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DA “CIDADE DO PADRE CÍCERO” A “CIDADE DO CAPITAL”: A MORFOLOGIA E A CENTRALIDADE URBANAEMJUAZEIRO DO NORTE/CE Cláudio Smalley Soares Pereira Doutorando em Geografia Universidade Estadual Paulista (UNESP) Campus Presidente Prudente [email protected] INTRODUÇÃO A produção do espaço urbano, nos dias atuais, ocorre a partir de uma variedade derelaçõespromovidas pelos agentes sociais que articulam as dimensões econômica, política e social em uma diversidade de escalas geográficas e temporais. Pensar estas articulações em uma perspectiva histórica é um desafio que está posto para o entendimento da produção do espaço urbano e da morfologia das cidades. No bojo desta discussão esse trabalho busca uma reflexão da cidade de Juazeiro do Norte, sul do estado do Ceará. Esta cidade tem passado nas últimas duas décadas por transformações significativas no âmbito das atividades econômicas ligadas ao setor terciário, provocando alterações na morfologia da cidade, uma redefinição da centralidade urbana e nas práticas espaciais dos citadinos. Estas transformações espaciais, em grande parte influenciadas pelas atividades de comércio e serviços atrelada à problemática da centralidade urbana e do centro da cidade, nos possibilita pensar em um corte de tempo (periodização) que não é absoluto, mas relativo, como recurso metodológico, visando entender melhor a relação entre morfologia da cidade e centralidade urbana, sobretudo do ponto de vista dos agentes econômicos. O trabalho se baseia na pesquisa de mestrado(PEREIRA, 2014), já concluída, mas dando enfoque à morfologia da cidade, cujo enfoque foi pouco explorado naquela pesquisa. É, neste sentido, uma tentativa de buscar outros elementos que ajudem a explicar a reestruturação da cidade de Juazeiro do Norte 1 , mas ainda reconhecendo que muito precisa ser 1 Segundo dados do último recenseamento geral do Brasil, Juazeiro do Norte apresenta uma população de 249.940 habitantes, dos quais 240.128 são urbanos e destes, 238.938 vivem na sede no município, caracterizando uma taxa de urbanização de 96% (IBGE, 2010).

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DA “CIDADE DO PADRE CÍCERO” A “CIDADE DO CAPITAL”: A MORFOLOGIA E A CENTRALIDADE URBANAEMJUAZEIRO DO NORTE/CE

Cláudio Smalley Soares Pereira

Doutorando em Geografia Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Campus Presidente Prudente [email protected]

INTRODUÇÃO

A produção do espaço urbano, nos dias atuais, ocorre a partir de uma variedade

derelaçõespromovidas pelos agentes sociais que articulam as dimensões econômica, política e

social em uma diversidade de escalas geográficas e temporais. Pensar estas articulações em

uma perspectiva histórica é um desafio que está posto para o entendimento da produção do

espaço urbano e da morfologia das cidades.

No bojo desta discussão esse trabalho busca uma reflexão da cidade de Juazeiro do

Norte, sul do estado do Ceará. Esta cidade tem passado nas últimas duas décadas por

transformações significativas no âmbito das atividades econômicas ligadas ao setor terciário,

provocando alterações na morfologia da cidade, uma redefinição da centralidade urbana e nas

práticas espaciais dos citadinos.

Estas transformações espaciais, em grande parte influenciadas pelas atividades de

comércio e serviços atrelada à problemática da centralidade urbana e do centro da cidade, nos

possibilita pensar em um corte de tempo (periodização) que não é absoluto, mas relativo,

como recurso metodológico, visando entender melhor a relação entre morfologia da cidade e

centralidade urbana, sobretudo do ponto de vista dos agentes econômicos.

O trabalho se baseia na pesquisa de mestrado(PEREIRA, 2014), já concluída, mas

dando enfoque à morfologia da cidade, cujo enfoque foi pouco explorado naquela pesquisa. É,

neste sentido, uma tentativa de buscar outros elementos que ajudem a explicar a

reestruturação da cidade de Juazeiro do Norte1, mas ainda reconhecendo que muito precisa ser

1Segundo dados do último recenseamento geral do Brasil, Juazeiro do Norte apresenta uma população de 249.940 habitantes, dos quais 240.128 são urbanos e destes, 238.938 vivem na sede no município, caracterizando uma taxa de urbanização de 96% (IBGE, 2010).

avançado no que se refere à problematização da morfologia e sua importância para o

entendimento da produção do espaço urbano desta cidade2.

“CIDADE DO PADRE CÍCERO” E “CIDADE DO CAPITAL”: MORFOLOGIA E

CENTRALIDADE URBANAS

De acordo com Roncayolo (1986), a cidade tem como principal valor a duração

temporal. É uma forma socialmente produzida que perpassa os modos de produção, é trans-

histórica. Entretanto, isso não significa dizer que a cidade é apenas uma continuidade. A

cidade é, para Lefebvre (2008 [1968]), expressa a partir de uma tensão dialética entre a

continuidade e a descontinuidade espaço-temporal, sendo resultado, também, de relações

sociais que envolvem agentes e processos locais e globais, resultando em uma morfologia

urbana específica em cada período, que não são eliminadas no transcurso da estruturação do

espaço urbano, mas que permanecem de alguma maneira seja materialmente nas formas

arquitetônicas, em traçados da malha viária, em espaços públicos, ou até mesmo no

imaginário social e na memória coletiva. A morfologia da cidade, como pontuou Carlos

(2007, p. 55) “revela uma dimensão que não é apenas espacial, mas também temporal,ao

mesmo tempo em que, aponta uma profunda contradição nos processos de apropriação do

espaço pelasociedade”.

Visto que no âmbito da centralidade urbanaJuazeiro do Norte, até meados dos anos

1980 apresentava uma estrutura monocêntrica, com um forte poder de concentração e de

centralização espaciais do centro da cidade em relação ao restante da estrutura urbana, e que

só a partir de meados da década de 1980 é que a estrutura locacional do comércio e dos

serviços passa a se modificar, condicionando o aparecimento de novas áreas de centralidade

(PEREIRA, 2014), esta transformação, que teve reflexos na alteração da morfologia da

cidade, pode ser caracterizada a partir de duas denominações que se referem a um momento

de descontinuidade espaço-temporal da produção desta cidade, ou em outras palavras, dois

períodos.

2 O trabalho de Whitackere Miyazaki (2012) apresenta, de maneira clara e sucinta, as principais perspectivas do estudo da morfologia urbana no âmbito da Geografia Urbana e os principais conceitos que a ela podem ser articulados, como o de paisagem, forma, conteúdo, processo, tempo. Neste sentido os apontamentos metodológicos sistematizados pelos autores são de grande valia para um aprofundamento posterior na temática da morfologia urbana.

Observando a produção do espaço desta cidade naquilo que Braudel (1978) chamou de

“longa duração”, sugerimos que durante todo o século XX até a década de 1980, Juazeiro

pode ser caracterizada como a “cidade do Padre Cícero”3. Este sacerdote que morreu em 1934

foi um dos principais agentes da geografia histórica desta cidade, tendo influenciado a

produção do espaço urbano nas dimensões econômica, política, social e cultural-religiosa. O

seu papel como importante figura religiosa e mística sempre atraiu populações pobres dos

sertões do Nordeste brasileiro, o que nos permite entender que a cidade foi construída, mesmo

após sua morte ocorrida em 1934, sobre uma perspectiva mais pautada nos seus ensinamentos.

Sua influência foi marcante, e ainda é, mas atualmente uma “outra cidade” parece ganhar

forma. Com o aparecimento de novas áreas de centralidade, é possível entender que os

ditames econômicos passaram ao primeiro plano, e nas décadas de 1990 e 2000,

principalmente nesta última, assistimos ao surgimento de uma “cidade do capital”, que é

representada pelos pesados investimentos do capital global no âmbito das atividades

comerciais, sobretudo com a produção de grandes superfícies comerciais (supermercados e

hipermercados, shopping centers).

A qualificação de “duas cidades”, a do Padre Cícero e a do Capital, não significa dizer

que existe uma passagem em um sentido restrito, isto é, um etapismo em que uma cidade é

superada e a outra emerge destruindo a antiga. Trata-se, pelo contrário, de uma tensão de duas

perspectivas distintas de produção do espaço urbano, mas que coexistem, mesmo que

atualmente os processos econômicos sejam mais marcantes e tenham mais notoriedade no que

se refere a cidade atual, o que não quer dizer que os aspectos herdados da “cidade do Padre

Cícero” tenham sido aniquilados.Concordamos comBraudel (1987, p. 44), para quem “jamais

existe entre passado, mesmo passado longínquo, e tempo presente uma ruptura total, uma

descontinuidade absoluta ou, se preferirem, uma não-contaminação. As experiências do

passado não cessam de prolongar-se na vida presente, de a fecundar”.

No âmbito da cidade e da morfologia urbana, concordamos com Carlos (2007, p. 57),

quando afirma que “a morfologia urbana não revela a gênese do espaço, mas aparece como

um caminho seguro para a análise do modo como passado e presente se fundem nas formas,

revelando as possibilidades abertas no presente”. Neste sentido, vale lembrar as diversas

3Juazeiro do Norte consegueautonomia política e torna-se cidade em 1911.

dimensões do real e o papel dos agentes, que também tem importância. A respeito dissoCapel

(2002, p. 20) afirma que “la morfologia urbana, elespacio construído, reflejalaorganización

económica, laorganización social, lasestructuras políticas, los objetivos de los grupos sociales

dominantes”.

MORFOLOGIA E CENTRALIDADE NA “CIDADE DO PADRE CÍCERO”

O que estamos qualificando de “cidade do Padre Cícero” é o espaço urbano que foi

produzido por agentes sociais em períodos anteriores aos anos 1980. Até meados da década de

1980, embora pesem diferenças, conflitos e contradições e outras periodizações existentes,

inclusive a que realizamos em Pereira (2014), é notório perceber a importância crucial do

papel de agentes sociais, tendo o Padre Cícero (mas não só ele) certo protagonismo, na

produção da cidade4.

O sagrado e a religiosidade que se apresentam hoje como vitrine de um marketing

urbano da venda da cidade de Juazeiro do Norte como destino de turismo religioso, inclusive

atrelados ao planejamento urbano pelo poder público e pelo Estado o Ceará (PEREIRA,

2012), data de outras épocas em que os aspectos simbólicos da religião se materializaram no

espaço urbano, dando uma forma espacial para a cidade.

Como ressalta Silva Júnior (2009), a cidade que cresceu e se expandiu a partir da

Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, produziu um arruamento perpendicular com certa

regularidade, incorporando antigas formas de arruamento da época do período colonial

quando ainda era um distrito da cidade de Crato. O plano de tabuleiro de xadrez, elogiado por

muitos que visitaram a cidade até os anos 1930 e 1940 (Figura 1), é o principal elemento

característico de uma certa regulamentação urbana, no sentido de ordem e ordenação do

espaço urbano, que significava inclusive a existência, para alguns, de uma cidade moderna5.

4 É importante deixar claro que o Padre Cícero não foi o único agente da produção da cidade, nem o que mais influenciou a sua expansão. Igualmente importantes foram Floro Bartolomeu, a Igreja, os romeiros e dinâmicas naturais que condicionaram o afluxo de diversas pessoas, como as secas entre finais do séc. XIX e início o séc. XX (PEREIRA, 2014). 5 Autores que ressaltaram o plano e xadrez em seus escritos são, entre outros: Costa (1923), Castro (1925), Diniz (1935), Girão e Martins Filho (1939).

Figura 1: Juazeiro do Norte: Expansão urbana até os anos 1940

Fonte: Pereira (2014)

Desde o arruamento inicial do núcleo urbano já se percebia certa predominância do

elemento religioso, materializado, sobretudo nos nomes das ruas6. Na realização de um censo

local em janeiro de 1909, foram encontradas, segundo estudo cronológico de Menezes e

Alencar (1989), ruas com os seguintes nomes: Santa Luzia, São Pedro, São Francisco, São

João, São Sebastião, São José, Santo Antônio e Padre Cícero.

Para Silva Júnior (2009, p. 353 – grifo nosso), o Padre Cícero instituiu “em Juazeiro

uma morfologia [...] sem uma preocupação estética a princípio, dando formas à cidade de

acordo com o movimento dos romeiros, tornando Juazeiro, aparentemente, desordenada, sem

um planejamento ao seu desenvolvimento”. Assim, a “meca do nordeste” ou “terra santa”,

como é conhecida no senso comum, ganhou corpo e forma.

É necessário lembrar também que existe “alguns traços de um território pouco visível

nos documentos escritos, de um passado que ficou escondido no porão dos registros que até

hoje foram feitos sobre a cidade do Padre Cícero” (RAMOS, 2000, p. 107), que são

justamente as periferias e a sua forma espacial diferenciada. A contradição centro-periferia é

6 Ressalto que esta predominância é relativa, visto que os aspectos econômicos e políticos sempre estiveram presentes e tiveram um forte peso enquanto determinação (e não determinismo) na produção da cidade. Sobre isto ver a primeira parte da pesquisa de Pereira (2014).

relatada em alguns trabalhos, mas a maioria privilegia os progressos, a ordem, a estética, o

padronizado, que do ponto de vista espacial, corresponde ao centro da cidade7.

Os pobres moravam, sobretudo, nas partes mais periféricas da mancha urbana,

principalmente nas proximidades da linha férrea, que servia como um “divisor de água”. Essa

área ao redor da Estação Ferroviária era chamada de Arisco, espaço da cidade que “para a

sociedade local, as pessoas que lá residiam eram de baixa conduta” (SOBRAL, 1992, p. 21).

No dizer de Ramos (2000, p. 110) “[os] contrastes entre pobres e ricos emergiam nas

segregações da malha urbana [e] [...] no fim da década de quarenta, continuava a crescer o

número de ruas e becos das regiões periféricas”. Ainda segundo este autor, “para os habitantes

da região central, a periferia era, antes de tudo, um espaço que maculava o progresso de

Juazeiro” (RAMOS, 2000, p. 109), com ruas tortuosas, sem infraestruturas e com habitações

precárias. Estas contradições no âmbito dos espaços de moradia permanecerão na “cidade do

Capital”, mas com novas formas espaciais, com maior destaque para os condomínios fechados

e os edifícios residenciais, redimensionando a segregação posta na cidade do padre Cícero.

Mais do que uma “cidade sagrada” ou “terra santa” apenas, ou mesmo “cidade

mística” (ALVES, 1948), a cidade que foi produzida era repleta de contradições e

desigualdades socioespaciais, manifestada na forma urbana enquanto segregação espacial, que

tem seu maior exemplo na contradição centro-periferia.

O papel do centro da cidade, área em que os valores e funções urbanos, o preço do

solo, a densidade da atividade comercial e de serviços, a presença de estabelecimentos de

lazer e diversão diurna e noturna, de edifícios públicos, do anonimato e da liberdade se

apresentam com maior intensidade (RENDU, 1970) permaneceu fundamental na estruturação

da cidade, sem outras áreas concorrentes. O centro da cidade, o lugar da “reunião das mais

altas manifestações da vida de relações” (LABASSE,1970, p. 8) reinava “absoluto” na

“cidade do Padre Cícero”.

MORFOLOGIA E CENTRALIDADE NA “CIDADE DO CAPITAL”

7 Autores que fizeram relatos das áreas periféricas da urbe na medida em que ela se expandia, são, entre outros: Lourenço Filho (1926), Odísio (1935), Soares (1968).

Se a qualificação de “cidade do Padre Cícero” denota um aspecto particular da cidade

de Juazeiro do Norte até os anos 1980, tendo como referencial a religiosidade e o simbólico

atrelado a ela (não livre de contradições), a “cidade do capital” é como qualificamos a cidade

que passa a se estruturar a partir da década de 1980, mas fundamentalmente nos anos 1990 e

2000.Com esta qualificação, busca-se destacar o papel predominante que assumem os agentes

econômicos na produção da cidade. Estes agentes econômicos são variados, desde os locais,

que atuam estritamente na escala da cidade, àqueles que atuam em escalas mais amplas, como

a regional, a estadual e até mesmo a mundial, representados nos mais diversos setores de

atividades, como a indústria, o comércio e os serviços.

Vale lembrar que a articulação entre escalas geográficas que Juazeiro do Norte

estabelece com o mundo é fato desde as origens da cidade, tendo tido rebatimentos

importantes na produção do espaço urbano, em que agentes políticos e econômicos

mantinham relações estreitas com esta cidade (PEREIRA, 2014).

Entretanto, o novo é que estas relações em múltiplas escalas, além de incorporarem as

multidimensionalidades já presentes na “cidade do Padre Cícero”, em que o político, o

econômico e o cultural-religioso se imbricavam (como é o caso exemplar do padre Cícero,

que atuou em diversas frentes), se dão de forma mais nítida pela dimensão econômica,com

certo protagonismo deste quanto ao processo de produção da cidade e da expansão urbana,

sobretudo os agentes ligados ao capital mundializado e à economia globalizada, ainda que as

dimensões política e cultural-religiosa não tenham desaparecido.

Modifica-se, assim, a morfologia da cidade na medida em que as ações dos agentes

sociais se materializam cada vez mais em uma cidade que se expande rapidamente, com

bairros periféricos, uns destinados às classes mais pobres, como foi o caso do bairro Frei

Damião, originário de ocupações de terras por movimentos sociais (PEREIRA,

2009),enquanto outros foram produzidos pela e para as elites, que buscavam cada vez mais se

distanciar da cidade, como é o caso do bairro Lagoa Seca8.

8Conforme se observa em Ceará (1980, p. 90), “esse bairro constitui um núcleo à parte, na cidade, estando desvinculado da malha urbana [com] a presença de mansões, casas de luxo, com todo conforto, isoladas umas das outras e praticamente voltadas para o seu interior (muros altos)”. Atualmente, os condomínios fechados e os edifícios residenciais são os principais espaços de moradia das classes mais abastadas.

O setor de comércio e serviços é aquele quem tem maior destaque. Em meados dos

anos 1980, por meio de iniciativas dos comerciantes locais, influenciados pela instalação do

Mercado Público do Pirajá, produziu-se na cidade uma nova área com expressão de

centralidade, que cresceu e se expandiu ao longo dos últimos trinta anos, tornando-se primeiro

uma alternativa de compras para a população, sobretudo a mais periférica, e posteriormente,

mais recentemente, também um lugar de referência das atividades comerciais, com a

instalação de bancos, por exemplo, constituindo-se como um subcentro (PEREIRA, 2014).

Contudo, há que se destacar o papel das grandes superfícies comerciais na

reestruturação da cidade de Juazeiro do Norte, que acaba também por alterar a morfologia da

cidade e dar a ela novos conteúdos diferentes daqueles da “cidade do Padre Cícero”.

Pensamos aqui junto com Sposito (2004, p. 66), para quem “a morfologia urbana refere-se

não apenas a forma, mas também aos conteúdos que orientam e são por ela redefinidos

continuamente”. Os conteúdos econômicos, na “cidade do capital”, tornam-se predominantes.

Com pesados investimentos nos últimos anos, os grandes grupos do varejo de capital

internacional investiram na cidade de forma que alterou radicalmente, e de maneira rápida, a

estruturação e a forma da cidade.O Cariri Garden Shopping, instalado em 1997, foi o primeiro

destes grandes equipamentos comerciais privados a entrar em funcionamento, ainda que tenha

tido uma defasagem temporal que acontece quando empreendimentos deste tipo são

inaugurados, sendo necessário algum tempo para que eles de fato façam parte da dinâmica

econômica e das práticas espaciais dos citadinos, conforme apontou Sposito (2006). Foi

comprado pela Tenco Shopping Centers em 2008 pelo valor de R$ 70 milhões, mesmo valor

investido em sua obra de duplicação. Somados os investimentos dos grandes varejistas como

o Wal-mart (com o Hiper Bompreço e o Maxxi), o Carrefour (com o Atacadão) e o Cassino-

Pão e Açúcar (com o Assaí), contabiliza-se um total R$ 130 milhões. Há ainda outro shopping

que está sendo construído na cidade, o Shopping Juazeiro, com investimentos da ordem de R$

60 milhões aproximadamente. Estas grandes superfícies comerciais mudaram tanto a forma da

cidade como as práticas espaciais de consumo da população9, produzindo assim uma estrutura

urbana multi(poli)nucleada10, com várias áreas de centralidade (figura 2).

Imagem 2 – Juazeiro do Norte. As áreas com expressão de centralidade

Fonte: Pereira (2014)

Se o capital busca transformar a paisagem geográfica à sua imagem e semelhança,

como diz Harvey (2004), então a paisagem que se torna cada vez mais presente em Juazeiro

do Norte, com os grandes grupos do varejo internacional e os shopping centers, é a expressão

clara das transformações resultantes das ações dos agentes econômicos do capital

mundializado e globalizado no espaço urbano11. Esta modernização da estrutura comercial

urbana empreendida pelas novas formas comerciais da “cidade do capital” articulam cada vez

mais a cidade aos circuitos da economia globalizada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

9 Não nos deteremos aqui na análise das práticas espaciais. Para o leitor interessado no tema, consultar Pereira (2014), especialmente o capítulo 7. 10Em Pereira (2014, cap. 5 e 6) argumentamos que Juazeiro do Norte se constitui como uma cidade com várias áreas de centralidade ou áreas com expressões de centralidade –multi(poli)nucleada –, mas apenas com um centro, o Centro da cidade. Desta forma, o uso do termo “multi(poli)nucleada” em vez de “multi(poli)cêntrica” – que se refere a vários centros – foi proposital. 11 No âmbito da produção imobiliária residencial, os novos espaços de moradia (condomínios fechados, edifícios residenciais), ainda que os principais agentes sejam locais, é necessário o desenvolvimento de uma pesquisa a parte que busque desvelar como eles atuam em Juazeiro do Norte.

A transformação da cidade de Juazeiro do Norte está ligada a processos mais amplos

de alterações da estruturação das cidades e urbana, que por sua vez implica, no atual período

histórico, em reestruturações da cidade e urbana, em que o capital e os agentes econômicos

erguem-se ao primeiro plano como principais agentes da produção do espaço urbano,

modificando, por fim, a morfologia da cidade e redefinindo a centralidade urbana.

É importante lembrar que todas estas transformações não aniquilaram o aspecto

tradicional e as permanências da cidade do passado, a cidade do “Padre Cícero” ou “Juazeiro

do Padre Cícero”. As romarias, o simbólico que ainda tem um papel importante na produção

desta cidade e, sobretudo no reforço da centralidade do centro principal da cidade, são os

principais aspectos que ainda permanecem no presente e que se digladiam com o novo que

surge e parece querer expurgá-lo. Mais do que extinguir os referenciais do passado, de uma

cidade que foi construída e produzida nos marcos de um projeto de humanização e civilização

da Igreja Católica e sob os direcionamentos do Padre Cícero, os processos atuais por qual

Juazeiro do Norte passa e que a transformam, cada vez mais, em uma “cidade do capital”,

denunciam que as permanências têm um importante papel na constituição da cidade e da sua

forma urbana.

Estas permanências são observadas pelo papel ainda fundamental do centro principal

da cidade. Este é a área que concentra a maior parcela de comércio e serviços, tanto em

número absoluto quanto em números relativos, é o nó da rede de transporte coletivo, em que

praticamente todas as linhas de ônibus passam por ele, e é também um dos principais lugares

em que os citadinos realizam seu consumo. Mais ainda, se diferencia das outras áreas da

cidade por fazer parte da memória coletiva dos citadinos, pela sua representação enquanto

espaço em que viveu e atuou personagens históricos bem como de acontecimentos míticos, no

caso aqui o “milagre da hóstia”12.Portanto, o papel do centro principal de Juazeiro do Norte é

ainda grande (PEREIRA, 2014).

Por outro lado, o surgimento dos novos espaços de comércio e serviços, concentrados

em áreas distintas produziu uma estruturação multi(poli)nucleada, em que estes novos espaços

passaram a fazer concorrência com o centro da cidade, e que por vezes influência os

deslocamentos de consumidores em escalas espaciais mais amplas, no caso o Cariri Garden 12O “milagre da hóstia” foi o evento em que a hóstia se transformou em sangue na boa de uma beata, no final dos anos 80 do séc. XIX.

Shopping e as grandes superfícies comerciais varejistas localizadas na Avenida Padre Cícero,

no Eixo Juazeiro-Crato. Assiste-se, portanto, um processo de reestruturação do espaço urbano

de Juazeiro do Norte, no qual o velho e o novo, o tradicional e o moderno, se tencionam e

produzem um espaço contraditório e desigual.

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