são paulo: urbanidade, projeto e opurtunidade

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São Paulo: Urbanidade, Projeto e Oportunidade Espaços para o exercício da cidadania JOEL BAGES SANABRA ORIENTADORA: REGINA PROSPERI MEYER Dissertação de mestrado Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo SÃO PAULO, 2015

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Dissertação apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.

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  • So Paulo:Urbanidade, Projeto e Oportunidade

    Espaos para o exerccio da cidadania

    JOEL BAGES SANABRA

    ORIENTADORA: REGINA PROSPERI MEYER

    Dissertao de mestrado

    Faculdade de Arquitetura e Urbanismo

    Universidade de So Paulo

    SO PAULO, 2015

  • Joel Bages Sanabra

    So Paulo:

    Urbanidade, Projeto e Oportunidade

    Espaos para o exerccio da cidadania

    Dissertao de mestrado apresantada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Arquitetura e Urbanismo

    Orientao: Dra. Regina Maria Prosperi Meyer

    So Paulo, 2015

    EXEMPLAR REVISADO E ALTERDO EM RELAO VERSO ORIGINAL, SOB A RESPONSABILIDADE DO AUTOR E ANUNCIA DA ORIENTADORA.

    O original se encontra disponvel na sede do programa

    So Paulo, 26 de junho de 2015

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    E-MAIL DO AUTOR: [email protected]

    Ficha catalogrfica

    Bages Sanabra, Joel

    B144u So Paulo: urbanidade, projeto e oportunidade / Joel Bages

    Sanabra. --So Paulo, 2015. 270 p. : il.

    Dissertao (Mestrado - rea de Concentrao: Projeto, Espao e Cultura) FAUUSP. Orientadora: Regina Prosperi Meyer

    1.Planejamento territorial urbano 2.Espao pblico So Paulo (SP)

    3.Percepo urbana So Paulo (SP) 4.Cidades So Paulo (SP)

    5.Paisagem urbana So Paulo (SP) 6.Desenho urbano So Paulo (SP)

    7.Espao urbano So Paulo (SP) 8.Projeto de arquitetura 9.Urbanidade

    I.Ttulo

    CDU 711.4

  • FOLHA DE APROVAO

    Nome: Joel Bages Sanabra

    Ttulo: So Paulo: Urbanidade, Projeto e Oportunidade

    Dissertao apresentada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade

    de So Paulo para a obteno do ttulo de Mestre em Arquitetura e Urbanismo.

    rea de concentrao: Projeto, Espao e Cultura.

    Aprovado em:

    Banca examinadora

    Prof. Dr.

    Instituio

    Julgamento

    Assinatura

    Prof. Dr.

    Instituio

    Julgamento

    Assinatura

    Prof. Dr.

    Instituio

    Julgamento

    Assinatura

  • AGRADECIMENTOS

    A Luiza Pires, esposa e companheira. Pela fora do dia a dia porque me acompanhou

    em tudo, compartilhando tanto os momentos de felicidade como tambm os mais

    difceis e que muito colaborou com a reviso deste trabalho.

    A Regina Meyer, pela orientao, por me ajudar a no perder o meu rumo, pela

    confiana e otimismo que me transmitiu do inicio ao fim. Sobretudo pela grande

    oportunidade que me deu.

    A Julin Galindo, professor que orientou os primeiros trabalhos relacionados com

    esta pesquisa, na Escola Tcnica Superior dArquitectura de Barcelona. Ele me abriu o

    caminho para comear esta viagem, fez-me aprender a ler Manuel de Sola Morales,

    o principal referente desta dissertao.

    A Vladimir Bartalini, por me receber como orientando durante o perodo do meu

    intercmbio na FAU-Maranho, esforando-se para ajudar a transmitir as ideias

    que vinham da escola de Barcelona para a realidade de So Paulo. Tambm, por

    formar parte de banca de qualificao junto a Milton Braga, momento em que ambos

    aportaram conselhos que foram fundamentais para a materializao definitiva do

    mestrado.

    A Marlon Longo, Alessandro Muzi e Mariana Wilderom, pela amizade dentro do curso

    da ps-graduao, pois o ritmo frentico de So Paulo no faz fcil forjar relaes

    alm das horas de aula. Com eles, essa dificuldade foi vencida e encontrei amigos de

    verdade, que fizeram deste percurso algo menos solitrio.

    A Diogo Pereira, colega e camarada. Pelas conversas sobre as nossas pesquisas,

    trabalhos acadmicos e profissionais. Compartilhar modos de ver e de pensar trouxe

    reflexes e troca de informaes de grande valor, mas, sobretudo, um grande amigo.

    A Pablo Here e Eduardo Ferroni, chefes e amigos. Pela grande oportunidade que

    me deram no H+F e tambm por compartilhar as suas experincias como arquitetos e

    pesquisadores. Tornaram-se, para mim, uma referncia de profissionais do exerccio

    e do ensino da arquitetura. Tambm, a toda equipe do H+F: Tammy, Nate, Marta, Ivan,

    Karloni, Camila Bellatini, Camila Paim, Camila Reis, Nathalia, Guta, Bianca, Denis e

    Diogo, porque alm de um grande ambiente de trabalho, me deram a sua amizade.

    Ao Pablo Coquillat, por compartilhar uma experincia paralela. As discusses sobre

    a nossa situao no Brasil, trocando informaes e conselhos, foram de grande ajuda

    nos momentos de maior solido como expatriados.

    A Joaquim Sabat e Miquel Corominas, pela oportunidade para colaborar no seu

    escritrio CCRS em Barcelona, quando comecei a compreender a importncia do

    planejamento urbano e aprender sobre as cidades, o que fez despertar em mim o

    interesse em iniciar o curso de ps-graduao no DUOT.

    Ao meu pai Joan, a minha irm Anah, Tieta e ao Tete, pelo apoio na distncia.

    Aos meus sogros, Antonio Pires e Licnia Braga, pelo apoio um pouco mais prximo.

    Aos funcionrios da FAU-Maranho, pela pacincia.

  • RESUMO

    O conceito urbanidade complexo, mas essencial para a abordagem do mundo

    urbano contemporneo, associando-se aos espaos que estruturam a cidade funcional

    e socialmente. Com base num urbanismo racionalista, os modelos de expanso

    metropolitana aumentaram os limites da cidade tradicional, transformando a ideia de

    urbanidade. Este trabalho pretende se aproximar a uma definio para este termo e

    entender como processos de formao da metrpole de So Paulo influram na criao

    e evoluo dos seus espaos de interao cidad mais significantes. Partindo disso,

    compreender a importncia dessa expresso aparentemente ambgua para se pensar

    nos espaos de ao da vida pblica nas nossas cidades do amanh.

    Palavras chave: Planejamento territorial urbano. Espao pblico. Percepo urbana.

    Paisagem urbana. Desenho urbano. Espao urbano. Projeto de arquitetura. Urbanidade.

    So Paulo (cidade) Brasil.

  • RESUMEN

    El concepto de urbanidad es complejo, pero esencial para el abordaje del mundo urbano

    contemporneo, asocindose a los espacios que estructuran la ciudad funcional y

    socialmente. En base a un urbanismo racionalista, los modelos de expansin metropolitana

    aumentaron los lmites de la ciudad tradicional y transformaron la idea de urbanidad.

    Este trabajo pretende aproximarse a una definicin de este trmino, y entender cmo

    procesos de formacin de la metrpolis de So Paulo afectaron la creacin y evolucin

    de sus espacios de interaccin ciudadana ms significativos. Con ello, comprender la

    importancia de esa expresin aparentemente ambigua, para pensar en los espacios de

    accin de la vida pblica en nuestras ciudades del maana.

    Palabras clave: Planeamiento territorial urbano. Espacio pblico. Percepcin urbana.

    Paisaje urbano. Diseo urbano. Espacio urbano. Proyecto de arquitectura. Urbanidad.

    So Paulo (ciudad) Brasil.

  • ABSTRACT

    The concept of urbanity is complex, but essential for approaching contemporary urban

    world, being associated to spaces that structure the citys functionality and sociality.

    Based on a rationalist urbanism, models of metropolitan expansion increased the limits of

    the traditional city and transformed the idea of urbanity. This work aims to approximate

    a definition of this term, and understand how processes of formation of the metropolis

    of So Paulo affected the creation and evolution of the most significant public spaces

    of interaction. With this, to understand the importance of this apparently ambiguous

    expression, to think about the action places for public life in our cities of tomorrow.

    Keywords: Territorial urban planning. Pubic space. Urban perception. Cityscape. Urban

    Design. Urban space. Architectural project. Urbanity. So Paulo (city) Brazil.

  • SUMRIO

    Introduo 15

    CAPTULO 1: Marco terico 20Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    1.1 Antecedentes 22

    1.2 O urbanismo modernista: Da Carta de Atenas ao Corao da cidade 34

    1.3 Os anos 1960 e a reivindicao da urbanidade 39 1.4 O fenmeno metropolitano 46

  • CAPTULO 2: Estudos de Caso 54

    Recortes de urbanidade na metrpole

    2.1 So Paulo: a Metrpole do caf, cidade das PORTAS 60

    2.1.1 Os Caminhos e as Portas 62

    2.1.2 A chegada do trem, estao da Luz 64

    2.1.3 A superao do Vale: Viaduto do Ch 68

    2.2 Recortes clssicos de urbanidade na Metrpole, cidade de SISTEMAS 72

    2.2.1 O Centro Novo: a urbanidade como parmetro de projeto 78

    2.2.2 A Avenida Paulista: eixo simblico da urbanidade metropolitana 90

    2.2.3 Ibirapuera: Parque urbano, marco metropolitano 100

    2.3 O fracasso da urbanidade projetada, cidade das INTERFERNCIAS 110

    2.3.1 Praa Roosevelt, o artefato da intercepo 116

    2.3.2 Praa da S: porm, o Marco Zero 126

    2.3.3 Anhangaba, o vale das indecises 136

    2.4 As urbanidades efmeras na cidade das REBELDIAS urbanas 146

    2.4.1 O Elevado Costa e Silva: a ferida vingada pela urbanidade 150

    2.4.2 As feiras de rua, os espaos da resistncia 156

    2.4.3 As ciclovias: uma rede possvel 164

    CAPTULO 3: Estudo comparativo 172Linhas de projeto: estratgias para a urbanidade

    3.2 Portas urbanas 178

    3.3 Sistemas urbanos

    L1. A urbanidade no projeto sinttico 189

    L2. A urbanidade no edifcio-cidade 200

    L3. A urbanidade no edifcio-chave 205

    L4. A urbanidade no parque central metropolitano 210

    3.4 Projeto, infraestrutura e urbanidade: abordagens possveis

    L5. Superfcies reconfiguradas para a urbanidade 217

    L6. Reconfiguraes espaciais para a urbanidade 224

    L7. Espao livre para a urbanidade na infraestrutura 230

    3.5 Os potenciais da rebeldia

    L8. A urbanidade das cicatrizes 239

    L9. A urbanidade da troca 245

    L10. A urbanidade do convvio 250

    CONSIDERAES FINAIS 257

    BIBLIOGRAFIA 264

  • A lavi Ton i lavi Lloren, tamb per al Marc.

  • 15

    So Paulo: Urbanidade, Projeto e Oportunidade

    INTRODUO

    A cidade como objeto de anlise, convida a infinidade de mtodos, reflexes e pontos de vista. Das mltiplas

    vises que o urbanismo, como conhecimento interdisciplinar, pode ter sobre as cidades, necessrio entender as

    formas urbanas alm da sua morfologia, para poder estabelecer uma anlise profunda dessas. A experincia urbana,

    ou seja, as vivencias dos espaos da cidade podem nos contar muitas coisas que no conseguimos perceber sobre

    o papel. Com isso, a cidade gera com as suas formas espaos de urbanidade, onde a ao do cidado se manifesta,

    onde se encontra alguma coisa mais imaterial, a vida urbana.

    A cidade no constante ou uniforme, mas mutante e heterogenia. No espao urbano, achamos, cada vez

    mais, a especializao funcional, que cria tecidos monofuncionais, espao residencial, espao industrial e logstico,

    etc. No entanto, continua a ser necessria a criao de espaos de mescla, e, acima de tudo, interao, que sejam

    dotados de alta urbanidade e capazes de estruturar a cidade funcional e socialmente.

    Esses espaos de urbanidade por seu contexto diferenciado, j existem desde as primeiras formas

    urbanas, ao redor da gora, o Mercado, ou a Praa da igreja. So espaos que, ao longo do tempo, foram mudados,

    transformados e multiplicados, criando verdadeiros espaos vivos altamente significativos nas cidades. Com a

    cidade do sculo XX, novos tipos de espaos de urbanidade nasceram desenvolvendo um papel de centralidade nas

    novas metrpoles. Nos espaos de urbanidade, a intensidade de troca garantida pela mistura de atividades, pela

    abertura e continuidade do espao arquitetnico pela singularidade do espao urbano.

    Atualmente, os processos experimentados nas cidades dos nossos dias mudaram a ideia de urbanidade, a

    deslocando as vezes para periferia, suprimindo-a ou a transformando de uma forma mais ou menos substancial, em

    um processo no que com frequncia acabaram se perdendo vrios dos seus atributos, resultado de um processo de

    especializao urbana. Por isso, hoje muito importante identificar quais so os parmetros formais e funcionais

    da urbanidade, assim como tambm a sua relao com os tecidos urbanos, as infraestruturas de mobilidade que

    os alimentam, com espaos nos quais se configuram cadeias ou sistemas, e com o territrio, que amplia os limites

    tradicionais da cidade.

  • 16

    INTRODUO

    O presente trabalho pretende analisar a cidade partindo dos seus espaos

    de urbanidade. Em primeiro lugar, tentando se aproximar compreenso desse

    termo partindo do estudo de formas urbanas antecedentes, onde se estabelecem

    as condies procuradas de interao e vida urbana. A evoluo dos fenmenos

    metropolitanos, experimentados nas cidades contemporneas tem uma influncia

    direta nos espaos de urbanidade tradicionais, deslocando-os, enfraquecendo-os

    ou transformando-os. Baseando-se no estudo da cidade de So Paulo, pretende-se

    explicitar esses processos e os espaos a eles associados.

    Justificativa

    O conceito de urbanidade difcil, mas essencial para lidar com o mundo

    urbano contemporneo. Lembrando a obra de Jane Jacobs1, o grau de urbanidade de uma cidade, uma metrpole ou distrito intrinsecamente dependente do grau

    de vitalidade urbana presente l. Por que este olhar para So Paulo? Os processos

    experimentados pelos espaos de urbanidade que nela encontramos suscitam um

    cotejamento entre os problemas urbanos americanos no incio dos anos 60 e a atual

    situao das exauridas cidades brasileiras (MEYER, 2002). As formas de expanso da metrpole, pouco dialogantes com a cidade precedente, supem um isolamento

    e negao a uma possvel urbanidade. Prope-se contar quais so os espaos que

    juntam suficientes caractersticas para serem enclaves da vida urbana na metrpole.

    Com isso, busca-se entender a importncia do papel desses lugares, que ainda tendo

    vivenciado um enfraquecimento e transformao da sua atividade urbana em um

    processo metropolitano sedativo para a sua urbanidade, apresentam-se como pontos

    chave para se pensar a cidade.

    Jacobs, J. (1961). Life and Death of Great American Cities. So Paulo: Martins Fontes.

    Meyer, R. (2002). Pensando a urbanidade. Resenhas Online, Vitruvius .

  • 17

    So Paulo: Urbanidade, Projeto e Oportunidade

    Figura 1: (pgina anterior) A urbanidade das Origens,

    o Foro Romano. Fonte: MORRIS,1979

    Figura 2: (pgina anterior) A urbanidade Contempornea,

    Shibuya, Tokyo. Fonte: MONTANER, 2009

    Hablar de urbanidad en la ciudad contempornea puede parecer una referencia anticuada, ya que se trata de un trmino de la ciudad

    fsica transferido al comportamiento social, individual o colectivo. Pero es todo lo contrario, si pensamos en la urbanidad como en un

    contenido de lo material, como una condicin de las cosas urbanas. (Morales, 2008)

    Morales, M. d. (2008). De Cosas Urbanas. Barcelona: Gustavo Gili.

    Mtodos de pesquisa e objetivos

    Para comear, no primeiro captulo, constri-se um marco terico que uma anlise da cidade a partir dos

    seus espaos de urbanidade. O estudo de vrias das obras que, de um modo ou de outro, fazem essa viso urbana

    o primeiro passo pare se elaborar a definio do termo urbanidade. O estudo de casos exemplares ser necessrio

    nessa etapa. Com isso, o item quer elaborar um estado da arte da questo, entendendo a urbanidade como um

    conceito mutvel quanto forma e funo dos espaos urbanos. Depois de construir um panorama para uma

    definio do termo, os seguintes captulos devem entrar no contexto do caso de estudo e os seus recortes.

    O segundo captulo trata de associar os conceitos do item anterior com a formao da metrpole de So

    Paulo. O objetivo principal foi o reconhecimento das suas morfologias urbanas de dimenso cvica, associveis

    com diferentes etapas da sua evoluo. Baseando-se tambm em bibliografia bsica para entender a fundao e

    formao da cidade, conta-se como as polticas urbanas que priorizaram uma cidade baseada no espao privado

    e no rodoviarismo trouxeram deslocamentos e mutaes na ideia de urbanidade e em suas formas. A abordagem

    do objeto de estudo, visando um reconhecimento da vida urbana na cidade, precisou reconhecer tal dinmica em

    espaos referentes vida cvica da metrpole, partindo de uma escala maior que a do projeto arquitetnico singular.

    O necessrio percurso pela histria da evoluo urbana da cidade estabeleceu os critrios de seleo para estudos

    de caso, nomeados de espaos de urbanidade, associados a diferentes perodos da formao metropolitana.

    As anlises grficas dos espaos selecionados explicitam a sua morfologia em relao sua atividade

    urbana e ao fenmeno de crescimento metropolitano de So Paulo. Para isso, procurou-se desenhar a relao entre

    os espaos escolhidos e o seu contexto urbano. A necessidade de refletir alm da sua morfologia, analisando as

    dinmicas propiciadas pelas suas condies espaciais, levou a criar um sistema grfico com suficiente capacidade

    de abstrao para entender os conceitos aqui citados. O estudo tambm se apoia em trabalhos de pesquisa

    especficos sobre estes marcos urbanos, fundamentais para se entender a sua formao e evoluo como espaos

    de urbanidade.

  • 18

    INTRODUO

    O terceiro captulo procura associar a operao arquitetnica com o surgimento da vitalidade urbana.

    O reconhecimento dos espaos e fenmenos de apropriao que geram a vida na cidade demonstrou como as

    caractersticas morfolgicas, proporcionadas pela arquitetura, tiveram um papel fundamental na presena de

    urbanidade nos estudos de caso escolhidos. Os mtodos para tal fim foram dois: a anlise grfica e o estudo

    comparativo.

    Depois de identificar as caractersticas das arquiteturas protagonistas nos espaos estudados foi possvel

    analis-las, para assim entender a sua estratgia essencial como projeto urbano. Para tal fim, foi desenvolvida uma

    analise comparativa das arquiteturas selecionadas, associando-as com referentes de diferentes procedncias, mas

    com caractersticas comuns. Isso possibilitou a categorizao dos mecanismos de projeto usados em cada caso,

    o que permitiu associar o conceito de urbanidade com as caractersticas morfolgicas e espaciais dos projetos

    arquitetnicos. Com base nisso, defende-se que a arquitetura urbana e as aes estratgicas so as responsveis

    por executar as potenciais formas adequadas situao preexistente e ao seu contexto cultural e histrico.

  • 19

    So Paulo: Urbanidade, Projeto e Oportunidade

    Simbologia: (pgina anterior) Cdigo de abstrao de Elementos

    e Dinmicas, para anlises grficas desta pesquisa. Elaborao do

    Autor.

  • 20

    CAPTULO 1: Marco terico

    The polis is not primarily a collection of habitable dwellings, but a meeting place for citizens, a space set apart for public functions. The city is not built, as is the cottage or the domus, to shelter from the weather and to propagate the species these are personal, family concerns but in order to discuss public affairs. (Sert, 1952)

    Sert, Joesp Llus. (1952) Centres of community life em The Heart of the City, London, Lund Hupries

  • 21

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Dos assentamentos primitivos s formas urbanas contemporneas, destaca-se a criao de diversas

    tipologias de espao pblico, geradas em funo de como a vida urbana nelas participou. Assim, estabelece-se

    uma relao entre a morfologia e a atividade nos lugares de urbanidade. So espaos de uso pblico com uma

    forma definida, de uso misto, de identificao cidad, que esto bem articulados com o resto dos tecidos urbanos,

    gerando centralidades. Perder alguns desses atributos a favor do progresso gerou mudanas na ideia de vitalidade

    urbana das metrpoles atuais.

    Faz-se necessria a definio do termo urbanidade para uma possvel leitura da cidade. rduo dar um

    significado fechado palavra, mas possvel relacion-la com o grau de vitalidade que se encontra nos espaos da

    vida cvica. A manifestao do cidado no espao pblico, na vida coletiva, a base para a gerao desse fenmeno,

    que est sujeito a ter diferentes atributos em funo das condies da cidade na qual participa.

    Do ponto de vista da crtica urbanstica, arquitetnica e sociolgica da cidade, a urbanidade foi associada ideia de atividade, no

    somente de bom comportamento, de respeito e ordem, at poder-se-ia dizer de modstia individual. Entende se com isso que um espao

    muito urbano quando acontecem muitas coisas nele, quando h muita atividade. A urbanidade a Idea de centralidade, de vitalidade,

    de pessoas diversas, das luzes, do brilho... (Morales, 2009)1

    Assim, com um significado ainda aberto, esse primeiro captulo se aproxima dessa ideia com uma leitura do

    que se pode considerar espaos de urbanidade paradigmticos na evoluo das cidades tradicionais. Estabelece-

    se uma leitura histrica das morfologias urbanas em relao aos espaos de interao onde se desenvolve a

    vida urbana. Partindo dessa leitura evolutiva, explica-se como as propostas de cidade racional do modernismo

    quebram com esse espao cvico, baseadas no modelo funcionalista que foi aplicado em muitas cidades durante a

    primeira metade do sculo XX. A desumanizao urbana provocada por uma aplicao superficial desse modelo de

    cidade foi objeto de estudo de vrios autores a partir dos anos 60, o que aportou crticas, anlises e propostas de

    cidade que focalizam na ideia da recuperao da vida urbana nas cidades contemporneas. Nas grandes cidades,

    os processos metropolitanos trazidos pela evoluo socioeconmica, apoiados nos modelos urbanos racionais,

    podem enfraquecer a ideia de urbanidade, apresentando alternativas que negam os espaos paradigmticos de

    vitalidade urbana.

    Morales, M. d. (2009). La urbanitat de larquitectura. Barcelona.Figura 1.1: (pgina anterior) Le Flaneur, Paul Gavarni, 1842.

    Fonte: ROSLER, 2013.

  • 22

    CAPTULO 1

    Figura 1.2: A gora de Atenas. Fonte: MORRIS, 1979.

    1.1 Antecedentes

    O conceito de urbanidade pode ser muito amplo e pouco preciso caso se queira v-lo aplicado a formas

    urbanas de diferentes procedncias e realidades histricas. Para entender as mutaes nos espaos cvicos,

    necessrio situ-los em uma evoluo temporal. A identificao desses marcos como lugar de identidade coletiva

    talvez seja sua funo mais antiga, ainda que eles tenham assumido vrias atribuies ao longo da histria (como de

    espao de circulao, intercmbio, cnico ou lazer). Desde as origens do fato urbano, o espao pblico concebido

    como reforo para a coeso social, e seus atributos so contribuies fundamentais para o desenvolvimento da

    urbanidade.

  • 23

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.3: Agora or Marketplace, Gravura, J. Buhlmann, 1881.

    Fonte: ALAMY, 2013.

    Figura 1.4: Os restos da gora de Atenas, 2005. Arquivo do autor.

    A cidade-estado grega: A gora

    O termo grego gora traduzido como reunio. A gora definida como lugar de intensa e continuada

    concentrao de diversas atividades. De fato, no se tratava de uma simples praa pblica, mas do centro nevrlgico

    da cidade, seu corao latente. Ainda que fossem inevitveis a disperso e a especializao de suas funes, na

    evoluo das cidades gregas, vrias delas foram parcialmente mantidas. Foi um espao especialmente unitrio,

    resistindo fortemente prpria partio (MORRIS, 1979).1 Lugar de reunio permanente de todos os cidados,

    no adquiria vida apenas ocasionalmente, mas era o cenrio cotidiano da vida social, dos negcios e da poltica.

    Na gora ocorriam muitas atividades simultneas, e as pessoas que iam de um lado ao outro se agrupavam em crculo para falar de

    diversas coisas ao mesmo tempo. Como regra geral, nenhuma voz dominava o conjunto. (Sennett, 1994)2

    O incremento da autonomia das diversas esferas da vida coletiva (religiosa, poltica e econmica), at

    ento fundidas na maioria das civilizaes, evoluiu para uma diferenciao dos espaos pblicos da cidade: a

    Acrpole3 era o lugar simblico e sagrado tradicional, no Bouleuterin4 eram tomadas as decises polticas, e a

    gora, o lugar de carter cvico, de interao entre os cidados ao redor da atividade comercial das Stoas.5

    esses trs graus os deuses em primeiro lugar, depois, a vida pblica e finalmente a vida privada nunca foram desde ento to claramente distiguidas. (Giedion, 1952)6

    Morris, A. E. (1979). Histria de la forma Urbana. Barcelona: Gustavo Gili.

    Sennett, R. (1994). Carne y Piedra. Madrid: Alianza Editorial.

    Em grego , composto de , extremo, alto, e , cidade, a parte da cidade construda nas terras mais altas da regio. A posio conta tanto com valor simblico (elevar e enobrecer os valores humanos) como estratgico, pois poderia ser melhor defendida dali. Era na Acrpole das diversas cidades que se construam as estruturas mais nobres, como templos e palcios dos governantes.

    Em grego , a construo para as reunies da boul, o conselho, nas cidades da antiga Grcia. A boul era uma instituio bsica nas antigas polis (cidades-estados) gregas. Era composta por representantes dos cidados, que se reuniam para discutir e decidir sobre as questes pblicas. A palavra bouleuterin composta pelo termo grego boul (conselho) e pelo sufixo terio (lugar para fazer alguma coisa).

    Em grego , transl. Sto, prtico ou colunata, um elemento arquitetnico muito utilizado na Grcia Antiga, que consistia de um corredor ou prtico coberto, comumente destinado ao uso pblico.(Definies em: Smith W. (ed.), 1870, Dictionary of Greek and Roman Biography and Mythology. Boston e Londres: Little & Brown.)

    Giedion, S. (1952). Precedente histricos. Em The Heart of the City.

  • 24

    CAPTULO 1

    Figura 1.5: goras nos seus ncleos primitivos:

    Atenas, Priene e Mileto. Elaborao do autor sobre

    base MORRIS, 1979.

    Como ponto central das cidades construdas na Grcia antiga, a gora se situava o mais perto possvel

    do centro, ou, nas cidades costeiras, junto ao porto, seguindo a lgica dos fluxos comerciais. Essas caractersticas

    podem ser vistas em Priene, posicionada no cruzamento das duas principais vias da cidade, e em Mileto, onde a

    gora junto ao porto. Nas cidades sem uma estrutura em grelha, a posio habitual da gora entre a entrada

    principal da cidade e a da Acrpole, como observado em Atenas.

    O espao cnico produzido pelas goras, sua posio estratgica, assim como o desenvolvimento das

    atividades coletivas, permitem defini-las como lugares de urbanidade nos quais as manifestaes da vida pblica

    se destacam pela diversidade (poltica, troca de bens, encontro, reunio). Sendo assim, revelou-se como um espao

    ambguo, alimentando a vida urbana.

  • 25

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.6: Roman Forum. The reconstruction of the 19th century.

    Giuseppe Becchetti. 1893. Fonte: WILLIS, 1921.

    Figura 1.7: O Foro Romano, Roma 2003. Arquivo do autor.

    A Roma urbana: o Foro

    O Foro romano um lugar completamente carente de ordem [...] os romanos, desde o incio, mesclaram negcios, religio, justia e vida pblica. (Giedion, 1952)7

    O Foro foi o equivalente romano da gora grega. Porm a imagem das cidades gregas com a qual os romanos

    construram seu imprio, levando a complexidade funcional das goras aos primeiros Foros, foi posteriormente

    revisada. Poucas cidades, como Roma em sua poca imperial, confiaram tanto no poder da imagem visual.

    Corpo, casa, Foro, cidade, imprio, todos se baseavam num imaginrio linear. A crtica arquitetnica fala da preocupao romana e

    precisa do espao, de espaos com ngulos retos bem definidos, como a grelha, de estruturas de formas estritas, como o arco romano,

    o semicrculo ou de edifcios com volumes rigorosamente definidos, como as cpulas que se conseguem girando um semicrculo num

    espao tridimensional. Essa linguagem visual expressava as necessidades de um povo instvel, desigual e difcil de lidar, que procurava

    a segurana que resplandece do lugar. (Sennett, 1994)8

    Essa concepo monumental do espao pblico diminuiu o carter cvico que possuam a gora ou os

    primeiros Foros. Os espaos coletivos se tornaram menos vivos, se associando a atividades especficas que podiam

    implicar controle e acesso restrito.

    [Em Roma] Na medida em que o Foro romano foi se regularizando, os aougueiros, os lojistas, os pescadores e os comerciantes da

    cidade deslocaram-se para os diferentes bairros da urbs, deixando os assuntos do Foro, no perodo final da repblica, aos advogados e

    burocratas. Depois, quando os imperadores construram os seus prprios Foros, esses ltimos abandonaram o Foro romano para seguir

    os patres a novos espaos. Na gria dos planejadores atuais, os prdios tornaram-se mais monofuncionais e, j na poca de Adriano,

    muitos se encontravam praticamente vazios [...] nesse mundo to planejado tinha-se pouca necessidade dos valores ambguos da Stoa

    (Sennett, 1994)9

    Nesse sentido, os Foros imperiais de Roma compartilharam muito mais semelhanas com os centros

    cvicos do sculo XX que com os espaos de pocas posteriores10 (MART, 2004). A estrutura bsica da cidade

    romana se resumia a duas ruas principais perpendiculares: o cardo e o decumano, vias ortogonais que geravam

    a grelha da cidade. O Foro normalmente se situava em uma das esquinas formadas por essa interseo, sendo

    uma praa delimitada por um permetro de colunas, com um edifcio para reunies em um dos lados. O templo

    principal, o teatro e os banhos pblicos tambm se situavam perto do Foro, no centro da cidade.

    Ibidem p.23.

    Ibidem p. 23.

    Ibidem p. 23.0 Mart, M. (2004). A la recerca de la civitas contempornia. Barcelona: Tesi Doctoral UPC.

  • 26

    CAPTULO 1

    Figura 1.8: Foros nos seus ncleos primitivos: Empuriae, Pompeia e Roma. Elaborao do autor sobre base MORRIS, 1979.

    Alguns casos exemplares e delimitados so os

    Foros de Empuriae, Pompeia, ou ainda o Foro primitivo

    de Roma, nos quais a praa ficava no centro e era

    cruzada pelo decumano, onde faceavam os templos

    principais. As caractersticas formais gerais do Foro

    romano no diferem muito das da gora: posio

    estratgica no eixo do cruzamento de vias principais,

    espao delimitado por colunas, composto de edifcios

    para o culto religioso e a atividade poltica. O que de

    fato os diferencia a especializao das funes em

    sua evoluo, ou seja, o espao das stoas passa a ser

    composto por construes mais importantes que a

    singela colunata, com um adensamento de templos e

    prdios administrativos. O Foro da Roma imperial um

    exemplo bem mais complexo, marcado pela evoluo

    poltica e socioeconmica do imprio, uma vez que, a

    cada novo imperador no poder, construam-se novos

    foros que competiam com o espao original.

    No seu incio devia ter um uso poli-funcional, albergando desde atividades mercantis

    e pblicas at manifestaes polticas. No entanto essa situao primria no podia

    se prolongar: aquele cho de terra e aqueles barracos rudimentares passaram depois

    a ser o centro urbano mais complexo da histria. (Morris, 1979)11

    Ibidem p. 23.

    Uma caracterstica compartilhada tanto pela Grcia como depois por Roma

    desse primitivo corao da cidade so suas origens de carter comercial. Essas se

    misturaram com outras funes que tinham a troca como base como a troca de bens,

    de informaes, de identidades etc. e que acabaram evoluindo para dinmicas mais

    complexas. Como conta Sennet, a evoluo do imprio gerou mudanas nas relaes

    sociais: os imperadores mantiveram uma viso fechada e controlada do espao e das

    atividades, o Foro romano deu lugar especializao funcional do espao coletivo, e

    o que acontecia na rua passou a se desenvolver dentro das construes. Por isso, as

    manifestaes cidads passaram a acontecer em lugares desenhados com o objetivo

    de estabelecer controle poltico e formal da cidadania, o que teve uma influncia

    definitiva na vida urbana das cidades do imprio.

  • 27

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.9: Childrens games, Pier Brueguel, 1560.

    Fonte: Kunsthistorisches Museum, Viena.

    Figura 1.10: A Royal Mile, Edimburgo. Arquivo do autor.

    A cidade medieval: o mercado

    O tecido da cidade medieval a testemunha mais antiga que, com suas muitas transformaes, se

    conserva em muitas cidades contemporneas como cenrio da vida urbana. Ainda que os restos das cidades

    gregas ou romanas sejam testemunhas arqueolgicas, ou tenham se perdido na sobreposio de camadas urbanas

    posteriores, vrios centros histricos das cidades europeias so herdeiros das formas urbanas da Idade Mdia. As

    cidades medievais so compostas por uma trama urbana sem ordem estrita aparente. Tanto pelo traado como

    pela morfologia, evidenciam o carter profundamente orgnico dessas sociedades, e a esfera religiosa recupera

    importncia e respeito das pocas clssicas anteriores. Nesse tecido, a atividade urbana estritamente comercial.

    Os espaos de mercado so os de maior carter cvico, evidenciando a atividade comercial como uma das que mais

    favoreceu a interao entre cidados ao longo da histria12 (MART, 2004).

    Os assentamentos urbanos medievais so fisicamente delimitados pelas muralhas, lhes fornecendo

    uma morfologia claramente delimitada. Os motivos de sua construo no so somente militares, mas tambm

    econmicos em muitos casos, nos quais os conflitos militares eram escassos ou inexistentes, as muralhas

    atuavam como barreiras comerciais, protegendo os interesses econmicos municipais, permitindo a imposio

    de direitos de alfndega em todos os bens de troca que passavam pelas suas portas13 (MORRIS, 1979). Por isso,

    os elementos que definem a cidade medieval (a muralha, as ruas e as praas) so marcados por essa morfologia,

    sendo o carter comercial a base de sua existncia. Isso evoluiu para um forte adensamento no tecido urbano

    dentro do permetro murado. Com o mnimo espao, devia se maximizar o aproveitamento comercial. Isso fez

    com que muitas atividades se deslocassem do centro das residncias para as ruas; esse movimento tambm se

    produziu no sentido contrrio.

    Embora todas as cidades tivessem um ou vrios espaos especificamente dedicados ao mercado, a cidade

    medieval pode ser descrita como um mercado contnuo. A troca e a produo aconteciam em todas as partes, o que

    justifica a tendncia das construes de invadir cada vez mais as ruas, incrementando balanos nas fachadas dos

    pavimentos superiores, e com isso estreitando cada vez mais o espao de circulao. O ambiente medieval era um

    ambiente de rua, cheio de surpresas visuais aparentemente acidentais. Os espaos urbanos eram ocupados, como

    na gora, pela mistura das atividades dos cidados, chegando a invadir o espao privativo das casas.

    Ibidem p. 25.

    Ibidem p. 23.

  • 28

    CAPTULO 1

    Figura 1.11: A Royal Mile, Edimburgo,

    Planta. Fonte: MORRIS, 1979.

    Figura 1.12: Toledo, ncleo medieval,

    Planta. Fonte: MORRIS. 1979.

    [...] nas casas, como nas ruas, as pessoas moravam encortiadas. Os quartos das casas eram como

    as ruas nas que as pessoas entravam e saiam em todo momento. (Sennet, 1994)14

    Nessa cidade-mercado existia um espao maior para essa troca de bens

    que podia se materializar em duas morfologias, praa ou rua. A praa ou praas

    destinadas a esse fim normalmente se situavam no centro do miolo urbano, perto

    da igreja, embora tambm pudessem se situar ao lado das portas das muralhas,

    mais prximas chegada de mercadorias. O outro tipo de mercado acontecia na rua

    principal, normalmente quando a morfologia do tecido urbano era mais regular.

    difcil descrever as praas e ruas do mercado da cidade medieval com parmetros

    precisos, pois as praas costumam se destacar pelas formas irregulares, resultado

    do afastamento das construes como edifcios institucionais (castelo, igreja) ou de

    resqucios dos antigos traados romanos (gora, circo).

    as cidades medievais, ao contrario do que acontece nas novas cidades gregas e romanas, mostra

    uma interferncia da vida privada com a publica. A praa do mercado, com colunata ou sem ela,

    se encontra cercada pelas casas particulares dos cidados. (Giedion, 1952)15

    A sintonia entre a estrutura social e a oportunidade que ofereciam uma srie

    de espaos pblicos favoreceu a interao das funes. A integrao das atividades

    nos tecidos compactos e o uso misto das cidades medievais conferem urbanidade a

    esses mercados urbanos.

    Ibidem p. 23. Ibidem p. 23.

  • 29

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.13: Piazza Annunziata, Florncia Gravura, Giuseppe Zocchi,

    SXVIII. ARTNET, 2013.

    Figura 1.14: Piazza Annunziata, Florncia. Fonte: PANORAMIO

    2008.

    Os espaos renascentistas e barrocos: testemunhas do poder

    Durante o Renascimento, o interesse das artes em recuperar as formas clssicas das antigas Grcia e Roma

    marcou a composio das morfologias urbanas. Assim, os espaos urbanos projetados pelos renascentistas buscaram

    a ordem das antigas civilizaes. A cidade da poca moderna (renascentista, barroca e neoclssica), projetada

    sobre as preexistncias dos tecidos medievais, conhece em paralelo a consolidao de um poder poltico soberano,

    o reencontro com um espao pblico monumental, concebido como cnico. Ao mesmo tempo, o planejamento de

    uma estrutura urbana baseada em um sistema de eixos articulados por grandes praas organizadoras permite que

    a cidade seja outra vez reflexo do corpo social, que at ento se expressava no carter da trama medieval.

    Seria uma poca marcada pela expanso das cidades europeias. A morfologia das cidades fortificadas que

    os projetistas encontram nesse momento era compacta e irregular, com um forte crescimento demogrfico

    incrementando a densidade. Por isso, o controle do espao era fundamental para impor a poltica de controle

    populacional, vista j na Roma tardia. Morfologicamente, a traduo dessas premissas nos espaos urbanos tinha

    em vista:

    1. Simetria, ordem, equilbrio, eixos.

    2. Posicionamento de focos para marcar as perspectivas. Edifcios institucionais, obeliscos ou esttuas.

    3. Integrao de prdios individuais a partir da homogeneizao das fachadas.

    4. Teoria da perspectiva.

    Os paradigmas das morfologias urbanas do Renascimento se encontram na Itlia, bero dessa mirada para

    o mundo. Essas correntes evoluram at a Frana pr-industrial no sculo XVIII, quando as imposies do poder

    soberano atingiram sua mxima expresso nos espaos pblicos. Exemplos bem delimitados dessa expresso

    espacial so as piazzas da Florena dos Mdici, durante o sculo XV. A procura pela simetria, alm de se formalizar

    a partir de construes annimas, se enfatiza situando edificaes emblemticas que presidem os espaos, usando

    tambm elementos que reforam a simetria, como fontes, esttuas ou colunas. A piazza Navona, em Roma, apresenta

    essas caractersticas, enfatizando sua forma herdada do circo romano com elementos que focam as perspectivas. A

    imagem contempornea desses espaos urbanos manteve suas caractersticas originais, conservando, alm disso,

    seu carter coletivo.

  • 30

    CAPTULO 1

    Figura 1.15: Piazza Navona, Roma. Fonte: PANORMIO 2008.

    Figura 1.16: Piazza Navona, Roma. Planta. Fonte: MORRIS, 1979.

    Figura 1.17: Piazza Annunziata, Florncia. Planta.

    Fonte: MORRIS, 1979.

    Sendo espaos conservados como cenrios para a maioria das atividades urbanas (produtivas, comerciais de

    relacionamento) no sculo XVIII, marcam a mxima expresso do espao pblico como espao para a sociabilidade,

    com forte dimenso cvica indissocivel das revolues polticas da democratizao16 (MART, 2004).

    Embora os espaos urbanos fossem desenhados como a imagem de um poder poltico, olhando de certa

    forma para a Grcia e a Roma do passado, as preexistncias da cidade medieval entraram no jogo, com um tecido

    fossilizado no qual nasceram as novas praas para trazer a ordem formal, conferindo uma morfologia monumental

    e simblica aos espaos coletivos das cidades. O controle formal se identifica tambm com o social, marcando a

    urbanidade; os espaos so desenhados como cenrios para uma vida urbana mais limitada, controlada. Essa

    urbanidade passa de mescla de muitas atividades no mesmo lugar (gora, cidade-mercado) para uma cenografia

    desenhada para as manifestaes do poder e o controle da populao (Roma imperial, Renascimento, Barroco).

    Ibidem p. 25.

  • 31

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.19: Boulevard Haussmann, Paris, 2007.

    Fonte: PANORAMIO 2010.

    Figura 1.18: Rue de Paris, temps de pluie, Gustave Caillebotte, 1877.

    Fonte: Art Institute of Chicago Building.

    A cidade industrial do sculo XIX

    No sculo XIX nascem algumas tendncias atuais, caractersticas prprias das sociedades e cidades

    contemporneas. A principal delas o aumento da esfera privada, pois a sociedade da industrializao privilegiou

    o indivduo sobre o grupo. As manifestaes sociais que at o momento se produziram nas ruas passaram a se

    realizar no interior das construes, marcando a distino entre espao pblico e privado, ainda com grande

    ateno na esttica e no desenho dos espaos urbanos, bem comum entendido como propriedade de todos os

    cidados.

    O movimento de massas em uma rua com uma nica funo era o nico passo que precisava fazer para privilegiar aos indivduos com

    interesses prprios no meio da multido. (Sennet, 1994) 17

    Nas sociedades industriais, as diferenas de classe se evidenciam no espao pblico, mas esses continuam

    sendo de convvio para toda a cidadania, sendo a multido usuria passiva e contemplativa, um espao para olhar

    e se mostrar. Isso consequncia da especializao dos edifcios, deslocando a diversidade de manifestaes e

    atividades que at o momento aconteciam no mesmo lugar para o interior de espaos especializados.

    Assim como na antiga Roma, houve um processo similar no desenho dos espaos urbanos e a expresso

    do poder, resultando em um enfraquecimento da vida urbana no espao pblico. Porm a vitalidade das cidades no

    sculo XIX, simbolizada pelos bulevares de Paris e seus flneurs, implica uma experincia no convvio e diversidade

    que se antecipa dos espaos pblicos contemporneos18 (MART, 2004).

    O nascimento dos espaos coletivos como locais de interao e com acesso negociado se d nesse momento,

    se materializando nas primeiras galerias comerciais cobertas. Em 1780 aparece um novo tipo de rua que reloca

    grande parte dos comrcios no miolo das quadras, at a apario dos grandes centros de lojas em 1855 (Louvre),

    antecedentes dos centros comerciais modernos, o que se acentuou com o passar do tempo.

    Ibidem p. 23. Ibidem p. 25.

  • 32

    CAPTULO 1

    Figura 1.20: Paris, intervenes do baro Haussmann, 1852. Fonte: MORRIS, 1979.

    Figura 1.22: (pgina seguinte) Plano para

    Regent Street y Regents Park, Jonh Nash, 1811.

    Fonte: MORRIS, 1979.

    Em contrapartida, junto ao espao pblico vital e os espaos coletivos de acesso

    controlado, na cidade do sculo XIX os espaos monumentais e simblicos que exaltavam

    os valores sociais no foram substitudos, mas adquiriram novas funes. O Estado-

    Nao usou, como poucos sistemas anteriores, o espao pblico para manifestaes

    massivas, tanto de reafirmao da identidade nacional, como de reivindicao dos

    iderios polticos19 (MART, 2004). Alm disso, exalta-se o indivduo e a figura do Estado,

    o desenho da cidade precisa ser capaz de dominar a populao, evitando revoltas das

    classes operrias motor da produo industrial.

    A cidade de Londres ilustra bem o paradigma da cidade industrial, com os

    projetos de John Nash para o Regent Street e o Regents Park, espaos desenhados com

    muito cuidado, valorizando o espao pblico. A cidade desenhada por um urbanismo

    higienista, transformada para a expresso do cidado, as manifestaes sociais nos

    espaos cvicos perdem fora e novos espaos de acesso controlado so priorizados. Isso

    tambm alimentado pelo deslocamento das classes populares das reas mais centrais.

    O planejamento urbano do sculo XIX tentou criar uma massa de indivduos que se deslocaram com

    liberdade, mas dificultar o movimento de grupos organizados pela cidade. (Sennett, 1994) 20 As primeiras experincias de planejamento baseado na mobilidade aconteceram

    nesse perodo, quando surgiram as estaes de trem em cidades como Londres ou

    Paris, catedrais de ferro do sculo XIX, que, junto com seu simbolismo como progresso

    tecnolgico, se destacam pela monumentalidade, consideradas espaos (pblicos) de

    uma evidente dimenso cvica. Com elas, o transporte pblico, gerando espaos nessa

    urbanidade, colabora para o zoneamento das classes na cidade, pois, como no caso do

    metr de Londres, as classes trabalhadoras conseguiriam se deslocar para as regies

    centrais espaos cvicos desenhados nos quais ocorria a interao cidad sem a

    necessidade de morar prximo a eles. Nessa cidade industrial, as melhorias urbanas dos

    centros provocaram o que, em termos contemporneos, se define como gentrification,

    alterando os modos de usar o espao pblico, deslocando as classes sociais dos centros

    valorizados e especializados. Ibidem p. 25.0 Ibidem p. 23.

  • 33

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.21: Regent Street, Londres, 2005.

    Arquivo do autor.

    Com o trnsito massivo, seguindo o modelo do metr, nasceu a morfologia da geografia temporria do centro urbano moderno:

    congestionamento e diversidade durante o dia, descongestionamento e homogeneidade durante a noite. E essa mescla durante o dia

    no implicava um contato significativo entre classes. As pessoas trabalhavam e compravam, e depois voltavam para as suas casas.

    (Sennet 1994)21

    Dessa forma, a cidade do sculo XIX mostra como o espao pblico conserva uma forte dimenso coletiva, que essa dimenso coletiva,

    plasma se de diversas maneiras em cada poca histrica e que numa mesma cidade podem coexistir espaos coletivos diversos (espaos

    pblicos cvicos, espaos fechados de relacionamento e espaos monumentais). (Mart, 2004)22

    O percurso realizado por diferentes paradigmas urbanos mostra processos vividos por sociedades de

    diferentes episdios histricos. Com um incremento da complexidade funcional na cidade industrial, estabelecem-

    se novos parmetros para a leitura da vida urbana, nas quais as infraestruturas de mobilidade configuram novos

    cenrios, como as estaes de trem, peas-chave no desenvolvimento das cidades do sculo XIX.

    Para se falar de urbanidade, fundamental entender a necessria boa articulao entre os espaos pblicos

    cenrios nos quais a sociedade se exibe e os espaos coletivos locais com vocao pblica, mas de uso restrito

    e especializado. Humanizar esse conceito nos leva a pensar no flneur de Baudelaire, homem que passeia pelas

    ruas sem rumo, sem objetivo, aberto a todas as vicissitudes e impresses que lhe aparecem. A ambiguidade de seu

    carter pode ser facilmente associada a essa ideia de urbanidade, conceito imaterial, mas fundamental para que as

    formas materiais da cidade tenham sentido.

    Ibidem p. 23. Ibidem p. 25.

  • 34

    CAPTULO 1

    Figura 1.25: (pgina seguinte) A aplicao dos princpios do modernismo deu como resultado conjuntos habitacionais como Pruitt-Igoe, (Estados Unidos) demolido em 1972.

    Fonte: USGS photograph, 1963-1972.

    Figura 1.23: Plan Voisin, aplicao dos conceitos da Ville Radieuse em Paris, 1925. Fonte: Fondation Le Corbusier.

    1.2 O urbanismo modernista: da Carta de Atenas ao corao da cidade

    A dimenso simblica do espao pblico tem grande importncia em sucessivas formas urbanas ao longo

    da histria. O urbanismo funcionalista, promovido pelo modernismo, contrastou por sua proposta de cidade, na

    qual o espao pblico passou por uma mudana de significado.

  • 35

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.24: Capa de Can our cities survive?. Fonte: SERT, 1942.

    A Carta de Atenas, promovida por Le Corbusier e publicada aps o 4 Congresso

    Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM IV), de 1933, apostou na separao

    funcional dos lugares para moradia, lazer e trabalho, pondo em questo o carter e a

    densidade da cidade tradicional. Nesse tratado, proposta a implantao de construes

    em amplas reas verdes de baixa densidade. Essas bases tiveram grande influncia no

    desenvolvimento das cidades europeias aps a Segunda Guerra Mundial, assim como

    no desenho de novas urbes dessa poca. Em paralelo foi publicado o livro do arquiteto

    catalo Josep Llus Sert Can our Cities Survive?, que, com um tom menos contundente

    que a Carta, mais preciso e justificado, elaborava uma apresentao cheia de esquemas,

    grficos, desenhos, estatsticas e fotos. A coincidncia temporal dessas duas obras no

    foi casual e explica a importncia e a relao entre os dois arquitetos no mbito do

    urbanismo da poca.

    Para o arquiteto encarregado de planejar a cidade, as necessidades humanas e a escala humana de

    valores so as chaves para se realizar todo tipo de composio arquitetnica (Sert, 1942)1.

    Como manifesto do urbanismo modernista, os princpios da Carta de Atenas

    foram banalizados por muitos planejadores, que os utilizaram como um manual

    reducionista do urbanismo moderno, trazendo como consequncia algumas das mais

    inspitas paisagens urbanas contemporneas (MONCLS, 2011)2.

    As cidades so um imenso laboratrio de ensaio e erro, fracasso e sucesso, em termos de construo

    e desenho urbano. nesse laboratrio que o planejamento urbano deveria aprender a elaborar as

    suas teorias. Ao contrario, os professores especialistas nessa disciplina (se assim podem ser chamados)

    ignoram constantemente o sucesso e o fracasso na vida real, no sentem curiosidade respeito s razoes

    do sucesso inesperado, e pautam-se por princpios derivados do comportamento e a aparncia dos

    subrbios, sanatrios tuberculosos, mercados e cidades imaginrias perfeitas - qualquer coisa menos

    a cidade real. (Jacobs, 1961)3

    Sert, J. L. (1942). Can our Cities Survive?

    Moncls, J. (2011). Resea: Can our Cities Survive? La carta de Atenas segn Josep Llus Sert.

    Ibidem p. 16.

  • 36

    CAPTULO 1

    Figura 1.26: A Ville Radieuse de Le Corbusier, 1922. Fonte: Fondation Le Corbusier.

    Figura 1.27: Hochhausstadt, a cidade vertical de Ludwig Hilberseimer, 1924. Fonte: MORALES, 2008.

    A fragmentao urbana foi, em muitos casos, um processo racional incompleto, pois as problemticas da

    cidade se separaram, mas no se estabeleceu um processo sinttico para articular as solues. Primeiramente,

    a especializao das funes eliminou os espaos de uso misto, fundamentais para a interao e diversidade

    de usurios, base dos padres tradicionais de urbanidade. Os tecidos monofuncionais, resultado dessa soluo,

    negaram qualquer possvel situao de intercmbio. Alm disso, a fragmentao volumtrica das construes

    se materializou em volumes isolados, que somente tiveram significado individual, sem interao direta com o

    prprio entorno, dificultando uma leitura unitria do espao urbano. Como consequncia da mudana da escala

    da cidade, as distncias entre as funes cresceram, e cada problema foi resolvido separado, sem articulao com

    o restante. Nessa sntese da cidade, o espao pblico foi estruturado por sistemas monofuncionais distintos, o que

    at o momento tinha sido formalizado integrando as diversas funes urbanas segredadas.

    A ideia de se separar certas funes pblicas e culturais e as despoluir da cidade real era bem compatvel com as bases da cidade

    jardim. (Jacobs, 1961)4Os modelos de cidade que partiram dos princpios do urbanismo modernista so propostas que negam

    qualquer preexistncia urbana. A Ville Radieuse, de Le Corbusier, uma cidade para trs milhes de habitantes,

    precisava fazer tabula rasa onde fosse implantada, como seria proposto no Plan Voisin (1922) para Paris.

    Mas existem outros exemplos baseados nesses princpios, como a proposta da Hochhausstadt (1924), de Ludwig Hilberseimer, que trouxe os princpios modernistas com uma ideia de zoneamento menos radical que a de Le

    Corbusier, apostando na separao das funes no plano vertical. O que se evidencia em ambas as propostas, como

    em outras nascidas desse iderio, o protagonismo e a necessidade do automvel como sistema de locomoo

    individual.

    O urbanismo funcionalista do modernismo esqueceu a importncia da interao entre as diversas funes

    urbanas, dando respostas funcionais que isolam os cidados, sem levar em conta a necessidade dos espaos cvicos

    em uma cidade estritamente funcional. A simplificao no zoneamento junto com a organizao descontnua

    contradizem as condies estruturais prprias dos espaos pblicos cvicos (MART, 2004)5.

    Ibidem p.16.

    Ibidem p. 25.

  • 37

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.28: Galerias Vittorio Emanuele, Milano. Fonte: SERT,1952, (CIAM VIII).

    Os CIAM dos anos 1950

    As teses da Carta de Atenas defenderam a especializao das atividades nos tecidos monofuncionais em

    suas propostas de cidade; espao para habitao, indstria e lazer articulados pelas infraestruturas de transporte.

    Em contraposio a uma cidade que parte precisamente do contrrio: a mistura e a iterao das funes. Foi

    no oitavo Congresso Internacional de Arquitetura Moderna, em Hoddeson, no CIAM VIII (1951) que os prprios

    autores das teses funcionalistas refletiram sobre suas afirmaes precedentes. Em 1952, o mesmo Sert publica

    The Heart of the City, reunindo os artigos apresentados nesse ltimo congresso.

    Nesse evento, a arquitetura racional foi questionada, sendo considerada a responsvel pelos speros e

    cinzas conjuntos habitacionais construdos pelas experincias modernistas. Foi defendido um desenho de cidade

    capaz de enfatizar seus valores histricos e culturais, condensados nos centros urbanos tradicionais. Foi elogiada a

    gora grega e tambm barraca primitiva, fatos primordiais da sociabilidade humana, essenciais para a urbanidade

    (ESPALLARGAS, 2006).6

    No CIAM seguinte, em 1953, foi recuperado o conceito da rua, com propostas dos holandeses Van Eyck

    e Bakema e dos ingleses Smithson, posteriores fundadores do TEAM X. Apostou-se sobretudo em novas relaes

    entre os volumes edificados, procurando humanizar o espao urbano.

    As problemticas que acompanham as solues urbanas do fim do sculo XIX, as que j incrementaram a

    desagregao entre espaos livres fomentada pela especializao funcional da cidade industrial, foram consolidadas

    nas propostas do modernismo. possvel associar os princpios higienistas dos planos urbanos desenvolvidos

    no sculo XIX s propostas de separao funcional na Carta de Atenas, que foi um manual para a nova cidade,

    tentando resolver deficincias. Surpreende ver como a primeira modernidade no capaz de enxergar as virtudes

    dos espaos cvicos tradicionais, negando o passado, ao contrrio do que fizeram os modelos de interveno

    precedentes.

    Espallargas, L. (2006). A cidade dos prazeres. Vitruvius.

  • 38

    CAPTULO 1

    Figuras 1.29 e 1.30: Anlise fundo-igura em Collage City. Do lado esquerdo a cidade de Parma, e do direito, o plano de Le Corbusier para Saint Die. Fonte: ROWE-KOETTER, 1978.

    Figura 1.31: Capa de The Heart of the City. Fonte: SERT, 1952, (CIAM VIII).

    Dessa forma, perdeu-se o carter contnuo e unitrio que at ento se manteve nas estruturas urbanas,

    que contribura decisivamente para o signiicado coletivo da cidade. A falta de integrao das funes urbanas

    e a ignorncia frente s virtudes das preexistncias trouxeram como resultado a ausncia de uma possvel

    urbanidade tradicional na cidade moderna. O exemplo mais claro da aplicao desse modelo de cidade se encontra

    nas capitais desenhadas com base nos princpios modernistas, como Chandigarh, de Le Corbusier, ou Braslia, de

    Lcio Costa. Concebidas paralelamente durante os anos 1950, representavam novas cidades para novos mundos,

    projetos inalistas com pouca capacidade para evoluir que conservam ainda hoje a herana de grande parte das

    problemticas citadas.

    fragmentao funcional, volumtrica e estrutural, se adiciona um mal-entendido conceito da relao entre a modernidade e a

    universalidade. O movimento racionalista considera que a modernidade signiica ruptura e negao da tradio e que a universalidade

    incompatvel com as identidades e particularidades locais desprezando as todas, o que d a entender que no pensamento do Modernismo

    o sentido cvico do espao pblico no teve lugar. (Mart, 2004).7

    O im dos CIAM chegou acompanhado dessa crise de identidade. A autocrtica dos modernistas surgiu

    nos ltimos congressos, provocando a separao de seus componentes e a formao do TEAM X nos anos 1960,

    juntamente a outras vertentes urbansticas que apostaram na aproximao morfolgica do fato urbano, com

    ateno ao contexto local.

    7 Ibidem p. 25.

  • 39

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.32: Tabela de Alison e Peter Smithson no CIAM IX, com a temtica central sobre o hbitat. Preocuparam-se por mostrar a importncia da relao entre a habitao e a rua, atravs do estudo das formas de interao de cidadania nas formas fsicas do espao pblico, 1953. Fonte: VAN DEN HEUVEL, 2005.

    1.3 Os anos 1960 e a reivindicao da urbanidade

    As tendncias reducionistas de um urbanismo modernista mal-entendido afetaram de forma clara os

    centros urbanos tradicionais, enfraquecendo o sentido coletivo de espao pblico. O planejamento funcionalista

    procurou respostas para os problemas da cidade industrial (higiene, circulao e habitao), e, at a decadncia

    dos CIAM e a sada dos membros do TEAM X, em 1960, no houve um ponto de inflexo nos desafios para pensar

    a cidade.

  • 40

    CAPTULO 1

    O TEAM X e a humanizao da modernidade

    Buscaram-se conceitos e estratgias que contassem com as identidades individuais e coletivas, espaos

    para a apropriao cidad, em paralelo a um processo de modernizao das cidades. Isso uma clara preocupao

    com as especificidades dos contextos, integrando as qualidades locais e regionais do lugar ao desenho dos espaos,

    levando em conta as dimenses histricas e sociais para ser aplicadas na arquitetura e urbanismo modernos.

    As atitudes propostas passaram das solues universais s especficas para situaes locais, trocando o vis

    intencionado do racionalismo tecnolgico por outro inspirado na sociedade e na cultura, com uma profunda

    dimenso coletiva do espao pblico como lugar para a vida urbana.

    O desenho dos Crculos de Otterlo, feitos por Aldo Van Eyck (1959), expressa a necessidade de uma

    relao de reciprocidade entre arquitetura e sociedade. Como resultado dessa atitude, em contraposio ao vis

    generalista do modernismo, surgiram experincias de renovao urbana nos centros de algumas cidades, com

    o objetivo de recuperar a dimenso cvica desses lugares. Os projetos para regenerao dos vazios urbanos em

    Amsterd, com a instalao de vrios playgrounds iniciativa de Aldo Van Eyck , foram um claro exemplo da

    inteno de gerar espaos para uso coletivo, humanizando a cidade para assim recuperar a urbanidade perdida.

    Em arquitetura, um bom exemplo decorrente disso aparece nos edifcios do conjunto para The Economist, projeto

    dos Smithson em Londres, com vrias atitudes que visavam articul-lo com a cidade e tambm constru-la. Para

    tal, criaram um conjunto de quatro volumes dentro de uma nica quadra, com um percurso pelo miolo permevel,

    acima um embasamento usado como estacionamento no subsolo e uma praa na cobertura, integrando-se ao

    tecido urbano da Londres antiga com grande respeito (MORALES, 2009).1

    A modernidade em si no implica um enfraquecimento da esfera coletiva da sociedade, mas uma importante transformao. Em

    termos de espao pblico, a chegada da modernidade no se associa tanto com a perca do significado coletivo desses espaos, mas na

    sua evoluo. Se nas cidades das civilizaes holistas o simbolismo coletivo do espao pblico baseava-se nos espaos monumentais

    explicitamente referidos identidade, os valores e as instituies da comunidade, deixando em segundo plano os espaos cvicos de

    interao entre os cidados, nas cidades modernas, o espao cvico, o espao de convvio na diversidade supe a forma principal de

    espao que consegue preservar um significado coletivo. (Mart, 2004)2

    Ibidem p. 21.

    Ibidem p.25.

  • 41

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.33: ( esquerda) Antes e depois, playgrounds projetados por Van Eyck em Amsterdam, recuperao doa vazios de ps-guerra com espaos para a urbanidade, 1947. Fonte: VAN DEN HEUVEL, 2005.

    Figura 1.34: ( direita) Crculos de Otterlo, desenhados por Aldo Van Eyck, 1959. A necessidade de uma relao de reciprocidade entre arquitetura e sociedade. Fonte: VAN DEN HEUVEL, 2005.

    Figura 1.35: Conjunto de edifcios para The Economist, Alison & Peter Smithson, 1959. Fonte: MORALES, 2009

  • 42

    CAPTULO 1

    Figura 1.36: Kevin Lynch. Anlise perceptiva de Boston. The image of the city. Fonte: LYNCH, 1960.

    Figura 1.37: Gordon Cullen. Viso serial para a anlise urbana. Townscape. Fonte: CULLEN, 1961.

    Perspectivas para a urbanidade: a paisagem urbana de Kevin Lynch e Gordon Cullen

    Em paralelo s propostas urbanas do TEAM X entre outras que de certa maneira

    foram uma contraposio s da cidade modernista , nasceram no mesmo perodo varias

    anlises do espao urbano, menos propositivas, mas com clara atitude reivindicativa,

    descrevendo a importncia da experincia perceptiva da cidade e sem dvida associada

    manifestao da cidadania no espao pblico. Duas obras contemporneas trataram o

    conceito da paisagem urbana. Kevin Lynch publicou em 1960 The Image of the City, e Gordon

    Cullen, Townscape, em 1961.

    O estudo realizado por Kevin Lynch analisou a forma urbana partindo da imagem

    mental, ou seja, o produto da estrutura espacial e a experincia perceptiva do observador.

    Com esse estudo, se pretendeu dar forma visual cidade, entendendo os smbolos urbanos

    e definindo a necessidade de interpretar a forma urbana em relao concepo mental dos

    cidados, ponto-chave para compreender e transformar o espao urbano.

    Para explicar a percepo da paisagem urbana, Gordon Cullen construiu sequncias

    de perspectivas, ilustrando percursos dentro da cidade. Esse mtodo foi usado como crtica

    ao urbanismo funcionalista (universal) que, segundo ele, se esqueceu da emoo da vida na

    cidade (CULLEN, 1961).3 Nesse processo de percepo, trs fatores intervm: a ptica, o lugar e o contedo. Juntando-os, capta-se a realidade como um conjunto de relaes: conhecendo

    o principal instrumento (a ptica) e o recipiente (o lugar), nos ingredientes (o contedo) se

    percebe a vida urbana.

    Sem propostas de projeto especficas, as perspectivas desses autores foram uma

    grande contribuio aos estudos urbanos contemporneos. As anlises baseadas nas

    experincias perceptivas do lugar mostraram uma posio oposta viso generalista dos

    iderios do urbanismo funcionalista. De certa forma, eles procuraram o que no presente

    trabalho associado ao fenmeno da urbanidade.

    Cullen, G. (1961). El paisaje urbano. Barcelona: Gustavo Gili.

  • 43

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.38: Subrbio Americano, a ausncia de vitalidade urbana. Fonte: JACOBS, 1961

    A crtica cidade moderna: Jane Jacobs

    Tambm nos anos 1960, surge a igura de Jane Jacobs, jornalista americana que, com a obra Morte

    e vida das grandes cidades americanas (um dos livros mais inluentes nos estudos sobre planejamento urbano

    contemporneo), manifestou a problemtica urbana das cidades americanas, consequncia de um planejamento

    baseado nos cnones do urbanismo modernista.

    O urbanismo modernista no se interessava pelos aspectos urbanos que no puderam ser abstrados para servir sua utopia.

    Descartou particularmente a complexa e polifacetica vida cultural da metrpole. No tinha interesse nas questes de segurana pblica,

    intercmbio de ideias, funcionamento poltico ou criao de novas sadas econmicas nas grandes cidades, nem prestava ateno

    criao de novas maneiras de reforar esses atributos, porque, em deinitiva, esse tipo de vida no entrava nos seus planos. (Jacobs,

    1961)4Segundo a prpria autora, o livro era um ataque aos fundamentos do planejamento urbano e da

    reurbanizao vigentes nos Estados Unidos a partir da dcada de 1930. Primeiro com uma atitude reivindicativa

    e depois analtica, ela se centrou em questes diretamente conectadas ideia de urbanidade. Sua tese central

    associou o grau de urbanidade de uma cidade, de uma metrpole ou de um bairro, ao grau de vitalidade urbana ali

    presente.

    Vitalidade e decadncia no esto no texto de Jacobs em oposio simples, menos ainda em sucesso temporal. Para ela, manejar a

    complexidade urbana atravs de planos e projetos uma tarefa sria e necessria. Suas anlises, histrias, exemplos e citaes tm como

    eixo o reconhecimento das aes e situaes urbanas capazes de gerar ou de destruir essa vitalidade primordial. (Meyer, 2002)5

    Estabelecendo relao entre as funes e os espaos, a autora argumenta que as atividades da vida urbana

    e os espaos onde elas acontecem devem ter uma relao de respeito e humildade. O objetivo era identiicar,

    usando exemplos cotidianos, as caractersticas que desqualiicam o espao da vida urbana, diicultando a presena

    de uma possvel urbanidade, e aquelas que, corretamente situadas, podem restaurar sua vitalidade essencial.

    Talvez o papel da cidad annima que Jane Jacobs toma para vivenciar a cidade um dos maiores convites para

    reletir sobre a necessidade dos espaos para a urbanidade na metrpole moderna.

    4 Ibidem p.16.

    5 Ibidem p.16.

  • 44

    CAPTULO 1

    Figura 1.39: Las Vegas e a sua Strip. A concepo da via motorizada a como rua principal da cidade tradicional. Learning from las Vegas. Fonte: VENTURI, SCOTT BROWN, 1978.

    Robert Venturi: Learning from las Vegas

    Passada a dcada dos 1960 rica em pesquisas que defendem recuperar os valores

    da cidade tradicional , surge o estudo acadmico realizado na Universidade de Cambridge,

    Learning from Las Vegas (1972), dirigido pelos arquitetos Robert Venturi, Steven Izenour e

    Denisse Scott Brown, que procuraram resaltar a importncia do significado da arquitetura,

    para alm de sua dimenso espacial e formal. Aprendendo com Las Vegas veio a defender que

    pode se aprender de tudo, pois dificilmente existe uma cidade que use de forma mais banal o

    simbolismo dos valores histricos e da sociabilidade humana. Foi objeto de provocao, e por

    isso importante entender a essncia de sua tese que descreve o que podia ser identificado

    como a urbanidade da via expressa norte-americana.

    A arquitetura deveria ser, no ltimo quarto deste sculo, socialmente menos coercitiva e esteticamente mais

    vital que as porfiadas e redundantes construes do nosso passado recente. Ns arquitetos podemos aprender

    isso de Roma e Vegas, e de quanto vejamos ao nosso redor sempre que nos possa acontecer. (Venturi, Scott

    Brown e Izenour, 1977)6

    Defendendo que toda cidade de alguma forma possui espaos nos quais a sociedade se

    manifesta, seu desafio foi de certa forma definir uma urbanidade para Las Vegas. Usando a ideia

    de paisagem urbana, descreveram a cidade, partindo da percepo da paisagem do interior

    de um carro em movimento. A vida ali manifesta-se na circulao de veculos sobre as strips

    (corredores comerciais), construdas seguindo uma ordem complexa, nas quais os painis

    publicitrios e os estacionamentos so a imagem perceptvel e a estrutura que conforma o

    espao pblico. A anlise das vias comerciais da cidade contempornea era to importante

    para a arquitetura e o urbanismo do momento, como o foram os estudos da cidade clssica para

    as geraes anteriores.

    A rodovia 91 atravessa Las Vegas e o paradigma da via comercial, fenmeno que aqui acontece na sua forma mais pura e intensa. Cremos que a documentao e as anlises cuidadosas da sua forma fsica so to

    importantes para os arquitetos e urbanistas de hoje como foram os estudos da Europa medieval e a Grcia e a

    Roma antigas para as geraes precedentes. (Venturi, Scott Brown, & Izenour, 1977)7

    Venturi, R., Scott Brown, D., & Izenour, S. (1978). Learning from las Vegas. Massachusets: MIT Press. Idem.

  • 45

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.40: (pgina anterior) Mapa Nolli do asfalto de Las Vegas. Anlise da Strip, destacando as reas para a circulao de automveis (Pistas e estacionamentos dos cassinos). Learning from las Vegas. Fonte: VENTURI, SCOTT BROWN, 1978.

    Figura 1.41: A gora do asfalto. Learning from las Vegas. Fonte: VENTURI, SCOTT BROWN, 1978.

    O estudo desses elementos no foi realizado para compar-los ao antigo ou diferente, mas para entender

    quais os elementos da realidade na cidade contempornea. Para isso, era necessrio dirigir o olhar para cenrios

    que at o momento no tinham sido levados em conta, fossem grandes estacionamentos ou publicidades luminosas,

    trazendo novas leituras da cidade. A pesquisa no emitiu um juzo da esttica ou das funes dos cassinos de Vegas,

    mas pretendeu desenvolver novas tcnicas de anlises urbanas para questionar a tradicional mirada acadmica das

    cidades, especialmente para os arquitetos, que, segundo os autores, perderam o hbito de olhar imparcialmente

    para o prprio entorno, sendo intolerveis com aquilo existente que escapava s suas ideias preconcebidas.

    Os arquitetos perderam o hbito de olhar ao seu entorno imparcialmente, sem pretender juzos de valor, convencidos como esto de

    que a arquitetura moderna ortodoxa progressista, quando no revolucionria, utpica e purista; e sentem-se insatisfeitos com as

    condies existentes. (Venturi, Scott Brown e Izenour, 1977)8

    A excluso da vivncia cvica do espao pblico na cidade parece assumida por Venturi, propiciando a

    proliferao de no lugares: espaos sem sentido, que no servem para ser espaos de identificao caractersticas

    fundamentais da urbanidade , fato j apontado de alguma forma por Jane Jacobs. A obra de Venturi o primeiro

    antecedente que assume as manifestaes genunas da evoluo da sociedade contempornea, marcada por uma

    individualizao e reducionismo em incremento (MART, 2004).9 As cidades europeias, embora experimentassem um processo de renovao urbana propiciado pelas

    tendncias dos anos 1960, tambm sofreram uma evoluo que no escapou dos fenmenos de segregao urbana

    e espacializao funcional, to presentes nas cidades americanas. A evoluo de uma sociedade marcada por

    valores consumistas da globalizao fomentou a gerao desses no lugares, projetos sedativos para vitalidade

    das cidades. Por isso, os espaos que Francoise Choay descreve como lugares de interesse coletivo, de conscincia

    cvica, a margem das leis do consumo, de sociabilidade e solidariedade, espaos simblicos de identidade e

    eventos coletivos 10 no encontram lugar em um mundo urbano globalizado. Isso traz uma cidade que se expande

    em funo de fatores tecnolgicos e econmicos, sem incorporar as caractersticas necessrias para funcionar de

    forma simbitica com suas preexistncias.

    Ibidem p. 43.

    Ibidem p. 25.

    0 Choay, F. (2004). El reino de lo urbano y la muerte de la ciudad. Em: Lo Urbano en 20 autores contemporneos . A.Martn, ed. UPC

  • 46

    CAPTULO 1

    Figura 1.42: Downtown Athletic Club, 1931, arquitetos Starrett & Van Vleck. 9 andar, para comer ostras com luvas de boxe, nus, na planta ensima (...) uma mquina para solteiros metropolitanos.

    Fonte: KOOLHAS, 1978.

    1.4 O fenmeno metropolitano

    A denominada vida moderna est intrinsecamente associada dimenso urbana metropolitana. A

    organizao da vida material, as referncias culturais, relaes sociais e polticas, o mundo afetivo, esto intimamente

    relacionados realidade e aos impactos da condio metropolitana (MEYER, 2004)1. O fenmeno global provoca

    a proliferao dos no lugares, espaos pblicos annimos, sem sentido, incapazes de promover processos de

    identificao e ser utilizados como referncia da comunidade (AUG, 1993).2 No processo de segregao urbana, a

    negao dos espaos de urbanidade produto do desenvolvimento urbano dominado pelos poderes do capital, o

    que acontece espacialmente nas metrpoles em processos de expanso, as chamadas megacidades, que viraram

    cidades globais.

    Meyer, R. (2004). Os centros das Metrpoles. So Paulo: Associao Vivaocentro, o Terceiro Nome.

    Aug, M. (1993). Los no lugares, Espacios del anonimanto. GEDISA.

  • 47

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Na cidade contempornea, o lugar tomou a forma de um entorno urbano caracterizado pela

    fragmentao, a distoro e o barulho causados por diversas realidades que justapem-se e

    enfrentam-se. A beleza destes espaos caticos, inspitos e complexos somente pode se captar

    desde uma sensibilidade especial. (Forti, 1999)3

    So bastante conhecidas as teses que afirmam como as mudanas nas esferas

    econmico-produtivas e na tecnologia esto sempre associadas a transformaes na

    esfera urbana. A adaptao urbana radical das metrpoles do primeiro perodo do

    capitalismo, o paradigma das quais ainda se encontra no conjunto de obras executadas

    em Paris no fim do sculo XIX, criaram um modelo de relao entre as demandas

    do sistema econmico e a organizao fsico-espacial das cidades (MEYER, 2004).

    Leonardo Benvolo4 conta como o urbanismo moderno nasceu dessa experincia histrica, transformando em instrumento de trabalho encarregado de pensar, projetar

    e executar as modernizaes e adaptaes que garantiriam o desenvolvimento das

    cidades industriais.

    O sculo XX testemunha dos progressos e tambm dos dilemas do urbanismo

    nessas cidades, nas quais os ideais urbanos propostos nos anos 1920 pela doutrina

    do urbanismo funcionalista aspiravam transformar a sociedade industrial com um

    novo espao construdo. O processo metropolitano nas cidades vem acompanhado

    de questes muito delicadas, como fenmenos de marginalizao social, destruio

    da sustentabilidade ambiental, ameaa de homogeneizao contraria identidade,

    avano nocivo do espao privado sobre o pblico e tambm a destruio de antigas

    reas centrais (MEYER, 2004).

    Forti, J. M. (1999). Lexploraci del pla horitzontal. Barcelona: Tesi doctoral, UPC.

    Benevolo, L. (2006). A cidade e o arquiteto. Lisboa: Edies 70, LDA.

    Ibidem p. 46.

  • 48

    CAPTULO 1

    Figura 1.43: (pgina seguinte) Highway 405, Los Angeles, 2011.

    Fonte: http://www.wnyc.org/ (Consultado em 20-01-2015).

    Figura 1.44: (pgina seguinte) City Expressway, Hong Kong, 2012.

    Fonte: http://www.pbase.com/ (Consultado em 20-01-2015).

    Infraestruturas metropolitanas e fenmenos de descentralizao

    No processo de expanso metropolitana surgem novos espaos associados rede de infraestruturas,

    priorizando a acessibilidade a pontos cada vez mais afastados dos centros tradicionais, expandindo a mancha urbana

    sem limites. As novas centralidades se organizam seguindo a lgica da eficcia viria. Quase sempre so conjuntos

    edificados com usos mltiplos, autnomos em relao aos lotes vizinhos. Chamados de clusters, nichos urbanos

    isolados desde o ponto de vista fsico e funcional de um contexto geral, e, como apontado anteriormente, de natureza

    monofuncional, autista da cidade existente.

    As cidades atuais so as cidades das redes. um enorme territrio nunca homogneo nem istropo. um territrio hierarquizado pelos

    poucos espaos centrais que essas redes provocam e que se sumam aos centros histricos tradicionais; e com o mesmo sentido, um territrio

    caracterizado por enormes zonas marginais que, no seu negativo, so produzidos por essa hierarquia. At tais extremos que o velho conceito

    de centro e periferia perdeu o seu sentido: so muitos os centros, e entre eles, ficam implantadas as periferias. (Herce, 1998)6 A baixa densidade, a descontinuidade, a falta de articulao que realmente estrutura os diversos assentamentos,

    a fragmentao formal, a importncia dos deslocamentos e a velocidade no funcionamento desse modelo de

    desenvolvimento urbano so fatores pouco idneos para a apario de espaos cvicos (MART, 2004)7. Por isso, o

    fenmeno urbano perde sua identificao no espao esttico e passa a ser entendido como espao entre fluxos, o que,

    segundo Jordi Borja, assegura a articulao entre trechos urbanos aparentemente descontnuos e desarticulados

    (BORJA, 2004)8.

    Alm disso, esse fenmeno de expanso propiciador de uma cidade de no lugares, de tecido pouco denso

    e descontnuo, se associa degradao da cidade tradicional. A fragmentao, atributo indiscutvel da organizao

    metropolitana, no deve ser confundida com a dissoluo das partes que a compem, especialmente seu centro.

    Sem abusar de uma generalizao excessiva, pode se afirmar que a relao entre expanso da mancha urbana e corroso dos espaos

    centrais, sobretudo baseada no transporte sobre pneus, fundamental para chegar a diagnsticos menos restringidos, tanto do ponto de

    vista funcional como do territorial. (Meyer, 2004)9

    Herce, M. (1998). Proyectos de infraestructuras y ordenacin urbana. Revista del colegio de ingenieros de caminos, canales y puertos .

    Ibidem p.25.

    Borja J. (2004). Os centros das metrpoles. So Paulo: Associao Vivaocentro, o Terceiro Nome. Ibidem p.46.

  • 49

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Segregao e privatizao dos espaos para a vida coletiva

    Antecedentes como o CIAM VIII, ou seu apndice, o TEAM X, apontaram

    como a humanizao da vida nas cidades depende diretamente da recuperao

    dos espaos destinados vida coletiva, esquecidos nos processos de expanso

    metropolitana. Se, durante os anos 1950 e 1960, as influncias do urbanismo

    funcionalista do modernismo fizeram proliferar espaos monofuncionais vinculados

    a um rodoviarismo em incremento, atualmente essa monofuncionalidade tambm

    est relacionada s atividades ldico-comerciais. Os recintos e artefatos dedicados

    a essas atividades se apresentam como espaos coletivos de uso massivo, que, em

    muitos casos, enfraquecem o espao pblico ao redor. O espao pblico esteve

    historicamente vinculado atividade comercial, uma das funes que o reforava

    como marco de urbanidade, evoluindo da gora grega at as galerias comerciais do

    sculo XIX. A monofuncionalidade dos artefatos de consumo contemporneos os

    isola da interao com outras funes urbanas.

    Na medida na que o programa funcional e a configurao formal desses complexos est pensada

    para fomentar o consumo, convertendo ao cidado em consumidor, reduzem se os fatores que

    fazem que o espao pblico seja cvico, um espao de convivncia entre cidados com interesses

    diversos, que favorea as relaes interpessoais. (Mart, 2004)10

    0 Ibidem p.25.

  • 50

    CAPTULO 1

    Figura 1.45: Shopping Centre em Roseville, Estados Unidos. Fonte: http://www.westfield.com/ (Consultado em 20-01-2015).

    Figura 1.47: Interior de Shopping Centre em Sidney, Austrlia. Fonte: http://www.westfield.com.au/ (Consultado em 20-01-2015).

    Figura 1.48: Condomnio fechado em Campinas, So Paulo. Fonte: FERREIRA, 2010

    A privatizao do espao pblico tendncia clara em muitas cidades. No caso do Brasil, essa privatizao se manifesta tanto no cotidiano da rua com o surgimento

    de pessoas dedicadas a reservar e supervisionar vagas de estacionamento, ou a instalao de grades que privatizam bairros para a circulao exclusiva dos moradores ,

    como na construo de condomnios, conjuntos residenciais cercados por muros, com espaos de lazer prprios, nos quais se simula uma falsa urbanidade, privilegiando a

    segurana, a privacidade e a exclusividade. Esses so efeitos da violncia urbana, no unicamente resultado das diferenas sociais, promovendo situaes de delinquncia e

    insegurana, mas tambm da concorrncia pelo domnio de um escasso e pouco qualificado espao pblico.

    A negao do entorno mais prximo uma caracterstica comum tanto nos grandes artefatos comerciais como nos bairros fechados, que criam um mundo interno e

    nos quais a obsesso pelo consumo, privacidade e segurana isolam os usurios da cidade real. O potencial de interao desses espaos inversamente proporcional ao grau

    de restrio de seu acesso (MART, 2004)11. O convvio entre espaos fisicamente fechados e espaos pblicos no deveria ser um inconveniente para que a vida urbana fosse

    articulada entre as esferas pblica e a privada. Os antecedentes urbanos estudados anteriormente so espaos urbanos capazes de oferecer vitalidade urbana; a existncia

    e proliferao de novas tipologias de habitao e lazer privado (espaos fechados, de acesso restringido) so incompatveis com a possibilidade de uma experincia cvica mais rica.

    A monofuncionalidade pode ser um fator corrosivo no interior das cidades. Atividades pouco diferenciadas produzem espaos homogneos, indistintos e de pouca vitalidade. (Meyer, 2004)12

    Ibidem p.25.

    Ibidem p.20.

  • 51

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    Figura 1.49: Jardim das Perdizes, conjunto habitacional fechado de alto padro em So Paulo, Fonte: http://www.jardimdasperdizesoficial.com.br/ (Consultado em 25-01-2015).

    Figura 1.50: Publicidade de empreendimentos imobilirios em So Paulo. A venda de um padro de vida, uma falsa urbanidade.

    Arquivo do autor, 2012.

    A segregao espacial, que transforma bairros em

    guetos urbanos, e o clima de insegurana, que se gera fora dos

    espaos fechados, dificulta a existncia de espaos cvicos nas

    metrpoles contemporneas. Os espaos arquitetnicos e urbanos

    (ou antiurbanos) presentes nessa organizao metropolitana

    geralmente so determinados por padres ditados pelas formas

    de produo globalizada e pela cultura contempornea que as

    acompanha. Indiferentes funcional e culturalmente cidade

    preexistente, proliferam as estruturas desenraizadas por todo o

    planeta, justificando a noo de generic city, proposta por Rem

    Koolhas13 em seu ensaio com o mesmo nome. Em linhas gerais, o

    autor demonstra que o subrbio genrico no parte residual da

    cidade contempornea, mas sua prpria essncia (BRAGA, 2006).14

    Koolhas, R., & Mau, B. (2005). S,M,L,XL. Rotterdam: 010 Publishers.

    Braga, M. (2006). Infraestrutura e projeto urbano. So Paulo: Tese de doutora-

    mento, USP.

  • 52

    CAPTULO 1

    Figura 1.51: Foto da favela de Paraispolis, So Paulo. Tuca Vieira, 2007.

    Fonte: http://www.tucavieira.com.br/ (Consultado em 25-01-2015).

    Figura 1.52: Praa da Repblica, So Paulo. Nelson Kon, 2005.

    Fonte: http://www.nelsonkon.com.br/ (Consultado em 25-01-2015).

    Figura 1.53: Avenida Paulista, So Paulo. Federico Cairoli, 2010.

    Fonte: http://www.federicocairoli.com/ (Consultado em 25-01-2015).

    Evidencia-se que entre espao coletivo e espao pblico existe uma intensa

    relao dinmica que deve ser estimulada e propiciada pelo projeto urbano, o

    urbanismo pode contribuir com a coexistncia de espaos de privacidade e espaos

    de relao diversos, fomentando um modelo de cidade mista no qual o espao

    pblico tenha papel integrador dos diferentes usos a favor de uma urbanidade

    metropolitana.

    So os espaos ambguos nos que se decide a forma pblica das nossas cidades. A periferia

    metropolitana, verdadeiro centro paradoxalmente da vida futura das nossas cidades, estar

    formada por espaos que sem a retrica da representatividade formal, significaro os lugares

    de interesse comum. Essa a tarefa dos desdenhadores pblicos no projeto da cidade moderna:

    criar esses lugares intermedirios. Nem pblicos nem privados, mas todo o contrrio, espaos no

    estreis, no dedicados exclusivamente publicidade e ao benefcio, mas partes estimulantes do

    tecido urbano multiforme. (Morales, 1992)15

    Morales, M. d. (12 / Mayo / 1992). Espacios pblicos y espacios colectivos, un nuevo reto: urbanizar

    lo privado. La Vanguardia .

  • 53

    Uma urbanidade para a metrpole contempornea

    A vida nas metrpoles: uma nova urbanidade

    Junto ao espao tradicional da cidade e de suas atividades urbanas, a

    organizao metropolitana introduz novos espaos e um estilo de vida com novas

    caractersticas. A vida metropolitana foi essencialmente moderna em todos os seus

    aspectos desde sua origem. Nela se organizou a sociedade de classes e emergiram a

    multido e as massas, se desenvolveu uma nova forma de cosmopolitismo e nasceu

    o indivduo moderno. No mbito da vida espiritual e individual, prevaleceram alguns

    traos desse indivduo, como a ambiguidade e a angstia, que se tornaram as suas

    principais caractersticas psicolgicas, pois seduzido pelas variadas formas de

    modernizao da vida quotidiana reconhecia as suas limitaes e conlitos (BRAGA,

    2006).16 O territrio metropolitano um fenmeno no qual a dimenso temporria acaba por predominar sobre a espacial, o que Manuel Castells deine como a

    transformao mais radical das car