cidade e urbanidade

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SUMRIO PLURAL DE CIDADE:NOVOS LXICOS URBANOS

Apresentao

7

ORGANIZA DORES

CARLOSFORTUNA ROGERIO PROENAEDITOR

SECO

I -

Artes de fazer a cidade

911

LEITE

1. Patrimnio cultural e cidadeEDIES ALMEDlNA. SA Av. Ferno Magalhes, n' 584, 5' Andar 3000-174 Coimbra Tel.: 239851 904 Fax: 239851901 www.almcdina.nct [email protected]'RIlIMPREssAo I IMPRESSAO I ACABAMENTO

Antonio A. Arantes 2. Enobrecirnenro Silvana Rubino 3. Requalificao urbana Paulo Peixoto 4. A cidade no dilogo entre disciplinas Heitor Frgoli Jr. S. Cultoras populares na cidade Sirgio Ivan Gil Braga 6. Cidade e urbanidade Carlos Fortuna83 69 53 41

urbano

25

G.c. GRFICA DE COIMBRA, LDA. Palheira - Assafarge 3001-453 Coimbra [email protected] Setembro,DEPSITO

2009LEGAL

297901/09 Os dados e as opinies inseridos na presente publicao so da exclusiva responsabilidade do(s) scu(s) autor(es).

SECO

U-

Artes de usar a cidade

99101

Toda a reproduo desta obra, por fotocpia ou outro qualquer processo, sem prvia autorizao escrita do Editor, ilcita e passvel de procedimento judicial cenrra o infractor.

7. Etnografia urbana Jos Guilherme Cantor Magnani 8. Segregaes urbanas Lucia Maria Machado B6gus 9. Espaos e vazios urbanos

Biblioteca Nacional de portugal- Catalogao na PublicaoPlural de cidade: lxicos e culturas urbanas / org. Carlos Fortuna, Rogrio Proena Leite. - (CES) ISBN 978-972-40-3924-4 I - FORTUNA, Carlos 11 - LEITE, Rogrio Proena CDU 316 711.4

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Cristina Meneguello

~10. Sonoridades e cidade Luciana Mendona139

6. CIDADE E URBANIDADECar/os Fortuna

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Introduo: O "fim" anunciado da cidade Estamos a viver tempos de ameaas e riscos constantes, em que (des)crever o mundo um exerccio complexo. No dispomos dos referentes robusros, polticos, culturais, ideolgicos que ordenavam a anlise e a interpretao do mundo de h dcadas atrs. 1989, o ano da queda do Muro de Berlim, desse ponro de vista um marco importantssimo pois, com ele, colapsaram tambm muitas das convices polticas e ideolgicas que sustentavam corajosas descries do mundo, ao mesmo tempo que se disseminaram as razes do neoliberalismo que naturaliza e fragiliza a discusso poltica e acadmica. Uma das dimenses que nos detm hoje a da condio poltica e social das cidades que parece, como de resto tudo sua volta, estar a sofrer alteraes tremendas. Com efeito, so diversas as circunstncias que nos permitem interrogar a cidade do nosso horizonte futuro, Estamos a viver um paradoxo iniludvel, que pode ser enunciado na seguinte equao: (i) de um lado, o facto de a humanidade se ter tomado pela primeira vez maioritariamente urbana, com cerca de 72.2% de europeus e de 78.3% de latino-americanos concentrados em cidades em 2007 (UN, 2008). A estes nmeros, correspondiam, em 2005, 55% e 84,2% de urbanos em Portugal e no Brasil, respectivamente. Acrescente-se ainda que, segundo as estimativas disponveis para a populao mundial, continuaremos a registar um contnuo e impressionante crescimento, ao ponto de se poderem alcanar 6.4 bilies em 2050 (duplicando-se os 3.3 bilies de 2007), enquanro a populao urbana no seu todo poder superar, nesse meio de sculo, o volume total da populao mundial registado em 2004 (idem); () de outro lado, e em contraste com esta previsvel evoluo demogrfica, nas ltimas dcadas do sculo xx, foram-se avolumando as vises que propalavam o esgotamento e mesmo o "fim da cidade"; seja por via ambiental e do esgotamento de recursos renovveis, seja por incria humana e ingovemabilidade poltica das (mega)cidades, seja ainda, em resultado do contnuo aprofundamento das desigualdades

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E CULTURA

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e da deslizante perda da qualidade de vida urbana, o futuro das cidades constitui uma das maiores incgnitas da humanidade no seu rodo (Hall e Pfeiffer, 2000; Navia e Zimmerman, 2004).

o primeiro termo do paradoxo que nos rodeia alimenta a dvida acerca da nossa capacidade, agora que "somos todos urbanos" e de posse de um patrimnio de conhecimento poltico, tcnico e cientfico sem precedentes acerca da cidade e do fenmeno urbano, de construir a cidade que idealizamos ou que sonhamos: democrtica e inclusiva, criativa e bela, inteligvel e justa. Trata-se de uma dvida que no pode ser resolvida no plano tcnico e que, portanto, na esteira de eloquentes reflexes, como as David Harvey (2005), Susan Fainstein (1999) ou Leonie Sandercock (1998) s pode ser equacionada no plano da democracia poltica global e de um renovado utopismo. O segundo termo do nosso paradoxo - o que anuncia o esgotamento da cidade ou o seu "fim" - constitui uma vi!loexcessiva e adulterada daquilo que se est efectivarnente a passar no mundo urbano cntemporneo. O que est a desaparecer realmente no a cidade em si mas um determinado modelo histrico de cidade. Com efeito, presos aos cnones do nosso conhecimento e da nossa experincia, continuamos a designar "cidade" - mesmo quando a linguagem no corresponde mais realidade urbana vivida - a modalidades novas, por vezes sem precedentes, de expanso e reinveno do urbano. Novas e sempre mais complexas expresses de metrpole, diversas e recriadas tipologias de bairro, de condomnios privados ou de cidadelas ps-modernas, surgimento de edge cities e de "cidades dormitrio" e "periferias residenciais", banlieus, favelas, slums, erc, estilhaam o relativamente homogneo lxico terico e de anlise da cidade no mundo ocidental. Essas formas novas de cidade revelam ainda reconfiguraes urbanas que no se compaginam com a rnorfologia, a arquitecrura ou o sejitido poltico e social tpico-ideal da cidade da antiguidade, da era medieval, ou da era industrial, em torno da qual se construiu e desenvolveu aquele lxico. Mas no so apenas as formas urbanas que esto a mudar e nos podem dar a sensao de que a cidade est a atingir o seu fim. So tambm e sobretudo as expresses culturais que a cidade comporta e que, muitas delas, no encontram ainda converso solidamente comprovada nos quadros tericoanalticos correntes. ... ....' 4Vrias destas vises contraditrias (umas catastrofistas, outras optimistas) tm origem no discurso intelectual anti-urbano dos sculos XV1l1e XIX que, basicamente, contrape a representao de cidade "perigosa" represen-

tao de cidade "laboriosa" (White e White, 1962; Berni-Bossard, 2008). Esta tradio anti-cidade, na sua longa histria, atravessa o judasmo, o protestantismo e o marxismo e actualiza o mito de Babilnia (com origem em Babel), COn1Q imagem-signo de barbrie civilizacional urbana. Tal mito prolonga-se no tempo e chega mesmo Escola de Chicago que, apesar do impulso dado aos estudos sociolgicos sobre a cidade, a considera como o territrio por excelncia de uma nova experincia social de grupos como a famlia, ou modos de organizao social como a "comunidade", que, uma vez urbanizados, enfrentam dinmicas sociais desagregadoras que ameaam a sua estrutura e os fazem correr riscos de desaparecimento (Park, 1992; Sennert, 1970, 1985. Ver tambm Frgoli Jr. nesta colectnea). De outro lado, a nossa convico urbana inclui tambm o inverso de BabeI: o mito da cidade por excelncia - Atenas -, a poiis grega, bero da civilizao, da ordem urbana, dos direitos pblicos, mas tambm da tica, das artes e da esttica. Certamente romantizada, a imagem de harmonia que usualmente se reproduz semelhana da mitificada urbanidade de Atenas tem o efeito instrumental de permitir equacionar a desorganizao, o caos, a insegurana e, por fim tambm, a possibilidade histrica de uma outra cidade por construir. Esta lgica dicotomizada de pensar a cidade impede-nos de a escrutinar com rigor. Reside a uma das principais razes porque temos dificuldade em retratar a cidade na sua globalidade, de a pensar e de imaginar de modo criativo em resultado desta dualidade intrnseca ao nosso pensamento sobre a cidade, a esta luta de tits entre poderosas imagens-signo que dilaceram dicotornicamenre o nosso imaginrio urbano e que, por isso, alguns anunciam apressadamente o seu colapso.'

Teoria palimpsesto da cidade claro que para uma viso global da cidade de hoje, temos de reflectir sobre uma indispensvel reforma epistrnica dos nossos instrumentos analticos e concepruais (Indovina, 2000; Paquot, 2000,2006). Parte essencial da necessria renovao episrrnica da teoria sobre a cidade pode ser assinalada pelo movimento de afastamento gradual e de no-coincidncia entre o territrio urbanizado da cidade e o modo como se estruturam as prticas, mental ida-

1 Uma outra dificuldade em pensar globalmente a cidade de hoje resulta da hegemonia da pensamento ocidental que, por arrogncia epistrnica, disrorce ou elimina a reflexo sobre as cidades do "Sul global", ao sujeit-las a um quadro interpretarivo exclusivisra (Stren e Bell, 1995; elik, 2000; Robinson, 2006; Fortuna, 2007; Huyssen, 2008) .

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des e relaes sociais que ali se desenrolam. Estas prticas, mentalidades e relaes sociais, constitutivas do que se pode designar por cultura urbana, no se restringem, nem so imediatamente sobreponveis aos espaos fsicos delimitados da cidade edificada. A cultura urbana e a sua influncia propagase muito para alm das espacial idades da cidade, como L. Wirth argumentou h 80 anos atrs (Wirth, [1938] 1997). Esta no-coincidncia, pode dizer-se, a mais clara demonstrao da contnua "re-inveno do urbano". Terica e metodologicarnenre, a gradual afirmao do urbano foi alcanada atravs da demarcao da cidade face a construes socioculrurais que so tratadas como seus opostos (a cidade contra o campo, ou o urbano contra o rural, ou a metrpole contra a pequena cidade/comunidade) (Fortuna, 1997). Consumada historicamente a hegemonia da cultura urbana-metropolitana e marginalizada a lgica cultural da sociedade (pr) industrial, pode dizer-se que, grosso modo, a noo de cidade se restringiu espacial idade fsica do edificado, ao contrrio do que sucederia cI1m a cultura urbana que no deixou nunca de se propagar para alm dos limites fisicos da cidade, quebrando a lgica da correspondncia entre ambas. O prprio conceito moderno de "urbano" ganhou novos sentidos em resultado da transformao da natureza da cidade industrial com origem nas lutas sociais e operrio-sindicais em torno do "direito cidade" (Lefebvre, 2009). Esta transbordante "r-inveno do urbano" converteu o direito cidade numa expresso poltica mais abrangente de direito vida e cultura urbana, incluindo tambm o direito equidade e diferena, numa cidade tendencialmente homogeneizadora (idem). O direito cidade no mais apenas o direito a aceder e a instalar-se nela, mas a garantia de poder usufruir dos equipamentos, servios e direitos que a cidade oferece, designadamente a condio de cidadania poltica c cultural. Deste modo no deixa de ser problemtico verificar que a cidade continue a ser interpretada de acordo com muitas formulaes tericas iniciais de autores como Simmel, Wirth, Park e outros "clssicos" e se destaquem referncias a categorias analticas como o anonimato, "atitude blas", a questo da dimenso, densidade relacional, heterogeneidade dos lugares, por exemplo, que constituram a base do patrimnio terico e conceptual dos primrdios do pensamento sobre a cidade e a metrpole modernas. Esta resistncia da teoria s assinalvel porquanto a realidade urb"!ii'i!se mostra historicamente isto , nunca inteiramente compaginvel ao cnone terico e, ao invs, geradora de contnuas reforrnulaes e adaptaes analticas e discursivas, revela uma teoria do fenmeno urbano que se l como um palimpsesto.

Esta teoria palimpsesto da cidade , em alguns casos, impulsionada por processos de renovao dinmica da memria terica de autores e de proposies desenvolvidas em contextos inrerpretarivos de cidades e metrpoles de grande densidade histrica, exemplares da modernidade europeia. Em outros casos, o palimpsesto terico da cidade resulta da inovao trazida pelas experincias contemporneas de renovao urbana registada no s no velho Continente, mas tambm na Amrica do Norte e, muito particularmente nas cidades e metrpoles normais da sia, de frica ou da Amrica do Sul. Sem nunca eliminar pressupostos anteriores, estas experincias trazem superfiei e novas camadas tericas que recobrem e actualizam a construo terica sobre a cidade. Assim tornou-se frequente, por exemplo, depararmo-nos com um "Sirnrnel ps-modernizado" (Weinstein e Weinstein, 1993) que nos obriga a reler A Metrpole e a Vida do Espirito, ou a discutirmos a vertigem adjecrivante de novas escolas de pensamento urbano (Beaurcgard, 2003) que nos fa recuar Escola de Chicago. Do igual modo, no nos surpreende que a reflexo sobre a cidade e o urbanismo ps-coloniais (Bishop, Phillips e Yeo, 2003), nos traga de volta o pensamento original de Anthony D. King, ou que a discusso sobre as cidades "ordinrias" do Sul, isto , a normalidade urbana dos pases pobres e em desenvolvimento (Amin e Graham, 1997; Robinson, 2004) faa ressoar a curta presena das metrpoles latino-americanas na questo urbana da dcada de 1970. A cidade do sensvel Uma das mais recentes camadas da construo terica da cidade diz respeito mobilizao de instrumentos de anlise do lado sensvel do urbano e da vida pblica. Um dos percursores desta cidade sensvel Henri Lefebvre que prope uma reinterpretao da cidade atravs da heurstica da rua e dos ritmos da vida quotidiana (Lefebvre, 1992).2 Nos seus Elementos de Ritmanlise, Lefebvre mostra-se convencido que a cidade contm muito mais do que somos capazes de ver nela e revela-se tambm no que assegura uma relao de familiaridade ou estranheza dos sujeitos com o lugar. A proposta de "ritrnanlise" constitui um mtodo particular de percepo da cidade que tanto permite escut-Ia

rerap~,2 Veja-se a este propsito a estimulante problernatizao que Fraya Frchse oferece dos usos da rua oeste volume. Sobre as sonoridades urbanas. pode consultar-se Luciana Mendona (neste volume), e ainda Fortuna (1999).

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