pensar a cidade como lugar para todos

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Pensar a cidade como lugar para todos

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  • 24 getul io Setembro 2007 Setembro 2007 getul io 25eNtReVIStA

    A trajetria da arquiteta e urbanista Raquel Rolnik de algum modo se confunde com as discusses e propostas que levaram criao do Estatuto das Cidades, lei 10.257, aprovado em julho de 2001 pelo Congresso Nacional. Diretora de Planejamento da cidade de So Paulo de 1989 a 1992, gesto Lusa Erundina, Raquel foi at julho

    deste ano secretria de Programas Urbanos no recm-criado Ministrio das Cidades, que ajudou a implantar. Formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo, doutora em histria urbana pela Universidade de Nova York, ela professora da PUC de Campinas e professora associada ao Programa de Ps-Graduao em Projetos Urbanos na Universidade de Buenos Aires e integrante do Lincoln Institute of Land Policy. Nesta entrevista a Getulio, concedida em sua casa encravada numa ngreme encosta do bairro de Vila Madalena, em So Paulo, Raquel falou com o mesmo entusiasmo com que apresentava em programas de rdio, como o Cidades do Brasil, as propostas que implantava no Ministrio. A seguir, alguns dos melhores momentos.

    Braslia encanta com os espaos e edifcios. Agora, quem mora l se queixa de que uma cidade em que no se pode andar.

    Raquel Rolnik O maior problema de Braslia, infelizmente, no esse. Braslia hoje uma das claras personificaes do apartheid que o modelo de urbanizao brasileiro: a idia de um espao de qualidade para poucos, enquanto as maiorias ficam de fora. Em Braslia isso levado ao extremo. O Plano Piloto um pedao nobre da cidade e foi projetado inicialmente por Lucio Costa para ser a cidade inteira, no ?

    e N t R e V i S t A R A Q U e l R o l N I K

    peNSAR A CIDADe CoMo lUGAR pARA toDoSA urbanista que ajudou a criar o Ministrio das Cidades afirma que no acabaremos com a violncia se no superarmos o apartheid em nossas comunidades e diz que, alm de funcionar, o espao coletivo precisa ser belo

    Por Carlos CostaFotos Tiana Chinelli

  • 26 getul io Setembro 2007 Setembro 2007 getul io 27

    Incluindo mordomo e empregada mo-rando no mesmo prdio.

    Na mesma quadra, no no mes-mo prdio. Com isso ele at props uma tipologia residencial, com apar-tamentos menores, sem elevador, di-retamente no piso, e apartamentos maiores, chegando at os de quatro dormitrios com quatro banheiros, possibilitando a convivncia de uma diversidade social. Mas o que Braslia hoje? uma cidade de 2 milhes de habitantes onde 400 mil esto no Plano Piloto, e esvaziando. O resto, na verdade a maioria, vive nas cidades-satlites ou nas cidades do entorno do Distrito Federal, ain-da mais precrias. um modelo em que se tem uma espcie de cordo sanitrio de verde em volta do Pla-no Piloto, separando uma cidade da

    outra. O transporte no funciona noite, por exemplo. Quando as pes-soas que moram nas cidades-satlite tm de sair s 8h, 9h da noite do Pla-no Piloto, no tm nibus.

    um modelo perverso recorrente no pas.

    As cidades-satlite so negras e mu-latas, e o Plano Piloto branco; uma de baixa renda, a outra de alta renda. Ento, h uma reproduo de indicadores que esto presentes em So Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte... Uma contraposio en-tre a periferia pobre e o centro mais qualificado, que concentra renda nas mos de poucos. Em Braslia isso extremo. Nenhuma cidade to se-parada, to segregada como ela. Isso uma vergonha. Mas a experincia

    de ter morado quatro anos l mudou a minha viso da cidade. As pessoas que vm de fora chamam Braslia de desumana. Mas, na verdade, ti-rado esse aspecto de alta segregao, viver no Plano Piloto altamente gratificante. um lugar onde, por exemplo, quem vive na Superquadra tem acesso, a p, a todos os servios bsicos. uma das nicas cidades do Brasil onde os espaos da classe mdia e alta no so totalmente mu-rados. Os prdios da Superquadra, ao contrrio dos prdios dos bairros de classe mdia de So Paulo, Rio, Salvador ou Belo Horizonte, no so gradeados, so abertos. E, no entan-to, o problema da violncia no maior do que nos lugares murados. So elementos importantes da quali-dade da cidade.

    A senhora publicou Folha Explica So Paulo. Como se explica a cidade de So Paulo?

    o inexplicvel. O senso comum diz que So Paulo no foi planejada, que um caos porque no teve pla-nejamento. Mas existe uma lgica por trs dessa aparente desordem. A tentativa no livro foi a de explicar qual a lgica que construiu a de-sordem de So Paulo. Uma lgica feita de planos, de decises e polti-cas pblicas, e no da ausncia delas. Uma poltica pblica que ao longo da histria fez determinadas opes. O livro recupera como cada uma dessas opes foi construda, quem estava por trs e qual foi o efeito a longo prazo. Um exemplo concreto o trnsito, que aborrece 100% dos paulistanos. O caos no sistema de

    circulao e transporte produto da relao entre duas polticas: uma de uso e ocupao do solo, que excluiu os pobres do acesso terra urbaniza-da e bem localizada, e no deixou a eles outra opo seno se instalar em periferias distantes e sem infra-estrutura; e a outra de circulao, que privilegiou o sistema virio sobre pneus, em detrimento do sistema so-bre trilhos. Isso num momento fun-damental da histria da cidade.

    A opo pelas grandes avenidas?Foi exatamente nos anos 1930 que

    se optou claramente pelo Plano de Avenidas de Prestes Maia em detri-mento de uma proposta apresentada pela Light [The Tramway So Paulo Light Company] de continuar com o monoplio do sistema de bondes e in-

    vestir no metr subterrneo e articular isso ao sistema de trens existente. Essa proposta foi rejeitada, entre outras ra-zes pela pssima fama que tinha a Light naquele perodo, por prestar um pssimo servio de transporte.

    Historicamente, a viso de que foi deciso da elite dona de carros.

    Na verdade, os anos 1920 so o momento de disseminao do auto-mvel com o sistema de produo fordista, que o torna possvel objeto de consumo de massa. Isso ainda no era realidade no Brasil. Um gru-po muito restrito usava o automvel. Nos anos 1930, todos os grupos so-ciais andavam de bonde e usavam o transporte coletivo. Andar de bonde era elegante. Mas claro que foi uma deciso da elite. Eu diria que

    muito em funo dos interesses liga-dos ao processo de parcelamento de solo e abertura de novos loteamentos na cidade. Esse [d um estalo com os dedos] que o negcio! O nibus e o carro tm uma possibilidade de alcance muito disperso no territrio: vo penetrando na medida em que a rua vai se estendendo, viabilizando a ocupao dispersa. J a ocupao do bonde e do metr concentrada. O que as pessoas conseguem ocu-par no mximo uma distncia, a p, da casa at a estao. Nos anos 1930 a cidade tinha 100 habitantes por hectare, que mais ou menos uma quadra. Nos anos 1950 eram 30 habitantes. Ou seja, a populao se espalhou para a periferia. Esse modelo viabilizou os loteamentos

    e explica a expanso perifrica. O loteamento foi o grande negcio imobilirio para a burguesia.

    Empreendimentos como a City Lapa, por exemplo?

    Sim, os loteamentos da City [City of So Paulo Improvements and Free-hold Land Company Limited]. Hou-ve uma relao promscua entre a di-reo da City e a prpria concesso de servios pblicos. Esses loteamen-tos j eram abertos com todos os ser-vios disponveis: gua, esgoto, luz, pavimentao. Essas companhias de servios pblicos tinham sociedade nos loteamentos. Mas para os pobres o loteamento de periferia foi a alter-nativa de moradia, a favela. Histo-ricamente os pobres vo morar em

    casas construdas por eles prprios nos fins de semana, em lotes com-prados em locais distantes, sem infra-estrutura, a custo baixo. Isso foi outro grande negcio para os parceladores, que venderam milhares de lotes para trabalhadores. Escrevi num artigo, j considerando um perodo posterior, o do milagre brasileiro, que esse foi o santo do milagre, porque a au-toconstruo da periferia permitiu um crescimento industrial enorme, alm da migrao, e pagando mo-de-obra baratssima, pois o custo da moradia nunca entrou no clculo de salrio do trabalhador.

    Sua tese de doutorado foi sobre a ci-dade e a lei. Tomando como exemplo os casos de Bogot, na Colmbia, com

    Enrique Pealosa, e de Curitiba, com Jaime Lerner, prefeitos carismticos que deixaram um legado, qual o papel da lei na criao de modelos acima da iniciativa de uma pessoa em querer mudar a cidade?

    importante lembrar que no te-ria acontecido a interveno Jaime Lerner em Curitiba sem o plano di-retor da cidade elaborado antes dele. Como tambm no teria aconteci-do a de Pealosa em Bogot sem o enorme esforo de planejamento feito antes na gesto do Antanas Mockus [prefeito de Bogot de 1995 a 1997 e de 2001 a 2003]. Foi An-tanas quem construiu a cultura do espao pblico, quem investiu for-te num planejamento orientado. Depois veio o Pealosa e realizou

    outros investimentos na mesma direo. modelar o processo de Bogot, cidade que se transformou em algumas gestes, sob a lideran-a sucessiva de dois prefeitos, num contexto democrtico e com partici-pao da cidadania. Mas no existe projeto de uma nica pessoa. Cidade sempre produto coletivo, essa sua natureza. Quem disser eu fui autor de uma cidade mente. Claro que temos um problema srio na nossa histria, que uma dissociao entre planejamento a longo prazo, com re-gras estveis, e os investimentos em obras, que acabam seguindo lgicas nem sempre fiis ao que foi plane-jado. Nos raros momentos em que esse encontro acontece, h projetos bem-sucedidos na cidade.

    A senhora escreveu sobre o cinismo dominante na nossa poltica urbana: de um lado reitera nos planos uma re-gulao urbanstica excludente e de outro negocia no dia-a-dia interesses pontuais e corporativos, com prticas clientelistas e de compra de votos.

    Essa uma das hipteses centrais do livro A Cidade e a Lei: o quanto nossas regras de uso e ocupao do solo foram feitas por poucos, para poucos, e dialogando com o modo de organizao econmico-cultural das classes mdias e altas; ignorando a maior parte da populao da cida-de, que tem outras prticas econ-mico-culturais em relao prpria organizao do espao. Portanto, historicamente a produo social do habitat popular, a parte produzida

    eNtReVIStA eNtReVIStA

    No existe projeto de uma nica pessoa.Cidade sempre produto coletivo, essa sua natureza.

    Quem disser eu fui autor de uma cidade mente

  • 28 getul io Setembro 2007 Setembro 2007 getul io 29

    E houve participao da populao?Isso um balano que ainda

    temos de fazer. Mas os resultados viro. Diria que uns 30% desses pla-nos foram feitos de fato com parti-cipao da populao. Em cidades menores, de 50, 60 mil habitantes, tivemos experincias marcantes de processo participativo que hoje se transformam em investimentos concretos de transformao do es-pao. Essa foi uma das principais aes que coordenei. Agora, por que sa do Ministrio das Cidades? Porque... H... [pausa] Infelizmen-te uma questo que est no campo da cultura poltica brasileira, stricto sensu, e da tradio poltico-partid-ria brasileira: um dos principais ele-mentos de reproduo de mandatos parlamentares so investimentos urbanos por meio das emendas, e

    nem estou falando de desvio, de superfaturamento...

    Est falando do trabalho srio dos depu-tados em propor emendas e trazer recur-sos para a populao que representam.

    Claro que pode ser srio. Entretan-to, a lgica da distribuio de recur-sos, nesse momento, no se integra com a lgica de construo dos espa-os pblicos. como se convivessem duas lgicas paralelas. Essa coisa de construir pontes para ganhar votos.

    A prpria Braslia tem a ponte JK que deve ter custado fortunas na admi-nistrao Joaquim Roriz. uma coisa personalista para deixar uma marca.

    Acho a ponte JK belssima. E a cidade tem que ter smbolos e mar-cos. No basta s funcionar, tem que ser linda. A populao tem que se

    orgulhar. A ponte foi uma obra que a populao abraou e virou smbolo de Braslia. No sou contra monu-mentos. Mas acho que, se investimos num processo pblico e coletivo de definio dos destinos da cidade, importante que esse processo, no qual os polticos evidentemente participaram, seja implementado. A misso do Ministrio das Cidades, no meu entender, trabalhar pela construo de outra cultura urbana, de valorizao do espao pblico, do pedestre, de uma cidade para todos, mais coesa e menos segregada. No misso do Ministrio das Cidades ficar distribuindo verbas de acordo com a filiao partidria.

    Vamos falar sobre o papel do arqui-teto na construo desses marcos. O arquiteto no se prestou a projetar

    condomnios fechados, numa cidade projetada para ricos?

    Sim, a arquitetura fragmentada e excludente... E as escolas de arquite-tura embarcaram nessa viagem. Teve uma onda perversa nos anos 1990. A cidade sumiu das escolas de arquite-tura. No havia mais reflexo sobre a cidade, s sobre edifcios e projetos. Abandonamos a idia de universali-dade, da cidade como espao coletivo para todos, em nome de projetos ur-banos isolados. Mas hoje a cidade est voltando para a escola de arquitetura. A existncia do Ministrio das Cidades e a campanha do plano diretor partici-pativo contriburam para a volta dessa pauta s escolas. Sou professora numa faculdade de arquitetura, a PUC de Campinas, e assisto volta do tema depois de ter ficado tremendamente desprestigiado. O Ministrio das Ci-

    dades tem a misso de promover essa cultura, de fazer polticas urbanas, de liderar esse processo, porque para isso que ele serve. No pode ser s um mero distribuidor de recursos! Mas a isso que ele est se reduzindo no momento. Foi por isso que eu sa.

    A senhora foi Diretora de Planejamen-to da cidade de So Paulo de 1989 a 1992. Para alguns, foi o melhor perodo que a cidade teve do ponto de vista de polticas urbanas. O que senhora diz?

    Nossa, foi a minha verdadeira escola [risos]. Aprendi muito. Foi nesse cargo que, no s eu, mas um conjunto de urbanistas e tcnicos levantamos pautas e questes para a cidade que foram intensamente dis-cutidas pela primeira vez. Na poca enfrentamos dificuldades e enorme oposio para levantar essas pautas.

    pelo povo, por princpio j ilegal e irregular. A lei uma espcie de car-tografia dos mercados de classe m-dia e de alta renda. No se relaciona com a produo popular. Dou um exemplo simples: quase no existe em cidades brasileiras um zonea-mento que permita construir trs, quatro casas para moradia no mes-mo lote. A nica forma de construir vrios domiclios no mesmo lote na legislao a verticalizao, ou seja, prdios. Como que a maior parte do povo mora? So duas, trs casas no mesmo lote. Constri uma, de-pois outra para o filho que casou, outra em cima para alugar...

    Um puxadinho...Exatamente, mas o puxadinho

    no existe na legislao. E o pas um monte de puxadinhos! A legisla-

    o no toma conhecimento da pro-duo real. A vem a questo: como que a produo real se relaciona com a gesto do governo municipal? Negociando na excepcionalidade. como dizer, Olha, irregular, mas eu tolero porque sabe como , no posso tirar... mas voc fica me devendo um favorzinho, afinal de contas a coisa est errada... Em vez de a lei se abrir para a totalidade da cidade e pr todo mundo para den-tro, ela mantm essa dicotomia: os de dentro e os de fora. E os de fora negociam, ponto a ponto, como que podem entrar.

    A senhora foi Secretria Nacional de Programas Urbanos do Minist-rio das Cidades entre 2003 e 2007. Ou seja...

    Acabei de sair [risos].

    Por que saiu e o que gostaria de ter feito e no conseguiu?

    Que pergunta difcil! Bom, fui para ajudar a construir o Ministrio das Cidades, que no existia. Isso foi um ganho: a idia de concentrar num lugar s, na Esplanada, toda a poltica urbana do pas. Dentro do Ministrio, assumi a Secretaria Na-cional de Programas Urbanos, com-pletamente nova, encarregada de disseminar a implementao do Es-tatuto da Cidade. Estive diretamente envolvida com a discusso que levou aprovao do Estatuto. Participei ativamente do debate com urbanis-tas, advogados, juristas, movimentos sociais e populares, associaes de favelas, setor imobilirio, indstria da construo, enfim, foi um mo-mento de intenso debate. A maior parte das tarefas de implementao

    do Estatuto cabe ao municpio. O papel do governo federal, a nosso ver, quando organizamos o Minis-trio das Cidades, apoiar, auxiliar, sensibilizar os municpios nesse es-foro, at porque os municpios so de uma total fragilidade institucio-nal, administrativa e financeira! O Estatuto amarrou a aplicao dos novos instrumentos elaborao de um plano diretor, que uma espcie de pacto territorial.

    Foi uma das coisas que a senhora implantou?

    no plano diretor de cada mu-nicpio, com participao dos cida-dos, que todas as concepes do Estatuto tm de ser aplicadas. Tro-cando em midos, a Constituio diz: Toda cidade e toda proprie-dade urbana tm que cumprir sua

    funo social. o plano diretor de cada cidade que dir qual a fun-o social especfica. A razo disso importante: como o governo fe-deral vai regular o que a funo social? Cada territrio tem de defi-nir sua peculiaridade social, cultu-ral, geogrfica e histrica. neces-srio que isso seja construdo por todos. No pode ser um processo s da Prefeitura e da Cmara Mu-nicipal. O Ministrio das Cidades fez uma estratgia para lanar ma-terial de apoio, fomentou oficinas de trabalho e capacitao de atores locais para construir coletivamen-te, com o Conselho Nacional das Cidades, resolues esclarecendo pontos em relao aplicao do Estatuto. O resultado foi surpreen-dente: quase 90% dos municpios fizeram o plano.

    eNtReVIStA eNtReVIStA

    o puxadinho no existe na legislao, ilegal. e o pas um monte de puxadinhos! A legislao no toma conhecimento da produo real

    Vamos fazer um monte de Cidade tiradentes, terrveis, l no meio do nada, ou vamos preencher os vazios urbanos, ofertar com mistura social?

  • 30 getul io Setembro 2007 Setembro 2007 getul io 31

    Concretamente, que medidas foram tomadas?

    A forma social da cidade e da propriedade, a idia de uma cida-de mais coesa, menos segregada, de repovoamento das reas centrais para evitar o inchamento da perife-ria. A idia de cidade para todos, e de todos, esteve presente no debate. So elementos que depois entraram no prprio Estatuto da Cidade. O interessante que foi um movimen-to na gesto Luiza Erundina, mas outras cidades do Brasil tambm tinham equipes pensando nisso. Foi a primeira gerao de prefeitos elei-tos no campo democrtico-popular com um compromisso forte com a idia de inverso de prioridades, investimento na periferia, partici-pao popular. Hoje essa pauta est

    disseminada e aceita. Foi at pasteu-rizada, diria [risos].

    At que ponto uma cidade pode con-tar com metas que independamdo prefeito?

    O modelo terico do Estatuto da Cidade que o plano diretor seja con-sensado pela populao e atravesse o tempo, e, portanto, gestes de diferen-tes partidos. Qual o problema polti-co de aplicao do plano diretor? No acho que s do prefeito e da cmara. O problema dos cidados tambm. Ns ainda no temos uma cultura ci-dad construda entre ns, apesar de o pas ter evoludo nesse sentido. O setor de planejamento, de regulao de uso e ocupao do solo na nossa ci-dade totalmente submetido ao capi-tal. Vou fazer uma analogia com essa

    histria das companhias areas e a ANAC [Agncia Nacional de Aviao Civil]. Baixou a conscincia no Brasil hoje de que a ANAC, em vez de regu-lar, fazia o jogo das empresas areas. O que elas tentam fazer? Aumentar o nmero de conexes ao mximo. Elas so empresas e esse o papel de-las, buscar mais lucro e rentabilidade. Com o setor imobilirio acontece o mesmo: pressionam para lucrar. O Estado no pode jamais servir apenas aos interesses do setor privado. No pode! Tem que regular, portanto, os demais interesses, dos cidados, dos pobres. O problema que nosso Es-tado, do ponto de vista da regulao urbanstica, est impressionantemen-te submetido ao capital imobilirio! E se vale disso para se auto-reproduzir nos mandatos, se reeleger.

    No por acaso os grandes financiado-res de campanhas so as construto-ras, certo?

    Sem falar em todas as prticas de corrupo por superfaturamento, desvio de verbas. Mas pouco se fala de quanto vale uma mudana na lei de zoneamento ou uma alterao de permetro urbano numa cmara mu-nicipal. Uma mudana na lei de uso e ocupao do solo, que ningum conhece nem sabe para o que ser-ve, vale bilhes! Toda a tentativa do Estatuto, de politizao do planeja-mento, foi no sentido de trazer para o planejamento esse importantssi-mo papel regulador do Estado.

    Fernando Henrique Cardoso, num perfil publicado na Piau de agosto, diz que ministros do Planejamento deixaram de

    existir na Amrica Latina. O mercado que se encarrega de regular o que o Estado abdica de fazer.

    Isso absolutamente trgico. Ain-da mais no caso brasileiro, em que temos um territrio no pactuado, em litgio o tempo todo pela ques-to ambiental, urbanstica. Diante de um territrio que no tem regras estveis de como ocupar ou no o solo, prevalece a lei do mais forte. uma lgica que tem a ver com a histria da nossa colonizao, de ocupar o territrio para extrair riquezas e ir embora. Durante um perodo em que dei aulas na Itlia percebi isso. Um dia me mostraram um centro comunitrio e social que existe em Veneza, e que est l, funcionando no mesmo local, h 2 mil anos [risos]. Isso um teci-

    do social constitudo, um territrio pactuado. Acredito que no Brasil a gente ainda v passar por isso. Na hora em que ocuparmos todo o ter-ritrio, diminuirmos o crescimento demogrfico, a migrao, e tivermos uma estabilizao da populao no mesmo lugar 200, 400 anos, a po-pulao comear a ter finalmente laos com o lugar.

    Algumas construtoras, que se dedicam a lanamentos de alto luxo, com apar-tamentos de R$ 1,5 milho, estariam se voltando para a construo de mo-radias para a populao de baixa ren-da. uma mudana de percepo?

    a segunda vez na nossa histria que vivemos abundncia de crdito imobilirio, e a queda da taxa de ju-ros ajuda. Temos, sobretudo, crdi-

    to subsidiado para a faixa de renda mais baixa, o que amplia o mercado habitacional para essas famlias. um grande feito do governo atual. Outro fenmeno que algumas construtoras se capitalizaram por-que abriram seu capital, entraram em bolsa. Vivemos um momento de boa capitalizao das construtoras com oferta de crdito ao consumi-dor. Nesse contexto, a possibilidade de produo ficou maior. Agora, ateno!, alerta!, perigo! A questo toda onde esses prdios sero cons-trudos. Vamos fazer um monte de Cidade Tiradentes, bem terrveis, l no meio do nada, ou vamos preen-cher os vazios urbanos, ofertar com mistura social, fazer uma interven-o interessante?

    Mas esse movimento de favelizao vem de longe, dos anos 80, a dcada perdida.

    O caos das metrpoles no se deu nos anos 80, mas na dcada anterior, a da expanso econmica. disso que as pessoas tm que ter conscincia, porque hoje todos fa-lam em empregos e crescimento. J vimos esse filme: crescimento eco-nmico de 14%, emprego bomban-do e as cidades se favelizando. Nos anos 1970 houve um crescimento econmico com concentrao de renda enorme, excludente. No as-pecto urbano, a marca fatal. Se no tem diviso de renda, se no tem regulao forte do Estado em relao cidade, a oferta de crdito

    imobilirio valoriza o terreno e dei-xa os pobres para fora de novo. Al-gum tem de pensar no bem-estar, e portanto colocar limites ao mer-cado. Isso bsico, at Adam Smi-th concordaria comigo. Temos que pensar numa poltica de incentivo para a revalorizao de reas cen-trais. E no s do centro. Em So Paulo, por exemplo, toda a franja da primeira indstria, ao longo da San-tosJundia, Mooca, Ipiranga, so de fbricas vazias que podem virar novas moradias e espaos pblicos para diversos grupos de renda.

    Olhando para trs, a senhora est feliz com o que fez ou acha que poderia ter feito diferente?

    Tenho sentimentos contraditrios

    em relao s pautas e s agendas que trabalhei ao longo desses anos. Por um lado, avanamos, principal-mente quando se v essa discusso disseminada no Brasil, junto com a idia de que hoje a relao entre os governos e as periferias de mais respeito. Por outro, frustrante ver esses avanos caminhando to deva-gar, e a reforma urbana ser pouco importante na agenda poltica na-cional. O que se v como agenda educao, sade, segurana, a questo urbana parece no ter im-portncia. E to bvio hoje, por exemplo, construir um trem de alta velocidade para o Rio de Janeiro e outro para Campinas. Quem acha que no? Agora, h quantos anos os

    urbanistas falam disso, criticando o modelo rodoviarista, que deu erra-do? Puxa, precisou cair um avio e morrer um monte de gente para virar consenso? sempre a lgica perversa do importante gerar em-prego, importante gerar emprego. Qual o modelo de cidade que esta-mos produzindo com isso? Dou aula em Campinas desde 1985. Gente, o que aconteceu com aquela cidade? Era ma-ra-vi-lho-sa, com qualidade, espaos pblicos de primeira. E o que virou?! Favelizou, precarizou, ficou completamente degradada!

    O antdoto para isso?O que a gente no tem no Brasil,

    e que se Deus quiser vamos formar agora, so urbanistas que consigam

    pensar e desenhar a cidade para chegar a artefatos belos, que se en-caixem plenamente na concepo do espao coletivo. No d para su-perar a violncia se no superarmos essa dicotomia! Como desmontar isso e integrar de novo? Essa uma questo urbanstica. A cidade tem o poder de fazer isso. Como que uma cidade muda o ethos dela? So Paulo, por exemplo, est prepara-da. Basta ver a reao quanto lei Cidade Limpa! A populao aderiu plenamente idia. O setor empre-sarial bateu pesado, e no levou. A cidadania adorou! A cidade ficou limpa e mais leve para todos. O se-tor empresarial vai ganhar menos dinheiro, e ponto.

    eNtReVIStA eNtReVIStA

    A violncia no acabar se no eliminarmos o apartheid. No d para deixar os pobres vivendo em guetos e os ricos

    em fortalezas, morrendo de medo