construído por investidores privados, desde que seguindo o desenho

urbano pré-estabelecido. O único projeto de edifício que cabe se definir nesses

parâmetros é o da própria biblioteca. Entretanto, com essa nova configuração ur-

bana se torna possível propor soluções físicas ao edifício que se relacionem com

o seu entorno e possam configurar os espaços livres públicos e sua hierarquia.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 119

ÁREA DE INTERVENÇÃOAS FOTOGRAFIAS DE SATÉLITE DA ÁREA DE 2000 E 2014 PERMITEM VER O CRECIMENTO PARA DA FAVELA DA PAZ E A IMPLANTAÇÃO DO PRIMEIRO TRECHO DO PARQUE LINEAR AO NORTE.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX120

PLANO ALTERNATIVO DA COMUNIDADE DA PAZAS IMAGENS CRIADAS PELA ACESSORIA TÉCNICA PEABIRU

MOSTRAM DE FORMA GERAL A PROPOSTA DE MANUTENÇÃO DAS FAMÍLIAS DA FAVELA DA PAZ NA MESMA GLEBA,

LIBERANDO ESPAÇO AO LONGO DO RIO E DO VIADUTO DO METRÔ.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 121

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX122

“[...] Aqui a tela de fundo é a metrópole da informação que está explo-

dindo, um sistema de redes visíveis e invisíveis que está pondo por terra

velhas definições de campo e cidade, e que está exigindo uma nova escala

de pensamento que se localize em algum lugar entre arquitetura, urbanis-

mo, paisagismo e planejamento territorial.” 4

Um longo processo de projeto levou ao desenho final do que seria a configuração

urbana da quadra. Alguns princípios básicos serviram de plataforma para o início

do desenho. Primeiramente, a quadra, que tem mais de 300 metros de compri-

mento, deveria ser mais permeável e possibilitar novos fluxos e possibilidades de

encontro. Em segundo lugar, os edifícios deveriam desenhar os espaços públicos,

de sorte que seriam definidos primeiros estes espaços e as construções surgiriam

de seu negativo. Por fim, era pressuposto que diversas atividades se acomodas-

sem nos edifícios.

Deve haver habitações suficientes para que no mínimo se mantenha a po-

pulação local, mas é desejável que se aumente em número as unidades para que

se alcance uma densidade urbana capaz de gerar mais atividade na rua. Isso de-

penderá tanto do destino que se der para cada edifício quando do projeto dele, que

será mais ou menos eficiente em balancear as dimensões das moradias e número

de apartamentos. Também é necessário que se crie atividades mescladas nestes

edifícios, como comércio e serviços, que devem estar de preferência no térreo.

4 | CURTIS, William J. R. Arquitetura moderna desde 1900. 3ª edição. Porto Alegre: Bookman, 2008

A QUADRA ENQUANTO UNIDADE TERRITORIAL

Mas a forma como isso se dá também cabe ao projeto individual de cada situação.

Desse modo, o volume sugerido no projeto urbano não corresponde a forma final

dos edifícios, somente ao seu alinhamento com a rua. Cada solução arquitetônica

possibilitará um desenho diferente para cada edifício, que corresponderá tam-

bém às soluções internas de organização do espaço privado. Alguns edifícios te-

rão apenas cinco andares, para que possam servir à habitação de interesse social

sem a necessidade de elevadores. Outros poderão ser mais altos, mesclando dife-

rentes públicos e usos, desde que evitem um sombreamento exagerado de seus

vizinhos. É desejável que edifícios mais altos se concentrem próximos à espaços

livres maiores como avenidas ou largos.

Sendo assim, o alinhamento do edifício com o espaço público se torna tal-

vez o mais importante fator de definição deste. É esse alinhamento que permite

também que se crie uma hierarquização dos espaços. Nas avenidas mais movi-

mentadas foi definido um alinhamento a 10 metros do leito carroçável, deixando

um largo passeio público que possa comportar o fluxo de pessoas e de atividades.

Nos eixos menores esse alinhamento se altera, a as dimensões do passeio se ade-

quam ao caráter do espaço. Dessa forma também é possível definir mais clara-

mente as clareiras urbanas: as praças. Quando conformadas pelo edifício elas são

mais facilmente interpretáveis e seu espaço ganha forma. As atividades dos edi-

fícios podem se misturar às da praça e o espaço público e o privado passam a tra-

balhar numa relação de mutualismo onde um se beneficia do outro e vice-versa.

Apesar de ter um formato razoavelmente regular, a quadra é cortada pelo

rio e pelo viaduto, o que torna mais difícil uma organização reticular dos edifícios.

>LEITURA DO ENTORNO

LEITURA DO ENTORNO FEITA PARA O PLANO ALTERNATIVO DA COMUNIDADE DA PAZ. EXISTEM DIVERSOS EQUIPAMENTOS

PÚBLICOSSÃO LOCALIZADOS, A MAIORIA DELES DE NECESSIDADE BÁSICA, POUCOS ESTÃO A MENOS DE 1KM DO

TERRENO E NÃO HÁ EQUIPAMENTOS DE CULTURA NA REGIÃO.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 123

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX124

LEITURA DOS ESPAÇOS LIVRESA COMPARAÇÃO ENTRE AS DUAS IMAGENS PERMITE OBSERVAR COMO OS ESPAÇOS LIVRES SÃO INDEFINIDOS NO ESTORNO DO TERRENO DE ESTUDO. SEM A PRESENÇA DAS RUAS NÃO É POSSÍVEL IDENTIFICAR A FORMA DAS QUADRAS NEM OS ESPAÇOS PÚBLICOS.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 125

MOBILIDADEO MAPA INDICA OS PONTOS DE ÔNIBUS E AS RUAS. AS FOTOS INDICAM O CARÁTER DAS AVENIDAS LINDEIRAS AO TERRENO.AO MESMO TEMPO EM QUE EXISTEM POUCAS RUAS, ELAS SÃO LADEADAS POR GRANDES MUROS, CERCAS E TALUDES.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX126

Esses elementos quebram a ortogonalidade da quadra e criam a necessidade de

certo afastamento de construções em relação à eles. Para evitar que se que se

gerem edifícios muito isolados da trama urbana entre essas duas estruturas e

também para que esse espaço não se torne um grande vazio que perde a defini-

ção, foi decidido que a biblioteca seria implantada entre o viaduto e o rio. Dessa

forma, o desenho mais orgânico do equipamento público poderia se acomodar à

topografia e ao terreno e suas atividades públicas poderiam servir de elo entre

essas infraestruturas e as atividades urbanas.

Ao mesmo tempo, para que fosse possível viabilizar esse desenho, se tornou

necessário definir o traçado as margens do rio. Diferente do que se propõe na le-

gislação atual, foi decidido que as margens poderiam ter ocupações, desde que res-

peitassem conceitos de permeabilidade do solo e criação de espaço público ao longo

das margens, mantendo a ideia de parque linear. Para incorporar o rio à dinâmica

urbana, ele não pode ficar isolado das atividades da cidade. É necessário, então, im-

plementar passeios pavimentados, travessias e até mesmo edifícios próximos à ele.

Caso contrário, esse curso d’água corre o risco de se tornar mais uma barreira na já

truncada malha urbana da cidade. Assim como se faz em cidades como Amsterdã,

Paris, Seul e muitas outras, os rios urbanos devem fazer parte do espaço público

e trabalhar como compositores da vida urbana. É importante ter em mente que

tornar as margens dos rios permeáveis não é apenas deixa-las livres de construção,

mas também investir na captação de águas pluviais em um sistema secundário, exi-

gir que os edifícios tenham captação e armazenamento de águas e trabalhar com

canteiros e pavimentação que permitam a infiltração da água no solo.

Como a biblioteca foi projetada em junto com esse espaço, se tornou possí-

vel vincular o desenho do edifício, o paisagismo e o desenho urbano. Essa com-

binação trouxe soluções mais ricas tanto para o edifício quanto para a configura-

ção do espaço público. Sendo feitos separadamente ainda seria possível elaborar

meios da margem do rio ganhar forma e do edifício desenhar o espaço público,

mas com a oportunidade de se projetar tudo de uma vez, foi possível enriquecer

esse processo. O mesmo aconteceu com o viaduto. Por ser muito elevado, ele não

configura um espaço opressivo no seu baixio, contudo, exige certo afastamento

para que não se torne uma estrutura agressiva. O projeto da biblioteca conseguiu

permitir que o desenho urbano definisse uma massa edificada distante do viaduto

e configurasse uma nova praça conectada à malha urbana.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 127

RIOS URBANOS EM OUTRAS CIDADESCANAL EM AMSTERDÃ E RIO SENA EM PARIS RIO CHEONGGYECHEON EM SEOUL

TRATAMENTO DOS RIOS EM SÃO PAULORIO VERDE, ÁREA DE PROTEÇÃO PERMANENTE

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX128

PROCESSO DE PROJETOALGUNS DOS ESBOÇOS FEITOS PARA O DESENHO URBANO DA QUADRA.

SITUAÇÃO ATUALIMAGEM PARA COMPARAÇÃO.

>DESENHO GERAL RESULTANTE DA QUADRA

PLANO DE MASSAS RESULTANTE DO DESENHO URBANO.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 129

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX130

A BIBLIOTECA

TERRENO DE ESTUDOSITUAÇÃO E PROPOSTA

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 131

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX132

>PLANA NÍVEL SUPERIOR

BIBLIOTECA, ÁREA INFANTIL, AUDITÓRIO, SALAS DE ATIVIDADES, SALA DE INFORMÁTICA, CAFÉ-LIVRARIA E

CENTRO DE REFERÊNCIA URBANA.

PLANA NÍVEL CAISENTREDA PRINCIPAL, BANHEIROS, DEPÓSITO DE LIVROS, ADMINISTRAÇÃO E ÁREA DE CARGA E DESCARGA.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 133

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX134

CORTE LONGITUDINAL DO EDIFÍCIOO SALÃO MULTIUSO CONECTA DOS EDIFÍCIOS POR BAIXO E A PRAÇA OS CONECTA POR CIMA.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 135

CORTE DO RIO VERDEÉ POSSÍVEL VER A RELAÇÃO DO CAIS COM A ENTRADA DO EDIFÍCIO E A SUCESSÃO DE PRAÇAS ESCALONADAS

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX136

<ESPACO CULTURALVISTA AÉREA DO EDIFÍCIO SEM COBERTURA

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 137

>BIBLIOTECA

VISTA AÉREA DO EDIFÍCIO SEM COBERTURA

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX138

O programa proposto tem por objetivo tornar a biblioteca mais do que apenas

um edifício de armazenamento e disponibilização de livros. Ele visa torna-la

um complexo de atividades culturais maior capaz de gerar um espaço de con-

gregação comunitária e de oferecimento de serviços. Ao mesmo tempo, ele é o

primeiro passo para tornar o edifício mais conectado ao cotidiano do bairro e

mais diverso em atividades para que possa se tornar mais atrativo e, portanto,

mais relevante na dinâmica urbana. Mais uma vez surge a ideia do mutualismo,

onde as atividades presentes no edifício se beneficiam e dão benefícios umas às

outras, tornando-o mais frequentado e incentivando que todas as atividades

culturais que oferece façam parte da vida de seus usuários.

Dentre os programas mais específicos se destacam o Centro de Referên-

cia Urbana, a área infantil da biblioteca, a lanchonete e os espaços de estudo.

O primeiro deles é talvez o que mais chama a atenção, pois é um programa

inexistente em equipamentos públicos brasileiros. Assim como na Midiateca de

Toulouse, estudada na primeira parte deste trabalho, foi proposto que se incor-

porasse às três sedes deste sistema de bibliotecas essa nova função. Este espaço

tem como proposta se tornar um centro de politização da população através do

contato com as políticas urbanas e da exposição das principais intervenções em

processo de implementação na cidade. Trata-se de uma forma de aproximar a

população das reformas urbanas de uma forma mais pedagógica e direta, que

permita uma melhor compreensão de conceitos urbanos e de formas de parti-

cipação popular na política. Pretende-se, com isso, que o sistema de bibliotecas

que busca se relacionar com o espaço público também instrua as pessoas sobre

– PROGRAMA –

ele e sirva de plataforma de discussão da cidade que dê à população uma outra

noção de urbanidade.

Nesse mesmo sentido, foram propostos também espaços de congregação,

onde a população pudesse se reunir para discutir questões que lhes interessasse.

O próprio processo de elaboração do Plano Alternativo da Favela da Paz passou

por grandes dificuldades pela ausência de estruturas que comportassem uma reu-

nião da comunidade, que teve que ser feita na casa de pessoas e em comércios

locais. Sendo assim, o edifício da biblioteca traz a possibilidade de viabilizar este

espaço através de um novo auditório. Ao mesmo tempo que serve como estrutura

para acontecimentos culturais, ele também pode ser uma estrutura de apoio à

comunidade local em momentos de reunião. Por isso, o programa da biblioteca

contou com um auditório de mais de 300 lugares, além de um segundo anfiteatro

a céu aberto que foi possibilitado posteriormente durante o processo de projeto.

O espaço infantil da biblioteca tem como objetivo mais do que apenas for-

necer livros para crianças, mas também oferecer estrutura para que as mães pos-

sam deixar seus filhos no local durante um período do dia enquanto não podem

ficar com eles. Para isso, o espaço também deve oferecer entretenimento relacio-

nado ao ensino para as crianças, como contação de histórias, exibição de filmes,

peças infantis, etc. Desse forma, pode ser criada uma estrutura que possibilita

que as mães possam se dedicar a afazeres próprios sem ter que se preocupar com

a segurança dos filhos ou ter que deixar de fazer essas coisas por conta disso. Ao

mesmo tempo, tem-se uma estrutura de apoio ao ensino e uma alternativa de

atividade para as crianças do bairro.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 139

NÍVEL DO CAIS

DEPÓSITO DE LIVROS

ESCRITÓRIOS ADMINISTRATIVOS

ÁREA DE CARGA E DESCARGA

ESPAÇO MULTIUSO E DE ESTUDOS

BANHEIROS

ÁREA TÉCNICA

NÍVEL DA PRAÇA

ACERVO LIVROS, PERIÓDICOS E MÍDIA

ACERVO INFANTIL E ESPAÇO DA CRIANÇA

ESPAÇO MULTIUSO E DE ESTUDOS

AUDITÓRIO

CAFÉ E LIVRARIA

SALAS DE ATIVIDADES

ESPAÇO DE INFORMÁTICA

CENTRO DE REFERÊNCIA URBANA

PROGRAMA DO EDIFÍCIO

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX140

A presença de espaços de estudo e reunião também é um elemento impor-

tante. Foi a forma encontrada para dar suporte adicional ao estudo e ao trabalho.

Através destes espaços espera-se que as pessoas encontrem um local confortável

e apropriado para se dedicar a atividades acadêmicas e mesmo de trabalho. Mui-

tos não encontram estes espaços dentro de suas casas e isso pode tanto dificultar

que jovens e crianças se interessem pelo estudo quanto impossibilitar que profis-

sionais fornecedores de serviços específicos possam se encontrar com clientes.

Assim, está proposto que estes locais de encontro e concentração estejam espa-

lhados pelo edifício e ganhem diferentes formas ligados ao acervo da biblioteca, à

espaços multiuso e à áreas específicas de trabalho.

Por fim, a presença da lanchonete se torna essencial para a vitalidade do

edifício. A presença de um comércio que qualifica também um local de encontro

atrai pessoas para o uso das instalações. Ao mesmo tempo, este é o suporte que

permite que os usuários passem mais tempo no edifício, já que encontram um lo-

cal para comer e fazer pausas das atividades. Esse comércio pode também dividir

espaço com uma pequena livraria, onde a comunidade pode comprar livros novos

e usados da biblioteca, tornando-se mais um instrumento de incentivo à leitura.

Mais uma vez, a multiplicidade de funções do edifício é vital para a construção de

uma estrutura urbana ativa e dinâmica.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 141

ESPAÇOS MULTIUSOO SALÃO MULTIUSO NO NÍVEL DO CAIS CONECTA OS DOIS EDIFÍCIOS (IMAGEM DE CIMA); SALÃO MULTIUSO DÁ ACESSO À DIVERSAS ATIVIDADES DO EDIFÍCIO CULTURAL (IMAGEM DE BAIXO).

BIBLIOTECAA RECEPÇÃO DA BIBLIOTECA MANTÉM O MESMO PISO DA PRAÇA (IMAGEM DE CIMA); O MESANINO DA BIBLIOTECA GUARDA O ACERVO DE MÍDIA (IMAGEM DE BAIXO).

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX142

Uma das principais estratégias para projetar o edifício da biblioteca de modo a

torna-la mais conectada à cidade e à dinâmica urbana foi buscar uma forte rela-

ção com o entorno natural e construído. Eram muito diversos os elementos que se

colocavam como desafios nessa busca. O rio tornava necessário que a biblioteca

se abrisse para a margem e trabalhasse uma reação de simbiose com ela, evitando

dar as costas à este espaço para que não se tornasse mais uma vez os fundos da

cidade. O viaduto do metro, por outro lado, é uma estrutura pesada e potencial-

mente agressiva, de modo que se não fosse incorporado ao desenho do edifício,

poderia se manter como um elemento de ruptura do espaço público. O trecho de

parque já implementado configura um grande espaço livre pouco definido e des-

conectado de atividades urbanas relevantes, de sorte que cabe à biblioteca con-

seguir se tornar um elemento de articulação deste espaço com os demais espaços

livres, como a margem do rio e a praça em frente ao viaduto. Por fim, o último ele-

mento é o relevo. Estando localizada às margens do rio, a biblioteca se encontra

no pondo de maior desnível da quadra. Mesmo não sendo muito acentuado – sete

metros do nível d’água até a praça – o relevo não poderia ser tratado com muros

de arrimo e taludes desconectados do edifício. Deste modo, cabe ao projeto do

edifício trabalhar também o projeto da paisagem e, por consequência, do relevo.

Foi através da inserção no relevo que a biblioteca pode criar uma forte co-

nexão entre o cais do rio e a grande praça em frente ao viaduto do metro. Ao

trabalhar a topografia, foi possível criar duas frentes para o edifício, uma voltada

para o rio, outra voltada para a praça. Assim, ela pode tornar as duas áreas mais

ativas, além de criar novas formas de vencer os desníveis ao permitir esse deslo-

camento se dê através de suas áreas internas. Para conectar estes dois espaços, foi

criada uma praça central de dois níveis entre os dois blocos principais que com-

põe a biblioteca. Os níveis são conectados por uma grande escadaria em forma de

anfiteatro que também dá acesso a um salão interno que liga os dois blocos e se

localiza sob a praça superior.

Essa estratégia permitiu criar um espaço de alargamento para a margem

do rio onde atividades diversas podem tomar lugar. Este local também se torna

a cabeceira de uma ponte onde de pedestres que cruza o rio mirando a biblioteca

em perspectiva desde o outro lado, efeito reforçado pelos edifícios vizinhos que

definem o espaço do passeio peatonal que leva à travessia. A grade escadaria

permite que este espaço se torne um ambiente também de contemplação e de

realização de apresentações, multiplicando suas possibilidades de uso. Com piso

em madeira e espelho de vidro, a escadaria se torna uma grande janela para

o salão da biblioteca e permite uma conexão visual entre o espaço interno e o

externo. Essa estrutura também dá acesso ao nível superior da praça, que se

conecta com a grande praça do viaduto, mas ganha uma outra escala conferida

pela implantação do edifício.

Para possibilitar uma definição melhor dos espaços livres criados ao re-

dor do viaduto, optou-se por explorar a forma dessa estrutura. Pela altura deste

elevado (25 metros) e pela presença de apenas quatro colunas em toda a quadra,

mesmo possuindo um grande impacto visual na paisagem, o viaduto era incapaz

de, por si só, definir os espaços ao seu redor no nível do pedestre. Observando

estruturas de dimensões semelhantes em outras cidades do mundo, os antigos

– RELAÇÃO COM O ENTORNO IMEDIATO –

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 143

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX144

aquedutos se sobressaíram enquanto referência para solucionar o problema. Ao

analisar estruturas como a dos Arcos da Lapa no Rio de Janeiro e o Aqueduto de

Segóvia na Espanha, é possível notar como elas conseguem marcar sua presença

na paisagem definindo espaços livres ao seu redor com grande leveza. Apesar de

possuírem um desenho mais sofisticado em termos estéticos do que o grosseiro

viaduto de concreto em Itaquera, o que mais contribui para essa configuração não

é sua beleza, mas sim o ritmo de suas colunas. Sendo assim, decidiu-se incorporar

no desenho da biblioteca elementos que dialogassem com os pilares do elevado

para conferir uma noção de ritmo à eles.

Sendo assim, foi criada uma modulação da estrutura da biblioteca que se

evidencia para além do edifício. Grandes paredes estruturais serviriam de base

para a configuração dos ambientes internos, ao mesmo tempo em que se esten-

deriam para além deles, buscando relações com outros elementos ao redor. Ao

se alinharem aos pilares do viaduto, essas paredes criam uma repetição plástica

que permite a configuração da grande praça evidenciando a presença o eleva-

do. Concomitantemente, criam uma série de pórticos que definem um espaço de

transição entre a praça e o edifício, gerando áreas de escalas e características di-

versas. Uma dessas paredes se estende ainda mais e chega ao outro lado do rio,

convidando os transeuntes a visitarem o novo equipamento público.

Este projeto, com isso, ensaia uma forma alternativa de inserção dos edifí-

cios públicos na cidade. Demonstra um pensamento de relação do edifício com a

seu contexto urbano que não pode ser tabelado ou padronizado, mas que envolve

conceitos que, estes sim, podem se repetir em outras situações de forma até mais

bem elaborada. Fazer com que a forma do edifício não surja antes nem indepen-

dentemente da forma do entorno parece ser uma das grandes chaves. É necessá-

rio que se busque articular os diversos elementos urbanos para que o projeto te-

nha um real poder de inserção na cidade. Nesta experiência, arriscou-se inclusive

criar uma modulação construtiva que mostrasse que para que se empregue este

caráter no edifício, ele não precisa perder a racionalização da produção – carac-

terística importante para projetos públicos de grande escala. Uma outra pesquisa

poderia inclusive investigar um modelo de racionalização da produção diferente

do existente hoje para edifícios públicos, que permitisse uma adaptação maior

das construções aos respectivos contextos e uma liberdade plástica maior para

os arquitetos, criando variedade de soluções e adequação às necessidades locais.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 145

ARCOS DA LAPA, RIO DE JANEIROFOTOGRAFIA AÉREA (FONTE : EN.WIKIPEDIA.ORG) E IMAGEM DO GOOGLE STREET VIEW.

AQUEDUTO DE SEGÓVIA, ESPANHAFOTOGRAFIA AÉREA (FONTE : THE-TIN-MAN.COM) E IMAGEM DO GOOGLE STREET VIEW.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX146

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 147

<VISTA AÉREA DA BIBLIOTECAFORMAÇÃO DA PRAÇA ATRAVÉS DO RITMO DOS PILARES E DAS PAREDES SEQUENCIAIS

<CORTE GERAL DO RIORELAÇÃO COM A PAISAGEM NATURAL E CONSTRUÍDA.

BIBLIOTECA VISTA À PARTIR DA MARGEM OPOSTA DO RIOOS EDIFÍCIOS ENQUADRAM A BIBLIOTECA E O PÓRTICO QUE CHEGA AO OUTRO LADO CONVIDA O TRANSEUNTE PARA O EDIFÍCIO.

IMAGENS ESPERNAS DO EDIFÍCIOPRAÇA NO CAIS BAIXO, ONDE ESTÃO A ENTRADA, O ANFITEATRO À CÉU ABERTO E A ÁREA DE CARGA E DESCARGA (IMAGEM DE CIMA); FORMAÇÃO DE PÓRTICOS JUNTOS AO VIADUTO NA PRAÇA SUPERIOR (IMAGEM DE BAIXO)

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX148

– REFERÊNCIA DE PROJETO –

O arquiteto italiano Renzo Piano desenvolveu um revestimento industrializado

feito de tijolos de terra pré-fabricados. Esse sistema foi utilizado como referência

para a proposição das grandes paredes da biblioteca. O tijolo de terra é um ma-

terial barato e guarda uma identidade forte, que se destaca ao mesmo tempo em

que mantém uma sobriedade e passa sensação de aconchego. Ao industrializar

sua produção e criar um desenho específico dele para o edifício, pode-se conferir

personalidade à biblioteca e otimizar seu processo produtivo. Com um modelo

de revestimento deste tipo é possível também criar paredes mais permeáveis

sem perder sua força visual. Renzo Piano cria um sistema onde as aberturas do

edifício se camuflam sob os tijolos e recebem proteção contra incidência de luz

solar direta. Assim, é mantida a uniformidade da parede, mas se torna possível

a criação de aberturas. Isso é importante no projeto da biblioteca nas áreas onde

o muro estabelece contato direto com o espaço público, como na área infantil e

no Centro de Referência Urbana. Isso torna possível que os espaços interno e

externo se relacionem e que a extensa parede de tijolos afirme sua grandiosidade.

Os desenhos à seguir foram retirados do livro Renzo Piano Building

Workshop Complete Works Volume 4 e fazem parte do projeto da Banca Popolare

di Lodi, na Itália. Através deles é possível compreender melhor o funcionamento

do revestimento de tijolos industrializado criado por Renzo Piano.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 149

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX150

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 151

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX152

O sistema itinerante da biblioteca foi importante para o desenvolvimento do dese-

nho do edifício. Apesar de não ter havido tempo para uma elaboração mais deta-

lhada de seu funcionamento, ele sempre fez parte da preocupação da dinâmica dos

espaços e das soluções propostas. Uma das principais preocupações foi como otimi-

zar a relação entre o acervo da biblioteca e os veículos que cotidianamente deslo-

cam parte dele. No modelo atual, não existe nenhuma proposta de desenho para o

edifício ou para o ônibus que torne está relação mais eficiente e prática. O que se

pretendeu então, foi esboçar uma possibilidade de aperfeiçoamento deste sistema.

Optou-se por não propor grandes alterações ao ônibus que transporta

o acervo móvel. Além de não ser o foco desta pesquisa trabalhar na escala do

desenho industrial que possibilitaria tal estudo, ficou claro que grande parte do

melhoramento deste sistema deveria ser feito no edifício que guarda o acervo e

nos pontos de parada. Mesmo assim, foi levantada a hipótese de uma adaptação

maior dos veículos que permita uma abertura maior de suas faces e uma cone-

xão mais próxima entre interior e exterior. Desse modo, as pequenas bibliotecas

podem se integrar melhor às atividades das praças onde ancoram e o sistema de

carga e descarga se facilita.

Para o edifício, optou-se por localizar o depósito do acervo no cais do Rio

Verde, sob a biblioteca. Assim, seria possível que os veículos pudessem atracar

no ponto de carga e descarga sem interferir nas fachadas principais da bibliote-

ca. Ao fazer isso, também foi possibilitado que os escritórios administrativos se

dispusessem junto ao acervo de frente para a margem do rio. Essas funções sozi-

nhas já garantiriam que este espaço se tornasse ativo e com pessoas presentes em

– O EDIFÍCIO E A ITINERÂNCIA –

grande parte do dia. Para otimizar a relação entre o veículo e o edifício, o acervo

está elevado do solo em meio metro para que se forme uma plataforma na mes-

ma altura do piso do ônibus. Isso facilita o carregamento dele, evitando que seja

necessário sair da biblioteca com livros, subir as escadas do ônibus e organiza-los

em seu interior, como é feito hoje. Dessa forma, se torna possível, inclusive, que

as estantes de livros do ônibus sejam móveis e possam ser trocadas por inteiro a

cada viagem. Os livros seriam organizados no edifício diretamente nas estantes

e elas poderiam ser deslizadas para dentro do veículo substituindo outras que já

estejam desorganizadas e com livros emprestados.

Ao posicionar o depósito de livros sob o acervo também se viabilizou uma

separação física mais clara entre a parte acessível ao público e a restrita. Um ele-

vador de serviços faz a conexão entre todos os andares com coleção de livros ou

mídias, permitindo uma relação mais direta entre os funcionários e o acervo. As-

sim, o acervo fixo e o itinerante se tornam totalmente conectados podem compor

uma mesma coleção que muda e se renova.

A BIBLIOTECA E A CIDADE | NICOLAS LE ROUX 153

CORTE ÁREA DE CARGA E DESCARGAESQUEMA DE ACOPLAGEM DO ÔNIBUS AO DEPÓSITO DE LIVROS E À ADMINISTRAÇÃO. A ELEVAÇÃO DO PISO PERMITE UMA COMUNICAÇÃO MAIS EFICIENTE ENTRE EDIFÍCIO E VEÍCULO.

CROQUIS DE REFLEXÃO SOBRE O ÔNIBUSNA IMAGEM SUPERIOR, O MODELO ATUAL DE ÔNIBUS, NA INFERIOR A PROPOSTA DE UM MODELO MAIS ABERTO.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX154

Para o estudo das praças de parada dos ônibus biblioteca, foram escolhidos dois

casos com situações distintas e dentro do raio de abrangência da biblioteca pro-

jetada. O estudo delas consistiu numa leitura dos elementos que dificultam sua

integração ao cotidiano do bairro e uma proposta esquemática de como seus espa-

ços podem ser melhor aproveitados e gerar mais interesse pelo uso, tornando-se

capazes de receber melhor o sistema itinerante do Ônibus-Biblioteca.

Ambas as praças apresentaram um modelo comumente encontrado na ci-

dade e já destacado no início desta pesquisa. São restos da urbanização do bairro,

sendo conformadas em locais de bifurcação de ruas onde a ocupação seria muito

difícil pela dimensão e pelo formato do terreno. Dessa forma, são caracterizadas

por serem rodeadas por ruas em todos os lados e apresentarem uma dimensão

relativamente pequena. Ao mesmo tempo, os desenhos das praças tratam elas

como canteiros verdes, diminuindo ainda mais o espaço útil delas em detrimento

da implementação de caixas de terra para arborização. Esses canteiros tornam

seu espaço truncado e determinam muito fortemente as áreas caminháveis.

Por outro lado, as duas praças disponibilizam bancos e mesas, elementos

de acolhimento local. Esse tipo de mobiliário é importante para a garantir a per-

manência de pessoas no espaço público, pois possibilita atividades naturais desse

tipo de espaço, como sentar, conversar, observar, etc.*** (JAN GEHL). Contudo,

esses elementos estão colocados na praça num modelo interiorano, que não cor-

responde à dinâmica contemporânea da metrópole. Por mais que estejam na peri-

feria, onde o ambiente é predominantemente residencial e a utilização dos espaço

públicos é muito diferente das áreas centrais e densas da cidade, a praça precisa

– PONTOS DE ANCORAGEM –

comportar uma apropriação maior de seu espaço e possibilitar atividades mais

diversas que possam se integrar ao entorno.

Posto isso, as principais modificações pensadas para as praças vão no sen-

tido de aproximar mais seu espaço do passeio público e dos edifícios ao seu redor

ao mesmo tempo que se tenta criar uma outra forma de apropriação do espaço

vinculada a uma identidade visual comum que remeta ao fato de serem um

ponto de ancoragem do Ônibus-Biblioteca. Para tanto, foi proposto primeira-

mente a alteração do caráter de uma das ruas lindeiras à cada praça, tornando

-as um espaço compartilhado que prioriza o pedestre e permite o alargamento

da calçada. Essa rua deve ser elevada para o nível do passeio público e receber

um tratamento de piso que indique seu caráter peatonal, com pedras ou outro

tipo de revestimento texturizado. Com isso, a praça deixa de ser uma pequena

ilha no asfalto e se torna um alargamento do espaço do pedestre.

As paredes que marcam o projeto da biblioteca foram escolhidas como

elemento de criação da identidade visual das praças também. Para isso, as

paredes são pensadas como o próprio mobiliário urbano. Através de perfura-

ções, variação de alturas e acoplamento de estruturas parasitas esses muros

podem se transformar para receber diversos tipos de bancos, mesas, lixeiras,

brinquedos, espaços de armazenamento, elementos decorativos, quadro de

avisos, etc. O mesmo elemento que compõe a biblioteca pode então compor

as praças ao redor dela e as demais praças vinculadas ao seu sistema, criando

uma identidade única para tudo. Isso é importante, pois marca a presença da

biblioteca na cidade e cria um endereçamento oportuno que permite que os

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PRAÇA GERACINA BRAGA LIMAA PRAÇA APRESENTA A CURIOSA CARACTERÍSTICA DE ESTAR RODEADA POR BLOCOS DE CONCRETO DE SINALIZAÇÃO DE TRÂNSITO. APESAR DO ESPAÇO DOS CARROS EM SUAS MARGENS TER SIDO REDUZIDO, ELE NÃO FOI INCORPORADO À ELA, TORNANDO-SE UM LOCAL SEM UTILIDADE E QUE DIFICULTA A MOBILIDADE DOS PEDESTRES.

PRAÇA CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDAA PRAÇA ESTÁ EM FRENTE À UMA ESCOLA PÚBLICA, DE FORMA TEM A OPORTUNIDADE DE SE TORNAR UMA EXTENSÃO DE SEU ESPAÇO. A ALTERAÇÃO DE SEU DESENHO É UMA FORMA DELA RECEBER MAIS ATIVIDADES, MAS A ESCOLA TAMBÉM PODE CONTRIBUIR PARA ISSO SE TORNAR SUAS FRONTEIRAS MAIS PERMEÁVEIS.

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usuários à identificarem com facilidade, permitindo que o contato com ela se

torne cotidiano.

Outras modificações importantes foram a determinação de uma área re-

servada para o estacionamento do ônibus-biblioteca mais articulada com a praça

e a proposição de pequenos quiosques que podem abrigar comércio e banheiros

públicos. É demanda do sistema que as praças estejam próximas à locais onde os

funcionários possam comer e utilizar o banheiro. Sendo assim, estes quiosques po-

deriam tanto cumprir essa função quanto introduzir novos elementos de ativação

do espaço público. Também é proposta que os canteiros de plantas deixem de ser

caixas e se nivelem ao piso, deixando de conformar barreiras e criando pequenos

gramados onde as pessoas possas se sentar.

O projeto Tiquatira em Construção (representado nas imagens ao lado) das

arquitetas Andréa Helou e Julieta Fialho foi uma das referências para a definição

do muro enquanto mobiliário urbano. Em Tiquatira, as recém formadas arquitetas

se aproveitam de um longo muro préexistente para requalificar a região ao proje-

tar diversos parasitas que o transformam em um percurso de diferentes ursos e

surpresas. Apesar de muitas das idéias não terem saído do papel, o trecho imple-

mentado mostra que realmente é possível utilizar essa estrutura de forma positiva.

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TIQUATIRA EM CONSTRUÇÃOAS IMAGENS DO PROJETO REVELAM DIVERSAS IDEIAS DO QUE PODERIA SER FEITO NO MURO PARA TRANSFORMADO EM MOBILIÁRIO URBANO MULTIUSO. DENTRE ELAS, DESTACAM-SE A ARQUIBANCADA, O BICICLETÁRIO E A MESA. MAS SÃO INFINITAS POSSIBILIDADES DE USO.IMAGENS DE DIVULGAÇÃO DO PROJETO.

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PRAÇA GERACINA BRAGA LIMACROQUIS DE ESTUDO DA PRAÇA ANTES (ESQUERDA) E DEPOIS (DIREITA) DA IMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO.

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PRAÇA CÂNDIDO MENDES DE ALMEIDACROQUIS DE ESTUDO DA PRAÇA ANTES (ESQUERDA) E DEPOIS (DIREITA) DA IMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO.

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“A arquitetura abrange o exame de todo o ambiente físico que circunda a

vida humana; não podemos subtrair-nos a ela, até que façamos parte da

sociedade urbana, porque a arquitetura é o conjunto das modificações

e das alterações introduzidas sobre a superfície terrestre, em vista das

necessidades humanas, excetuado somente o puro deserto.” (WILLIAN

MORRIS, 1881)

A elaboração de um projeto enquanto forma de pesquisa permitiu desco-

brir questões que não estavam planejadas no início. A partir do momento em

que se projeta, também se descobre novos elementos que não estavam previstos

e que necessitam de problematização para permitir que o projeto se desenvolva.

Desde o início do processo de proposição do edifício novos paradigmas surgiram

e obrigaram mudanças tanto na forma de se trabalhar quanto na percepção

inicial do problema.

A simples questão da implantação do edifício no terreno inicialmente

definido já revelou inúmeras questões que não haviam aparecido antes. Elas

tornaram mais evidente a complexidade e a necessidade de estruturar o edifício

em conjunto com a forma urbana e os elementos construídos e naturais do en-

torno. No momento do projeto afloram novas leituras da situação urbana que

permitem uma compreensão mais estruturada das problemáticas levantadas no

início da pesquisa.

Enquanto arquiteto, essa metodologia é muito rica, já que permite de-

senvolver conceitos aplicados diretamente à prática profissional da categoria. É

O PROJETO COMO PESQUISA

também uma forma de aplicar os conceitos enquanto os estuda, para que seja

fundamentada a argumentação. Tento em vista que construir edifícios ou proje-

tos urbanos é algo impossível para uma pesquisa, o exercício do projeto permite

uma aplicação dos conceitos de uma maneira próxima da prática do arquiteto

urbanista e permite uma leitura dos resultados que só pode ser superada pela

real implementação o projeto, que estará sujeita às dinâmicas urbanas, aos usu-

ários, aos recursos financeiros e materiais, etc. Assim, o projeto é uma forma de

tornar elementos abstratos mais próximos da compreensão do pesquisador e de

seus possíveis leitores.

A arquitetura é uma ciência muito complexa, pois envolve uma diversida-

de de fatores que dependem de elementos tanto abstratos quanto voláteis, que se

alteram a cada circunstância. Ao projetar como forma de pesquisa, essa multipli-

cidade de fatores se evidencia mais facilmente e grande parte dos elementos que

não são o foco da pesquisa se tornam presentes na problematização. Por mais que

continuem como segundo plano em relação à proposta de trabalho, se não forem

levadas em conta, muito se perde, pois a arquitetura se distancia da aplicabilidade.

O processo de produção da arquitetura é provavelmente o que mais cha-

ma atenção como plano de fundo da pesquisa. Principalmente pelo fato de se

tratar de um projeto público com caráter social num contexto pós-industrial

em um país emergente, esse elemento se torna importante para a viabilização

de projetos. Considerando o tema desta pesquisa, podemos destacar a crítica de

Kenneth Frampton para Mies van der Rohe quando afirma que “procura redu-

zir o trabalho da construção à categoria de desenho industrial numa escala enorme.

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Visto que está preocupado em otimizar a produção, tem pouco ou nenhum interesse

pela cidade”. Para podermos repensar a cidade através da arquitetura, devemos

saber vincular seu processo produtivo ao conceito de implantação e articulação

do edifício com o entorno.

Esse modelo de pesquisa nos permite criar esse processo de forma mais

articulada. À partir do momento em que se precisa dar forma à teoria, todas as

outras questões vem à tona. Um projeto que se resolve apenas dentro de uma

questão muito específica não pode ser considerado eficiente. Muitos dos grandes

marcos da arquitetura ganharam destaque justamente por se dedicar a uma só

questão, normalmente à forma. Contudo, se tornam obras muito pontuais, que

não podem ter seu conceito reproduzido em qualquer situação e, quando tem,

acabam por se distanciar de processos produtivos locais, de realidades socioespa-

ciais e da relação com o entorno.

O processo de investigação através do projeto é muito interessante para um

estudante de arquitetura inclusive, pois permite praticar o exercício da profissão

de uma maneira crítica. É uma ferramenta para estabelecer fundamentos críti-

cos para as possibilidades da arquitetura que se verificam somente através dele e

com ele aprender de forma metaliguística.

O EDIFÍCIO COMO ARTICULADOR DA URBANIDADE | NICOLAS LE ROUX162

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