a ecologia urbana, o lugar ea cidadania · conferência a ecologia urbana, o lugar ea cidadania *...

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Conferência A ECOLOGIA URBANA, O LUGAR E A CIDADANIA * Vincent Berdoulay** A cidade e a ecologia ocupam um lugar importante entre as preocu- pações contemporâneas. Aproximan- do-as, o que cria a expressão ecolo- gia urbana. designamos um destes campos de interação importantes entre a geografia, as outras ciências e a sociedade. Abordarei aqui a questão à luz dos debates que têm lugar atualmente na Europa e nota- damente na França. É aliás neste país que a expressão ecologia urbana conhece um certo prestígio. Ela per- mite aproximar, como em outros lu- gares da Europa. as preocupações com o futuro das cidades e com os problemas ambientais. Mas a origi- nalidade pela qual ela é considerada pelos poderes públicos e por certos pesquisadores nos leva a reter aten- ção. Esta idéia de ecologia urbana recobre o interesse mais recente pelo desenvolvimento sustentável. Mas ela não se limita à aplicação das abordagens naturalistas ao meio am- biente urbano: possui uma dimensão' fundamentalmente social, tanto nas preocupações que possui quanto no campo da ação, da gestão. Mostrarei então o interesse ge- rai da ecologia humana para a refle- xão geográfica e também para o pla- nejamento. Tentarei em seguida mos- trar porque este desejo de ecologia urbana, contudo. teve dificuldades para se constituircomo domínio de pesquisa, apesar de ser muito rica de ensina- mentos para a geografia. Enfim. insis- tirei sobre dois desafios metodológicos, o lugar e o espaço público, para uma geografia que procura contribuir para a ecologia urbana. A "ecologia urbana" A ecologia urbana é uma ex- pressão que remete a todo um feixe de aspirações sociais, de preocupações e de apostas metodológicas envolven- do ao mesmo tempo a pesquisa fun- damental e a ação. >lo Conferência inaugural do 11Encontro Nacional da ANPEGE, Rio de 1aneiro, setembro 1997. *'" Laboratoire SET (CNRS-UPPA, Pau, França).

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Page 1: A ECOLOGIA URBANA, O LUGAR EA CIDADANIA · Conferência A ECOLOGIA URBANA, O LUGAR EA CIDADANIA * Vincent Berdoulay** A cidade e a ecologia ocupam um lugar importante entre as preocu-paçõescontemporâneas

Conferência

A ECOLOGIA URBANA, O LUGAR E A CIDADANIA *

Vincent Berdoulay**

A cidade e a ecologia ocupamum lugar importante entre as preocu-pações contemporâneas. Aproximan-do-as, o que cria a expressão ecolo-gia urbana. designamos um destescampos de interação importantesentre a geografia, as outras ciênciase a sociedade. Abordarei aqui aquestão à luz dos debates que têmlugar atualmente na Europa e nota-damente na França. É aliás neste paísque a expressão ecologia urbanaconhece um certo prestígio. Ela per-mite aproximar, como em outros lu-gares da Europa. as preocupaçõescom o futuro das cidades e com osproblemas ambientais. Mas a origi-nalidade pela qual ela é consideradapelos poderes públicos e por certospesquisadores nos leva a reter aten-ção. Esta idéia de ecologia urbanarecobre o interesse mais recentepelo desenvolvimento sustentável.Mas ela não se limita à aplicação dasabordagens naturalistas ao meio am-biente urbano: possui uma dimensão'

fundamentalmente social, tanto naspreocupações que possui quanto nocampo da ação, da gestão.

Mostrarei então o interesse ge-rai da ecologia humana para a refle-xão geográfica e também para o pla-nejamento. Tentarei em seguida mos-trar porque este desejo de ecologiaurbana, contudo. teve dificuldades parase constituircomo domínio de pesquisa,apesar de ser muito rica de ensina-mentos para a geografia. Enfim. insis-tirei sobre dois desafios metodológicos,o lugar e o espaço público, para umageografia que procura contribuir para aecologia urbana.

A "ecologia urbana"

A ecologia urbana é uma ex-pressão que remete a todo um feixede aspirações sociais, de preocupaçõese de apostas metodológicas envolven-do ao mesmo tempo a pesquisa fun-damental e a ação.

>lo Conferência inaugural do 11Encontro Nacional da ANPEGE, Rio de 1aneiro, setembro 1997.*'" Laboratoire SET (CNRS-UPPA, Pau, França).

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Há, primeiramente, como panode fundo, uma sensibilidade ecológicaque não cessou de se afirmar nestasúltimas décadas. Os movimentos deproteção da natureza se difundiramenormemente na população, que mu-dou seu olhar sobre o mundo que ocerca e sobre sua própria responsabi-lidade ambiental. Os prejuízos ligadosà vida urbana, poluição, doenças etc.,não são as únicas maneiras pelas quaiso meio ambiente entrou nas preocu-pações urbanas: a preocupação pelaqualidade de vida, pelo sentimento debem-estar, é também responsável poreste olhar renovado sobre a cidade,as duas tendências estando ligadas,uma vez que a qualidade de vida de-pende da qualidade do meio ambiente.

É inútil insistir sobre este tipode aspiração, pois ela é bem conheci-da. Sublinharei somente que ela é,freqüentemente, marcada, reforçada,lançada de novo, por um "ecologismopolítico", quer dizer, um militantismocom tendência relativamente radical.Isto tem sua importância, pois eleconduz à passagem da sensibilidadeecológica para a esfera política tradi-cional. O fato de que esses movimen-tos não tenham conseguido se associaraos partidos políticos clássicos e dis-tintos, não tira a importância na vidasocial e política e constitui um outrodomínio de reflexão no qual não en-trarei aqui (LATOUR, 1995).

Reterei de tudo isso alguns as-pectos úteis à nossa proposta. Primei-ro, o sentimento de que não podemosmais falar e tratar da natureza como

tínhamos o hábito de fazer. A ecolo-gia é menos uma análise dos dadosnaturais (fazíamos isto desde há muitotempo) que uma maneira de reconsi-derar nossos hábitos de funcionamen-to social e político. Trata-se de estarpronto a fazer intervir elementos domeio ambiente natural ou social aosquais não podíamos inicialmente nosater. O que é bem novo é este aspec-to inesperado dos elementos que en-tram nos debates ecológicos (eles vãodo microhábitat de alguns insetos aovalor identitário ou patrimonial de par-tes banais da paisagem). Em seguida,e no mesmo caminho, direi que osmovimentos ecológicos traduzem me-nos freqüentemente um sentimentonovo da natureza que um desejo re-novado de participação individual noprocesso democrático. Passamos datomada de consciência da responsabi-lidade humana do futuro da Terra auma vontade de responsabilidade peloindivíduo de seu meio ambiente locale até planetário. A preocupação pelaecologia urbana repousa em grandeparte sobre este desejo de cidadania,de democracia reforçada.

De fato, atrás da ecologia ur-bana surge toda uma aspiração paramudar a relação com as condições devida que são, e continuam, fundamen-talmente urbanas. Vemos assim apa-recer uma visão mais positiva da ci-dade no seio da sensibilidade ecológi-ca. As pesquisas atuais mostram umsenso de nuance, uma procura deequilíbrio entre a cidade e a natureza,um "realismo mais ou menos tinto de

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desencantamento: cada um tem em siimagens ideais da cidade tanto quantoda natureza". E nos damos conta queo barulho e a poluição na cidade va-lem bem os nitratos da água e as"vacas loucas" no campo! Além disso,os militantes ecológicos tomam maise mais consciência que é a partir dacidade que podemos "curar nossa ter-ra doente" (DUHEM, 1997: 8).

A esta nova positividadeatribuída à cidade se junta uma aspi-ração profunda de tratar de maneiraintegrada os problemas dispersos. mastambém urgentes, da vida urbana,sejam eles de tipos naturais, físicos ousociais. Aí, ainda, a visão ecológicacorresponde a uma justaposição deelementos inesperados até aqui: existeuma demanda por uma nova lógica naqual se possa abraçar com o mesmoolhar, por exemplo, a poluição e aexclusão social.

Um rápido histórico do exemplofrancês permite notar quais preocu-pações organizam o campo da ecolo-gia urbana. Desde os anos 1960-70constatamos, sob a pressão do movi-mento militante ecológico, uma preo-cupação pela cidade (PELT, 1977;CRU, 1979). Este termina, no cursoda década de 1980, em um esforçode estabelecer uma perspectiva cien-tífica para a ecologia urbana. Os doisnúmeros especiars da revistaM étropolis (1984 e 1985) constituema expressão desse esforço. A idéiasegue seu curso, se difunde e, a favor

* Ministere de l'Equipement.

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de uma conjuntura política favorávelno começo da década de 1990 (apressão política dos partidos "verdes"),a ecologia urbana se toma um domí-nio de convergência importante paraos programas nacionais de pesquisacientífica e de avaliação das políticaspúblicas.

Assim, a partir de 1992, o Mi-nistério do Meio Ambiente e o Minis-tério da Infra-estrutura* lançavam umimportante programa conjunto de inci-tação à pesquisa. O objetivo era du-plo: 1. ajudar a esclarecer em que asensibilidade ecológica modificava asconcepções da cidade; 2. ajudar aresponder à questão de saber se aecologia urbana pode ser um projetocientífico. Com efeito, a pesquisa ci-entífica havia sobretudo se concentra-do, até então, sobre o impacto do pla-nejamento sobre os meios naturais foradas cidades. Sem ignorar o primeiroponto, a sensibilidade ecológica, quejá evoquei, me concentrarei sobre aecologia urbana como projeto cientí-fico e para começar, sobre sua justi-ficativa social, quer dizer, sobre suacapacidade de fornecer uma interpre-tação renovada sobre a cidade e dosmeios de se agir sobre ela.

O crescimento do interesse pelaecologia urbana na França no come-ço da década de 1990 se inscreveno contexto maior de uma reavalia-ção à honra da prospecção, da plani-ficação, da gestão em relação às apos-tas ambientais (BERDOULAY e

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SOUBERYAN, 1994). A ecologiaurbana não é então um subproduto deum pós-modernismo que rejeita a pla-nificação, louvando o poder local. Elase inscreve como uma orientação derenovação da modernidade. Represen-ta uma "esperança de renovaçãoconceitual" (SOUBEYRAN, 1997), afim de constituir uma alternativa pos-sível ao "urbanismo racional" ou "fron-tal" que falhou. O que é muito interes-sante - e continua muito moderno - éa preocupação de fundar cientifica-mente a intervenção. Esta aproxima-ção implica um reposicionamento daatividade científica, em ultrapassar aspreocupações clássicas já existentes.

Assim é o caso da "ecologiasegundo os ecólogos" (biólogos e na-turalistas), que aplicam seu saber aomeio urbano. Esta aproximação escla-rece o funcionamento dos sistemasanimais ou vegetais na cidade, tantoquanto suas interações com os sereshumanos. Seu alcance operacional égrande, pois afirma com precisão asmodalidades de gestão dos elementosda natureza na cidade. Mas ela selimita, pois não pode responder, mes-mo de longe, às aspirações maioresantes evocadas. "A ecologia segundoos engenheiros", prolongando aquelados ecólogos, se concentra sobre osfluxos (água, ar, energia, matérias),suas interações e funcionamentosistêmicos. Ela fornece critérios pre-ciosos para diversas escalas urbanas.Mas ela continua ainda longe das pre-ocupações mais globais trazidas pelaecologia urbana. "A ecologia segundo

as ciências sociais" não é somente umcomplemento às aproximações prece-dentes. Ela pode esclarecer de formadiferente a ecologia urbana, notada-mente em relação com as aspiraçõesjá evocadas. Antes de voltar ao tema,lembrarei as orientações dominantesempreendidas pela ação urbanística nomundo, feitas em nome do pensamen-to ecológico.

Este remete à "cidade susten-tável" (STREN, WHITE, WHITNEY,1992). O movimento contemporâneoem favor de um desenvolvimento sus-tentável integrou, com efeito, as múl-tiplas iniciativas de melhoramento lo-cal dos ciclos ecológicos - pequenosparques, jardins, reciclagem, economiade energia, etc. - (conforme a Cartade Aarlberg). Traz notadamente umavisão mais macroscópica, como estados engenheiros que fazem relatóriosenergéticos. Recolocamos assim aênfase sobre a cidade compacta esuas diversas soluções morfológicas.Sentimos, entretanto, que é difícil sesituar nestas aproximações técnicas.Desejamos uma aproximação nova,dando mais lugar aos objetivos do de-senvolvimento sustentável: busca daeqüidade, satisfação das necessidadesfundamentais, decisões democráticas.É precisamente aí que a ecologia ur-bana, tal qual ela se desdobrou naFrança, tem o forte de suas preocu-pações. A cidade sustentável é tam-bém, e antes de tudo, assunto de de-bate social. A ecologia urbana repõeem questão as bases da gestão fron-tal do urbanismo operacional. Sua fa-

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lência vem "da exclusão da dimensãosocial, como elemento decisivo daprodução do espaço" (LÉVY, 1993: 6).A autonomia do social, tanto na aná-lise quanto na ação, deve ser preser-vada.

Assim, a maior aposta - queconcerne também à geografia - éaquela da articulação das ciências dasociedade e das ciências da natureza.A aposta é fundamentalmente de or-dem epistemológica. Quais são as viasque permitiriam escapar aos tropismosmetodológicos desses grupos de ciên-cias? Durante os debates sobre esteproblema na França, apareceu que aecologia urbana - mesmo com osgrandes reforços do jargão sistêmico- se situava como um "não-lugar cien-tífico", entre as ciências da sociedadee aquelas da natureza. Este problemaestá misturado a outros desafiosmetodológicos.

Inicialmente. há os paradoxosassociados à ecologia urbana, Esta é,de outra parte, evocada no momentomesmo onde "não sabemos mais porque lado considerar a cidade, onde nóstemos o sentimento que as coisas nosescapam mais e mais". Invocando oolhar ecológico, esperamos poder "to-mar a cidade como um todo, com seusmúltiplos anéis, suas inter-relaçõescomplexas, seus limiares e suasemergências, seu metabolismo"(SOUBEYRAN, 1996). Esta nova vi-são da cidade, que é assim procurada,coloca junto dimensões até entãojulgadas incompatíveis: o biológico e osocial, a natureza e a cidade. Parece

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que procuramos uma solução, um prin-cípio organizador, no que havíamosprecisamente abandonado durantedécadas.

De maneira mais operacional,digamos que é essencialmente a no-ção ecológica - de meio (concomi-tantemente social e natural) - que estásendo de novo convocada, embora elatenha sido eliminada em detrimento deparadigmas analíticos nas ciênciasfundamentais e no planejamento. Masentão, como tirar partido de uma con-cepção do meio que implica numalógica relativamente circular e com-plexa com as exigências da ação queimplica numa visão mais linear dacausalidade? Ora, o que nós podemoster a certeza agora é de que nãopodemos saber nada com certeza! Aecologia urbana é uma colocação emincerteza.

Sem negar a necessidade demodelos e de procedimentos formaisde planejamento, a ecologia urbanaconvida também a cultivar um distan-ciamento crítico em relação às ferra-mentas disponíveis e a seus princípiosfundadores. Por exemplo, o "princípiode precaução" caracteriza os riscosresiduais marcados por forte incerte-za e pela pesquisa de procedimentosde gestão de tais riscos. O desafiometodológico é, então, ao mesmo tem-po, cognitivo e normativo. O princípioidentifica formas particulares de in-certeza, mas ele cria também - desig-nando as responsabilidades - um de-ver de antecipação (LASCOUMES,1996; EWALD, 1996). A problemáti-

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ca da responsabilidade, com toda suacarga coletiva e moral, está assimsendo reformulada. Outro exemplo noqual o ponto de vista crítico se impõeé aquele do prêt-a-penser, como oslogan "pensar globalmente, agir local-mente". No nível cognitivo, é verda-deiramente possível pensar em só umnível? Pensar se faz de maneirainterativa entre o local e o global. Alémdisso, no nível normativo, não serialegitimar, em nome da diversidade, umadivisão localista e pós-modernista domundo?

Enfim, é necessário se interro-gar sobre o entusiasmo atual pela de-mocracia participativa. Os métodos deplanificação de parceria, principalmen-te aquelas vindas da AIA (a Avalia-ção de Impacto Ambiental), dão umgrande espaço à consulta e à partici-pação do público (BERDOULAY eSOUBEYRAN, 1996). Os métodos seafinam, se impondo cada vez mais noprocesso de planificação (como ilus-tra a AEIA, Avaliação Estratégica deImpacto Ambiental, de iniciativa daUnião Européia). Mas estes méto-dos têm a tendência a deixar de ladoas questões mais fundamentais: Oque é o público? Quem tem o direitode debater? Qual é a representati-vidade dos porta-vozes? Sobre o quepodemos debater? Qual é a relaçãodesta democracia participativa coma democracia representativa? Quaissão os lugares do debate público?De fato, "a participação deve ser en-carada não como uma solução, mascomo um problema" (LARRUE e

BLATRIX, 1997, p. 22). Que territó-rios devem ser levados em conta?

Como vemos, não faltam ques-tões trazida pela ecologia urbana. Maspor que este olhar sobre a cidade temtanta dificuldade em se constituir emuma abordagem coerente? O proble-ma pode ser examinado à luz da geo-grafia, pois estas questões a interpe-lam na mesma medida: relações dasciências da natureza e das ciênciasda sociedade, conceituação da noçãode meio, relação com a ação, com-preensão da territorialidade.

As fontes narrativas donão-lugar científico da

ecologia urbana

o não-lugar científico da eco-logia urbana entre as ciências da na-tureza e as ciências da sociedade temfontes diversas e insuficientementeconhecidas. Já evoquei o peso dosparadigmas analíticos. Podemos adi-cionar o fator agravante do positi vismoque predomina na emergência dosestudos urbanos. Seria também neces-sário adicionar fatores ideológicos einstitucionais. Todavia, me concentra-rei aqui sobre a dimensão narrativado discurso científico, uma vez queele não foi jamais visto como umaprioridade. O recuo histórico nos per-mite darmos conta muito bem disso.

A despeito de suas dificuldadespara se constituir como um campocientífico coerente, a ecologia urbanacorresponde a uma curiosidade que

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existe há muito. Ela teve seu grandemomento principalmente da década de1910 à década de 1930 com o inícioda geografia e, depois, da sociologiaurbanas. Anteriormente, no domínio daação, o higienismo - tão próximo dapreocupação ecologista - tinha inspi-rado o desenvolvimento do urbanismo.Mesmo o urbanismo "racional" vindodos CIAM (Congressos Internacionaisde Arquitetura Moderna), e notada-mente a Carta de Atenas, parte deconsiderações ambientais: (higienepública, insoladas, acesso à natureza),e, em relação a isso, consideraçõessobre a justiça social. O meio é semdúvida um elemento desta problemáti-ca. Mas sabemos como ele é tratado.Elemento do diagnóstico, ele é, entre-tanto, eliminado como modalidade desolução: praticamos o método da tábularasa a fim de reconstruir um meio ideal.Sabemos infelizmente a que a aplica-ção - é verdade, rápida e mal finan-ciada - deste método conduziu, nota-damente em relação aos "grandes con-juntos" na França.

Devemos lembrar que este des-prezo pela consistência social e histó-rica do meio não era fato consumadopara outros urbanistas. Estou me re-ferindo notadamente à corrente, maisou menos, ligada ao museu social noinício do século. Os Jaussely, Forestier,Prost, Poete, Agache tinham umaconcepção mais positiva do meio lo-cal em suas propostas do que aquelaque se elaborou, em relação ao pen-samento geográfico. As pesquisas em'curso sobre a aproximação destes ur-

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banistas são tanto mais estimulantesuma vez que elas vão contra a cor-rente da história "estabelecida"(BERDOULAY e CLAVAL, 1997).É o caso daquela escrita por F. Choay,que relegava estes urbanistas a umacorrente não científica, dita "cultura-lista" (CHOAY, 1965). Esta autora,contudo, reconheceu ultimamente quesua visão era por demais redutora: elacompreende agora que existiu "umaoutra modernidade" diferente daquelados CIAM (CHOAY, 1994). Atual-mente, nossos próprios trabalhos ten-dem a mostrar que, no seio do urba-nismo nascente, as fontes narrativasdo não-lugar científico eram um pou-co análogas àquelas que caracteriza-vam o problema na geografia e nasociologia do início do século.

No conjunto das pesquisas quecoordeno em meu laboratório (cujaspublicações estão em curso), analisa-mos grandes textos que tentaram com-preender o desafio de se situar naperspectiva de uma ecologia urbana eque tentaram colocar o problema domeio em toda sua complexidade. Sãosobretudo os trabalhos de RaoulBlanchard (sobre Annecy e Grenoblee de J. Levainville sobre Rouen), as-sim como aqueles produzidos pelaescola de Chicago, que serviram dematerial para nossas análises. Centreia problemática sobre o papel desem-penhado pela estrutura da argumenta-ção e da exposição dos fatos. Me situo,assim, no prolongamento de meus tra-balhos anteriores sobre o efeito-dis-curso na evolução do pensamento

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geográfico (BERDOULAY, 1988a). Ahipótese é então a de que certos efei-tos retóricos são responsáveis pelo não-lugar científico da ecologia urbana, ou,ao menos, o amplificariam.

Dentre eles, o relato me apare-ceu, contra toda previsão, como tendoum efeito fundamentalmente retórico.Com efeito, ele constitui uma estrutu-ra poderosa que opera o discurso naecologia urbana. Às vezes facilmentenotado na narração feita pelos auto-res, ele é mais freqüentemente pre-sente como organizador de um discur-so que pode, por outro lado, se desdo-brar segundo modalidades muito diver-sas. De fato, o relato é uma "forma-sentido" que condiciona a argumenta-ção científica.

Fomos assim confrontados, nomeu laboratório, com um desafio quenão esperávamos, a saber, a necessi-dade de elaborar um método de aná-lise do relato suficientemente maleávelpara tratar dos discursos científicos.Precisamos, primeiramente, compreen-der porque o relato se constitui numponto cego - ele também verdadeiro"não-lugar" - nos confins dos estudosepistemológicos do discurso científicoe dos estudos literários. Nossa abor-dagem mostrou, ao contrário, que orelato e o discurso científico não sãoantinômicos. Foi partindo deste pontoque pudemos desenvolver um métodode análise do relato no discurso cien-tífico. Além dos procedimentos retóri-cos mais conhecidos mas que nãoengajam necessariamente o relato(metáfora, metonímia, modalidades de

intervenção do autor, etc.), voltamosnossa atenção para dois grandes tiposde estruturação narrativa: a superes-trutura narrati va e a macroestruturasemântica. Com efeito, é em sua ar-ticulação, interna ou recíproca. que oautor põe o essencial de sua mensa-gem e que ele pode conseguir delimi-tar o campo da ecologia urbana.

A noção de meio, com tudo queela traz de complexidade, nos orien-tou imediatamente para uma das gran-des dificuldades da ecologia urbana,responsável por seu não-lugar cientí-fico. Por que podemos colocar o pro-blema do meio, ou da ecologia, nocomeço, para em seguida o perder devista quando procuramos avançar naexplicação, na utilização de leis uni-versais e na formulação das modali-dades de ação? Ora, o relato nãopermite, precisamente, à ecologia ur-bana, se constituir num lugar cientí-fico? Negando aceitar explicitamenteo relato como categoria epistemologi-camente válida, e, provavelmente poresta mesma razão, utilizando-o mal,os cientistas freqüentemente se equi-vocaram.

Assim, os cientistas não soube-ram tirar partido do fato de que orelato poderia trazer em relação aodesafio da ecologia urbana. Eles pa-recem haver hesitado no seio de umapolaridade exercida por dois tipos deestruturação do relato: o relato orgâ-nico (que Blanchard ilustra maravilho-samente) e o relato compartimentado(das quais as forças e fraquezas sãobem ilustradas pela obra de Levainville

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sobre Rouen). Quanto à escola deChicago, nossa análise mostrou queseria útil revisitá-la, uma vez que aacusação da analogia naturalista nosparece mal embasada (BERDOULAY,1988). Seus trabalhos sobre a comu-nidade conservam ainda hoje umapertinência pois sentimos a necessi-dade de uma reflexão sobre os gru-pos que vão agir sobre a cidade esobre a fabricação dos laços sociais.Além disso, esta escola se negou aconsiderar o argumento ecológicocomo fundamento dos valores. Ao con-trário, para a ecologia, segundo a es-cola de Chicago, a cidade correspondea um duplo desenraizamento: aqueleda civilização à natureza e aquele dosujeito face às determinações biológi-cas e SOCIaIS.

Os diferentes usos do relato,freqüentemente inconscientes e por-tanto mal dominados, nos mostraramcomo podia-se fabricar o não-lugarcientífico da ecologia urbana: cau-salidades pouco claras ou muito cir-culares, alcance geral reduzido, im-precisão do sujeito, insensibilidade aosocial e à subjeti vidade das popula-ções, etc. Estes obstáculos nos con-vidam entretanto a nos interrogar-mos sobre as condições e sobre asmodalidades de utilização do relatopara reduzir o não-lugar científicoda ecologia urbana. Assim, o relatoque é um meio privilegiado de vercoerentemente fenômenos nos quaisa diversidade escapa a uma explica-ção simples em termos de leis ge-rais, deve achar na pesquisa e na

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prática um lugar que lhe foi negado.A dificuldade de conciliar meio

e ação constitui uma dificuldade daecologia urbana, face à demanda muitoatual de globalidade da ação. Ora,como mostram os textos voltados paraa gestão, existe uma estratégia decomplementar a legitimidade do queavançamos pelo recurso a uma outraesfera de argumentação, suscitandoassim um entrelace difícil a distinguirentre o discurso científico e o discur-so gestor (que continuam, cada um, aobedecer a lógicas diferentes). Aanál ise dos relatos que os estruturampermite, contudo, considerar o escla-recimento deste entrelaçamento dosdiscursos e de suas dependências elegitimações recíprocas. Deve-se en-tão considerar a evidência, face ao"relato científico", de um "relatoprospectivo" que pode se isentar dadependência em relação às leis cien-tíficas não ainda formuladas e quepode integrar a questão dos valores.Poderemos então elucidar este tipo derelato, permitindo compatibilizar ciên-cia e ação. Nossas pesquisas atuaisse orientam portanto para esta via.

A releitura destas contribuiçõesprecoces para a ecologia urbana de-monstra nos resultados obtidos os di-ferentes tipos de vantagens e dificul-dades ligados aos modos de coloca-ção em relato, responsáveis pelo rela-tivo, mas sem igual, revés destas ten-tativas da ecologia urbana. O relato,por sua generalidade na vida científi-ca, profissional e social, parece ter umalcance considerável no projeto de

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requalificação das cidades trazido pelaecologia urbana. Com efeito, o alcan-ce do relato como colocação em coe-rência da complexidade não se limitaaos discursos científicos e àqueles daação: ela engloba todas as manifesta-ções da subjetividade humana. A eco-logia urbana compreende também os"relatos vemaculares". Neste sentido,ela convida ainda e sempre a levantara questão das relações entre todosestes olhares sobre a cidade. Esco-lhemos aqui o ângulo do lugar e doespaço públicos.

o lugar e o espaço públicos

Algumas reflexões se impõemsobre a noção de lugar e sobre apertinência de considerá-la na pesqui-sa geográfica. É uma noção da qualestamos longe de haver tirado partidopara compreender o contexto atual damodernidade (ou pós-modernidade,segundo o ponto de vista ). Na medi-da em que a ecologia urbana traduzuma parte deste contexto, a noção delugar lhe é útil: ela facilita cercar osespaços de pertinência da abordageme além disso, a se interrogar sobre adimensão espacial do exercício dacidadania. É tanto mais interessanteque poucos geógrafos se interessarampela noção de lugar num contexto demodernidade e de exercício da demo-cracia.

Meu interesse pelo lugar pro-vém de uma relativa insatisfação faceà forma mais comumente empregada,

na França, a de território. Esta meparece um pouco como uma carrusa-de-força, pois ela predetermina a re-flexão impondo desde o início umquadro espacial, limites e uma vonta-de política dados. Reforça esta im-pressão a ecologia militante que temuma tendência a glorificar a localida-de, ° que L. Boltansky e L. Thévenotchamam a "cidade doméstica", querdizer um modelo de justificativa parti-cular de controvérsias no seio da socie-dade (BOLTANSKY e THÉVENOT,1991). Esta volta da "domesticidade"sobre o lugar público tem um ar defrescor na França, onde a prática re-publicana a havia cuidadosamentemantido na esfera privada. SegundoB. LATOUR (1995: 10), a partir deum engajamento para a proteção deum elemento ambiental local, "podía-mos, enfim, ser ao mesmo tempo re-acionários e modernos"! Qual seja,nesses tempos de pós-modernismo,constatamos uma forte tendência aoenclausuramento, à intimidade sobrenovos territórios, sobre uma tribo, atésobre a seita, onde visivelmente apa-rece o desejo de pertencer a uma co-munidade. É verdade que, de maneiraconcomitante, escutamos também aretórica inversa: da publicidade comer-cial aos slogans antiestatais, a moda éa transparência total dos espaços, demaneira que o indivíduo possa se de-sabrochar plenamente numa culturamundial que supostamente traria feli-cidade ...

É entre estes dois modelos quea pesquisa contemporânea tenta se

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situar. Neste ponto intervém o inte-resse pela noção de lugar, na medidaem que ela é conceituada a partir daatividade discursiva do sujeito no seuesforço para resolver a tensão que éexercida entre polaridades diversas,c0l!l0 a subjetividade e a objetivida-de, o particular e o universal, etc.(BERDOULAY e ENTRIKIN, 1998,mas também BERDOULAY, 1988b;ENTRIKIN, 1991; BERDOULAY eENTRIKIN, 1994). Sabemos o quan-to o contexto da modernidade é pro-pício à emergência de tensões prove-nientes de pares de oposição entre asidéias que a fundam (GOMES, 1996).Levando em conta a realidade atualdas territorialidades (ou pertencimen-tos) múltiplos, a noção de lugar permi-te insistir sobre a persistência de lu-gares fortes que, malgrado certasaparências, unem o sujeito contem-porâneo a seu mundo. Por sujeito,eu entendo o indivíduo que procuraser o autor de sua própria vida. Emsuma, podemos dizer que o sujeitotem lugar.

Esta perspectiva de pesquisaconvida a compreender a dinâmicadiscursiva, principalmente narrativa,que institui o lugar. A construção doEu corresponde a um processo análo-go àquele da construção do lugar. Asrelações da identidade à alteridade, doterritório à norma, assim como osfenômenos de territorialidade múltipla,são reveladores das modalidades deconstrução dos lugares pelo sujeito, eparticularmente de sua instância nar-rativa. De fato, o sujeito constrói o

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lugar pela intermediação dos relatosque dão sentido à sua relação com aspessoas e objetos que o cercam. Es-tes relatos correspondem a redescri-ções dos elementos deste meio ambi-ente, desdobradas segundo uma tra-ma narrativa que lhe dá sentido. Aredefinição do sujeito e do lugar serelaciona aos valores coletivos assimcomo à materialidade do mundo. Acultura, enquanto meio de análise devalores coletivos e campo de expres-são para a intersubjetividade, tende aestabilizar a configuração dos lugares.A materialidade na qual se desdobraa vida social e pessoal vai no mesmosentido.

Chegaremos assim à questão dacidadania (BERDOULAY, 1977). Ain-da que a noção de território não definao campo de exercício de deveres epoderes, a problemática do lugar re-mete a uma perspectiva de implica-ção ativa, e potencialmente autocons-trutiva do sujeito. Os laços que unemo sujeito ao lugar implicam necessa-riamente em valores e regras de fun-cionamento. Mas obtemos, desta ma-neira, um espaço público, ou seja, umespaço onde possa desabrochar odebate público?

Para clarear minha propostaretomarei a questão pelo viés das duasgrandes dimensões do que é público.Para começar, retomando uma idéiada Antiguidade grega, o espaço quetem a qualidade de público é aqueleque nos permite tomar consciência dapresença do outro. Para isso, esteespaço deve ser amplamente aberto,

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acessível a qualquer um, quaisquer quesejam as características individuais oucoleti vas próprias das pessoas que ofreqüentam (SENNETI, 1979). Mini-mamente, então, é um espaço sensí-vel à alteridade, um espaço onde sedesdobra a mise-en-scêne de si e dosoutros, quer ela seja ritualizada ou nãonos comportamentos que exige. Maso espaço público foi também conside-rado, notadamente no pensamento fi-losófico, como condição do desabro-char do debate político, ele mesmocondição sine qua non da vida de-mocrática. Certamente, este espaçopúblico não deve ser confundido comaquele da decisão, mas ele constitui,entretanto o precedente democrático.O espaço público assim concebidodeve assegurar a reflexão e o livreexercício da argumentação, em vistasa uma sã harmonização das opiniões(HABERMAS, 1993 e 1997).

Entre estas duas concepções doespaço público, a primeira podendomais facilmente que a segunda adqui-rir características concretas, perma-necendo esta última fundamentalmen-te multidimensional na sua formula-ção filosófica, não seria possível en-carar uma aproximação que seja ope-racional? É precisamente aí que podeutilmente intervir a noção de lugar.Porque ele não implica a priori ne-nhuma escala, nem nenhum enclausu-ramento em limites espaciais, mas porsua materialidade, o lugar permiteaproximar de um mesmo olhar os fe-nômenos que estas duas concepçõestêm tendência a deixar separadas.

o espaço público aparece en-tão como um caso de figura particulardo fenômeno que a noção de lugarprocura compreender. É no lugar quea relação com a alteridade, posta emprática pelo outro, pode se converterem matéria para reflexão, em reco-nhecimento da diferença e em esfor-ço de colocação em coerência. Orelato reencontra plenamente seusdireitos: já presente ao nível da mise-en-scêne da alteridade, ele se tornaessencial para dar sentido a esta con-frontação com a novidade, para fazeremergir as condições de um projetocoletivo. Aqui, o lugar e o espaçopúblico participam de um mesmo re-lato, aquele que corresponde a umaidentidade que se recoloca em ques-tão. Eis aí porque, graças à noção delugar e contrariamente a abordagemfilosófica dominante, não é necessárioopor o espaço público e a identidadecoletiva. Pela tensão entre seus as-pectos materiais e ideais, locais euniversais, eles oferecem o mesmopotencial de abertura sobre a alterida-de, de comunicação e de reflexividade.

É aliás o contrário de uma iden-tidade que procura se impor negandoo outro: não seria aquela que implicao território tal como habitualmente con-cebido? Somente uma concepçãotruncada de identidade o pode susten-tar. Trata-se então de ideologia(BERDOULAY, 1985). Seu discursonão procura primeiro estabelecer odiálogo e a fabricação de um consen-so a partir de pontos de vista radical-mente diferentes. Em suma, enquanto

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a noção de lugar subentende aquelade espaço público, a noção de territó-rio reforça aquela da ideologia.

Vemos que graças a um reco-nhecimento da autonomia dos lugarespode-se criar as condições de um es-paço público útil à vida democrática econcebido como não contraditório coma identidade coletiva contanto queesta nutra uma cultura que se abrasobre o universal. A noção de lugarconvida a se inclinar sobre o papelativo e criador do sujeito que procurafundir as contradições nas quais sedesdobra sua vida. Não é então emdireção a uma tomada em conta danarrati vidade própria aos lugares - queela remete a relatos científicos,prospecti vos ou vernaculares - quedeve se voltar a pesquisa em ecologiaurbana?

Conclusão

Através destas páginas, esperoter chamado a atenção para o interes-se deste olhar renovado sobre a civi-lização contemporânea que constitui aecologia urbana. Mesmo se atualmen-te ainda pareça existir mais questõesque respostas, a ecologia urbana noslembra o desafio incontornável deaproximar as ciências da natureza dasciências da sociedade. É esta preocu-pação que nos faz tomar consciênciada urgência de se inclinar sobre osrecursos do discursos dos quais dispo-mos, notadamente aqueles que bus-cam o recurso do relato. A ecologia

urbana nos convida também a repen-sar, de acordo com esta vontade demelhor domar e explorar nossas fon-tes discursivas, as noções que permi-tem conceituar a relação humana como meio ambiente. É assim que a no-ção de lugar deve continuar a serrevisitada, e tanto mais que ela abre aporta a uma aproximação mais geo-gráfica das apostas democráticas con-temporâneas.

Por suas dificuldades próprias,a ecologia urbana ilustra bem a novi-dade e a complexidade das transfor-mações que estão afetando a socie-dade. Ela ilustra bem, também, osdesafios que se colocam à pesquisacontemporânea. Ela nos convida -particularmente aos geógrafos - aparticipar em primeira linha do esclare-cimento das apostas científicas,gestoras e democráticas de nossotempo.

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