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Parecer sobre as propostas de alteração do marco regulatório do transporte ferroviário de cargas - 2011 Marçal Justen Filho Doutor em Direito Professor Titular da UFPR de 1986 a 2006 Advogado e parecerista em Direito Público

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Parecer sobre as propostas de alteração do marco regulatório do

transporte ferroviário de cargas - 2011

 

 

 

 

 

Marçal Justen Filho

Doutor em Direito

Professor Titular da UFPR de 1986 a 2006

Advogado e parecerista em Direito Público

 

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SUMÁRIO

1 – Os fatos e os quesitos 1 

2 – O vigente marco regulatório da atividade ferroviária 4 

2.1 – A regra do art. 21, inc. XII, “d” da Constituição ............................................ 4 

2.1.1 – A coexistência de serviço público e atividade privada .......................... 5 

2.1.2 – A determinação constitucional .............................................................. 5 

2.1.3 – A necessidade da existência do serviço público ................................... 5 

2.1.4 – A proteção ao serviço público ............................................................... 6 

2.2 – A disciplina legislativa.................................................................................. 6 

2.3 – O regulamento de 1996 ............................................................................... 7 

2.3.1 – A recepção pela Lei nº 10.233 .............................................................. 7 

2.3.2 – A ausência de previsão para atividades sob regime privado ................ 7 

2.3.3 – A ausência de diferenciação de espécies de concessão ...................... 7 

2.3.4 – A situação de tráfego mútuo e direito de passagem ............................. 8 

2.3.5 – As operações acessórias ...................................................................... 8 

2.4 – Os contratos de concessão de serviço público em vigor ............................. 9 

2.4.1 – As licitações .......................................................................................... 9 

2.4.2 – As contratações em curso .................................................................. 10 

3 – Os documentos dados a público 10 

3.1 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 117/2011 ............ 10 

3.2 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 116/2011 ............ 10 

3.3 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 115/2011 ............ 11 

3.4 – As minutas: pontos comuns e pontos específicos ..................................... 11 

4 – A violação dos requisitos de uma reforma regulatória 11 

4.1 – A competência regulatória estatal e os requisitos de reformas ................. 11 

4.1.1 – Reforma regulatória e ruptura do processo econômico ...................... 12 

4.1.2 – A observância de procedimento preparatório ..................................... 12 

4.1.3 – A exigência da Análise de Impacto Regulatório .................................. 12 

4.2 – O caso concreto: a ausência de estudos aprofundados ............................ 14 

4.2.1 - O documento existente: Nota Técnica nº 27/2011/SUREG ................. 14 

4.2.2 - A ausência de Análise do Impacto Regulatório ................................... 15 

4.2.3 – A insuficiência de informações: entrevistas com usuários .................. 15 

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4.3 - As deficiências da análise apresentada ..................................................... 15 

4.3.1 - A contradição principiológica ............................................................... 16 

4.3.2 - A circunscrição do intervalo temporal .................................................. 17 

4.3.3 - A contradição com o interesse econômico .......................................... 17 

4.3.4 - A questão das tarifas ........................................................................... 19 

4.3.5 - A ausência de preocupação com a formação de custos ..................... 20 

4.3.6 - A defeituosa avaliação da questão tarifária ......................................... 21 

4.3.7 - A efetiva transferência de benefícios para a sociedade ...................... 23 

4.4 – Síntese: o subjetivismo da proposta de reforma ....................................... 23 

5 – A questão do monopólio natural e da concorrência 24 

5.1 - A questão do monopólio natural ................................................................. 24 

5.1.1 - As diversas acepções da expressão "monopólio" ............................... 24 

5.1.2 - A figura do monopólio natural .............................................................. 24 

5.1.3 - O monopólio natural e a competição ................................................... 25 

5.1.4 - A inviabilidade da competição e a intervenção regulatória .................. 26 

5.1.5 - O monopólio natural e o serviço público .............................................. 26 

5.2 - O transporte ferroviário de cargas: características ..................................... 27 

5.2.1 - A inviabilidade da duplicação da infraestrutura ................................... 27 

5.2.2 - A demanda por capital intensivo .......................................................... 27 

5.2.3 - A configuração de economias de escopo ............................................ 27 

5.2.4 - Síntese: a inviabilidade da competição ................................................ 28 

5.3 – O caso concreto: a omissão sobre o tema ................................................ 28 

6 – As características do sistema ferroviário brasileiro 28 

6.1 – A configuração como serviço público ........................................................ 28 

6.2 – Problemas e dificuldades históricos .......................................................... 28 

6.2.1 - A dificuldade técnica específica: o relevo ............................................ 29 

6.2.2 - A dificuldade técnica específica: a energia elétrica ............................. 29 

6.2.3 - A dificuldade socioeconômica específica: as regiões urbanas ............ 29 

6.2.4 - A dificuldade socioeconômica específica: a dispersão geográfica ...... 29 

6.3 - Colapso e renascimento do transporte ferroviário no Brasil ....................... 29 

6.4 - As dificuldades existentes e a cautela na reforma regulatória ................... 30 

6.4.1 - O modelo atual: definição estatal ........................................................ 30 

6.4.2 - A alteração da realidade e a cautela regulatória ................................. 31 

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7 – Síntese sobre o caso concreto: defeitos técnicos da proposta 31 

7.1 – A vedação à "imprudência" e à "imperícia" regulatórias ............................ 31 

7.2 – O direito fundamental à "boa administração" ............................................ 31 

8 – A violação ao princípio da legalidade 32 

9 – As deficiências nos pressupostos jurídicos 33 

9.1 - O conceito e a configuração de serviço público ......................................... 33 

9.1.1 - A orientação consagrada na Nota Técnica .......................................... 34 

9.1.2 - A figura do "serviço de utilidade pública" ............................................. 34 

9.1.3 - A distinção entre serviço público e atividade econômica privada ........ 35 

9.1.4 - O serviço público de transporte ferroviário de cargas .......................... 36 

9.2 - O regime jurídico de serviço público .......................................................... 37 

9.2.1 - O texto da Nota Técnica e a confusão entre regimes .......................... 37 

9.2.2 - A não aplicabilidade do regime próprio da atividade econômica ......... 38 

9.3 - Os princípios próprios do regime de serviço público .................................. 39 

9.3.1 - A titularidade do Estado ....................................................................... 39 

8.3.2 - A adequação: mutabilidade, universalidade e modicidade tarifária ..... 39 

9.3.3 - A delegação a particulares mediante licitação ..................................... 40 

9.3.4 - A preservação da equação econômico-financeira da outorga ............. 40 

9.4 – As deficiências quanto ao instituto da concessão de serviço público ........ 41 

9.4.1 - O objeto da outorga: a prestação do serviço ....................................... 41 

8.4.2 - O equívoco quanto à desagregação do serviço público ...................... 42 

9.5 – Os defeitos jurídicos e suas decorrências ................................................. 44 

10 - A questão da eliminação da exclusividade 44 

10.1 - A implantação da competição .................................................................. 44 

10.2 – As três modalidades de eliminação da exclusividade ............................. 45 

10.3 – O núcleo da proposta: a privatização do serviço ..................................... 46 

10.4 – A violação à Constituição: o risco de destruição do serviço público ........ 46 

10.4.1 – A determinação constitucional da existência do serviço público ....... 46 

10.4.2 – A proteção em favor do serviço público ............................................ 46 

10.4.3 – A garantia instrumental ..................................................................... 47 

10.4.5 – Os efeitos da implantação de competição ........................................ 47 

10.4.6 – Os riscos de insolvência generalizada .............................................. 48 

10.4.7 – A implantação da chamada “assimetria regulatória” ......................... 48 

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10.4.8 – A limitada aplicabilidade da assimetria regulatória ........................... 49 

10.4.9 - As tarifas praticadas por custo médio ................................................ 51 

10.4.10 – A infração à vontade constitucional ................................................ 53 

10.5 – A violação à Lei ....................................................................................... 54 

10.5.1 – A norma legal clara e inquestionável ................................................ 54 

10.5.2 – A vigência ilimitada do dispositivo..................................................... 54 

10.6 – Os limites da competência regulamentar ............................................... 55 

10.6.1 – A natureza complexa do marco regulatório ...................................... 55 

10.6.2 – A improcedência do argumento da "reserva" de ato regulamentar ... 56 

10.7 – O problema da "capacidade ociosa"........................................................ 59 

10.8 - A redução da remuneração ...................................................................... 60 

10.9 – O efeito nocivo da competição ................................................................ 61 

10.10 – A improcedência do argumento da função social .................................. 61 

11 - A infração à legalidade e ao art. 174 da CF/88 62 

11.1 – A despublicização da relação de serviço público .................................... 62 

11.2 – A necessidade de lei para despublicizar a atividade ............................... 63 

11.3 – O argumento da ausência de serviço público .......................................... 63 

11.4 – Os limites da intervenção estatal ............................................................. 64 

12 – A tutela jurídica à equação econômico-financeira dos contratos 64 

12.1 – A garantia constitucional e legal .............................................................. 64 

12.2 – A frustração ao regime licitatório ............................................................. 64 

12.2.1 – As determinações dos arts. 37, inc. XXI, e 175 da Constituição ....... 64 

12.2.2 – A vedação à desnaturação do contrato ............................................ 65 

12.2.3 – A vedação à alteração de características fundamentais da avença . 65 

12.3 – A alteração radical das outorgas licitadas ............................................... 65 

12.3.1 - A modelagem por ocasião da outorga ............................................... 65 

12.3.2 - As modificações pretendidas ............................................................. 66 

12.3.3 – A alteração qualitativa do objeto da concessão ................................ 67 

12.4 – Inaplicabilidade do argumento da mutabilidade do contrato .................... 67 

12.5 – Ainda a frustração das condições da outorga ......................................... 68 

12.5.1 – As atividades puramente privadas .................................................... 69 

12.5.2 – A ausência de competência regulatória ............................................ 69 

12.5.3 – A explícita disciplina por ocasião da outorga .................................... 69 

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12.6 – Ainda a infração à isonomia .................................................................... 70 

12.7 – A violação ao art. 35 da Lei nº 9.074 ....................................................... 71 

12.8 - A figura do Usuário Operador de Transporte Multimodal ......................... 71 

12.9 - A impossibilidade constitucional e legal de supressão superveniente ..... 72 

12.10 – A introdução de competição e o desaparecimento da garantia ............. 72 

12.11 – Síntese .................................................................................................. 73 

13 – A violação ao ato jurídico perfeito 73 

13.1 – A garantia constitucional ao ato jurídico perfeito ..................................... 73 

13.1.1 – A extensão da garantia constitucional .............................................. 73 

13.1.2 – A disciplina do edital e do contrato ................................................... 74 

13.2 – A função de garantia da licitação ............................................................ 74 

13.3 – A alteração do objeto da outorga ............................................................ 75 

13.3.1 – Os dois obstáculos à alteração ......................................................... 75 

13.3.2 – A vedação a modificações estruturais e substanciais ....................... 76 

13.3.3 – As inovações substanciais ................................................................ 76 

14 – A ofensa à isonomia 76 

14.1 – A cumulação de encargos e a transferência de benefícios ..................... 77 

14.2 – As diversas ordens de vantagens competitivas ....................................... 78 

14.3 – A impertinência do argumento da tarifa de direito de passagem ............. 81 

14.4 – Síntese: o regime privilegiado para os terceiros competidores ............... 81 

15 – A infração ao monopólio jurisdicional: interpretação conforme 81 

15.1 – A garantia do acesso ao Poder Judiciário ............................................... 81 

15.2 – O instituto da arbitragem ......................................................................... 82 

15.3 – A inconstitucionalidade da imposição compulsória da arbitragem .......... 82 

15.4 – A inconstitucionalidade da imposição de arbitragem pela ANTT ............. 82 

15.5 – A interpretação conforme ........................................................................ 83 

16 – O descabimento da invocação à supremacia do interesse público 83 

16.1 – A concepção totalitária da supremacia do interesse público ................... 83 

16.2 – A concepção democrática da supremacia do interesse público .............. 84 

16.3 – A insuficiência do argumento da supremacia do interesse público ......... 84 

17 – Conclusão 84 

 

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Marçal Justen Filho

 

 

 

 

 

 

 

 

 

P A R E C E R

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS TRANSPORTADORES

FERROVIÁRIOS – ANTF honrou-me com a solicitação de parecer versando

sobre propostas de resoluções objeto das Consultas Públicas nº 115/2011,

116/2011 e 117/2011, promovidas pela Agência Nacional de Transportes

Terrestres – ANTT. Adiante se encontram os fatos e os quesitos.

1 – Os fatos e os quesitos

1. A Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT

desencadeou procedimentos de consultas públicas para implementar reforma

regulatória no setor de transporte ferroviário de cargas. Houve a divulgação de

três minutas de documentos normativos.

2. Diante disso, a Associação Nacional dos Transportadores

Ferroviários – ANTF solicitou a elaboração do presente parecer, versando

sobre os quesitos abaixo expostos:

a) Poder-se-ia, nos termos propostos pela ANTT, alterar todo o marco

regulatório do serviço público ferroviário, inclusive para as

concessões já celebradas?

b) As mencionadas alterações no marco regulatório podem ser

veiculadas por resolução da ANTT?

c) Uma alteração dessa magnitude importa a eliminação da garantia à

intangibilidade da equação econômico-financeira das outorgas em

vigor?

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Marçal Justen Filho - 2 -

d) Uma alteração dessa magnitude poderia ser viabilizada mediante

mero reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos já

celebrados? Em caso negativo, seria ela nula, inclusive por

representar uma rescisão indireta dos contratos de concessão sem

os requisitos e consequências legalmente impostas a esta

modalidade de extinção contratual?

e) Admite-se que a ANTT edite ato normativo para disciplinar os

preços praticados pela concessionária em atividades de natureza

privada não incluídas no objeto da concessão de serviço público?

f) A imposição de novas obrigações, com a geração de custos

adicionais de valor extremamente elevado para a concessionária,

pode ser imputada unilateralmente pela ANTT às concessionárias?

g) Por ocasião da desestatização da malha ferroviária nacional, além

da formalização dos contratos de concessão em caráter de

exclusividade, na dicção da sua Cláusula Décima Oitava, foram

firmados contratos de arrendamento dos bens vinculados à

prestação do serviço público de transporte ferroviário, cujo objeto é

o arrendamento dos bens operacionais necessários à exploração

do aludido serviço. O parágrafo segundo da cláusula primeira do

contrato de arrendamento estabelece que o arrendamento “é feito

com vinculação expressa e direta ao Contrato de Concessão...”.

Considerando esse cenário e o marco regulatório de outros setores

(e.g. telecomunicações e seus segmentos telefonia fixa; TV a

cabo), mostra-se factível a exploração e o compartilhamento dos

bens operacionais arrendados, especialmente o conjunto de

instalações e equipamentos que compõem a infraestrutura e a

superestrutura da ferrovia, com outros operadores ferroviários,

conforme pretendem as propostas apresentadas pela ANTT?

h) A proposta de utilização da malha ferroviária atualmente concedida

para o transporte de carga própria de determinadas categorias de

usuários seria revestida de legalidade? Tal quadro não esbarraria

no regime de exclusividade na prestação de serviços de que

gozam as atuais concessionárias e, ainda, na inviabilidade de

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Marçal Justen Filho - 3 -

compartilhamento da infraestrutura e da superestrutura da ferrovia?

i) À luz do contrato (cláusula sétima, parágrafo segundo) e do Dec. nº

1.832 (art. 18 e seu parágrafo único), os serviços acessórios são

remunerados por meio de “taxas” adicionais mediante negociação

das concessionárias com o próprio usuário, não são compulsórios

e, ainda, não constituem receita alternativa. Dado esse cenário,

estariam as propostas de resoluções, ao transformar essas figuras

em serviços remunerados por “tarifas”, sinalizando a sua regulação

para as atuais concessionárias? Cumpre registrar que, em que

pese a nomenclatura “taxa”, fato é que jamais houve o

estabelecimento de tarifas para tais serviços, mas apenas a

divulgação dos preços praticados para cada tipo de serviço

acessório pelas concessionárias à ANTT.

j) Os contratos vigentes preveem que as concessionárias e o Poder

Concedente pactuarão metas anuais de produção e de redução de

acidentes para a malha ferroviária como um todo, devendo as

concessionárias prover os investimentos necessários para o

alcance das referidas metas. A proposta de reforma regulatória

prevê que essas metas deverão ser pactuadas para cada trecho

ferroviário, com a realização de investimentos também por trecho,

e enuncia, ainda, metas de redução de acidentes. Tal quadro

deverá provocar impacto econômico significativo nas concessões

ora vigentes, na medida em que as concessionárias não mais terão

flexibilidade de distribuírem os seus ativos (material rodante) na

malha ferroviária como um todo, conforme alterações da demanda

e do mercado nas várias regiões cobertas pela ferrovia, perdendo-

se em eficiência, portanto. Partindo-se da premissa de que essas

alterações trazem significativo impacto econômico-financeiro aos

contratos vigentes, poder-se-ia sustentar a desnaturação da

identidade do contrato licitado a inviabilizar qualquer compensação

que pudesse manter íntegra a sua equação econômica original?

Pode-se, por outro lado, sustentar que, independentemente do

impacto econômico verificado, tratar-se-ia de reequilíbrio

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Marçal Justen Filho - 4 -

econômico-financeiro dos contratos pela natureza da matéria

objeto das alterações pelo Poder Concedente?

k) Assumindo a premissa da geração de impacto econômico-

financeiro significativo, favor considerar as mesmas indagações

formuladas no quesito anterior em relação às tarifas de transporte,

na medida em que, nos termos da proposta divulgada, pretende-se

que a ANTT venha a fixar os valores das tarifas-teto das

concessionárias, bem como os seus critérios de reajuste e revisão.

Tenha-se em mente que as tarifas, o seu automático critério de

reajuste e as premissas extraordinárias para a sua revisão foram

definidos por ocasião da licitação, quando da publicação do edital,

constituindo condição essencial para que as concessionárias

pudessem formular a sua proposta econômico-financeira para a

outorga da concessão e do arrendamento, com base, dentre outras

coisas, no cálculo do retorno financeiro do investimento, aí incluída

a receita das tarifas que seriam cobradas conforme a demanda

estimada.

l) O virtual novo marco regulatório acima cogitado contraria a Lei n°

10.233/01? Em caso positivo, as resoluções propostas seriam

ilegais e inconstitucionais?

m) É juridicamente cabível a introdução de regra determinando que os

conflitos entre operadores ferroviários seriam compostos mediante

arbitragem, a ser conduzida pela ANTT segundo critérios e regras

que a essa bem aprouverem?

Passo a responder.

2 – O vigente marco regulatório da atividade ferroviária

3. A atividade ferroviária se sujeita a uma disciplina

regulatória determinada, que tem origem na Constituição. Uma proposta de

alteração desse modelo deve tomar em vista essas circunstâncias.

2.1 – A regra do art. 21, inc. XII, “d” da Constituição

4. A Constituição determina que “Compete à União ...

explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão ... os

serviços de transporte ferroviário...” (art. 21, inc. XII, “d”).

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Marçal Justen Filho - 5 -

A fórmula constitucional despertou alguma controvérsia,

mas a esmagadora maioria da doutrina adota interpretação uniforme, nos

termos a seguir expostos1.

2.1.1 – A coexistência de serviço público e atividade privada

5. Algumas atividades foram qualificadas como serviço

público pela Constituição. Isso significa que a sua titularidade foi reservada ao

Estado, a quem compete a sua prestação (diretamente ou mediante

concessão ou permissão), sempre sob regime de direito público. Assim está

imposto no art. 175 da Constituição.

Outras atividades podem ser exploradas sob regime de

livre iniciativa e livre concorrência pelos particulares. Nesse caso, a lei poderá

subordinar o seu desempenho à autorização estatal (Constituição, art. 170,

parágrafo único).

2.1.2 – A determinação constitucional

6. A previsão do art. 21, inc. XII, “d”, da Constituição significa

que os serviços de transporte ferroviário podem ser considerados como de

titularidade da União (sendo prestados diretamente ou mediante concessão ou

permissão) ou explorados pela iniciativa privada mediante autorização

governamental.

2.1.3 – A necessidade da existência do serviço público

7. Mas não se pode conceber que seria irrelevante para a

Constituição a opção entre serviço público e atividade econômica privada. Os

princípios constitucionais fundamentais (especialmente aqueles veiculados

pelos arts. 1º e 3º da CF) determinam a supremacia do serviço público.

Os serviços ferroviários são uma atividade própria de

serviço público. Somente se pode admitir a existência de alguma atividade

econômica privada, no setor ferroviário, na medida em que tal não impeça ou

destrua a existência do serviço público.

1 Nesse sentido, confiram-se ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO, Direito dos serviços públicos, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 132 e s.; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Direito Administrativo, 23. ed., São Paulo: Atlas, 2010, p. 110 e s.; CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, 27. ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 686-695.

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Marçal Justen Filho - 6 -

Assim se passa porque o regime de serviço público é o

único que assegura a existência da atividade ferroviária, desempenhada

segundo os princípios da adequação, universalidade, continuidade, isonomia

etc. Eliminar o serviço público ferroviário equivale a tornar a atividade

dependente da conveniência da iniciativa privada. Logo, surgiria o risco da

supressão, total ou parcial, de serviços de transporte ferroviário. Quando

menos, toda a atividade economicamente não lucrativa tenderia ao

desaparecimento.

8. A sistemática de serviço público assegura, portanto, que o

Estado (diretamente ou por seu delegatário) desempenhe atividade universal.

Isso pode envolver inclusive mecanismos de subsídios cruzados: áreas

carentes são atendidas mediante recursos obtidos nas regiões mais rentáveis.

Portanto, as tarifas refletem um valor médio, em que os setores mais lucrativos

compensam a manutenção de atividades deficitárias.

2.1.4 – A proteção ao serviço público

9. A Constituição impõe ao Estado brasileiro o dever de

manter o serviço público de transporte ferroviário. Isso significa a vedação à

adoção de decisões, medidas ou políticas que ponham em perigo a sua

existência ou acarretem a sua extinção.

Assim, será inconstitucional a providência estatal (inclusive

de natureza legislativa) que ponha em risco a existência do serviço público de

transporte ferroviário e que seja orientada a institucionalizar a exploração da

atividade sob regime de direito privado.

2.2 – A disciplina legislativa

10. A Lei nº 10.233 disciplina os serviços de transporte e

incorpora rigorosamente a principiologia constitucional, respeitando a

sistemática antes exposta.

11. O regime jurídico das concessões previsto na Lei nº

10.233 não apresenta diferenciação em vista da disciplina geral do instituto da

concessão2. A outorga deve-se fazer mediante licitação, com prazo

determinado, obrigações e direitos definidos para ambas as partes. O diploma

2 O art. 33 da Lei nº 10.233 prevê que “Os atos de outorga de autorização, concessão ou permissão a serem editados e celebrados pela ANTT e ANTAQ obedecerão ao disposto na Lei

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prevê o caráter de exclusividade nas outorgas de concessões de serviço

público de transporte ferroviário (art. 34-A).

2.3 – O regulamento de 1996

12. O Dec. 1.832/96 veiculou o Regulamento dos Transportes

Ferroviários. Suas regras não apresentam autonomia normativa, eis que se

destinam a promover a aplicação das normas legais.

2.3.1 – A recepção pela Lei nº 10.233

13. Deve-se ter em vista que o Dec. 1.832 é anterior à Lei nº

10.233. Isso significa que as normas regulamentares incompatíveis com a Lei

perderam a sua vigência. Mais ainda, o Regulamento deve ser interpretado de

modo conforme a Lei nº 10.233.

2.3.2 – A ausência de previsão para atividades sob regime privado

14. O Dec. 1.832 consagrou o entendimento de que os

serviços ferroviários destinados ao público seriam prestados exclusivamente

sob regime de direito público. Assim, o art. 2º prevê que “A construção de

ferrovias, a operação ou exploração comercial dos serviços de transporte

Ferroviário poderão ser realizadas pelo Poder Público ou por empresas

privadas, estas mediante concessão da União”. Aliás, essa determinação se

extrai da própria Lei nº 10.233, cujo art. 14, III, admite o regime de direito

privado no setor ferroviário somente para o transporte não regular de

passageiros e desde que não associado à exploração de infraestruturas (al. “f”)

Somente as operações acessórias, não abrangidas no

conceito de transporte em sentido próprio, podem ser desempenhadas sob

regime privado, tal como será mais bem examinado abaixo.

2.3.3 – A ausência de diferenciação de espécies de concessão

15. O Dec. 1.832 previu, no art. 13, uma modalidade única de

concessão para o serviço ferroviário. Determinou que “A Administração

Ferroviária é obrigada a manter a via permanente, o material rodante, os

equipamentos e as instalações em adequadas condições de operação e de

segurança, e estar aparelhada para atuar em situações de emergência,

decorrentes da prestação do serviço de transporte ferroviário”. O art. 31 prevê

que “A Administração Ferroviária é responsável por todo o transporte e as

8.987, de 13 de fevereiro de 1995 ...”.

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operações acessórias a seu cargo ...”.

Sob esse regime, a concessão abrange, de modo

necessário, a exploração da infraestrutura e a prestação de serviços de

transporte.

2.3.4 – A situação de tráfego mútuo e direito de passagem

16. O art. 6º do Dec. 1.832 dispôs sobre a figura do tráfego

mútuo e do direito de passagem a outros operadores3. A hipótese não tem

qualquer relação com a exploração de atividades sob regime de direito

privado.

A interligação do sistema ferroviário pode conduzir à

necessidade de utilização conjugada da malha. Assim, o transporte de

passageiros ou cargas pode envolver a utilização de infraestruturas integrantes

da área de atuação de operadores distintos. O Regulamento estabelece que,

quando tal ocorrer, haverá ou uma atuação conjunta dos diversos operadores

ou caberá assegurar o direito de passagem das composições de um operador

sobre a malha explorada por outro.

A questão deverá ser resolvida por acordo comum entre as

partes e eventuais conflitos serão compostos com a intervenção do poder

concedente.

2.3.5 – As operações acessórias

17. O art. 18 do Dec. 1.832 prevê que “As operações

acessórias à realização do transporte, tais como carregamento,

descarregamento, transbordo, armazenagem, pesagem e manobras, serão

remuneradas através de taxas adicionais, que a Administração Ferroviária

poderá cobrar mediante negociação com o usuário”.

Trata-se de atividades não abrangidas no âmbito do

serviço público, desempenhadas sob regime de direito privado e segundo os

princípios da livre iniciativa e livre concorrência. Deve-se reputar que a

expressão “taxa” foi utilizada em acepção não técnica, visando a impedir a

identificação com a tarifa exigida pela prestação do serviço público.

3 “As Administrações Ferroviárias são obrigadas a operar em tráfego mútuo ou, no caso de sua impossibilidade, permitir o direito de passagem a outros operadores”. Posteriormente, a ANTT editou a Resolução 433/2004, que também versa sobre os procedimentos de operações de tráfego mútuo e direito de passagem, em situações excepcionais.

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2.4 – Os contratos de concessão de serviço público em vigor

18. A disciplina normativa acima descrita fundamentou a

outorga de concessões de serviço público.

2.4.1 – As licitações

19. Ao longo da década de 1990, houve diversas licitações

para implementar a concessão de serviço público de transporte ferroviário de

cargas.

Essas licitações foram desenvolvidas sob a modalidade de

leilão. Isso significou que o vencedor foi selecionado mediante a proposta de

maior lance.

20. Em todas as hipóteses, os editais de licitação impunham

deveres precisos (e onerosos) ao futuro concessionário, fixando um conjunto

de direitos em contrapartida.

21. Em suma, essas licitações previram que os

concessionários (então enquadrados na categoria de “Administrações

Ferroviárias”) receberiam a delegação da prestação do serviço público acima

referido, incumbindo-lhes tanto a prestação do serviço de transporte

propriamente dito como a implantação, a manutenção e a ampliação das

infraestruturas correspondentes. Foram fixados os deveres quantitativos e

qualitativos para a prestação do serviço.

Incumbia aos concessionários promover pesados

investimentos (além de promover pagamentos relevantes ao poder público), os

quais seriam amortizados mediante a exploração das concessões ao longo do

prazo contratual.

As outorgas se fizeram com cláusula de exclusividade e

com a fixação de metas globais a serem atendidas, consideradas em face da

totalidade dos trechos outorgados. Essa previsão constou, usualmente, da

Cláusula Dezoito dos contratos de concessão de serviço público.

Facultou-se às concessionárias promover a exploração

das operações acessórias, mediante remuneração a ser avençada com os

interessados. Tais operações não estavam abrangidas no âmbito dos serviços

públicos outorgados e seriam regidas pelo direito privado.

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2.4.2 – As contratações em curso

22. As licitações foram concluídas e delas decorreram

contratações com prazos dilatados de vigência. As atuais concessionárias

assumiram obrigações específicas em virtude do regime jurídico previsto. A

modelagem das contratações motivou a participação nas licitações, com

assunção de dívidas e implantação de empreendimentos de acordo com as

concepções unilateralmente impostas pelo Estado. Houve, nas etapas iniciais

dos contratos, os vultosos desembolsos exigidos, com a perspectiva de sua

amortização mediante os resultados a serem obtidos ao longo do tempo.

3 – Os documentos dados a público

23. A proposta de um novo marco regulatório para o setor de

transporte ferroviário de cargas traduz-se em três minutas de documentos que

foram dadas ao conhecimento do público. Encontra-se adiante uma exposição

sumária sobre cada um deles.

3.1 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 117/2011

24. A Audiência Pública nº 117/2011 envolve a proposta de

Resolução dispondo sobre um “Regulamento de Defesa dos Usuários dos

Serviços de Transporte Ferroviário de Cargas – REDUF”. Trata-se de uma

proposta que não se destina exclusivamente a dispor sobre a posição jurídica

dos usuários, mas envolve outros temas.

25. No âmbito dessa Audiência Pública, foi divulgada a Nota

Técnica nº 27/2011/SUREG, que sintetiza o entendimento adotado pela ANTT

relativamente à problemática tratada genericamente pelas três minutas de

Resoluções. Trata-se, portanto, de um documento de extrema relevância, eis

que funciona como uma espécie de “motivação” comum para o conjunto das

propostas submetidas à avaliação da comunidade.

3.2 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 116/2011

26. A Audiência Pública nº 116/2001 veiculou proposta de

adoção de Resolução versando sobre os procedimentos para pactuação de

metas de produção e segurança, a serem estabelecidas por trecho, entre a

ANTT e as concessionárias de serviço público, tal como a adesão ao regime

para transportadores ferroviários de carga.

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Portanto, a proposta envolve não apenas o relacionamento

entre concessionárias e ANTT, mas também a situação jurídica de terceiros.

3.3 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 115/2011

27. Existe ainda proposta para ampliar a obrigação das

concessionárias de operação em tráfego mútuo ou, em caso de sua

impossibilidade, de operação em direito de passagem. Essa proposta é objeto

da Audiência Pública nº 115/2011.

3.4 – As minutas: pontos comuns e pontos específicos

28. As três minutas referidas apresentam elevado grau de

inter-relação e refletem uma proposta regulatória abrangente e determinada,

ainda que alguns pontos ainda permaneçam obscuros.

Nesse contexto, há questões que se relacionam ao núcleo

das inovações contempladas na proposta regulatória. Sob esse prisma, há

temas comuns às três minutas – o que impõe exame conjunto de todas elas.

Sob outro prisma, há questões que envolvem de modo

circunscrito itens determinados das minutas. Nesses casos, cada minuta

comporta exame isolado.

4 – A violação dos requisitos de uma reforma regulatória

29. Em primeiro lugar, a proposta de reforma do marco

regulatório viola um pressuposto inafastável, decorrente diretamente do

princípio da República. O exame dos documentos apresentados a público

evidencia a ausência de informações suficientes sobre os problemas

existentes, a inexistência de um diagnóstico preciso e exato das dificuldades a

serem enfrentadas e a falta de previsão quanto aos custos e às consequências

das mudanças propostas.

Para sumariar em poucas palavras, a proposta

apresentada se configura como um “salto no escuro”, com assunção de riscos

incompatíveis com a natureza da função regulatória exercitada.

4.1 – A competência regulatória estatal e os requisitos de reformas

30. A disciplina regulatória somente cumpre as suas funções

se apresentar certeza e segurança jurídica. Qualquer reforma regulatória

somente pode ser praticada com cautela, o que significa reduzir os riscos

inerentes à ausência de informações.

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4.1.1 – Reforma regulatória e ruptura do processo econômico

31. A mutação regulatória produz uma fratura radical,

altamente onerosa para os diversos operadores. A continuidade da atividade

sofre uma restrição, em vista da necessidade de adaptação a novos

paradigmas escolhidos pelo Estado.

Qualquer modificação da disciplina regulatória gera custos

para os agentes envolvidos. Um conjunto de regras novas exige a alteração

dos projetos, a suspensão de atividades, a reordenação dos investimentos.

Enfim, a sua adoção se sujeita à observância de uma pluralidade de requisitos

e deve ser desenvolvida com grande cautela.

4.1.2 – A observância de procedimento preparatório

32. A ordem jurídica abomina a atuação descuidada de

qualquer sujeito e reprova severamente os danos decorrentes de conduta

culposa. Assim se passa no âmbito dos particulares, que podem ser

responsabilizados civil e penalmente por resultados danosos decorrentes da

ausência da adoção das cautelas adequadas.

Com muito maior razão, o direito reprova o exercício

defeituoso de competências estatais. O agente estatal é investido de poderes

jurídicos como instrumento do cumprimento do dever de satisfazer as

necessidades coletivas e promover o bem de todos.

4.1.3 – A exigência da Análise de Impacto Regulatório

33. Justamente por isso, o próprio governo brasileiro vem

insistindo sobre a exigência inafastável da Análise de Impacto Regulatório4,

como requisito prévio a toda e qualquer inovação relevante na regulação

setorial5.

4 FRANCISCO GAETANI e KÉLVIA ALBUQUERQUE definem Análise de Impacto Regulatório como “instrumento formal que permite a explicitação dos problemas regulatórios, das opções disponíveis de política e das consequências das decisões regulatórias, em cada caso concreto, mediante a utilização de dados empíricos” (Análise de impacto regulatório e melhoria regulatória, em PEDRO IVO SEBBA RAMALHO (org.). Regulação e Agências Reguladoras: governança e análise de impacto regulatório, 1. ed., Brasília: ANVISA, 2009, p. 195). 5 A defesa do Estudo de Impacto Regulatório tem sido feita com o maior brilhantismo pelo próprio governo brasileiro. Sobre o tema, foi realizado em 12.03.2009 o congresso internacional “Análise do Impacto Regulatório – Instrumento para o Fortalecimento da Regulação no Brasil”, patrocinado pelo Brasil. Outras informações podem ser encontradas no portal do PRO-REG, hospedado no sítio oficial da Presidência de República, no seguinte

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Não se trata de uma criação brasileira. Essa solução é

consagrada nos países democráticos6. Consiste na avaliação econômica dos

custos e dos benefícios das inovações pretendidas.

A ausência da Análise de Impacto Regulatório revela a

carência de meditação e ponderação sobre as providências pretendidas.

Traduz uma decisão subjetiva, desvinculada de fundamentos técnico-

científicos. Em se tratando de decisões de grande relevo, a inexistência da

Análise de Impacto Regulatório se constitui em defeito insanável e insuperável.

Assim se passa porque a autoridade administrativa não pode impor à

sociedade alterações radicais e relevantes sem avaliar minuciosamente os

efeitos decorrentes7.

34. Recentemente, a Organização para a Cooperação e

Desenvolvimento (OCDE) conduziu estudo sobre o sistema regulatório

brasileiro. Acerca da adoção de Análises de Impacto Regulatório pelas

instituições encarregadas de promover regulação, o relatório da OCDE afirmou

que “Não deveria haver justificativa alguma para que sejam feitas exceções

em diferentes áreas políticas e instituições, após a acumulação de experiência.

Se o PRO-REG pretende, por exemplo, melhorar os mecanismos de consulta

endereço: http://www.regulacao.gov.br. 6 A exigência de realização de “Regulatory Impact Assessment (RIA)” está presente, por exemplo, nos Estados Unidos e em países da União Europeia (Reino Unido, Áustria, Dinamarca, Alemanha, Itália, entre outros). Um estudo conduzido pela OCDE acerca de reforma regulatória concluiu o seguinte: “Os Governos devem adotar processos de análise de impacto regulatório (AIR) para melhorar a qualidade das informações com base nas quais as decisões são tomadas. Decisões de concepção de programas fundamentais para o sucesso de AIR incluem procedimentos de coleta de dados, métodos analíticos, transparência, e fiscalização independente e controle de qualidade” (The OECD Report on regulatory reform, vol. II, Paris: OECD Publishing, 1997, p. 234). Para uma abordagem dos países europeus, cf. A comparative analysis of regulatory impact assessment in ten EU countries (a report prepared for the EU directors of Better Regulation Group), disponível em http://www.betterregulation.ie/eng/Publications/Report_on_RIA_in_the_Eua.pdf. No Brasil, o tema é objeto de estudo específico em PEDRO IVO SEBBA RAMALHO (org.), Regulação..., ob. cit. E LUCIA HELENA SALGADO e EDUARDO BIZZO DE PINHO BORGES, Análise de impacto regulatório: uma abordagem exploratória, Brasília: IPEA, 2010, texto para discussão disponível em http://www.regulacao.gov.br/publicacoes/artigos/analise-de-impacto-regulatorio-uma-abordagem-exploratoria; ainda, em ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO. Análise de Impacto Regulatório. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, n. 32, p. 9-15, out./dez., 2010. 7 Ao analisar o Regulatory Impact Analysis (RIA), elaborado pela OCDE, ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO destaca que: “As agências, enfim, seriam obrigadas a previamente demonstrar a razoabilidade de suas decisões, os seus prováveis custos diretos e indiretos, os benefícios esperados, e a razão pela qual não foram escolhidos outros meios para atingir o mesmo propósito. Trata-se... de uma análise prévia da proporcionalidade da regulação...”.

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Marçal Justen Filho - 14 -

e promover o uso compulsório de avaliação de impactos para alguns setores e

agências, isso deveria evoluir com o tempo e ser aplicado em seu devido

tempo a toda a administração pública e não somente para agências setoriais”.8

Mais adiante, o relatório conclui sem deixar qualquer

dúvida: “Todos os órgãos da administração federal, sem exceção, deveriam

ser responsáveis para utilizar AIR”9.

4.2 – O caso concreto: a ausência de estudos aprofundados

35. A análise da documentação colocada à disposição pelo

Poder Público evidencia não apenas a ausência de estudos e informações

aprofundados, que legitimem quer o diagnóstico da situação atual, quer as

perspectivas de solução propostas. Mais do que isso, a documentação incorre

em imperfeições notáveis.

4.2.1 - O documento existente: Nota Técnica nº 27/2011/SUREG

36. A documentação disponibilizada nas Audiências Públicas

apresenta um único documento que contém informações e levantamentos

mais amplos. Trata-se da Nota Técnica nº 27/2011/SUREG – que se encontra

no bojo da Audiência Pública nº 117/2011. Essa dita Nota Técnica veicula

certos pressupostos técnico-econômicos e jurídicos que explicitam os

fundamentos de fato e de direito tomados em vista pela ANTT ao delinear a

proposta quanto ao novo marco regulatório do setor de transporte ferroviário

de cargas.

Embora a referida Nota Técnica tenha sido emitida no bojo

da proposta de edição do Regulamento de Defesa dos Usuários do Transporte

Ferroviário de Cargas – REDUF, o seu conteúdo sintetiza o entendimento

adotado pela ANTT também relativamente às propostas contempladas nas

outras duas minutas e, em última análise, a todo o setor. Portanto, é essencial

e indispensável uma análise mais aprofundada da referida Nota Técnica.

37. O texto da Nota Técnica será transcrito literalmente nas

passagens em que se reputar cabível a formulação de ponderações. Na

Análise de Impacto Regulatório. Idem, p. 9-15. 8 Relatório OCDE sobre a Reforma Regulatória: Brasil – Fortalecendo a governança para o crescimento, Brasília: Presidência da República, 2008, p. 339. Disponível em: http://www.regulacao.gov.br/eventos/seminarios-internacionais/teste-de-evento/material-didatico/livro-brasil-fortalecendo-a-governanca-para-o-crescimento. 9 Relatório OCDE..., Idem, p. 342.

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sequência, serão expostas as divergências reputadas relevantes.

4.2.2 - A ausência de Análise do Impacto Regulatório

38. A ANTT não dispõe de elementos mais aprofundados

relativamente ao diagnóstico dos problemas existentes. Nem existem

avaliações sobre as decorrências que poderão ser geradas a partir da

implantação do novo modelo.

Isso fica expressamente reconhecido no próprio texto da

Nota Técnica, nos seus termos iniciais, tal como abaixo se reproduz:

“3. Análise do Setor De início, cumpre apresentar avaliação do desempenho do setor ferroviário de cargas brasileiro nos últimos anos, à luz de alguns aspectos relevantes aos usuários e à competitividade da economia. Atendo-se a dados informados pelas próprias concessionárias à ANTT e advindos de entidades governamentais e institutos de pesquisa, buscou-se comparar de forma principiológica e agregada, dados do setor com algumas variáveis setoriais e econômicas, a fim de verificar se há adequada evolução do setor ou lacunas que precisam ser preenchidas por meio de uma atuação regulatória adequada.”

Portanto, o diagnóstico dos problemas do setor ferroviário,

a identificação das limitações e dificuldades e a implantação de um novo

marco regulatório se apoiam nesses parcos e limitados elementos. Foram

comparados alguns dados fornecidos pela concessionária com outros,

advindos de institutos de pesquisa. Não existe qualquer estudo abrangente,

aprofundado, consistente.

4.2.3 – A insuficiência de informações: entrevistas com usuários

76. Além disso, e consoante as informações prestadas ao

longo das Audiências Públicas, a reforma do marco regulatório se alicerça em

dados obtidos a partir de entrevistas com grandes usuários. A partir daí é que

a Agência pretende reformar radicalmente o modelo regulatório. Mas esses

pressupostos são insuficientes e inadequados, eis que existem problemas

estruturais a serem considerados – muitos dos quais serão agravados a partir

das providências introduzidas.

4.3 - As deficiências da análise apresentada

39. Mas a análise contemplada na Nota Técnica apresenta

outros defeitos.

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4.3.1 - A contradição principiológica

40. A Nota Técnica assume um pressuposto que é desmentido

em seu próprio corpo. Afirma que existe uma relação precisa entre o

crescimento do PIB e o crescimento da atividade ferroviária. Mais do que isso,

reputa que a suposta relação, isoladamente, é capaz de demonstrar

deficiências específicas no setor de transporte ferroviário.

41. No corpo da Nota Técnica, lê-se o seguinte: 

“O crescimento da produção ferroviária de carga, medida em TKU, ao longo do período 2002-2009 indica uma forte correlação com o crescimento do PIB. No entanto, considerada o desmembramento dessa produção entre carga própria e de terceiros, é possível verificar diferença significativa no desempenho desses indicadores. ... Do exposto no gráfico acima, depreende-se que, enquanto a produção ferroviária de carga própria cresceu 72,4%, mais que o dobro que o PIB a valores constantes, a carga de terceiros cresceu menos que a metade, apenas 33,1%, praticamente em linha com o crescimento da economia.”

42. Vê-se que a Nota Técnica incorreu num defeito lógico

insuperável. Afirmou que (a) existiria aparente correlação entre o crescimento

do PIB e o movimento de cargas ferroviárias e que (b) essa correlação não

seria comprovada pelos fatos; afinal, a Nota Técnica também afirma que o

movimento de carga de terceiros não cresceu tanto quanto o PIB.

O defeito lógico reside em que a Nota Técnica daí extraiu

a conclusão de que a ausência de correlação entre o PIB e o movimento de

carga de terceiros seria uma demonstração da atuação defeituosa das

concessionárias!

Em outras palavras, o pressuposto meramente

considerado como uma hipótese teórica (correlação entre o crescimento do

PIB e do movimento de cargas) foi transformado em um parâmetro de cunho

obrigatório. Aquilo que era uma hipótese foi transformado em um

mandamento.

43. Ora, os dados colacionados pela ANTT autorizam uma

única conclusão: não existe correlação entre o crescimento do PIB e o

crescimento do movimento de cargas de terceiros. A demonstração de que o

crescimento do transporte de carga de terceiros não acompanhou o

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crescimento do PIB autorizaria, apenas e tão-somente, a reconhecer a

ausência de correlação entre os dois processos. Nunca autorizaria afirmar que

existiria algum defeito no tocante à atuação do setor ferroviário.

4.3.2 - A circunscrição do intervalo temporal

44. As concessões ferroviárias foram outorgadas em meados

da década de 1990. Logo, a análise do desempenho teria de abranger o

período integral, desde os momentos iniciais das outorgas.

Mas a Nota Técnica seccionou a dimensão temporal das

avaliações. Considerou os períodos posteriores a 2001 ou a 2002, deixando de

tomar em consideração os anos anteriores.

45. Em manifestação nas Audiências Públicas, foi afirmado

que se reputou que esse período seria suficientemente representativo para

uma avaliação dos fatos. Essa afirmativa merece contraposição, eis que os

anos anteriores propiciam informações extremamente favoráveis ao

funcionamento do sistema.

Afinal, os transportes ferroviários no Brasil não foram

iniciados em 2001. Para compreender a situação ferroviária brasileira, é

indispensável uma visão mais abrangente, especialmente porque isso

permitirá identificar benefícios e vantagens que não podem ser identificados

em períodos de tempo mais restritos.

Mais ainda, a avaliação do atual modelo regulatório

somente apresentaria consistência se compreendesse o período de tempo a

partir do qual houve a sua instauração.

Um exame da situação atual somente apresenta

consistência se tomar em vista o período anterior à outorga das concessões

vigentes. Não há fundamento metodológico para eleger, de modo puramente

subjetivo, uma data limite qualquer para estabelecer comparações.

4.3.3 - A contradição com o interesse econômico

46. Mas a exposição contemplada na Nota Técnica também

ignora as características da própria realidade econômica. Lê-se que:  

“Outro dado importante a ser considerado é o fato de que a produção de transporte de carga própria correspondeu a 51,1% da produção total de carga ferroviária brasileira no período de 2001 a 2009, sendo que esse transporte próprio se refere exclusivamente ao minério de ferro produzido

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Marçal Justen Filho - 18 -

pela empresa VALE S/A. Tal fato demonstra que a maior parte do esforço de produção de transporte férreo no Brasil é dirigida para a movimentação da produção de única mercadoria produzida por uma única empresa. Essa constatação fica ainda mais veemente ao adicionarmos o transporte de carga de terceiros, mas realizado para empresas coligadas à concessionária (partes relacionadas). Por exemplo, grande parte da produção do transporte de carga de terceiros do setor é gerada pela MRS (66,87%), sendo que de acordo com os demonstrativos da ferrovia em 2009, 78,1% dos produtos transportados corresponderam a minério de ferro, carvão, coque e produtos siderúrgicos, e a maior parte desse transporte ocorre entre partes relacionadas. Naquele ano, excluída a produção de transporte de minério de ferro pela MRS, verifica-se uma participação no transporte de terceiros de apenas 34,42% do total de transporte ferroviário de cargas brasileiro.”

Ora, o objeto das concessões outorgadas é o transporte

ferroviário de cargas. As concessionárias obtêm remuneração mediante

cobrança de tarifas pelo transporte. Isso significa que a elevação da

quantidade de cargas aumenta a remuneração das concessionárias. Logo, o

único e maior interesse das concessionárias é transportar a maior quantidade

possível de cargas.

Não existe a menor razoabilidade no raciocínio de que

alguma concessionária teria interesse em reduzir o movimento de transporte.

Afinal, isso significaria uma redução na sua remuneração.

47. Portanto, o fato de que a maior parte do transporte de

cargas envolve minérios e se verifica no âmbito de cargas oriundas de partes

relacionadas não permite extrair a conclusão de que tal decorre da intenção

das concessionárias.

Ainda partindo do pressuposto de que as concessionárias

têm interesse não apenas em prestar o serviço público, mas também em obter

o maior lucro possível, é evidente que ampliar a quantidade de cargas é a

solução mais adequada e satisfatório para tanto.

Não existe razoabilidade em afirmar que o interesse das

concessionárias em obter lucro teria gerado a decisão de transportar menos

cargas ou apenas cargas de minérios ou apenas cargas de partes

relacionadas. Para dizer o menos, isso é um despropósito sob o prisma

econômico.

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4.3.4 - A questão das tarifas

48. Nem se contraponha que o movimento de cargas de

terceiros teria sido reduzido em virtude da prática de tarifas muito elevadas.

Por um lado, as tarifas praticadas encontram, na origem,

parâmetros estabelecidos pelo próprio Poder Concedente.

Por outro lado, o efeito de tarifas elevadas é a perda das

cargas. Como a própria Nota Técnica reconhece, as cargas não transportadas

por via férrea são deslocadas por via rodoviária: 

“Essa concentração aponta para deficiências na alocação da estrutura de transporte do Brasil, uma vez que priorizado o transporte do minério de ferro as demais mercadorias são transportadas na sua maior parte por rodovias...” 

Portanto, a Nota Técnica reconhece a existência de

competição entre o transporte férreo e o transporte rodoviário. Em outras

palavras, existe competição entre modais diversos de transporte. E tal

competição produz os seus efeitos.

Se os concessionários de ferrovia praticarem tarifas muito

elevadas, os mecanismos de mercado conduzirão à perda da clientela. Isso

significa que o primeiro agente econômico punido pela ausência de eficiência é

a própria concessionária ferroviária.

49. Os mecanismos inerentes à competição impõem à

concessionária ferroviária reduzir os seus preços para competir com os

transportadores rodoviários. Há uma presunção absoluta, fundada no

conhecimento científico e que não pode ser afastada mediante manifestações

puramente opinativas: as concessionárias ferroviárias praticam a menor tarifa

possível para competir com os transportadores rodoviários.

50. Veja-se a questão sob outro ângulo. Se o usuário obtiver

tarifa mais reduzida do transportador rodoviário, optará por ele. Mas isso não

autoriza qualquer inferência de que a tarifa mais elevada eventualmente

praticada pelo transportador ferroviário seria resultado de sua ganância – e

assim se impõe porque deixar de receber a carga do terceiro acarreta

ausência de qualquer ganho.

O interesse (legítimo, aliás) da concessionária de obter

lucro somente será satisfeito se captar clientes.

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Marçal Justen Filho - 20 -

51. Portanto, não existe fundamento científico ou lógico para

adotar o entendimento de que a preponderância do uso da matriz rodoviária

para o transporte de cargas seria uma decorrência da atuação intencional das

concessionárias de ferrovias.

4.3.5 - A ausência de preocupação com a formação de custos

52. É relevante destacar a ausência de consideração quanto à

formação dos custos do setor ferroviário de cargas. Lê-se no texto da Nota

Técnica: 

 

“Comportamento exemplificativo do tratamento dispensado à carga de terceiros pode ser verificado ao se analisar os volumes de transporte ferroviário de carga de algumas mercadorias, com o crescimento da produção e exportação. Tomemos o complexo do produto soja, por exemplo, composto por soja e farelo de soja. ... Considerando, portanto, essas características da utilização do modal ferroviário para escoamento da produção do complexo soja, depreende-se que o mais correto seria a realização de investimentos e estratégias de captação de carga por parte dos concessionários ferroviários com vistas a cooptar novos usuários e consequentemente mais carregamentos de soja.”

 

53. É evidente que a ausência de ampliação do transporte

ferroviário de soja não resulta de uma decisão arbitrária dos operadores

ferroviários. Não se trata de uma decisão "incorreta" a eles imputável.

A ausência de ampliação do transporte ferroviário nesse

segmento decorre de uma pluralidade de fatores – muitos deles consolidados

muito antes da outorga das concessões ora em vigor. De todo modo, a

composição de custos e as características do transporte ferroviário são

relevantes para explicar as razões da preponderância do transporte rodoviário

no Brasil.

54. O documento nem sequer cogita de algumas explicações

muito evidentes. Assim, o custo do transporte rodoviário pode ser inferior ao do

transporte ferroviário. Aliás, a Nota Técnica nem mesmo apresentou

comparativos entre os fretes rodoviário e ferroviário.

Seria indispensável examinar a formação de custos do

transporte ferroviário, especialmente para avaliar a viabilidade econômica do

atendimento a certos segmentos e locais.

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Marçal Justen Filho - 21 -

4.3.6 - A defeituosa avaliação da questão tarifária

55. A questão tarifária é objeto de outras considerações

igualmente destituídas do aprofundamento necessário à disciplina regulatória

do setor. Trata-se de uma avaliação sobre "preços" e "custos". O texto está

abaixo reproduzido: 

“3.2 Preços x Custos Importante também para um melhor diagnóstico do setor é o desenvolvimento de análise comparativa entre preços praticados pelas concessionárias e os custos dos serviços prestados. Um indicador usualmente utilizado no setor ferroviário para medir a oscilação dos preços praticados é o Produto Médio, obtido pelo quociente entre as receitas auferidas e a produção de transporte de carga medida em tonelada quilômetro útil - TKU. ... Atendo-se ao período de 2002 a 2009, houve um crescimento de 106,1% do indicador Produto Médio, que alcançou percentual superior ao da inflação oficial medida IPCA do mesmo período, que foi de 66,5%. Observa-se, contudo, que a tarifa praticada sobre a carga de terceiros apresentou variação de 117,6% no Produto Médio, índice superior ao do total do setor. A análise desses dados nos permite concluir que as concessionárias, ao longo do período indicado, elevaram suas receitas médias em patamares próximos ao dobro da inflação, o que gerou reflexos negativos nos custos da cadeia produtiva, diretamente dependente da movimentação de mercadorias e insumos pela via férrea no Brasil. Outra análise importante é a evolução do custo unitário da prestação do serviço, obtido pelo quociente entre os Custos dos Serviços Prestados – CSP e a produção de transporte ferroviário de carga medida em TKU. Essa análise é feita por meio do estabelecimento de número índice, tendo como base 100 o ano de 2001. ... Se esses ganhos fossem repassados às tarifas dessas mercadorias (o que não se constata na prática), poderia haver significativa economia nos custos de transporte e uma maior competitividade dos produtos da economia brasileira como um todo. ... Com base nessas análises pode-se concluir que a maior parte do ganho de eficiência que ocorreu ao longo do período analisado não resultou na queda das tarifas médias praticadas, mas sim, na absorção desses ganhos quase que exclusivamente pela gestão financeira da operação e retorno aos acionistas das concessionárias.”

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Marçal Justen Filho - 22 -

56. O texto não contempla uma avaliação sobre a efetiva

composição dos custos das concessionárias. Também não há exame sobre os

resultados efetivamente obtidos pelas empresas do setor. E se tomou em vista

apenas o período posterior a 2001 – o que acarreta distorção das conclusões.

57. O parâmetro fundamental para imputar ganhos às

concessionárias foi a variação do “produto médio” (calculado sobre cargas de

terceiros) em relação à variação do IPCA a partir de 2001.

Ora, não existe qualquer relação entre os dois índices

adotados. Mais precisamente, o IPCA não é um índice adequado para apurar a

variação de custos de uma concessão de serviço de transporte ferroviário de

cargas.

O IPCA é um índice para calcular a elevação de custos de

famílias com renda de até 40 salários mínimos. Parte do pressuposto da

situação estável e compara as variações de preços quanto a alimentos,

habitação e tarifas públicas e outros produtos e serviços.

Esse índice é imprestável para avaliar a evolução dos

custos de uma concessionária de transportes ferroviários. E assim se passa

porque a manutenção do serviço envolve investimentos e desembolsos

descolados da inflação.

Em outras palavras, a formação de custos para a

prestação do serviço de transporte ferroviário varia de ano a ano. Esses custos

não se mantêm inalterados, especialmente pela necessidade de ampliação

dos serviços.

Portanto, chega às raias do descabido afirmar que as

tarifas ferroviárias “subiram” mais do que a inflação simplesmente porque,

eventualmente, a variação do produto médio foi superior ao IPCA.

58. Qualquer avaliação sobre a evolução das tarifas das

concessionárias dependeria da análise da composição de seus custos. Não

existe fundamento para afirmar que a elevação das tarifas acima do IPCA

significaria o aumento do "lucro" da concessionária e que tal deveria ser

repassado para as tarifas.

A afirmativa de que as concessionárias se apropriaram de

valores, ao invés de transferir ganhos para os usuários, não encontra suporte

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Marçal Justen Filho - 23 -

em dados concretos.

4.3.7 - A efetiva transferência de benefícios para a sociedade

59. Ademais, a Nota Técnica ignorou um dado fundamental,

comprobatório da efetiva transferência de riquezas e benefícios para os

usuários e a sociedade em seu todo.

Existe informação de que, ao longo do período das

concessões, as concessionárias recolheram aos cofres públicos – sob diversos

títulos – valores superiores a um bilhão de reais. Não é possível ignorar a

dimensão social da transferência de tais recursos. Tais valores poderiam ter

sido repassados para as tarifas e representariam uma transferência direta de

benefícios para os usuários. Mas a circunstância de serem recolhidos aos

cofres públicos não afasta a existência do benefício indireto.

60. Mais precisamente, o esforço do Estado brasileiro para

tornar mais eficiente a atividade de transporte e menor o custo logístico

correspondente poderia traduzir-se em providências mais adequadas. Bastaria

reduzir a carga tributária e restringir os ônus cobrados dos concessionários.

Não existe coerência na postura de manter inalterados os

elevados encargos incidentes sobre serviços públicos e demandar que o

concessionário reduza custos e tarifas para os usuários.

4.4 – Síntese: o subjetivismo da proposta de reforma

61. A exposição acima evidencia a ausência de estudos

necessários e indispensáveis à alteração do marco regulatório do setor

ferroviário. Os problemas existentes não foram examinados com a

profundidade necessária. As propostas de reforma regulatória refletem

entendimento subjetivo, em que o Estado decide com base em intuições e

preferências não alicerçadas no conhecimento técnico-científico.

A gravidade dos defeitos verificados acarreta a invalidade

da reforma proposta. Não se admite que o Poder Público exercite uma

competência regulatória de modo imprudente, sem a adoção das cautelas

impostas pelo conhecimento técnico-científico.

Mas há outros defeitos bastante graves, tal como adiante

exposto.

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5 – A questão do monopólio natural e da concorrência

62. É notável que a documentação produzida não tenha feito

alusão à proposta de implantar concorrência numa atividade que configura um

monopólio natural. Essa omissão é, ao ver do signatário, absolutamente

imperdoável sob o prisma regulatório.

5.1 - A questão do monopólio natural

63. O transporte ferroviário configura um monopólio natural.

Essa figura foi largamente estudada no âmbito econômico, especialmente por

suas decorrências no âmbito da concorrência10.

5.1.1 - As diversas acepções da expressão "monopólio"

64. Num sentido genérico, "monopólio" indica a existência de

um único agente promovendo a oferta de um produto ou serviço. Mas a

situação de monopólio pode resultar de diversos fatores.

Sob um prisma jurídico, há monopólios previstos pelo

Direito e há aqueles que surgem independentemente da disciplina normativa.

Assim, a CF/88 prevê casos de monopólio estatal nos arts. 176 e 177. Em

outros casos, o monopólio é resultado da atividade econômica e pode ser

admitido ou reprimido pelo Direito.

Já sob o ângulo econômico, é usual aludir a monopólio

"natural" para indicar certas situações que tendem, de modo inevitável, à

existência de um único fornecedor. O monopólio natural é intrinsecamente

diverso dos monopólios "acidentais", em que a existência de um fornecedor

único é mera casualidade.

Essas distinções são relevantes porque a atividade de

transporte ferroviário configura um monopólio natural.

5.1.2 - A figura do monopólio natural

65. Alude-se a monopólio natural para indicar as atividades

econômicas caracterizadas por elevados investimentos em despesas fixas

indispensáveis ao seu desenvolvimento, que se caracterizam por ganhos de

escala que resultam na redução de custos com a elevação da demanda.

10 Sobre o conceito de monopólio natural, consulte-se a obra fundamental de RICHARD A. POSNER, Natural Monopoly and its regulation, Washington: Cato Institute, 1999.

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Marçal Justen Filho - 25 -

Isso significa que, nas hipóteses dos chamados

monopólios naturais, a concorrência é intrinsecamente inapta a gerar redução

de preços para os usuários11.

Assim se passa porque a existência de mais de um agente

econômico dificulta (senão inviabiliza) a amortização dos pesados

investimentos envolvidos. A duplicação das infraestruturas necessárias ao

desenvolvimento da atividade envolve custos extremamente elevados e a

divisão entre dois concorrentes da receita obtida inviabiliza a redução dos

preços.

Em suma, há uma lei econômica no sentido de que o

menor preço para o consumidor somente pode ser obtido mediante a atuação

de um único sujeito. A competição é economicamente ineficiente.

66. Portanto, o desenvolvimento das atividades que

configuram monopólio natural conduz, de modo inevitável, à consolidação da

exploração nas mãos de um único operador. A manutenção de mais de um

explorador é uma opção que prejudica a todos – inclusive e especialmente aos

consumidores, que são constrangidos a pagar preço mais elevado do que

poderiam obter se existisse um único operador.

5.1.3 - O monopólio natural e a competição

67. A intervenção regulatória estatal relativamente às

atividades que configuram monopólio natural pode ser desenvolvida sob

diversos modelos. Mas não é cabível impor a competição como forma de

"eliminar" o monopólio natural.

Assim se passa porque, em face da Economia, é

impossível eliminar o monopólio natural: a concorrência é uma solução

inadequada e indesejável.

68. Justamente por isso, foram desenvolvidos diversos

instrumentos para simular efeitos similares à competição. No estrangeiro,

11 O que não significa negar, como é evidente, que o usuário não estaria sujeito a prejuízos num regime monopolista. O que se afirma é que a competição no âmbito de monopólios naturais é incapaz de gerar benefícios para os usuários. Já a exploração monopolizada exige providências regulatórias para assegurar benefícios aos usuários. Sobre o tema, confiram-se as considerações do signatário em Teoria Geral das Concessões de Serviço Público, p. 179 e s.

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Marçal Justen Filho - 26 -

usam-se as figuras usualmente conhecidas por yardstick regulation12: há

parâmetros a serem atingidos, há comparação entre operadores em situação

similar, há a redução progressiva de tarifas e assim por diante.

No entanto, é inviável a solução de implantar a competição

entre uma pluralidade de fornecedores.

5.1.4 - A inviabilidade da competição e a intervenção regulatória

69. A ausência de competição nos casos de monopólio natural

não é uma mera opção jurídica. O monopólio natural é incompatível com a

utilização da competição como instrumento para assegurar o menor preço e a

maior qualidade do serviço.

Justamente por isso, os casos de monopólio natural são

referidos como hipótese clássica para a intervenção regulatória. Cabe ao

Estado adotar instrumentos para assegurar o serviço mais adequado e a tarifa

mais módica possível.

Para tanto, uma solução tradicionalmente adotada é a

qualificação da atividade como serviço público.

5.1.5 - O monopólio natural e o serviço público

70. Em grande parte dos países, os monopólios naturais que

envolvem o atendimento de necessidades comuns essenciais são qualificados

como "serviço público". Ou seja, são transformados em atividades de

titularidade do próprio Estado – que as prestará diretamente ou mediante

concessão ou permissão à iniciativa privada.

Desse modo, assegura-se não apenas a satisfação das

necessidades coletivas, mas também se restringe a exploração das atividades

sob regime de exploração econômica privada. O Estado disciplina a prestação

do serviço, regulamenta a tarifa e assegura aos usuários o serviço mais

adequado possível.

12 Embora a expressão yardstick regulation seja bastante difundida na área econômica, cabe aqui mencionar que apresenta o mesmo significado de standard of comparison podendo, portanto, ser traduzida para o português como “padrão de comparação”. Resumidamente, é a sistemática que consiste em a autoridade identificar uma certa empresa como a mais eficiente na gestão dos custos variáveis do empreendimento. A remuneração prevista para essa empresa passa a ser o padrão para todas as demais. Isso significa que as empresas serão incentivadas a ampliar a própria eficiência para evitar perdas. Sobre o tema consulte-se RAFAEL WALLBACH SCHWIND, Remuneração do Concessionário: Concessões Comuns e Parcerias Público-Privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 94-95.

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Marçal Justen Filho - 27 -

5.2 - O transporte ferroviário de cargas: características

71. O transporte ferroviário de cargas apresenta

características de monopólio natural, exigindo elevadíssimos investimentos,

configurando-se como uma economia de escopo13.

5.2.1 - A inviabilidade da duplicação da infraestrutura

72. A infraestrutura do transporte ferroviário de cargas

apresenta custos tão elevados que é economicamente inviável a sua

duplicação14. Mais precisamente, a duplicação da infraestrutura acarretará a

inviabilização da amortização dos investimentos para todos os operadores.

5.2.2 - A demanda por capital intensivo

73. Sob outro ângulo, a implantação da infraestrutura envolve

investimentos iniciais muito elevados. Isso significa que o empreendimento

exige a aplicação de uma quantidade muito grande de recursos, que somente

serão amortizados em longo prazo. E o maior número possível de usuários

significa a amortização em menor espaço de tempo e a prática do menor preço

possível.

5.2.3 - A configuração de economias de escopo

74. Indo avante, a atividade ferroviária envolve a integração de

uma pluralidade de atividades interligadas. Configura-se uma economia de

escopo, na acepção de que o desenvolvimento conjugado de atividades

qualitativamente distintas permite custos inferiores àqueles que seriam obtidos

se cada atividade fosse desempenhada de modo isolado15.

13 Em síntese, “O transporte ferroviário opera sobre uma infraestrutura de trilhos, sistemas de sinalização e estações. Essas estruturas têm em comum a necessidade de investimentos intensivos em capital, e claramente apresentando custos irrecuperáveis, dada a ausência de usos alternativos. Além disso, existe também uma clara ineficiência associada à duplicação desta estrutura, o que caracteriza esta parte da atividade do transporte ferroviário como um monopólio natural” (ELIZABETH FARINA, PAULO F. DE AZEVEDO, PAULO PICCHETTI. A reestruturação dos setores de infra-estrutura e a definição dos marcos regulatórios: princípios gerais, características e problemas, em Ipea. Infra-estrutura: perspectivas de reorganização, regulação. Brasília: Ipea, 1997. v. 1, p. 75). 14 O que não significa, como é evidente, a inviabilidade da sua expansão. O problema reside especificamente na duplicação das mesmas linhas, com competição nos mesmos trechos. 15 Sobre o tema, consulte-se CLÁUDIO SZWARCFITER, PAULO ROBERTO T. DALCOL. Economias de Escala e de Escopo: Desmistificando alguns aspectos da transição. Produção (São Paulo), Belo Horizonte, vol. 7, n° 2, p. 117-129, 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/prod/v7n2/v7n2a01.pdf.

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Marçal Justen Filho - 28 -

5.2.4 - Síntese: a inviabilidade da competição

75. Para sumariar, é inviável a competição no âmbito do

serviço ferroviário. Trata-se de um monopólio natural, em que a implantação

de concorrência entre diversos operadores é apta a propiciar efeitos

potencialmente danosos.

Qualquer solução orientada a promover a desagregação

dos serviços, de modo a produzir a competição em segmentos específicos,

deve ser praticada com extrema cautela.

5.3 – O caso concreto: a omissão sobre o tema

76. A documentação divulgada não se referiu às

características do monopólio natural, nem tratou das providências cabíveis em

face delas.

Trata-se de omissão irreparável, que demonstra a

ausência do preenchimento de requisitos fundamentais para produzir uma

reforma regulatória satisfatória.

6 – As características do sistema ferroviário brasileiro

77. Ademais, a documentação não tomou em vista outras

peculiaridades que dão identidade ao sistema ferroviário brasileiro.

6.1 – A configuração como serviço público

78. Tal como se passa com a generalidade das hipóteses de

monopólios naturais no Brasil, o transporte ferroviário de cargas foi

configurado como um serviço público. Isso decorreu da consideração da

inviabilidade da concorrência e da necessidade da presença estatal para

assegurar a existência e a adequação dos serviços.

6.2 – Problemas e dificuldades históricos

79. É evidente que as dificuldades quanto à existência e à

adequação dos serviços ferroviários não são um fenômeno recente. As

limitações existentes não são imputáveis às práticas adotadas pelas

concessionárias nos últimos quinze anos. Trata-se de questão histórica, cujas

raízes se relacionam a centenários e que devem ser necessariamente

considerados – e que nem sequer foram referidos na documentação divulgada.

Abaixo se encontram, de modo exemplificativo, algumas

da questões que foram ignoradas na documentação produzida como

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Marçal Justen Filho - 29 -

fundamento da proposta de reforma.

6.2.1 - A dificuldade técnica específica: o relevo

80. Há uma dificuldade marcante no Brasil, que diz respeito ao

relevo terrestre. Existe uma barreira geológica entre o litoral e o interior do

Brasil, consistente numa região serrana paralela à planície litorânea.

Essas características acarretam radical elevação de custos

de implantação e de operação – até chegando a hipóteses de inviabilidade

técnica do serviço ferroviário.

6.2.2 - A dificuldade técnica específica: a energia elétrica

81. Em segundo lugar, existe uma dificuldade quanto à matriz

energética. Na maior parte dos países, o transporte ferroviário envolve o

consumo de energia elétrica. No Brasil, havia dificuldades quanto a essa

opção, o que acarretou a ampla utilização de derivados de petróleo para

movimentação das composições ferroviárias. Isso também acarreta a elevação

de custos, contribuindo para a inviabilidade da competição entre

transportadores ferroviários e rodoviários.

6.2.3 - A dificuldade socioeconômica específica: as regiões urbanas

82. Outra dificuldade marcante, própria do Brasil, envolve a

dimensão das aglomerações urbanas. O fenômeno da urbanização acarretou o

estrangulamento das áreas destinadas ao transporte ferroviário. Isso

representa um obstáculo para a existência e a manutenção de vias férreas.

6.2.4 - A dificuldade socioeconômica específica: a dispersão geográfica

83. Sob outro enfoque, verifica-se que as cargas encontram-se

em locais distantes entre si. A vastidão espacial do Brasil significou a

dispersão das cargas por largos espaços.

6.3 - Colapso e renascimento do transporte ferroviário no Brasil

84. Esses e outros fatores conduziram à prevalência do

transporte rodoviário de cargas no Brasil. Esse foi o resultado da exploração

mais eficiente dos recursos econômicos, segundo os mecanismos econômicos

espontâneos.

85. No início da década de 1990, o transporte ferroviário de

cargas se apresentava em situação extremamente precária. É até

desnecessário destacar a situação de quase insolvência da antiga RFFSA, que

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Marçal Justen Filho - 30 -

atuava com prejuízos diários de valores em torno de um milhão de dólares. A

situação era caótica e tendia à extinção do serviço em questão.

Mas o transporte ferroviário renasceu no Brasil a partir das

soluções adotadas ao longo dos anos 1990. Foi adotado um novo marco

regulatório, vinculado ao Programa Nacional de Desestatização (PND), e os

serviços públicos foram delegados à iniciativa privada por meio de

concessões. Numa primeira etapa, tratou-se de promover a recuperação da

malha e a atualização dos serviços.

Segundo as informações prestadas, os diversos

operadores transferiram para os cofres públicos um montante aproximado de

um bilhão de dólares. Os investimentos realizados totalizaram mais de uma

dezena de bilhão de dólares. Existe a perspectiva de investimentos muito

relevantes nos próximos anos.

86. Esses dados não constam dos exames produzidos para

fundamentar a proposta de reforma. Não houve qualquer comparação entre a

situação anterior às concessões e a situação atual. Nem há referência aos

problemas estruturais a serem enfrentados, que explicam a prevalência do

transporte rodoviário no Brasil.

6.4 - As dificuldades existentes e a cautela na reforma regulatória

87. Nesse cenário, existe o reconhecimento pelo Estado

quanto a dificuldades e limitações nos serviços ferroviários. Mas isso não

significa descartar que a implantação de uma reforma regulatória demanda

enorme cautela.

6.4.1 - O modelo atual: definição estatal

88. Assim se passa porque o modelo atual foi implantado pelo

Estado brasileiro. A situação não resultou da ausência de intervenção estatal.

Essa consideração é relevante por dois motivos.

Em primeiro lugar, para afastar o argumento de que os

atuais operadores teriam implantado uma concepção orientada ao próprio

benefício. Esse tipo de consideração é um verdadeiro despropósito. Trata-se

de um sistema de serviço público, em que os operadores atuam exatamente

de acordo com as determinações do poder concedente. Quaisquer práticas

que configurem desvio ou falhas em face da disciplina regulatória são ilícitas e

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Marçal Justen Filho - 31 -

autorizam sancionamento e repressão pelo Estado.

Em segundo lugar, para destacar que é muito problemático

encontrar um modelo perfeito e que são indesejáveis modificações radicais. A

evolução econômica é um processo de permanente adequação. Rompimentos

radicais são muito prejudiciais e podem produzir resultados muito negativos.

6.4.2 - A alteração da realidade e a cautela regulatória

89. A alteração do panorama econômico brasileiro e a

ampliação da utilização do transporte ferroviário são objetivos a serem

buscados. Mas o sucesso nessa transformação radical não será obtido

mediante a simples alteração de algumas regras do marco regulatório. Serão

indispensáveis estudos minuciosos e detalhados. Todas as cautelas deverão

ser adotadas, até porque se trata de um cenário existente há muitas décadas.

7 – Síntese sobre o caso concreto: defeitos técnicos da proposta

90. As considerações anteriores evidenciam a ausência de

cumprimento dos requisitos indispensáveis à alteração do atual marco

regulatório. A proposta apresentada infringe, por isso, os requisitos de validade

impostos ao exercício da função regulatória.

7.1 – A vedação à "imprudência" e à "imperícia" regulatórias

91. Recai sobre todo agente estatal um dever de diligência

especial. O sujeito investido em competências estatais tem o dever jurídico de

cercar-se de todas as precauções para evitar atuação imprecisa, defeituosa ou

inadequada.

92. Assim se passa no tocante à competência regulatória. A

titularidade da competência para regular um setor não autoriza a edição de

regras precipitadas, inadequadas ou incorretas. Configura infração ao princípio

da República o exercício pelo agente público da competência regulatória com

imperícia ou imprudência. Aliás, nem sequer seria necessária a exigência de

elemento subjetivo reprovável, eis que a responsabilização civil objetivada do

Estado reflete a determinação constitucional no sentido de que a conduta

defeituosa do agente estatal, que acarretar danos a particulares, implicará o

dever de indenizar as perdas e danos sofridos (art. 37, § 6º, da CF).

7.2 – O direito fundamental à "boa administração"

93. Existe, em suma, um direito fundamental à boa

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Marçal Justen Filho - 32 -

administração16. Sob um aspecto, isso significa que a titularidade da

competência discricionária não corresponde a um "cheque em branco", para

utilizar uma expressão consagrada17.

A discricionariedade é instituída para assegurar a

produção da melhor decisão possível, em nível infraconstitucional e infralegal.

Portanto, estão proscritas decisões impensadas, apressadas, emocionais.

Mais precisamente, não basta a autoridade administrativa

invocar a titularidade de sua competência. É indispensável que o ato

administrativo reflita a adoção de procedimentos necessários e indispensáveis

para a obtenção da melhor decisão possível. Essa é uma exigência inerente

ao processo regulatório num Estado democrático.

A não observância desses procedimentos e a ausência de

demonstração de que a decisão adotada resultou da ponderação técnico-

científica dos fatores envolvidos violam o direito fundamental à boa-

administração. É inválida a disciplina regulatória fundada exclusivamente na

decisão subjetiva da autoridade administrativa18.

8 – A violação ao princípio da legalidade

94. Admitindo para argumentar que fosse cabível ignorar a

infração aos requisitos de uma reforma regulatória, existiriam obstáculos

jurídicos insuperáveis na proposta examinada.

O primeiro e mais evidente reside na infração ao princípio

da legalidade. A proposta de reforma envolve inovações jurídicas radicais, que

não estão comportadas na competência regulamentar da Agência.

95. Lê-se no documento o seguinte:

“A presente Nota Técnica tem por objeto discutir o aprimoramento da

16 Nesse sentido, confira-se JUAREZ FREITAS, Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública, São Paulo: Malheiros, 2007. 17 V. CAIO TÁCITO, Temas de direito público (estudos e pareceres), vol. 1, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 52. 18 Nessa linha, MARIA PAULA DALLARI BUCCI assevera: “Cada vez mais os atos, contratos, regulamentos e operações materiais encetados pela Administração Pública, mesmo no exercício de competências discricionárias, devem exprimir não a decisão isolada e pessoal do agente público, mas escolhas politicamente informadas que por essa via demonstrem os interesses públicos a se concretizar. A formulação da política consistiria, portanto, num processo, e os programas de ação do governo seriam decisões decorrentes desse processo. Nesse sentido, o incremento das atividades concernentes à elaboração das políticas e à sua execução insere-se num movimento de ‘procedimentalização das relações entre os poderes públicos’”. (Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 267-268.)

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Marçal Justen Filho - 33 -

interpretação das regras aplicáveis à exploração da infraestrutura ferroviária e à prestação dos serviços de transporte ferroviário de cargas e proceder à apresentação do Regulamento de Defesa dos Usuários do Transporte Ferroviário de Cargas.”  

96. O texto reconhece, de modo implícito, a inviabilidade

jurídica de inovações normativas relevantes serem produzidas por meio de

resolução editada por uma agência reguladora. Tanto é assim que o texto

sugere que as propostas tratam de uma “consolidação” das regras e da

“discussão” e “aprimoramento” de sua interpretação.

Na sequência, o texto defende a tese de que a proposta de

reforma do marco regulatório não importaria a edição de alterações normativas

relevantes – o que não é procedente, tal como será exposto adiante.

97. Basta examinar as três minutas de resolução e os termos

da Nota Técnica nº 27/2011/SUREG para reconhecer que não se trata de

consolidação de regras atualmente aplicáveis ao setor. Nem existe um simples

processo de aprimoramento da interpretação de regras vigentes.

Trata-se de introduzir modificações radicais, aptas a alterar

de modo relevante o sistema de transporte ferroviário de cargas. Justamente

por isso, um dos pontos centrais da controvérsia se relaciona com a extensão

da competência normativa da ANTT.

É indispensável apontar a ausência de poderes normativos

da ANTT para introduzir inovações regulatórias que escapam ao limite da

competência regulamentar.

98. Mais grave ainda, a proposta de reforma se alicerça em

pressupostos jurídicos defeituosos, que acarretam formulações que violam a

Constituição e as leis.

9 – As deficiências nos pressupostos jurídicos

99. A fundamentação jurídica da proposta, também contida na

Nota Técnica, incorre em defeitos que comportam crítica severa. A Nota

Técnica adotou fundamentação eivada de incorreções jurídicas extremamente

graves, especialmente no tocante ao conceito e ao regime jurídico de serviço

público.

9.1 - O conceito e a configuração de serviço público

100. A origem dos equívocos encontra-se, possivelmente, na

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Marçal Justen Filho - 34 -

ausência de identificação do regime jurídico próprio dos serviços de transporte

ferroviário.

9.1.1 - A orientação consagrada na Nota Técnica

101. As definições jurídicas adotadas na Nota Técnica

encontram-se concentradas especialmente no trecho abaixo reproduzido:

“5. Do serviço público e os princípios que orientam a outorga O serviço público, a rigor, representa todas as atividades desenvolvidas pelo Estado, direta ou indiretamente, por atribuição legal, para a consecução de seus fins, satisfazendo necessidades coletivas, sob regime de direito público total ou parcial (DI PIETRO, 2004, p. 99). MEIRELLES assim define (2000, p. 306): ... Destarte, o serviço de transportes terrestres, em geral, poderá ser considerado como serviço de utilidade pública, impróprio do Estado, industrial (por produzir renda ao que presta – remuneração por tarifa ou preço público) e uti singuli.”

Essas passagens não refletem o entendimento mais

apropriado sobre a ordem jurídica brasileira.

9.1.2 - A figura do "serviço de utilidade pública"

102. Afirmar que o serviço de transporte terrestre configuraria

um "serviço de utilidade pública" é um equívoco. E que não comporta qualquer

justificativa, eis que infringe diretamente o texto da própria Constituição.

103. A Constituição Federal não contempla qualquer alusão à

categoria de “serviço de utilidade pública”. O texto alude apenas a serviços

públicos. E os serviços de transporte terrestre são especificamente

qualificados como públicos. Basta lembrar o art. 30, V, que determina que

"Compete aos Municípios: ... organizar e prestar, diretamente ou sob regime

de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído

o de transporte coletivo, que tem caráter essencial" (sem negrito no original).

Aliás, a própria Nota Técnica nº 27/2011/SUREG

reconhece expressamente que o transporte é atividade “que tem natureza de

serviço público essencial” (p. 14).

104. Algumas pessoas realizam alguma confusão em virtude da

influência do pensamento estrangeiro. No âmbito anglo-saxão, o atendimento

a necessidades coletivas faz-se por meio das "public utilities". Por isso, alguns

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Marçal Justen Filho - 35 -

chegam a aludir a "public utilities services" – o que poderia conduzir a uma

tradução literal para o português: serviço de utilidade pública.

Mas essa aproximação é absolutamente imprestável e

merece intensa crítica. No direito anglo-saxão, não existe o conceito de

"serviço público". Ao menos, não há a distinção entre regime de direito público

e regime de direito privado.

Sob esse ângulo, afirmar que o serviço público do direito

brasileiro é um "serviço de utilidade pública" é um equívoco jurídico.

105. É verdade que a expressão "serviço de utilidade pública" é

utilizada em algumas passagens para indicar serviços de natureza privada,

que são aptos a satisfazer necessidades coletivas. Mas esses serviços são

disciplinados pelo direito privado. Aí se enquadram as farmácias, padarias,

bancos e assim por diante. Não estão compreendidos nessa categoria os

serviços públicos.

106. Portanto e de acordo com a Constituição e com as leis do

Brasil, é absolutamente pacífico que o transporte ferroviário de cargas é um

serviço público, próprio do Estado e que deve ser prestado pela União,

diretamente ou mediante concessão ou permissão (outorgadas sempre

mediante licitação). Qualquer formulação distinta é antijurídica.

Qualquer solução distinta dependeria da modificação da

Constituição ou, no mínimo, da Lei nº 10.233. Certamente, uma resolução

administrativa não seria uma alternativa válida para modificação nesse

arcabouço regulatório.

9.1.3 - A distinção entre serviço público e atividade econômica privada

107. Por outro lado, a Nota Técnica incorre em uma profunda

confusão entre serviço público e atividade econômica privada. Essa distinção

foi sistematizada por Eros Grau19 e recebeu expressa incorporação na

jurisprudência do próprio STF20.

19 A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 11 ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 110 e s. 20 Nesse sentido, “A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito.” ADPF 46, rel. Min. MARCO AURÉLIO, rel. p/ Acórdão: Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, j. em 05/08/2009, DJe 25-02-2010)

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Marçal Justen Filho - 36 -

Trata-se de interpretar o Capítulo da Ordem Econômica na

Constituição Federal. Examinando os arts. 170 e seguintes, verifica-se que a

Constituição adotou dois regimes jurídicos básicos para a exploração dos

recursos econômicos escassos.

Há um setor que se configura como exploração de

atividade econômica, reservado à iniciativa privada e que se desenvolve

segundo os postulados da livre iniciativa e da livre concorrência. O art. 170

disciplina esse setor.

A regra fundamental que norteia tais atividades é a de que

"É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,

independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos

previstos em lei" (art. 170, parág. único).

Nesse âmbito, a intervenção direta pelo Estado se

configura como uma exceção, subordinada às regras do art. 173.

As atividades econômicas privadas são desempenhadas

sob regime de direito privado.

108. Ademais, há o setor de serviço público, objeto de disciplina

do art. 175. Ali está previsto que "Incumbe ao Poder Público, na forma da lei,

diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de

licitação, a prestação de serviços públicos".

Os serviços públicos são prestados sob regime de direito

público. São de titularidade do Estado e sua prestação por particulares se faz

por meio de concessão ou permissão – institutos que não eliminam a

configuração de um serviço público.

109. A Constituição também prevê o monopólio de certas

atividades privadas em favor da União, no art. 177. Essas atividades não

configuram serviço público, especificamente porque não são orientadas a

satisfazer necessidades coletivas essenciais. São desenvolvidas sob regime

de direito privado.

9.1.4 - O serviço público de transporte ferroviário de cargas

110. O serviço de transporte ferroviário de cargas é um serviço

público de titularidade da União, a quem incumbe a sua prestação diretamente

ou por meio de concessão ou permissão. Ainda quando haja delegação à

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Marçal Justen Filho - 37 -

iniciativa privada, tais serviços sempre serão regidos pelo direito público.

9.2 - O regime jurídico de serviço público

111. O regime de serviço público, aplicável no âmbito das

concessões de serviço público, apresenta certas características.

9.2.1 - O texto da Nota Técnica e a confusão entre regimes

112. A Nota Técnica incorreu em confusão inquestionável

quanto ao regime jurídico do serviço público, transpondo a ele princípios

próprios da atividade econômica privada. Lê-se no texto:

“De posse do conceito de serviços públicos, de maneira geral cumpre observar que são pautados nos princípios dispostos na Constituição Federal, identificados como parâmetros para orientar as relações jurídicas entre os agentes envolvidos no desempenho da atividade. São eles: a) função social da propriedade (art. 5º, XXIII da Constituição da República) – na medida em que a utilização do bem público consubstanciado no serviço de transporte deve permitir inclusão social e ampliação de acesso; b) função social do contrato (art. 421 Código Civil) – tendo em vista que o serviço, que detém interesse coletivo, se materializa pelo contrato e tem por escopo atender objetivos maiores do que aqueles meramente estipulados no acordo bilateral; c) função social do serviço público de interesse coletivo (art. 7º, II da Lei 8.987/9521) – dentre suas missões precípuas, cabe ao transporte tanto a movimentação a mão-de-obra dos centros urbanos, como o desenvolvimento econômico de pólos regionais, pela viabilização dos insumos e escoamento de produção agrícola ou industrial, atividade essencial que qualifica o serviço prestado; d) livre iniciativa e livre concorrência (arts. 1º, IV e 170, IV da Constituição Federal) – o mercado deve estar aberto à entrada de novos players, aptos a desenvolver o serviço, garantindo-se ambiente concorrencial saudável, para o desempenho das atividades empresariais; e) equilíbrio econômico-financeiro (arts. 37, XXI da CF, 58, § 2º da Lei 8.666/93 e 9º, § 2º e 10 da Lei 8.987/95) – o princípio sobreleva o nível justo de remuneração para o serviço, fomentando tanto a competitividade como a adequação das tarifas (modicidade tarifária) e tendo em vista o contrato de prestação do serviço público, no qual residem as condições

21 Supõe-se a existência de um erro material nessa passagem da Nota Técnica. O Art. 7º da Lei tem a seguinte redação: “Sem prejuízo do disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários: ... II - receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos”. Ou seja, o dispositivo referido não tem qualquer vínculo com “função social”.

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Marçal Justen Filho - 38 -

inicialmente estabelecidas na licitação ou processo de outorgada; e f) dirigismo contratual – interpretação das cláusulas do instrumento de concessão da exploração de serviço público segundo o interesse público e em prol do maior benefício social.”

Com o maior respeito, o trecho acima reproduzido não

reflete a ordem jurídica vigente no Brasil, tal como abaixo evidenciado.

9.2.2 - A não aplicabilidade do regime próprio da atividade econômica

113. O regime de serviço público não é norteado pelos

princípios da função social da propriedade privada, da função social do

contrato, da livre iniciativa e da livre concorrência e do dirigismo contratual.

Aliás, não existe um princípio constitucional de dirigismo contratual.

114. Assim se passa porque o serviço público é público. O

serviço público pode ser prestado mediante a utilização de bens públicos (e de

bens privados afetados à concessão). Portanto, não há cabimento em aludir à

função social da propriedade privada, que somente é relevante para a

exploração dos bens que não se encontram afetados aos serviços públicos. Os

bens afetados aos serviços públicos necessariamente estão orientados ao

cumprimento de uma função pública específica, que se traduz na própria

prestação do serviço.

115. Nem há cabimento em aludir a função social dos contratos,

determinação contemplada no Código Civil para as relações entre particulares.

O regime próprio dos contratos administrativos impõe uma pluralidade de

competências anômalas em favor do Poder Público, que asseguram a

realização dos fins de interesse coletivo. Mas o Código Civil não se aplica no

âmbito das relações entre Poder Concedente e concessionário de serviço

público (ressalvadas situações secundárias e de importância menor).

116. Também atinge às raias do inimaginável reputar que o

serviço público é disciplinado pelos princípios da livre concorrência e da livre

iniciativa. Chega a ser chocante a afirmação de que "o mercado deve estar

aberto à entrada de novos players, aptos a desenvolver o serviço, garantindo-

se ambiente concorrencial saudável, para o desempenho das atividades

empresariais". Ora, o art. 170 da CF/88, inclusive na parte que prevê a livre

concorrência e a livre iniciativa, disciplina as atividades privadas e não se

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Marçal Justen Filho - 39 -

aplica ao serviço público.

Nesse ponto, a afirmativa constante da Nota Técnica é

frontalmente contrária ao art. 175 da CF/88.

117. E, por fim, não existe o princípio do "dirigismo contratual".

No direito brasileiro, prevalece o disposto no art. 174 da CF/88, ao consagrar

que "Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado

exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento,

sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor

privado" (original sem negrito).

9.3 - Os princípios próprios do regime de serviço público

118. É necessário, então, destacar os princípios próprios do

regime de serviço público, os quais não foram adequadamente considerados

no corpo da Nota Técnica.

9.3.1 - A titularidade do Estado

119. Em primeiro lugar, o serviço público é de titularidade do

Estado. Isso exclui a livre iniciativa e a livre concorrência. Cabe ao ente

estatal, titular do serviço, promover a sua prestação. Poderá fazê-lo

diretamente ou mediante concessão ou permissão de serviço público – e,

nesses casos, são reconhecidas competências unilaterais e prerrogativas

extraordinárias para o Estado.

Em qualquer caso, nenhum agente privado tem direito,

interesse ou poder jurídico de assumir a prestação da atividade de serviço

público invocando a livre iniciativa ou a livre concorrência.

Isso tem reflexos diretos na questão da exclusividade, tal

como se verá adiante.

8.3.2 - A adequação: mutabilidade, universalidade e modicidade tarifária

120. O serviço público deve ser adequado a satisfazer as

necessidades coletivas, cujo atendimento justifica a sua própria instituição.

Como decorrência, o serviço público se caracteriza pela

mutabilidade. Há um dever-poder de o ente estatal adequar as condições

técnicas da prestação, de modo a assegurar o seu permanente

aperfeiçoamento.

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Marçal Justen Filho - 40 -

121. Além disso, o serviço público deve ser prestado a todos os

que dele necessitam. Isso envolve inclusive uma dimensão de isonomia, o que

importa vedação a discriminações injustificadas entre os usuários. É evidente,

no entanto, que a universalização é uma meta a ser atingida, tomando em

vista as limitações decorrentes da reserva do possível.

Ademais, o serviço público comporta a cobrança de

remuneração – seja por meio de taxa, seja nos casos de tarifa. Não cabe

aprofundar a discussão sobre esse tema, agora. O que é relevante é asseverar

que a modicidade significa a fixação do menor valor possível, de modo a

assegurar a possibilidade de fruição do serviço por todos aqueles que dele

necessitam.

9.3.3 - A delegação a particulares mediante licitação

122. A delegação do serviço público para a prestação por

privados depende de licitação. Assim está determinado no art. 175 da CF/88,

que merece ainda outra transcrição: "Incumbe ao Poder Público, na forma da

lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de

licitação, a prestação de serviços públicos".

9.3.4 - A preservação da equação econômico-financeira da outorga

123. Uma vez promovida a delegação do serviço público e

especialmente nos casos de outorga mediante licitação, assegura-se a

manutenção da relação original entre encargos e vantagens. Trata-se da

determinação constitucional de intangibilidade da equação econômico-

financeira dos contratos administrativos (art. 37, XXI).

Nesse sentido, o art. 10 da Lei nº 8.987 prevê que,

"Sempre que forem atendidas as condições do contrato, considera-se mantido

seu equilíbrio econômico-financeiro". Razão porque, "Em havendo alteração

unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o

poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração".

124. A Nota Técnica aludiu à exigência constitucional da

preservação da equação econômico-financeira das outorgas. No entanto, é

cabível uma correção às considerações ali desenvolvidas.

A tutela constitucional e legal da equação econômico-

financeira da concessão de serviço público não se fundamenta no critério de

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Marçal Justen Filho - 41 -

"justo" ou "injusto". Tal como consta do art. 37, inc. XXI, determina-se que

sejam "mantidas as condições efetivas da proposta".

Justamente por isso, a tutela à equação econômico-

financeira não tem qualquer relação com fomentar "tanto a competitividade

como a adequação das tarifas (modicidade tarifária)".

125. Nesse ponto, o signatário confessa a sua dificuldade em

compreender o trecho contemplado na Nota Técnica22.

Apenas por cautela (até porque o signatário não

compreendeu o significado do texto adotado na Nota), frise-se que não cabe

modificar a relação original entre encargos e vantagens sob o argumento da

justiça, nem sob a invocação do fomento à competição, nem em virtude da

necessidade de modicidade tarifária.

É inquestionável que o poder concedente dispõe de

poderes para modificar algumas condições da outorga, respeitados alguns

limites. Mas tais alterações devem ser compensadas por medidas

concomitantes orientadas à recomposição da equação. Tal será mais bem

examinado adiante.

9.4 – As deficiências quanto ao instituto da concessão de serviço público

126. A proposta de alteração do marco regulatório adota

concepções defeituosas também relativamente ao instituto da concessão de

serviço público.

9.4.1 - O objeto da outorga: a prestação do serviço

127. O texto afirma que a concessão de serviço público

asseguraria ao concessionário faculdades peculiares ao direito de propriedade:

“De fato, a outorga, quando realizada, garante exclusivamente, alguns dos direitos atrelados à propriedade, a saber: a) uso não exclusivo do bem público: o arrendatário tem a prerrogativa de utilizar o bem público para desempenhar a atividade, no caso de transporte ferroviário. No caso de concessão precedida de obra pública, como se deu no modelo ferroviário, ante a natureza indissociável entre a obra e a estrutura, há essa vinculação ao bem público, fato que não autoriza o

22 Apenas para relembrar, lê-se na Nota Técnica n° 27/2011/SUREG o seguinte: "o princípio sobreleva o nível justo de remuneração para o serviço, fomentando tanto a competitividade como a adequação das tarifas (modicidade tarifária) e tendo em vista o contrato de prestação do serviço público, no qual residem as condições inicialmente estabelecidas na licitação ou processo de outorga".

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Marçal Justen Filho - 42 -

compromisso de o serviço ser prestado, insista-se, exclusivamente, pelo ganhador da concorrência pública; b) gozo e fruição do bem público: enquanto titulares da concessão do serviços, têm a prerrogativa de se utilizar da via e colher os frutos decorrente da infraestrutura, para que possam explorar e desenvolver o transporte ferroviário de cargas (como destacado nos contratos de concessão), consubstanciado esse ato tanto no transporte em si como na venda do tráfego sobre a via, mediante remuneração, para o transporte realizado por terceiros, sob licenciamento do outorgatário; c) disposição do bem público: [o]s bens de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis ou indisponíveis, porque destinados à coletividade ou ao serviço público, respectivamente...”

 

      O trecho acima reproduzido não tem respaldo jurídico. A

concessão de serviço público tem por objeto a delegação da prestação do

serviço público. O uso dos bens públicos é um instrumento, quando

necessário, para a execução do contrato.

128. É incorreto afirmar que a outorga "garante exclusivamente

alguns dos direitos atrelados à propriedade".

Em primeiro lugar, a outorga não "garante" propriamente

algo ao concessionário. Ela impõe a ele o dever-poder de executar uma

prestação.

Em segundo lugar, é descabido reputar que a outorga

atribua ao concessionário direitos atrelados à propriedade. O núcleo de uma

concessão de serviço público é a prestação do serviço. Não se trata de

transferir ao concessionário poderes inerentes à propriedade de bens públicos,

mas a ele se impõe o encargo de desempenhar as atividades necessárias à

satisfação de necessidades coletivas.

8.4.2 - O equívoco quanto à desagregação do serviço público

129.     A Nota Técnica pretende promover a desagregação do

serviço público de transporte ferroviário de cargas. Assim se lê no texto:

“... Consoante interpretação sistemática do ordenamento, pode-se depreender que ou a concessionária explora o serviço de transporte, realizando-o diretamente ou viabilizando o acesso de terceiros à via (como já o faz no caso do Direito de Passagem), explorando o bem, mediante remuneração. ... Como se percebe, para os fins da concessão, serviço de transporte tanto

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Marçal Justen Filho - 43 -

pode ser considerado o deslocamento espacial da carga (pessoas ou produtos), entre dois pontos espacialmente separados, sobre os trilhos, como o ato de viabilizar o tráfego de terceiro interessado em utilizar a infraestrutura, mediante remuneração, que se compreende por gozo e fruição. Em razão disso, qualquer agente que trafegue sobre a via arrendada deve pagar ao arrendatário pela viabilização do transporte, atividade que tem natureza de serviço público essencial, quando considerada sua importância, em especial, para o mercado exportador brasileiro. ... Nota-se que o conceito de exploração e desenvolvimento do serviço público atrela-se, essencialmente, à administração do bem público e não ao monopólio do transporte em si”.

 

Trata-se de outra construção destituída de procedência.

130. O ponto fundamental reside em que os atuais

concessionários receberam uma outorga para a prestação do serviço público

de transporte, considerado esse serviço de modo conjunto e integral. Mais

precisamente, a concessão de serviço público de transporte ferroviário de

cargas outorgada no caso concreto impõe ao concessionário o dever-poder

jurídico de prestar o serviço na sua integralidade, ou seja, tanto no aspecto das

cargas a serem transportadas, quanto no tocante à utilização da ferrovia.

131. Ao contrário do que afirma o texto da Nota Técnica, o

objeto da concessão de serviço público de transporte não consiste numa

espécie de prerrogativa de explorar bens públicos para obter remuneração. O

objeto da concessão não consiste na escolha entre prestar o serviço ou cobrar

pelo uso da infraestrutura por terceiros. A concessão tem um objeto unitário,

que compreende todas as atividades que compõem o serviço público.

132. Justamente por isso, o concessionário tem o dever-poder

jurídico de promover todas as atividades que compõem o serviço objeto da

outorga. Não se trata nem mesmo de uma faculdade23. Cabe ao

concessionário o dever-poder de opor-se à exploração pura e simples da

infraestrutura por terceiros.

23 Nessa linha, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO assevera: “... as prerrogativas da Administração... se qualificam e melhor se designam como ‘deveres-poderes’, pois nisto se ressalta sua índole própria e atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas

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Marçal Justen Filho - 44 -

Assim, suponha-se que o concessionário resolvesse que

não asseguraria aos usuários algumas das prestações inerentes ao serviço

concedido e afirmasse que caberia aos próprios usuários providenciar uma

solução. É evidente que tal configuraria violação aos deveres inerentes à

outorga.

9.5 – Os defeitos jurídicos e suas decorrências

133. Os defeitos no tocante aos institutos do serviço público e

da concessão de serviço público redundaram em propostas eivadas de

defeitos jurídicos. As inovações apresentadas infringem a disciplina

constitucional e legal atinente ao serviço público de transporte ferroviário de

cargas e as regras contratuais em vigor.

10 - A questão da eliminação da exclusividade

134. Um aspecto essencial da reforma do marco regulatório

envolve a eliminação da garantia da exclusividade tal como outorgada aos

concessionários por ocasião da licitação.

10.1 - A implantação da competição

135. As modificações propostas envolvem a instituição de

competição no âmbito dos serviços de transporte ferroviário de cargas. Essa

competição se faria entre as concessionárias entre si (que poderiam captar

cargas fora da área de sua outorga) e com os usuários. Basicamente, o texto

abaixo reproduzido, constante da Nota Técnica, sintetiza essa concepção:

“O Regulamento tem também por escopo assegurar que os usuários possam ampliar sua capacidade de negociação com as concessionárias, realizando atividades não exclusivas de transporte ferroviário, com vistas à eficiência e modicidade tarifária. Poderá, ainda, o operador de transporte multimodal, disposto na Lei nº 9.611/98, em relação ao trecho ferroviário de seu fluxo, contratar com a concessionária, para que realize integralmente o transporte no percurso sob seu serviço férreo ou somente viabilize a malha e a segurança da via.”

As propostas adotaram diversas regras para implantar a

competição. Por um lado, o Regulamento para Pactuar as Metas previu, no art.

9º, o seguinte:

“Art. 9º – A capacidade ociosa de cada trecho será obrigatoriamente

inerentes limitações”, ob. cit., p. 72.

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Marçal Justen Filho - 45 -

disponibilizada a outras concessionárias para realização de direito de passagem ou tráfego mútuo, ou a usuários ou Operadores de Transporte Multimodal - OTM para contratação de licenciamento e equipagem, conforme previsto no Regulamento de Defesa dos Usuários.”

Ademais, pretende-se implantar a competição inclusive

entre as concessionárias, que poderão receber cargas em qualquer malha.

Isso consta da previsão contemplada no art. 3º, § 1º, da minuta de

Regulamento para Operações de Direito de Passagem (Audiência Pública nº

115/2011), abaixo reproduzido: 

“Art. 3º O compartilhamento de infraestrutura ferroviária ou de recursos operacionais dar-se-á mediante tráfego mútuo ou, na sua impossibilidade, mediante direito de passagem. § 1º O compartilhamento a que se refere o caput poderá ser feito de forma a garantir que uma concessionária possa receber ou entregar cargas na malha de outra concessionária” (original sem negrito)

10.2 – As três modalidades de eliminação da exclusividade

136. A exclusividade será eliminada pela adoção de três

medidas distintas.

A primeira consiste na faculdade de as atuais

concessionárias competirem amplamente entre si. Está prevista a

possibilidade de recebimento de cargas na área de outorga alheia – o que

significa uma inovação radical em face da disciplina ora vigente, que determina

que as concessionárias podem apenas promover a entrega de cargas no

âmbito de outras concessões.

A segunda se relaciona com a figura do Operador de

Transporte Multimodal. O laconismo da disciplina da figura não exclui a

garantia de sua ampla atuação em competição com os atuais concessionários.

A terceira se relaciona com uma solução de submissão do

concessionário às decisões de usuários. O concessionário poderá ser

constrangido a operar em condições distintas daquelas praticadas em relação

à generalidade dos demais usuários. Em essência, algumas categorias de

usuários serão autorizadas a obter um regime diferenciado, que importará uma

forma de competição com o próprio concessionário.

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Marçal Justen Filho - 46 -

10.3 – O núcleo da proposta: a privatização do serviço

137. Em suma, o núcleo da proposta reside em despublicizar o

serviço público de transporte ferroviário de cargas. Afinal, a relação entre o

concessionário e o usuário (dependente, investidor ou OTP) passará a ser

regida pelo direito privado.

Ou seja, haverá um contrato entre a concessionária e o

usuário, disciplinando relações jurídicas que, em face da Constituição e da lei,

são inerentemente de serviço público. Haverá uma prestação de serviço

regida, em última análise, pelo direito privado.

10.4 – A violação à Constituição: o risco de destruição do serviço público

138. Essas propostas colocam em risco a existência do serviço

público protegido constitucionalmente.

10.4.1 – A determinação constitucional da existência do serviço público

139. Como exposto, existe a determinação constitucional da

existência de serviços públicos de transporte ferroviário. Isso significa o dever

de universalização do serviço correspondente – dever esse que recai

primeiramente sobre a própria União.

10.4.2 – A proteção em favor do serviço público

140. A garantia de exclusividade não é estabelecida como um

benefício em favor do concessionário. Trata-se de um mecanismo de defesa

do serviço público – o qual, na origem, é necessariamente dotado de cunho de

exclusividade.

Assim se passa porque todo e qualquer serviço público é

de titularidade do Poder Público. Logo, o titular da competência para prestá-lo

está investido de exclusividade. Essa exclusividade se relaciona inclusive com

a garantia da viabilidade da existência do serviço.

Bem por isso, o regime de serviço público prevalece sobre

a concorrência. Somente se admite a concorrência no âmbito do serviço

público quando não colocar em risco a sobrevivência deste. Não é casual que

o art. 16 da Lei nº 8.987 determine que "A outorga de concessão ou permissão

não terá caráter de exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou

econômica justificada no ato a que se refere o art. 5º desta Lei".

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Marçal Justen Filho - 47 -

141. Essa orientação nem sequer é exclusiva do direito

brasileiro. A própria União Europeia reconheceu a necessidade de restrição ao

postulado da livre iniciativa. Em duas decisões memoráveis do Tribunal de

Justiça da União Europeia (casos "Corbeau" de 1993 e "Commune d'Almelo"

de 1994), firmou-se que a livre concorrência não será reconhecida nos casos

em que comprometer a viabilidade econômica dos serviços públicos (serviços

de interesse geral econômico)24. A restrição à livre concorrência vem sendo

reafirmada pelos Tratados e pela jurisprudência comunitária.

142. A propósito, essa orientação foi reconhecida em época

recente pelo próprio STF, ao examinar a questão do serviço postal, tal como

se extrai do trecho reproduzido da ementa do julgado, adiante:

“... 7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os

serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida

sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade” (ADPF 46, STF-

Pleno, Rel p/ Acórdão: Min. EROS GRAU, Julg. 05/08/2009. DJe-035

26-02-2010).

10.4.3 – A garantia instrumental

143. A exclusividade não se constitui numa mera cláusula

vazia. Não é uma garantia formal. Trata-se de uma medida de natureza

instrumental. A ausência de competição assegura ao operador condições de

rentabilidade que lhe permitem desempenhar o conjunto de suas obrigações –

inclusive e especialmente obtendo recursos para o custeio das atividades

economicamente deficitárias.

Portanto, a exclusividade é uma garantia em favor do

serviço público. É estabelecida como meio jurídico para assegurar a

viabilidade econômica do serviço público.

10.4.5 – Os efeitos da implantação de competição

144. Tal como exposto, o serviço ferroviário constitui um

monopólio natural. E, como é inquestionável, uma característica essencial do

monopólio natural reside em que o menor preço possível somente é obtido

quando existe um único operador. Em virtude do elevado custo dos

24 Para aprofundar o exame, confira-se o pensamento de MONICA SPEZIA JUSTEN, A noção de serviço público no direito europeu, São Paulo: Dialética, 2003, e de ALEXANDRE SANTOS

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Marçal Justen Filho - 48 -

investimentos fixos e do custo decrescente da operação, o preço se reduz na

proporção da elevação do consumo. Essa é uma lei econômica, que não

comporta exceção.

10.4.6 – Os riscos de insolvência generalizada

Se for instituída livre competição para a prestação de um

serviço que traduz um monopólio natural, existirão apenas três alternativas. A

primeira possibilidade é que todos os prestadores vão à insolvência. A

segunda reside em que todos os prestadores vão à insolvência, com exceção

de um deles. A terceira consiste em que mais de um prestador sobrevive, mas

mediante preços mais elevados do que seriam praticados se houvesse um

único prestador.

Em suma, a competição no âmbito de um monopólio

natural tende a prejudicar o usuário.

145. A proposta de reforma pretende adotar uma solução

similar àquela praticada no estrangeiro, em que se reconhece o monopólio

natural no tocante à gestão da infraestrutura, mas se incentiva a concorrência

quanto à prestação do serviço. Haveria competição entre as concessionárias

entre si e entre elas e os usuários.

10.4.7 – A implantação da chamada “assimetria regulatória”

146. A nova modelagem propõe um regime de assimetria

regulatória. A expressão indica os casos em que uma mesma atividade é

desenvolvida em regime de competição por agentes econômicos sob regime

jurídico diverso.

O exemplo mais conhecido de assimetria regulatória no

direito brasileiro envolve a telefonia fixa. Existem operadores sob regime de

concessão de serviço público, que estão obrigados a assegurar serviço

universal, segundo a disciplina de direito público. E há as chamadas

“empresas espelho”, que não atuam sob regime de concessão. São

exploradoras de atividade econômica privada, investidas de autorização para

um empreendimento norteado pela livre iniciativa.

147. A adoção de assimetria regulatória é extremamente

problemática, porque são diferentes os custos e vantagens próprios dos

DE ARAGÃO, Direito dos..., ob. cit., p. 109 e s.

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Marçal Justen Filho - 49 -

diversos regimes jurídicos. O concessionário está sujeito a deveres e a

limitações muito superiores àqueles do operador não-concessionário. O regime

de serviço público obriga a implantação e a manutenção de atuação deficitária,

enquanto a exploração da atividade econômica pode restringir-se apenas aos

setores rentáveis.

148. Isso significa que, instaurada a assimetria regulatória,

haverá competição apenas quanto aos serviços rentáveis. Já os serviços

deficitários terão de ser prestados pelo concessionário em virtude de sua

obrigação de serviço universal.

Mas os recursos para o desempenho da atividade

deficitária são obtidos mediante os resultados auferidos nos segmentos

lucrativos. Se o concessionário for constrangido a reduzir a sua margem de

lucro para competir com um terceiro nos setores lucrativos, carecerá de

recursos para manter o serviço deficitário e realizar investimentos na

infraestrutura.

Quando isso se consumar, o concessionário irá à falência

e cessará a sua atividade. Permanecerão em atividade os demais

exploradores, mas atuando apenas nos segmentos lucrativos. Em suma,

desaparecerá o serviço universal. Mais ainda: a infraestrutura ferroviária

sofrerá deterioração decorrente da ausência de investimentos.

10.4.8 – A limitada aplicabilidade da assimetria regulatória

149. Por isso, é reconhecido que o modelo da assimetria

regulatória apenas pode ser adotado em setores econômicos muito

diferenciados. Isso se passa, de modo específico, na telefonia fixa, em que se

instaura um vínculo de longo prazo e permanente entre o usuário e o

concessionário. Nesses casos, o surgimento de um competidor não sujeito ao

regime de concessão de serviço público não acarretará a migração imediata

dos usuários.

Quando não estão presentes os pressupostos econômicos

indispensáveis, a instauração da assimetria regulatória acarreta a pura e

simples destruição do serviço público. Essa é a razão da limitada utilização de

modelos de assimetria regulatória.

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Marçal Justen Filho - 50 -

150. Assim, a assimetria regulatória sequer foi adotada no setor

da telefonia celular. Na primeira etapa, quando se promoveu a privatização dos

serviços, houve a outorga de concessões de serviço público (Bandas “A” e

“B”). Verificando-se a inadequação da solução, foi alterado o regime para

autorização. No entanto, adotaram-se providências para a alteração da

disciplina de modo integral e uniforme. Por isso, as antigas concessionárias

tiveram a opção de adotar o regime de autorização, com vantagens muito

relevantes em face da sistemática de concessão.

Como decorrência, todos os operadores de telefonia

celular atuam presentemente no regime de autorização. Se algum deles

tivesse mantido o regime de concessão de serviço público, teria incorrido em

insolvência.

151. Pretende-se implantar um novo modelo no setor

ferroviário, com aplicação imediata. Isso acarretará uma disciplina assimétrica.

Será imposta a competição entre os atuais

concessionários e entre eles e os próprios usuários. Todos se utilizarão de

uma mesma infraestrutura ferroviária. Mas esses novos operadores, no gozo

da livre iniciativa, poderão selecionar apenas as operações lucrativas. Já os

atuais operadores serão constrangidos a manter o serviço universal.

É evidente que a competição apenas surgirá nos trechos

efetivamente lucrativos. Os investimentos e esforços dos concessionários

serão apropriados pelos operadores não subordinados às obrigações de

serviço público.

Esse fenômeno é conhecido no âmbito da ciência

econômica como “cream skimming” ou “cherry picking” 25.

152. No âmbito técnico-econômico, as expressões são

consideradas como sinônimas e indicam a conduta de selecionar apenas as

25. Literalmente, “cream skimming” pode ser traduzido como “retirada da nata do leite” e “cherry picking” significa “escolhendo a cereja”. Literalmente, “cream skimming” indica a conduta de retirar de um produto (o leite) a parcela mais nutritiva, tornando-o uma bebida desprovida das virtudes a ele inerentes. E “cherry picking” é a conduta de tirar a melhor parte do bolo (no caso, a cereja), deixando os demais sem possibilidade de fruir de idêntico benefício. Em termos figurados, indica a conduta de apropriar-se do bônus sem se assumir os ônus de uma atividade. Sobre o tema, confira-se J. GREGORY SIDAK e DANIEL F. SPULBER, Deregulatory Takings and the Regulatory Contract: the competitive transformation of network industries in the United States, Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p.

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Marçal Justen Filho - 51 -

atividades economicamente vantajosas, rejeitando aquelas que possam

apresentar alguma dificuldade ou não apresentar rentabilidade atraente.

Para usar a terminologia vulgar, significa o risco de que

alguns operadores (no caso, os concessionários) fiquem com o "osso",

enquanto outros ficam com o "filé mignon".

Existirão operadores para o mesmo serviço, subordinados

a regimes jurídicos distintos. Trata-se, portanto, de hipótese que configurará

competição imperfeita.

10.4.9 - As tarifas praticadas por custo médio

153. Há outro aspecto essencial, que não foi considerado nas

propostas de reforma. Trata-se da necessidade de o concessionário praticar

tarifas de acordo com o custo médio.

154. O preço praticado por um agente econômico é calculado

de acordo com os custos (a que se acresce uma margem de lucro). Existem

duas alternativas básicas. Ou se calcula o preço de acordo com o custo médio

ou segundo o custo marginal.

155. A tarifa pelo custo médio significa tomar em consideração

o conjunto de todas as obrigações, investimentos e encargos, incorridos no

passado, no presente ou no futuro. Somam-se todos os custos diretos e

indiretos e se fixa o preço de modo a assegurar que tais custos sejam diluídos

ao longo da exploração. Essa é a primeira alternativa.

A segunda se verifica nos casos em que o valor cobrado é

calculado para cobrir os custos relativos à operação específica que origina a

cobrança. Nesse caso, fala-se tecnicamente em "custo marginal".

Como regra, o custo marginal é inferior ao custo médio.

Assim se passa porque o custo médio envolve não apenas uma compensação

pelas despesas atinentes à situação remunerada, mas também uma

contrapartida necessária ao conjunto integral dos custos realizados e por

realizar.

156. É da inerência de uma concessão de serviço público que a

tarifa seja praticada por custo médio. Assim se passa porque incumbe ao

concessionário realizar uma parte substancial dos investimentos necessários à

530.

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Marçal Justen Filho - 52 -

implantação, ampliação e conservação do serviço público. Ao final da outorga,

a quase totalidade dos bens reverte para o poder concedente. O

concessionário será remunerado por meio de tarifas, cujo valor será calculado

em vista desse conjunto global de desembolsos. Logo, a tarifa cobrada em

cada situação concreta compreende não apenas o custo direto e imediato

daquela operação, mas abrange o conjunto dos custos anteriores e futuros.

Assim e no caso de concessões de transporte ferroviário

de cargas, cada concessionária assumiu a concessão com um conjunto amplo

de obrigações. Cabia-lhe pagar o ônus correspondente à proposta selecionada

como vencedora, assumir determinadas obrigações relacionadas com a

infraestrutura existente, ampliar e modernizar o sistema. Ao final da outorga,

os investimentos realizados pela concessionária serão transferidos para a

União. Portanto, é necessária uma tarifa calculada de modo a cobrir esse

conjunto de despesas.

157. Somente é possível cobrar tarifa por custo marginal numa

concessão quando existir subsídio. Esse é um postulado inafastável. Assim, o

Estado pode assumir o custo da infraestrutura e do material rodante. Se tal

ocorrer, é evidente que a tarifa não será composta por parcelas destinadas a

compensar tais despesas, eis que não serão suportadas pela concessionária.

Mas esse não é o modelo adotado entre nós. As

concessionárias não recebem subsídio e estão obrigadas a arcar com todos os

custos inerentes à outorga.

158. As tarifas das concessionárias são calculadas segundo o

custo médio. No caso concreto, a proposta de reforma pretende assegurar a

certos usuários a faculdade de competir com os concessionários, inclusive

mediante a utilização de material rodante de sua propriedade. Até se faculta

que tais operadores "cedam" os direitos de utilização para terceiros

(configurando, então, uma competição direta com as concessionárias).

Ocorre que os usuários dispõem da possibilidade de

praticar tarifa por custo marginal. Esses terceiros estarão em condições de

cobrar um valor muito inferior ao montante mínimo que pode ser praticado por

uma concessionária.

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Marçal Justen Filho - 53 -

Assim se passa porque os custos dos terceiros são muito

inferiores. Esses terceiros não estão obrigados a pagar valor algum em favor

da União como contrapartida pelo direito de operar o serviço. Não têm o dever

de contratar antigos servidores da RFFSA. Não necessitam implantar serviços

em áreas distantes e de pouca rentabilidade. Não precisam prestar serviço

adequado a qualquer terceiro que tenha necessidade de usufruir do transporte

ferroviário de cargas.

Esses terceiros podem operar com uma tarifa por custo

marginal. Quando menos, o custo médio desses usuários será muito inferior ao

das concessionárias, eis que não assumem todas as obrigações inerentes à

concessão.

Mas isso somente é possível porque ele se beneficiará de

uma instraestrutura e de um serviço público cujo custo é suportado pela

concessionária.

Logo, surgirá uma competição desigual, potencialmente

apta a destruir as concessionárias. Os usuários serão beneficiados pelos

investimentos e desembolsos de responsabilidade das concessionárias, sem a

necessidade de arcar com os seus respectivos custos.

159. Não existe qualquer alusão a essas questões na

documentação trazida à análise do público. O tema não foi, ao que parece,

cogitado pela autoridade pública, que simplesmente considera que praticar

tarifas mais elevadas (por custo médio) é uma escolha voluntária da

concessionária.

10.4.10 – A infração à vontade constitucional

160. A proposta de reforma abre a oportunidade para a

eliminação do serviço público protegido constitucionalmente.

É evidente que são inválidos não apenas os atos que

infringem diretamente a Constituição. Também é inconstitucional o ato que, por

via indireta, propicia a consumação de evento incompatível com a

Constituição.

161. A destruição do serviço público é produzida não apenas

pela formal despublicização da atividade. Também é acarretada pela

eliminação das condições indispensáveis à sua viabilidade econômica.

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Marçal Justen Filho - 54 -

Instaurar competição entre o prestador do serviço público e o explorador de

atividade econômica ou usuário conduz ao enorme risco da insolvência do

prestador. Mas haverá a certeza da extinção do serviço público quando forem

asseguradas vantagens econômicas em favor do operador privado.

Tal como acima evidenciado, a receita da concessionária

será reduzida eis que terceiros poderão obter o serviço mediante o pagamento

de valores muito mais reduzidos. A concessão será inviabilizada, o que

acarretará a supressão do serviço público. Sobreviverá a atividade explorada

sob regime especulativo, submetida ao regime de direito privado. Isso infringe

a vontade constitucional.

10.5 – A violação à Lei

162. Por outro lado, a proposta pretende eliminar a

exclusividade em favor das concessionárias. Isso infringe regra legal expressa,

constante do art. 34-A da Lei nº 10.233.

10.5.1 – A norma legal clara e inquestionável

163. O dispositivo referido determina que "As concessões a

serem outorgadas pela ANTT e pela ANTAQ para a exploração de infra-

estrutura, precedidas ou não de obra pública, ou para prestação de serviços de

transporte ferroviário associado à exploração de infra-estrutura, terão caráter

de exclusividade quanto a seu objeto..." (original sem negrito).

Logo, determinar que as outorgas far-se-ão sem a

previsão de exclusividade configura infração cristalina e acarreta a

inquestionável invalidade da inovação regulamentar.

10.5.2 – A vigência ilimitada do dispositivo

164. Não cabe contrapor que o art. 34-A não se aplica ao caso

por ter sido introduzido por meio da MP 2.217-3, de 04.09.2001. A

circunstância de a norma ter sido editada posteriormente à outorga não

significa a sua inaplicabilidade a alterações regulatórias supervenientes.

O tema comporta duas abordagens distintas, ambas

conduzindo à conclusão da vedação da eliminação da exclusividade.

165. Sob um ângulo, cabe enfocar a questão sob o prisma do

regime jurídico. Segundo esse prisma, as normas de direito público se aplicam

de modo imediato, sob todas as relações jurídicas existentes.

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Marçal Justen Filho - 55 -

Isso significa que, encontrando-se em vigência o art. 34-A,

as suas disposições se aplicam para o futuro. Portanto, toda e qualquer

regulação editada pela ANTT sob a vigência do referido art. 34-A deve

necessariamente submeter-se às suas disposições.

Logo e considerando que se trata de regulação a ser

aplicada para o futuro, é inviável negar a aplicabilidade do disposto no referido

dispositivo no caso concreto.

166. Sob outro ângulo, as normas jurídicas não alcançam os

atos aperfeiçoados sob a vigência de normas pretéritas. Isso significa que o

art. 34-A da Lei nº 10.233 não alcança situações já constituídas quando do

início de sua vigência.

Ocorre que, no caso, os contratos previram outorga com

garantia de exclusividade. Portanto, a norma posterior contém disciplina

idêntica àquela prevista no ato jurídico perfeito e acabado. Então, a não

aplicação da regra legal relativamente aos contratos em vigência não significa

a possibilidade de eliminação da exclusividade.

167. O que não se pode admitir é a eliminação da exclusividade

prevista contratualmente sob o argumento de que, à época do

aperfeiçoamento da outorga, não vigorava ainda a norma que presentemente

se encontra em vigor.

Assim se passa porque a exclusividade está garantida no

caso tanto pela norma legal ora vigente como pelo contrato anterior.

10.6 – Os limites da competência regulamentar

168. Por outro lado, não teria cabimento argumentar que se

trataria de revogar resoluções anteriores da ANTT, o que evidenciaria a

ausência de infração legislativa.

A regulação atualmente vigente especifica as soluções

regulatórias consagradas na Constituição e na Lei. Portanto, as suas normas

não são autônomas. Inovações regulatórias por meio de resoluções

administrativas serão inválidas se contemplarem soluções incompatíveis com a

Constituição e a Lei.

10.6.1 – A natureza complexa do marco regulatório

169. Em outras palavras, o marco regulatório é composto

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Marçal Justen Filho - 56 -

inclusive por normas regulamentares administrativas. Tais normas encontram

o seu fundamento de validade em normas constitucionais e legais. A solução

regulatória contemplada no regulamento deve refletir as determinações

contidas na Constituição e na Lei.

Será inválido o regulamento que infringir a Constituição ou

a Lei – e tal se configurará inclusive quando tal regulamento for editado para

substituir outro já existente.

10.6.2 – A improcedência do argumento da "reserva" de ato regulamentar

170. Nem caberá invocar a "reserva" de regulamento, afirmando

que existiria um espaço normativo reservado privativamente para normas não

constitucionais ou não legais. Esse tipo de raciocínio poderia ser adotado em

outros países (tal como a França e, mesmo, os EUA). Mas não cabe a sua

aplicação no Brasil.

171. Em primeiro lugar, é absolutamente incontroversa a

invalidade do regulamento "contra legem". Isso significa que não há um campo

reservado para a disciplina constitucional ou legal.

A Lei e, com muito maior razão, a Constituição podem

dispor sobre todas as matérias de competência do ente político. Se existir

norma constitucional ou legal dispondo sobre certa matéria, é vedado

regulamento em sentido diverso.

No confronto entre regulamento e Constituição-Lei,

prevalecem sempre as últimas.

172. Em segundo lugar, a competência regulatória infralegal

está sujeita a limites. Nem mesmo o poder regulamentar presidencial é

ilimitado. Ao contrário, deve encontrar fundamento na legislação a que

pretende dar executividade, de acordo com o art. 84, IV, da Constituição26.

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO afirma que:

“Regulamento ou disposição regulamentar cujo conteúdo crie para os

administrados direitos, obrigações, deveres, restrições à liberdade,

26 No dispositivo, tem-se que “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Lembre-se que existe uma única previsão formal para regulamento autônomo na Constituição. Trata-se do inc. VI do art. 84, que faculta a edição de decreto sobre a organização e funcionamento da Administração e outros temas correlatos. Essa previsão não incide no caso concreto.

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Marçal Justen Filho - 57 -

propriedade ou atividade que já não estejam contidos e identificados na

lei a ser regulamentada, é nulo por inconstitucionalidade. Implica

desbordamento da competência do Executivo e invasão da esfera do

Legislativo27.”

A jurisprudência é pacífica no mesmo sentido:

“II - A Portaria MEFP n° 548/92 e o Decreto n° 1.847/96, ao estenderem o

pagamento do pro labore de êxito a outros beneficiários que não os

previstos no Decreto n° 98.135/89 e no art. 3° da Lei n° 7.711/88,

respectivamente, extravasaram os limites do poder regulamentar e

inovaram indevidamente na ordem jurídica, laborando em ilegalidade,

mesmo porque o aumento de remuneração de servidores públicos

federais é matéria reservada à lei em sentido formal e material...

descabendo, em tal matéria, ingerência do poder regulamentar do

Executivo.” (STF, RE 333060/DF, rel. Min. Dias Toffoli, j. em 06.05.2010,

DJ de 01.06.2010 - decisão monocrática)

“...1. O decreto, como norma secundária – que tem função

eminentemente regulamentar, conforme o art. 84, inc. IV, da Constituição

Federal –, não pode contrariar ou extrapolar a lei, norma primária. Não

pode restringir os direitos nela preconizados. Isso porque tão-somente a

lei, em caráter inicial, tem o poder de inovar no ordenamento jurídico. ...”

(STJ, RMS 22.828/SC, 5ª T., rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. em

18.03.2008, DJe de 19.05.2008)

“...1. A criação, por decreto regulamentador, de obrigações ou direitos,

não estabelecidos na lei, constitui inovação exorbitante, usurpando

função legislativa, por isso, ineficaz, destituída de obrigatoriedade.

2. Inovadora a malsinada exigência, fincada pelo decreto 98.054/89 (art.

3., II), a sua exigência revela ilegalidade, reparável judicialmente (STJ,

REsp 22.931/AL, 1ª T., rel. Min. Milton Luiz Pereira, j. em 19.09.1994, DJ

10.10.1994) 28.

27 Ato Administrativo e Direitos dos Administrados, São Paulo: RT, 1981, p. 102. 28 Igualmente, confiram-se: STJ, REsp 872.169/RS, 2ª T., rel. Min. Eliana Calmon, DJe de

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Marçal Justen Filho - 58 -

173. Por outro lado, diante de omissão legislativa, é legítima a

veiculação de normas regulamentares apenas de modo limitado. Ainda que se

possa admitir que a regulação apresente um aspecto inovador em relação ao

ordenamento jurídico, isso não significa que direitos e deveres possam ser

criados e instituídos simplesmente por meio de decretos. A regra fundamental

continua a ser a legalidade estrita, tal como consagrado no art. 5º, inc. II da

Constituição29.

174. As considerações anteriores refletem não um

posicionamento jurídico formalista. Trata-se de reconhecer que as decisões

fundamentais, inclusive sobre o destino da atividade econômica, exigem a

participação dos cidadãos – diretamente ou por meio de seus representantes

eleitos30.

175. A natureza técnica das controvérsias econômicas não

afasta a prevalência de um sistema democrático. A Nação consagrou as suas

opções fundamentais na Constituição. Outras escolhas relevantes são

reservadas à deliberação conjunta e harmônica do Executivo e do Legislativo,

por meio de Lei. A atividade administrativa pode complementar essas

escolhas, dar-lhes prosseguimento e desenvolver as questões essencialmente

técnicas.

Mas não cabe ao Poder Executivo, isoladamente, escolher

e impor modificações essenciais, inovadoras em face da disciplina

constitucional e legal.

13.05.2009; STJ, AgRg no REsp 760.890/MG, 1ª T., rel. Min. Luiz Fux, DJe de 23.04.2008; STJ, REsp 665.880/RS, 1ª T., rel. Min. Luiz Fux, DJ de 13.03.2006. 29 A questão da utilização do regulamento para desempenho da função regulatória propicia grandes disputas doutrinárias. As ponderações acima não envolvem uma tomada de posição específica – ainda que o signatário tenha definido o seu entendimento há muito (confira-se O Direito das Agências Reguladoras, cit., p. 483 e ss., especialmente 503-504). Mesmo os defensores de uma maior amplitude da competência regulamentar concordam, no entanto, com a inviabilidade da desconsideração da regra da legalidade. Sobre o tema, confiram-se GUSTAVO BINENBOJM, Agências reguladoras independentes e democracia no Brasil, em GUSTAVO BINENBOJM (coord.), Agências reguladoras e democracia, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 99; EGON BOCKMANN MOREIRA, Agências Administrativas, Poder Regulamentar e Sistema Financeiro Nacional, em Revista de Direito Administrativo, n. 218, out.-dez. , 1999, p. 93-112; HELY LOPES MEIRELLES, Direito administrativo brasileiro, 34. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 130-131. 30 Nesse sentido, FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO afirma que “...não se põe possível ao Estado impor unilateralmente condicionamentos ou regras que menosprezem os interesses especiais dos atores sociais e econômicos...” (Regulação Estatal e Interesse Público, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 202-203).

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Marçal Justen Filho - 59 -

10.7 – O problema da "capacidade ociosa"

176. Não se contraponha que a competição se desenvolveria

apenas no âmbito da capacidade ociosa, não utilizada pela concessionária. É

evidente que essa proposta envolve inevitável perda de clientela e redução da

receita tarifária assegurada à concessionária.

O usuário que se aproveitar da capacidade ociosa deixará

de se valer dos serviços prestados de modo padrão pelo concessionário. E

seria investido da faculdade de ceder o seu direito para terceiros – o que

envolve inclusive o risco de comercialização do benefício.

Logo, haveria uma perda de clientela do serviço público,

com a redução da receita e o incremento da ociosidade.

177. Basta um exemplo concreto, ainda que simplificado, para

evidenciar o descabimento da situação. Admita-se que o concessionário

estime custos no valor de 100 unidades monetárias para explorar serviços que

representem 80% da capacidade de utilização do sistema. Suponha-se que

isso envolva o transporte de uma quantidade correspondente a 100 unidades

de bens. Se o concessionário pretender atuar sem qualquer lucro, ele deverá

cobrar 1 unidade monetária por unidade de bem transportado. Mas essas

projeções apresentarão consistência somente se o concessionário operar com

exclusividade.

Toda essa construção será comprometida se for

assegurado a outro usuário a possibilidade de exploração dos 20%

remanescentes do sistema. Se esse outro usuário conseguir abocanhar 10%

das cargas que seriam transportadas pelo concessionário, haverá uma

frustração da movimentação estimada para a concessão. Assim se passaria

porque esse concessionário manteria o seu custo fixo, mas receberia uma

remuneração de apenas 90.

178. Nesse contexto, os usuários que se beneficiarem do

transporte em regime diferenciado deixarão de utilizar-se do sistema normal de

concessão. Logo, pode-se estimar que uma grande quantidade de usuários

abandonará o uso dos serviços públicos ofertados pela concessionária. Isso

significará uma frustração das receitas previstas, colocando em risco a

sobrevivência do empreendimento. A ociosidade tenderia a se ampliar

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Marçal Justen Filho - 60 -

radicalmente, de modo que os serviços públicos ficariam restritos aos

pequenos usuários, que seriam os únicos a fazer uso do transporte público.

179. Também é inevitável que a captação de cargas por uma

concessionária na área de outra acarretará a redução da receita desta última.

10.8 - A redução da remuneração

180. Nem se contraponha que o concessionário teria direito a

receber uma remuneração pelo uso diferenciado da infraestrutura e do material

rodante. Ora, a tarifa por direito de passagem não é equivalente àquela que o

concessionário receberia pela prestação direta do serviço a terceiros. É

evidente que, se a tarifa de tráfego fosse equivalente à remuneração obtida

pela concessionária mediante a cobrança de tarifas de transporte, não teria

qualquer sentido a competição. O resultado final seria idêntico.

181. Os critérios adotados no art. 12 da proposta de

Procedimentos de Operações conduzem à fixação de tarifas que excluem a

lucratividade do concessionário. Mais precisamente, haverá tarifas de valor

diferenciado daquelas asseguradas por ocasião da outorga.

Portanto, é inevitável que a tarifa de direito de passagem

seja inferior à tarifa que o concessionário perceberia caso operasse

diretamente a mesma atividade.

182. O raciocínio se aplica inclusive no tocante às cargas

captadas por outros concessionários fora da sua área de atuação. É evidente

que um usuário apenas recorrerá ao serviço de concessionário titular de outra

concessão se a tarifa for menor. Afinal, para pagar o mesmo valor, o usuário

manterá seu relacionamento com o concessionário da área.

183. O problema fundamental reside em que o planejamento,

as obrigações voluntariamente assumidas e os investimentos realizados

tomavam em vista uma exploração em condições jurídicas distintas.

184. Ou seja, a finalidade das propostas de reforma é a

redução da remuneração do concessionário, o que será produzido por duas

vias. A primeira é a redução do movimento de transporte e a segunda é a

redução da sua remuneração (ainda que seja ela resultante da soma de tarifas

de transporte e de direito de passagem).

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Marçal Justen Filho - 61 -

10.9 – O efeito nocivo da competição

185. Portanto, a preservação apenas parcial da exclusividade

conduz à redução da capacidade de o concessionário auferir a receita

necessária para o desempenho satisfatório de suas obrigações.

Como decorrência, o efeito final será a inviabilização da

concessão, eis que o concessionário perderá a capacidade de investimento.

Logo, será obrigado a reduzir as suas metas de produção – o que significará

uma capacidade residual de tráfego, por ele não explorada. Isso acarretará a

ampliação da capacidade ociosa a ser explorada em regime de direito privado.

Estará instaurado um círculo vicioso que redundará na extinção do serviço

público.

10.10 – A improcedência do argumento da função social

186. Nem se contraponha com a invocação da função social do

instituto da concessão de serviço público.

Quanto a isso, basta um paralelo para demonstrar o

despropósito do argumento. Muito antes da consagração da função social dos

contratos, já se afirmara a função social da propriedade. A prevalecer o

argumento de que a capacidade ociosa da ferrovia deve ser compulsoriamente

transferida para terceiros, deve também admitir-se a transferência compulsória

para os carentes da capacidade ociosa da propriedade privada.

Então, seguir-se-ia à determinação (por ato administrativo,

eventualmente) de que a capacidade ociosa das residências privadas deveria

ser transferida compulsoriamente para os carentes. Dispor de um cômodo

vazio na residência infringiria a função social da propriedade em termos

semelhantes aos da ausência de utilização integral da malha ferroviária.

187. Não se diga que se trata de relações jurídicas de distinta

natureza e que o concessionário não é proprietário da malha ferroviária. Isso é

inquestionável, mas a solução da cessão compulsória não se relaciona à

natureza da relação jurídica. Vincula-se à não utilização do potencial

econômico integral de um certo bem e da possibilidade de sua utilização para

satisfação de necessidades essenciais de outras pessoas.

Sob esse prisma, é idêntica a relevância da malha

ferroviária e das residências privadas, tal como são equivalentes (no mínimo)

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Marçal Justen Filho - 62 -

as necessidades de transporte e de habitação.

188. O ponto fundamental reside em que o concessionário

realiza todos os investimentos e desempenha todas as atividades de modo a

cumprir as exigências estabelecidas pelo poder concedente. A existência de

capacidade ociosa da malha não pode gerar efeitos negativos relativamente

aos serviços prestados adequadamente.

189. Mais ainda, o serviço público prestado pelo concessionário

será afetado pela instauração da competição, eis que a redução da

remuneração colocará em risco a manutenção do empreendimento.

Em outras palavras, a reforma assegura que alguns

usuários pagarão menos do que aqueles que se valerem dos serviços públicos

prestados a cargo do concessionário. Mas essa redução de receita será

potencialmente apta a impedir que o concessionário continue a prestar

serviços públicos adequados.

Portanto, o benefício para os usuários dos serviços

privados será obtido à custa da destruição do serviço público (prestado a uma

parcela significativa de usuários, usualmente os mais vulneráveis

economicamente).

190. Enfim, não se pode afirmar que a exploração da

capacidade ociosa da rede seja economicamente neutra, na acepção de que

não acarretaria efeito negativo em relação ao concessionário. Não se trata de

pura e simplesmente aproveitar integralmente o potencial econômico da

infraestrutura, eis que a competição significará a redução da clientela da

concessionária.

11 - A infração à legalidade e ao art. 174 da CF/88

191. Por outro lado, configura-se dupla infração à legalidade,

assim como à garantia constitucional da autonomia dos particulares.

11.1 – A despublicização da relação de serviço público

192. O art. 41, parágrafo único, da proposta de REDUF,

consigna que:

"Os contratos celebrados entre a concessionária e o investidor ferroviário reger-se-ão pelas normas de direito privado, não se estabelecendo qualquer relação jurídica entre o usuário investidor e a ANTT".

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Marçal Justen Filho - 63 -

11.2 – A necessidade de lei para despublicizar a atividade

193. Se não existisse obstáculo constitucional à

despublicização de uma certa atividade, ter-se-ia de reconhecer que existiriam

obstáculo legais a que tal resultado fosse produzido.

Assim se passa porque as relações jurídicas entre o

concessionário e os usuários de um serviço público são assim disciplinadas

por força de lei. A eliminação do regime de direito público pressupõe a edição

de uma lei, assim dispondo.

11.3 – O argumento da ausência de serviço público

194. Alguém poderia contrapor que o relacionamento jurídico

entre o concessionário e um investidor não está abrangido no âmbito do

serviço público. Portanto, não se configuraria a transformação de regime

jurídico: existiriam apenas relações jurídicas entre particulares.

Esse argumento não elimina a ofensa ao princípio da

legalidade. É que, reconhecida a existência de relações jurídicas puramente

privadas, incidiria a garantia constitucional do art. 5º, II, no sentido de que

ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.

Em face do princípio da legalidade, é antijurídico um ato

administrativo impor a um particular o dever de receber investimentos e de

sujeitar-se à vontade de outro particular.

Sem a existência de lei, é inviável uma resolução

administrativa determinar que o concessionário será constrangido a instaurar

relações jurídicas puramente privadas, relativas à prestação de utilidades sob

regime de direito privado. Não há fundamento legal para determinar a

obrigação de aceitar o investimento – o que consta no art. 6º, VII, da proposta

de REDUF ("São direitos dos usuários ... VII - investir na malha, ou em

material rodante que utilizará, para ampliação da capacidade instalada").

195. Ademais, o art. 40 prevê que, "Na hipótese de ausência de

manifestação da concessionária, em até cento e oitenta dias contados da

formalização de que trata o art. 38, o usuário poderá requerer a manifestação

da ANTT para assegurar a realização dos investimentos a que se propõe".

Portanto e embora a proposta pretenda tratar de uma

relação de direito privado entre um usuário e uma concessionária, assegura à

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Marçal Justen Filho - 64 -

ANTT o poder jurídico para constranger esta última a promover a contratação.

E tudo isso sem a existência de lei que assim o determine.

11.4 – Os limites da intervenção estatal

196. A disciplina do investimento compulsório infringe, ademais,

ao art. 174 da CF/88. Esse dispositivo estabelece limites para a intervenção do

Estado no âmbito da autonomia privada. A competência estatal é meramente

indicativa, sem cunho compulsório para o particular.

12 – A tutela jurídica à equação econômico-financeira dos contratos

197. A supressão da exclusividade e a instituição de

competição acarretam a eliminação da garantia constitucional atribuída aos

atuais concessionários, tendo por objeto a intangibilidade da equação

econômico-financeira das outorgas.

12.1 – A garantia constitucional e legal

198. É pacífico o entendimento de que a Constituição assegura

a intangibilidade da equação econômico-financeira de concessões outorgadas

mediante licitação.

A garantia é extraída de diversos dispositivos

constitucionais, entre os quais e principalmente o art. 37, XXI. Consiste na

determinação de que a relação original entre as vantagens e os encargos

assumidos pelo sujeito, por ocasião da formulação de sua proposta, deverá ser

respeitada ao longo da execução do contrato. E tal como exposto acima, a

legislação também protege a intangibilidade da equação econômico-financeira

das concessões.

A doutrina e a jurisprudência são unânimes quanto a esse

entendimento31.

12.2 – A frustração ao regime licitatório

199. Todas as outorgas de concessão ferroviária foram

promovidas depois da edição da Constituição de 1988, tendo sido antecedidas

de licitação.

12.2.1 – As determinações dos arts. 37, inc. XXI, e 175 da Constituição

200. A Constituição de 1988 subordinou todas as contratações

31 Para uma análise mais minuciosa da questão, consultem-se as obras do signatário Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 14 ed., São Paulo: Dialética,

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Marçal Justen Filho - 65 -

públicas, inclusive as outorgas de concessão, à prévia licitação. A

determinação consta de duas regras distintas para eliminar qualquer

controvérsia. E o art. 37, inc. XXI, determina que as contratações deverão

atender a certos requisitos, entre os quais a manutenção das condições

efetivas da proposta. Trata-se da proteção constitucional à equação

econômico-financeira dos contratos administrativos.

12.2.2 – A vedação à desnaturação do contrato

201. A obrigatoriedade da prévia licitação não elimina a

possibilidade de alteração das condições da contratação administrativa. No

entanto, impede a desnaturação do contrato. Não se admite que o objeto

licitado seja alterado substancialmente.

Pode-se aludir a uma determinação constitucional sobre a

utilidade da licitação, no sentido de que não se admitem inovações que tornem

inúteis as condições originais da disputa.

Essa vedação se aplica não apenas a favor da

Administração, mas também em face do próprio licitante.

12.2.3 – A vedação à alteração de características fundamentais da avença

202. A licitação consiste numa convocação de interessados em

disputar uma certa contratação. A seriedade da licitação depende da fixação

precisa e exata das condições da competição e da futura contratação.

Não se admite, então, que encargos de grande relevo ou

que direitos de cunho essencial sejam alterados depois de promovida a

licitação.

Mais precisamente, aquelas condições de contratação que

são fundamentais para determinar a conveniência do particular em assumir o

encargo da concessão não podem ser alteradas.

12.3 – A alteração radical das outorgas licitadas

203. As outorgas em vigor receberam modelagem precisa e

determinada, especificamente para fins de licitação.

12.3.1 - A modelagem por ocasião da outorga

204. Tal como já exposto, as outorgas foram realizadas com

base no pressuposto da divisão da malha ferroviária em áreas. Cada área foi

2010, p. 776 e s., e Teoria Geral das Concessões..., ob.cit., p. 382 e s.

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Marçal Justen Filho - 66 -

objeto de uma outorga, com a previsão de que o concessionário assumiria a

exploração da infraestrutura conjugadamente com a prestação do serviço

público de transporte de cargas.

Foi prevista a exclusividade na exploração da malha e na

prestação dos serviços, com a obrigação de prestar serviço adequado e de

cumprir as metas – estabelecidas em vista da área total da outorga.

Os interessados dispuseram-se a participar em vista

dessas condições. Os atuais concessionários sagraram-se vencedores nos

certames realizados em virtude de formularem a proposta mais vantajosa. Mas

tal proposta foi apresentada em vista da concepção do empreendimento.

205. Em suma, os atuais concessionários assumiram

obrigações em vista das condições previstas para a outorga.

Mais ainda, as outorgas refletem as condições constantes

das licitações ocorridas, as quais não podem ser ignoradas.

12.3.2 - As modificações pretendidas

206. Todavia, a reforma contempla inovações radicais na

exploração dos empreendimentos.

207. Em primeiro lugar, existirá a eliminação da exclusividade,

sob os dois prismas apontados. Não haverá mais exclusividade no tocante à

utilização das infraestruturas nem existirá ela quanto aos serviços de

transporte de carga.

208. Em segundo lugar, as concessionárias permanecerão

investidas no dever jurídico de implantar, conservar e ampliar as

infraestruturas, o que envolve obrigações de grande relevo, as quais

reverterão em benefício das competidoras.

Portanto, essas despesas serão conjugadas com aquelas

atinentes à operação dos serviços. No entanto, tais serviços serão sujeitos a

regimes remuneratórios diversos. Alguns serviços envolverão remuneração

mais elevada do que outros. Logo, alguns usuários serão beneficiados por

tarifas mais reduzidas do que as praticadas em face de outros.

209. Em terceiro lugar, as metas deixarão de ser fixadas em

vista do conjunto total da outorga. Serão estabelecidas por trecho e poderão

compreender outros aspectos além dos ora previstos. Isso significa que as

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Marçal Justen Filho - 67 -

concessionárias serão obrigadas a promover o serviço universal, mas deverão

atender metas diferenciadas por trechos.

Ou seja, ao invés de alocar recursos em vista da área total

da concessão, haverá a necessidade de sua distribuição regionalizada. Isso

ampliará os custos e reduzirá a competitividade das concessionárias.

O descumprimento das metas por trechos subordinará as

concessionárias a sanções.

210. Ademais, a proposta envolve a alteração da sistemática de

remuneração das atuais concessionárias, o que compreende inclusive nova

disciplina para o reajuste anual da tarifa de transportes (que passaria a

contemplar índices de cumprimento de metas).

12.3.3 – A alteração qualitativa do objeto da concessão

211. A disciplina original da licitação não contemplava tais

regras. Se as tivesse contemplado, outras teriam sido as outorgas promovidas.

As modificações promovidas, especialmente quando

consideradas em seu conjunto, evidenciam a alteração da identidade do objeto

licitado. Não se trata de simples alterações secundárias, mas de inovação

radical, que afasta direitos essenciais e introduz obrigações extremamente

graves e severas para os atuais concessionários.

Em síntese, se as outorgas tivessem sido promovidas de

acordo com as condições ora introduzidas, as atuais concessionárias

possivelmente teriam formulado propostas diversas – ou, mesmo, não teriam

participado do certame.

Assim se passa porque as modificações cogitadas são

essenciais e incompatíveis com o objeto das licitações verificadas. Por isso,

ofendem a disciplina constitucional atinente ao tema.

12.4 – Inaplicabilidade do argumento da mutabilidade do contrato

212. Não cabe contrapor que o Poder Concedente dispõe de

competência para adequar e adaptar as condições da prestação do serviço.

Mas há limites para essa competência. Não é facultado ao poder concedente

desnaturar a outorga licitada e contratada.

No caso, as modificações previstas são graves o suficiente

para desnaturar a contratação licitada. É relativamente simples a

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Marçal Justen Filho - 68 -

demonstração disso.

Suponha-se que se tivesse licitado concessão sem

garantia de exclusividade e que, no curso da contratação, fosse cogitada a

introdução de dispositivo nesse sentido. Ora, se a licitação não tivesse

contemplado a exclusividade, todos concordariam que a posterior adoção dela

seria um despropósito. Afinal, a previsão da exclusividade por ocasião da

licitação teria alterado o panorama licitatório. Outros licitantes poderiam ter

participado, os valores ofertados teriam sido diversos. Outra teria sido a

contratação, enfim.

Ora, não se passa diversamente em vista da eliminação

da garantia da exclusividade. Trata-se de uma modificação radical do objeto,

que não comporta nem sequer cogitação no sentido de recomposição da

equação econômico-financeira original.

213. A questão da outorga compulsória do direito de passagem

da malha apresenta idêntica configuração. Se tal cláusula tivesse constado do

edital de licitação, seria muito provável que os licitantes fossem

desincentivados a participar. A proposta que formularam refletiu a vontade de

participar em contratação com condições essenciais definidas.

Idênticas considerações podem ser adotadas

relativamente às demais alterações referidas.

214. Mais ainda, devem-se considerar as alterações em seu

conjunto, não isoladamente. Tomadas as inovações de modo conjugado, o

resultado é o surgimento de um novo modelo regulatório, totalmente diverso do

anterior.

215. Em suma, as modificações referidas não envolvem a

simples disciplina das chamadas cláusulas de serviço. Não se trata de definir

as condições do desempenho da atividade. São modificações que alteram a

identidade do empreendimento. Trata-se da criação de uma outra e nova

concessão, inconfundível com aquela que foi objeto da licitação.

12.5 – Ainda a frustração das condições da outorga

216. As informações divulgadas envolvem ainda o risco de

outra infração à Constituição. Cogita-se da atribuição à ANTT da competência

para limitação da remuneração por operações acessórias à realização do

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Marçal Justen Filho - 69 -

transporte. Essa inovação infringe as condições da outorga.

12.5.1 – As atividades puramente privadas

217. As atividades de transporte ferroviário envolvem algumas

atuações de cunho privado, que não apresentam vínculo com o serviço público

propriamente dito. São operações tais como carga, descarga, transbordo,

guarda, enlonamento, que não se constituem em fonte de receita alternativa e

não integram a concessão.

Essas atividades não integram a outorga e podem ser

desenvolvidas pelo interessado ou por qualquer outra pessoa. Logo e como

regra, o art. 170 e seu parágrafo único da Constituição excluem o cabimento

de introdução de restrições ao seu desenvolvimento por meio de ato

administrativo.

12.5.2 – A ausência de competência regulatória

218. Tratando-se de atividade puramente privada, não existe

competência normativa para a fixação de limites por parte da ANTT. Nesse

ponto, prevalece a livre iniciativa e a livre concorrência – precisamente o

fundamento, aliás, invocado para as alterações propugnadas.

Incide ao caso o art. 174 da Constituição, que determina

que a intervenção do Estado será meramente indicativa para o setor privado,

naquilo em que envolver atividades privadas. Por força do próprio art. 170, inc.

IV, não é facultado a um decreto atribuir competência para uma agência

reguladora dispor sobre esse tema. Aliás, e sob esse prisma, existe também

infração ao princípio da legalidade, eis que a competência administrativa não

pode ser criada por meio de decreto.

12.5.3 – A explícita disciplina por ocasião da outorga

219. Ademais, essas atividades foram objeto de expressa

disciplina por ocasião da licitação. Segundo os instrumentos contratuais, ditas

atividades não compreendidas no objeto da concessão, de cunho acessório,

não integrariam as receitas alternativas e seriam livremente desenvolvidas por

parte do concessionário.

Isso significa que, embora tais receitas não tenham sido

diretamente consideradas para fins da formulação da proposta, a oportunidade

de seu desempenho se constituiu numa condição da outorga. Ao considerar a

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atratividade do negócio, o licitante tomou em vista a possibilidade de

desempenho dessa atividade. Portanto, alterar a disciplina do tema envolve a

modificação de condição essencial da disputa. Isso infringe o princípio da

vinculação do poder concedente às condições da outorga (Constituição, arts.

37, inc. XXI, e 175).

220. De todo modo, toda argumentação no sentido de que a

proposta de alteração regulatória consistiria em uma simples disciplina das

condições de serviço esbarra na constatação de que se está a tratar da

remuneração auferida pelo concessionário. E é inquestionável que a disciplina

da remuneração do concessionário (ou as “cláusulas financeiras” do contrato)

nunca pode ser interpretada como condição da prestação do serviço (ou como

“cláusulas de serviço”)32.

12.6 – Ainda a infração à isonomia

221. Não se contraponha que as propostas não acarretariam a

quebra da exclusividade dos concessionários, mas apenas produziriam algum

tipo de benefício para os usuários.

Em qualquer caso, a criação de tais benefícios configura

uma discriminação entre os usuários do serviço, produzindo-se um benefício

tarifário não previsto por ocasião da outorga. Essa inovação encontra dois

obstáculos jurídicos.

222. Há dois fundamentos constitucionais que estabelecem a

vedação à discriminação entre usuários. Primeiro, há o princípio da isonomia,

disposto no art. 5º, caput, da CF. Depois, e especificamente para o âmbito da

Administração Pública, há o princípio da impessoalidade, previsto no art. 37,

caput, da CF.33

Por decorrência, as tarifas praticadas no serviço público

deverão ser as mesmas para todos os usuários em situação equivalente. A

32 É pacífica a distinção entre cláusulas de serviço e cláusulas financeiras e a limitação da mutabilidade contratual às cláusulas de serviço. Para consulta, confira-se MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, ob. cit., p. 263. 33 CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO explicita que a aplicação do princípio da impessoalidade na prestação de serviços públicos traduz a “inadmissibilidade de discriminações entre os usuários” (Curso de Direito Administrativo, 27. ed., São Paulo: Malheiros, p. 678). No mesmo sentido, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO assevera: “Pelo princípio da igualdade dos usuários perante o serviço público, desde que a pessoa

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Marçal Justen Filho - 71 -

diferenciação somente é cabível se houver razão técnica ou de custo

específico, proveniente do reconhecimento da distinção entre segmentos de

usuários (art. 13 da Lei nº 8.987).

223. Nesse contexto, somente pode existir discriminação entre

usuários na medida em que eles se apresentem como desiguais. Ou seja, é

indispensável que se verifique a existência de um elemento de desigualdade

preponderante, para justificar a medida discriminatória.

12.7 – A violação ao art. 35 da Lei nº 9.074

224. Além disso, a concessão de benefícios tarifários também

configura frontal infração ao disposto no art. 35 da Lei nº 9.074, assim redigido:

"A estipulação de novos benefícios tarifários pelo poder concedente, fica

condicionada à previsão, em lei, da origem dos recursos ou da

simultânea revisão da estrutura tarifária do concessionário ou

permissionário, de forma a preservar o equilíbrio econômico-financeiro

do contrato".

Essa regra legal proscreve a prática de introduzir, depois

de promovida a outorga, benefícios ou vantagens para determinadas

categorias de usuários – de modo a reduzir a receita tarifária que seria obtida

nos termos originais da outorga.

225. Ora, assegurar a algumas categorias de usuários a

possibilidade de um tratamento diferenciado, com tarifas mais reduzidas do

que as previstas por ocasião da outorga, configura prática submissível

diretamente ao art. 35 da Lei nº 9.074.

Portanto, essa solução apenas poderia ser cogitada se

houvesse a previsão em lei de um instrumento apto a assegurar a obtenção de

recursos compensatórios da redução da receita proveniente do benefício para

certas categorias de usuários.

12.8 - A figura do Usuário Operador de Transporte Multimodal

226. Como se não bastasse, as propostas preveem benefícios

indeterminados e incertos em favor de uma categoria imprecisa, consistente no

"usuário operador de transporte multimodal".

satisfaça às condições legais, ela faz jus à prestação do serviço, sem qualquer distinção de caráter pessoal” (ob. cit., p. 108).

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Marçal Justen Filho - 72 -

O art. 44 da proposta de REDUF determina que "O

Operador de Transporte Multimodal - OTM, habilitado pela ANTT, nos termos

da legislação aplicável, poderá prestar serviços acessórios e contratar serviços

de transporte necessários à realização de sua atividade".

Essa regra deixa abertas as portas para inovações

imprevisíveis. Existe o risco de que essa categoria de usuários seja investida

em poderes próprios de transportadores ferroviários. Isso poderia importar a

criação de uma categoria de operador destituído da condição de

concessionário de serviço público. Seria uma espécie de autorizatário, a quem

seriam reconhecidos direitos incompatíveis com o atual marco regulatório.

227. A ausência de disciplina específica do OTM representa um

defeito inadmissível da proposta regulatória. Importa criar uma indeterminação

que gera insegurança sobre o modelo a ser adotado.

12.9 - A impossibilidade constitucional e legal de supressão superveniente

228. A modelagem da concessão deve ser respeitada ao longo

do prazo de vigência da outorga. A garantia da intangibilidade da equação

econômico-financeira é essencial para a formulação da proposta apresentada

e para a assunção das obrigações.

O poder concedente não está autorizado a eliminar essa

garantia ao longo do contrato. Não o pode fazer de modo direto. Mas também

não lhe é facultado promover a destruição da garantia de modo indireto.

12.10 – A introdução de competição e o desaparecimento da garantia

229. A garantia da intangibilidade da equação econômico-

financeira deixa de existir quando se elimina a exclusividade e se introduz a

competição no setor. Assim se impõe porque o valor da tarifa assegurada ao

concessionário se torna irrelevante em vista da disponibilização de outros

operadores, atuando em regime de livre concorrência.

Ou seja, o montante da tarifa garantida ao licitante deixa

de assegurar a ele a percepção de uma remuneração previamente estimada

porque passam a existir competidores legitimados a praticar preços variados.

O universo de usuários deixa de ser cativo.

Em suma, todas as projeções realizadas pelo sujeito se

tornam inaplicáveis e a remuneração por ele auferida deixa de ter qualquer

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Marçal Justen Filho - 73 -

relação com as condições originalmente previstas.

12.11 – Síntese

230. No caso concreto, as concessionárias formularam

propostas para assumirem as concessões de serviço público em questão.

Assumiram deveres e obrigações, tendo em vista, como contrapartida

essencial, a obtenção de remuneração em face dos usuários. Essa

remuneração consistia numa tarifa, cujo valor deveria ser preservado ao longo

do tempo.

231. Portanto, as propostas examinadas se configuram como

incompatíveis com a Constituição e com a Lei. A eliminação da exclusividade e

a adoção da competição acarretarão a ruptura definitiva da equação

econômico-financeira original das outorgas, sem que tal seja remediável

mediante o mecanismo de elevação de tarifas.

13 – A violação ao ato jurídico perfeito

232. Mas há outro ângulo a ser examinado, consistente na

pretensão de aplicação imediata de inovações regulatórias.

13.1 – A garantia constitucional ao ato jurídico perfeito

233. O art. 5º, inc. XXXVI, determina que a lei nova não

prejudicará o ato jurídico perfeito nem os direitos adquiridos dele decorrentes.

13.1.1 – A extensão da garantia constitucional

234. É evidente que a garantia constitucional se aplica não

apenas em face da lei, mas também no tocante ao ato administrativo (inclusive

às resoluções editadas por agências reguladoras)34. O ato administrativo

posterior subordina-se às mesmas limitações impostas à lei.

235. Por outro lado, é inquestionável que a garantia

constitucional alcança os efeitos jurídicos dos atos pretéritos. Aplica-se a

norma (legal ou regulamentar) vigente à época do aperfeiçoamento do ato

jurídico. Os efeitos derivados, ainda que se prolonguem no tempo, continuam

sujeitos à disciplina da norma que vigorava quando da consumação do ato

34 Nesse sentido, confira-se julgado do STJ: “os direitos dos usuários de linha telefônica são os fixados em disposições regulamentares, que podem ser modificadas, unilateralmente, pela administração, desde que não torne inviável a prestação do serviço, respeitando-se, apenas, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido sob a égide do regulamento” (MS 5.479/DF, 1ª S., Rel. Min. JOSÉ DELGADO, j. em 10.06.1998, DJ de 21.09.1998).

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Marçal Justen Filho - 74 -

jurídico.

Nesse sentido, pode-se lembrar a lição de CLÁUDIA

TOLEDO: “A irretroatividade é regra porque somente com sua garantia se

possibilita a certeza a segurança jurídica, ou seja, o indivíduo pode contar com

a proteção das situações jurídicas já formadas, como com sua imutabilidade,

por quanto validamente criadas, pelo que passa também a confiar nas

disposições do ordenamento jurídico, podendo prever como sua conduta nelas

será enquadrada”35.

236. Assim se passa, em especial, com os contratos

administrativos antecedidos de licitação. Aplica-se à contratação administrativa

o regime jurídico adotado por ocasião da licitação. Aliás, está assim previsto

no próprio art. 121 da Lei nº 8.666 ("O disposto nesta Lei não se aplica às

licitações instauradas e aos contratos assinados anteriormente à sua

vigência...").

13.1.2 – A disciplina do edital e do contrato

237. No caso concreto, os editais e contratos previram uma

pluralidade de direitos e obrigações para as partes. Houve a configuração de

um modelo preciso e exato de outorga, caracterizado pela exclusividade, tal

como previsto, usualmente, na Cláusula Décima-Oitava.

“CLÁUSULA DÉCIMA-OITAVA – DAS DISPOSIÇÕES GERAIS

I) A CONCESSÃO tem caráter de exclusividade da exploração e do

desenvolvimento do transporte ferroviário de carga pela

CONCESSIONÁRIA na faixa de domínio da MALHA SUL. A

exclusividade não impedirá a travessia da faixa de domínio por outras

vias, respeitadas as normas legais e as condições de operação da

CONCESSIONÁRIA...”

13.2 – A função de garantia da licitação

238. Nesse ponto, cabe agregar uma questão usualmente

ignorada no estudo das licitações. Trata-se da função de garantia

desempenhada em favor do particular contratado.

35 Direito Adquirido e Estado Democrático de Direito, São Paulo: Landy, 2003, p. 193.

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Marçal Justen Filho - 75 -

A licitação destina-se a fins essenciais (seleção da

proposta mais vantajosa, promoção da isonomia), mas também apresenta

outra finalidade. Trata-se de garantia ao particular contratado em face de

inovações radicais pretendidas pelo poder público.

239. Por meio da licitação, a Administração convoca os

particulares para formularem propostas de contratação. Tais propostas são

concebidas em vista das condições estabelecidas no ato convocatório. Isso

significa que o particular dispõe de condições de previsão acerca do conteúdo

das obrigações que assumirá e dos direitos em que será investido.

Assim, o reconhecimento de competência para a alteração

unilateral das condições contratuais não vai ao ponto de promover inovações

radicais, que afetem a essência das obrigações assumidas.

Se o particular formula proposta para um determinado

empreendimento, não se admite que o Estado invoque a competência

regulatória para desconstituir aquela atividade e substituí-la por outra. Não

cabe ao Estado, depois de promover uma licitação, subverter radicalmente as

condições da execução do contrato.

240. Essa garantia se aplica não apenas em face da autoridade

administrativa que detém competência para promover alteração unilateral do

contrato. Também alcança o titular da competência para editar normas gerais.

A edição de normas gerais supervenientemente à licitação

não pode afetar a contratação dela decorrente.

Trata-se de uma garantia ao sujeito que participou da

licitação, formulou proposta e assumiu direitos e obrigações definidos e

determinados.

13.3 – A alteração do objeto da outorga

241. Ora, existe a proposta de alteração radical da configuração

da outorga, o que é juridicamente descabido. O tema foi analisado acima,

aplicando-se as razões anteriores no sentido da vedação à mudança

substancial do objeto contratual.

13.3.1 – Os dois obstáculos à alteração

242. Essa modificação encontra dois obstáculos. O primeiro, já

referido, consiste na identidade da licitação. O segundo reside no ato jurídico

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perfeito. A nova regulamentação não pode produzir a modificação essencial da

outorga.

13.3.2 – A vedação a modificações estruturais e substanciais

243. Deve-se reiterar que a questão não envolve a competência

para modificação unilateral das condições da prestação do serviço. A

exclusividade prevista em favor do outorgado não é uma cláusula de serviço,

que possa sofrer modificação para melhor adequação da prestação. Assim,

por exemplo, a exclusividade não pode ser suprimida, se prevista como

condição estruturante do empreendimento. Nem poderia ser introduzida, se

não tivesse sido prevista por ocasião da licitação.

13.3.3 – As inovações substanciais

244. O tema já foi acima referido, no sentido da inaplicabilidade

do instituto da alteração do contrato administrativo. As inovações são radicais

e alteram o objeto das outorgas anteriormente realizadas. Criam obrigações e

eliminam direitos e poderes em termos qualitativos, de modo a alterar as

condições de exploração e a natureza do empreendimento.

As inovações envolvem, essencialmente, a eliminação da

exclusividade, a introdução de competição com terceiros não titulares da

concessão sobre a área, a modificação do conceito de direito de passagem, a

alteração do regime de metas globais para metas por trechos, a pretensão de

submeter atividades acessórias ao regime de serviço público.

245. A dimensão quantitativa e qualitativa das alterações

previstas conduzem à configuração de alteração substancial das outorgas. O

novo marco regulatório, se vier a ser aplicado, configurará uma substituição da

outorga realizada anteriormente. Esse resultado não pode ser imposto nem por

lei, muito menos por via de ato administrativo.

Bem por isso, as alterações pretendidas não se

enquadram no âmbito da competência para introduzir unilateralmente as

modificações do contrato. Tampouco tais alterações comportam enfrentamento

mediante reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. 

14 – A ofensa à isonomia

246. Por outro lado, a competição entre concessionários e

certas categorias de usuários conduz à violação da isonomia.

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14.1 – A cumulação de encargos e a transferência de benefícios

247. Um problema fundamental residirá em que as

concessionárias permanecem não apenas com a atribuição de prestação dos

serviços de transporte. Ademais disso, recairá sobre elas deveres

indispensáveis à existência do sistema em seu todo.

Caberá às concessionárias a responsabilidade pela

execução de obras públicas e por todas as atividades de manutenção da

malha, oferta e ampliação da capacidade de tráfego, inclusive o controle

operacional do material rodante.

Estarão obrigadas a realizar desembolsos extremamente

significativos, especialmente para assegurar a integridade e a ampliação da

malha ferroviária. Além disso, arcarão com o serviço público de transporte

ferroviário.

212. Em contrapartida, admite-se a possibilidade de que outros

concessionários assumam a prestação do serviço valendo-se dos

investimentos e desembolsos por eles não realizados. Ademais, algumas

categorias de usuários serão investidos no poder jurídico de obter um

tratamento preferencial, inclusive para o efeito de ceder esse direito a terceiros

– competindo diretamente com a concessionária.

Essa questão é dramática porque a indústria ferroviária

envolve capital intensivo e a recuperação dos investimentos faz-se no longo

prazo. A modicidade tarifária somente pode ser obtida mediante a cobrança de

valores mais reduzidos, diluídos ao longo do tempo.

Mas esses competidores não necessitarão fazer os

investimentos em infraestrutura exigidos das concessionárias. Terão acesso à

malha pagando as tarifas diluídas cobradas pela concessionária. E competirão

com essa concessionária sem terem realizados investimentos equivalentes.

Ou seja, os investimentos na infraestrutura realizados

pelas concessionárias reverterão em benefícios para as suas competidoras.

248. Não se contraponha que a proposta apenas assegura

alguns direitos diferenciados em favor de certas categorias de usuários. Essa

afirmativa não retrata adequadamente a proposta.

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Marçal Justen Filho - 78 -

Em primeiro lugar, a reforma propõe a possibilidade de

uma concessionária captar carga na área da outra. Portanto, trata-se de

autorizar o fenômeno do free rider: um agente econômico poderá ingressar no

mercado sem arcar com os custos inerentes e indispensáveis a tanto,

beneficiando-se dos gastos realizados por outrem.

Em segundo lugar, a proposta de REDUF estabelece que

um direito essencial do usuário consiste na "liberdade para transferir a

terceiros a capacidade de transporte contratada e não utilizada, mediante

contrato próprio" (art. 6º, VI). Logo, o sujeito estará comercializando o acesso à

rede, o que importa competição com o próprio concessionário. Nesse caso, até

se poderia reconhecer o surgimento de um direito de exclusividade em favor

do terceiro. Aquilo que se nega ao concessionário é assegurado ao terceiro: a

possibilidade de utilizar a infraestrutura sem competição da própria

concessionária.

14.2 – As diversas ordens de vantagens competitivas

249. Portanto, os usuários-competidores poderão ofertar tarifas

muito mais reduzidas em virtude de diversas ordens de vantagens em face das

concessionárias. E mesmo as concessionárias competirão entre si em uma

mesma malha, com vantagens diversas.

250. Em primeiro lugar, as concessionárias adquiriram o direito

à outorga em licitações de maior lance. Na generalidade dos casos, houve a

fixação de um preço mínimo, para pagamento ao longo do prazo da

concessão. Sagrou-se vencedor o licitante que ofertou o maior valor. Além

disso, foi estabelecido o dever de compartilhar com o Poder Público receitas

alternativas, complementares ou de projetos associados.

Ou seja, existe um custo inerente à aquisição da

concessão, que recai somente sobre as concessionárias.

Mas, de acordo com o marco regulatório proposto, os

novos competidores não incorreriam nessas despesas, que são

significativamente onerosas. Portanto, o custo de acesso à infraestrutura seria

inexistente ou irrisório para as novas competidoras.

Reitere-se que as despesas não operacionais da

concessionária não são consideradas para compor a tarifa de direito de

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passagem (Procedimentos de Operações, art. 10). Mas essas despesas são

essenciais para a existência da concessão.

251. Em segundo lugar, as concessionárias estão obrigadas a

prestar serviço universal, enquanto as competidoras poderão escolher as

oportunidades vantajosas para atuar.

Isso significa, em termos econômicos, que as atuais

concessionárias são obrigadas a praticar uma tarifa por custo médio, enquanto

as novas competidoras poderão adotar tarifa por custo marginal. Em outras

palavras, a tarifa das concessionárias custeia o conjunto integral dos serviços

universais, enquanto a tarifa dos novos competidores basear-se-á no custo

específico e limitado do serviço prestado.

252. Em terceiro lugar, a proposta de REDUF impõe um

conjunto de direitos em favor dos usuários exclusivamente em face das

concessionárias. O Título II disciplina o tema da responsabilidade e da

qualidade do serviço. E, tal como acima referido, prevê regras aplicáveis

exclusivamente (na quase totalidade) apenas às concessionárias de serviço

público.

Ou seja, o REDUF não contempla direitos e garantias

essenciais para os usuários dos serviços explorados sob regime de direito

privado. Ao menos, são parcas as referências a essa situação.

O atendimento às determinações do REDUF imporá às

concessionárias elevado custo – o qual não será arcado pelos seus

competidores.

253. Em quarto lugar, as concessionárias serão constrangidas

ao cumprimento das metas por trechos. Segundo os Procedimentos de

Pactuação, tais metas serão vinculantes apenas para as concessionárias (art.

1º). Isso significa a ausência de metas para os demais competidores.

As concessionárias, se descumprirem as metas de

produção, estarão sujeitas a sancionamento (Procedimentos de Pactuação,

art. 8º), eis que isso configuraria violação às condições da concessão.

Não se contraponha que a ausência de cumprimento da

meta por parte do competidor produziria efeito econômico negativo

(correspondente à ausência de receita). É evidente que idêntico fenômeno se

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passará relativamente à concessionária, em caso de descumprimento da meta.

A diferença residirá em que, além da redução da receita, a concessionária

estará sujeita a outras sanções.

254. Em quinto lugar, as concessionárias serão subordinadas

ao regime de remuneração mediante tarifa, sujeito ao controle da ANTT. Já os

demais competidores serão livres para praticar as tarifas que melhor lhes

aprouver.

255. Em sexto lugar, as competidoras não serão constrangidas

a promover gastos com a infraestrutura. Já as concessionárias serão

obrigadas a isso, sob pena de caducidade da concessão.

Aliás, pode haver casos em que os pesados investimentos

necessários à implantação, ampliação e modernização da infraestrutura

tenham esgotado a capacidade de endividamento da concessionária. Logo,

haveria dificuldades para realizar investimentos para competir em igualdade de

condições com esses terceiros.

256. Em sétimo lugar, a concessão é um vínculo com prazo

determinado, enquanto a autorização não contempla prazo. Logo, os usuários-

competidores poderão realizar investimentos com previsão de amortização em

prazo indeterminado. Já as concessionárias serão obrigadas a cobrar tarifas

que assegurem a amortização dos investimentos no prazo da outorga.

257. Em oitavo lugar, o material rodante e outros bens

necessários aos serviços de transporte se configuram, na grande maioria,

como bens reversíveis ao final da concessão. Ou seja, o seu domínio será

transferido para o poder concedente. Como decorrência, a tarifa compreende

uma parcela para amortizar o custo de tais bens, de modo a assegurar que o

Poder Público adquira o seu domínio. Já o material rodante utilizado pelos

usuários-competidores não serão reversíveis. Portanto, poderão ser utilizados

segundo as tarifas que melhor aprouverem a eles.

258. Como decorrência, a disciplina concebida outorga direitos

equivalentes para operadores em situação distinta. Consagra-se uma situação

de privilégio e vantagem artificial para terceiros não-concessionários, que

poderão atuar com tarifas muito mais reduzidas do que as das

concessionárias.

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14.3 – A impertinência do argumento da tarifa de direito de passagem

259. Nem caberia argumentar que as concessionárias seriam

investidas na titularidade da competência para cobrança de tarifa de direito de

passagem. Tal como exposto, não existe qualquer previsão que assegure que

tal tarifa seja suficiente e satisfatória para a remuneração dos investimentos

realizados.

Basta considerar que a cessão da capacidade será

compulsória, sendo imprecisa a solução no tocante à fixação da tarifa.

14.4 – Síntese: o regime privilegiado para os terceiros competidores

260. A proposta contempla um regime de vantagens para os

usuários-competidores em detrimento da prestação do serviço público. Essa

solução infringe a isonomia e é incompatível com a própria concepção de

concorrência. A competição econômica pressupõe identidade de regimes

jurídicos. Reservar benefícios para uma categoria de sujeitos não é compatível

com a Constituição e com o próprio regime da Lei 10.23336. 

15 – A infração ao monopólio jurisdicional: interpretação conforme

261. Outro ponto relevante reside nas constantes referências à

utilização compulsória de arbitragem para composição de litígios. Essas

passagens somente podem comportar uma interpretação conforme à

Constituição.

15.1 – A garantia do acesso ao Poder Judiciário

262. Uma das características essenciais da CF/88 (na esteira

de uma longa tradição nacional) é o monopólio jurisdicional pelo Poder

Judiciário. Tal como previsto no art. 5º, XXXV, “a lei não excluirá da apreciação

do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Nenhuma lei e nenhum ato

estatal pode eliminar a garantia de invocação da tutela jurisdicional perante o

Poder Judiciário para defesa de qualquer interesse.

Trata-se de um direito fundamental, que dá identidade à

ordem jurídica brasileira e que se constitui em cláusula pétrea.

36 Nesse sentido, ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO assinala que “O importante, na atribuição de distintos regimes jurídicos aos serviços públicos de um mesmo setor, é a consonância da diferenciação aplicada com o Princípio da Igualdade, admitindo-se apenas as distinções que se justifiquem em virtude das peculiaridades de cada atividade” (Direitos dos..., ob. cit., p. 435).

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Marçal Justen Filho - 82 -

15.2 – O instituto da arbitragem

263. A garantia do monopólio jurisdicional não impede a

existência do instituto da arbitragem, que se configura como um equivalente

jurisdicional, na fórmula tradicional. Ela consiste no exercício, por sujeitos

particulares, da competência para compor um litígio, proferindo decisão com

efeitos equivalentes a uma sentença produzida pelo Poder Judiciário.

264. A arbitragem apenas pode ser instituída por via do

consenso entre as partes. Não se admite que uma disposição legal imponha a

adoção compulsória da arbitragem para composição de litígios. Em outras

palavras, a arbitragem é uma manifestação indissociável da autonomia

contratual.

265. A Lei nº 9.307 determina, no art. 1º, que “as pessoas

capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios

relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Já o art. 852 do Código Civil

estabelece que “é vedado o compromisso para a solução de questões de

estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter

estritamente patrimonial”.

15.3 – A inconstitucionalidade da imposição compulsória da arbitragem

266. Portanto, não é cabível que uma agência reguladora

pretenda estabelecer que as divergências e discordâncias geradas no âmbito

regulado ou decorrente de suas decisões serão objeto compulsoriamente de

arbitragem. Essa determinação infringe a Constituição e as características do

instituto da arbitragem.

15.4 – A inconstitucionalidade da imposição de arbitragem pela ANTT

267. Muito menos cabível seria estabelecer que a arbitragem

seria desenvolvida de modo compulsório no âmbito da estrutura administrativa

da ANTT. Não há a menor viabilidade jurídica de impor aos litigantes a

composição de um tribunal arbitral por meio da indicação de três servidores

por uma autoridade administrativa.

268. A essência da arbitragem reside não apenas na autonomia

das partes, que se reflete inclusive na escolha dos árbitros mediante atuação

concertada. Também existem impedimentos a que assumam a condição de

árbitros sujeitos destituídos da mais absoluta autonomia funcional.

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Marçal Justen Filho - 83 -

Portanto, muito menos viável é a solução porque se

pretende que "... o Superintendente de Processos Organizacionais competente

nomeará comissão composta por três servidores para condução do

procedimento".

Ora, a prestação jurisdicional depende da existência de

garantias ao jurisdicionado – entre as quais se encontram a vitaliciedade, a

inamovibilidade e outras características inerentes apenas à magistratura.

Lembre-se que tais são garantias outorgadas não em favor do magistrado,

mas como instrumento destinado a promover a imparcialidade das decisões.

15.5 – A interpretação conforme

269. A pretensão de instituir uma arbitragem compulsória, sem

lei e conduzida por servidores públicos indicados pela Agência, infringe o

sistema constitucional vigente.

Justamente por isso, não há validade também das regras

dos §§ 3º e 4º do art. 55 da REDUF, que pretendem impor sancionamento ao

sujeito que se recusar a submeter-se ao procedimento de resolução de

conflitos.

270. Assim, somente se pode admitir uma interpretação

conforme para todas as propostas que se utilizam da expressão “arbitragem”.

Deve-se reputar que a expressão não foi utilizada em sentido técnico-jurídico e

que não se trata da arbitragem propriamente dita. As propostas apenas podem

estar-se referindo a um procedimento administrativo orientado à composição

de litígios, sem natureza compulsória e que não configura equivalente

jurisdicional.

16 – O descabimento da invocação à supremacia do interesse público

271. Os defeitos e obstáculos acima referidos não podem ser

eliminados mediante a invocação da supremacia do interesse público. A

validade das modificações do marco regulatório se subordina à observância do

modelo constitucional democrático consagrado pela Constituição.

16.1 – A concepção totalitária da supremacia do interesse público

272. Anteriormente à Constituição de 1988, vigorava uma

concepção autoritária e prepotente do interesse público. Prevalecia a proposta

da ausência de direitos individuais oponíveis ao “interesse público”. O

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Marçal Justen Filho - 84 -

interesse público, identificado como o interesse da “Nação”, do “Povo”, do

“Estado” ou da “Maioria”, autorizava a supressão dos direitos (senão da própria

existência) dos particulares. Essa concepção defendia que não existem

direitos subjetivos privados oponíveis ao interesse público.

Esse entendimento é incompatível com o sistema político e

o modelo jurídico adotados com a Constituição Federal de 1988.37

16.2 – A concepção democrática da supremacia do interesse público

273. A democracia consiste não apenas na consagração do

voto popular e na temporariedade dos mandatos eletivos. Também envolve um

sistema de limites intransponíveis à vontade do Estado e às decisões dos

governantes (e das maiorias populares). A democracia se caracteriza pelo

reconhecimento de direitos e garantias individuais e coletivas, que são

protegidos inclusive em face do interesse do “Povo”, do “Governo” ou da

“Maioria”.

O “interesse público” somente autoriza o sacrifício de

direitos e interesses privados nos limites da Constituição e desde que

preservados os direitos fundamentais.

16.3 – A insuficiência do argumento da supremacia do interesse público

274. Isso significa que nenhuma decisão estatal se sustenta

mediante a pura e simples invocação da supremacia do interesse público. Um

ato legislativo ou uma decisão administrativa somente serão válidos se forem

compatíveis com a Constituição e respeitarem os direitos fundamentais por ela

protegidos.

A pretensa compatibilidade com o interesse público não

transforma em válida uma decisão estatal infringente da Constituição,

violadora das leis ou incompatível com atos jurídicos perfeitos. Essa é a

essência da Democracia conquistada pela Nação brasileira, que vincula

inclusive e especialmente os governantes.

17 – Conclusão

275. Em face do exposto, apresento as seguintes respostas

37 Nas palavras de FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO, “...as transformações havidas na sociedade e no Estado contemporâneos põem em xeque a concepção clássica de prevalência absoluta e indesviável do Estado sobre a sociedade; da Administração sobre o administrado; do público sobre o privado” (ob. cit., p. 156).

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Marçal Justen Filho - 85 -

para os quesitos formulados.

a) Poder-se-ia, nos termos propostos pela ANTT, alterar todo o

marco regulatório do serviço público ferroviário, inclusive para as

concessões já celebradas?

Resposta: Não. O marco regulatório do serviço público ferroviário é

composto por normas de nível constitucional, legal e regulamentar.

Alterações promovidas por agências reguladoras devem

necessariamente observar a disciplina constitucional e legal. No

caso concreto, as informações disponíveis indicam a ausência da

adoção do procedimento devido para a alteração das normas

regulamentares, tal como a pretensão de ignorar limites e garantias

constitucionais e legais.

b) As mencionadas alterações no marco regulatório podem ser

veiculadas por resolução da ANTT?

Resposta: Não. Resolução emanada de agência reguladora não é o

instrumento jurídico adequado para introduzir inovações radicais

num marco regulatório produzido por normas constitucionais e

legais. A Constituição impõe a obrigatoriedade da existência de

serviço público universal de transporte ferroviário. A Lei nº 10.233

prevê que os serviços regulares de transporte ferroviário de cargas

serão prestados de modo associado com a exploração de

infraestrutura ferroviária, mediante concessão. Não é válida

alteração dessa disciplina mediante a edição de uma resolução. Nem

é cabível uma resolução instituir deveres de contratação

subordinados ao direito privado e que não se enquadram no âmbito

do direito público.

c) Uma alteração dessa magnitude importa a eliminação da garantia

à intangibilidade da equação econômico-financeira das outorgas em

vigor?

Resposta: Sim. A relação original entre encargos e vantagens foi

estabelecida mediante a previsão contratual da prestação do serviço

em regime de exclusividade, a partir de tarifas aptas a assegurar a

amortização dos investimentos, a cobertura das despesas e a

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Marçal Justen Filho - 86 -

obtenção de uma margem de lucro. A eliminação da exclusividade

significa que os usuários passarão a ter a alternativa de recorrer a

outro prestador de serviço, o qual pratica preços livres. Tal opção

regulatória apenas pode ser adotada na oportunidade da outorga da

concessão. A sua adoção em momento posterior frustra o modelo

adotado por ocasião da licitação e acarreta a supressão da garantia

da intangibilidade da equação econômico-financeira da outorga,

constitucionalmente assegurada ao concessionário. Portanto, as

propostas consideradas pela ANTT são incompatíveis com a

Constituição e com a Lei.

d) Uma alteração dessa magnitude poderia ser viabilizada mediante

mero reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos já celebrados? Em

caso negativo, seria ela nula, inclusive por representar uma rescisão

indireta dos contratos de concessão sem os requisitos e consequências

legalmente impostas a esta modalidade de extinção contratual?

Resposta: Não. A dimensão qualitativa e quantitativa das inovações

descaracteriza uma simples modificação das cláusulas de serviço e

torna irremediável o comprometimento da equação econômico-

financeira dos contratos. Existe uma transformação do objeto

contratual e uma desnaturação da identidade do contrato licitado e

outorgado em favor das concessionárias. Como consequência, as

disposições do decreto se configurarão como inválidas, se vier ele a

ser editado. A invalidade decorrerá da infração a diversos

dispositivos constitucionais e legais, bem como às condições

constantes das outorgas em vigor. Justamente por isso, a

implementação das medidas em questão configurará atuação

antijurídica do Poder Público e configurará violação às condições

pactuadas, autorizando as concessionárias a promover as medidas

adequadas para rescisão do contrato por inadimplemento do poder

concedente.

e) Admite-se que a ANTT edite ato normativo para disciplinar os

preços praticados pela concessionária em atividades de natureza privada

não incluídas no objeto da concessão de serviço público?

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Marçal Justen Filho - 87 -

Resposta: Não. Ou as atividades referidas estão incluídas no âmbito

do serviço público ou nele não se compreendem (apresentando

natureza privada). Na primeira alternativa, tais atividades se

sujeitariam ao regime integral de direito público. No segundo caso,

seriam disciplinadas pelo direito privado. O Poder Público

reconheceu formalmente que tais atividades não integram o âmbito

do serviço público concedido – tal consta, de modo expresso, no

corpo dos editais e contratos de concessão. Logo, o tabelamento de

tais preços privados configura infração aos arts. 170, parágrafo

único, e 174 da Constituição Federal. Há ofensa à livre iniciativa.

Aliás, pode haver ofensa inclusive à isonomia, porque o tabelamento

acabaria sendo praticado apenas em relação às concessionárias,

não prevalecendo em face dos terceiros (que podem livremente atuar

nessa atividade).

f) A imposição de novas obrigações, com a geração de custos

adicionais de valor extremamente elevado para a concessionária, pode

ser imputada unilateralmente pela ANTT às concessionárias?

Resposta: Não. A criação de obrigações de grande dimensão

econômica, tal como a eliminação de passagens em nível, afeta a

identidade da outorga e não se enquadra na competência para

alteração unilateral das condições da prestação do serviço. Não é

cabível promover a criação de obrigações que envolvam a execução

de obras públicas dotadas de autonomia e custos aptos a afetar

intrinsecamente a outorga.

g) Por ocasião da desestatização da malha ferroviária nacional,

além da formalização dos contratos de concessão em caráter de

exclusividade, na dicção da sua Cláusula Décima Oitava, foram firmados

contratos de arrendamento dos bens vinculados à prestação do serviço

público de transporte ferroviário, cujo objeto é o arrendamento dos bens

operacionais necessários à exploração do aludido serviço. O parágrafo

segundo da cláusula primeira do contrato de arrendamento estabelece

que o arrendamento “é feito com vinculação expressa e direta ao Contrato

de Concessão...”. Considerando esse cenário e o marco regulatório de

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outros setores (e.g. telecomunicações e seus segmentos telefonia fixa; TV

a cabo), mostra-se factível a exploração e o compartilhamento dos bens

operacionais arrendados, especialmente o conjunto de instalações e

equipamentos que compõem a infraestrutura e a superestrutura da

ferrovia, com outros operadores ferroviários, conforme pretendem as

propostas apresentadas pela ANTT?

Resposta: Não. Não é juridicamente viável promover o

compartilhamento da exploração dos bens que compõem a

infraestrutura e a superestrutura da ferrovia, nem impor soluções

jurídicas que resultem em competição na área das concessões

outorgadas. Isso porque as outorgas vigentes previram a sua

exploração em regime de exclusividade. A eliminação da

exclusividade acarreta a desnaturação da outorga existente,

especialmente porque acarreta a eliminação de direitos essenciais e

a criação de obrigações não existentes originalmente. A dissociação

entre a exploração da infraestrutura e a prestação do serviço

ferroviário propriamente dito pressupõe a instauração de um novo

sistema, sendo juridicamente descabido alterar as outorgas

anteriores para promover esse novo modelo. Mesmo uma reforma

legislativa quanto a esse tema teria de respeitar a vontade

constitucional de assegurar a existência do serviço público no

âmbito da atividade ferroviária. O grande óbice à adoção do regime

competitivo na prestação de serviços de transporte ferroviário de

cargas reside no risco de inviabilização do serviço público,

especialmente porque os competidores não-concessionários seriam

livres para escolher apenas os serviços rentáveis. Isso conduziria à

insolvência dos prestadores de serviço público, constrangidos a

prestar serviço universal (inclusive nas hipóteses de ausência de

rentabilidade econômica). Mais ainda, haveria os obstáculos do ato

jurídico perfeito, da intangibilidade da equação econômico-financeira

dos contratos administrativos e da identidade das licitações – que

impediriam a modificação radical das condições previstas para as

outorgas realizadas durante a década de 1990.

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Marçal Justen Filho - 89 -

h) A proposta de utilização da malha ferroviária atualmente

concedida apenas para o transporte de carga própria de determinadas

categorias de usuários seria revestida de legalidade? Tal quadro não

esbarraria no regime de exclusividade na prestação de serviços de que

gozam as atuais concessionárias e, ainda, na inviabilidade de

compartilhamento da infraestrutura e da superestrutura da ferrovia?

Resposta: A exclusividade assegurada em favor das outorgas ora

vigentes não diferencia cargas próprias e de terceiros. Essa

exclusividade é ampla e ilimitada, tanto no aspecto das cargas a

serem transportadas como no tocante à utilização da ferrovia.

Portanto, a eventual determinação no sentido de que seria cabível

outorgar autorizações, mas exclusivamente para o transporte de

carga própria, não eliminaria os obstáculos apontados, que

conduzem ao reconhecimento de sua invalidade.

i) À luz do contrato (cláusula sétima, parágrafo segundo) e do Dec.

nº 1.832 (artigo 18 e seu parágrafo único), os serviços acessórios são

remunerados por meio de “taxas” adicionais mediante negociação das

concessionárias com o próprio usuário, não são compulsórios e, ainda,

não constituem receita alternativa. Dado esse cenário, estariam as

propostas de resoluções, ao transformar essas figuras em serviços

remunerados por “tarifas”, sinalizando a sua regulação para as atuais

concessionárias? Cumpre registrar que, em que pese a nomenclatura

“taxa”, fato é que jamais houve o estabelecimento de tarifas para tais

serviços, mas apenas a divulgação dos preços praticados para cada tipo

de serviço acessório pelas concessionárias à ANTT.

Resposta: Atualmente, as operações acessórias se constituem em

atividades econômicas desenvolvidas sob regime de direito privado,

sem vínculo jurídico com a concessão. Nem sequer se configuram

como receita alternativa subordinada ao art. 11 da Lei nº 8.987. A

denominação de “taxa” utilizada presentemente não é dotada de

correção técnica, eis que configura um preço privado. Existem fortes

argumentos no sentido de que as propostas consideradas pela ANTT

pretendem incluir a remuneração por tais serviços acessórios no

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Marçal Justen Filho - 90 -

âmbito da concessão. Assim se passa porque a expressão “tarifa de

transporte” é explicitamente definida como remuneração devida à

concessionária (REDUF, art. 2º, XV). As “tarifas adicionais” foram

tratadas conjuntamente com aquelas destinadas a remunerar o

transporte (Seção I – Das Tarifas Principais e Acessórias). A

alteração de regime jurídico importa ofensa às condições previstas

originalmente por ocasião da licitação, eis que acarreta a ampliação

do próprio objeto da outorga.

j) Os contratos vigentes preveem que as concessionárias e o Poder

Concedente pactuarão metas anuais de produção e de redução de

acidentes para a malha ferroviária como um todo, devendo as

concessionárias prover os investimentos necessários para o alcance das

referidas metas. A proposta de reforma regulatória prevê que essas metas

deverão ser pactuadas para cada trecho ferroviário, com a realização de

investimentos também por trecho, e enuncia, ainda, metas de redução de

acidentes. Tal quadro deverá provocar impacto econômico significativo

nas concessões, na medida em que as concessionárias não mais terão

flexibilidade de distribuírem os seus ativos (material rodante) na malha

ferroviária como um todo, conforme alterações da demanda e do mercado

nas várias regiões cobertas pela ferrovia, perdendo-se em eficiência,

portanto. Partindo-se da premissa de que essas alterações trazem

significativo impacto econômico-financeiro aos contratos vigentes, poder-

se-ia sustentar a desnaturação da identidade do contrato licitado a

inviabilizar qualquer compensação que pudesse manter íntegra a sua

equação econômica original? Pode-se, por outro lado, sustentar que,

independentemente do impacto econômico verificado, tratar-se-ia de

reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos pela natureza da matéria

objeto das alterações pelo Poder Concedente?

Resposta: A alteração em questão apresenta relevo suficiente para

afetar o objeto da outorga. Não se trata de uma mera disciplina sobre

a prestação dos serviços, enquadrável no âmbito das cláusulas

mutáveis (inclusive unilateralmente). A alteração dos critérios e

regras sobre a fixação de metas de produção e de redução de

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Marçal Justen Filho - 91 -

acidentes altera a configuração da outorga de modo essencial. Em

suma, a dimensão dos investimentos e desembolsos a serem

realizados pelo concessionário é radicalmente alterada, o que

significa a inutilidade das concepções originalmente adotadas e a

necessidade de reconstrução da chamada “engenharia financeira”

da concessão. Surgirá um empreendimento distinto e diverso

daquele licitado e assumido pelo licitante. Haverá a alteração

qualitativa do objeto da outorga. Por tudo isso, não se trata de

alteração que comporte contrapartida mediante a recomposição da

equação econômico-financeira da outorga. A alteração é tão grave

que resultaria na extinção antecipada dos contratos, com frustração

da concretização da equação econômico-financeira assegurada às

concessionárias.

k) Assumindo a premissa da geração de impacto econômico-

financeiro significativo, favor considerar as mesmas indagações

formuladas no quesito anterior em relação às tarifas de transporte, na

medida em que, nos termos da proposta divulgada, pretende-se que a

ANTT venha a fixar os valores das tarifas-teto das concessionárias, bem

como os seus critérios de reajuste e revisão. Tenha-se em mente que as

tarifas, o seu automático critério de reajuste e as premissas

extraordinárias para a sua revisão foram definidos por ocasião da

licitação, quando da publicação do edital, constituindo condição essencial

para que as concessionárias pudessem formular a sua proposta

econômico-financeira para a outorga da concessão e do arrendamento,

com base, dentre outras coisas, no cálculo do retorno financeiro do

investimento, aí incluída a receita das tarifas que seriam cobradas

conforme a demanda estimada.

Resposta: Não haveria obstáculo a que a regra em questão tivesse

sido estabelecida por ocasião da licitação para as outorgas ora

existentes ou que venha a ser aplicada para outorgas futuras. O

poder concedente é titular da competência para regular as condições

da prestação do serviço, o que significa que, em princípio, a

inovação contida no art. 11, caput e parágrafo único, não conflitaria

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Marçal Justen Filho - 92 -

com o ordenamento jurídico pátrio. Mas o ponto fulcral reside em

que se dispôs de modo diverso relativamente às atuais outorgas.

Portanto, cada concessionária organizou o seu empreendimento a

partir do pressuposto de que era sua e própria a atribuição de dispor

sobre as condições de trafegabilidade e outras questões conexas. O

problema reside em que a regra altera a disciplina contemplada

originalmente por ocasião da outorga. Isso significa que a regra

acarreta a irrelevância de todas as projeções e de todo o

planejamento de longo prazo realizado pelas concessionárias até o

presente. A alteração dessa competência produz reflexos na

estrutura essencial da outorga, de modo a inviabilizar a manutenção

das concessões em vigor.

l) O virtual novo marco regulatório acima cogitado contraria a Lei n°

10.233/01? Em caso positivo, as resoluções propostas seriam ilegais e

inconstitucionais?

Resposta: Sim. Essa regulação, se vier a ser editada nos termos

objeto de divulgação oficial, configurar-se-á como ofensiva à Lei nº

10.233. Mais ainda, haverá ofensa à Constituição, especialmente por

colocar em risco a existência do serviço público de transporte

ferroviário de cargas.

m) É juridicamente cabível a introdução de regra determinando que

os conflitos entre operadores ferroviários seriam compostos mediante

arbitragem, a ser conduzida pela ANTT segundo critérios e regras que a

essa bem aprouverem?

Resposta: Não. Se a disciplina em questão pretendesse determinar a

adoção do instituto da arbitragem, haveria ofensa à garantia

constitucional do monopólio jurisdicional pelo Judiciário. Logo, a

única alternativa é adotar interpretação conforme a Constituição para

a hipótese, reputando que as propostas não se referem à arbitragem

em sentido técnico-jurídico. Essas propostas utilizam a expressão

arbitragem para indicar um procedimento administrativo destinado a

promover uma solução amigável – sem que a sua implementação

seja obrigatória nem o seu resultado vinculante. Mais ainda,

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