a cidade dos bondes uma nova mobilidade para … · grega os conceitos de urbanidade e civilidade...

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A CIDADE DOS BONDES UMA NOVA MOBILIDADE PARA UMA NOVA CIDADE NELSON DANTAS FILHO ANALISTA DE TARIFAS E CUSTOS GERÊNCIA DE PLANEJAMENTO DA MOBILIDADE - BHTRANS 1. Introdução Os transportes sempre foram pensados como um serviço ofertado para atender uma demanda específica. Isso valia tanto para a circulação de automóveis quanto para o transporte coletivo, inicialmente usado para atender o transporte de trabalhadores evoluindo nas grandes cidades para uma rede complexa de transporte público urbano. Hoje, é impensável uma grande cidade sem essa rede sobre responsabilidade de profissionais de diversas formações. Se existe essa transversalidade de conhecimento é porque, hoje existe um reconhecimento que a política pública de transportes é uma ferramenta da mobilidade sustentável e, devido à intersetorialidade, uma ferramenta estratégica para que a cidade possa alcançar suas metas de desenvolvimento urbano e de qualidade de vida. Assim, o alcance das medidas de transporte em desenvolvimento urbano, meio ambiente, saúde... não é mais, apenas, um sub-produto, passando a incorporar o próprio corpo do problema. Sistemas econômicos, de desenvolvimento regional, urbano, tecnológico, de gestão estão em constante oscilação, gerando crises, e a análise compartimentada tradicionalmente utilizada não têm dado conta da velocidade da evolução dos problemas. Entender esses ciclos e incluí-los na modelagem dos problemas faz parte do profissional contemporâneo. Essa alternância de sistemas não é uma novidade, apenas no Sistema de Mercado foram registradas 46 crises desde 1790 (OLIVEIRA, 2009), mas a necessidade de abarcar várias fontes de conhecimento no estudo de desenvolvimento urbano torna o reconhecimento da crise mais difícil. Especificamente na questão das cidades, urbanistas e engenheiros de transporte vivem às turras tentando impor, respectivamente, as ciências humanas e as exatas como preponderante. Entre as correntes determinantes, os EUA pensaram em cidades que deveriam atender aos automóveis e a Europa o inverso. Os caminhos antagônicos percorridos pelos EUA e Europa nos últimos anos na escolha da mobilidade e os diferentes resultados justificam uma investigação específica.

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A CIDADE DOS BONDES – UMA NOVA MOBILIDADE PARA UMA NOVA CIDADE

NELSON DANTAS FILHO

ANALISTA DE TARIFAS E CUSTOS

GERÊNCIA DE PLANEJAMENTO DA MOBILIDADE - BHTRANS

1. Introdução

Os transportes sempre foram pensados como um serviço ofertado para atender

uma demanda específica. Isso valia tanto para a circulação de automóveis quanto para o

transporte coletivo, inicialmente usado para atender o transporte de trabalhadores

evoluindo nas grandes cidades para uma rede complexa de transporte público urbano.

Hoje, é impensável uma grande cidade sem essa rede sobre responsabilidade de

profissionais de diversas formações.

Se existe essa transversalidade de conhecimento é porque, hoje existe um

reconhecimento que a política pública de transportes é uma ferramenta da mobilidade

sustentável e, devido à intersetorialidade, uma ferramenta estratégica para que a cidade

possa alcançar suas metas de desenvolvimento urbano e de qualidade de vida. Assim, o

alcance das medidas de transporte em desenvolvimento urbano, meio ambiente, saúde...

não é mais, apenas, um sub-produto, passando a incorporar o próprio corpo do problema.

Sistemas econômicos, de desenvolvimento regional, urbano, tecnológico, de

gestão estão em constante oscilação, gerando crises, e a análise compartimentada

tradicionalmente utilizada não têm dado conta da velocidade da evolução dos problemas.

Entender esses ciclos e incluí-los na modelagem dos problemas faz parte do profissional

contemporâneo.

Essa alternância de sistemas não é uma novidade, apenas no Sistema de Mercado

foram registradas 46 crises desde 1790 (OLIVEIRA, 2009), mas a necessidade de abarcar

várias fontes de conhecimento no estudo de desenvolvimento urbano torna o

reconhecimento da crise mais difícil.

Especificamente na questão das cidades, urbanistas e engenheiros de transporte

vivem às turras tentando impor, respectivamente, as ciências humanas e as exatas como

preponderante. Entre as correntes determinantes, os EUA pensaram em cidades que

deveriam atender aos automóveis e a Europa o inverso. Os caminhos antagônicos

percorridos pelos EUA e Europa nos últimos anos na escolha da mobilidade e os

diferentes resultados justificam uma investigação específica.

A inclusão de metas ambientais faz parte de uma preocupação mundial e já está

incorporado na rotina das modelagens. Na América Latina, incluir a redução da violência

nas metas dos problemas de transporte deverá fazer parte do tomador de decisão

socialmente responsável.

A partir da ascensão da Inglaterra como grande império e a primeira revolução

industrial, a sociedade ocidental entra naquilo que Galbraith cita como a “Era dos

Engenheiros”, onde a disponibilidade das máquinas a vapor e elétricas que

disponibilizaram as ferrovias, os bondes e metrôs ajudaram a formatar a cidade industrial,

ou a cidade moderna (BETING, 2009). É a partir dela que o urbano se consolida na

memória.

Paralelamente, Nikolai Kondratieff (1892-1938) afirma que os ciclos de

investimento na infra-estrutura de transporte podem ser observados na retrospectiva

histórica, na qual longos ciclos do sistema capitalista resultam, na sua expansão, de

sólidos investimentos em infra-estrutura e na retração de um processo de depreciação

(DAVID e STEPHAN, 2007).

No início do século XX as principais cidades do mundo possuíam uma expressiva

rede de Veículos Leves sobre Trilhos, ou VLT, também denominado “eléctrico” em

Portugal e Bonde no Brasil. Belo Horizonte teve uma rede de 75 km de bonde, São Paulo

mais de 300 km. e o Rio de Janeiro além de ter sido uma das primeiras cidades a

implantar o bonde teve uma das mais expressiva redes de todo o mundo (MORRISON,

1996).

É nesse contexto, que a questão do espaço e da memória é acrescentada ao

enfoque tradicional do urbanismo e dos transportes, visando um resgate da identidade e

somando esforços no combate a violência. Como proposta, sugerimos o resgate simbólico

das regiões impactadas pelo bonde, e que sofreram uma descontinuidade de

investimentos provocada pela especulação imobiliária, tanto nos projetos de cidades

policêntricas, propostos pelos urbanistas, quanto nos projetos de gestão de demanda,

propostos pelos engenheiros de transporte.

2. Cultura Urbana

A partir do Código de Hamurabi e com grande contribuição de civilizações como a

grega os conceitos de urbanidade e civilidade passaram a fazer parte da tradição do

que é viver nas grandes cidades e também do que é viver em sociedade.

2.1. Urbanidade

A urbanidade é a virtude presente naquele que habita a urbe. Nos dicionários pode

aparece como: delicadeza requintada, observação das boas maneiras no relacionamento

com os outros, acompanhadas geralmente de finura e elegância na linguagem, distinção

no porte, nas atitudes. Deve-se entender esta acepção de urbanidade à luz de uma

ancestral oposição entre a cidade e a ruralidade, entre a cidade e a barbárie. As

qualidades inerentes a esta virtude evoluiram para qualidades essencialmente sociais, em

que a ética e a política foram eclipsadas por uma espécie de esteticismo social. Em todo o

caso, a urbanidade marcaria a diferença entre o homem educado, culto e iniciado no

complexo código de praxes sociais e o restante da humanidade, não necessariamente

rural, mas seguramente menos sofisticada e culta (AFONSO, 2006).

O urbano também se associa ao coletivo. Manifestações políticas e artísticas são

essencialmente públicas. Elas só existem se forem absorvidas pela coletividade, pelo

público. E o artista é o primeiro indivíduo. A modernidade na arte fez-se justamente no

sentido da descoberta do indivíduo, através de um movimento de rebelião persistente,

apesar de hoje uma peculiar serenidade ter invadido a arte. Os ismos foram ordeiramente

conduzidos aos museus e aos catálogos dos colecionadores. A banca oferece pacotes de

investimento em arte, as grandes empresas contratam gestores para as suas coleções de

arte e os estados têm programas de apoio à produção e divulgação das artes.

Paradoxalmente, nada disto parece comprometer o culto da criatividade individual.

Ou, se compromete, parece, pelo menos, não incomodar ninguém. É óbvio que a arte

mudou, bem como a sua função e representação social. Mas não foi a única: a sociedade

também mudou, seguindo a direção que a arte de uma forma pioneira havia apontado, ou

seja, a individualização. E aqui também encontramos o mesmo paradoxo: uma sociedade

de consumo massificada aparenta ser compatível com o culto do indivíduo.

2.2. Civilidade

Civil vem do latim civile, que designava o habitante da cidade civitate. Quando a

humanidade se defrontou com o raciocínio, logo com a inteligência, e realmente teve a

consciência do "Eu", houve a necessidade do respeito mútuo, do respeito ao outro.

Começou então a codificação de civilidade, isto é, regras de convívio social que no início

eram somente de respeito do inferior para com seu superior, hierárquico ou sexual, como

nos animais irracionais.

Iniciou-se então a codificação de normas e regras de convívio social e de conduta,

sendo impostas de modo empírico, pela tentativa e erro; os preceitos de civilidade, que

eram passados de forma verbal, passaram a ser codificados e seguidos, pois o convívio

em sociedade assim o exigiu.

Com o avançar do tempo e o desenvolvimento social, a vida em grupo passa a

exigir uma organização formal que discipline a atividade dos indivíduos, proporcione

condições de equilíbrio a suas relações e assegure a distribuição e a posse de seus bens.

Foi no direito romano que, pela primeira vez, as normas do convívio social se dissociaram

das noções religiosas e formaram um complexo de leis codificado, de caráter prático e

aplicação sistemática, esta baseada no respeito mútuo, pois o homem, por natureza, é

moral, racional e social, e a lei facilita o desenvolvimento dessas qualidades inatas, e esta

deve seguir à ética, e principalmente ao respeito a outrem. E assim sucessivamente

Sérgio Buarque de Holanda consagrou a expressão homem cordial discorrendo

sobre cordialidade e civilidade, atraso e modernidade, tradição e renovação, privado e

público. Segundo Buarque de Holanda, a definição de civilidade é proporcional à ética, à

modernidade, à renovação, à educação, pois o indivíduo que tem como prerrogativas a

civilidade é, e deve ser, cordial, ético e principalmente educado, tanto nas ações quanto

no comportamento. Os códigos morais regem a conduta dos membros de uma

comunidade, de acordo com princípios de conveniência geral, para garantir a integridade

do grupo, a convivência pacífica e o bem-estar dos indivíduos que o constituem. Assim, o

conceito de pessoa moral se aplica apenas ao sujeito enquanto parte de uma

coletividade. Portanto, moral coaduna com ética e respeito, e estes são a base de

qualquer grupo civilizado (ROCHA, 2004).

Fernando Gallo (2009) em crônica filosofa que o grau de civilidade de uma cidade

pode ser medido pela largura de suas calçadas. “A largura de suas calçadas, quem

poderia imaginar?, e no entanto faz tanto sentido, mais espaço para as pessoas, menos

para as máquinas, abrir lugares para os calçados, que barulho não fazem, ou fazem

menos do que motores, engrenagens, e toda sorte de componentes ruidosos que se

põem a invadir os nossos ouvidos, mal não haverá em mais dignidade ao trânsito dos

pedestres, tão alijados do processo de ir e vir nessas calçadas estreitas, a desviar uns

dos outros, dos postes, a transitar pelo meio-fio, o risco de cair na pista e lhe passarem as

rodas por cima a qualquer momento” (GALLO, 2009).

E continua: “A largura das calçadas deveria integrar um índice de civilidade, mais

ou menos nos moldes desse que chamamos IDH, utilizado pelas Nações Unidas para

auferir o desenvolvimento humano nos países, (alvissareiro que pensadores bem

intencionados tenham conseguido estabelecer alguma humanidade e ciência nisso que

temos chamado economia, e que trata tudo tão vagamente, o mercado, o crescimento e

tantas outras palavras que de exatas nada têm), sem fórmulas matemáticas nem

metodologias tão acuradas, vamos nos valer apenas de nossa observância, nossa

vivência, disso que alguns chamarão empirismo” (GALLO, 2009).

Não contente com a largura da calçada ele vaticina outras medidas. “Estando certo

que o ponto de partida de nosso índice serão as calçadas, podemos passar sem grande

dificuldade para os outros componentes, mais difícil é começar, Pois passaremos logo às

nossas outras proposituras: todos os assentos do transporte público serão preferenciais,

assim tentaremos corrigir o bem intencionado erro do cidadão que instituiu os bancos

exclusivos, e acabou por excluir dos idosos, das grávidas, das pessoas com deficiência e

congêneres a preferência que lhes devemos em todo e qualquer assento (...)

Gostaríamos de ver dobrado o tempo em que permanecem abertos os faróis de

pedestres, mal eles têm permitido que nós cruzemos as ruas, que dirá os mais

sedentários, as velhinhas, as pessoas com restrição de mobilidade, essas gentes para

quem pouco serve esse sistema de governo a que nos habituamos chamar de

democracia, talvez devêssemos chamá-lo oligocracia, pouco tem servido à maioria, que

dirá às minorias (...) talvez esteja o leitor a pensar em como pensamos implementar todas

as proposições apresentadas, se por força da lei, ao que recordaremos tratar-se de

civilidade, civilidade que se faz com bom senso, gentileza, generosidade e outros que

andam por aí escanteados, mas que nunca se fizeram por força da lei, senão pela

bondade humana” (GALLO, 2009).

2.3. Ruptura

A necessidade de se criar um Índice de Civilidade é contemporânea porque existe

a nítida impressão de perda de algo inerente á cidade. Realmente, os indicadores de

violência identificam as nossas grandes cidades como análogas a regiões em conflito ou

guerra. “Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se

encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as

nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e

minúsculo corpo humano”. Essa narrativa aparentemente tão bucólica faz parte de um

dos mais fortes textos sobre a descontinuidade do tempo histórico (BENJAMIN, 1936) e o

fim da narrativa provocada pela grande guerra mundial

Continua ele “Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência

estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de

todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que

nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também

a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. Com a

guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da

guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais

ricos, sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois,

na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência

transmitida de boca em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve

experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra

de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra

de material e a experiência ética pelos governantes”(BENJAMIM, 1936).

Da mesma maneira que se constrói a civilidade e a urbanidade paralelamente à

construção da cidade, a ruptura da construção histórica quebra a lógica de

desenvolvimento urbano. Casos de decadência extrema nas cidades abre espaço para o

alojamento da barbárie que tanto pode desaguar na violência doméstica generalizada

quanto em, casos limites, pode levar a uma situação de guerra civil. A perda da narrativa

é uma das marcas desse estado.

A violência assume uma posição central pela proporção assombrosa que ocorre na

América Latina. Com apenas 14% da população mundial, responde por 42% dos

homicídios por arma de fogo em todo o mundo. No caso do Brasil, os números são

alarmantes: com menos de 3% da população mundial, concentra 11% das mortes por

armas de fogo ocorridas anualmente em todo o mundo. (PÉREZ, 2008).

Esse cenário de guerra não tem paralelo no mundo. É fruto de uma crise profunda

nas instituições que não conseguem resolver os problemas contemporâneos, crise

entendida como a incapacidade do sistema atual de dar respostas e pela ausência de um

novo sistema. Crise de civilidade.

Em estudo sobre a violência na Colômbia é nítida a importância da perda de

identidade na perpetuação da violência. O trabalho de resgate da dignidade e na

promoção da cidadania das famílias camponesas deslocadas (desplazadas) de suas

regiões de origem pela violência política, pela imposição do crime organizado, por declínio

econômico está começando tardiamente na América Latina. Parte do trabalho com a

população inscreve-se numa linha pedagógica de orientação psicanalítica centrada na

crença de que a contribuição para a melhoria das condições de vida não é possível, sem

antes uma “reparação moral”, por meio da elaboração do “duelo” das múltiplas perdas

causadas pela violência e pelo processo de êxodo de suas regiões para o meio urbano

(FRAGA, 2006).

Se tivéssemos que apontar apenas um elemento – comum e o suficientemente

forte – para definir cidades brasileiras histórica e regionalmente distintas, este seria sem

dúvida a existência (e permanência no tempo) de contrastes profundos entre condições

urbanas radicalmente distintas convivendo, muitas vezes conflitando no interior da mesma

cidade (ROLNIK, 1999). Importante lembrar que os jovens são vítimas e algozes e sua

entrada nos grupos armados ocorre por diferentes fatores, tais como: restrito acesso aos

bens de consumo; a falta de alternativas e a falta de identidade (PÉREZ, 2009).

E é falta de identidade, falta de memória uma das características das grandes

cidades americanas. Especificamente, nos transportes públicos urbanos, que ajudaram a

formatar a cidade, perdemos os bondes, perdemos os trólebus, perdemos os trens de

subúrbio. Em cada estação, o que era local de convergência, deixa de ser. O que era

local de encontro, passa a ser um local de passagem, ou um não lugar (MAIA, 2009).

3. Conformação Urbana

Numa sociedade regulada como a nossa, a cidade tem a conformação de dois

vetores principais. O primeiro, de atribuição do Poder Público no uso de instrumentos de

regulação da ocupação do solo como o Plano Diretor e a Lei de Uso e Ocupação do Solo,

além dos arranjos produtivos visando a implantação da infra-estrutura. Assim, as redes

elétricas, de iluminação, de saneamento, de comunicação e de transporte foram

implantadas. A princípio, representa o interesse da coletividade, é função da

disponibilidade e do custo de implantação da infra-estrutura, representa o conjunto de

técnicas e de conhecimento disponível, bem como a mediação política dos diversos

interesses manifestos.

O segundo vetor representa as forças econômicas e os seus interesses. Deveriam

ser apenas parte da força considerada no planejamento público. No entanto, hoje, são

essas forças que têm moldado a conformação das cidades.

3.1. Cidade Industrial

“Foi apenas na segunda metade dos anos 50 (...) que a elite empresarial se

mostrou capaz de elaborar um projeto político de dominação centrado na industrialização.

É nesse momento que essa elite se instaura como sujeito político condutor de uma

determinada ordenação da sociedade. Tal ordenação, baseada no princípio da

racionalidade e pensada inicialmente dentro do espaço fabril para garantir o aumento da

produtividade, foi aos poucos extrapolada para toda a sociedade. É assim que, neste

momento, no Brasil, não só a fábrica, mas a cidade, a casa, a rua e os meios de

transporte passam a sofrer intervenções que pretendem superar uma visão do mundo

considerada ultrapassada, na medida em que não condiz com o ritmo do desenvolvimento

desejado. A „racionalidade‟ passa a orientar as políticas públicas e também a iniciativa

privada, no sentindo da construção do equipamento necessário para que o ritmo do

progresso se acelere...” (PIMENTEL, 1993).

A cidade racional, industrial, moderna apresenta um jogo de luzes e sombras ao

não contemplar o ser humano, o seu usuário no desenho final. As dicotomias

apresentadas de Centro/Periferia, Urbano/Rural, a dimensão humana/da máquina

mostram como as cidades perderam o lugar da representação humana plena.

3.2. Dicotomia: Centro – Periferia

A exclusão nas grandes cidades e a formação de uma periferia urbana pode ser

fruto, principalmente, do êxodo rural, ou da exclusão ambiental, ou vítimas da degradação

de regiões urbanas inteiras.

A população que não encontra trabalho nessa agricultura capitalista como

assalariada permanece em terras de inferior qualidade ou assume a tarefa de ir abrindo

novas terras que serão oportunamente incorporadas ao setor capitalista.” (FURTADO,

1986). Portanto, a expansão da fronteira agrícola em áreas de floresta tem sido usada

historicamente como válvula de escape para acomodar esse excedente populacional.

A heterogeneidade estrutural é fruto do atraso da base social na qual se

estabeleceu o capitalismo na América Latina e do caráter oligopolista imposto pelo padrão

(internacionalizado) de produção adotado. Este, portanto, estava apto a funcionar com

elevado grau de exclusão social porque era uma condição de sua formação. A literatura

passada deu grande ênfase à exclusão vista pelos seus aspectos estritamente

econômicos (renda e emprego), mas pouco se disse sobre condições materiais de vida

(SOTO, 2008).

A noção de subúrbio contém uma nova concepção de espaço, uma nova

sociabilidade, onde ocorre a ruptura e a transição para a modernidade da cidade. O

subúrbio representa o ser dividido entre o urbano e o propriamente rural. Um conceito que

não teve até hoje relevância no mundo acadêmico e foi substituído pela noção de periferia

que é seu contrário. Na periferia se concretiza a subordinação da cidade e da urbanização

à renda da terra, a periferia é a negação das promessas transformadoras,

emancipadoras, civilizadoras e até revolucionárias do urbano, do modo de vida urbano e

da urbanização (SOTO, 2008).

A crise social atual obriga, porém, que essas outras manifestações do processo de

exclusão e marginalização sejam incluídas na análise: a violência urbana, os conflitos de

terra e a exclusão ambiental são as outras faces do desenvolvimento excludente. A

revalidação da análise centro-periferia exige a inclusão desses outros elementos, visto

que o objetivo fundamental não é meramente o crescimento econômico, mas o

desenvolvimento sustentável. Essa reconfiguração não pode ser baseada na dicotomia

matérias primas versus produtos manufaturados, mas sim na capacidade endógena de

desenvolvimento tecnológico. Isso indica que abordagens multidisciplinares passam a ser

essenciais para a concretização do aumento de equidade e outras propostas de

desenvolvimento. O passado nos mostrou que a solução dos problemas sociais não vem

necessariamente a reboque das soluções econômicas, e a questão ambiental é, sem

dúvida, um dos destaques entre os novos temas a serem incluídos no núcleo do debate

sobre desenvolvimento (YOUNG e LUSTOSA, 2003).

O mais conhecido padrão de segregação da metrópole brasileira continua sendo o

do centro x periferia; sendo o centro dotado da maioria dos serviços urbanos, públicos e

privados, e ocupado pelas classes de mais alta renda; e a periferia sub-equipada e

longínqua, ocupada predominantemente pelos excluídos, o espaço atua como um

mecanismo de exclusão e a estruturação espacial básica das metrópoles brasileiras

demonstra o papel decisivo que a acessibilidade ao centro e o transporte do ser humano

desempenham na estruturação intra-urbana (VILLAÇA, 2001).

3.3. Cidades pós-modernas

A cidade do século XXI já está desenhada cabendo ao urbanista a formulação de

estratégias de intervenção nessa cidade, adequando-a e conferindo-lhe novas qualidades

que correspondem a novos desejos sociais.

“A cidade radioconcêntrica industrial faliu. Ela molesta os homens impondo as

circulações quotidianas, mecânicas e frenéticas, e determinando uma mistura

congestionada dos locais de trabalho e dos locais de habitação; cinturões sucessivos e

sufocantes, interpenetrando-se como engrenagens, estabelecimentos industriais e bairros

de comércio, oficinas e subúrbios, subúrbios próximos e distantes” (GOMES, 1996).

A cidade pós-moderna é fluida como suas definições, por exemplo: “é onde habita

o sujeito descentrado, que na maioria das vezes perde a orientação espacial num

hiperespaço em que tudo (pessoas, objetos, idéias...) está fora de lugar. Nela, o velho

„Ford preto‟ cedeu lugar a inúmeros outros tipos e cores que circulam por suas ruas

causando extraordinários congestionamentos e poluição, e o espetáculo fica por conta

dos luminosos com propagandas de/para todos os tipos e gostos, que muitas vezes

geram a chamada poluição visual, mas sempre forçam o consumismo”. (SIQUEIRA, 2003)

Lembra do "abaixamento de faróis”, pois, na rapidez que move as vidas, ninguém

quer comprometimento com o outro, por isso desvia-lhe o olhar. Nestas andanças, as

inúmeras tribos desfilam um empório de estilos e códigos sem nenhuma relação,

abençoados pela liberdade e flexibilidade pós-modernas (AFONSO, 2006).

Assim, nos labirintos da cidade pós-moderna encontramos contradições bastante

acentuadas entre seus habitantes, entre crescimento e qualidade de vida, e entre o

planejamento e seus resultados; temos a "coincidência entre os extremos da ambição e

da degradação, das oposições entre as pessoas, dos contrastes entre os edifícios

construídos ontem e transformados já hoje, em caixotes do lixo e das erupções urbanas

do dia que barram os céus". Portanto, estes labirintos representam o fluxo e a transição

constantes, resultado da obsolescência de todas as coisas, do impacto das novas

tecnologias e das transformações ecológicas, mas principalmente da afluência de

indivíduos que carregam consigo conhecimentos, idéias e crenças as mais variadas.

A cidade pós-moderna pode ser o espaço das desigualdades, mas também pode

ser da liberdade; esta contradição, além da política, passa pela escolha de ações entre

arquitetos, engenheiros, economistas, educadores, geógrafos, antropólogos e sociológos.

Suas ações isoladas, continuarão colaborando para aumentar o espaço das

desigualdades, e então, poderemos dizer que a cidade é uma paisagem para ser

apreciada em preto e branco. Porém o desenvolvimento de ações multidisciplinares,

somadas à efetivas decisões do poder público (em torno das políticas sociais), podem

definir um espaço da liberdade. Quando esta for a escolha, os habitantes poderão dizer

que a cidade pós-moderna é uma paisagem que vale apreciar, e um espaço muito bom de

se viver, mas essa já será a cidade pós-pós-moderna (AFONSO, 2006).

Segundo os novos paradigmas, de cujo expoente máximo talvez seja o que

apresenta Phillipe Nora, no seu livro Os Lugares da Memória, a história de um povo ou de

uma comunidade ou de uma nação, já não reside na sua oralidade e nem já está, apenas,

centrada nos depositários clássicos que a emitem (museus, monumentos…); a

historicidade, como sistema de percepção da história, está presente em construções

sociais. Deste modo, as memórias coletivas passam a ser sinônimo de representações

simbólicas coletivas que trazem com ela uma dimensão histórica de inestimável valor.

Phillipe Nora, descentraliza assim os “instrumentos” de apreensão e percepção histórica.

Ao democratizar as perspectivas dos circuitos da historiografia e os determinantes de

apreensão histórica, E, desta feita, pulveriza as cidades de vários artefatos tornados

legítimos depositários e emissores da história (AFONSO, 2006).

Em oposição a cidade moderna surge a cidade liberal, democrata, procedural. O

que deveria ser uma cidade mediada, pactuada acabou por gerar uma cidade ineficiente

com grande débito ambiental e social, onde a informação assimétrica mantém a uma nova

elite sua apropriação.

Se o excesso de regulamentação gerou cidades especializadas e caras havia a

expectativa da desregulamentação baseada na teoria da destruição criativa (veja capítulo

4) gerar cidades econômicas, o que não ocorreu em função da mão pesada do poder

econômico e sua obsessão de atuar sempre em situação de monopólio.

3.4. Falsa dicotomia: Urbano – Rural

Nos tempos que correm, a urbanidade entendida nestes termos poderá ser um

anacronismo pela simples motivo que, de uma maneira ou de outra, todos nós somos

urbanos: uns, a maioria, porque residem nas cidades ou nas suas periferias; outros, a

minoria, porque apesar de residirem no espaço rural não possuem qualquer marca de

distinção relevante que os demarque do resto. O êxodo rural, a concentração dos centros

de decisão política - bem como dos pólos econômicos - nas cidades, a industrialização da

agricultura e a turistificação da paisagem, são algumas das causas que levaram à

decadência deste espaço, que hoje em dia é mais tido como uma extensão do espaço

urbano (reserva agrícola e reserva ecológica) do que uma realidade social e cultural

específica. É na cidade que encontramos a nossa humanidade atual, é aí que se jogam

as decisões essenciais da nossa história, onde por nós são assumidas e onde de novo

são questionadas.

Portanto, o conceito urbanidade, já não se refere a uma qualidade social light nem

ao oposto da ruralidade. Refiro-me antes a uma virtude essencial que define o homem

atual na sua condição urbana. De certo modo, trata-se, em parte, da civitas romana, a

qualidade daquele que é de Roma, só que, neste caso, nada há fora de Roma. Esta

virtude é em simultâneo uma virtude social, cultural e política. Cultura e política não são

duas dimensões que se excluam mutuamente, isto apesar do discurso crítico e

apocalíptico anti-poder da arte e apesar do filistinismo do poder político. Tal como o

tempo tratou de dissolver as pedras das velhas cidades, também tratou de revogar a

ordem tradicional da coisa comum (AFONSO, 2006).

O processo de “modernização rural” é extremamente complexo e não pode ser

entendido simplesmente como o “fim da agricultura” ou o “fim do rural”. A modernização

da sociedade nos espaços locais/rurais tem como fundamento a crescente “paridade

social”, isto é, a similitude entre as condições de vida das populações que vivem nas

cidades e no meio rural e a também crescente disponibilidade, no meio rural, daquilo que

ainda é definido como o padrão de “conforto urbano”. O meio rural espelha hoje o perfil

social de cada uma das sociedades modernas avançadas, nele predominando, conforme

o caso, a classe média, os operários, ou ainda certas categorias especiais, tais como os

aposentados. Se as relações com a vida urbana não permitem que se fale mais em

situações de isolamento e oposição, parece evidente que a residência no meio rural

expressa cada vez mais uma escolha que não é outra senão, uma escolha por um certo

modo de vida (MENDRAS, 2004),.

As novas e múltiplas faces do rural não podem ser vistas como obra acabada. Está

em curso uma nova visão do rural, que propõe uma nova concepção das atividades

produtivas, especialmente daquelas ligadas à agropecuária, e uma igualmente nova

percepção do rural como patrimônio a ser usufruído e a ser preservado (BAUDEL, 2000).

3.5. Dimensão Humana

É nas cidades que se dá a emancipação dos indivíduos, onde a urbanidade,

condição urbana da humanidade, se edifica sobre uma ruptura com o tempo circular e

com a cultura da iteração que caracterizavam a vivência da temporalidade pré-urbana.

Mais do que uma circunstância econômica, social e arquitetônica, a urbanidade é a

temporalidade da comunidade percepcionada do ponto de vista do indivíduo. O tempo

das urbes é linear, mas segmentado e retalhado pela atividade econômica e social que,

apesar de tudo, possibilita um não-tempo destinado ao lazer e à intimidade, oferecendo

as condições necessárias à criatividade e à exploração de si. As sociedades rurais

celebram a repetição, ritualizando a vivência coletiva do ciclo, ao passo que as

sociedades urbanas aderiram a um tempo indefinido, sem um sentido óbvio e que se

caracteriza por um acumular de vestígios, de um lado, e, do outro, por uma necessidade

de superação. O tempo é como uma estrada que se nos foge debaixo dos pés. As

cidades são comunidades de indivíduos em trânsito no tempo. É então que surge a

questão da memória e é então que surgem as narrativas colectivas, em primeiro lugar,

logo seguidas dos relatos pessoais à medida que a escrita se vulgariza, à medida que as

cidades se expandem. A par da cidade dos edifícios e das ruas, vai-se edificando uma

cidade de papel. Numa residem os cidadãos, noutra as memórias e os desejos. São

cidades paralelas.

A cidade do futuro, a cidade utópica divide suas possibilidades em quatro: estão

“antes da História”, “do lado de fora da História”, “dentro da História” ou “após a História”.

Na Inglaterra pré-industrial a utopia que antecede a História remete ao Jardim do Éden, a

uma Idade de Ouro que antecede a história da humanidade, conforme descrita por

Hesíodo em Os trabalhos e os dias. Ou seja, uma época sem vicissitudes nem

necessidades, em que o homem não necessitaria do suor de sua fronte para obter seu

sustento. A utopia “fora da História” faz referência a todas as narrativas que antecedem o

final do século XVIII, quando, como visto, concebe-se no Novo Mundo a localização da

cidade utópica. As utopias de “após a História” são similares à empreendida por Le

Corbusier e outros seguidores do movimento moderno, em que a idéia de um estilo e de

uma prática internacionalizados ultrapassaria as fronteiras geográficas e temporais, em

busca de uma realidade total para a raça humana (GEORGES, 1994).

3.6. Especulação Imobiliária

Normalmente é compreendida como especulação imobiliária a prática de lotear e

ocupar áreas distantes da cidade com o intuito de levar a estas áreas infra-estrutura

básica, valorizando, consequentemente as áreas intermediárias, que posteriormente

seriam vendidas por um preço superior ao que antes seria pedido por elas numa outra

situação hipotética. Ou ainda, quando o especulador age através da retenção de terrenos

para vender posteriormente a sua valorização com lucros maiores.

A pressão por mais espaço é o que explica os ganhos desses especuladores

urbanos e ela existe pelo crescimento da cidade; pela elevação da renda e demanda por

imóveis maiores e pela migração de regiões desvalorizadas o que acaba sempre

sacrificando as camadas mais pobres da sociedade.

A atuação do Estado tem se voltado para a ampliação de sua função normativa e

de controle, estabelecendo novos procedimentos, revendo e atualizando sua legislação.

Mas essa atuação se realiza sem que se interfira nas condições de reprodução social em

termos amplos. Segundo Castells, em uma sociedade de classes o "Estado age de

acordo com as relações de força entre as classes e grupos sociais, geralmente em favor

da fração hegemônica das classes dominantes" (COSTA, 2008).

A atividade imobiliária é considerada, tradicionalmente, um setor do capital de

baixa tecnologia, pouco expressivo em termos de participação da vanguarda do processo

de acumulação, porém de grande relevância para a canalização de poupanças e

investimentos privados dispersos. Apesar de trazer ao debate relações sociais arcaicas

associadas ao rentismo e à propriedade fundiária, ambos compreendidos, no quadro

conceitual da economia política, como um entrave à fluidez da acumulação capitalista, o

capital imobiliário vem há décadas operando em condições vantajosas diante de outros

setores da economia, à medida que consegue influir em ganhos decorrentes dos

mecanismos formadores da renda da terra (COSTA, 2008).

Uma política urbana que permita resgatar áreas degradadas irá impactar

positivamente os pequenos proprietários de terra urbano e se, além, tiver o alcance de

uma nova centralidade essa política estará se voltando contra as forças hegemônicas e

socializando a valorização da terra.

4. Uma nova cultura urbana

Se a cidade moderna foi moldada pela revolução industrial e seus engenhos, a

cidade pós-industrial é fruto da era do consumidor, do mercado, como será a nova

cidade? Galbraith propõe que será uma cidade de artistas (BETING, 2009). Essa cidade

promoverá mais tempo para seus moradores, tempo para encontros, para contemplação,

produzindo e difundindo cultura. Algumas pistas foram levantadas.

Muito do conhecimento que formatará a cidade desse novo século já está

consolidado no que se denomina estado-da-arte, ou, a soma de conhecimento produzido

e aceito nas várias áreas que afetam a sua formatação, e de grande disseminação nos

centros de pesquisa. O que tem diferenciado a sua implantação nas diversas sociedades

é o estado-da-prática e a atomização do conhecimento vem dificultando o diálogo entre

atores tão díspares e que perderam a continuidade no processo de planejamento, projeto,

implantação e operação da mobilidade urbana. Essa descontinuidade do poder público

somada a uma democratização tardia, mudança de tecnologia, mudança de concepção

urbana, de paradigma econômico... torna a crise contínua e arraigada.

Uma provocação sobre essa nova cidade se baseia da dialética de Hegel, também

trabalhado por Marx, apresenta a tese como uma afirmação ou situação inicialmente

dada. A antítese é uma oposição a essa tese. Do conflito entre tese e antítese surge a

síntese, que é uma situação nova que carrega dentro de si elementos resultantes desse

embate. A síntese, então, torna-se uma nova tese, que contrasta com uma nova antítese

gerando uma nova síntese, em um processo em cadeia infinito.

Num enfoque dialético marxista, onde tudo se relaciona, tudo se transforma, ocorre

a passagem da quantidade à qualidade ou mudança qualitativa e uma luta dos contrários

temos elementos que, na história recente, mostra a cidade industrial, a cidade moderna

como tese e, sua negação, a cidade pós-moderna como antítese e indicadores dessa

nova cidade, dessa nova síntese. Aqui, relatamos algumas novas concepções que podem

ajudar a consolidar cidades melhores.

4.1 Mudanças em paradigmas contemporâneo

A - Econômico

Segundo Galbraith, a sociedade industrial era moldada pelos engenheiros, pelos

detentores do Know-how, do saber fazer. E seus engenhos foram criando a cidade

industrial, moderna, a cidade dos bondes, dos carros, dos elevadores, das escadas

rolantes, do concreto armado. Apoderando-se dessas tecnologias surge a cidade

modernista.

A profusão da tecnologia e, consequentemente, do seu uso impõe novos desafios.

A sofisticação dos mercados, a bolsa de valores, mercadorias e seus derivativos

financeiros, a exigência de fazer melhor e mais adequado nos leva a uma nova fase, a

dos economistas. Lester Thurow, estrategista do MIT fez uma outra leitura dessa

mudança, mas com o mesmo resultado prático. Ele justifica uma mudança de era com a

mudança de poder: das empresas (nações?) que ditavam o mercado por que só ela sabia

fazer, denominada “Era do Produtor” para uma nova era onde várias empresas

disputavam o mercado e o consumidor é quem ditava as regras, a “Era do Consumidor”

(THUROW, 1993).

Essa apologia ao mercado encontra seu ponto máximo com a teoria da Destruição

Criativa de Schumpeter, por sua vez inspirada em Nikolai Kondratieff, onde o poder

criativo do empreendedor iria destruir as estruturas existentes e colocar no lugar uma

mais eficiente. Nessa crença libertária do mercado surge a cidade pós-moderna, livre das

amarras da cidade industrial, ela convida todos a participarem da sua formatação, de uma

cidade que apresenta desafios e labirintos, mas que abre a possibilidade de uma nova

leitura, a leitura individual. São as cidades de papel que trata dos relatos pessoais após

as narrativas coletivas à medida que a escrita se vulgariza. Entre os desafios impostos

por essa “cidade do consumidor” está a tentativa de romper a dicotomia centro-periferia.

Se as cidades pós-moderna nascem com a missão de romper com a cidade

opressora, tanto a radio-concêntrica industrial quanto a cidade moderna especializada e

compartimentada a resultante foi a criação de cidades confusas, feias, sem qualidade de

vida e ineficientes.

O livre mercado levado as últimas consequências consumiu espaço e mobilidade

de modo irresponsável, promovendo o consumo de casas de subúrbio e automóveis de

maneira insustentável. Já a irracionalidade de ocupação das forças de mercado se move

pelo gradiente da especulação imobiliária e o marketing fantasioso, em alguns bairros,

congelando e, em outros, explodindo demograficamente; relaxando fronteiras e criando

outras. Em economia, essa disfunção de mercado se chama assimetria de informação. E

a saída se chama North.

Douglas North é um economista americano, mas com vivência global que

ultimamente tem revolucionando tanto a economia quanto a ciência política com a sua

Nova Economia Institucional pela qual foi laureado com o Prêmio Nobel de Economia de

1993. De influência marxista, mas também do Schumpeter (aquele que se inspirou em

Nikolai Kondratieff) com a qual seus estudos tem confrontado, se baseia na comprovação

de que o desenvolvimento da sociedade está correlacionado com o desenvolvimento das

instituições. Thurow que avaliou as estruturas competitivas de EUA, Europa e Ásia

também sugeriu a importância competitiva de um “comando econômico”.

Essa cidade que se fortalece institucionalmente, cria uma cultura mais rica, uma

identidade maior também, ou por conta disso, evita uma quebra da narrativa, fenômeno

que ocorre, por exemplo, em ambientes de guerra.

Nos transportes públicos, a inflexão na curva de desenvolvimento na cidade

desenhada pelo Bonde provocou uma ruptura no desenvolvimento construído e

planejado em parceria entre o poder econômico e o poder público. O sucateamento dos

bondes nos Estados Unidos, provocado por interesses econômicos ligados à indústria

automobilística, gerou um forte problema de suprimento das peças de reposição do

principal fornecedor de tecnologia do Brasil (KLEIN, 1996). Caso contrário poderíamos

esperar que diversas cidades brasileiras tivessem sua mobilidade estruturada em

sistemas de bonde moderno. Especulativamente, é razoável imaginar que as forças que

atuaram no desmonte dos sistemas de bonde americano também atuaram na América

Latina com igual impacto.

B – Ambiental

A deterioração das condições de vida nas periferias dos centros urbanos e outros

locais de residência dos mais pobres pode ser vista, portanto, como a face ambiental do

processo excludente de desenvolvimento: não apenas a renda e a riqueza se

concentraram nas mãos das elites, mas também o direito a um ambiente saudável (como,

de modo geral, o acesso a outras formas de bem-estar – segurança, educação, serviços

de saúde). Assim, a industrialização não resolveu os problemas de pobreza e degradação

ambiental nos espaços urbanos a princípio identificados com a “modernidade”. Os

grandes acidentes ambientais passam a se concentrar cada vez mais nas áreas

metropolitanas, e a perda de qualidade de vida urbana (entendida em seu conceito mais

amplo) torna-se uma das características mais marcantes das cidades brasileiras (e latino-

americanas) no início do novo milênio.

Por fim, se a sociedade de consumo de massas fosse efetivamente estabelecida,

qual seria a pressão sobre recursos naturais? Qual será o tamanho dos engarrafamentos

nas metrópoles brasileiras quando todos tiverem acesso à aquisição de veículo próprio?

Isso quer dizer que a saída para uma sociedade mais justa exige, além de redistribuição

de renda e riqueza, a modificação nos padrões de consumo, onde o interesse coletivo

volte a ser privilegiado sobre o individual, e que a inserção do excluído seja por sua

cidadania, e não pelo seu poder aquisitivo.

4.2 Um maior equilíbrio regional

A partir da afirmação encontrada em “O Capital” de Karl Marx pode-se registrar a

incipiente preocupação com a desigualdade regional. “Marcam época, na história da

acumulação primitiva, todas as transformações que servem de alavanca à classe

capitalista em formação, sobretudo, aqueles deslocamentos de grandes massas

humanas, súbita e violentamente privadas de seus meios de subsistência e lançadas no

mercado de trabalho como levas de proletários destituídos de direitos”.

As mesmas forças que lutaram contra a mão-forte do planejamento do estado, a

crença no livre mercado, produziram o estado mínimo sem capacidade de regular as

forças gravitacionadas pelo capital, mas capaz de manter um estado assistencialista, por

vezes paternalista, orbitado por um sem número de interesses menores. A transferência à

sociedade, à iniciativa privada da produção de bens e serviços com grande eficiência e

menor custo para o consumidor era a crença dos proponentes do estado mínimo

(BRESSER, 1998). No entanto, foi a transferência do ato de planejar e mediar os

interesses da sociedade a grande disfunção do liberalismo.

Uma boa contribuição para o problema de equilíbrio regional vem do Ministério da

Integração trazendo para o estado-da-prática o conceito de “estagnação econômica” que

se incorpora ao conceito de “desigualdade regional” nas prioridades de investimento

compensatório (INTEGRAÇÃO, 2006). O conceito de estagnação usado no

desenvolvimento regional pode e deve ser incorporado ao desenvolvimento urbano e na

abordagem de não-lugares.

Os não-lugares é um conceito proposto por Marc Augé, antropólogo francês, para

designar um espaço de passagem incapaz de dar forma a qualquer tipo de identidade.

Para fundamentar este novo conceito, Marc Augé se utiliza de 3 figuras de excesso: a)

excesso de tempo por efeito da aceleração da história em que tudo se tornou

acontecimento e que, por haver tantos acontecimento, já nada é acontecimento e, por

isso, organizar o mundo a partir da categoria tempo deixou de fazer sentido; b) Excesso

de espaço por efeito da mobilidade de pessoas, bens, informações, imagens, o planeta se

ter encolhido, e sentirmo-nos implicados em tudo, mesmo nos lugares mais remotos e c)

Excesso de individualismo por efeito do enfraquecimento das referências coletivas, e

porque as singularidades (dos objetos, grupos) organizam cada vez mais a nossa relação

com o mundo (AUGÉ, 1994).

Augé define o lugar, enquanto espaço antropológico, como um espaço identitário,

relacional e histórico. O não-lugar será então um lugar que não é relacional, não é

identitário e não histórico. As auto-estradas, os aeroportos, as grande superfícies são

exemplos de não-lugares, mas também “campos de refugiados, campos de trânsito,

grandes espaços antes concebidos para a promoção do mundo operários e tornados

insensivelmente o espaço residual onde se encontram os sem abrigo e sem emprego de

origens diversas: por toda aparte espaços inqualificáveis, em termos de lugar, acolhem,

em princípio provisoriamente, aqueles que as necessidades do emprego, do desemprego,

da miséria, da guerra ou da intolerância constrangem à expatriação à urbanização do

pobre ou ao encarceramento” (AUGE, 1994).

Os não-lugares são povoados de “viajantes” ou “passantes” em trânsito. Viajam, solitários,

nesses espaços de ninguém. São não-lugares livres de identidades. No fundo, os não-

lugares revelam uma nova forma de viver o mundo. Mas o retorno ao lugar pode ser o

sonho dos que frequentam os não-lugares (AUGE, 1994).

Na construção dos espaços, dos desejos de moradia, as cidades esquecidas

passaram a ser um não-lugar no arquétipo do lugar dos sonhos. Da mesma maneira,

lugares que foram esquecidos pelos especuladores urbanos, os verdadeiros construtores

da cidade, se tornaram não-lugares urbanos e bairros esquecidos. Recentemente, o

processo de erosão urbana tem transformado até mesmo as áreas centrais em não-

lugares.

Um modelo interessante é a Criação do Índice de Cultura Urbana e que a ONGtrem

calculou um modelo para Transportes. A partir de um peso atribuído para cada modo de

transportes soma-se a diferença entre o tempo de implantação do primeiro e o último

sistema de cada cidade. No comparativo para a América Latina foi utilizado 5 sistemas:

bonde de tração animal; bonde de tração elétrica; chegada do trem regional; metrô e

trólebus. Usando esse ranking observa-se uma aplicação de recursos urbanos

incompatíveis com o rastro histórico, destacando as perdas de Rio de Janeiro, Salvador e

Recife (DANTAS, 2009).

4.3. Orçamento do tempo de deslocamento

As cidades são herdeiras das fortificações medievais que atraíram, para o entorno

dos castelos dos nobres, populações periféricas ao centro de decisões, gerando a

distinção pobreza/riqueza, incluídos/excluídos. Através dos séculos, as cidades vêm

perenizando esse modelo de separação econômica e social do binômio centro/periferia,

Também é perene o tempo que cada pessoa aloca em deslocamento dentro de um

orçamento de tempo diário, no caso de 1:30h e que vem desde o tempo do homem da

caverna (VANDERBILT, 2009).

4.4. Cidades Policêntricas

Herdeiras diretas das cidades da Idade Média, as cidades americanas cresceram

sobre o signo dessa concepção monocêntrica, com um centro urbano ao qual a periferia

se dirige para suprir suas demandas. Se havia semelhanças entre a cidade Européia e a

Americana até o início do séc. XX, a chegada do automóvel mudou radicalmente os dois

modelos. Enquanto na Europa a maioria das cidades tem um peso histórico e seus

centros foram preservados, na América a crença que o automóvel seria o meio de

transporte acabou alterando significativamente a ocupação e as viagens urbanas.

A possibilidade de acessar qualquer ponto da cidade dentro do orçamento de

tempo disponível pulverizou as viagens, atomizando as atividades e acabou por roubar a

competitividade do transporte público que precisa de grandes volumes para se viabilizar.

O contraponto dessa cidade atomizada é a cidade policêntrica, na qual cada bairro

tem seu centro, onde os cidadãos encontram o emprego, a escola, o posto de saúde, o

comércio, as casas de entretenimento e toda a infra-estrutura. O que anima essa nova

estrutura é a descentralização, pressuposto para a democracia, a cidadania e a eficiência.

Num primeiro momento o transporte individual seduz pela possibilidade do serviço

porta-a-porta e pelo conforto proporcionado, mas no segundo momento a baixa eficiência

de transporte provoca congestionamentos que exigem pesados investimentos em sistema

viários que resolvem até novos e maiores congestionamentos. A baixa eficiência

energética rouba competitividade da cidade e sua poluição rouba expectativa de vida da

sua população.

Isso explica o porquê do desenvolvimento europeu. Lá, a preservação do seu sítio

histórico exigiu pesado investimento em transporte público, principalmente ferroviário, e,

mais recentemente, em bicicletas, não por acaso, os dois modos de transporte mais

eficientes energeticamente. Como consequência, as cidades européias lideram o ranking

das cidades mais eficientes (MERCER, 2009).

Indiferente a essas questões, as cidades brasileiras promoveram a implantação de

Planos Diretores que promoviam a desconcentração da Área Central sem se preocupar

em adensar novas centralidades contribuindo assim para o fenômeno de Erosão Urbana

(JACOBS, 2000).

5. Uma nova mobilidade para uma nova cidade

Essa nova cidade, integrada e com qualidade de vida precisa de uma rede de

transportes que possa atender o novo pacto global de desejos de individualidade, de

eficiência, de resgate da memória e da identidade, além do compromisso ambiental. A

máxima de pensar global e agir local nunca esteve tão colada ao novo cidadão. A garantia

da eficiência e da inserção da urbe exige o estreitamento entre o estado-da-arte e o

estado-da-prática. A cidade começa a perder a inércia nefasta provocado pela

especulação imobiliária e exige a comunicação de outras funções urbanas. A violência

absurda que atinge as áreas deprimidas é o farol para uma atuação conjunta entre os

diversos saberes. Felizmente a mobilidade apresenta novas ferramentas.

5.1. Gestão da Demanda

A escolha do modo de transporte é a chave para essa ferramenta que promete

construir cidades vibrantes e amigáveis e está ligada a uma mudança de paradigma: não

mais se calcula a oferta para atender a demanda e sim gerenciar uma demanda que caiba

no transporte mais eficiente disponível. A Gestão da Demanda se utiliza, principalmente,

da lei de uso e ocupação do solo e dos conhecimentos sobre transporte para induzir uma

adequação da oferta à demanda e é base para o que se denomina desenvolvimento

orientado ao transporte de alta capacidade (Transit Oriented Development).

O conceito de TOD envolve políticas de promoção de uma maior densidade de

residências, postos de trabalho, lojas e serviços nas proximidades da rede de transporte

que se deseja desenvolver oferecendo facilidades de acesso ao sistema e um serviço de

alta qualidade. Tipicamente esse tipo de serviço é compacto, com uso misto do solo e

também oferece uma variedade de facilidades para pedestres e ciclistas através da

criação de parques e ruas projetadas segundo a ótica os pedestres (LOGIT, 2009).

O TOD não é um conceito que se aplica a qualquer situação. Ele varia de acordo com

a paisagem urbana, com a rede de transporte coletivo existente, com os tipos de política e

mecanismos de financiamento, além de vários outros fatores. Entretanto, os pontos em

comum encontrados nos projetos desenvolvidos ou em desenvolvimento são:

- priorização dos modos não motorizados em sua concepção;

- estabelecimento claro de infra-estrutura de acesso ao transporte coletivo;

- determinação de adequado uso compartilhado das áreas;

- inclusão de parte significativa para uso residencial e

- envolvimento da comunidade, dos agentes públicos envolvidos e dos

empreendedores.

A gestão da demanda se utiliza da adequação do meio de transporte à densidade do

solo, onde o aumento da densidade de solo viabiliza transportes de alta capacidade

gerando economia de escala. Por outro lado, baixa densidade está associado a maior

qualidade de vida. Substituir o automóvel pela bicicleta nos deslocamentos curtos é uma

das estratégias de se fazer cidades compactas e com qualidade de vida.

Fig 1: custo do transporte e densidade

Fonte: o autor

A Gestão da Demanda pressupõe uma volta do planejamento centralizado,

herança das cidades modernas, na construção de uma mobilidade sustentável.

5.2. Percepção dos Usuários

Engenheiros, economistas e arquitetos costumavam projetar uma cidade que não

contempla a visão dos seus usuários: o cidadão. Hoje, existem ferramentas onde a

percepção do usuário é contemplada nas modelagens elaborados pelos técnicos.

A – Isócronas

Muito utilizado no cálculo dos projetos de transporte público onde a percepção do

tempo de espera é significativamente maior do que o tempo de viagem.

Custo da Mobilidade

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13

Densidade

Cus

to ($

)

Automóvel

ônibus

MetrôB

A

C

B – Sintaxe Espacial

A leitura dos caminhos e das dificuldades para percorre-los depende da elaboração

de mapas mentais e de uma análise racional que envolve os trechos lineares e as suas

barreiras.

A Sintaxe Espacial objetiva o estabelecimento de relações entre a estrutura

espacial de cidades e de edifícios, a dimensão espacial das estruturas sociais, e variáveis

sociais mais amplas, procurando revelar tanto a lógica do espaço arquitetônico em

qualquer escala como a lógica espacial das sociedades (MEDEIROS, 2006,)

C – Percepção do tempo

A percepeção do tempo dos usuários é um reconhecimento que o tempo de espera

percebido é maior do que o tempo embarcado percebido influenciando, principalmente, os

projetos de transporte público. A incorporação da percepção dos usuários nos projetos é

um legado das cidades pós-moderna.

D – Cidade das Bicicletas

Desde que os reis da Holanda e da Dinamarca convocaram uma coletiva da

imprensa para anunciar que tinham encontrado uma saída para a crise do petróleo no

início dos anos 70 e apresentaram a bicicleta que os investimentos na infra-estrutura

urbana cicloviária não pararam de crescer. Já é reconhecido que a bicicleta é o melhor

meio para deslocamentos de até 5 km em áreas adensadas e planas. Atualmente existem

investimentos com bicicletas elétricas para assegurar o raio de alcance da eficiência da

bicicleta em cidades com topografia acidentada.

E – Maglev

Entre as novas tecnologias, a de levitação magnética aparece como das mais

promissoras reduzindo o atrito e o consumo energético em deslocamentos mais rápidos.

A proposta urbana é baseada na “anastomose”, que é a capacidade de um organismo

produzir novas ligações quando as veias entopem e a circulação é interrompida (DAVID,

2009). Assim, trens ferromagnéticos poderiam circular em alta velocidade paralelo às vias

congestionadas.

5.3. Gestão Empresarial

A arrogância técnica gerou serviços e produtos que eram feitos para “os outros” e

raramente apropriado pelos seus beneficiados. Por outro lado, a democratização incitou a

participação através de diversas figuras como a audiência pública, mas não pensou em

capacitar a população ou no espaço do técnico como ator privilegiado. A participação

acabou virando o fim e não meio.

A inflexão do Planejamento Urbano poderia ser prevista. Um estudo sobre

“Métodos de análise e tomada de decisão nas empresas de transporte na França”

mostrou como as empresas estão mudando de método, saindo de um modelo

tecnocrático, passando por um modelo procedural de participação dos atores e indo para

um modelo descrito como mobilizador. A opção por um significa a negação de outro

(BRANCA, 1997).

Reforçar elementos dos três métodos de análise pode resultar num modelo que

some, deixando de ser um jogo de soma zero, reforçando a capacitação técnica, dando

voz a quem não tem voz e incorporando as pesquisas de opinião na formulação dos

projetos (DANTAS, 1999).

5.4. Cidade dos Bondes – uma proposta para BH

Uma data de inflexão dos investimentos no transporte por bonde foi a entrada do

Brasil na segunda guerra mundial e os dados de produção falam da primeira metade dos

anos 40 como o ápice dos transportes por bonde. A dificuldade de importação de peças e

a incipiente concorrência dos ônibus fizeram com que em 20 anos os bondes entrassem

em extinção total. Esse modo de transporte foi o último de uma cidade cordial, elegante,

onde as regras de sociabilidade eram respeitadas e percebidas até mesmo na ocupação

do solo. Coincidentemente, exatamente em 42, fruto de acordo entre o governo brasileiro

e o estadounidense, desembarcaram no país Walt Disney, a revista Seleções, a Coca-

cola, a Kibon...e o olhar norte-americano do consumismo, do individualismo, do

automóvel, do pragmatismo, do desperdício que enfeitiçou toda uma geração.

Engenheiros de transporte e urbanistas não fugiram a regra.

Esse olhar, somado ao vigoroso processo de urbanização, acabou criando uma

cidade de excluídos e a especulação urbana passou a ser protagonista no desenho das

metrópoles embrionárias.

A cidade dos excluídos e que foi relatada por Aluísio Alves em O Cortiço, sempre

existiu, mas ganha nova feição com as grandes cidades. A história do Morro da

Providência no Rio de Janeiro, considerada a primeira favela brasileira, explica muito

desse mundo periférico e violento. Seus valores e culturas deverão ser gradativamente

incorporadas a cultura urbana e não aniquilada como se chegou a pensar.

A transformação de uma cidade industrial em metrópole pós-industrial – bem como

uma sucessão de planos diretores que ajudaram na formação de uma cidade que

privilegia o automóvel em detrimento da utilização e ampliação dos transportes públicos –

comprometeu a função da rede ferroviária e, conseqüentemente, a composição dos

espaços urbanos e do uso de seu entorno. O que antes determinara a qualificação

espacial hoje representa seu ocaso: terrenos vazios, prédios abandonados, espaços

degradados(LORENZETTI, 2008). Para muitos, “cidade dos bondes” é a designação do

território ocupado pelo tráfico.

Resgatar a cidade dos bondes significa resgatar a construção histórica das grandes

cidades de meados do século XX, interromper a quebra da narrativa histórica, a retomada

da identidade onde só resta não-lugares, preservar a cidade da erosão urbana e fortalecer

a instituição urbana. A cidade de 42 é um marco na história brasileira das cidades e é

uma cidade que, hoje, faria uma transição entre o que é centro que se quer dinâmico e o

subúrbio que se quer qualidade de vida e que hoje possui regiões estagnadas em função

da especulação imobiliária desenfreada.

Essa “cidade síntese” que une a cidade moderna a cidade pós-moderna, que une o

planejamento eficiente a possibilidade de construção individual com limites deverá

resgatar o valor simbólico das regiões eclipsadas pela especulação imobiliária.

Para isso, é sugerida a implantação dos novos centros regionais apregoados no

modelo de cidades policêntricas junto às extremidades da “cidade dos bondes”, deixando

a montante destinada a transportes de menor capacidade e a juzante, em direção ao

centro, os investimentos mais pesados, como as linhas de metrô, VLT, ou VLP. Nesses

pontos teríamos a captura do motorista para um meio de transporte mais adensado. Ao

contrário das estações-shoppings as novas estações deverão ter uma grande

permeabilidade com a região de entorno. Soluções arquitetônicas e urbanísticas

individualizadas deverão ser empregadas para assegurar a apropriação do espaço e do

modo de transporte.

Fig 2: Novos centros regionais dividindo importância com o centro

Levantamento para Belo Horizonte, que já teve 75 km de linha de bonde, indica

que a “cidade do bonde” teria uma área de 44 km2, contra uma área de 8 km2 da parte

interna da av. do Contorno, considerado centro, e os 330 km2 de toda a cidade como

mostra a figura 3.

Em Belo Horizonte, “a pluralidade das soluções de transporte, visíveis nas ruas,

escondia um processo de exclusão em curso, pois o modelo de desenvolvimento

capitalista levaria a uma vertiginosa metropolização e a uma racionalização dos serviços

de transporte, quando restou praticamente sozinha a modalidade dos ônibus” (GOMES,

1996).

Fig 3: Rede do bonde e limite da cidade dos Bondes em Belo Horizonte

Fonte: Tramz

A Cidade dos Bondes pode vir acompanhada de uma cidade mais humana.

Resgatar os antigos cursos de água da cidade através da construção de ciclovias no seu

leito e a devida identificação, denominando as ciclovias como os antigos córregos resgata

a memória a medida que promove um meio de transporte não poluente. Importante evitar

a concorrência das ciclovias com o transporte de alta capacidade. Na figura 4 estão

mostradas as grandes bacias hidrográficas da cidade e suas alimentadoras. Interessante

observar que a principal bacia, a do Ribeirão Arrudas, é por onde transita boa parte do

metrô de superfície.

Fig 4: Bacia Hidrográfica de Belo Horizonte

Fonte: Pedala BH

Entre 1988, promulgação da Constituição, e 2001, aprovação do Estatuto da

Cidades, houve um grande avanço dos instrumentos jurídicos, das formulações de

ferramentas teóricas, tais como: direito de preempção; outorga onerosa do direito de

construir e de alteração de uso; transferência do direito de construir e operações urbanas

consorciadas; A opção pelo pragmatismo levou a mediocridade e a rejeição de utópicos.

6. Considerações Finais

Ao identificar vários ciclos que agem na formatação das cidades e fazendo um

paralelo entre o desenvolvimento recente das cidades Americanas e Européias em função

da opção pela mobilidade elegida é possível caracterizar a mudança de sistemas e sua

conseqüência, a crise, como uma oportunidade de avançar na implantação de planos de

mobilidade sustentável. O diálogo entre as “ciências doces” e as “ciências duras”, ou

ciências exatas, procura agregar elementos do espaço e memória na construção de

novos parâmetros a serem tratados dentro do escopo tradicional dos transportes.

A violência absurda que se abateu sobre as grandes cidades é a justificativa para

explorar a perda de identidade dentro da problemática de espaço e memória e a falência

do modelo atual das grandes cidades, que em transporte resultou na “cidade dos

automóveis”, como justificativa para procurar uma superação das cidades pós-moderna

com uma possível “cidade síntese”, resgatando elementos da cidade moderna.

Ao propor uma “Cidade dos Bondes” o trabalho visa incorporar estudos de espaço

e memória na locação dos pontos de transferência dos modos de transporte, costurando

soluções urbanísticas contemporâneas com as novas ferramentas de transporte (cidades

policêntricas com gestão da demanda); novos paradigmas econômicos com as atuais

metas ambientais e um diálogo das cidades modernas com as cidades pós-modernas.

Isso, de uma maneira que apresente uma fácil identificação facilitando a adesão de

tomadores de decisão.

Obviamente, pelo alcance da proposta e pelas inúmeras possibilidades de agregar

novos conhecimentos esse trabalho deverá ter continuidade visando detalhar as principais

áreas de interface e, se possível, mensurar as expectativas de resultado.

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