pensar o Ínfimo: aproximaÇÕes entre o carÁter (in)Útil da tÉcnica e...

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Sulino, Miranda. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 5(gt11):1-15 PENSAR O ÍNFIMO: APROXIMAÇÕES ENTRE O CARÁTER (IN)ÚTIL DA TÉCNICA E O POÉTICO GT 11 – Tecnociência e Ética Maria Renata de Castro Sulino Angela Luzia Miranda Resumo: Marcada pelo paradigma científico, o conhecimento preponderante na modernidade passa a ser aquele baseado na ciência e no método científico. Assim, tal como a técnica e a tecnologia, a ciência passa a ser entendida desde o seu caráter prático, experimental, operacional, instrumental. Ou, como observa Bazzo (2003), a ciência e a tecnologia são evidenciadas de forma autônomas da cultura, reforçando o seu caráter neutral, levando-nos a crer que tanto a ciência quanto a tecnologia devem afastar-se das relações que envolvem a sociedade, seja no âmbito valorativo, social, cultural ou econômico. Essas concepções neutrais e instrumentais em torno da ciência e da tecnologia, propagadas por muitos que defendem o caráter da neutralidade científica e tecnológica, além de perpassar um problema epistemológico e axiológico, também está relacionada a um problema ontológico. É neste último que repousa este trabalho, considerando que a problemática entorno da técnica pertence, sobretudo, ao âmbito ontológico, porque diz respeito à própria existência do homem no mundo, bem como está atrelada à questão do pensamento, na medida em que o pensar próprio da modernidade, segundo Heidegger (2001), também repousa no âmbito do cálculo, do instrumental. Assim, pensamos e estamos no mundo de forma tecnificada, restringindo a poiésis a um único sentido: o agir prático que produz utilidades. Portanto, abordando a técnica desde uma perspectiva heideggeriana, este trabalho propõe construir um caminho para um pensar que considere o estar-no- mundo fundado no agir poético, que não apenas representa o mundo de forma cartesiana ou como objeto posto para dominação do homem. Portanto, levando em consideração a aproximação entre o caráter (in)útil da técnica e o poético, pergunta-se: é possível a técnica repousar essencialmente no caráter (in)útil das coisas? Ou, como é possível estabelecer uma relação entre a técnica e o poético? Esta pesquisa é essencialmente bibliográfica, onde nutrimo-nos da filosofia da técnica, utilizando como base as obras de Heidegger e de seus comentadores, tais como: Miranda, Nunes; e da poética do inútil, utilizando as obras do poeta brasileiro Manoel de Barros e Lima. Ademais, dialogaremos também com as questões pertinentes que envolvem o campo CTS, utilizando autores como Bazzo e Miranda. Palavras-chave: Filosofia. Poesia. Técnica. Útil. Inútil

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Sulino, Miranda. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 5(gt11):1-15

PENSAR O ÍNFIMO: APROXIMAÇÕES ENTRE OCARÁTER (IN)ÚTIL DA TÉCNICA E O POÉTICO

GT 11 – Tecnociência e Ética

Maria Renata de Castro SulinoAngela Luzia Miranda

Resumo: Marcada pelo paradigma científico, o conhecimento preponderante na modernidade passa aser aquele baseado na ciência e no método científico. Assim, tal como a técnica e a tecnologia, a ciênciapassa a ser entendida desde o seu caráter prático, experimental, operacional, instrumental. Ou, comoobserva Bazzo (2003), a ciência e a tecnologia são evidenciadas de forma autônomas da cultura,reforçando o seu caráter neutral, levando-nos a crer que tanto a ciência quanto a tecnologia devemafastar-se das relações que envolvem a sociedade, seja no âmbito valorativo, social, cultural oueconômico. Essas concepções neutrais e instrumentais em torno da ciência e da tecnologia,propagadas por muitos que defendem o caráter da neutralidade científica e tecnológica, além deperpassar um problema epistemológico e axiológico, também está relacionada a um problemaontológico. É neste último que repousa este trabalho, considerando que a problemática entorno datécnica pertence, sobretudo, ao âmbito ontológico, porque diz respeito à própria existência do homemno mundo, bem como está atrelada à questão do pensamento, na medida em que o pensar próprio damodernidade, segundo Heidegger (2001), também repousa no âmbito do cálculo, do instrumental.Assim, pensamos e estamos no mundo de forma tecnificada, restringindo a poiésis a um único sentido:o agir prático que produz utilidades. Portanto, abordando a técnica desde uma perspectivaheideggeriana, este trabalho propõe construir um caminho para um pensar que considere o estar-no-mundo fundado no agir poético, que não apenas representa o mundo de forma cartesiana ou comoobjeto posto para dominação do homem. Portanto, levando em consideração a aproximação entre ocaráter (in)útil da técnica e o poético, pergunta-se: é possível a técnica repousar essencialmente nocaráter (in)útil das coisas? Ou, como é possível estabelecer uma relação entre a técnica e o poético?Esta pesquisa é essencialmente bibliográfica, onde nutrimo-nos da filosofia da técnica, utilizando comobase as obras de Heidegger e de seus comentadores, tais como: Miranda, Nunes; e da poética do inútil,utilizando as obras do poeta brasileiro Manoel de Barros e Lima. Ademais, dialogaremos também comas questões pertinentes que envolvem o campo CTS, utilizando autores como Bazzo e Miranda.

Palavras-chave: Filosofia. Poesia. Técnica. Útil. Inútil

VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Sulino, Miranda. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 5(gt11):1-15

INTRODUÇÃO

Heidegger, em Carta sobre o Humanismo (2005, p. 7), faz um questionamento sobre o agir, o

pensar como ação. Segundo ele, quando pensamos sobre o agir em seu sentido mais corrente, logo

associamos à questão da utilidade como sinônimo de produzir um efeito, uma ação prática. Nesta

perspectiva podemos, então, questionar: a essência do agir é meramente uma ação prática de um

pensar que calcula? Neste sentido, ele observa:

[...] a essência do agir é consumar. Consumar significa desdobrar alguma coisa até à plenitude de suaessência; levá-la à plenitude, producere. Por isso, apenas pode ser consumado, em sentido próprio, aqui o quejá é. O que todavia "é", antes de tudo, é o ser (HEIDEGGER, 2005, p. 7).

Aqui podemos trazer à tona o pensar meditativo, poético; que se ocupa da essência do agir como

consumar. Dessa forma, pensar desde a categoria da essência do útil não é pensar desde a categoria

do útil, posto que, de um lado, temos o pensar poético, que medita, e, do outro, temos o pensar

calculador, que calcula. Dito de outro modo, pensar desde a essência do útil é admitir, antes de tudo,

o caráter inútil das coisas, é percebê-las e entendê-las além de sua utilidade; enquanto pensar desde

a categoria do simplesmente útil é corroborar com o sentido de útil enquanto aquilo que serve para

determinado fim.

Na esteira do útil e do inútil, que marca o caminho do pensar do filósofo alemão, também nos

nutrimos da poesia de Manoel de Barros: um poeta brasileiro contemporâneo, que usou e abusou

das “coisas ínfimas”. Assim ele diz: “Nasci para administrar o à-toa, o em vão, o inútil” (BARROS,

1996, p. 51).

A partir disso, situamos as seguintes questões: de que forma é possível situar a questão do

pensamento fora da esfera meramente instrumental e utilitarista, a que costumeiramente entendemos

toda a esfera da ação na contemporaneidade? E mais: de que forma a poesia de Manoel de Barros,

atrelada à filosofia da técnica de Martin Heidegger, podem iluminar esta nova forma de pensar e

agir? Levando em consideração estas problemáticas, o intuito deste trabalho consiste em construir

um caminho para o pensar que leve em conta estar-no-mundo fundado no agir poético.

Pretendemos, também, explicitar o contexto dos estudos CTS e analisar como se dão as relações

entre a ciência, a tecnologia e a sociedade, procurando estabelecer um diálogo de mútuas

contribuições entre o campo da filosofia da técnica, da poesia das coisas ínfimas e dos estudos de

CTS.

Das teses aqui defendidas e dos resultados esperados desta pesquisa, conclui-se que a Filosofia da

Técnica inaugurada pelo filósofo alemão Heidegger, encontra-se em perfeita consonância com a

Poesia das Coisas Ínfimas propagada pelo poeta brasileiro Manoel de Barros. E que, ainda que

guardadas as devidas proporções entre a esfera da filosofia e da poesia, ambos, pensador e poeta,

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empreenderam seus esforços na ideia de que o mais útil é o inútil. Dele deve se ocupar toda

forma de pensamento, seja a filosofia ou a poesia, seja a poiésis ou a poética.

1.1. METODOLOGIA

Este trabalho é essencialmente bibliográfico, onde, do ponto de vista estrutural e, também

argumentativo e metodológico, encontra-se dividido em três temáticas gerais que dialogam

entre si, são elas: a questão CTS (ciência, tecnologia e sociedade), onde pretendemos

explicitar o que significa CTS e como se dão, dentro deste campo de estudo, as relações e

implicações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade, estabelecendo um diálogo com o

objetivo principal deste trabalho. Neste primeiro item, será de fundamental importância a

fundamentação teórica a partir dos seguintes autores: Bazzo et al. (2003), Heidegger (1995),

Miranda (2012).

Já no segundo item, serão analisadas as temáticas do útil e do inútil, categorias essenciais

em nosso trabalho, pois é a partir delas que procuramos construir o caminho para o pensar

fundado no agir poético. Além disso, trata-se de estabelecer relações, fazer associações e

comparações entre os conceitos principalmente em ambos autores (Heidegger e Barros)

evidenciando suas semelhanças e aproximações quanto ao sentido do útil e do inútil,

mostrando como estas categorias dialogam com o sentido da técnica a partir da era moderna.

Dessa forma, pretendemos analisar a categoria do útil e do inútil desde os seus significados

correntes, estabelecendo uma relação entre a técnica e o pensamento. Para tanto, utilizaremos

como respaldo teórico Heidegger (1995, 2001, 2009, 2012); Barros (2010a ,2010b); e

também: Lima (2010).

Por fim, trata-se de efetivamente deslocar o nosso olhar para pensar as coisas ínfimas, de

modo a nos conduzir para o caminho do poético, abrindo espaço ao espanto que medita o

caráter (in)útil da técnica. Com isso, pretendemos apontar caminhos para superação destes

limites da técnica desde seu sentido utilitarista, da forma que a compreendemos hoje. Diz

respeito ao habitar as coisas ínfimas, assim como nos ensina Manoel de Barros, ou dar o

“passo atrás”, tal como postula Heidegger. Aqui haveremos de metodologicamente fazer

conjecturas e suposições acerca da possibilidade de dar um novo sentido à técnica,

percorrendo o caminho em direção à essência do pensar, considerando as teses de ambos

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autores. É neste item onde, de fato, resgatamos as questões iniciais que propõe este trabalho: é

possível a técnica repousar essencialmente no caráter (in)útil das coisas? Ou, de que modo é

possível estabelecer uma relação entre a técnica e o poético? Em vista disso, utilizaremos

como bibliografia as obras de Heidegger (2012a, 2012b); as obras de Barros (2001b, 2010a);

Nunes (2000).

2. A QUESTÃO CTS (CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE)

Em sua conferência intitulada Língua tradicional e Língua técnica (1995), Heidegger propõe

cinco teses que caracterizam, a partir das concepções correntes, o sentido da técnica moderna.

São elas:

1. A técnica moderna é um meio inventado e produzido pelos homens, isto é, um instrumento derealização de fins industriais, no sentido mais lato, propostos pelo homem. 2. A técnica moderna é,enquanto instrumento em questão, a aplicação prática da ciência moderna da natureza. 3. A técnicaindustrial fundada sobre a ciência moderna é um domínio particular no interior da civilizaçãomoderna. 4. A técnica moderna é a continuação progressiva, gradualmente aperfeiçoada, da velhatécnica artesanal segundo as possibilidades fornecidas pela civilização moderna. 5. A técnica modernaexige, enquanto instrumento humano assim definido, ser igualmente colocada sob o controle dohomem - e que o homem se assegure do domínio sobre ela assim como da sua própria fabricação(HEIDEGGER, 1995, p. 15 e 16).

A partir dessas teses, podemos notar que a técnica moderna perpassa, a princípio, por duas

concepções centrais: a ideia antropológica, onde a técnica é vista como um fazer do homem,

caracterizando-se como instrumento da dominação humana. Dessa forma, ela torna-se um

meio (instrumento) para um determinado fim (ação humana). Atrelada à ideia antropológica

da técnica moderna, temos a ideia instrumental, onde a técnica é vista como um mero aparato,

um mero instrumento de manipulação humana. Considerando a técnica um mero instrumento,

sendo determinada e delimitada pelo manejo e interesse humano, deixamos de lado a

intencionalidade que o objeto técnico tem por si só e atribuímos a ele apenas o fim

determinado pelo homem. Ou seja, a ideia instrumental presente na técnica moderna, reforça a

neutralidade do objeto técnico.

Diante disso, também podemos perceber, assim como observa Habermas em sua obra Técnica

e ciência como ideologia (1994), que a ciência se tornou serva da técnica. Hoje quem controla

e dirige os rumos da ciência, é a própria demanda tecnológica, na medida em que a ciência é

considerada um mero conhecimento aplicado, gerador do objeto técnico.

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Ainda sobre o sentido da neutralidade da técnica, vale evidenciar que, apesar de Heidegger

apontar essas concepções correntes que envolvem a técnica, o seu pensar distancia-se dessas

visões, como veremos mais adiante. Dessa forma, também procuramos nos afastar das

concepções neutrais, instrumentais e deterministas da ciência e da técnica. Partiremos,

primeiramente, da ideia de que a técnica moderna é um fenômeno social, como afirma

Miranda (2012, p. 47), pois é historicamente construída, levando em consideração fatores

econômicos, sociais, políticos, culturais, modificando-se em cada período histórico.

É a partir desse viés que pretendemos estabelecer um diálogo com os estudos CTS, na medida

em que, segundo Bazzo et al. (2003, p. 119), a expressão “Ciência, Tecnologia e Sociedade”

(CTS) define um campo de trabalho acadêmico, onde os estudos entorno da ciência e da

tecnologia estão constituídos por seus aspectos sociais. Tanto do ponto de vista dos fatores

sociais da própria ciência e da tecnologia, quanto do ponto de vista dos fatores sociais que

repousam na mudança científico-tecnológica, como, por exemplo, as consequências sócios-

ambientais.

Segundo Miranda (2012, p. 47), as discussões que envolvem a dimensão social da técnica

ganha força e visibilidade principalmente a partir da década de setenta, quando aparecem os

estudos sobre a avaliação dos estudos sociais da tecnologia, sendo estimulados pelo contexto

histórico vigente, onde, pela primeira vez, as consequências decorrentes da tecnologia, desde

o ponto de vista dos problemas ecológicos, tornam-se evidentes desde o ponto de vista global.

Assim, os estudos CTS mostram a sua importância ao trazer à tona um caráter crítico ao modo

de se produzir ciência e tecnologia. Bazzo, et al (2003, p. 125) também destaca o seu caráter

interdisciplinar, estabelecendo uma relação de diálogo em disciplinas como a filosofia e a

história de ciência e da tecnologia, a sociologia do conhecimento científico, a teoria da

educação e a economia da mudança técnica, por exemplo.

Mas, qual a concepção de tecnologia que permeia os estudos de CTS? Ou ainda, em que

medida esse caráter crítico ao modo de se produzir ciência e tecnologia mostra-se suficiente?

Até que ponto esse viés crítico foge à lógica vigente que engloba esse modo de se produzir

(ciência e tecnologia)?

Miranda (2012, p. 47) aponta as distintas concepções de tecnologia, classificadas por Cerezo

y Luján, a partir de três correntes: a intelectualista, a artefactual e o modelo alternativo

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(modelo dos sociosistemas); sendo esta última corrente a presente nos estudos CTS. No

modelo dos sociosistemas “a técnica em seu sentido moderno alcança um complexo interativo

de formas de organização social. Nela estão implicados os artefatos, a produção, e a gestão de

recursos” (MIRANDA, 2012, p. 48). Dessa forma, esse modo de compreender a técnica

considera o construtivismo social, onde “a tecnologia não é somente produto, mas também

processo. Logo, se pode afirmar a intencionalidade sócio-política dos sistemas técnicos”

(MIRANDA, 2012, p. 48).

Porém, apesar dos estudos de CTS contribuírem para um olhar crítico entorno da técnica e da

ciência, estabelecendo relação com a sociedade a partir da visão construtivista dos

sociosistemas, os estudos de CTS não nos parece suficiente para garantir uma discussão que

transcenda a aplicação da ciência e da tecnologia (mesmo que levando em consideração sua

interação com a sociedade); bem como não nos parece suficiente para garantir o pensar

genuinamente meditativo, na medida em que a questão do pensamento é, por vezes, posta no

âmbito das consequências decorrentes da técnica moderna , e não no âmbito que pensa a

própria técnica.

Com isso, não queremos negar as contribuições que o campo CTS nos proporciona, mas

estabelecer um diálogo. Consideramos, neste trabalho, que a problemática entorno da técnica

pertence, sobretudo, ao âmbito ontológico, porque diz respeito à própria existência do homem

no mundo e não somente enquanto fenômeno social. E é tendo isto em vista, que este trabalho

busca, a partir da filosofia da técnica e da poesia das coisas ínfimas, contribuir para as

discussões que envolvem as questões da técnica, da ciência e do pensar.

3. PENSANDO O ÚTIL NA CIÊNCIA E NA TECNOLOGIA

Tentaremos, de modo inicial, conduzir o nosso questionamento a partir da seguinte questão: o

que entendemos pelo sentido do útil? Habitualmente, quando pensamos numa resposta a essa

questão, trazemos à tona ao nosso imaginário algumas imagens que representam a ideia

daquilo que serve para e possui um valor de uso, no sentido instrumental. Seja quando

imaginamos um determinado instrumento enquanto ferramenta útil, ou quando imaginamos

um saber aplicado, no sentido de atingir determinado fim pragmático. Dito de outra forma,

corriqueiramente, o útil relaciona-se à categoria do prático, do fazer em vistas a um fim

utilitário. Desse modo, partimos da ideia de que a própria categoria do servir para pode

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objetificar a coisa em si, enquadrando-a no que é eficaz e essencializando-a. Dito de outra

forma, o valor e o fim do que é útil, nesse contexto, não se satisfaz no ser útil em si mesmo,

mas na exterioridade de sua aplicação, de sua serventia.

Não queremos, com isso, declarar que este sentido de útil é incorreto, mas, antes de tudo,

queremos questioná-lo e evidenciar o quanto ele é insuficiente, na medida em que encobre e

desconsidera a infinidade de coisas que não estão incorporadas nesta lógica. Nesse sentido,

Ordine (2013), em seu escrito intitulado La utilidade do inútil – manifesto, nos adverte:

(...) a utilidade dos saberes inúteis se contrapõe radicalmente à utilidade dominante que, em nome deum exclusivo interesse econômico, mata de forma progressiva a memória do passado, as disciplinashumanísticas, as línguas clássicas, o ensino, a livre investigação, a fantasia, a arte, o pensamentocrítico e o horizonte civil que deveria inspirar toda atividade humana. No universo do utilitarismo, emefeito, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que uma poesia, uma chave inglesamais que um quadro: porque é fácil assumir a eficácia de um utensílio, enquanto se torna cada vezmais difícil entender para que pode servir a música, a literatura ou a arte (p. 17 e 18, tradução nossa).

De modo inicial, temos como pressuposto que esse modo de perceber as coisas e considerá-las

úteis apenas quando estão atreladas a um servir para um fim utilitário está atrelado a um

modo de pensar e a um significado de técnica bem específicos, revelando, inclusive, como

estamos e nos relacionamos no (e com o) mundo. Mas, que modo de pensar é esse? Ou ainda,

qual significado de técnica está por trás dessa lógica utilitária?

Se introduzimos e norteamos nossa investigação através do nosso filósofo em questão, Martin

Heidegger, enquanto modo de pensar podemos evidenciar o que ele denomina de “pensar

calculador”. Segundo Heidegger (2001), o pensar próprio da modernidade repousa no âmbito

do cálculo. Nele, as coisas se apresentam no mundo utilitariamente, sendo este “útil” um

modo de ser como disposição que se realiza no mundo da produção material (poiésis).

Portanto, o pensar calculador se vincula com o sentido da técnica moderna, na medida em que

esta passa a ser compreendida desde o seu caráter instrumental e utilitarista. Assim, pensamos

e estamos no mundo de forma tecnificada, restringindo a poiésis a um único sentido: o agir

prático que produz utilidades. De forma mais específica, o pensar calculador em Heidegger

(2001, p. 13), aparece como aquele que planifica, calcula e projeta a sua ação mediante o

eficiente e o útil. Dessa forma, ele define esse pensamento como sendo aquele que: “calcula

faz cálculos [...] O pensamento que calcula não é um pensamento que medita, não é um

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pensamento que reflete sobre o sentido que reina em tudo o que existe” (HEIDEGGER, 2001,

p. 13).

Podemos perceber uma semelhança do pensar calculador com o que já falamos sobre o

sentido de útil. Enquanto o útil se prende ao ente enquanto utensílio utilitário, o pensamento

se prende ao cálculo. Talvez por isso, quando levamos em consideração a concepção de que o

pensamento exato é o pensamento mais rigoroso, ou que um pensamento mais sistemático é

também mais rigoroso, acusa-se a poesia em ser sem rigor, de não servir para. O pensamento,

enquanto calculador, perpassa a questão do pragmatismo da utilidade: onde o próprio

pensamento torna-se utilitário, refém ele mesmo de um pensar cuja ação se configura em um

agir prático, com valor de eficiência e eficácia, valor de serventia.

No item anterior, em que abordamos a questão CTS, vimos os significados correntes de

técnica e suas implicações. Tendo isto em mente, procuraremos apontar qual significado de

técnica que referenda o sentido de útil apontado até aqui.

Já vimos que a técnica, na sociedade atual, passa a ocupar um lugar de grande importância e

notoriedade. Dessa forma, o mundo e o próprio homem estão cada vez mais técnicos. Nesse

sentido, Heidegger afirma que a técnica passa a determinar nosso modo de ver o mundo e, ela

própria, passa a ser o modo de ser da modernidade, estando este modo de ser atrelado à

questão do útil (quando levamos em conta a técnica em sentido moderno). A partir disso,

perguntamos: em que sentido o significado de técnica moderna reflete a questão do útil?

Como já vimos, a técnica moderna perpassa, em suas concepções correntes, duas ideias

centrais: a ideia antropológica e a ideia instrumental. A técnica enquanto instrumento,

enquanto artefato que o homem manipula (posto que agora o homem moderno é um ser que

faz; o homo faber), passa a ser percebida e entendida desde a sua utilidade. Assim, o caráter

mais essencial da técnica moderna é o do útil, do servir para. Além da ideia instrumental e

antropológica, a técnica moderna também é habitualmente configurada pelo seu caráter

aplicado, esse caráter aplicado também está atrelado à concepção corrente do útil.

Heidegger (2012b), ainda que considerasse que esta concepção atual da técnica seja correta,

avaliava que ela não é de todo verdadeira. Para ele, a técnica em suas origens (ou a technè, em

sentido grego), guardava profunda relação com a verdade como desvelamento do ser das

coisas, através da produção material (poiésis). E, por isso, mesmo a técnica estava

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emparentada com a arte. Logo, a técnica, mais que um sentido instrumental e utilitário,

vinculava-se ao sentido filosófico e ontológico da poiésis, do mundo como produção material,

da verdade.

Tal como Heidegger em sua filosofia da técnica, Manoel de Barros também se distância, em

sua poesia, do sentido frequente atribuído ao que é útil, subvertendo o seu significado e

atrelando-o ao sentido de inútil, assunto que abordaremos adiante.

4. PENSANDO O INÚTIL NA CIÊNCIA E NA TECNOLOGIA

Pretendemos, agora, conduzir o nosso questionamento a partir da seguinte questão: o que

entendemos pelo sentido do inútil? Enquanto vimos que o sentido do útil, habitualmente, é

entendido desde o que serve para, o sentido do inútil, ao contrário, parece transitar entre

àquelas coisas que não servem para. É importante evidenciar que essa ideia do não servir é

utilizada como sinônimo de desprezível, desnecessário, improdutivo, como aquilo que não é

aplicável, em sentido utilitário. Contudo, o sentido de inútil abordado neste trabalho não se

enquadra em seus significados usuais, como aquilo que não presta, em seu sentido mais

pejorativo. Mas sim, refere-se àquilo que não serve para um fim utilitário, mecanicista e

tecnificante. Que foge à lógica da técnica moderna! O que se pretende aqui é mostrar,

sobretudo, o valor do que não presta, seja na poesia, ou no pensamento filosófico, ou mesmo

no mundo da vida, da existência fática. Dessa forma, numa sociedade onde o que tem valor é

o mais útil e o mais produtivo, as coisas inúteis, por sua vez, são entendidas como algo que

não presta, porque são improdutivas, sem sentido prático. Logo, conclui Lima (2010):

E, em uma sociedade em que se conclama apenas no mundo da utilidade o que possa gerarprodutividade, lucro, a linguagem poética com sua ausência de sentido imediato ainda é vista pelosracionalistas como se fosse um luxo inoperante, impraticável, ou, para os mais criteriosos de razão,uma completa falta de senso prático (p. 73).

Em Heidegger, o útil é o que conduz o homem a descobrir-se a si mesmo, e isso é o contrário

do que é o útil para o mundo tecnificado atual. Ou seja, para o homem técnico isso seria o

inútil. Nesse sentido Heidegger (2009) evidencia:

O mais útil é o inútil. Mas experienciar o inútil é mais difícil para o homem moderno. O ‘útil’ é compreendido aqui como o que pode ser praticamente utilizado, diretamente para fins técnicos, para aquilo que causa algum efeito, algo que eu possa administrar e com o que eu possa produzir. Deve-se ver o útil no sentido daquilo que cura, isto é, como aquilo que conduz o homem a si mesmo (p. 182, grifo nosso).

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A questão do inútil também nos revela um modo de pensar e um significado de técnica

específicos, divergindo dos explicitados na discussão do útil. Então, analisaremos agora qual

modo de pensar e qual significado de técnica estão relacionados ao inútil. Partiremos, pois, do

sentido do pensamento.

Como já foi situado, o significado do inútil também perpassa a questão do pensamento,

porém, não mais de um pensar calculador, mas de um pensar meditativo. O pensar meditativo

é impulsionado na direção de buscar, antes de tudo, uma reflexão do próprio modo de pensar,

revelando-se na contemplação e no espanto das coisas em si, abrindo espaço à prática

meditativa e poética. Nessa dinâmica, a técnica não é vista como um mero instrumento, como

um mero artefato técnico, mas, antes de tudo, é compreendida em sua forma de chegar à

presença das coisas (antigos). Ou seja, mais do que instrumento, a técnica é uma forma de

verdade, cujo desocultamento do ser das coisas se dá através da produção material. Essa é a

diferença elementar que marca o modo de conceber a técnica entre os antigos e os modernos.

Outra diferença, e não menos significativa, que marca o modo de conceber a técnica entre

estes dois mundos (da antiguidade e da modernidade) é que esse desocultar, através da technè,

em sentido grego, não é feito de forma provocativa, como é vista na técnica em sentido

moderno, como observa Heidegger (2012b). Mas, de uma forma que se preserva o mistério e

a essência das coisas, de modo a não tirar forçadamente o que se quer, em decorrência de um

pensar meramente utilitário.

Assim é também o modo como Manoel narra o tempo do “plantio” dos versos poéticos, onde

o desvelamento do poema a partir da linguagem não é feito de forma provocativa ou

instrumental, mas de modo que preserva o mistério e o tempo da construção-poética.

Podemos perceber isso na poesia do poeta:

O ROCEIRONo clarear do dia vou para o roçadoA capinar.Até de tarde tiro o meu eito: arranco inços tranqueiras,joás e bosta de bugiu que não serve nem pra esterco.Abro a terra e boto as sementes.Deixo as sementes para a chuva enternecer.Dou um tempo.Retiro de novo as pragas: dejetos de aves, adjetivos.(Retiro os adjetivos porque eles enfraquecem as plantas)E deixo o texto a germinar sobre o branco do papel

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Na maior masturbação com as pedras e as rãs (BARROS, 2010b, p. 380 e 381).

A partir do que já foi posto, sobre a técnica em seu sentido originário, questiona-se: é possível

a técnica, em sua essência, abrigar o sentido do inútil? As “despalavras” de Manoel e a “tarefa

do pensar” de Heidegger apontam para essa possibilidade. Em ambos os casos, a técnica

assume essencialmente o valor daquilo que serve para não ser útil, onde as coisas em si

mesmas não deveriam ter utilidade em sentido instrumental. Por isso mesmo, para os gregos a

técnica estava emparentada com a arte, como nos faz recordar Heidegger. Ou, neste mesmo

sentido, nos diz Manoel de Barros, em sua poesia A arte de infantilizar formigas, onde nos

posiciona diante dos urinóis enferrujados que servem, mas para o desuso, para o inútil, para as

coisas imprestáveis:

9.Nos fundos da cozinha meu avô tentou cortar o phalocom o lado grosso da faca. Não cortou.Ia pinchar aos urubus.Não pinchou.Bem antes, em 1922, na Vila do Livramento, ondenascera, meu avô apregoava urinóis enferrujados.Ele subia no Coreto do Jardim:Olha o urinol enferrujado.Serve para o desuso pessoal de cada um.Já pertenceu de Dona Angida do Cocais, senhora denobrementes.É barato e inútil.Quem se abastece?Meu avô sabia o valor das coisas imprestáveis.Seria um autodidata?Era o próprio indizível pessoal. (BARROS, 2010a, p. 332 e 333).

5. PENSANDO O ÍNFIMO

Considerado o quão útil é o inútil tanto no sentido da poética de Barros, quanto no sentido da

poética (técnica) em Heidegger, como demonstrado anteriormente, agora haveremos de trazer

à tona a questão dos limites da técnica moderna desde seu sentido de utilidade. A questão do

passo atrás é posta por Heidegger ao se referir à mudança de um pensamento, a um novo

caminho para a questão do pensamento. Assim, ele enuncia:

Quando e como as coisas chegam, como coisas? Não chegam através dos feitos e dos artefatos dohomem, mas também não chegam, sem a vigilância dos mortais. O primeiro passo na direção dessa

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vigília é o passo atrás, o passo que passa de um pensamento, apenas, representativo, isto é, explicativo,para o pensamento meditativo, que pensa o sentido (HEIDEGGER, 2012a, p. 159). Nesse sentido, Heidegger (2012a, p. 159) afirma que esta passagem de pensamento não

alberga em si uma mera troca de posição, visto que está já, no próprio pensar representativo,

essas posições juntamente com os seus modos de troca. A questão do passo atrás está

relacionada, inclusive, ao experienciar a proximidade em relação à essência das coisas. É

preciso, ainda, o retroceder um passo atrás, na ciência e na técnica moderna, para perceber e

entender que outro modo se pode pensar o mundo de forma não calculadora, e por meio de

um método que não é objetificante em sua representação.

Levando isso em consideração, procuramos fazer essa relação do olhar poético e do

pensamento que medita, tendo em vista o caminho do passo atrás o qual aponta Heidegger

como saída, e a poesia de Manoel de Barros. De modo mais específico, situamos esta

experiência, a do fazer poético, presente no livro O tratado geral das grandezas do ínfimo

(2001b). Com isso, nada mais pertinente do que inaugurar esta relação com a poesia:

POEMAA poesia está guardada nas palavras – é tudo queeu sei.Meu fado é o de não saber quase tudo.Sobre o nada eu tenho profundidades.Não tenho conexões com a realidade.Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.Pra mim poderoso é aquele que descobre asinsignificâncias (do mundo e as nossas).Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.Fiquei emocionado e chorei.Sou fraco para elogio (BARROS, 2001b, p. 125). Aqui, podemos perceber o distanciamento existente entre a manifestação poética nos versos

do Manoel de Barros e o pensar rigoroso e exato do saber científico. O pensar poético do não-

saber e o fazer poético, fugindo às conexões da realidade, abrem espaço à percepção do

mundo poiético, ou da, digamos assim, poiésis do mundo. O pensar poético encaminha o

homem ao encontro com sua a essência e o reencontro com o seu habitar, nos diz Heidegger,

parafraseando o poeta Hölderlin, “poeticamente o homem habita” (2012b) o mundo. Isso

ocorre, na medida em que o não-saber abre-se para o aprender e dá possibilidade ao pensar

que medita, visto que as coisas não estão postas desde uma realidade objetificante.

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E se nos fixamos uma vez mais no poeta, dirigindo o nosso olhar para a realidade que foge à

representação utilitária e objetiva, Manoel de Barros nos diz que,

10.Mosca dependurada na beira de um ralo —Acho mais importante do que uma joia pendente.Os pequenos invólucros para múmias de passarinhosque os antigos egípcios faziamAcho mais importante do que o sarcófago de Tutancâmon.O homem que deixou a vida por se sentir um esgoto —Acho mais importante do que uma Usina Nuclear.Aliás, o cu de uma formiga é também muito maisimportante do que uma Usina Nuclear.As coisas que não têm dimensões são muito importantes.Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seuspronomes do que por seu tamanho de crescer.É no ínfimo que eu vejo a exuberância (BARROS, 2010a, p. 341).

No Tratado geral das grandezas do ínfimo (2010b), temos forte presença do andarilho

Bernardo da Mata que mergulhava nas coisas desimportantes em seu fazer, vendo e ouvindo

as inexistências, distanciando-se do fazer científico e aproximando-se do poetar, ao “ver e

ouvir as inexistências” (BARROS, 2001b, p. 128).

Enfim, as coisas ínfimas, em Manoel de Barros, parecem instaurar, em seu habitar poético, a

questão do passo atrás proposta em Heidegger. De um caminhar que leva em consideração o

existir poético como o que dá a se pensar, baseado num agir que ultrapassa as questões

práticas e pragmáticas, com respeito à fins, mas se eleva no sentido da consumação, o de

chegar à plenitude da essência das coisas.

4. CONCLUSÕES

No tocante à discussão que envolve os estudos de CTS, nossas conclusões permeiam as

questões postas inicialmente neste trabalho: qual a concepção de tecnologia que permeia os

estudos de CTS? Ou ainda, em que medida esse caráter crítico ao modo de se produzir ciência

e tecnologia mostra-se suficiente? Até que ponto esse viés crítico foge à lógica vigente que

engloba esse modo de se produzir (ciência e tecnologia)? A partir delas, concluímos que o

olhar crítico em torno da tecnologia e da sua relação com a sociedade parece ainda não sair da

esfera que se volta para as consequências de seu uso, ou mesmo para o desenvolvimento e a

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aplicação de mais instrumentos técnicos como forma de supervisionar seus efeitos sobre a

natureza e a sociedade.

Por isso a pertinência do que dá título a este trabalho: pensar a técnica desde o seu caráter

(in)útil e a sua relação com o poético, com as coisas ínfimas. Nessa esfera, Nunes observa no

diálogo entre a esfera da filosofia e da poesia, entre pensador e poeta:

Aparentemente divergem o poeta e o pensador, aquele nomeando para fazer existir, o últimodeclarando o que já existe. Nomearia o poeta sem dizer, diria o pensador sem nomear. Se aceitamosessa separação, aceitaríamos que o poeta estivesse à margem do ser e que o pensador estivesse àmargem do sagrado. Mas o sagrado ainda é ser e o ser também é nomeável se tanto como o anterioringressa no mostrar reunindo do canto. Tanto quanto nomear o sagrado, dizer o ser recai namodalidade da palavra projetiva, poética. Sagrado e ser se aproximam tanto quanto o pensador seaproxima do poeta. Mas o ser apropriado pelo pensamento é, para Heidegger, congenitamente poético(2000, p. 127).

Com isso, concluímos, fundamentando na filosofia de Heidegger e na poesia de Manoel de

Barros, que, ainda que guardadas as devidas proporções entre a esfera da filosofia e da poesia,

ambos (pensador e poeta) empreenderam seus esforços no pensamento que revela: o mais útil

é o inútil. Dele deve se ocupar toda forma de pensamento, seja a filosofia do ser ou a poesia

das coisas ínfimas, seja a poiésis ou a poética.

5. REFERÊNCIAS

BARROS, M. Ensaios Fotográficos. In: Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010b.

______. Livro sobre nada. In: Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010a.

______. O guardador de águas. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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HABERMAS, J. Técnica e ciência como ideologia. Lisboa: Edições 70, 1994.

HEIDEGGER, M. A coisa. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista:Editora Universitária São Francisco, 2012a.

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______. Carta sobre o humanismo. São Paulo: Centauro, 2005.

_______. Língua de tradição e língua técnica. Passagens: Lisboa, 1995.

______. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. São Paulo: Abril Cultural, 1966.

______. O tempo na imagem do mundo, trad. de Alexandre Franco de Sá, In: Caminhos defloresta, Lisboa: Gulbenkian, 1998.

______. Seminários de Zollikon. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora UniversitáriaSão Francisco, 2009.

______. Serenidade. Lisboa: Instituto Piaget, 2001.

LIMA, T. Diário de flores ou lamento de um blue. Natal: Lucgraf, 2010.

MIRANDA, A. L. ¿Una ética para la civilización tecnológica? Posibilidades y límites delprincipio de la responsabilidad de Hans Jonas. Alemanha/Espanha: Lap Lambert/EAE, 2012.

NUNES, Benedito. Heidegger e a poesia. Nat. hum., São Paulo , v. 2, n. 1, p. 103-127, jun. 2000. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-24302000000100004&lng=pt&nrm=iso>. acessado em 30 ago. 2017.

ORDINE, N. La utilidad de lo inútil. Traducción del Jordi Bayod. Barcelona: Acantilado,2013.

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