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Alexandre Carneiro de Souza

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Souza, Alexandre Carneiro de, 1957-

Pentecostalismo: de onde vem, para onde vai?; um desafioàs leituras contemporâneas da religiosidade brasileira /Alexandre Carneiro de Souza. — Viçosa : Ultimato, 2004.

152p.Inclui bibliografia

ISBN 85-86539-73-2

1. Pentecostalismo. 2. Igreja e problemas sociais - Igrejaprotestante. I. Título.

CDD. 20.ed. 270.82

Ficha catalográfica preparada pela Seção de Catalogaçãoe Classificação da Biblioteca Central da UFV

S729p2004

Copyright © 2004, Alexandre Carneiro de Souza

Primeira Edição: Setembro de 2004

Revisão: Daniela Cabral

Projeto Gráfico: Editora Ultimato

Capa: BJ Carvalho

PUBLICADO NO BRASIL COM AUTORIZAÇÃO

E COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS PELA

EDITORA ULTIMATO LTDACaixa Postal 4336570-000 Viçosa, MGTelefone: 31 3891-3149 — Fax: 31 3891-1557E-mail: [email protected]

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SUMÁRIO

Prefácio 07

Introdução 11

1. Pentecostalismo: desenvolvimentohistórico e ética 15

2. Pentecostalismo e cultura: vácuose incorporações 33

3. A gestão do poder no pentecostalismo 55

4. A magia pentecostal e a magia do mercado:a valorização contemporânea do corpo 73

5. O empreendedorismo pentecostal eo espírito do mercado 91

6. A inserção do pentecostalismo noprotestantismo brasileiro 113

Notas 137

Bibliografia 145

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PREFÁCIO

CONHECI ALEXANDRE quando ele ainda era um garoto eestudava numa escola pública perto do bairro onde vivemos anossa infância. Sua mãe, uma piedosa do protestantismopentecostal, freqüentava a igreja em que meu saudoso pai, JoãoQueiroz, fora pastor. Ainda bem jovem, Alexandre começou aestudar teologia e sociologia. Hoje é o pastor titular dessa mesmaigreja há mais de 10 anos e transita nas mais diversas comunida-des de expressão protestante. Assim, conhece o mundo religiosoprotestante como participante ativo.

Ele tem sido reconhecido não somente como um homem ín-tegro, mas também como um estudioso e praticante dos ensinosde Jesus Cristo e, nos últimos anos, pelo critério acadêmico deseus trabalhos. É um dos poucos cientistas que conseguem

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manter uma reflexão aguçada e inteligente aliada a umaespiritualidade profunda e engajada socialmente. Suas atividadesreligiosas e acadêmicas o têm tornado um participante das expe-riências consideradas sobrenaturais, bem como um pensador quese esforça para se manter eqüidistante do seu próprio campo deobservação.

Ler em primeira mão o texto do Alexandre deu-me a chancede perceber o pentecostalismo não apenas como um segmentoreligioso, mas como um modo de ser do religioso pobre, queencontra no pentecostalismo uma forma alternativa de expressara sua fé. Na relação com o sagrado, o pobre ou o desprovido depoder (seja de que natureza for) encontra na divindade umacapacidade singular de agir como se ele mesmo fosse, a partir desua experiência, uma continuação da manifestação de Deus nocotidiano de quem sofre. Enquanto que na teologia opentecostalismo é um fenômeno sobrenatural, na sociologia é umfenômeno “sobre o natural” (a respeito do cotidiano).

O autor aborda o pentecostalismo a partir de critérios científi-cos de pesquisa, levando em consideração mais aspectos socioló-gicos do que teológicos. O leitor encontrará um quadro analíticoconstruído com considerável rigor, em que as afirmações e osquestionamentos são acompanhados, em grande parte, deconstatações empíricas, submetidas a inquirições de cunho socio-lógico. Verá que cada problema remete a uma série de outrosproblemas, num encadeamento sem fim, acerca dos quais, pelanatureza do pentecostalismo, não se pode enquadrar o fenômenode forma definitiva. Quem sabe, de maneira involuntária, devidoao rigor acadêmico, o autor esteja afirmando o que um pentecostalmilitante diria sobre o fenômeno: “É mistério!...”.

O texto ficou condicionado ao “modo de ser” do fenômenoreligioso pentecostal — uma expressão religiosa que, na interpre-tação do autor, “é um acontecimento religioso em processo”. Olivro transcende as tentativas de respostas estanques. Além de nos

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PREFÁCIO / 9

ajudar a compreender o pentecostalismo, pode nos ajudar acompreender também outros fenômenos sociais.

À semelhança do pentecostalismo, todos somos um fenômenoinacabado. Que a leitura deste livro, além de trazer contribuiçõesanalíticas, seja um instrumento em nossa contínua e ilimitadaconstrução do pensamento, que, sendo alimentado pelosopro do Espírito, não se sabe de onde vem, nem para ondevai... (Jo 3.8).

CARLOS QUEIROZ

Fortaleza, setembro de 2004.

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INTRODUÇÃO

O PENTECOSTALISMO VEM-SE constituindo numfenômeno religioso amplamente discutido. No Brasil, nestas trêsúltimas décadas, as igrejas pentecostais conquistaram visibilidadenacional. Têm atraído para os seus redutos centenas de milharesde pessoas e despertado a sociedade brasileira para a emergênciade uma possível força social capaz de influenciarsignificativamente, não apenas o quadro religioso, mas também osocial e o político do país.

As igrejas pentecostais atuam e crescem fundamentadasnuma teologia evangelística agressiva e numa prática litúrgica“barulhenta”. O pentecostalismo adiciona ao ato religioso osensacionalismo e o espetáculo, acompanhados de um produtodoutrinário que intervém prioritariamente nos universos da dor,

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da angústia e da ansiedade da existência humana, trabalhando osconflitos do aqui e do agora.

Esse movimento deixa atrás de si uma trilha de impactos erepercussões. O seu crescimento acelerado promove um desmon-te na configuração religiosa do país, cujas principais seqüelas sãodebitadas às religiões afro-brasileiras e ao catolicismo. Os gruposque exercem influência sobre a opinião pública do país, a exem-plo da Igreja Católica e da mídia, se mostram intrigados com aamplitude desse crescimento.

Além disso, o meio protestante mostra-se abalado devido à suaaparente incapacidade de lidar com a diversidade religiosa, co-mandada pelo volume cada vez maior de renovações do produtoda fé pentecostal. E o movimento recebe críticas das mais dife-rentes direções devido a alguns de seus métodos e estratégias, nemsempre respaldados eticamente.

A atenção que o movimento pentecostal vem despertando nasociedade em geral tem suscitado um número cada vez maior deinformações veiculado pela mídia e pelo meio científico. Este li-vro defende a adoção de métodos de pesquisa que analisem ofenômeno sem perder de vista a sua formação histórica e os cami-nhos internos de sua estruturação enquanto construção simbóli-ca de uma crença coletiva.

As idéias expostas aqui foram retiradas de construções bemmaiores — uma dissertação de mestrado (1993-1996) e uma tesede doutorado (1999-2003), apresentadas ao departamento de so-ciologia da Universidade Federal do Ceará. Apesar disso, não fal-ta um direcionamento analítico, cuja pretensão é entender opentecostalismo brasileiro a partir de sua ancestralidade, conside-rando o desenvolvimento de sua cultura religiosa sem perder devista a dimensão ética da crença, seus conflitos e suas transições.

O estudo é exposto com base em duas pressuposições simplese ao mesmo tempo complexas. Primeiro, as práticas religiosas, adespeito da pluralidade e das distinções, são elaborações culturais

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que nascem concretamente das relações que os indivíduosestabelecem entre si para formar e reformar o social. Segundo,em conseqüência dessa pressuposição, a análise parte da idéiade que as práticas religiosas, como as demais práticas sociais,são construções contínuas.

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Capítulo 1

PENTECOSTALISMO:DESENVOLVIMENTOHISTÓRICO E ÉTICA

A origem do pentecostalismo

A distinção da origem das igrejas cristãs é problemática.Estabelecer esse tipo de marco não é uma tarefa simples em setratando dos diversos grupos que são incorporados à igreja cristã.O cristianismo possui uma única origem: partiu do movimentoque surgiu no mundo antigo com a manifestação de Jesus Cristoe, depois, difundido por seus apóstolos no mundo inteiro. Houve

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uma fase que se caracterizou pelo domínio oriental, com base naigreja primitiva de Jerusalém; depois, como conseqüência damultiplicação das comunidades evangelizadas e influenciadassocialmente, aliada à conversão do imperador romanoConstantino, o governo da igreja mudou-se para o Ocidente e seestabeleceu em Roma. Essa mudança de influência políticarepresenta, depois da formação de igrejas gentílicas pelaintermediação do apóstolo Paulo, a segunda grande transição nahistória do cristianismo.

A Reforma, mais que uma transição, representou uma rupturaque veio a culminar na criação de uma igreja paralela e concor-rente, fato nunca antes acontecido na história da igreja. O blocoreformado se segmentou em diversas ordens protestantes; alémdisso, outros grupos cristãos mais aproximados do protestantis-mo do que do catolicismo reivindicaram o status de protestantis-mo paralelo em relação ao movimento reformador. Afirma-se,erroneamente, que o pentecostalismo surgiu tardiamente, trezentosanos depois da Reforma, no início do século 20. Não é possíveldesconsiderar as múltiplas ramificações da igreja cristã e asespecificidades de suas ênfases doutrinárias distintas. No entan-to, também não é possível desconsiderar a relação incestuosa des-ta gama de expressões cristãs, todas originadas de uma mesmafonte.

O marco fundante1 e a ancestralidade do pentecostalismo

O termo “pentecostal” origina-se de Pentecostes, nome dado auma festa anual do povo judeu, celebrada cinqüenta dias após aPáscoa, também conhecida como a festa das semanas, realizadano fim da sega do trigo, ou dia seis do terceiro mês, Sivân (ju-nho), em comemoração ao recebimento do Decálogo.2

A relação do pentecostalismo com a citada festa é indireta eacidental, por duas razões. Primeiro, porque a doutrina pentecostalestá diretamente relacionada à descida do Espírito Santo; segundo,

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por causa da afirmação doutrinária da manifestação dos dons daglossolalia, falar em línguas estranhas, e da profecia como sinaisque acompanharam a inédita manifestação do Espírito Santo.Como se pode perceber, o termo pentecostalismo não faz alusão àfesta judaica (o sentido legítimo do termo), mas evoca as primei-ras manifestações dos carismas do Espírito enviado à igreja, coin-cidentemente ocorridas no dia de pentecostes.

Para alguns autores, o marco fundante das igrejas pentecostaisfoi a descida do Espírito Santo. Sob esse enfoque, as chamadascrenças pentecostais eram exercidas pelos apóstolos pioneiros; e,nesse caso, o surgimento do pentecostalismo, enquanto práticaritualística, seria bem mais antigo do que se supõe. No entanto aidéia subjacente ao conceito de marco fundante sugere pensar,não que o pentecostalismo tenha antecedido a Reforma, mas queo seu surgimento a posteriori, institui uma nova expressão do cris-tianismo tendo como dogma central o resgate dos donscarismáticos do Espírito Santo.

Grande parte da pesquisa científica afirma que o pentecostalismodescende de um protestantismo do espírito, iniciado por trêsmovimentos sucessivos ancestrais do pentecostalismo — dosanabatistas, dos quacres e dos metodistas — e pelos reavivamentosnorte-americanos a partir do século 18. Essa designação omiteum forte antecessor do pentecostalismo moderno, o montanismo.Esse movimento cristão surgiu no segundo século, em meio aodeclínio das crenças na volta de Cristo e na inspiração constantedo Espírito Santo. O movimento reclamava a especial dispensaçãodo Espírito Santo no presente, praticava uma nova manifestaçãodo dom da profecia e apregoava a proximidade do fim dostempos.

Além da terminologia Protestantismo do Espírito, os movi-mentos anabatista, quacres e metodista recebem de Niebuhr umaoutra terminologia, a de “Igrejas dos Deserdados”,3 referindo-se ao protestantismo das classes incultas e economicamenteexpropriadas. Essa segunda denominação, atribuída às fontes

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antecessoras do pentecostalismo faz sentido tanto quanto aprimeira. A eclosão do movimento pentecostal nos EstadosUnidos, de onde se disseminou para o mundo, deu-se entre apopulação negra; em praticamente todos os lugares, as igrejaspentecostais iniciaram suas comunidades eclesiásticas entre aspopulações de baixa renda.

A indicação da ancestralidade dos três movimentos é em parteprocedente, sobretudo no que diz respeito ao emocionalismo, àforça do conceito de revelação direta do Espírito Santo para osanabatistas e à ênfase na iluminação do Espírito, acompanhadade tremores físicos, difundida pelos quacres. Porém, a ausênciade elementos como a glossolalia (reconhecido como o segundobatismo para a salvação e, simultaneamente, o distintivo tribaldos pentecostais) dificulta uma maior identificação.

Dois grandes avivamentos nos Estados Unidos são marcosimportantes para a emergência do pentecostalismo moderno. Oprimeiro grande despertamento aconteceu no início do século 18e enfatizava a conversão como imperativo para a participação davida na igreja. Os pregadores avivalistas que se destacaram naépoca foram: Theodore J. Frelinghuysen, Gilbert Tennent e, so-bretudo, o pastor congregacional Jonathan Edwards, bem prepa-rado intelectualmente e profundo conhecedor da filosofia do seutempo. Jonathan Edwards proclamava uma espiritualidade frutoda comunhão direta entre Deus e a alma humana. Suas reuniõesaconteciam dentro de uma intensa atmosfera de emoção. Esseperfil ministerial inspirou o surgimento posterior de váriosmovimentos do tipo revival (reavivalista) e holiness (santificador),que acreditavam num novo estágio do cristianismo mediante oexercício da glossolalia, evidência da conversão. Walker asseveraque:

Das discussões provocadas pelo Grande Despertamento, surgiu naNova Inglaterra a mais considerável contribuição que a América dodécimo oitavo século fez à teologia — a obra de Jonathan Edwards esua escola.4

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O Segundo Grande Avivamento surgiu no fim do século 18 ese prolongou até os anos 50 do século 19. Começando pela IgrejaCongregacional, alcançou os batistas, os presbiterianos e osmetodistas. O movimento foi menos marcado pelo emocionalismoexagerado. O pregador que se destacou nesse segundodespertamento foi um advogado do interior de Nova York, orde-nado pastor presbiteriano, chamado Charles Grandison Finney.As sociedades voluntárias, voltadas para as missões domésticas eestrangeiras, tiveram participação importante nesse acontecimento.

Desde o dia histórico de Pentecostes, quando ocorreu a descidado Espírito Santo, passando pelo reaquecimento do falar em lín-guas estranhas, do início a meados do século 20, a ênfase do cultopentecostal repousou na experiência dos carismas do Espírito (lín-guas estranhas, profecias, visões, curas). Nesse longo período quevai do primeiro século ao século 20, o mapa da presença pentecostalé inconstante, em termos de registros históricos, embora algumaspistas indiquem que a experiência nunca se extinguiu de todo emtempo algum. No entanto, onde se registra a formação de umacomunidade pentecostal se assinalará a presença dos elementosmísticos citados.

A despeito da localização da memória pentecostal nos seusantecessores, pode-se afirmar que os eventos pentecostais nuncadeixaram de ocorrer antes da data tida como marco da manifesta-ção moderna do pentecostalismo na cidade de Los Angeles, nosEstados Unidos. Em livro de natureza biográfica, DemosShakarian, assevera que os armênios herdaram dos russos a cren-ça no derramamento do Espírito Santo. Milhares de cristãos or-todoxos exerciam os mistérios de falar em línguas estranhas e dasprofecias já no século 19. Eles se deslocavam em grandes carava-nas para a Armênia a fim de compartilhar a experiência sobrena-tural. Esse depoimento não consiste em mera afirmação não com-provada; parece ter procedência, considerando que a pesquisa ci-entífica registra a presença de movimentos religiosos protestantesde natureza emocional e messiânica entre os ortodoxos eslavos,

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especialmente os russos. Esse movimento espalhou-se noOriente.

Dados dessa natureza contradizem a afirmação de que opentecostalismo tenha ressurgido apenas no início do século 20.Este fato possui um importante valor histórico e sociológico, con-siderando que os estudiosos da religião pentecostal insistem noequívoco de afirmar que o movimento pentecostal surgiu noinício do século 20 nos Estados Unidos. Os fatos demonstramque as práticas místicas pentecostais sobreviveram às épocas quesepararam o dia de Pentecostes do famoso acontecimento em LosAngeles, numa comunidade de protestantes negros, no início doséculo 20.

A marca tribal do pentecostalismo

Ao longo dos séculos, os cultos de tradição pentecostal incor-poraram características distintas no que diz respeito aos aspectosdoutrinários e às ênfases carismáticas. Também são bem perceptí-veis a diversificação de sua clientela e as mudanças que geraramnovos tipos de performance de sua liderança. Os valores morais dacrença tiveram, também, ao longo do tempo alterações visíveis,que revelaram ao mundo social um pentecostalismo mais mode-rado e socialmente mais participativo.

Se atentarmos para as formas de representação religiosa na tra-jetória do pentecostalismo brasileiro, constataremos que a diver-sidade é uma de suas características marcantes. Assim, ao longode sua história recente é possível observar diferentes ênfases. Noprincípio, o pentecostalismo desenvolveu a busca dos carismasdo Espírito Santo como sendo recursos indispensáveis para o cres-cimento interno da espiritualidade da igreja e para a tarefa daevangelização. Depois, a ênfase foi direcionada para a cura e alibertação como efeitos da operação do Espírito Santo. Nesse pe-ríodo, foram notáveis as grandes concentrações públicas de curadivina acompanhadas de sessões de exorcismo. Já o pentecostalismo

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da década de 80 adicionou ao leque variado de “prestação deserviços”, a prática advinda da crença de que a operação doEspírito Santo liberta da pobreza, da miséria e da opressãodemoníaca que provocam distúrbios na vida das pessoas e nasrelações sociais.

A despeito dessas variações, o movimento mantém suaunicidade em torno da crença na contemporaneidade dos donsdo Espírito Santo e no batismo do Espírito Santo, que deve suce-der à conversão ao evangelho, cujo sinal é o recebimento de umagraça especial de comunicar-se com o mundo espiritual atravésda glossolalia. Ao longo de mais de século de existência, opentecostalismo sustenta essa marca que o distingue das demaisexpressões do protestantismo universal.

O protestantismo pentecostal: similitudese distinções da Reforma

O movimento pentecostal tem sido considerado um ramo (des-dobramento) tardio da Reforma. No princípio, foi notadamentequestionado; sobretudo pelas igrejas de tradição reformada. Paraelas, as comunidades pentecostais não passavam de seitas. Foinecessário que transcorresse meio século para que essa identidadesectária perdesse força gradualmente. Convém lembrar a nature-za ideológica do conceito de seita. O seu uso parece ser sempreprerrogativa da (s) religião (ões) dominante (s), de maneira quetem sido freqüentemente atribuído às novas inserções concorren-tes de religiosidade. O cristianismo já foi considerado seita, osgrupos cristãos fiéis à orientação da igreja de Jerusalém foramconsiderados seitas pelo cristianismo romano, o protestantismofoi considerado seita, o pentecostalismo, também, e agora osneopentecostais são reconhecidos nessa condição.

Não há como negar que a matriz ético-doutrinária dopentecostalismo é a Reforma. A sua doutrina e a centralidadeatribuída às Escrituras exprimem de modo inequívoco o perfil

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das igrejas reformadas. A despeito de certas distinções (que nãosão particularidades da relação entre pentecostais e históricos —também afetam as igrejas históricas entre si, em áreas específicas),não haveria a mais remota possibilidade de pensar a história dopentecostalismo dissociada do protestantismo histórico. Dissociarpentecostalismo e Reforma seria mutilar o fenômeno sob a alega-ção de uma taxinomia, uma necessidade de classificação, mera-mente teológica e sem o menor respaldo do método de análisesociológica. Além disso, existe uma gama variada de argumentosque comprovam essa relação. Entre esses argumentos, o fato deque os registros históricos do movimento o associam em grandeparte às igrejas protestantes de onde os membros fundadores deigrejas pentecostais saíram em função de uma renovada dimensãode espiritualidade.5

Como entrou em cena o pentecostalismo ocidental moderno?O movimento pentecostal que obteve notoriedade somente noinício do século 20, embora, como dissemos, nunca tenha se ex-tinguido desde o seu acontecimento fundante no início da eracristã, procedeu em grande parte do protestantismo histórico;descende dos movimentos de renovação de parcelas de membrose líderes das igrejas históricas na Europa e nos Estados Unidos.No caso brasileiro, os primeiros pastores pentecostais que vieramcom a missão de implantar igrejas eram ex-membros de igrejashistóricas. E os primeiros adeptos do culto pentecostal no Brasilforam ex-membros da Igreja Presbiteriana e ex-componentes daIgreja Batista.

Cecília Loreto Mariz concebe um tipo de relação orgânica entreprotestantismo e pentecostalismo. Para a autora, a despeito deambos terem construído caminhos doutrinários com algumas di-ferenças, possuem o mesmo ponto de partida:

Neste aspecto, sociologicamente, o pentecostalismo dá continuidadeao protestantismo — é de fato filho do protestantismo — embora suacontestação não tenha a mesma base legitimadora que o protestantismoteve. Assim, tanto igrejas pentecostais como protestantes históricas

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estão em processo dinâmico de reconstrução, de subdivisão, e essedinamismo cria a necessidade de fazer e refazer classificações.6

Dois aspectos poderiam ser apresentados como centrais no queconcerne àquilo que distingue as igrejas pentecostais das igrejashistóricas.

Em primeiro lugar, a extraordinária capacidade de mobilizaçãoque as igrejas pentecostais exerciam entre os pobres. Esse dado éimportante, já que nenhum autor que tenha trabalhado com pes-quisas sobre o pentecostalismo deixou de tratar da identificaçãode sua fé com o imaginário popular, atribuindo expressivo relevoà situação econômica. A pobreza constituiu uma categoria analíticaamplamente reconhecida na caracterização dessa prática religiosa.

O pentecostalismo assimilou doutrinariamente a exclusão so-cial, legitimando-a mediante estatuto sagrado, construindo umavisão de mundo pautada no extravasamento das dores e das ca-rências pelo emocional, crendo na vigência de outra linguagem,que não a deste mundo, uma língua estranha a todos os códigoslingüísticos, o apego a curas e às libertações operadas milagrosa-mente. Essas manifestações tiveram repercussão social e acaba-ram sendo rotuladas pelas classes privilegiadas como característi-cas de uma religião bizarra. Na concepção dos setores “esclareci-dos”, as práticas gestuais e ritualísticas representavam um retro-cesso cultural; voltando no tempo para as épocas remotas em quea sociedade estivera presa à natureza e o mundo era concebidosegundo interpretações mágicas. A partir deste foco, aliado àscondições econômicas dos adeptos, se estabeleceu um grande fossoentre o pentecostalismo inicial e os segmentos favorecidos econô-mica e politicamente. Na verdade, por ser uma religião voltadapara a demanda popular, o pentecostalismo não poderia fugiràquilo que Pierre Bourdieu reconhece como sendo uma situaçãointermediária entre os apelos internos de uma espiritualidade separa-da e rara e “as exigências externas, em geral, descritas como comerci-ais, que levam a oferecer à clientela leiga, mas despossuída cultural-mente, uma religião ritualista com fortes conotações mágicas”.7

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Historicamente, havia um fosso enorme deixado tanto pelocatolicismo quanto pelo protestantismo em relação aos interessesdas classes populares. Esse espaço, o pentecostalismo ocupoumotivado por um ardor proselitista no interesse pela salvação dasalmas dos pobres. No entanto, é necessário ressaltar que o espaçodo pobre coincide com o espaço natural onde nasceu opentecostalismo; não se tratando, nesse particular, de um espaçodo outro, mas do lugar próprio dos pregadores pentecostais e damultidão dos fiéis que aflora no meio da pobreza, na periferiaurbana.

O pentecostalismo não nasceu para conquistar legitimidadeentre os pobres; pelo contrário, já nasceu legítimo porque nasceupobre. A evangelização dos pobres não significou a conquista daadesão religiosa do outro, mas de si; não requer transporte para omundo do outro, mas a criação de uma nova dinâmica religiosaem seu próprio mundo. Por isto o pentecostalismo se inseriu beme tamanha foi e ainda é a sua identificação com as massas popula-res. Trata-se de uma prática religiosa que nasceu com a alma dopobre. Até os missionários estrangeiros pentecostais eram pobres.Depois da quase-extinção do culto autóctone praticado pelos in-dígenas após o desembarque da nova religião imposta pelos por-tugueses, foram os pentecostais e, antes desses os africanos, queinstituíram uma religião que exprimia a dor, os anseios, os so-nhos e os desafios do pobre. A alma do pobre estava refletida norito, na linguagem, na teologia, na concepção de Deus, na forma-ção e no desempenho da liderança e no estatuto do corpo de fiéis.

Em segundo lugar, o pentecostalismo desenvolveu um padrãodistinto de religiosidade evangélica, rompendo com o sistema ecle-siástico evangelístico/litúrgico/teológico do protestantismo his-tórico. O elemento principal desta ruptura está no fato de que omovimento resgata a experiência dos dons espirituais (glossolalia,profecia, visões, exorcismo, milagres etc...) vivida pela igreja pri-mitiva a partir do dia de Pentecostes, e esquecida pelo catolicismo

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e pela Reforma. O êxtase passou a ser vivido como experiênciaregular e cotidiana, alterando a racionalidade e a prática religiosa.

Racionalismo e emotividade

O pentecostalismo é um tipo de racionalidade religiosa, nãouma prática religiosa que rompe com postulados racionais. Ofato de uma religiosidade centrar-se nas práticas místicas e atribuiruma ênfase extrema ao apelo emocional (êxtase), não significauma ruptura total da crença com um sistema de racionalizaçãopor mais simples que ele possa ser. Segundo Max Weber, oprincípio e o desempenho das práticas carismáticas ou mágicasde religiosidade relacionam-se a certas proposições racionais. Parao sociólogo alemão, toda prática religiosa ou mágica é, em pri-meira instância, uma ação racional porque é orientada pelas re-gras da experiência. Até mesmo o êxtase orienta-se a partir decertas exigências do cotidiano, e em função de tais experiências,pode ser buscado ou provocado. Não é possível negar umarelação entre o racional e o místico, na medida em que o místicofor exercido como forma de atender a interesses reais. Weber par-te de um exemplo extremo (o êxtase), no qual o indivíduo religi-oso perde o controle de si mesmo, ao ser dominado por um podersobrenatural.

No entanto, a racionalidade não está presente apenas comoum processo que orienta as práticas extáticas em seu princípio. Arotinização das práticas mágicas e carismáticas, como estágio ine-vitável do desenvolvimento destas atividades, demonstrará umagradual e necessária transição do culto na direção de práticas re-gulamentadas e predeterminantes das condutas religiosas. Isso traráà tona procedimentos até mesmo de caráter místico prescritospor normas. são dominadas por um estado emocional eletrizante,no qual os indivíduos experimentam o êxtase num contato sobre-natural de tamanha grandeza, de onde parecem extrair energia erevigorar a fé.