Parecer sobre as propostas de alteração do marco regulatório do
transporte ferroviário de cargas - 2011
Marçal Justen Filho
Doutor em Direito
Professor Titular da UFPR de 1986 a 2006
Advogado e parecerista em Direito Público
SUMÁRIO
1 – Os fatos e os quesitos 1
2 – O vigente marco regulatório da atividade ferroviária 4
2.1 – A regra do art. 21, inc. XII, “d” da Constituição ............................................ 4
2.1.1 – A coexistência de serviço público e atividade privada .......................... 5
2.1.2 – A determinação constitucional .............................................................. 5
2.1.3 – A necessidade da existência do serviço público ................................... 5
2.1.4 – A proteção ao serviço público ............................................................... 6
2.2 – A disciplina legislativa.................................................................................. 6
2.3 – O regulamento de 1996 ............................................................................... 7
2.3.1 – A recepção pela Lei nº 10.233 .............................................................. 7
2.3.2 – A ausência de previsão para atividades sob regime privado ................ 7
2.3.3 – A ausência de diferenciação de espécies de concessão ...................... 7
2.3.4 – A situação de tráfego mútuo e direito de passagem ............................. 8
2.3.5 – As operações acessórias ...................................................................... 8
2.4 – Os contratos de concessão de serviço público em vigor ............................. 9
2.4.1 – As licitações .......................................................................................... 9
2.4.2 – As contratações em curso .................................................................. 10
3 – Os documentos dados a público 10
3.1 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 117/2011 ............ 10
3.2 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 116/2011 ............ 10
3.3 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 115/2011 ............ 11
3.4 – As minutas: pontos comuns e pontos específicos ..................................... 11
4 – A violação dos requisitos de uma reforma regulatória 11
4.1 – A competência regulatória estatal e os requisitos de reformas ................. 11
4.1.1 – Reforma regulatória e ruptura do processo econômico ...................... 12
4.1.2 – A observância de procedimento preparatório ..................................... 12
4.1.3 – A exigência da Análise de Impacto Regulatório .................................. 12
4.2 – O caso concreto: a ausência de estudos aprofundados ............................ 14
4.2.1 - O documento existente: Nota Técnica nº 27/2011/SUREG ................. 14
4.2.2 - A ausência de Análise do Impacto Regulatório ................................... 15
4.2.3 – A insuficiência de informações: entrevistas com usuários .................. 15
4.3 - As deficiências da análise apresentada ..................................................... 15
4.3.1 - A contradição principiológica ............................................................... 16
4.3.2 - A circunscrição do intervalo temporal .................................................. 17
4.3.3 - A contradição com o interesse econômico .......................................... 17
4.3.4 - A questão das tarifas ........................................................................... 19
4.3.5 - A ausência de preocupação com a formação de custos ..................... 20
4.3.6 - A defeituosa avaliação da questão tarifária ......................................... 21
4.3.7 - A efetiva transferência de benefícios para a sociedade ...................... 23
4.4 – Síntese: o subjetivismo da proposta de reforma ....................................... 23
5 – A questão do monopólio natural e da concorrência 24
5.1 - A questão do monopólio natural ................................................................. 24
5.1.1 - As diversas acepções da expressão "monopólio" ............................... 24
5.1.2 - A figura do monopólio natural .............................................................. 24
5.1.3 - O monopólio natural e a competição ................................................... 25
5.1.4 - A inviabilidade da competição e a intervenção regulatória .................. 26
5.1.5 - O monopólio natural e o serviço público .............................................. 26
5.2 - O transporte ferroviário de cargas: características ..................................... 27
5.2.1 - A inviabilidade da duplicação da infraestrutura ................................... 27
5.2.2 - A demanda por capital intensivo .......................................................... 27
5.2.3 - A configuração de economias de escopo ............................................ 27
5.2.4 - Síntese: a inviabilidade da competição ................................................ 28
5.3 – O caso concreto: a omissão sobre o tema ................................................ 28
6 – As características do sistema ferroviário brasileiro 28
6.1 – A configuração como serviço público ........................................................ 28
6.2 – Problemas e dificuldades históricos .......................................................... 28
6.2.1 - A dificuldade técnica específica: o relevo ............................................ 29
6.2.2 - A dificuldade técnica específica: a energia elétrica ............................. 29
6.2.3 - A dificuldade socioeconômica específica: as regiões urbanas ............ 29
6.2.4 - A dificuldade socioeconômica específica: a dispersão geográfica ...... 29
6.3 - Colapso e renascimento do transporte ferroviário no Brasil ....................... 29
6.4 - As dificuldades existentes e a cautela na reforma regulatória ................... 30
6.4.1 - O modelo atual: definição estatal ........................................................ 30
6.4.2 - A alteração da realidade e a cautela regulatória ................................. 31
7 – Síntese sobre o caso concreto: defeitos técnicos da proposta 31
7.1 – A vedação à "imprudência" e à "imperícia" regulatórias ............................ 31
7.2 – O direito fundamental à "boa administração" ............................................ 31
8 – A violação ao princípio da legalidade 32
9 – As deficiências nos pressupostos jurídicos 33
9.1 - O conceito e a configuração de serviço público ......................................... 33
9.1.1 - A orientação consagrada na Nota Técnica .......................................... 34
9.1.2 - A figura do "serviço de utilidade pública" ............................................. 34
9.1.3 - A distinção entre serviço público e atividade econômica privada ........ 35
9.1.4 - O serviço público de transporte ferroviário de cargas .......................... 36
9.2 - O regime jurídico de serviço público .......................................................... 37
9.2.1 - O texto da Nota Técnica e a confusão entre regimes .......................... 37
9.2.2 - A não aplicabilidade do regime próprio da atividade econômica ......... 38
9.3 - Os princípios próprios do regime de serviço público .................................. 39
9.3.1 - A titularidade do Estado ....................................................................... 39
8.3.2 - A adequação: mutabilidade, universalidade e modicidade tarifária ..... 39
9.3.3 - A delegação a particulares mediante licitação ..................................... 40
9.3.4 - A preservação da equação econômico-financeira da outorga ............. 40
9.4 – As deficiências quanto ao instituto da concessão de serviço público ........ 41
9.4.1 - O objeto da outorga: a prestação do serviço ....................................... 41
8.4.2 - O equívoco quanto à desagregação do serviço público ...................... 42
9.5 – Os defeitos jurídicos e suas decorrências ................................................. 44
10 - A questão da eliminação da exclusividade 44
10.1 - A implantação da competição .................................................................. 44
10.2 – As três modalidades de eliminação da exclusividade ............................. 45
10.3 – O núcleo da proposta: a privatização do serviço ..................................... 46
10.4 – A violação à Constituição: o risco de destruição do serviço público ........ 46
10.4.1 – A determinação constitucional da existência do serviço público ....... 46
10.4.2 – A proteção em favor do serviço público ............................................ 46
10.4.3 – A garantia instrumental ..................................................................... 47
10.4.5 – Os efeitos da implantação de competição ........................................ 47
10.4.6 – Os riscos de insolvência generalizada .............................................. 48
10.4.7 – A implantação da chamada “assimetria regulatória” ......................... 48
10.4.8 – A limitada aplicabilidade da assimetria regulatória ........................... 49
10.4.9 - As tarifas praticadas por custo médio ................................................ 51
10.4.10 – A infração à vontade constitucional ................................................ 53
10.5 – A violação à Lei ....................................................................................... 54
10.5.1 – A norma legal clara e inquestionável ................................................ 54
10.5.2 – A vigência ilimitada do dispositivo..................................................... 54
10.6 – Os limites da competência regulamentar ............................................... 55
10.6.1 – A natureza complexa do marco regulatório ...................................... 55
10.6.2 – A improcedência do argumento da "reserva" de ato regulamentar ... 56
10.7 – O problema da "capacidade ociosa"........................................................ 59
10.8 - A redução da remuneração ...................................................................... 60
10.9 – O efeito nocivo da competição ................................................................ 61
10.10 – A improcedência do argumento da função social .................................. 61
11 - A infração à legalidade e ao art. 174 da CF/88 62
11.1 – A despublicização da relação de serviço público .................................... 62
11.2 – A necessidade de lei para despublicizar a atividade ............................... 63
11.3 – O argumento da ausência de serviço público .......................................... 63
11.4 – Os limites da intervenção estatal ............................................................. 64
12 – A tutela jurídica à equação econômico-financeira dos contratos 64
12.1 – A garantia constitucional e legal .............................................................. 64
12.2 – A frustração ao regime licitatório ............................................................. 64
12.2.1 – As determinações dos arts. 37, inc. XXI, e 175 da Constituição ....... 64
12.2.2 – A vedação à desnaturação do contrato ............................................ 65
12.2.3 – A vedação à alteração de características fundamentais da avença . 65
12.3 – A alteração radical das outorgas licitadas ............................................... 65
12.3.1 - A modelagem por ocasião da outorga ............................................... 65
12.3.2 - As modificações pretendidas ............................................................. 66
12.3.3 – A alteração qualitativa do objeto da concessão ................................ 67
12.4 – Inaplicabilidade do argumento da mutabilidade do contrato .................... 67
12.5 – Ainda a frustração das condições da outorga ......................................... 68
12.5.1 – As atividades puramente privadas .................................................... 69
12.5.2 – A ausência de competência regulatória ............................................ 69
12.5.3 – A explícita disciplina por ocasião da outorga .................................... 69
12.6 – Ainda a infração à isonomia .................................................................... 70
12.7 – A violação ao art. 35 da Lei nº 9.074 ....................................................... 71
12.8 - A figura do Usuário Operador de Transporte Multimodal ......................... 71
12.9 - A impossibilidade constitucional e legal de supressão superveniente ..... 72
12.10 – A introdução de competição e o desaparecimento da garantia ............. 72
12.11 – Síntese .................................................................................................. 73
13 – A violação ao ato jurídico perfeito 73
13.1 – A garantia constitucional ao ato jurídico perfeito ..................................... 73
13.1.1 – A extensão da garantia constitucional .............................................. 73
13.1.2 – A disciplina do edital e do contrato ................................................... 74
13.2 – A função de garantia da licitação ............................................................ 74
13.3 – A alteração do objeto da outorga ............................................................ 75
13.3.1 – Os dois obstáculos à alteração ......................................................... 75
13.3.2 – A vedação a modificações estruturais e substanciais ....................... 76
13.3.3 – As inovações substanciais ................................................................ 76
14 – A ofensa à isonomia 76
14.1 – A cumulação de encargos e a transferência de benefícios ..................... 77
14.2 – As diversas ordens de vantagens competitivas ....................................... 78
14.3 – A impertinência do argumento da tarifa de direito de passagem ............. 81
14.4 – Síntese: o regime privilegiado para os terceiros competidores ............... 81
15 – A infração ao monopólio jurisdicional: interpretação conforme 81
15.1 – A garantia do acesso ao Poder Judiciário ............................................... 81
15.2 – O instituto da arbitragem ......................................................................... 82
15.3 – A inconstitucionalidade da imposição compulsória da arbitragem .......... 82
15.4 – A inconstitucionalidade da imposição de arbitragem pela ANTT ............. 82
15.5 – A interpretação conforme ........................................................................ 83
16 – O descabimento da invocação à supremacia do interesse público 83
16.1 – A concepção totalitária da supremacia do interesse público ................... 83
16.2 – A concepção democrática da supremacia do interesse público .............. 84
16.3 – A insuficiência do argumento da supremacia do interesse público ......... 84
17 – Conclusão 84
Marçal Justen Filho
P A R E C E R
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS TRANSPORTADORES
FERROVIÁRIOS – ANTF honrou-me com a solicitação de parecer versando
sobre propostas de resoluções objeto das Consultas Públicas nº 115/2011,
116/2011 e 117/2011, promovidas pela Agência Nacional de Transportes
Terrestres – ANTT. Adiante se encontram os fatos e os quesitos.
1 – Os fatos e os quesitos
1. A Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT
desencadeou procedimentos de consultas públicas para implementar reforma
regulatória no setor de transporte ferroviário de cargas. Houve a divulgação de
três minutas de documentos normativos.
2. Diante disso, a Associação Nacional dos Transportadores
Ferroviários – ANTF solicitou a elaboração do presente parecer, versando
sobre os quesitos abaixo expostos:
a) Poder-se-ia, nos termos propostos pela ANTT, alterar todo o marco
regulatório do serviço público ferroviário, inclusive para as
concessões já celebradas?
b) As mencionadas alterações no marco regulatório podem ser
veiculadas por resolução da ANTT?
c) Uma alteração dessa magnitude importa a eliminação da garantia à
intangibilidade da equação econômico-financeira das outorgas em
vigor?
Marçal Justen Filho - 2 -
d) Uma alteração dessa magnitude poderia ser viabilizada mediante
mero reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos já
celebrados? Em caso negativo, seria ela nula, inclusive por
representar uma rescisão indireta dos contratos de concessão sem
os requisitos e consequências legalmente impostas a esta
modalidade de extinção contratual?
e) Admite-se que a ANTT edite ato normativo para disciplinar os
preços praticados pela concessionária em atividades de natureza
privada não incluídas no objeto da concessão de serviço público?
f) A imposição de novas obrigações, com a geração de custos
adicionais de valor extremamente elevado para a concessionária,
pode ser imputada unilateralmente pela ANTT às concessionárias?
g) Por ocasião da desestatização da malha ferroviária nacional, além
da formalização dos contratos de concessão em caráter de
exclusividade, na dicção da sua Cláusula Décima Oitava, foram
firmados contratos de arrendamento dos bens vinculados à
prestação do serviço público de transporte ferroviário, cujo objeto é
o arrendamento dos bens operacionais necessários à exploração
do aludido serviço. O parágrafo segundo da cláusula primeira do
contrato de arrendamento estabelece que o arrendamento “é feito
com vinculação expressa e direta ao Contrato de Concessão...”.
Considerando esse cenário e o marco regulatório de outros setores
(e.g. telecomunicações e seus segmentos telefonia fixa; TV a
cabo), mostra-se factível a exploração e o compartilhamento dos
bens operacionais arrendados, especialmente o conjunto de
instalações e equipamentos que compõem a infraestrutura e a
superestrutura da ferrovia, com outros operadores ferroviários,
conforme pretendem as propostas apresentadas pela ANTT?
h) A proposta de utilização da malha ferroviária atualmente concedida
para o transporte de carga própria de determinadas categorias de
usuários seria revestida de legalidade? Tal quadro não esbarraria
no regime de exclusividade na prestação de serviços de que
gozam as atuais concessionárias e, ainda, na inviabilidade de
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compartilhamento da infraestrutura e da superestrutura da ferrovia?
i) À luz do contrato (cláusula sétima, parágrafo segundo) e do Dec. nº
1.832 (art. 18 e seu parágrafo único), os serviços acessórios são
remunerados por meio de “taxas” adicionais mediante negociação
das concessionárias com o próprio usuário, não são compulsórios
e, ainda, não constituem receita alternativa. Dado esse cenário,
estariam as propostas de resoluções, ao transformar essas figuras
em serviços remunerados por “tarifas”, sinalizando a sua regulação
para as atuais concessionárias? Cumpre registrar que, em que
pese a nomenclatura “taxa”, fato é que jamais houve o
estabelecimento de tarifas para tais serviços, mas apenas a
divulgação dos preços praticados para cada tipo de serviço
acessório pelas concessionárias à ANTT.
j) Os contratos vigentes preveem que as concessionárias e o Poder
Concedente pactuarão metas anuais de produção e de redução de
acidentes para a malha ferroviária como um todo, devendo as
concessionárias prover os investimentos necessários para o
alcance das referidas metas. A proposta de reforma regulatória
prevê que essas metas deverão ser pactuadas para cada trecho
ferroviário, com a realização de investimentos também por trecho,
e enuncia, ainda, metas de redução de acidentes. Tal quadro
deverá provocar impacto econômico significativo nas concessões
ora vigentes, na medida em que as concessionárias não mais terão
flexibilidade de distribuírem os seus ativos (material rodante) na
malha ferroviária como um todo, conforme alterações da demanda
e do mercado nas várias regiões cobertas pela ferrovia, perdendo-
se em eficiência, portanto. Partindo-se da premissa de que essas
alterações trazem significativo impacto econômico-financeiro aos
contratos vigentes, poder-se-ia sustentar a desnaturação da
identidade do contrato licitado a inviabilizar qualquer compensação
que pudesse manter íntegra a sua equação econômica original?
Pode-se, por outro lado, sustentar que, independentemente do
impacto econômico verificado, tratar-se-ia de reequilíbrio
Marçal Justen Filho - 4 -
econômico-financeiro dos contratos pela natureza da matéria
objeto das alterações pelo Poder Concedente?
k) Assumindo a premissa da geração de impacto econômico-
financeiro significativo, favor considerar as mesmas indagações
formuladas no quesito anterior em relação às tarifas de transporte,
na medida em que, nos termos da proposta divulgada, pretende-se
que a ANTT venha a fixar os valores das tarifas-teto das
concessionárias, bem como os seus critérios de reajuste e revisão.
Tenha-se em mente que as tarifas, o seu automático critério de
reajuste e as premissas extraordinárias para a sua revisão foram
definidos por ocasião da licitação, quando da publicação do edital,
constituindo condição essencial para que as concessionárias
pudessem formular a sua proposta econômico-financeira para a
outorga da concessão e do arrendamento, com base, dentre outras
coisas, no cálculo do retorno financeiro do investimento, aí incluída
a receita das tarifas que seriam cobradas conforme a demanda
estimada.
l) O virtual novo marco regulatório acima cogitado contraria a Lei n°
10.233/01? Em caso positivo, as resoluções propostas seriam
ilegais e inconstitucionais?
m) É juridicamente cabível a introdução de regra determinando que os
conflitos entre operadores ferroviários seriam compostos mediante
arbitragem, a ser conduzida pela ANTT segundo critérios e regras
que a essa bem aprouverem?
Passo a responder.
2 – O vigente marco regulatório da atividade ferroviária
3. A atividade ferroviária se sujeita a uma disciplina
regulatória determinada, que tem origem na Constituição. Uma proposta de
alteração desse modelo deve tomar em vista essas circunstâncias.
2.1 – A regra do art. 21, inc. XII, “d” da Constituição
4. A Constituição determina que “Compete à União ...
explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão ... os
serviços de transporte ferroviário...” (art. 21, inc. XII, “d”).
Marçal Justen Filho - 5 -
A fórmula constitucional despertou alguma controvérsia,
mas a esmagadora maioria da doutrina adota interpretação uniforme, nos
termos a seguir expostos1.
2.1.1 – A coexistência de serviço público e atividade privada
5. Algumas atividades foram qualificadas como serviço
público pela Constituição. Isso significa que a sua titularidade foi reservada ao
Estado, a quem compete a sua prestação (diretamente ou mediante
concessão ou permissão), sempre sob regime de direito público. Assim está
imposto no art. 175 da Constituição.
Outras atividades podem ser exploradas sob regime de
livre iniciativa e livre concorrência pelos particulares. Nesse caso, a lei poderá
subordinar o seu desempenho à autorização estatal (Constituição, art. 170,
parágrafo único).
2.1.2 – A determinação constitucional
6. A previsão do art. 21, inc. XII, “d”, da Constituição significa
que os serviços de transporte ferroviário podem ser considerados como de
titularidade da União (sendo prestados diretamente ou mediante concessão ou
permissão) ou explorados pela iniciativa privada mediante autorização
governamental.
2.1.3 – A necessidade da existência do serviço público
7. Mas não se pode conceber que seria irrelevante para a
Constituição a opção entre serviço público e atividade econômica privada. Os
princípios constitucionais fundamentais (especialmente aqueles veiculados
pelos arts. 1º e 3º da CF) determinam a supremacia do serviço público.
Os serviços ferroviários são uma atividade própria de
serviço público. Somente se pode admitir a existência de alguma atividade
econômica privada, no setor ferroviário, na medida em que tal não impeça ou
destrua a existência do serviço público.
1 Nesse sentido, confiram-se ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO, Direito dos serviços públicos, Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 132 e s.; MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, Direito Administrativo, 23. ed., São Paulo: Atlas, 2010, p. 110 e s.; CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Curso de Direito Administrativo, 27. ed., São Paulo: Malheiros, 2010, p. 686-695.
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Assim se passa porque o regime de serviço público é o
único que assegura a existência da atividade ferroviária, desempenhada
segundo os princípios da adequação, universalidade, continuidade, isonomia
etc. Eliminar o serviço público ferroviário equivale a tornar a atividade
dependente da conveniência da iniciativa privada. Logo, surgiria o risco da
supressão, total ou parcial, de serviços de transporte ferroviário. Quando
menos, toda a atividade economicamente não lucrativa tenderia ao
desaparecimento.
8. A sistemática de serviço público assegura, portanto, que o
Estado (diretamente ou por seu delegatário) desempenhe atividade universal.
Isso pode envolver inclusive mecanismos de subsídios cruzados: áreas
carentes são atendidas mediante recursos obtidos nas regiões mais rentáveis.
Portanto, as tarifas refletem um valor médio, em que os setores mais lucrativos
compensam a manutenção de atividades deficitárias.
2.1.4 – A proteção ao serviço público
9. A Constituição impõe ao Estado brasileiro o dever de
manter o serviço público de transporte ferroviário. Isso significa a vedação à
adoção de decisões, medidas ou políticas que ponham em perigo a sua
existência ou acarretem a sua extinção.
Assim, será inconstitucional a providência estatal (inclusive
de natureza legislativa) que ponha em risco a existência do serviço público de
transporte ferroviário e que seja orientada a institucionalizar a exploração da
atividade sob regime de direito privado.
2.2 – A disciplina legislativa
10. A Lei nº 10.233 disciplina os serviços de transporte e
incorpora rigorosamente a principiologia constitucional, respeitando a
sistemática antes exposta.
11. O regime jurídico das concessões previsto na Lei nº
10.233 não apresenta diferenciação em vista da disciplina geral do instituto da
concessão2. A outorga deve-se fazer mediante licitação, com prazo
determinado, obrigações e direitos definidos para ambas as partes. O diploma
2 O art. 33 da Lei nº 10.233 prevê que “Os atos de outorga de autorização, concessão ou permissão a serem editados e celebrados pela ANTT e ANTAQ obedecerão ao disposto na Lei
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prevê o caráter de exclusividade nas outorgas de concessões de serviço
público de transporte ferroviário (art. 34-A).
2.3 – O regulamento de 1996
12. O Dec. 1.832/96 veiculou o Regulamento dos Transportes
Ferroviários. Suas regras não apresentam autonomia normativa, eis que se
destinam a promover a aplicação das normas legais.
2.3.1 – A recepção pela Lei nº 10.233
13. Deve-se ter em vista que o Dec. 1.832 é anterior à Lei nº
10.233. Isso significa que as normas regulamentares incompatíveis com a Lei
perderam a sua vigência. Mais ainda, o Regulamento deve ser interpretado de
modo conforme a Lei nº 10.233.
2.3.2 – A ausência de previsão para atividades sob regime privado
14. O Dec. 1.832 consagrou o entendimento de que os
serviços ferroviários destinados ao público seriam prestados exclusivamente
sob regime de direito público. Assim, o art. 2º prevê que “A construção de
ferrovias, a operação ou exploração comercial dos serviços de transporte
Ferroviário poderão ser realizadas pelo Poder Público ou por empresas
privadas, estas mediante concessão da União”. Aliás, essa determinação se
extrai da própria Lei nº 10.233, cujo art. 14, III, admite o regime de direito
privado no setor ferroviário somente para o transporte não regular de
passageiros e desde que não associado à exploração de infraestruturas (al. “f”)
Somente as operações acessórias, não abrangidas no
conceito de transporte em sentido próprio, podem ser desempenhadas sob
regime privado, tal como será mais bem examinado abaixo.
2.3.3 – A ausência de diferenciação de espécies de concessão
15. O Dec. 1.832 previu, no art. 13, uma modalidade única de
concessão para o serviço ferroviário. Determinou que “A Administração
Ferroviária é obrigada a manter a via permanente, o material rodante, os
equipamentos e as instalações em adequadas condições de operação e de
segurança, e estar aparelhada para atuar em situações de emergência,
decorrentes da prestação do serviço de transporte ferroviário”. O art. 31 prevê
que “A Administração Ferroviária é responsável por todo o transporte e as
8.987, de 13 de fevereiro de 1995 ...”.
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operações acessórias a seu cargo ...”.
Sob esse regime, a concessão abrange, de modo
necessário, a exploração da infraestrutura e a prestação de serviços de
transporte.
2.3.4 – A situação de tráfego mútuo e direito de passagem
16. O art. 6º do Dec. 1.832 dispôs sobre a figura do tráfego
mútuo e do direito de passagem a outros operadores3. A hipótese não tem
qualquer relação com a exploração de atividades sob regime de direito
privado.
A interligação do sistema ferroviário pode conduzir à
necessidade de utilização conjugada da malha. Assim, o transporte de
passageiros ou cargas pode envolver a utilização de infraestruturas integrantes
da área de atuação de operadores distintos. O Regulamento estabelece que,
quando tal ocorrer, haverá ou uma atuação conjunta dos diversos operadores
ou caberá assegurar o direito de passagem das composições de um operador
sobre a malha explorada por outro.
A questão deverá ser resolvida por acordo comum entre as
partes e eventuais conflitos serão compostos com a intervenção do poder
concedente.
2.3.5 – As operações acessórias
17. O art. 18 do Dec. 1.832 prevê que “As operações
acessórias à realização do transporte, tais como carregamento,
descarregamento, transbordo, armazenagem, pesagem e manobras, serão
remuneradas através de taxas adicionais, que a Administração Ferroviária
poderá cobrar mediante negociação com o usuário”.
Trata-se de atividades não abrangidas no âmbito do
serviço público, desempenhadas sob regime de direito privado e segundo os
princípios da livre iniciativa e livre concorrência. Deve-se reputar que a
expressão “taxa” foi utilizada em acepção não técnica, visando a impedir a
identificação com a tarifa exigida pela prestação do serviço público.
3 “As Administrações Ferroviárias são obrigadas a operar em tráfego mútuo ou, no caso de sua impossibilidade, permitir o direito de passagem a outros operadores”. Posteriormente, a ANTT editou a Resolução 433/2004, que também versa sobre os procedimentos de operações de tráfego mútuo e direito de passagem, em situações excepcionais.
Marçal Justen Filho - 9 -
2.4 – Os contratos de concessão de serviço público em vigor
18. A disciplina normativa acima descrita fundamentou a
outorga de concessões de serviço público.
2.4.1 – As licitações
19. Ao longo da década de 1990, houve diversas licitações
para implementar a concessão de serviço público de transporte ferroviário de
cargas.
Essas licitações foram desenvolvidas sob a modalidade de
leilão. Isso significou que o vencedor foi selecionado mediante a proposta de
maior lance.
20. Em todas as hipóteses, os editais de licitação impunham
deveres precisos (e onerosos) ao futuro concessionário, fixando um conjunto
de direitos em contrapartida.
21. Em suma, essas licitações previram que os
concessionários (então enquadrados na categoria de “Administrações
Ferroviárias”) receberiam a delegação da prestação do serviço público acima
referido, incumbindo-lhes tanto a prestação do serviço de transporte
propriamente dito como a implantação, a manutenção e a ampliação das
infraestruturas correspondentes. Foram fixados os deveres quantitativos e
qualitativos para a prestação do serviço.
Incumbia aos concessionários promover pesados
investimentos (além de promover pagamentos relevantes ao poder público), os
quais seriam amortizados mediante a exploração das concessões ao longo do
prazo contratual.
As outorgas se fizeram com cláusula de exclusividade e
com a fixação de metas globais a serem atendidas, consideradas em face da
totalidade dos trechos outorgados. Essa previsão constou, usualmente, da
Cláusula Dezoito dos contratos de concessão de serviço público.
Facultou-se às concessionárias promover a exploração
das operações acessórias, mediante remuneração a ser avençada com os
interessados. Tais operações não estavam abrangidas no âmbito dos serviços
públicos outorgados e seriam regidas pelo direito privado.
Marçal Justen Filho - 10 -
2.4.2 – As contratações em curso
22. As licitações foram concluídas e delas decorreram
contratações com prazos dilatados de vigência. As atuais concessionárias
assumiram obrigações específicas em virtude do regime jurídico previsto. A
modelagem das contratações motivou a participação nas licitações, com
assunção de dívidas e implantação de empreendimentos de acordo com as
concepções unilateralmente impostas pelo Estado. Houve, nas etapas iniciais
dos contratos, os vultosos desembolsos exigidos, com a perspectiva de sua
amortização mediante os resultados a serem obtidos ao longo do tempo.
3 – Os documentos dados a público
23. A proposta de um novo marco regulatório para o setor de
transporte ferroviário de cargas traduz-se em três minutas de documentos que
foram dadas ao conhecimento do público. Encontra-se adiante uma exposição
sumária sobre cada um deles.
3.1 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 117/2011
24. A Audiência Pública nº 117/2011 envolve a proposta de
Resolução dispondo sobre um “Regulamento de Defesa dos Usuários dos
Serviços de Transporte Ferroviário de Cargas – REDUF”. Trata-se de uma
proposta que não se destina exclusivamente a dispor sobre a posição jurídica
dos usuários, mas envolve outros temas.
25. No âmbito dessa Audiência Pública, foi divulgada a Nota
Técnica nº 27/2011/SUREG, que sintetiza o entendimento adotado pela ANTT
relativamente à problemática tratada genericamente pelas três minutas de
Resoluções. Trata-se, portanto, de um documento de extrema relevância, eis
que funciona como uma espécie de “motivação” comum para o conjunto das
propostas submetidas à avaliação da comunidade.
3.2 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 116/2011
26. A Audiência Pública nº 116/2001 veiculou proposta de
adoção de Resolução versando sobre os procedimentos para pactuação de
metas de produção e segurança, a serem estabelecidas por trecho, entre a
ANTT e as concessionárias de serviço público, tal como a adesão ao regime
para transportadores ferroviários de carga.
Marçal Justen Filho - 11 -
Portanto, a proposta envolve não apenas o relacionamento
entre concessionárias e ANTT, mas também a situação jurídica de terceiros.
3.3 – A minuta de Resolução objeto da Audiência Pública nº 115/2011
27. Existe ainda proposta para ampliar a obrigação das
concessionárias de operação em tráfego mútuo ou, em caso de sua
impossibilidade, de operação em direito de passagem. Essa proposta é objeto
da Audiência Pública nº 115/2011.
3.4 – As minutas: pontos comuns e pontos específicos
28. As três minutas referidas apresentam elevado grau de
inter-relação e refletem uma proposta regulatória abrangente e determinada,
ainda que alguns pontos ainda permaneçam obscuros.
Nesse contexto, há questões que se relacionam ao núcleo
das inovações contempladas na proposta regulatória. Sob esse prisma, há
temas comuns às três minutas – o que impõe exame conjunto de todas elas.
Sob outro prisma, há questões que envolvem de modo
circunscrito itens determinados das minutas. Nesses casos, cada minuta
comporta exame isolado.
4 – A violação dos requisitos de uma reforma regulatória
29. Em primeiro lugar, a proposta de reforma do marco
regulatório viola um pressuposto inafastável, decorrente diretamente do
princípio da República. O exame dos documentos apresentados a público
evidencia a ausência de informações suficientes sobre os problemas
existentes, a inexistência de um diagnóstico preciso e exato das dificuldades a
serem enfrentadas e a falta de previsão quanto aos custos e às consequências
das mudanças propostas.
Para sumariar em poucas palavras, a proposta
apresentada se configura como um “salto no escuro”, com assunção de riscos
incompatíveis com a natureza da função regulatória exercitada.
4.1 – A competência regulatória estatal e os requisitos de reformas
30. A disciplina regulatória somente cumpre as suas funções
se apresentar certeza e segurança jurídica. Qualquer reforma regulatória
somente pode ser praticada com cautela, o que significa reduzir os riscos
inerentes à ausência de informações.
Marçal Justen Filho - 12 -
4.1.1 – Reforma regulatória e ruptura do processo econômico
31. A mutação regulatória produz uma fratura radical,
altamente onerosa para os diversos operadores. A continuidade da atividade
sofre uma restrição, em vista da necessidade de adaptação a novos
paradigmas escolhidos pelo Estado.
Qualquer modificação da disciplina regulatória gera custos
para os agentes envolvidos. Um conjunto de regras novas exige a alteração
dos projetos, a suspensão de atividades, a reordenação dos investimentos.
Enfim, a sua adoção se sujeita à observância de uma pluralidade de requisitos
e deve ser desenvolvida com grande cautela.
4.1.2 – A observância de procedimento preparatório
32. A ordem jurídica abomina a atuação descuidada de
qualquer sujeito e reprova severamente os danos decorrentes de conduta
culposa. Assim se passa no âmbito dos particulares, que podem ser
responsabilizados civil e penalmente por resultados danosos decorrentes da
ausência da adoção das cautelas adequadas.
Com muito maior razão, o direito reprova o exercício
defeituoso de competências estatais. O agente estatal é investido de poderes
jurídicos como instrumento do cumprimento do dever de satisfazer as
necessidades coletivas e promover o bem de todos.
4.1.3 – A exigência da Análise de Impacto Regulatório
33. Justamente por isso, o próprio governo brasileiro vem
insistindo sobre a exigência inafastável da Análise de Impacto Regulatório4,
como requisito prévio a toda e qualquer inovação relevante na regulação
setorial5.
4 FRANCISCO GAETANI e KÉLVIA ALBUQUERQUE definem Análise de Impacto Regulatório como “instrumento formal que permite a explicitação dos problemas regulatórios, das opções disponíveis de política e das consequências das decisões regulatórias, em cada caso concreto, mediante a utilização de dados empíricos” (Análise de impacto regulatório e melhoria regulatória, em PEDRO IVO SEBBA RAMALHO (org.). Regulação e Agências Reguladoras: governança e análise de impacto regulatório, 1. ed., Brasília: ANVISA, 2009, p. 195). 5 A defesa do Estudo de Impacto Regulatório tem sido feita com o maior brilhantismo pelo próprio governo brasileiro. Sobre o tema, foi realizado em 12.03.2009 o congresso internacional “Análise do Impacto Regulatório – Instrumento para o Fortalecimento da Regulação no Brasil”, patrocinado pelo Brasil. Outras informações podem ser encontradas no portal do PRO-REG, hospedado no sítio oficial da Presidência de República, no seguinte
Marçal Justen Filho - 13 -
Não se trata de uma criação brasileira. Essa solução é
consagrada nos países democráticos6. Consiste na avaliação econômica dos
custos e dos benefícios das inovações pretendidas.
A ausência da Análise de Impacto Regulatório revela a
carência de meditação e ponderação sobre as providências pretendidas.
Traduz uma decisão subjetiva, desvinculada de fundamentos técnico-
científicos. Em se tratando de decisões de grande relevo, a inexistência da
Análise de Impacto Regulatório se constitui em defeito insanável e insuperável.
Assim se passa porque a autoridade administrativa não pode impor à
sociedade alterações radicais e relevantes sem avaliar minuciosamente os
efeitos decorrentes7.
34. Recentemente, a Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento (OCDE) conduziu estudo sobre o sistema regulatório
brasileiro. Acerca da adoção de Análises de Impacto Regulatório pelas
instituições encarregadas de promover regulação, o relatório da OCDE afirmou
que “Não deveria haver justificativa alguma para que sejam feitas exceções
em diferentes áreas políticas e instituições, após a acumulação de experiência.
Se o PRO-REG pretende, por exemplo, melhorar os mecanismos de consulta
endereço: http://www.regulacao.gov.br. 6 A exigência de realização de “Regulatory Impact Assessment (RIA)” está presente, por exemplo, nos Estados Unidos e em países da União Europeia (Reino Unido, Áustria, Dinamarca, Alemanha, Itália, entre outros). Um estudo conduzido pela OCDE acerca de reforma regulatória concluiu o seguinte: “Os Governos devem adotar processos de análise de impacto regulatório (AIR) para melhorar a qualidade das informações com base nas quais as decisões são tomadas. Decisões de concepção de programas fundamentais para o sucesso de AIR incluem procedimentos de coleta de dados, métodos analíticos, transparência, e fiscalização independente e controle de qualidade” (The OECD Report on regulatory reform, vol. II, Paris: OECD Publishing, 1997, p. 234). Para uma abordagem dos países europeus, cf. A comparative analysis of regulatory impact assessment in ten EU countries (a report prepared for the EU directors of Better Regulation Group), disponível em http://www.betterregulation.ie/eng/Publications/Report_on_RIA_in_the_Eua.pdf. No Brasil, o tema é objeto de estudo específico em PEDRO IVO SEBBA RAMALHO (org.), Regulação..., ob. cit. E LUCIA HELENA SALGADO e EDUARDO BIZZO DE PINHO BORGES, Análise de impacto regulatório: uma abordagem exploratória, Brasília: IPEA, 2010, texto para discussão disponível em http://www.regulacao.gov.br/publicacoes/artigos/analise-de-impacto-regulatorio-uma-abordagem-exploratoria; ainda, em ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO. Análise de Impacto Regulatório. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, n. 32, p. 9-15, out./dez., 2010. 7 Ao analisar o Regulatory Impact Analysis (RIA), elaborado pela OCDE, ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO destaca que: “As agências, enfim, seriam obrigadas a previamente demonstrar a razoabilidade de suas decisões, os seus prováveis custos diretos e indiretos, os benefícios esperados, e a razão pela qual não foram escolhidos outros meios para atingir o mesmo propósito. Trata-se... de uma análise prévia da proporcionalidade da regulação...”.
Marçal Justen Filho - 14 -
e promover o uso compulsório de avaliação de impactos para alguns setores e
agências, isso deveria evoluir com o tempo e ser aplicado em seu devido
tempo a toda a administração pública e não somente para agências setoriais”.8
Mais adiante, o relatório conclui sem deixar qualquer
dúvida: “Todos os órgãos da administração federal, sem exceção, deveriam
ser responsáveis para utilizar AIR”9.
4.2 – O caso concreto: a ausência de estudos aprofundados
35. A análise da documentação colocada à disposição pelo
Poder Público evidencia não apenas a ausência de estudos e informações
aprofundados, que legitimem quer o diagnóstico da situação atual, quer as
perspectivas de solução propostas. Mais do que isso, a documentação incorre
em imperfeições notáveis.
4.2.1 - O documento existente: Nota Técnica nº 27/2011/SUREG
36. A documentação disponibilizada nas Audiências Públicas
apresenta um único documento que contém informações e levantamentos
mais amplos. Trata-se da Nota Técnica nº 27/2011/SUREG – que se encontra
no bojo da Audiência Pública nº 117/2011. Essa dita Nota Técnica veicula
certos pressupostos técnico-econômicos e jurídicos que explicitam os
fundamentos de fato e de direito tomados em vista pela ANTT ao delinear a
proposta quanto ao novo marco regulatório do setor de transporte ferroviário
de cargas.
Embora a referida Nota Técnica tenha sido emitida no bojo
da proposta de edição do Regulamento de Defesa dos Usuários do Transporte
Ferroviário de Cargas – REDUF, o seu conteúdo sintetiza o entendimento
adotado pela ANTT também relativamente às propostas contempladas nas
outras duas minutas e, em última análise, a todo o setor. Portanto, é essencial
e indispensável uma análise mais aprofundada da referida Nota Técnica.
37. O texto da Nota Técnica será transcrito literalmente nas
passagens em que se reputar cabível a formulação de ponderações. Na
Análise de Impacto Regulatório. Idem, p. 9-15. 8 Relatório OCDE sobre a Reforma Regulatória: Brasil – Fortalecendo a governança para o crescimento, Brasília: Presidência da República, 2008, p. 339. Disponível em: http://www.regulacao.gov.br/eventos/seminarios-internacionais/teste-de-evento/material-didatico/livro-brasil-fortalecendo-a-governanca-para-o-crescimento. 9 Relatório OCDE..., Idem, p. 342.
Marçal Justen Filho - 15 -
sequência, serão expostas as divergências reputadas relevantes.
4.2.2 - A ausência de Análise do Impacto Regulatório
38. A ANTT não dispõe de elementos mais aprofundados
relativamente ao diagnóstico dos problemas existentes. Nem existem
avaliações sobre as decorrências que poderão ser geradas a partir da
implantação do novo modelo.
Isso fica expressamente reconhecido no próprio texto da
Nota Técnica, nos seus termos iniciais, tal como abaixo se reproduz:
“3. Análise do Setor De início, cumpre apresentar avaliação do desempenho do setor ferroviário de cargas brasileiro nos últimos anos, à luz de alguns aspectos relevantes aos usuários e à competitividade da economia. Atendo-se a dados informados pelas próprias concessionárias à ANTT e advindos de entidades governamentais e institutos de pesquisa, buscou-se comparar de forma principiológica e agregada, dados do setor com algumas variáveis setoriais e econômicas, a fim de verificar se há adequada evolução do setor ou lacunas que precisam ser preenchidas por meio de uma atuação regulatória adequada.”
Portanto, o diagnóstico dos problemas do setor ferroviário,
a identificação das limitações e dificuldades e a implantação de um novo
marco regulatório se apoiam nesses parcos e limitados elementos. Foram
comparados alguns dados fornecidos pela concessionária com outros,
advindos de institutos de pesquisa. Não existe qualquer estudo abrangente,
aprofundado, consistente.
4.2.3 – A insuficiência de informações: entrevistas com usuários
76. Além disso, e consoante as informações prestadas ao
longo das Audiências Públicas, a reforma do marco regulatório se alicerça em
dados obtidos a partir de entrevistas com grandes usuários. A partir daí é que
a Agência pretende reformar radicalmente o modelo regulatório. Mas esses
pressupostos são insuficientes e inadequados, eis que existem problemas
estruturais a serem considerados – muitos dos quais serão agravados a partir
das providências introduzidas.
4.3 - As deficiências da análise apresentada
39. Mas a análise contemplada na Nota Técnica apresenta
outros defeitos.
Marçal Justen Filho - 16 -
4.3.1 - A contradição principiológica
40. A Nota Técnica assume um pressuposto que é desmentido
em seu próprio corpo. Afirma que existe uma relação precisa entre o
crescimento do PIB e o crescimento da atividade ferroviária. Mais do que isso,
reputa que a suposta relação, isoladamente, é capaz de demonstrar
deficiências específicas no setor de transporte ferroviário.
41. No corpo da Nota Técnica, lê-se o seguinte:
“O crescimento da produção ferroviária de carga, medida em TKU, ao longo do período 2002-2009 indica uma forte correlação com o crescimento do PIB. No entanto, considerada o desmembramento dessa produção entre carga própria e de terceiros, é possível verificar diferença significativa no desempenho desses indicadores. ... Do exposto no gráfico acima, depreende-se que, enquanto a produção ferroviária de carga própria cresceu 72,4%, mais que o dobro que o PIB a valores constantes, a carga de terceiros cresceu menos que a metade, apenas 33,1%, praticamente em linha com o crescimento da economia.”
42. Vê-se que a Nota Técnica incorreu num defeito lógico
insuperável. Afirmou que (a) existiria aparente correlação entre o crescimento
do PIB e o movimento de cargas ferroviárias e que (b) essa correlação não
seria comprovada pelos fatos; afinal, a Nota Técnica também afirma que o
movimento de carga de terceiros não cresceu tanto quanto o PIB.
O defeito lógico reside em que a Nota Técnica daí extraiu
a conclusão de que a ausência de correlação entre o PIB e o movimento de
carga de terceiros seria uma demonstração da atuação defeituosa das
concessionárias!
Em outras palavras, o pressuposto meramente
considerado como uma hipótese teórica (correlação entre o crescimento do
PIB e do movimento de cargas) foi transformado em um parâmetro de cunho
obrigatório. Aquilo que era uma hipótese foi transformado em um
mandamento.
43. Ora, os dados colacionados pela ANTT autorizam uma
única conclusão: não existe correlação entre o crescimento do PIB e o
crescimento do movimento de cargas de terceiros. A demonstração de que o
crescimento do transporte de carga de terceiros não acompanhou o
Marçal Justen Filho - 17 -
crescimento do PIB autorizaria, apenas e tão-somente, a reconhecer a
ausência de correlação entre os dois processos. Nunca autorizaria afirmar que
existiria algum defeito no tocante à atuação do setor ferroviário.
4.3.2 - A circunscrição do intervalo temporal
44. As concessões ferroviárias foram outorgadas em meados
da década de 1990. Logo, a análise do desempenho teria de abranger o
período integral, desde os momentos iniciais das outorgas.
Mas a Nota Técnica seccionou a dimensão temporal das
avaliações. Considerou os períodos posteriores a 2001 ou a 2002, deixando de
tomar em consideração os anos anteriores.
45. Em manifestação nas Audiências Públicas, foi afirmado
que se reputou que esse período seria suficientemente representativo para
uma avaliação dos fatos. Essa afirmativa merece contraposição, eis que os
anos anteriores propiciam informações extremamente favoráveis ao
funcionamento do sistema.
Afinal, os transportes ferroviários no Brasil não foram
iniciados em 2001. Para compreender a situação ferroviária brasileira, é
indispensável uma visão mais abrangente, especialmente porque isso
permitirá identificar benefícios e vantagens que não podem ser identificados
em períodos de tempo mais restritos.
Mais ainda, a avaliação do atual modelo regulatório
somente apresentaria consistência se compreendesse o período de tempo a
partir do qual houve a sua instauração.
Um exame da situação atual somente apresenta
consistência se tomar em vista o período anterior à outorga das concessões
vigentes. Não há fundamento metodológico para eleger, de modo puramente
subjetivo, uma data limite qualquer para estabelecer comparações.
4.3.3 - A contradição com o interesse econômico
46. Mas a exposição contemplada na Nota Técnica também
ignora as características da própria realidade econômica. Lê-se que:
“Outro dado importante a ser considerado é o fato de que a produção de transporte de carga própria correspondeu a 51,1% da produção total de carga ferroviária brasileira no período de 2001 a 2009, sendo que esse transporte próprio se refere exclusivamente ao minério de ferro produzido
Marçal Justen Filho - 18 -
pela empresa VALE S/A. Tal fato demonstra que a maior parte do esforço de produção de transporte férreo no Brasil é dirigida para a movimentação da produção de única mercadoria produzida por uma única empresa. Essa constatação fica ainda mais veemente ao adicionarmos o transporte de carga de terceiros, mas realizado para empresas coligadas à concessionária (partes relacionadas). Por exemplo, grande parte da produção do transporte de carga de terceiros do setor é gerada pela MRS (66,87%), sendo que de acordo com os demonstrativos da ferrovia em 2009, 78,1% dos produtos transportados corresponderam a minério de ferro, carvão, coque e produtos siderúrgicos, e a maior parte desse transporte ocorre entre partes relacionadas. Naquele ano, excluída a produção de transporte de minério de ferro pela MRS, verifica-se uma participação no transporte de terceiros de apenas 34,42% do total de transporte ferroviário de cargas brasileiro.”
Ora, o objeto das concessões outorgadas é o transporte
ferroviário de cargas. As concessionárias obtêm remuneração mediante
cobrança de tarifas pelo transporte. Isso significa que a elevação da
quantidade de cargas aumenta a remuneração das concessionárias. Logo, o
único e maior interesse das concessionárias é transportar a maior quantidade
possível de cargas.
Não existe a menor razoabilidade no raciocínio de que
alguma concessionária teria interesse em reduzir o movimento de transporte.
Afinal, isso significaria uma redução na sua remuneração.
47. Portanto, o fato de que a maior parte do transporte de
cargas envolve minérios e se verifica no âmbito de cargas oriundas de partes
relacionadas não permite extrair a conclusão de que tal decorre da intenção
das concessionárias.
Ainda partindo do pressuposto de que as concessionárias
têm interesse não apenas em prestar o serviço público, mas também em obter
o maior lucro possível, é evidente que ampliar a quantidade de cargas é a
solução mais adequada e satisfatório para tanto.
Não existe razoabilidade em afirmar que o interesse das
concessionárias em obter lucro teria gerado a decisão de transportar menos
cargas ou apenas cargas de minérios ou apenas cargas de partes
relacionadas. Para dizer o menos, isso é um despropósito sob o prisma
econômico.
Marçal Justen Filho - 19 -
4.3.4 - A questão das tarifas
48. Nem se contraponha que o movimento de cargas de
terceiros teria sido reduzido em virtude da prática de tarifas muito elevadas.
Por um lado, as tarifas praticadas encontram, na origem,
parâmetros estabelecidos pelo próprio Poder Concedente.
Por outro lado, o efeito de tarifas elevadas é a perda das
cargas. Como a própria Nota Técnica reconhece, as cargas não transportadas
por via férrea são deslocadas por via rodoviária:
“Essa concentração aponta para deficiências na alocação da estrutura de transporte do Brasil, uma vez que priorizado o transporte do minério de ferro as demais mercadorias são transportadas na sua maior parte por rodovias...”
Portanto, a Nota Técnica reconhece a existência de
competição entre o transporte férreo e o transporte rodoviário. Em outras
palavras, existe competição entre modais diversos de transporte. E tal
competição produz os seus efeitos.
Se os concessionários de ferrovia praticarem tarifas muito
elevadas, os mecanismos de mercado conduzirão à perda da clientela. Isso
significa que o primeiro agente econômico punido pela ausência de eficiência é
a própria concessionária ferroviária.
49. Os mecanismos inerentes à competição impõem à
concessionária ferroviária reduzir os seus preços para competir com os
transportadores rodoviários. Há uma presunção absoluta, fundada no
conhecimento científico e que não pode ser afastada mediante manifestações
puramente opinativas: as concessionárias ferroviárias praticam a menor tarifa
possível para competir com os transportadores rodoviários.
50. Veja-se a questão sob outro ângulo. Se o usuário obtiver
tarifa mais reduzida do transportador rodoviário, optará por ele. Mas isso não
autoriza qualquer inferência de que a tarifa mais elevada eventualmente
praticada pelo transportador ferroviário seria resultado de sua ganância – e
assim se impõe porque deixar de receber a carga do terceiro acarreta
ausência de qualquer ganho.
O interesse (legítimo, aliás) da concessionária de obter
lucro somente será satisfeito se captar clientes.
Marçal Justen Filho - 20 -
51. Portanto, não existe fundamento científico ou lógico para
adotar o entendimento de que a preponderância do uso da matriz rodoviária
para o transporte de cargas seria uma decorrência da atuação intencional das
concessionárias de ferrovias.
4.3.5 - A ausência de preocupação com a formação de custos
52. É relevante destacar a ausência de consideração quanto à
formação dos custos do setor ferroviário de cargas. Lê-se no texto da Nota
Técnica:
“Comportamento exemplificativo do tratamento dispensado à carga de terceiros pode ser verificado ao se analisar os volumes de transporte ferroviário de carga de algumas mercadorias, com o crescimento da produção e exportação. Tomemos o complexo do produto soja, por exemplo, composto por soja e farelo de soja. ... Considerando, portanto, essas características da utilização do modal ferroviário para escoamento da produção do complexo soja, depreende-se que o mais correto seria a realização de investimentos e estratégias de captação de carga por parte dos concessionários ferroviários com vistas a cooptar novos usuários e consequentemente mais carregamentos de soja.”
53. É evidente que a ausência de ampliação do transporte
ferroviário de soja não resulta de uma decisão arbitrária dos operadores
ferroviários. Não se trata de uma decisão "incorreta" a eles imputável.
A ausência de ampliação do transporte ferroviário nesse
segmento decorre de uma pluralidade de fatores – muitos deles consolidados
muito antes da outorga das concessões ora em vigor. De todo modo, a
composição de custos e as características do transporte ferroviário são
relevantes para explicar as razões da preponderância do transporte rodoviário
no Brasil.
54. O documento nem sequer cogita de algumas explicações
muito evidentes. Assim, o custo do transporte rodoviário pode ser inferior ao do
transporte ferroviário. Aliás, a Nota Técnica nem mesmo apresentou
comparativos entre os fretes rodoviário e ferroviário.
Seria indispensável examinar a formação de custos do
transporte ferroviário, especialmente para avaliar a viabilidade econômica do
atendimento a certos segmentos e locais.
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4.3.6 - A defeituosa avaliação da questão tarifária
55. A questão tarifária é objeto de outras considerações
igualmente destituídas do aprofundamento necessário à disciplina regulatória
do setor. Trata-se de uma avaliação sobre "preços" e "custos". O texto está
abaixo reproduzido:
“3.2 Preços x Custos Importante também para um melhor diagnóstico do setor é o desenvolvimento de análise comparativa entre preços praticados pelas concessionárias e os custos dos serviços prestados. Um indicador usualmente utilizado no setor ferroviário para medir a oscilação dos preços praticados é o Produto Médio, obtido pelo quociente entre as receitas auferidas e a produção de transporte de carga medida em tonelada quilômetro útil - TKU. ... Atendo-se ao período de 2002 a 2009, houve um crescimento de 106,1% do indicador Produto Médio, que alcançou percentual superior ao da inflação oficial medida IPCA do mesmo período, que foi de 66,5%. Observa-se, contudo, que a tarifa praticada sobre a carga de terceiros apresentou variação de 117,6% no Produto Médio, índice superior ao do total do setor. A análise desses dados nos permite concluir que as concessionárias, ao longo do período indicado, elevaram suas receitas médias em patamares próximos ao dobro da inflação, o que gerou reflexos negativos nos custos da cadeia produtiva, diretamente dependente da movimentação de mercadorias e insumos pela via férrea no Brasil. Outra análise importante é a evolução do custo unitário da prestação do serviço, obtido pelo quociente entre os Custos dos Serviços Prestados – CSP e a produção de transporte ferroviário de carga medida em TKU. Essa análise é feita por meio do estabelecimento de número índice, tendo como base 100 o ano de 2001. ... Se esses ganhos fossem repassados às tarifas dessas mercadorias (o que não se constata na prática), poderia haver significativa economia nos custos de transporte e uma maior competitividade dos produtos da economia brasileira como um todo. ... Com base nessas análises pode-se concluir que a maior parte do ganho de eficiência que ocorreu ao longo do período analisado não resultou na queda das tarifas médias praticadas, mas sim, na absorção desses ganhos quase que exclusivamente pela gestão financeira da operação e retorno aos acionistas das concessionárias.”
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56. O texto não contempla uma avaliação sobre a efetiva
composição dos custos das concessionárias. Também não há exame sobre os
resultados efetivamente obtidos pelas empresas do setor. E se tomou em vista
apenas o período posterior a 2001 – o que acarreta distorção das conclusões.
57. O parâmetro fundamental para imputar ganhos às
concessionárias foi a variação do “produto médio” (calculado sobre cargas de
terceiros) em relação à variação do IPCA a partir de 2001.
Ora, não existe qualquer relação entre os dois índices
adotados. Mais precisamente, o IPCA não é um índice adequado para apurar a
variação de custos de uma concessão de serviço de transporte ferroviário de
cargas.
O IPCA é um índice para calcular a elevação de custos de
famílias com renda de até 40 salários mínimos. Parte do pressuposto da
situação estável e compara as variações de preços quanto a alimentos,
habitação e tarifas públicas e outros produtos e serviços.
Esse índice é imprestável para avaliar a evolução dos
custos de uma concessionária de transportes ferroviários. E assim se passa
porque a manutenção do serviço envolve investimentos e desembolsos
descolados da inflação.
Em outras palavras, a formação de custos para a
prestação do serviço de transporte ferroviário varia de ano a ano. Esses custos
não se mantêm inalterados, especialmente pela necessidade de ampliação
dos serviços.
Portanto, chega às raias do descabido afirmar que as
tarifas ferroviárias “subiram” mais do que a inflação simplesmente porque,
eventualmente, a variação do produto médio foi superior ao IPCA.
58. Qualquer avaliação sobre a evolução das tarifas das
concessionárias dependeria da análise da composição de seus custos. Não
existe fundamento para afirmar que a elevação das tarifas acima do IPCA
significaria o aumento do "lucro" da concessionária e que tal deveria ser
repassado para as tarifas.
A afirmativa de que as concessionárias se apropriaram de
valores, ao invés de transferir ganhos para os usuários, não encontra suporte
Marçal Justen Filho - 23 -
em dados concretos.
4.3.7 - A efetiva transferência de benefícios para a sociedade
59. Ademais, a Nota Técnica ignorou um dado fundamental,
comprobatório da efetiva transferência de riquezas e benefícios para os
usuários e a sociedade em seu todo.
Existe informação de que, ao longo do período das
concessões, as concessionárias recolheram aos cofres públicos – sob diversos
títulos – valores superiores a um bilhão de reais. Não é possível ignorar a
dimensão social da transferência de tais recursos. Tais valores poderiam ter
sido repassados para as tarifas e representariam uma transferência direta de
benefícios para os usuários. Mas a circunstância de serem recolhidos aos
cofres públicos não afasta a existência do benefício indireto.
60. Mais precisamente, o esforço do Estado brasileiro para
tornar mais eficiente a atividade de transporte e menor o custo logístico
correspondente poderia traduzir-se em providências mais adequadas. Bastaria
reduzir a carga tributária e restringir os ônus cobrados dos concessionários.
Não existe coerência na postura de manter inalterados os
elevados encargos incidentes sobre serviços públicos e demandar que o
concessionário reduza custos e tarifas para os usuários.
4.4 – Síntese: o subjetivismo da proposta de reforma
61. A exposição acima evidencia a ausência de estudos
necessários e indispensáveis à alteração do marco regulatório do setor
ferroviário. Os problemas existentes não foram examinados com a
profundidade necessária. As propostas de reforma regulatória refletem
entendimento subjetivo, em que o Estado decide com base em intuições e
preferências não alicerçadas no conhecimento técnico-científico.
A gravidade dos defeitos verificados acarreta a invalidade
da reforma proposta. Não se admite que o Poder Público exercite uma
competência regulatória de modo imprudente, sem a adoção das cautelas
impostas pelo conhecimento técnico-científico.
Mas há outros defeitos bastante graves, tal como adiante
exposto.
Marçal Justen Filho - 24 -
5 – A questão do monopólio natural e da concorrência
62. É notável que a documentação produzida não tenha feito
alusão à proposta de implantar concorrência numa atividade que configura um
monopólio natural. Essa omissão é, ao ver do signatário, absolutamente
imperdoável sob o prisma regulatório.
5.1 - A questão do monopólio natural
63. O transporte ferroviário configura um monopólio natural.
Essa figura foi largamente estudada no âmbito econômico, especialmente por
suas decorrências no âmbito da concorrência10.
5.1.1 - As diversas acepções da expressão "monopólio"
64. Num sentido genérico, "monopólio" indica a existência de
um único agente promovendo a oferta de um produto ou serviço. Mas a
situação de monopólio pode resultar de diversos fatores.
Sob um prisma jurídico, há monopólios previstos pelo
Direito e há aqueles que surgem independentemente da disciplina normativa.
Assim, a CF/88 prevê casos de monopólio estatal nos arts. 176 e 177. Em
outros casos, o monopólio é resultado da atividade econômica e pode ser
admitido ou reprimido pelo Direito.
Já sob o ângulo econômico, é usual aludir a monopólio
"natural" para indicar certas situações que tendem, de modo inevitável, à
existência de um único fornecedor. O monopólio natural é intrinsecamente
diverso dos monopólios "acidentais", em que a existência de um fornecedor
único é mera casualidade.
Essas distinções são relevantes porque a atividade de
transporte ferroviário configura um monopólio natural.
5.1.2 - A figura do monopólio natural
65. Alude-se a monopólio natural para indicar as atividades
econômicas caracterizadas por elevados investimentos em despesas fixas
indispensáveis ao seu desenvolvimento, que se caracterizam por ganhos de
escala que resultam na redução de custos com a elevação da demanda.
10 Sobre o conceito de monopólio natural, consulte-se a obra fundamental de RICHARD A. POSNER, Natural Monopoly and its regulation, Washington: Cato Institute, 1999.
Marçal Justen Filho - 25 -
Isso significa que, nas hipóteses dos chamados
monopólios naturais, a concorrência é intrinsecamente inapta a gerar redução
de preços para os usuários11.
Assim se passa porque a existência de mais de um agente
econômico dificulta (senão inviabiliza) a amortização dos pesados
investimentos envolvidos. A duplicação das infraestruturas necessárias ao
desenvolvimento da atividade envolve custos extremamente elevados e a
divisão entre dois concorrentes da receita obtida inviabiliza a redução dos
preços.
Em suma, há uma lei econômica no sentido de que o
menor preço para o consumidor somente pode ser obtido mediante a atuação
de um único sujeito. A competição é economicamente ineficiente.
66. Portanto, o desenvolvimento das atividades que
configuram monopólio natural conduz, de modo inevitável, à consolidação da
exploração nas mãos de um único operador. A manutenção de mais de um
explorador é uma opção que prejudica a todos – inclusive e especialmente aos
consumidores, que são constrangidos a pagar preço mais elevado do que
poderiam obter se existisse um único operador.
5.1.3 - O monopólio natural e a competição
67. A intervenção regulatória estatal relativamente às
atividades que configuram monopólio natural pode ser desenvolvida sob
diversos modelos. Mas não é cabível impor a competição como forma de
"eliminar" o monopólio natural.
Assim se passa porque, em face da Economia, é
impossível eliminar o monopólio natural: a concorrência é uma solução
inadequada e indesejável.
68. Justamente por isso, foram desenvolvidos diversos
instrumentos para simular efeitos similares à competição. No estrangeiro,
11 O que não significa negar, como é evidente, que o usuário não estaria sujeito a prejuízos num regime monopolista. O que se afirma é que a competição no âmbito de monopólios naturais é incapaz de gerar benefícios para os usuários. Já a exploração monopolizada exige providências regulatórias para assegurar benefícios aos usuários. Sobre o tema, confiram-se as considerações do signatário em Teoria Geral das Concessões de Serviço Público, p. 179 e s.
Marçal Justen Filho - 26 -
usam-se as figuras usualmente conhecidas por yardstick regulation12: há
parâmetros a serem atingidos, há comparação entre operadores em situação
similar, há a redução progressiva de tarifas e assim por diante.
No entanto, é inviável a solução de implantar a competição
entre uma pluralidade de fornecedores.
5.1.4 - A inviabilidade da competição e a intervenção regulatória
69. A ausência de competição nos casos de monopólio natural
não é uma mera opção jurídica. O monopólio natural é incompatível com a
utilização da competição como instrumento para assegurar o menor preço e a
maior qualidade do serviço.
Justamente por isso, os casos de monopólio natural são
referidos como hipótese clássica para a intervenção regulatória. Cabe ao
Estado adotar instrumentos para assegurar o serviço mais adequado e a tarifa
mais módica possível.
Para tanto, uma solução tradicionalmente adotada é a
qualificação da atividade como serviço público.
5.1.5 - O monopólio natural e o serviço público
70. Em grande parte dos países, os monopólios naturais que
envolvem o atendimento de necessidades comuns essenciais são qualificados
como "serviço público". Ou seja, são transformados em atividades de
titularidade do próprio Estado – que as prestará diretamente ou mediante
concessão ou permissão à iniciativa privada.
Desse modo, assegura-se não apenas a satisfação das
necessidades coletivas, mas também se restringe a exploração das atividades
sob regime de exploração econômica privada. O Estado disciplina a prestação
do serviço, regulamenta a tarifa e assegura aos usuários o serviço mais
adequado possível.
12 Embora a expressão yardstick regulation seja bastante difundida na área econômica, cabe aqui mencionar que apresenta o mesmo significado de standard of comparison podendo, portanto, ser traduzida para o português como “padrão de comparação”. Resumidamente, é a sistemática que consiste em a autoridade identificar uma certa empresa como a mais eficiente na gestão dos custos variáveis do empreendimento. A remuneração prevista para essa empresa passa a ser o padrão para todas as demais. Isso significa que as empresas serão incentivadas a ampliar a própria eficiência para evitar perdas. Sobre o tema consulte-se RAFAEL WALLBACH SCHWIND, Remuneração do Concessionário: Concessões Comuns e Parcerias Público-Privadas. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 94-95.
Marçal Justen Filho - 27 -
5.2 - O transporte ferroviário de cargas: características
71. O transporte ferroviário de cargas apresenta
características de monopólio natural, exigindo elevadíssimos investimentos,
configurando-se como uma economia de escopo13.
5.2.1 - A inviabilidade da duplicação da infraestrutura
72. A infraestrutura do transporte ferroviário de cargas
apresenta custos tão elevados que é economicamente inviável a sua
duplicação14. Mais precisamente, a duplicação da infraestrutura acarretará a
inviabilização da amortização dos investimentos para todos os operadores.
5.2.2 - A demanda por capital intensivo
73. Sob outro ângulo, a implantação da infraestrutura envolve
investimentos iniciais muito elevados. Isso significa que o empreendimento
exige a aplicação de uma quantidade muito grande de recursos, que somente
serão amortizados em longo prazo. E o maior número possível de usuários
significa a amortização em menor espaço de tempo e a prática do menor preço
possível.
5.2.3 - A configuração de economias de escopo
74. Indo avante, a atividade ferroviária envolve a integração de
uma pluralidade de atividades interligadas. Configura-se uma economia de
escopo, na acepção de que o desenvolvimento conjugado de atividades
qualitativamente distintas permite custos inferiores àqueles que seriam obtidos
se cada atividade fosse desempenhada de modo isolado15.
13 Em síntese, “O transporte ferroviário opera sobre uma infraestrutura de trilhos, sistemas de sinalização e estações. Essas estruturas têm em comum a necessidade de investimentos intensivos em capital, e claramente apresentando custos irrecuperáveis, dada a ausência de usos alternativos. Além disso, existe também uma clara ineficiência associada à duplicação desta estrutura, o que caracteriza esta parte da atividade do transporte ferroviário como um monopólio natural” (ELIZABETH FARINA, PAULO F. DE AZEVEDO, PAULO PICCHETTI. A reestruturação dos setores de infra-estrutura e a definição dos marcos regulatórios: princípios gerais, características e problemas, em Ipea. Infra-estrutura: perspectivas de reorganização, regulação. Brasília: Ipea, 1997. v. 1, p. 75). 14 O que não significa, como é evidente, a inviabilidade da sua expansão. O problema reside especificamente na duplicação das mesmas linhas, com competição nos mesmos trechos. 15 Sobre o tema, consulte-se CLÁUDIO SZWARCFITER, PAULO ROBERTO T. DALCOL. Economias de Escala e de Escopo: Desmistificando alguns aspectos da transição. Produção (São Paulo), Belo Horizonte, vol. 7, n° 2, p. 117-129, 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/prod/v7n2/v7n2a01.pdf.
Marçal Justen Filho - 28 -
5.2.4 - Síntese: a inviabilidade da competição
75. Para sumariar, é inviável a competição no âmbito do
serviço ferroviário. Trata-se de um monopólio natural, em que a implantação
de concorrência entre diversos operadores é apta a propiciar efeitos
potencialmente danosos.
Qualquer solução orientada a promover a desagregação
dos serviços, de modo a produzir a competição em segmentos específicos,
deve ser praticada com extrema cautela.
5.3 – O caso concreto: a omissão sobre o tema
76. A documentação divulgada não se referiu às
características do monopólio natural, nem tratou das providências cabíveis em
face delas.
Trata-se de omissão irreparável, que demonstra a
ausência do preenchimento de requisitos fundamentais para produzir uma
reforma regulatória satisfatória.
6 – As características do sistema ferroviário brasileiro
77. Ademais, a documentação não tomou em vista outras
peculiaridades que dão identidade ao sistema ferroviário brasileiro.
6.1 – A configuração como serviço público
78. Tal como se passa com a generalidade das hipóteses de
monopólios naturais no Brasil, o transporte ferroviário de cargas foi
configurado como um serviço público. Isso decorreu da consideração da
inviabilidade da concorrência e da necessidade da presença estatal para
assegurar a existência e a adequação dos serviços.
6.2 – Problemas e dificuldades históricos
79. É evidente que as dificuldades quanto à existência e à
adequação dos serviços ferroviários não são um fenômeno recente. As
limitações existentes não são imputáveis às práticas adotadas pelas
concessionárias nos últimos quinze anos. Trata-se de questão histórica, cujas
raízes se relacionam a centenários e que devem ser necessariamente
considerados – e que nem sequer foram referidos na documentação divulgada.
Abaixo se encontram, de modo exemplificativo, algumas
da questões que foram ignoradas na documentação produzida como
Marçal Justen Filho - 29 -
fundamento da proposta de reforma.
6.2.1 - A dificuldade técnica específica: o relevo
80. Há uma dificuldade marcante no Brasil, que diz respeito ao
relevo terrestre. Existe uma barreira geológica entre o litoral e o interior do
Brasil, consistente numa região serrana paralela à planície litorânea.
Essas características acarretam radical elevação de custos
de implantação e de operação – até chegando a hipóteses de inviabilidade
técnica do serviço ferroviário.
6.2.2 - A dificuldade técnica específica: a energia elétrica
81. Em segundo lugar, existe uma dificuldade quanto à matriz
energética. Na maior parte dos países, o transporte ferroviário envolve o
consumo de energia elétrica. No Brasil, havia dificuldades quanto a essa
opção, o que acarretou a ampla utilização de derivados de petróleo para
movimentação das composições ferroviárias. Isso também acarreta a elevação
de custos, contribuindo para a inviabilidade da competição entre
transportadores ferroviários e rodoviários.
6.2.3 - A dificuldade socioeconômica específica: as regiões urbanas
82. Outra dificuldade marcante, própria do Brasil, envolve a
dimensão das aglomerações urbanas. O fenômeno da urbanização acarretou o
estrangulamento das áreas destinadas ao transporte ferroviário. Isso
representa um obstáculo para a existência e a manutenção de vias férreas.
6.2.4 - A dificuldade socioeconômica específica: a dispersão geográfica
83. Sob outro enfoque, verifica-se que as cargas encontram-se
em locais distantes entre si. A vastidão espacial do Brasil significou a
dispersão das cargas por largos espaços.
6.3 - Colapso e renascimento do transporte ferroviário no Brasil
84. Esses e outros fatores conduziram à prevalência do
transporte rodoviário de cargas no Brasil. Esse foi o resultado da exploração
mais eficiente dos recursos econômicos, segundo os mecanismos econômicos
espontâneos.
85. No início da década de 1990, o transporte ferroviário de
cargas se apresentava em situação extremamente precária. É até
desnecessário destacar a situação de quase insolvência da antiga RFFSA, que
Marçal Justen Filho - 30 -
atuava com prejuízos diários de valores em torno de um milhão de dólares. A
situação era caótica e tendia à extinção do serviço em questão.
Mas o transporte ferroviário renasceu no Brasil a partir das
soluções adotadas ao longo dos anos 1990. Foi adotado um novo marco
regulatório, vinculado ao Programa Nacional de Desestatização (PND), e os
serviços públicos foram delegados à iniciativa privada por meio de
concessões. Numa primeira etapa, tratou-se de promover a recuperação da
malha e a atualização dos serviços.
Segundo as informações prestadas, os diversos
operadores transferiram para os cofres públicos um montante aproximado de
um bilhão de dólares. Os investimentos realizados totalizaram mais de uma
dezena de bilhão de dólares. Existe a perspectiva de investimentos muito
relevantes nos próximos anos.
86. Esses dados não constam dos exames produzidos para
fundamentar a proposta de reforma. Não houve qualquer comparação entre a
situação anterior às concessões e a situação atual. Nem há referência aos
problemas estruturais a serem enfrentados, que explicam a prevalência do
transporte rodoviário no Brasil.
6.4 - As dificuldades existentes e a cautela na reforma regulatória
87. Nesse cenário, existe o reconhecimento pelo Estado
quanto a dificuldades e limitações nos serviços ferroviários. Mas isso não
significa descartar que a implantação de uma reforma regulatória demanda
enorme cautela.
6.4.1 - O modelo atual: definição estatal
88. Assim se passa porque o modelo atual foi implantado pelo
Estado brasileiro. A situação não resultou da ausência de intervenção estatal.
Essa consideração é relevante por dois motivos.
Em primeiro lugar, para afastar o argumento de que os
atuais operadores teriam implantado uma concepção orientada ao próprio
benefício. Esse tipo de consideração é um verdadeiro despropósito. Trata-se
de um sistema de serviço público, em que os operadores atuam exatamente
de acordo com as determinações do poder concedente. Quaisquer práticas
que configurem desvio ou falhas em face da disciplina regulatória são ilícitas e
Marçal Justen Filho - 31 -
autorizam sancionamento e repressão pelo Estado.
Em segundo lugar, para destacar que é muito problemático
encontrar um modelo perfeito e que são indesejáveis modificações radicais. A
evolução econômica é um processo de permanente adequação. Rompimentos
radicais são muito prejudiciais e podem produzir resultados muito negativos.
6.4.2 - A alteração da realidade e a cautela regulatória
89. A alteração do panorama econômico brasileiro e a
ampliação da utilização do transporte ferroviário são objetivos a serem
buscados. Mas o sucesso nessa transformação radical não será obtido
mediante a simples alteração de algumas regras do marco regulatório. Serão
indispensáveis estudos minuciosos e detalhados. Todas as cautelas deverão
ser adotadas, até porque se trata de um cenário existente há muitas décadas.
7 – Síntese sobre o caso concreto: defeitos técnicos da proposta
90. As considerações anteriores evidenciam a ausência de
cumprimento dos requisitos indispensáveis à alteração do atual marco
regulatório. A proposta apresentada infringe, por isso, os requisitos de validade
impostos ao exercício da função regulatória.
7.1 – A vedação à "imprudência" e à "imperícia" regulatórias
91. Recai sobre todo agente estatal um dever de diligência
especial. O sujeito investido em competências estatais tem o dever jurídico de
cercar-se de todas as precauções para evitar atuação imprecisa, defeituosa ou
inadequada.
92. Assim se passa no tocante à competência regulatória. A
titularidade da competência para regular um setor não autoriza a edição de
regras precipitadas, inadequadas ou incorretas. Configura infração ao princípio
da República o exercício pelo agente público da competência regulatória com
imperícia ou imprudência. Aliás, nem sequer seria necessária a exigência de
elemento subjetivo reprovável, eis que a responsabilização civil objetivada do
Estado reflete a determinação constitucional no sentido de que a conduta
defeituosa do agente estatal, que acarretar danos a particulares, implicará o
dever de indenizar as perdas e danos sofridos (art. 37, § 6º, da CF).
7.2 – O direito fundamental à "boa administração"
93. Existe, em suma, um direito fundamental à boa
Marçal Justen Filho - 32 -
administração16. Sob um aspecto, isso significa que a titularidade da
competência discricionária não corresponde a um "cheque em branco", para
utilizar uma expressão consagrada17.
A discricionariedade é instituída para assegurar a
produção da melhor decisão possível, em nível infraconstitucional e infralegal.
Portanto, estão proscritas decisões impensadas, apressadas, emocionais.
Mais precisamente, não basta a autoridade administrativa
invocar a titularidade de sua competência. É indispensável que o ato
administrativo reflita a adoção de procedimentos necessários e indispensáveis
para a obtenção da melhor decisão possível. Essa é uma exigência inerente
ao processo regulatório num Estado democrático.
A não observância desses procedimentos e a ausência de
demonstração de que a decisão adotada resultou da ponderação técnico-
científica dos fatores envolvidos violam o direito fundamental à boa-
administração. É inválida a disciplina regulatória fundada exclusivamente na
decisão subjetiva da autoridade administrativa18.
8 – A violação ao princípio da legalidade
94. Admitindo para argumentar que fosse cabível ignorar a
infração aos requisitos de uma reforma regulatória, existiriam obstáculos
jurídicos insuperáveis na proposta examinada.
O primeiro e mais evidente reside na infração ao princípio
da legalidade. A proposta de reforma envolve inovações jurídicas radicais, que
não estão comportadas na competência regulamentar da Agência.
95. Lê-se no documento o seguinte:
“A presente Nota Técnica tem por objeto discutir o aprimoramento da
16 Nesse sentido, confira-se JUAREZ FREITAS, Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa administração pública, São Paulo: Malheiros, 2007. 17 V. CAIO TÁCITO, Temas de direito público (estudos e pareceres), vol. 1, Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 52. 18 Nessa linha, MARIA PAULA DALLARI BUCCI assevera: “Cada vez mais os atos, contratos, regulamentos e operações materiais encetados pela Administração Pública, mesmo no exercício de competências discricionárias, devem exprimir não a decisão isolada e pessoal do agente público, mas escolhas politicamente informadas que por essa via demonstrem os interesses públicos a se concretizar. A formulação da política consistiria, portanto, num processo, e os programas de ação do governo seriam decisões decorrentes desse processo. Nesse sentido, o incremento das atividades concernentes à elaboração das políticas e à sua execução insere-se num movimento de ‘procedimentalização das relações entre os poderes públicos’”. (Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 267-268.)
Marçal Justen Filho - 33 -
interpretação das regras aplicáveis à exploração da infraestrutura ferroviária e à prestação dos serviços de transporte ferroviário de cargas e proceder à apresentação do Regulamento de Defesa dos Usuários do Transporte Ferroviário de Cargas.”
96. O texto reconhece, de modo implícito, a inviabilidade
jurídica de inovações normativas relevantes serem produzidas por meio de
resolução editada por uma agência reguladora. Tanto é assim que o texto
sugere que as propostas tratam de uma “consolidação” das regras e da
“discussão” e “aprimoramento” de sua interpretação.
Na sequência, o texto defende a tese de que a proposta de
reforma do marco regulatório não importaria a edição de alterações normativas
relevantes – o que não é procedente, tal como será exposto adiante.
97. Basta examinar as três minutas de resolução e os termos
da Nota Técnica nº 27/2011/SUREG para reconhecer que não se trata de
consolidação de regras atualmente aplicáveis ao setor. Nem existe um simples
processo de aprimoramento da interpretação de regras vigentes.
Trata-se de introduzir modificações radicais, aptas a alterar
de modo relevante o sistema de transporte ferroviário de cargas. Justamente
por isso, um dos pontos centrais da controvérsia se relaciona com a extensão
da competência normativa da ANTT.
É indispensável apontar a ausência de poderes normativos
da ANTT para introduzir inovações regulatórias que escapam ao limite da
competência regulamentar.
98. Mais grave ainda, a proposta de reforma se alicerça em
pressupostos jurídicos defeituosos, que acarretam formulações que violam a
Constituição e as leis.
9 – As deficiências nos pressupostos jurídicos
99. A fundamentação jurídica da proposta, também contida na
Nota Técnica, incorre em defeitos que comportam crítica severa. A Nota
Técnica adotou fundamentação eivada de incorreções jurídicas extremamente
graves, especialmente no tocante ao conceito e ao regime jurídico de serviço
público.
9.1 - O conceito e a configuração de serviço público
100. A origem dos equívocos encontra-se, possivelmente, na
Marçal Justen Filho - 34 -
ausência de identificação do regime jurídico próprio dos serviços de transporte
ferroviário.
9.1.1 - A orientação consagrada na Nota Técnica
101. As definições jurídicas adotadas na Nota Técnica
encontram-se concentradas especialmente no trecho abaixo reproduzido:
“5. Do serviço público e os princípios que orientam a outorga O serviço público, a rigor, representa todas as atividades desenvolvidas pelo Estado, direta ou indiretamente, por atribuição legal, para a consecução de seus fins, satisfazendo necessidades coletivas, sob regime de direito público total ou parcial (DI PIETRO, 2004, p. 99). MEIRELLES assim define (2000, p. 306): ... Destarte, o serviço de transportes terrestres, em geral, poderá ser considerado como serviço de utilidade pública, impróprio do Estado, industrial (por produzir renda ao que presta – remuneração por tarifa ou preço público) e uti singuli.”
Essas passagens não refletem o entendimento mais
apropriado sobre a ordem jurídica brasileira.
9.1.2 - A figura do "serviço de utilidade pública"
102. Afirmar que o serviço de transporte terrestre configuraria
um "serviço de utilidade pública" é um equívoco. E que não comporta qualquer
justificativa, eis que infringe diretamente o texto da própria Constituição.
103. A Constituição Federal não contempla qualquer alusão à
categoria de “serviço de utilidade pública”. O texto alude apenas a serviços
públicos. E os serviços de transporte terrestre são especificamente
qualificados como públicos. Basta lembrar o art. 30, V, que determina que
"Compete aos Municípios: ... organizar e prestar, diretamente ou sob regime
de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído
o de transporte coletivo, que tem caráter essencial" (sem negrito no original).
Aliás, a própria Nota Técnica nº 27/2011/SUREG
reconhece expressamente que o transporte é atividade “que tem natureza de
serviço público essencial” (p. 14).
104. Algumas pessoas realizam alguma confusão em virtude da
influência do pensamento estrangeiro. No âmbito anglo-saxão, o atendimento
a necessidades coletivas faz-se por meio das "public utilities". Por isso, alguns
Marçal Justen Filho - 35 -
chegam a aludir a "public utilities services" – o que poderia conduzir a uma
tradução literal para o português: serviço de utilidade pública.
Mas essa aproximação é absolutamente imprestável e
merece intensa crítica. No direito anglo-saxão, não existe o conceito de
"serviço público". Ao menos, não há a distinção entre regime de direito público
e regime de direito privado.
Sob esse ângulo, afirmar que o serviço público do direito
brasileiro é um "serviço de utilidade pública" é um equívoco jurídico.
105. É verdade que a expressão "serviço de utilidade pública" é
utilizada em algumas passagens para indicar serviços de natureza privada,
que são aptos a satisfazer necessidades coletivas. Mas esses serviços são
disciplinados pelo direito privado. Aí se enquadram as farmácias, padarias,
bancos e assim por diante. Não estão compreendidos nessa categoria os
serviços públicos.
106. Portanto e de acordo com a Constituição e com as leis do
Brasil, é absolutamente pacífico que o transporte ferroviário de cargas é um
serviço público, próprio do Estado e que deve ser prestado pela União,
diretamente ou mediante concessão ou permissão (outorgadas sempre
mediante licitação). Qualquer formulação distinta é antijurídica.
Qualquer solução distinta dependeria da modificação da
Constituição ou, no mínimo, da Lei nº 10.233. Certamente, uma resolução
administrativa não seria uma alternativa válida para modificação nesse
arcabouço regulatório.
9.1.3 - A distinção entre serviço público e atividade econômica privada
107. Por outro lado, a Nota Técnica incorre em uma profunda
confusão entre serviço público e atividade econômica privada. Essa distinção
foi sistematizada por Eros Grau19 e recebeu expressa incorporação na
jurisprudência do próprio STF20.
19 A Ordem Econômica na Constituição de 1988, 11 ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 110 e s. 20 Nesse sentido, “A atividade econômica em sentido amplo é gênero que compreende duas espécies, o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito.” ADPF 46, rel. Min. MARCO AURÉLIO, rel. p/ Acórdão: Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, j. em 05/08/2009, DJe 25-02-2010)
Marçal Justen Filho - 36 -
Trata-se de interpretar o Capítulo da Ordem Econômica na
Constituição Federal. Examinando os arts. 170 e seguintes, verifica-se que a
Constituição adotou dois regimes jurídicos básicos para a exploração dos
recursos econômicos escassos.
Há um setor que se configura como exploração de
atividade econômica, reservado à iniciativa privada e que se desenvolve
segundo os postulados da livre iniciativa e da livre concorrência. O art. 170
disciplina esse setor.
A regra fundamental que norteia tais atividades é a de que
"É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,
independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos
previstos em lei" (art. 170, parág. único).
Nesse âmbito, a intervenção direta pelo Estado se
configura como uma exceção, subordinada às regras do art. 173.
As atividades econômicas privadas são desempenhadas
sob regime de direito privado.
108. Ademais, há o setor de serviço público, objeto de disciplina
do art. 175. Ali está previsto que "Incumbe ao Poder Público, na forma da lei,
diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de
licitação, a prestação de serviços públicos".
Os serviços públicos são prestados sob regime de direito
público. São de titularidade do Estado e sua prestação por particulares se faz
por meio de concessão ou permissão – institutos que não eliminam a
configuração de um serviço público.
109. A Constituição também prevê o monopólio de certas
atividades privadas em favor da União, no art. 177. Essas atividades não
configuram serviço público, especificamente porque não são orientadas a
satisfazer necessidades coletivas essenciais. São desenvolvidas sob regime
de direito privado.
9.1.4 - O serviço público de transporte ferroviário de cargas
110. O serviço de transporte ferroviário de cargas é um serviço
público de titularidade da União, a quem incumbe a sua prestação diretamente
ou por meio de concessão ou permissão. Ainda quando haja delegação à
Marçal Justen Filho - 37 -
iniciativa privada, tais serviços sempre serão regidos pelo direito público.
9.2 - O regime jurídico de serviço público
111. O regime de serviço público, aplicável no âmbito das
concessões de serviço público, apresenta certas características.
9.2.1 - O texto da Nota Técnica e a confusão entre regimes
112. A Nota Técnica incorreu em confusão inquestionável
quanto ao regime jurídico do serviço público, transpondo a ele princípios
próprios da atividade econômica privada. Lê-se no texto:
“De posse do conceito de serviços públicos, de maneira geral cumpre observar que são pautados nos princípios dispostos na Constituição Federal, identificados como parâmetros para orientar as relações jurídicas entre os agentes envolvidos no desempenho da atividade. São eles: a) função social da propriedade (art. 5º, XXIII da Constituição da República) – na medida em que a utilização do bem público consubstanciado no serviço de transporte deve permitir inclusão social e ampliação de acesso; b) função social do contrato (art. 421 Código Civil) – tendo em vista que o serviço, que detém interesse coletivo, se materializa pelo contrato e tem por escopo atender objetivos maiores do que aqueles meramente estipulados no acordo bilateral; c) função social do serviço público de interesse coletivo (art. 7º, II da Lei 8.987/9521) – dentre suas missões precípuas, cabe ao transporte tanto a movimentação a mão-de-obra dos centros urbanos, como o desenvolvimento econômico de pólos regionais, pela viabilização dos insumos e escoamento de produção agrícola ou industrial, atividade essencial que qualifica o serviço prestado; d) livre iniciativa e livre concorrência (arts. 1º, IV e 170, IV da Constituição Federal) – o mercado deve estar aberto à entrada de novos players, aptos a desenvolver o serviço, garantindo-se ambiente concorrencial saudável, para o desempenho das atividades empresariais; e) equilíbrio econômico-financeiro (arts. 37, XXI da CF, 58, § 2º da Lei 8.666/93 e 9º, § 2º e 10 da Lei 8.987/95) – o princípio sobreleva o nível justo de remuneração para o serviço, fomentando tanto a competitividade como a adequação das tarifas (modicidade tarifária) e tendo em vista o contrato de prestação do serviço público, no qual residem as condições
21 Supõe-se a existência de um erro material nessa passagem da Nota Técnica. O Art. 7º da Lei tem a seguinte redação: “Sem prejuízo do disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, são direitos e obrigações dos usuários: ... II - receber do poder concedente e da concessionária informações para a defesa de interesses individuais ou coletivos”. Ou seja, o dispositivo referido não tem qualquer vínculo com “função social”.
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inicialmente estabelecidas na licitação ou processo de outorgada; e f) dirigismo contratual – interpretação das cláusulas do instrumento de concessão da exploração de serviço público segundo o interesse público e em prol do maior benefício social.”
Com o maior respeito, o trecho acima reproduzido não
reflete a ordem jurídica vigente no Brasil, tal como abaixo evidenciado.
9.2.2 - A não aplicabilidade do regime próprio da atividade econômica
113. O regime de serviço público não é norteado pelos
princípios da função social da propriedade privada, da função social do
contrato, da livre iniciativa e da livre concorrência e do dirigismo contratual.
Aliás, não existe um princípio constitucional de dirigismo contratual.
114. Assim se passa porque o serviço público é público. O
serviço público pode ser prestado mediante a utilização de bens públicos (e de
bens privados afetados à concessão). Portanto, não há cabimento em aludir à
função social da propriedade privada, que somente é relevante para a
exploração dos bens que não se encontram afetados aos serviços públicos. Os
bens afetados aos serviços públicos necessariamente estão orientados ao
cumprimento de uma função pública específica, que se traduz na própria
prestação do serviço.
115. Nem há cabimento em aludir a função social dos contratos,
determinação contemplada no Código Civil para as relações entre particulares.
O regime próprio dos contratos administrativos impõe uma pluralidade de
competências anômalas em favor do Poder Público, que asseguram a
realização dos fins de interesse coletivo. Mas o Código Civil não se aplica no
âmbito das relações entre Poder Concedente e concessionário de serviço
público (ressalvadas situações secundárias e de importância menor).
116. Também atinge às raias do inimaginável reputar que o
serviço público é disciplinado pelos princípios da livre concorrência e da livre
iniciativa. Chega a ser chocante a afirmação de que "o mercado deve estar
aberto à entrada de novos players, aptos a desenvolver o serviço, garantindo-
se ambiente concorrencial saudável, para o desempenho das atividades
empresariais". Ora, o art. 170 da CF/88, inclusive na parte que prevê a livre
concorrência e a livre iniciativa, disciplina as atividades privadas e não se
Marçal Justen Filho - 39 -
aplica ao serviço público.
Nesse ponto, a afirmativa constante da Nota Técnica é
frontalmente contrária ao art. 175 da CF/88.
117. E, por fim, não existe o princípio do "dirigismo contratual".
No direito brasileiro, prevalece o disposto no art. 174 da CF/88, ao consagrar
que "Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado
exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento,
sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor
privado" (original sem negrito).
9.3 - Os princípios próprios do regime de serviço público
118. É necessário, então, destacar os princípios próprios do
regime de serviço público, os quais não foram adequadamente considerados
no corpo da Nota Técnica.
9.3.1 - A titularidade do Estado
119. Em primeiro lugar, o serviço público é de titularidade do
Estado. Isso exclui a livre iniciativa e a livre concorrência. Cabe ao ente
estatal, titular do serviço, promover a sua prestação. Poderá fazê-lo
diretamente ou mediante concessão ou permissão de serviço público – e,
nesses casos, são reconhecidas competências unilaterais e prerrogativas
extraordinárias para o Estado.
Em qualquer caso, nenhum agente privado tem direito,
interesse ou poder jurídico de assumir a prestação da atividade de serviço
público invocando a livre iniciativa ou a livre concorrência.
Isso tem reflexos diretos na questão da exclusividade, tal
como se verá adiante.
8.3.2 - A adequação: mutabilidade, universalidade e modicidade tarifária
120. O serviço público deve ser adequado a satisfazer as
necessidades coletivas, cujo atendimento justifica a sua própria instituição.
Como decorrência, o serviço público se caracteriza pela
mutabilidade. Há um dever-poder de o ente estatal adequar as condições
técnicas da prestação, de modo a assegurar o seu permanente
aperfeiçoamento.
Marçal Justen Filho - 40 -
121. Além disso, o serviço público deve ser prestado a todos os
que dele necessitam. Isso envolve inclusive uma dimensão de isonomia, o que
importa vedação a discriminações injustificadas entre os usuários. É evidente,
no entanto, que a universalização é uma meta a ser atingida, tomando em
vista as limitações decorrentes da reserva do possível.
Ademais, o serviço público comporta a cobrança de
remuneração – seja por meio de taxa, seja nos casos de tarifa. Não cabe
aprofundar a discussão sobre esse tema, agora. O que é relevante é asseverar
que a modicidade significa a fixação do menor valor possível, de modo a
assegurar a possibilidade de fruição do serviço por todos aqueles que dele
necessitam.
9.3.3 - A delegação a particulares mediante licitação
122. A delegação do serviço público para a prestação por
privados depende de licitação. Assim está determinado no art. 175 da CF/88,
que merece ainda outra transcrição: "Incumbe ao Poder Público, na forma da
lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de
licitação, a prestação de serviços públicos".
9.3.4 - A preservação da equação econômico-financeira da outorga
123. Uma vez promovida a delegação do serviço público e
especialmente nos casos de outorga mediante licitação, assegura-se a
manutenção da relação original entre encargos e vantagens. Trata-se da
determinação constitucional de intangibilidade da equação econômico-
financeira dos contratos administrativos (art. 37, XXI).
Nesse sentido, o art. 10 da Lei nº 8.987 prevê que,
"Sempre que forem atendidas as condições do contrato, considera-se mantido
seu equilíbrio econômico-financeiro". Razão porque, "Em havendo alteração
unilateral do contrato que afete o seu inicial equilíbrio econômico-financeiro, o
poder concedente deverá restabelecê-lo, concomitantemente à alteração".
124. A Nota Técnica aludiu à exigência constitucional da
preservação da equação econômico-financeira das outorgas. No entanto, é
cabível uma correção às considerações ali desenvolvidas.
A tutela constitucional e legal da equação econômico-
financeira da concessão de serviço público não se fundamenta no critério de
Marçal Justen Filho - 41 -
"justo" ou "injusto". Tal como consta do art. 37, inc. XXI, determina-se que
sejam "mantidas as condições efetivas da proposta".
Justamente por isso, a tutela à equação econômico-
financeira não tem qualquer relação com fomentar "tanto a competitividade
como a adequação das tarifas (modicidade tarifária)".
125. Nesse ponto, o signatário confessa a sua dificuldade em
compreender o trecho contemplado na Nota Técnica22.
Apenas por cautela (até porque o signatário não
compreendeu o significado do texto adotado na Nota), frise-se que não cabe
modificar a relação original entre encargos e vantagens sob o argumento da
justiça, nem sob a invocação do fomento à competição, nem em virtude da
necessidade de modicidade tarifária.
É inquestionável que o poder concedente dispõe de
poderes para modificar algumas condições da outorga, respeitados alguns
limites. Mas tais alterações devem ser compensadas por medidas
concomitantes orientadas à recomposição da equação. Tal será mais bem
examinado adiante.
9.4 – As deficiências quanto ao instituto da concessão de serviço público
126. A proposta de alteração do marco regulatório adota
concepções defeituosas também relativamente ao instituto da concessão de
serviço público.
9.4.1 - O objeto da outorga: a prestação do serviço
127. O texto afirma que a concessão de serviço público
asseguraria ao concessionário faculdades peculiares ao direito de propriedade:
“De fato, a outorga, quando realizada, garante exclusivamente, alguns dos direitos atrelados à propriedade, a saber: a) uso não exclusivo do bem público: o arrendatário tem a prerrogativa de utilizar o bem público para desempenhar a atividade, no caso de transporte ferroviário. No caso de concessão precedida de obra pública, como se deu no modelo ferroviário, ante a natureza indissociável entre a obra e a estrutura, há essa vinculação ao bem público, fato que não autoriza o
22 Apenas para relembrar, lê-se na Nota Técnica n° 27/2011/SUREG o seguinte: "o princípio sobreleva o nível justo de remuneração para o serviço, fomentando tanto a competitividade como a adequação das tarifas (modicidade tarifária) e tendo em vista o contrato de prestação do serviço público, no qual residem as condições inicialmente estabelecidas na licitação ou processo de outorga".
Marçal Justen Filho - 42 -
compromisso de o serviço ser prestado, insista-se, exclusivamente, pelo ganhador da concorrência pública; b) gozo e fruição do bem público: enquanto titulares da concessão do serviços, têm a prerrogativa de se utilizar da via e colher os frutos decorrente da infraestrutura, para que possam explorar e desenvolver o transporte ferroviário de cargas (como destacado nos contratos de concessão), consubstanciado esse ato tanto no transporte em si como na venda do tráfego sobre a via, mediante remuneração, para o transporte realizado por terceiros, sob licenciamento do outorgatário; c) disposição do bem público: [o]s bens de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis ou indisponíveis, porque destinados à coletividade ou ao serviço público, respectivamente...”
O trecho acima reproduzido não tem respaldo jurídico. A
concessão de serviço público tem por objeto a delegação da prestação do
serviço público. O uso dos bens públicos é um instrumento, quando
necessário, para a execução do contrato.
128. É incorreto afirmar que a outorga "garante exclusivamente
alguns dos direitos atrelados à propriedade".
Em primeiro lugar, a outorga não "garante" propriamente
algo ao concessionário. Ela impõe a ele o dever-poder de executar uma
prestação.
Em segundo lugar, é descabido reputar que a outorga
atribua ao concessionário direitos atrelados à propriedade. O núcleo de uma
concessão de serviço público é a prestação do serviço. Não se trata de
transferir ao concessionário poderes inerentes à propriedade de bens públicos,
mas a ele se impõe o encargo de desempenhar as atividades necessárias à
satisfação de necessidades coletivas.
8.4.2 - O equívoco quanto à desagregação do serviço público
129. A Nota Técnica pretende promover a desagregação do
serviço público de transporte ferroviário de cargas. Assim se lê no texto:
“... Consoante interpretação sistemática do ordenamento, pode-se depreender que ou a concessionária explora o serviço de transporte, realizando-o diretamente ou viabilizando o acesso de terceiros à via (como já o faz no caso do Direito de Passagem), explorando o bem, mediante remuneração. ... Como se percebe, para os fins da concessão, serviço de transporte tanto
Marçal Justen Filho - 43 -
pode ser considerado o deslocamento espacial da carga (pessoas ou produtos), entre dois pontos espacialmente separados, sobre os trilhos, como o ato de viabilizar o tráfego de terceiro interessado em utilizar a infraestrutura, mediante remuneração, que se compreende por gozo e fruição. Em razão disso, qualquer agente que trafegue sobre a via arrendada deve pagar ao arrendatário pela viabilização do transporte, atividade que tem natureza de serviço público essencial, quando considerada sua importância, em especial, para o mercado exportador brasileiro. ... Nota-se que o conceito de exploração e desenvolvimento do serviço público atrela-se, essencialmente, à administração do bem público e não ao monopólio do transporte em si”.
Trata-se de outra construção destituída de procedência.
130. O ponto fundamental reside em que os atuais
concessionários receberam uma outorga para a prestação do serviço público
de transporte, considerado esse serviço de modo conjunto e integral. Mais
precisamente, a concessão de serviço público de transporte ferroviário de
cargas outorgada no caso concreto impõe ao concessionário o dever-poder
jurídico de prestar o serviço na sua integralidade, ou seja, tanto no aspecto das
cargas a serem transportadas, quanto no tocante à utilização da ferrovia.
131. Ao contrário do que afirma o texto da Nota Técnica, o
objeto da concessão de serviço público de transporte não consiste numa
espécie de prerrogativa de explorar bens públicos para obter remuneração. O
objeto da concessão não consiste na escolha entre prestar o serviço ou cobrar
pelo uso da infraestrutura por terceiros. A concessão tem um objeto unitário,
que compreende todas as atividades que compõem o serviço público.
132. Justamente por isso, o concessionário tem o dever-poder
jurídico de promover todas as atividades que compõem o serviço objeto da
outorga. Não se trata nem mesmo de uma faculdade23. Cabe ao
concessionário o dever-poder de opor-se à exploração pura e simples da
infraestrutura por terceiros.
23 Nessa linha, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO assevera: “... as prerrogativas da Administração... se qualificam e melhor se designam como ‘deveres-poderes’, pois nisto se ressalta sua índole própria e atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas
Marçal Justen Filho - 44 -
Assim, suponha-se que o concessionário resolvesse que
não asseguraria aos usuários algumas das prestações inerentes ao serviço
concedido e afirmasse que caberia aos próprios usuários providenciar uma
solução. É evidente que tal configuraria violação aos deveres inerentes à
outorga.
9.5 – Os defeitos jurídicos e suas decorrências
133. Os defeitos no tocante aos institutos do serviço público e
da concessão de serviço público redundaram em propostas eivadas de
defeitos jurídicos. As inovações apresentadas infringem a disciplina
constitucional e legal atinente ao serviço público de transporte ferroviário de
cargas e as regras contratuais em vigor.
10 - A questão da eliminação da exclusividade
134. Um aspecto essencial da reforma do marco regulatório
envolve a eliminação da garantia da exclusividade tal como outorgada aos
concessionários por ocasião da licitação.
10.1 - A implantação da competição
135. As modificações propostas envolvem a instituição de
competição no âmbito dos serviços de transporte ferroviário de cargas. Essa
competição se faria entre as concessionárias entre si (que poderiam captar
cargas fora da área de sua outorga) e com os usuários. Basicamente, o texto
abaixo reproduzido, constante da Nota Técnica, sintetiza essa concepção:
“O Regulamento tem também por escopo assegurar que os usuários possam ampliar sua capacidade de negociação com as concessionárias, realizando atividades não exclusivas de transporte ferroviário, com vistas à eficiência e modicidade tarifária. Poderá, ainda, o operador de transporte multimodal, disposto na Lei nº 9.611/98, em relação ao trecho ferroviário de seu fluxo, contratar com a concessionária, para que realize integralmente o transporte no percurso sob seu serviço férreo ou somente viabilize a malha e a segurança da via.”
As propostas adotaram diversas regras para implantar a
competição. Por um lado, o Regulamento para Pactuar as Metas previu, no art.
9º, o seguinte:
“Art. 9º – A capacidade ociosa de cada trecho será obrigatoriamente
inerentes limitações”, ob. cit., p. 72.
Marçal Justen Filho - 45 -
disponibilizada a outras concessionárias para realização de direito de passagem ou tráfego mútuo, ou a usuários ou Operadores de Transporte Multimodal - OTM para contratação de licenciamento e equipagem, conforme previsto no Regulamento de Defesa dos Usuários.”
Ademais, pretende-se implantar a competição inclusive
entre as concessionárias, que poderão receber cargas em qualquer malha.
Isso consta da previsão contemplada no art. 3º, § 1º, da minuta de
Regulamento para Operações de Direito de Passagem (Audiência Pública nº
115/2011), abaixo reproduzido:
“Art. 3º O compartilhamento de infraestrutura ferroviária ou de recursos operacionais dar-se-á mediante tráfego mútuo ou, na sua impossibilidade, mediante direito de passagem. § 1º O compartilhamento a que se refere o caput poderá ser feito de forma a garantir que uma concessionária possa receber ou entregar cargas na malha de outra concessionária” (original sem negrito)
10.2 – As três modalidades de eliminação da exclusividade
136. A exclusividade será eliminada pela adoção de três
medidas distintas.
A primeira consiste na faculdade de as atuais
concessionárias competirem amplamente entre si. Está prevista a
possibilidade de recebimento de cargas na área de outorga alheia – o que
significa uma inovação radical em face da disciplina ora vigente, que determina
que as concessionárias podem apenas promover a entrega de cargas no
âmbito de outras concessões.
A segunda se relaciona com a figura do Operador de
Transporte Multimodal. O laconismo da disciplina da figura não exclui a
garantia de sua ampla atuação em competição com os atuais concessionários.
A terceira se relaciona com uma solução de submissão do
concessionário às decisões de usuários. O concessionário poderá ser
constrangido a operar em condições distintas daquelas praticadas em relação
à generalidade dos demais usuários. Em essência, algumas categorias de
usuários serão autorizadas a obter um regime diferenciado, que importará uma
forma de competição com o próprio concessionário.
Marçal Justen Filho - 46 -
10.3 – O núcleo da proposta: a privatização do serviço
137. Em suma, o núcleo da proposta reside em despublicizar o
serviço público de transporte ferroviário de cargas. Afinal, a relação entre o
concessionário e o usuário (dependente, investidor ou OTP) passará a ser
regida pelo direito privado.
Ou seja, haverá um contrato entre a concessionária e o
usuário, disciplinando relações jurídicas que, em face da Constituição e da lei,
são inerentemente de serviço público. Haverá uma prestação de serviço
regida, em última análise, pelo direito privado.
10.4 – A violação à Constituição: o risco de destruição do serviço público
138. Essas propostas colocam em risco a existência do serviço
público protegido constitucionalmente.
10.4.1 – A determinação constitucional da existência do serviço público
139. Como exposto, existe a determinação constitucional da
existência de serviços públicos de transporte ferroviário. Isso significa o dever
de universalização do serviço correspondente – dever esse que recai
primeiramente sobre a própria União.
10.4.2 – A proteção em favor do serviço público
140. A garantia de exclusividade não é estabelecida como um
benefício em favor do concessionário. Trata-se de um mecanismo de defesa
do serviço público – o qual, na origem, é necessariamente dotado de cunho de
exclusividade.
Assim se passa porque todo e qualquer serviço público é
de titularidade do Poder Público. Logo, o titular da competência para prestá-lo
está investido de exclusividade. Essa exclusividade se relaciona inclusive com
a garantia da viabilidade da existência do serviço.
Bem por isso, o regime de serviço público prevalece sobre
a concorrência. Somente se admite a concorrência no âmbito do serviço
público quando não colocar em risco a sobrevivência deste. Não é casual que
o art. 16 da Lei nº 8.987 determine que "A outorga de concessão ou permissão
não terá caráter de exclusividade, salvo no caso de inviabilidade técnica ou
econômica justificada no ato a que se refere o art. 5º desta Lei".
Marçal Justen Filho - 47 -
141. Essa orientação nem sequer é exclusiva do direito
brasileiro. A própria União Europeia reconheceu a necessidade de restrição ao
postulado da livre iniciativa. Em duas decisões memoráveis do Tribunal de
Justiça da União Europeia (casos "Corbeau" de 1993 e "Commune d'Almelo"
de 1994), firmou-se que a livre concorrência não será reconhecida nos casos
em que comprometer a viabilidade econômica dos serviços públicos (serviços
de interesse geral econômico)24. A restrição à livre concorrência vem sendo
reafirmada pelos Tratados e pela jurisprudência comunitária.
142. A propósito, essa orientação foi reconhecida em época
recente pelo próprio STF, ao examinar a questão do serviço postal, tal como
se extrai do trecho reproduzido da ementa do julgado, adiante:
“... 7. Os regimes jurídicos sob os quais em regra são prestados os
serviços públicos importam em que essa atividade seja desenvolvida
sob privilégio, inclusive, em regra, o da exclusividade” (ADPF 46, STF-
Pleno, Rel p/ Acórdão: Min. EROS GRAU, Julg. 05/08/2009. DJe-035
26-02-2010).
10.4.3 – A garantia instrumental
143. A exclusividade não se constitui numa mera cláusula
vazia. Não é uma garantia formal. Trata-se de uma medida de natureza
instrumental. A ausência de competição assegura ao operador condições de
rentabilidade que lhe permitem desempenhar o conjunto de suas obrigações –
inclusive e especialmente obtendo recursos para o custeio das atividades
economicamente deficitárias.
Portanto, a exclusividade é uma garantia em favor do
serviço público. É estabelecida como meio jurídico para assegurar a
viabilidade econômica do serviço público.
10.4.5 – Os efeitos da implantação de competição
144. Tal como exposto, o serviço ferroviário constitui um
monopólio natural. E, como é inquestionável, uma característica essencial do
monopólio natural reside em que o menor preço possível somente é obtido
quando existe um único operador. Em virtude do elevado custo dos
24 Para aprofundar o exame, confira-se o pensamento de MONICA SPEZIA JUSTEN, A noção de serviço público no direito europeu, São Paulo: Dialética, 2003, e de ALEXANDRE SANTOS
Marçal Justen Filho - 48 -
investimentos fixos e do custo decrescente da operação, o preço se reduz na
proporção da elevação do consumo. Essa é uma lei econômica, que não
comporta exceção.
10.4.6 – Os riscos de insolvência generalizada
Se for instituída livre competição para a prestação de um
serviço que traduz um monopólio natural, existirão apenas três alternativas. A
primeira possibilidade é que todos os prestadores vão à insolvência. A
segunda reside em que todos os prestadores vão à insolvência, com exceção
de um deles. A terceira consiste em que mais de um prestador sobrevive, mas
mediante preços mais elevados do que seriam praticados se houvesse um
único prestador.
Em suma, a competição no âmbito de um monopólio
natural tende a prejudicar o usuário.
145. A proposta de reforma pretende adotar uma solução
similar àquela praticada no estrangeiro, em que se reconhece o monopólio
natural no tocante à gestão da infraestrutura, mas se incentiva a concorrência
quanto à prestação do serviço. Haveria competição entre as concessionárias
entre si e entre elas e os usuários.
10.4.7 – A implantação da chamada “assimetria regulatória”
146. A nova modelagem propõe um regime de assimetria
regulatória. A expressão indica os casos em que uma mesma atividade é
desenvolvida em regime de competição por agentes econômicos sob regime
jurídico diverso.
O exemplo mais conhecido de assimetria regulatória no
direito brasileiro envolve a telefonia fixa. Existem operadores sob regime de
concessão de serviço público, que estão obrigados a assegurar serviço
universal, segundo a disciplina de direito público. E há as chamadas
“empresas espelho”, que não atuam sob regime de concessão. São
exploradoras de atividade econômica privada, investidas de autorização para
um empreendimento norteado pela livre iniciativa.
147. A adoção de assimetria regulatória é extremamente
problemática, porque são diferentes os custos e vantagens próprios dos
DE ARAGÃO, Direito dos..., ob. cit., p. 109 e s.
Marçal Justen Filho - 49 -
diversos regimes jurídicos. O concessionário está sujeito a deveres e a
limitações muito superiores àqueles do operador não-concessionário. O regime
de serviço público obriga a implantação e a manutenção de atuação deficitária,
enquanto a exploração da atividade econômica pode restringir-se apenas aos
setores rentáveis.
148. Isso significa que, instaurada a assimetria regulatória,
haverá competição apenas quanto aos serviços rentáveis. Já os serviços
deficitários terão de ser prestados pelo concessionário em virtude de sua
obrigação de serviço universal.
Mas os recursos para o desempenho da atividade
deficitária são obtidos mediante os resultados auferidos nos segmentos
lucrativos. Se o concessionário for constrangido a reduzir a sua margem de
lucro para competir com um terceiro nos setores lucrativos, carecerá de
recursos para manter o serviço deficitário e realizar investimentos na
infraestrutura.
Quando isso se consumar, o concessionário irá à falência
e cessará a sua atividade. Permanecerão em atividade os demais
exploradores, mas atuando apenas nos segmentos lucrativos. Em suma,
desaparecerá o serviço universal. Mais ainda: a infraestrutura ferroviária
sofrerá deterioração decorrente da ausência de investimentos.
10.4.8 – A limitada aplicabilidade da assimetria regulatória
149. Por isso, é reconhecido que o modelo da assimetria
regulatória apenas pode ser adotado em setores econômicos muito
diferenciados. Isso se passa, de modo específico, na telefonia fixa, em que se
instaura um vínculo de longo prazo e permanente entre o usuário e o
concessionário. Nesses casos, o surgimento de um competidor não sujeito ao
regime de concessão de serviço público não acarretará a migração imediata
dos usuários.
Quando não estão presentes os pressupostos econômicos
indispensáveis, a instauração da assimetria regulatória acarreta a pura e
simples destruição do serviço público. Essa é a razão da limitada utilização de
modelos de assimetria regulatória.
Marçal Justen Filho - 50 -
150. Assim, a assimetria regulatória sequer foi adotada no setor
da telefonia celular. Na primeira etapa, quando se promoveu a privatização dos
serviços, houve a outorga de concessões de serviço público (Bandas “A” e
“B”). Verificando-se a inadequação da solução, foi alterado o regime para
autorização. No entanto, adotaram-se providências para a alteração da
disciplina de modo integral e uniforme. Por isso, as antigas concessionárias
tiveram a opção de adotar o regime de autorização, com vantagens muito
relevantes em face da sistemática de concessão.
Como decorrência, todos os operadores de telefonia
celular atuam presentemente no regime de autorização. Se algum deles
tivesse mantido o regime de concessão de serviço público, teria incorrido em
insolvência.
151. Pretende-se implantar um novo modelo no setor
ferroviário, com aplicação imediata. Isso acarretará uma disciplina assimétrica.
Será imposta a competição entre os atuais
concessionários e entre eles e os próprios usuários. Todos se utilizarão de
uma mesma infraestrutura ferroviária. Mas esses novos operadores, no gozo
da livre iniciativa, poderão selecionar apenas as operações lucrativas. Já os
atuais operadores serão constrangidos a manter o serviço universal.
É evidente que a competição apenas surgirá nos trechos
efetivamente lucrativos. Os investimentos e esforços dos concessionários
serão apropriados pelos operadores não subordinados às obrigações de
serviço público.
Esse fenômeno é conhecido no âmbito da ciência
econômica como “cream skimming” ou “cherry picking” 25.
152. No âmbito técnico-econômico, as expressões são
consideradas como sinônimas e indicam a conduta de selecionar apenas as
25. Literalmente, “cream skimming” pode ser traduzido como “retirada da nata do leite” e “cherry picking” significa “escolhendo a cereja”. Literalmente, “cream skimming” indica a conduta de retirar de um produto (o leite) a parcela mais nutritiva, tornando-o uma bebida desprovida das virtudes a ele inerentes. E “cherry picking” é a conduta de tirar a melhor parte do bolo (no caso, a cereja), deixando os demais sem possibilidade de fruir de idêntico benefício. Em termos figurados, indica a conduta de apropriar-se do bônus sem se assumir os ônus de uma atividade. Sobre o tema, confira-se J. GREGORY SIDAK e DANIEL F. SPULBER, Deregulatory Takings and the Regulatory Contract: the competitive transformation of network industries in the United States, Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p.
Marçal Justen Filho - 51 -
atividades economicamente vantajosas, rejeitando aquelas que possam
apresentar alguma dificuldade ou não apresentar rentabilidade atraente.
Para usar a terminologia vulgar, significa o risco de que
alguns operadores (no caso, os concessionários) fiquem com o "osso",
enquanto outros ficam com o "filé mignon".
Existirão operadores para o mesmo serviço, subordinados
a regimes jurídicos distintos. Trata-se, portanto, de hipótese que configurará
competição imperfeita.
10.4.9 - As tarifas praticadas por custo médio
153. Há outro aspecto essencial, que não foi considerado nas
propostas de reforma. Trata-se da necessidade de o concessionário praticar
tarifas de acordo com o custo médio.
154. O preço praticado por um agente econômico é calculado
de acordo com os custos (a que se acresce uma margem de lucro). Existem
duas alternativas básicas. Ou se calcula o preço de acordo com o custo médio
ou segundo o custo marginal.
155. A tarifa pelo custo médio significa tomar em consideração
o conjunto de todas as obrigações, investimentos e encargos, incorridos no
passado, no presente ou no futuro. Somam-se todos os custos diretos e
indiretos e se fixa o preço de modo a assegurar que tais custos sejam diluídos
ao longo da exploração. Essa é a primeira alternativa.
A segunda se verifica nos casos em que o valor cobrado é
calculado para cobrir os custos relativos à operação específica que origina a
cobrança. Nesse caso, fala-se tecnicamente em "custo marginal".
Como regra, o custo marginal é inferior ao custo médio.
Assim se passa porque o custo médio envolve não apenas uma compensação
pelas despesas atinentes à situação remunerada, mas também uma
contrapartida necessária ao conjunto integral dos custos realizados e por
realizar.
156. É da inerência de uma concessão de serviço público que a
tarifa seja praticada por custo médio. Assim se passa porque incumbe ao
concessionário realizar uma parte substancial dos investimentos necessários à
530.
Marçal Justen Filho - 52 -
implantação, ampliação e conservação do serviço público. Ao final da outorga,
a quase totalidade dos bens reverte para o poder concedente. O
concessionário será remunerado por meio de tarifas, cujo valor será calculado
em vista desse conjunto global de desembolsos. Logo, a tarifa cobrada em
cada situação concreta compreende não apenas o custo direto e imediato
daquela operação, mas abrange o conjunto dos custos anteriores e futuros.
Assim e no caso de concessões de transporte ferroviário
de cargas, cada concessionária assumiu a concessão com um conjunto amplo
de obrigações. Cabia-lhe pagar o ônus correspondente à proposta selecionada
como vencedora, assumir determinadas obrigações relacionadas com a
infraestrutura existente, ampliar e modernizar o sistema. Ao final da outorga,
os investimentos realizados pela concessionária serão transferidos para a
União. Portanto, é necessária uma tarifa calculada de modo a cobrir esse
conjunto de despesas.
157. Somente é possível cobrar tarifa por custo marginal numa
concessão quando existir subsídio. Esse é um postulado inafastável. Assim, o
Estado pode assumir o custo da infraestrutura e do material rodante. Se tal
ocorrer, é evidente que a tarifa não será composta por parcelas destinadas a
compensar tais despesas, eis que não serão suportadas pela concessionária.
Mas esse não é o modelo adotado entre nós. As
concessionárias não recebem subsídio e estão obrigadas a arcar com todos os
custos inerentes à outorga.
158. As tarifas das concessionárias são calculadas segundo o
custo médio. No caso concreto, a proposta de reforma pretende assegurar a
certos usuários a faculdade de competir com os concessionários, inclusive
mediante a utilização de material rodante de sua propriedade. Até se faculta
que tais operadores "cedam" os direitos de utilização para terceiros
(configurando, então, uma competição direta com as concessionárias).
Ocorre que os usuários dispõem da possibilidade de
praticar tarifa por custo marginal. Esses terceiros estarão em condições de
cobrar um valor muito inferior ao montante mínimo que pode ser praticado por
uma concessionária.
Marçal Justen Filho - 53 -
Assim se passa porque os custos dos terceiros são muito
inferiores. Esses terceiros não estão obrigados a pagar valor algum em favor
da União como contrapartida pelo direito de operar o serviço. Não têm o dever
de contratar antigos servidores da RFFSA. Não necessitam implantar serviços
em áreas distantes e de pouca rentabilidade. Não precisam prestar serviço
adequado a qualquer terceiro que tenha necessidade de usufruir do transporte
ferroviário de cargas.
Esses terceiros podem operar com uma tarifa por custo
marginal. Quando menos, o custo médio desses usuários será muito inferior ao
das concessionárias, eis que não assumem todas as obrigações inerentes à
concessão.
Mas isso somente é possível porque ele se beneficiará de
uma instraestrutura e de um serviço público cujo custo é suportado pela
concessionária.
Logo, surgirá uma competição desigual, potencialmente
apta a destruir as concessionárias. Os usuários serão beneficiados pelos
investimentos e desembolsos de responsabilidade das concessionárias, sem a
necessidade de arcar com os seus respectivos custos.
159. Não existe qualquer alusão a essas questões na
documentação trazida à análise do público. O tema não foi, ao que parece,
cogitado pela autoridade pública, que simplesmente considera que praticar
tarifas mais elevadas (por custo médio) é uma escolha voluntária da
concessionária.
10.4.10 – A infração à vontade constitucional
160. A proposta de reforma abre a oportunidade para a
eliminação do serviço público protegido constitucionalmente.
É evidente que são inválidos não apenas os atos que
infringem diretamente a Constituição. Também é inconstitucional o ato que, por
via indireta, propicia a consumação de evento incompatível com a
Constituição.
161. A destruição do serviço público é produzida não apenas
pela formal despublicização da atividade. Também é acarretada pela
eliminação das condições indispensáveis à sua viabilidade econômica.
Marçal Justen Filho - 54 -
Instaurar competição entre o prestador do serviço público e o explorador de
atividade econômica ou usuário conduz ao enorme risco da insolvência do
prestador. Mas haverá a certeza da extinção do serviço público quando forem
asseguradas vantagens econômicas em favor do operador privado.
Tal como acima evidenciado, a receita da concessionária
será reduzida eis que terceiros poderão obter o serviço mediante o pagamento
de valores muito mais reduzidos. A concessão será inviabilizada, o que
acarretará a supressão do serviço público. Sobreviverá a atividade explorada
sob regime especulativo, submetida ao regime de direito privado. Isso infringe
a vontade constitucional.
10.5 – A violação à Lei
162. Por outro lado, a proposta pretende eliminar a
exclusividade em favor das concessionárias. Isso infringe regra legal expressa,
constante do art. 34-A da Lei nº 10.233.
10.5.1 – A norma legal clara e inquestionável
163. O dispositivo referido determina que "As concessões a
serem outorgadas pela ANTT e pela ANTAQ para a exploração de infra-
estrutura, precedidas ou não de obra pública, ou para prestação de serviços de
transporte ferroviário associado à exploração de infra-estrutura, terão caráter
de exclusividade quanto a seu objeto..." (original sem negrito).
Logo, determinar que as outorgas far-se-ão sem a
previsão de exclusividade configura infração cristalina e acarreta a
inquestionável invalidade da inovação regulamentar.
10.5.2 – A vigência ilimitada do dispositivo
164. Não cabe contrapor que o art. 34-A não se aplica ao caso
por ter sido introduzido por meio da MP 2.217-3, de 04.09.2001. A
circunstância de a norma ter sido editada posteriormente à outorga não
significa a sua inaplicabilidade a alterações regulatórias supervenientes.
O tema comporta duas abordagens distintas, ambas
conduzindo à conclusão da vedação da eliminação da exclusividade.
165. Sob um ângulo, cabe enfocar a questão sob o prisma do
regime jurídico. Segundo esse prisma, as normas de direito público se aplicam
de modo imediato, sob todas as relações jurídicas existentes.
Marçal Justen Filho - 55 -
Isso significa que, encontrando-se em vigência o art. 34-A,
as suas disposições se aplicam para o futuro. Portanto, toda e qualquer
regulação editada pela ANTT sob a vigência do referido art. 34-A deve
necessariamente submeter-se às suas disposições.
Logo e considerando que se trata de regulação a ser
aplicada para o futuro, é inviável negar a aplicabilidade do disposto no referido
dispositivo no caso concreto.
166. Sob outro ângulo, as normas jurídicas não alcançam os
atos aperfeiçoados sob a vigência de normas pretéritas. Isso significa que o
art. 34-A da Lei nº 10.233 não alcança situações já constituídas quando do
início de sua vigência.
Ocorre que, no caso, os contratos previram outorga com
garantia de exclusividade. Portanto, a norma posterior contém disciplina
idêntica àquela prevista no ato jurídico perfeito e acabado. Então, a não
aplicação da regra legal relativamente aos contratos em vigência não significa
a possibilidade de eliminação da exclusividade.
167. O que não se pode admitir é a eliminação da exclusividade
prevista contratualmente sob o argumento de que, à época do
aperfeiçoamento da outorga, não vigorava ainda a norma que presentemente
se encontra em vigor.
Assim se passa porque a exclusividade está garantida no
caso tanto pela norma legal ora vigente como pelo contrato anterior.
10.6 – Os limites da competência regulamentar
168. Por outro lado, não teria cabimento argumentar que se
trataria de revogar resoluções anteriores da ANTT, o que evidenciaria a
ausência de infração legislativa.
A regulação atualmente vigente especifica as soluções
regulatórias consagradas na Constituição e na Lei. Portanto, as suas normas
não são autônomas. Inovações regulatórias por meio de resoluções
administrativas serão inválidas se contemplarem soluções incompatíveis com a
Constituição e a Lei.
10.6.1 – A natureza complexa do marco regulatório
169. Em outras palavras, o marco regulatório é composto
Marçal Justen Filho - 56 -
inclusive por normas regulamentares administrativas. Tais normas encontram
o seu fundamento de validade em normas constitucionais e legais. A solução
regulatória contemplada no regulamento deve refletir as determinações
contidas na Constituição e na Lei.
Será inválido o regulamento que infringir a Constituição ou
a Lei – e tal se configurará inclusive quando tal regulamento for editado para
substituir outro já existente.
10.6.2 – A improcedência do argumento da "reserva" de ato regulamentar
170. Nem caberá invocar a "reserva" de regulamento, afirmando
que existiria um espaço normativo reservado privativamente para normas não
constitucionais ou não legais. Esse tipo de raciocínio poderia ser adotado em
outros países (tal como a França e, mesmo, os EUA). Mas não cabe a sua
aplicação no Brasil.
171. Em primeiro lugar, é absolutamente incontroversa a
invalidade do regulamento "contra legem". Isso significa que não há um campo
reservado para a disciplina constitucional ou legal.
A Lei e, com muito maior razão, a Constituição podem
dispor sobre todas as matérias de competência do ente político. Se existir
norma constitucional ou legal dispondo sobre certa matéria, é vedado
regulamento em sentido diverso.
No confronto entre regulamento e Constituição-Lei,
prevalecem sempre as últimas.
172. Em segundo lugar, a competência regulatória infralegal
está sujeita a limites. Nem mesmo o poder regulamentar presidencial é
ilimitado. Ao contrário, deve encontrar fundamento na legislação a que
pretende dar executividade, de acordo com o art. 84, IV, da Constituição26.
CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO afirma que:
“Regulamento ou disposição regulamentar cujo conteúdo crie para os
administrados direitos, obrigações, deveres, restrições à liberdade,
26 No dispositivo, tem-se que “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Lembre-se que existe uma única previsão formal para regulamento autônomo na Constituição. Trata-se do inc. VI do art. 84, que faculta a edição de decreto sobre a organização e funcionamento da Administração e outros temas correlatos. Essa previsão não incide no caso concreto.
Marçal Justen Filho - 57 -
propriedade ou atividade que já não estejam contidos e identificados na
lei a ser regulamentada, é nulo por inconstitucionalidade. Implica
desbordamento da competência do Executivo e invasão da esfera do
Legislativo27.”
A jurisprudência é pacífica no mesmo sentido:
“II - A Portaria MEFP n° 548/92 e o Decreto n° 1.847/96, ao estenderem o
pagamento do pro labore de êxito a outros beneficiários que não os
previstos no Decreto n° 98.135/89 e no art. 3° da Lei n° 7.711/88,
respectivamente, extravasaram os limites do poder regulamentar e
inovaram indevidamente na ordem jurídica, laborando em ilegalidade,
mesmo porque o aumento de remuneração de servidores públicos
federais é matéria reservada à lei em sentido formal e material...
descabendo, em tal matéria, ingerência do poder regulamentar do
Executivo.” (STF, RE 333060/DF, rel. Min. Dias Toffoli, j. em 06.05.2010,
DJ de 01.06.2010 - decisão monocrática)
“...1. O decreto, como norma secundária – que tem função
eminentemente regulamentar, conforme o art. 84, inc. IV, da Constituição
Federal –, não pode contrariar ou extrapolar a lei, norma primária. Não
pode restringir os direitos nela preconizados. Isso porque tão-somente a
lei, em caráter inicial, tem o poder de inovar no ordenamento jurídico. ...”
(STJ, RMS 22.828/SC, 5ª T., rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. em
18.03.2008, DJe de 19.05.2008)
“...1. A criação, por decreto regulamentador, de obrigações ou direitos,
não estabelecidos na lei, constitui inovação exorbitante, usurpando
função legislativa, por isso, ineficaz, destituída de obrigatoriedade.
2. Inovadora a malsinada exigência, fincada pelo decreto 98.054/89 (art.
3., II), a sua exigência revela ilegalidade, reparável judicialmente (STJ,
REsp 22.931/AL, 1ª T., rel. Min. Milton Luiz Pereira, j. em 19.09.1994, DJ
10.10.1994) 28.
27 Ato Administrativo e Direitos dos Administrados, São Paulo: RT, 1981, p. 102. 28 Igualmente, confiram-se: STJ, REsp 872.169/RS, 2ª T., rel. Min. Eliana Calmon, DJe de
Marçal Justen Filho - 58 -
173. Por outro lado, diante de omissão legislativa, é legítima a
veiculação de normas regulamentares apenas de modo limitado. Ainda que se
possa admitir que a regulação apresente um aspecto inovador em relação ao
ordenamento jurídico, isso não significa que direitos e deveres possam ser
criados e instituídos simplesmente por meio de decretos. A regra fundamental
continua a ser a legalidade estrita, tal como consagrado no art. 5º, inc. II da
Constituição29.
174. As considerações anteriores refletem não um
posicionamento jurídico formalista. Trata-se de reconhecer que as decisões
fundamentais, inclusive sobre o destino da atividade econômica, exigem a
participação dos cidadãos – diretamente ou por meio de seus representantes
eleitos30.
175. A natureza técnica das controvérsias econômicas não
afasta a prevalência de um sistema democrático. A Nação consagrou as suas
opções fundamentais na Constituição. Outras escolhas relevantes são
reservadas à deliberação conjunta e harmônica do Executivo e do Legislativo,
por meio de Lei. A atividade administrativa pode complementar essas
escolhas, dar-lhes prosseguimento e desenvolver as questões essencialmente
técnicas.
Mas não cabe ao Poder Executivo, isoladamente, escolher
e impor modificações essenciais, inovadoras em face da disciplina
constitucional e legal.
13.05.2009; STJ, AgRg no REsp 760.890/MG, 1ª T., rel. Min. Luiz Fux, DJe de 23.04.2008; STJ, REsp 665.880/RS, 1ª T., rel. Min. Luiz Fux, DJ de 13.03.2006. 29 A questão da utilização do regulamento para desempenho da função regulatória propicia grandes disputas doutrinárias. As ponderações acima não envolvem uma tomada de posição específica – ainda que o signatário tenha definido o seu entendimento há muito (confira-se O Direito das Agências Reguladoras, cit., p. 483 e ss., especialmente 503-504). Mesmo os defensores de uma maior amplitude da competência regulamentar concordam, no entanto, com a inviabilidade da desconsideração da regra da legalidade. Sobre o tema, confiram-se GUSTAVO BINENBOJM, Agências reguladoras independentes e democracia no Brasil, em GUSTAVO BINENBOJM (coord.), Agências reguladoras e democracia, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 99; EGON BOCKMANN MOREIRA, Agências Administrativas, Poder Regulamentar e Sistema Financeiro Nacional, em Revista de Direito Administrativo, n. 218, out.-dez. , 1999, p. 93-112; HELY LOPES MEIRELLES, Direito administrativo brasileiro, 34. ed., São Paulo: Malheiros, 2008, p. 130-131. 30 Nesse sentido, FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO afirma que “...não se põe possível ao Estado impor unilateralmente condicionamentos ou regras que menosprezem os interesses especiais dos atores sociais e econômicos...” (Regulação Estatal e Interesse Público, São Paulo: Malheiros, 2002, p. 202-203).
Marçal Justen Filho - 59 -
10.7 – O problema da "capacidade ociosa"
176. Não se contraponha que a competição se desenvolveria
apenas no âmbito da capacidade ociosa, não utilizada pela concessionária. É
evidente que essa proposta envolve inevitável perda de clientela e redução da
receita tarifária assegurada à concessionária.
O usuário que se aproveitar da capacidade ociosa deixará
de se valer dos serviços prestados de modo padrão pelo concessionário. E
seria investido da faculdade de ceder o seu direito para terceiros – o que
envolve inclusive o risco de comercialização do benefício.
Logo, haveria uma perda de clientela do serviço público,
com a redução da receita e o incremento da ociosidade.
177. Basta um exemplo concreto, ainda que simplificado, para
evidenciar o descabimento da situação. Admita-se que o concessionário
estime custos no valor de 100 unidades monetárias para explorar serviços que
representem 80% da capacidade de utilização do sistema. Suponha-se que
isso envolva o transporte de uma quantidade correspondente a 100 unidades
de bens. Se o concessionário pretender atuar sem qualquer lucro, ele deverá
cobrar 1 unidade monetária por unidade de bem transportado. Mas essas
projeções apresentarão consistência somente se o concessionário operar com
exclusividade.
Toda essa construção será comprometida se for
assegurado a outro usuário a possibilidade de exploração dos 20%
remanescentes do sistema. Se esse outro usuário conseguir abocanhar 10%
das cargas que seriam transportadas pelo concessionário, haverá uma
frustração da movimentação estimada para a concessão. Assim se passaria
porque esse concessionário manteria o seu custo fixo, mas receberia uma
remuneração de apenas 90.
178. Nesse contexto, os usuários que se beneficiarem do
transporte em regime diferenciado deixarão de utilizar-se do sistema normal de
concessão. Logo, pode-se estimar que uma grande quantidade de usuários
abandonará o uso dos serviços públicos ofertados pela concessionária. Isso
significará uma frustração das receitas previstas, colocando em risco a
sobrevivência do empreendimento. A ociosidade tenderia a se ampliar
Marçal Justen Filho - 60 -
radicalmente, de modo que os serviços públicos ficariam restritos aos
pequenos usuários, que seriam os únicos a fazer uso do transporte público.
179. Também é inevitável que a captação de cargas por uma
concessionária na área de outra acarretará a redução da receita desta última.
10.8 - A redução da remuneração
180. Nem se contraponha que o concessionário teria direito a
receber uma remuneração pelo uso diferenciado da infraestrutura e do material
rodante. Ora, a tarifa por direito de passagem não é equivalente àquela que o
concessionário receberia pela prestação direta do serviço a terceiros. É
evidente que, se a tarifa de tráfego fosse equivalente à remuneração obtida
pela concessionária mediante a cobrança de tarifas de transporte, não teria
qualquer sentido a competição. O resultado final seria idêntico.
181. Os critérios adotados no art. 12 da proposta de
Procedimentos de Operações conduzem à fixação de tarifas que excluem a
lucratividade do concessionário. Mais precisamente, haverá tarifas de valor
diferenciado daquelas asseguradas por ocasião da outorga.
Portanto, é inevitável que a tarifa de direito de passagem
seja inferior à tarifa que o concessionário perceberia caso operasse
diretamente a mesma atividade.
182. O raciocínio se aplica inclusive no tocante às cargas
captadas por outros concessionários fora da sua área de atuação. É evidente
que um usuário apenas recorrerá ao serviço de concessionário titular de outra
concessão se a tarifa for menor. Afinal, para pagar o mesmo valor, o usuário
manterá seu relacionamento com o concessionário da área.
183. O problema fundamental reside em que o planejamento,
as obrigações voluntariamente assumidas e os investimentos realizados
tomavam em vista uma exploração em condições jurídicas distintas.
184. Ou seja, a finalidade das propostas de reforma é a
redução da remuneração do concessionário, o que será produzido por duas
vias. A primeira é a redução do movimento de transporte e a segunda é a
redução da sua remuneração (ainda que seja ela resultante da soma de tarifas
de transporte e de direito de passagem).
Marçal Justen Filho - 61 -
10.9 – O efeito nocivo da competição
185. Portanto, a preservação apenas parcial da exclusividade
conduz à redução da capacidade de o concessionário auferir a receita
necessária para o desempenho satisfatório de suas obrigações.
Como decorrência, o efeito final será a inviabilização da
concessão, eis que o concessionário perderá a capacidade de investimento.
Logo, será obrigado a reduzir as suas metas de produção – o que significará
uma capacidade residual de tráfego, por ele não explorada. Isso acarretará a
ampliação da capacidade ociosa a ser explorada em regime de direito privado.
Estará instaurado um círculo vicioso que redundará na extinção do serviço
público.
10.10 – A improcedência do argumento da função social
186. Nem se contraponha com a invocação da função social do
instituto da concessão de serviço público.
Quanto a isso, basta um paralelo para demonstrar o
despropósito do argumento. Muito antes da consagração da função social dos
contratos, já se afirmara a função social da propriedade. A prevalecer o
argumento de que a capacidade ociosa da ferrovia deve ser compulsoriamente
transferida para terceiros, deve também admitir-se a transferência compulsória
para os carentes da capacidade ociosa da propriedade privada.
Então, seguir-se-ia à determinação (por ato administrativo,
eventualmente) de que a capacidade ociosa das residências privadas deveria
ser transferida compulsoriamente para os carentes. Dispor de um cômodo
vazio na residência infringiria a função social da propriedade em termos
semelhantes aos da ausência de utilização integral da malha ferroviária.
187. Não se diga que se trata de relações jurídicas de distinta
natureza e que o concessionário não é proprietário da malha ferroviária. Isso é
inquestionável, mas a solução da cessão compulsória não se relaciona à
natureza da relação jurídica. Vincula-se à não utilização do potencial
econômico integral de um certo bem e da possibilidade de sua utilização para
satisfação de necessidades essenciais de outras pessoas.
Sob esse prisma, é idêntica a relevância da malha
ferroviária e das residências privadas, tal como são equivalentes (no mínimo)
Marçal Justen Filho - 62 -
as necessidades de transporte e de habitação.
188. O ponto fundamental reside em que o concessionário
realiza todos os investimentos e desempenha todas as atividades de modo a
cumprir as exigências estabelecidas pelo poder concedente. A existência de
capacidade ociosa da malha não pode gerar efeitos negativos relativamente
aos serviços prestados adequadamente.
189. Mais ainda, o serviço público prestado pelo concessionário
será afetado pela instauração da competição, eis que a redução da
remuneração colocará em risco a manutenção do empreendimento.
Em outras palavras, a reforma assegura que alguns
usuários pagarão menos do que aqueles que se valerem dos serviços públicos
prestados a cargo do concessionário. Mas essa redução de receita será
potencialmente apta a impedir que o concessionário continue a prestar
serviços públicos adequados.
Portanto, o benefício para os usuários dos serviços
privados será obtido à custa da destruição do serviço público (prestado a uma
parcela significativa de usuários, usualmente os mais vulneráveis
economicamente).
190. Enfim, não se pode afirmar que a exploração da
capacidade ociosa da rede seja economicamente neutra, na acepção de que
não acarretaria efeito negativo em relação ao concessionário. Não se trata de
pura e simplesmente aproveitar integralmente o potencial econômico da
infraestrutura, eis que a competição significará a redução da clientela da
concessionária.
11 - A infração à legalidade e ao art. 174 da CF/88
191. Por outro lado, configura-se dupla infração à legalidade,
assim como à garantia constitucional da autonomia dos particulares.
11.1 – A despublicização da relação de serviço público
192. O art. 41, parágrafo único, da proposta de REDUF,
consigna que:
"Os contratos celebrados entre a concessionária e o investidor ferroviário reger-se-ão pelas normas de direito privado, não se estabelecendo qualquer relação jurídica entre o usuário investidor e a ANTT".
Marçal Justen Filho - 63 -
11.2 – A necessidade de lei para despublicizar a atividade
193. Se não existisse obstáculo constitucional à
despublicização de uma certa atividade, ter-se-ia de reconhecer que existiriam
obstáculo legais a que tal resultado fosse produzido.
Assim se passa porque as relações jurídicas entre o
concessionário e os usuários de um serviço público são assim disciplinadas
por força de lei. A eliminação do regime de direito público pressupõe a edição
de uma lei, assim dispondo.
11.3 – O argumento da ausência de serviço público
194. Alguém poderia contrapor que o relacionamento jurídico
entre o concessionário e um investidor não está abrangido no âmbito do
serviço público. Portanto, não se configuraria a transformação de regime
jurídico: existiriam apenas relações jurídicas entre particulares.
Esse argumento não elimina a ofensa ao princípio da
legalidade. É que, reconhecida a existência de relações jurídicas puramente
privadas, incidiria a garantia constitucional do art. 5º, II, no sentido de que
ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.
Em face do princípio da legalidade, é antijurídico um ato
administrativo impor a um particular o dever de receber investimentos e de
sujeitar-se à vontade de outro particular.
Sem a existência de lei, é inviável uma resolução
administrativa determinar que o concessionário será constrangido a instaurar
relações jurídicas puramente privadas, relativas à prestação de utilidades sob
regime de direito privado. Não há fundamento legal para determinar a
obrigação de aceitar o investimento – o que consta no art. 6º, VII, da proposta
de REDUF ("São direitos dos usuários ... VII - investir na malha, ou em
material rodante que utilizará, para ampliação da capacidade instalada").
195. Ademais, o art. 40 prevê que, "Na hipótese de ausência de
manifestação da concessionária, em até cento e oitenta dias contados da
formalização de que trata o art. 38, o usuário poderá requerer a manifestação
da ANTT para assegurar a realização dos investimentos a que se propõe".
Portanto e embora a proposta pretenda tratar de uma
relação de direito privado entre um usuário e uma concessionária, assegura à
Marçal Justen Filho - 64 -
ANTT o poder jurídico para constranger esta última a promover a contratação.
E tudo isso sem a existência de lei que assim o determine.
11.4 – Os limites da intervenção estatal
196. A disciplina do investimento compulsório infringe, ademais,
ao art. 174 da CF/88. Esse dispositivo estabelece limites para a intervenção do
Estado no âmbito da autonomia privada. A competência estatal é meramente
indicativa, sem cunho compulsório para o particular.
12 – A tutela jurídica à equação econômico-financeira dos contratos
197. A supressão da exclusividade e a instituição de
competição acarretam a eliminação da garantia constitucional atribuída aos
atuais concessionários, tendo por objeto a intangibilidade da equação
econômico-financeira das outorgas.
12.1 – A garantia constitucional e legal
198. É pacífico o entendimento de que a Constituição assegura
a intangibilidade da equação econômico-financeira de concessões outorgadas
mediante licitação.
A garantia é extraída de diversos dispositivos
constitucionais, entre os quais e principalmente o art. 37, XXI. Consiste na
determinação de que a relação original entre as vantagens e os encargos
assumidos pelo sujeito, por ocasião da formulação de sua proposta, deverá ser
respeitada ao longo da execução do contrato. E tal como exposto acima, a
legislação também protege a intangibilidade da equação econômico-financeira
das concessões.
A doutrina e a jurisprudência são unânimes quanto a esse
entendimento31.
12.2 – A frustração ao regime licitatório
199. Todas as outorgas de concessão ferroviária foram
promovidas depois da edição da Constituição de 1988, tendo sido antecedidas
de licitação.
12.2.1 – As determinações dos arts. 37, inc. XXI, e 175 da Constituição
200. A Constituição de 1988 subordinou todas as contratações
31 Para uma análise mais minuciosa da questão, consultem-se as obras do signatário Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 14 ed., São Paulo: Dialética,
Marçal Justen Filho - 65 -
públicas, inclusive as outorgas de concessão, à prévia licitação. A
determinação consta de duas regras distintas para eliminar qualquer
controvérsia. E o art. 37, inc. XXI, determina que as contratações deverão
atender a certos requisitos, entre os quais a manutenção das condições
efetivas da proposta. Trata-se da proteção constitucional à equação
econômico-financeira dos contratos administrativos.
12.2.2 – A vedação à desnaturação do contrato
201. A obrigatoriedade da prévia licitação não elimina a
possibilidade de alteração das condições da contratação administrativa. No
entanto, impede a desnaturação do contrato. Não se admite que o objeto
licitado seja alterado substancialmente.
Pode-se aludir a uma determinação constitucional sobre a
utilidade da licitação, no sentido de que não se admitem inovações que tornem
inúteis as condições originais da disputa.
Essa vedação se aplica não apenas a favor da
Administração, mas também em face do próprio licitante.
12.2.3 – A vedação à alteração de características fundamentais da avença
202. A licitação consiste numa convocação de interessados em
disputar uma certa contratação. A seriedade da licitação depende da fixação
precisa e exata das condições da competição e da futura contratação.
Não se admite, então, que encargos de grande relevo ou
que direitos de cunho essencial sejam alterados depois de promovida a
licitação.
Mais precisamente, aquelas condições de contratação que
são fundamentais para determinar a conveniência do particular em assumir o
encargo da concessão não podem ser alteradas.
12.3 – A alteração radical das outorgas licitadas
203. As outorgas em vigor receberam modelagem precisa e
determinada, especificamente para fins de licitação.
12.3.1 - A modelagem por ocasião da outorga
204. Tal como já exposto, as outorgas foram realizadas com
base no pressuposto da divisão da malha ferroviária em áreas. Cada área foi
2010, p. 776 e s., e Teoria Geral das Concessões..., ob.cit., p. 382 e s.
Marçal Justen Filho - 66 -
objeto de uma outorga, com a previsão de que o concessionário assumiria a
exploração da infraestrutura conjugadamente com a prestação do serviço
público de transporte de cargas.
Foi prevista a exclusividade na exploração da malha e na
prestação dos serviços, com a obrigação de prestar serviço adequado e de
cumprir as metas – estabelecidas em vista da área total da outorga.
Os interessados dispuseram-se a participar em vista
dessas condições. Os atuais concessionários sagraram-se vencedores nos
certames realizados em virtude de formularem a proposta mais vantajosa. Mas
tal proposta foi apresentada em vista da concepção do empreendimento.
205. Em suma, os atuais concessionários assumiram
obrigações em vista das condições previstas para a outorga.
Mais ainda, as outorgas refletem as condições constantes
das licitações ocorridas, as quais não podem ser ignoradas.
12.3.2 - As modificações pretendidas
206. Todavia, a reforma contempla inovações radicais na
exploração dos empreendimentos.
207. Em primeiro lugar, existirá a eliminação da exclusividade,
sob os dois prismas apontados. Não haverá mais exclusividade no tocante à
utilização das infraestruturas nem existirá ela quanto aos serviços de
transporte de carga.
208. Em segundo lugar, as concessionárias permanecerão
investidas no dever jurídico de implantar, conservar e ampliar as
infraestruturas, o que envolve obrigações de grande relevo, as quais
reverterão em benefício das competidoras.
Portanto, essas despesas serão conjugadas com aquelas
atinentes à operação dos serviços. No entanto, tais serviços serão sujeitos a
regimes remuneratórios diversos. Alguns serviços envolverão remuneração
mais elevada do que outros. Logo, alguns usuários serão beneficiados por
tarifas mais reduzidas do que as praticadas em face de outros.
209. Em terceiro lugar, as metas deixarão de ser fixadas em
vista do conjunto total da outorga. Serão estabelecidas por trecho e poderão
compreender outros aspectos além dos ora previstos. Isso significa que as
Marçal Justen Filho - 67 -
concessionárias serão obrigadas a promover o serviço universal, mas deverão
atender metas diferenciadas por trechos.
Ou seja, ao invés de alocar recursos em vista da área total
da concessão, haverá a necessidade de sua distribuição regionalizada. Isso
ampliará os custos e reduzirá a competitividade das concessionárias.
O descumprimento das metas por trechos subordinará as
concessionárias a sanções.
210. Ademais, a proposta envolve a alteração da sistemática de
remuneração das atuais concessionárias, o que compreende inclusive nova
disciplina para o reajuste anual da tarifa de transportes (que passaria a
contemplar índices de cumprimento de metas).
12.3.3 – A alteração qualitativa do objeto da concessão
211. A disciplina original da licitação não contemplava tais
regras. Se as tivesse contemplado, outras teriam sido as outorgas promovidas.
As modificações promovidas, especialmente quando
consideradas em seu conjunto, evidenciam a alteração da identidade do objeto
licitado. Não se trata de simples alterações secundárias, mas de inovação
radical, que afasta direitos essenciais e introduz obrigações extremamente
graves e severas para os atuais concessionários.
Em síntese, se as outorgas tivessem sido promovidas de
acordo com as condições ora introduzidas, as atuais concessionárias
possivelmente teriam formulado propostas diversas – ou, mesmo, não teriam
participado do certame.
Assim se passa porque as modificações cogitadas são
essenciais e incompatíveis com o objeto das licitações verificadas. Por isso,
ofendem a disciplina constitucional atinente ao tema.
12.4 – Inaplicabilidade do argumento da mutabilidade do contrato
212. Não cabe contrapor que o Poder Concedente dispõe de
competência para adequar e adaptar as condições da prestação do serviço.
Mas há limites para essa competência. Não é facultado ao poder concedente
desnaturar a outorga licitada e contratada.
No caso, as modificações previstas são graves o suficiente
para desnaturar a contratação licitada. É relativamente simples a
Marçal Justen Filho - 68 -
demonstração disso.
Suponha-se que se tivesse licitado concessão sem
garantia de exclusividade e que, no curso da contratação, fosse cogitada a
introdução de dispositivo nesse sentido. Ora, se a licitação não tivesse
contemplado a exclusividade, todos concordariam que a posterior adoção dela
seria um despropósito. Afinal, a previsão da exclusividade por ocasião da
licitação teria alterado o panorama licitatório. Outros licitantes poderiam ter
participado, os valores ofertados teriam sido diversos. Outra teria sido a
contratação, enfim.
Ora, não se passa diversamente em vista da eliminação
da garantia da exclusividade. Trata-se de uma modificação radical do objeto,
que não comporta nem sequer cogitação no sentido de recomposição da
equação econômico-financeira original.
213. A questão da outorga compulsória do direito de passagem
da malha apresenta idêntica configuração. Se tal cláusula tivesse constado do
edital de licitação, seria muito provável que os licitantes fossem
desincentivados a participar. A proposta que formularam refletiu a vontade de
participar em contratação com condições essenciais definidas.
Idênticas considerações podem ser adotadas
relativamente às demais alterações referidas.
214. Mais ainda, devem-se considerar as alterações em seu
conjunto, não isoladamente. Tomadas as inovações de modo conjugado, o
resultado é o surgimento de um novo modelo regulatório, totalmente diverso do
anterior.
215. Em suma, as modificações referidas não envolvem a
simples disciplina das chamadas cláusulas de serviço. Não se trata de definir
as condições do desempenho da atividade. São modificações que alteram a
identidade do empreendimento. Trata-se da criação de uma outra e nova
concessão, inconfundível com aquela que foi objeto da licitação.
12.5 – Ainda a frustração das condições da outorga
216. As informações divulgadas envolvem ainda o risco de
outra infração à Constituição. Cogita-se da atribuição à ANTT da competência
para limitação da remuneração por operações acessórias à realização do
Marçal Justen Filho - 69 -
transporte. Essa inovação infringe as condições da outorga.
12.5.1 – As atividades puramente privadas
217. As atividades de transporte ferroviário envolvem algumas
atuações de cunho privado, que não apresentam vínculo com o serviço público
propriamente dito. São operações tais como carga, descarga, transbordo,
guarda, enlonamento, que não se constituem em fonte de receita alternativa e
não integram a concessão.
Essas atividades não integram a outorga e podem ser
desenvolvidas pelo interessado ou por qualquer outra pessoa. Logo e como
regra, o art. 170 e seu parágrafo único da Constituição excluem o cabimento
de introdução de restrições ao seu desenvolvimento por meio de ato
administrativo.
12.5.2 – A ausência de competência regulatória
218. Tratando-se de atividade puramente privada, não existe
competência normativa para a fixação de limites por parte da ANTT. Nesse
ponto, prevalece a livre iniciativa e a livre concorrência – precisamente o
fundamento, aliás, invocado para as alterações propugnadas.
Incide ao caso o art. 174 da Constituição, que determina
que a intervenção do Estado será meramente indicativa para o setor privado,
naquilo em que envolver atividades privadas. Por força do próprio art. 170, inc.
IV, não é facultado a um decreto atribuir competência para uma agência
reguladora dispor sobre esse tema. Aliás, e sob esse prisma, existe também
infração ao princípio da legalidade, eis que a competência administrativa não
pode ser criada por meio de decreto.
12.5.3 – A explícita disciplina por ocasião da outorga
219. Ademais, essas atividades foram objeto de expressa
disciplina por ocasião da licitação. Segundo os instrumentos contratuais, ditas
atividades não compreendidas no objeto da concessão, de cunho acessório,
não integrariam as receitas alternativas e seriam livremente desenvolvidas por
parte do concessionário.
Isso significa que, embora tais receitas não tenham sido
diretamente consideradas para fins da formulação da proposta, a oportunidade
de seu desempenho se constituiu numa condição da outorga. Ao considerar a
Marçal Justen Filho - 70 -
atratividade do negócio, o licitante tomou em vista a possibilidade de
desempenho dessa atividade. Portanto, alterar a disciplina do tema envolve a
modificação de condição essencial da disputa. Isso infringe o princípio da
vinculação do poder concedente às condições da outorga (Constituição, arts.
37, inc. XXI, e 175).
220. De todo modo, toda argumentação no sentido de que a
proposta de alteração regulatória consistiria em uma simples disciplina das
condições de serviço esbarra na constatação de que se está a tratar da
remuneração auferida pelo concessionário. E é inquestionável que a disciplina
da remuneração do concessionário (ou as “cláusulas financeiras” do contrato)
nunca pode ser interpretada como condição da prestação do serviço (ou como
“cláusulas de serviço”)32.
12.6 – Ainda a infração à isonomia
221. Não se contraponha que as propostas não acarretariam a
quebra da exclusividade dos concessionários, mas apenas produziriam algum
tipo de benefício para os usuários.
Em qualquer caso, a criação de tais benefícios configura
uma discriminação entre os usuários do serviço, produzindo-se um benefício
tarifário não previsto por ocasião da outorga. Essa inovação encontra dois
obstáculos jurídicos.
222. Há dois fundamentos constitucionais que estabelecem a
vedação à discriminação entre usuários. Primeiro, há o princípio da isonomia,
disposto no art. 5º, caput, da CF. Depois, e especificamente para o âmbito da
Administração Pública, há o princípio da impessoalidade, previsto no art. 37,
caput, da CF.33
Por decorrência, as tarifas praticadas no serviço público
deverão ser as mesmas para todos os usuários em situação equivalente. A
32 É pacífica a distinção entre cláusulas de serviço e cláusulas financeiras e a limitação da mutabilidade contratual às cláusulas de serviço. Para consulta, confira-se MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, ob. cit., p. 263. 33 CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO explicita que a aplicação do princípio da impessoalidade na prestação de serviços públicos traduz a “inadmissibilidade de discriminações entre os usuários” (Curso de Direito Administrativo, 27. ed., São Paulo: Malheiros, p. 678). No mesmo sentido, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO assevera: “Pelo princípio da igualdade dos usuários perante o serviço público, desde que a pessoa
Marçal Justen Filho - 71 -
diferenciação somente é cabível se houver razão técnica ou de custo
específico, proveniente do reconhecimento da distinção entre segmentos de
usuários (art. 13 da Lei nº 8.987).
223. Nesse contexto, somente pode existir discriminação entre
usuários na medida em que eles se apresentem como desiguais. Ou seja, é
indispensável que se verifique a existência de um elemento de desigualdade
preponderante, para justificar a medida discriminatória.
12.7 – A violação ao art. 35 da Lei nº 9.074
224. Além disso, a concessão de benefícios tarifários também
configura frontal infração ao disposto no art. 35 da Lei nº 9.074, assim redigido:
"A estipulação de novos benefícios tarifários pelo poder concedente, fica
condicionada à previsão, em lei, da origem dos recursos ou da
simultânea revisão da estrutura tarifária do concessionário ou
permissionário, de forma a preservar o equilíbrio econômico-financeiro
do contrato".
Essa regra legal proscreve a prática de introduzir, depois
de promovida a outorga, benefícios ou vantagens para determinadas
categorias de usuários – de modo a reduzir a receita tarifária que seria obtida
nos termos originais da outorga.
225. Ora, assegurar a algumas categorias de usuários a
possibilidade de um tratamento diferenciado, com tarifas mais reduzidas do
que as previstas por ocasião da outorga, configura prática submissível
diretamente ao art. 35 da Lei nº 9.074.
Portanto, essa solução apenas poderia ser cogitada se
houvesse a previsão em lei de um instrumento apto a assegurar a obtenção de
recursos compensatórios da redução da receita proveniente do benefício para
certas categorias de usuários.
12.8 - A figura do Usuário Operador de Transporte Multimodal
226. Como se não bastasse, as propostas preveem benefícios
indeterminados e incertos em favor de uma categoria imprecisa, consistente no
"usuário operador de transporte multimodal".
satisfaça às condições legais, ela faz jus à prestação do serviço, sem qualquer distinção de caráter pessoal” (ob. cit., p. 108).
Marçal Justen Filho - 72 -
O art. 44 da proposta de REDUF determina que "O
Operador de Transporte Multimodal - OTM, habilitado pela ANTT, nos termos
da legislação aplicável, poderá prestar serviços acessórios e contratar serviços
de transporte necessários à realização de sua atividade".
Essa regra deixa abertas as portas para inovações
imprevisíveis. Existe o risco de que essa categoria de usuários seja investida
em poderes próprios de transportadores ferroviários. Isso poderia importar a
criação de uma categoria de operador destituído da condição de
concessionário de serviço público. Seria uma espécie de autorizatário, a quem
seriam reconhecidos direitos incompatíveis com o atual marco regulatório.
227. A ausência de disciplina específica do OTM representa um
defeito inadmissível da proposta regulatória. Importa criar uma indeterminação
que gera insegurança sobre o modelo a ser adotado.
12.9 - A impossibilidade constitucional e legal de supressão superveniente
228. A modelagem da concessão deve ser respeitada ao longo
do prazo de vigência da outorga. A garantia da intangibilidade da equação
econômico-financeira é essencial para a formulação da proposta apresentada
e para a assunção das obrigações.
O poder concedente não está autorizado a eliminar essa
garantia ao longo do contrato. Não o pode fazer de modo direto. Mas também
não lhe é facultado promover a destruição da garantia de modo indireto.
12.10 – A introdução de competição e o desaparecimento da garantia
229. A garantia da intangibilidade da equação econômico-
financeira deixa de existir quando se elimina a exclusividade e se introduz a
competição no setor. Assim se impõe porque o valor da tarifa assegurada ao
concessionário se torna irrelevante em vista da disponibilização de outros
operadores, atuando em regime de livre concorrência.
Ou seja, o montante da tarifa garantida ao licitante deixa
de assegurar a ele a percepção de uma remuneração previamente estimada
porque passam a existir competidores legitimados a praticar preços variados.
O universo de usuários deixa de ser cativo.
Em suma, todas as projeções realizadas pelo sujeito se
tornam inaplicáveis e a remuneração por ele auferida deixa de ter qualquer
Marçal Justen Filho - 73 -
relação com as condições originalmente previstas.
12.11 – Síntese
230. No caso concreto, as concessionárias formularam
propostas para assumirem as concessões de serviço público em questão.
Assumiram deveres e obrigações, tendo em vista, como contrapartida
essencial, a obtenção de remuneração em face dos usuários. Essa
remuneração consistia numa tarifa, cujo valor deveria ser preservado ao longo
do tempo.
231. Portanto, as propostas examinadas se configuram como
incompatíveis com a Constituição e com a Lei. A eliminação da exclusividade e
a adoção da competição acarretarão a ruptura definitiva da equação
econômico-financeira original das outorgas, sem que tal seja remediável
mediante o mecanismo de elevação de tarifas.
13 – A violação ao ato jurídico perfeito
232. Mas há outro ângulo a ser examinado, consistente na
pretensão de aplicação imediata de inovações regulatórias.
13.1 – A garantia constitucional ao ato jurídico perfeito
233. O art. 5º, inc. XXXVI, determina que a lei nova não
prejudicará o ato jurídico perfeito nem os direitos adquiridos dele decorrentes.
13.1.1 – A extensão da garantia constitucional
234. É evidente que a garantia constitucional se aplica não
apenas em face da lei, mas também no tocante ao ato administrativo (inclusive
às resoluções editadas por agências reguladoras)34. O ato administrativo
posterior subordina-se às mesmas limitações impostas à lei.
235. Por outro lado, é inquestionável que a garantia
constitucional alcança os efeitos jurídicos dos atos pretéritos. Aplica-se a
norma (legal ou regulamentar) vigente à época do aperfeiçoamento do ato
jurídico. Os efeitos derivados, ainda que se prolonguem no tempo, continuam
sujeitos à disciplina da norma que vigorava quando da consumação do ato
34 Nesse sentido, confira-se julgado do STJ: “os direitos dos usuários de linha telefônica são os fixados em disposições regulamentares, que podem ser modificadas, unilateralmente, pela administração, desde que não torne inviável a prestação do serviço, respeitando-se, apenas, o ato jurídico perfeito e o direito adquirido sob a égide do regulamento” (MS 5.479/DF, 1ª S., Rel. Min. JOSÉ DELGADO, j. em 10.06.1998, DJ de 21.09.1998).
Marçal Justen Filho - 74 -
jurídico.
Nesse sentido, pode-se lembrar a lição de CLÁUDIA
TOLEDO: “A irretroatividade é regra porque somente com sua garantia se
possibilita a certeza a segurança jurídica, ou seja, o indivíduo pode contar com
a proteção das situações jurídicas já formadas, como com sua imutabilidade,
por quanto validamente criadas, pelo que passa também a confiar nas
disposições do ordenamento jurídico, podendo prever como sua conduta nelas
será enquadrada”35.
236. Assim se passa, em especial, com os contratos
administrativos antecedidos de licitação. Aplica-se à contratação administrativa
o regime jurídico adotado por ocasião da licitação. Aliás, está assim previsto
no próprio art. 121 da Lei nº 8.666 ("O disposto nesta Lei não se aplica às
licitações instauradas e aos contratos assinados anteriormente à sua
vigência...").
13.1.2 – A disciplina do edital e do contrato
237. No caso concreto, os editais e contratos previram uma
pluralidade de direitos e obrigações para as partes. Houve a configuração de
um modelo preciso e exato de outorga, caracterizado pela exclusividade, tal
como previsto, usualmente, na Cláusula Décima-Oitava.
“CLÁUSULA DÉCIMA-OITAVA – DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
I) A CONCESSÃO tem caráter de exclusividade da exploração e do
desenvolvimento do transporte ferroviário de carga pela
CONCESSIONÁRIA na faixa de domínio da MALHA SUL. A
exclusividade não impedirá a travessia da faixa de domínio por outras
vias, respeitadas as normas legais e as condições de operação da
CONCESSIONÁRIA...”
13.2 – A função de garantia da licitação
238. Nesse ponto, cabe agregar uma questão usualmente
ignorada no estudo das licitações. Trata-se da função de garantia
desempenhada em favor do particular contratado.
35 Direito Adquirido e Estado Democrático de Direito, São Paulo: Landy, 2003, p. 193.
Marçal Justen Filho - 75 -
A licitação destina-se a fins essenciais (seleção da
proposta mais vantajosa, promoção da isonomia), mas também apresenta
outra finalidade. Trata-se de garantia ao particular contratado em face de
inovações radicais pretendidas pelo poder público.
239. Por meio da licitação, a Administração convoca os
particulares para formularem propostas de contratação. Tais propostas são
concebidas em vista das condições estabelecidas no ato convocatório. Isso
significa que o particular dispõe de condições de previsão acerca do conteúdo
das obrigações que assumirá e dos direitos em que será investido.
Assim, o reconhecimento de competência para a alteração
unilateral das condições contratuais não vai ao ponto de promover inovações
radicais, que afetem a essência das obrigações assumidas.
Se o particular formula proposta para um determinado
empreendimento, não se admite que o Estado invoque a competência
regulatória para desconstituir aquela atividade e substituí-la por outra. Não
cabe ao Estado, depois de promover uma licitação, subverter radicalmente as
condições da execução do contrato.
240. Essa garantia se aplica não apenas em face da autoridade
administrativa que detém competência para promover alteração unilateral do
contrato. Também alcança o titular da competência para editar normas gerais.
A edição de normas gerais supervenientemente à licitação
não pode afetar a contratação dela decorrente.
Trata-se de uma garantia ao sujeito que participou da
licitação, formulou proposta e assumiu direitos e obrigações definidos e
determinados.
13.3 – A alteração do objeto da outorga
241. Ora, existe a proposta de alteração radical da configuração
da outorga, o que é juridicamente descabido. O tema foi analisado acima,
aplicando-se as razões anteriores no sentido da vedação à mudança
substancial do objeto contratual.
13.3.1 – Os dois obstáculos à alteração
242. Essa modificação encontra dois obstáculos. O primeiro, já
referido, consiste na identidade da licitação. O segundo reside no ato jurídico
Marçal Justen Filho - 76 -
perfeito. A nova regulamentação não pode produzir a modificação essencial da
outorga.
13.3.2 – A vedação a modificações estruturais e substanciais
243. Deve-se reiterar que a questão não envolve a competência
para modificação unilateral das condições da prestação do serviço. A
exclusividade prevista em favor do outorgado não é uma cláusula de serviço,
que possa sofrer modificação para melhor adequação da prestação. Assim,
por exemplo, a exclusividade não pode ser suprimida, se prevista como
condição estruturante do empreendimento. Nem poderia ser introduzida, se
não tivesse sido prevista por ocasião da licitação.
13.3.3 – As inovações substanciais
244. O tema já foi acima referido, no sentido da inaplicabilidade
do instituto da alteração do contrato administrativo. As inovações são radicais
e alteram o objeto das outorgas anteriormente realizadas. Criam obrigações e
eliminam direitos e poderes em termos qualitativos, de modo a alterar as
condições de exploração e a natureza do empreendimento.
As inovações envolvem, essencialmente, a eliminação da
exclusividade, a introdução de competição com terceiros não titulares da
concessão sobre a área, a modificação do conceito de direito de passagem, a
alteração do regime de metas globais para metas por trechos, a pretensão de
submeter atividades acessórias ao regime de serviço público.
245. A dimensão quantitativa e qualitativa das alterações
previstas conduzem à configuração de alteração substancial das outorgas. O
novo marco regulatório, se vier a ser aplicado, configurará uma substituição da
outorga realizada anteriormente. Esse resultado não pode ser imposto nem por
lei, muito menos por via de ato administrativo.
Bem por isso, as alterações pretendidas não se
enquadram no âmbito da competência para introduzir unilateralmente as
modificações do contrato. Tampouco tais alterações comportam enfrentamento
mediante reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.
14 – A ofensa à isonomia
246. Por outro lado, a competição entre concessionários e
certas categorias de usuários conduz à violação da isonomia.
Marçal Justen Filho - 77 -
14.1 – A cumulação de encargos e a transferência de benefícios
247. Um problema fundamental residirá em que as
concessionárias permanecem não apenas com a atribuição de prestação dos
serviços de transporte. Ademais disso, recairá sobre elas deveres
indispensáveis à existência do sistema em seu todo.
Caberá às concessionárias a responsabilidade pela
execução de obras públicas e por todas as atividades de manutenção da
malha, oferta e ampliação da capacidade de tráfego, inclusive o controle
operacional do material rodante.
Estarão obrigadas a realizar desembolsos extremamente
significativos, especialmente para assegurar a integridade e a ampliação da
malha ferroviária. Além disso, arcarão com o serviço público de transporte
ferroviário.
212. Em contrapartida, admite-se a possibilidade de que outros
concessionários assumam a prestação do serviço valendo-se dos
investimentos e desembolsos por eles não realizados. Ademais, algumas
categorias de usuários serão investidos no poder jurídico de obter um
tratamento preferencial, inclusive para o efeito de ceder esse direito a terceiros
– competindo diretamente com a concessionária.
Essa questão é dramática porque a indústria ferroviária
envolve capital intensivo e a recuperação dos investimentos faz-se no longo
prazo. A modicidade tarifária somente pode ser obtida mediante a cobrança de
valores mais reduzidos, diluídos ao longo do tempo.
Mas esses competidores não necessitarão fazer os
investimentos em infraestrutura exigidos das concessionárias. Terão acesso à
malha pagando as tarifas diluídas cobradas pela concessionária. E competirão
com essa concessionária sem terem realizados investimentos equivalentes.
Ou seja, os investimentos na infraestrutura realizados
pelas concessionárias reverterão em benefícios para as suas competidoras.
248. Não se contraponha que a proposta apenas assegura
alguns direitos diferenciados em favor de certas categorias de usuários. Essa
afirmativa não retrata adequadamente a proposta.
Marçal Justen Filho - 78 -
Em primeiro lugar, a reforma propõe a possibilidade de
uma concessionária captar carga na área da outra. Portanto, trata-se de
autorizar o fenômeno do free rider: um agente econômico poderá ingressar no
mercado sem arcar com os custos inerentes e indispensáveis a tanto,
beneficiando-se dos gastos realizados por outrem.
Em segundo lugar, a proposta de REDUF estabelece que
um direito essencial do usuário consiste na "liberdade para transferir a
terceiros a capacidade de transporte contratada e não utilizada, mediante
contrato próprio" (art. 6º, VI). Logo, o sujeito estará comercializando o acesso à
rede, o que importa competição com o próprio concessionário. Nesse caso, até
se poderia reconhecer o surgimento de um direito de exclusividade em favor
do terceiro. Aquilo que se nega ao concessionário é assegurado ao terceiro: a
possibilidade de utilizar a infraestrutura sem competição da própria
concessionária.
14.2 – As diversas ordens de vantagens competitivas
249. Portanto, os usuários-competidores poderão ofertar tarifas
muito mais reduzidas em virtude de diversas ordens de vantagens em face das
concessionárias. E mesmo as concessionárias competirão entre si em uma
mesma malha, com vantagens diversas.
250. Em primeiro lugar, as concessionárias adquiriram o direito
à outorga em licitações de maior lance. Na generalidade dos casos, houve a
fixação de um preço mínimo, para pagamento ao longo do prazo da
concessão. Sagrou-se vencedor o licitante que ofertou o maior valor. Além
disso, foi estabelecido o dever de compartilhar com o Poder Público receitas
alternativas, complementares ou de projetos associados.
Ou seja, existe um custo inerente à aquisição da
concessão, que recai somente sobre as concessionárias.
Mas, de acordo com o marco regulatório proposto, os
novos competidores não incorreriam nessas despesas, que são
significativamente onerosas. Portanto, o custo de acesso à infraestrutura seria
inexistente ou irrisório para as novas competidoras.
Reitere-se que as despesas não operacionais da
concessionária não são consideradas para compor a tarifa de direito de
Marçal Justen Filho - 79 -
passagem (Procedimentos de Operações, art. 10). Mas essas despesas são
essenciais para a existência da concessão.
251. Em segundo lugar, as concessionárias estão obrigadas a
prestar serviço universal, enquanto as competidoras poderão escolher as
oportunidades vantajosas para atuar.
Isso significa, em termos econômicos, que as atuais
concessionárias são obrigadas a praticar uma tarifa por custo médio, enquanto
as novas competidoras poderão adotar tarifa por custo marginal. Em outras
palavras, a tarifa das concessionárias custeia o conjunto integral dos serviços
universais, enquanto a tarifa dos novos competidores basear-se-á no custo
específico e limitado do serviço prestado.
252. Em terceiro lugar, a proposta de REDUF impõe um
conjunto de direitos em favor dos usuários exclusivamente em face das
concessionárias. O Título II disciplina o tema da responsabilidade e da
qualidade do serviço. E, tal como acima referido, prevê regras aplicáveis
exclusivamente (na quase totalidade) apenas às concessionárias de serviço
público.
Ou seja, o REDUF não contempla direitos e garantias
essenciais para os usuários dos serviços explorados sob regime de direito
privado. Ao menos, são parcas as referências a essa situação.
O atendimento às determinações do REDUF imporá às
concessionárias elevado custo – o qual não será arcado pelos seus
competidores.
253. Em quarto lugar, as concessionárias serão constrangidas
ao cumprimento das metas por trechos. Segundo os Procedimentos de
Pactuação, tais metas serão vinculantes apenas para as concessionárias (art.
1º). Isso significa a ausência de metas para os demais competidores.
As concessionárias, se descumprirem as metas de
produção, estarão sujeitas a sancionamento (Procedimentos de Pactuação,
art. 8º), eis que isso configuraria violação às condições da concessão.
Não se contraponha que a ausência de cumprimento da
meta por parte do competidor produziria efeito econômico negativo
(correspondente à ausência de receita). É evidente que idêntico fenômeno se
Marçal Justen Filho - 80 -
passará relativamente à concessionária, em caso de descumprimento da meta.
A diferença residirá em que, além da redução da receita, a concessionária
estará sujeita a outras sanções.
254. Em quinto lugar, as concessionárias serão subordinadas
ao regime de remuneração mediante tarifa, sujeito ao controle da ANTT. Já os
demais competidores serão livres para praticar as tarifas que melhor lhes
aprouver.
255. Em sexto lugar, as competidoras não serão constrangidas
a promover gastos com a infraestrutura. Já as concessionárias serão
obrigadas a isso, sob pena de caducidade da concessão.
Aliás, pode haver casos em que os pesados investimentos
necessários à implantação, ampliação e modernização da infraestrutura
tenham esgotado a capacidade de endividamento da concessionária. Logo,
haveria dificuldades para realizar investimentos para competir em igualdade de
condições com esses terceiros.
256. Em sétimo lugar, a concessão é um vínculo com prazo
determinado, enquanto a autorização não contempla prazo. Logo, os usuários-
competidores poderão realizar investimentos com previsão de amortização em
prazo indeterminado. Já as concessionárias serão obrigadas a cobrar tarifas
que assegurem a amortização dos investimentos no prazo da outorga.
257. Em oitavo lugar, o material rodante e outros bens
necessários aos serviços de transporte se configuram, na grande maioria,
como bens reversíveis ao final da concessão. Ou seja, o seu domínio será
transferido para o poder concedente. Como decorrência, a tarifa compreende
uma parcela para amortizar o custo de tais bens, de modo a assegurar que o
Poder Público adquira o seu domínio. Já o material rodante utilizado pelos
usuários-competidores não serão reversíveis. Portanto, poderão ser utilizados
segundo as tarifas que melhor aprouverem a eles.
258. Como decorrência, a disciplina concebida outorga direitos
equivalentes para operadores em situação distinta. Consagra-se uma situação
de privilégio e vantagem artificial para terceiros não-concessionários, que
poderão atuar com tarifas muito mais reduzidas do que as das
concessionárias.
Marçal Justen Filho - 81 -
14.3 – A impertinência do argumento da tarifa de direito de passagem
259. Nem caberia argumentar que as concessionárias seriam
investidas na titularidade da competência para cobrança de tarifa de direito de
passagem. Tal como exposto, não existe qualquer previsão que assegure que
tal tarifa seja suficiente e satisfatória para a remuneração dos investimentos
realizados.
Basta considerar que a cessão da capacidade será
compulsória, sendo imprecisa a solução no tocante à fixação da tarifa.
14.4 – Síntese: o regime privilegiado para os terceiros competidores
260. A proposta contempla um regime de vantagens para os
usuários-competidores em detrimento da prestação do serviço público. Essa
solução infringe a isonomia e é incompatível com a própria concepção de
concorrência. A competição econômica pressupõe identidade de regimes
jurídicos. Reservar benefícios para uma categoria de sujeitos não é compatível
com a Constituição e com o próprio regime da Lei 10.23336.
15 – A infração ao monopólio jurisdicional: interpretação conforme
261. Outro ponto relevante reside nas constantes referências à
utilização compulsória de arbitragem para composição de litígios. Essas
passagens somente podem comportar uma interpretação conforme à
Constituição.
15.1 – A garantia do acesso ao Poder Judiciário
262. Uma das características essenciais da CF/88 (na esteira
de uma longa tradição nacional) é o monopólio jurisdicional pelo Poder
Judiciário. Tal como previsto no art. 5º, XXXV, “a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Nenhuma lei e nenhum ato
estatal pode eliminar a garantia de invocação da tutela jurisdicional perante o
Poder Judiciário para defesa de qualquer interesse.
Trata-se de um direito fundamental, que dá identidade à
ordem jurídica brasileira e que se constitui em cláusula pétrea.
36 Nesse sentido, ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO assinala que “O importante, na atribuição de distintos regimes jurídicos aos serviços públicos de um mesmo setor, é a consonância da diferenciação aplicada com o Princípio da Igualdade, admitindo-se apenas as distinções que se justifiquem em virtude das peculiaridades de cada atividade” (Direitos dos..., ob. cit., p. 435).
Marçal Justen Filho - 82 -
15.2 – O instituto da arbitragem
263. A garantia do monopólio jurisdicional não impede a
existência do instituto da arbitragem, que se configura como um equivalente
jurisdicional, na fórmula tradicional. Ela consiste no exercício, por sujeitos
particulares, da competência para compor um litígio, proferindo decisão com
efeitos equivalentes a uma sentença produzida pelo Poder Judiciário.
264. A arbitragem apenas pode ser instituída por via do
consenso entre as partes. Não se admite que uma disposição legal imponha a
adoção compulsória da arbitragem para composição de litígios. Em outras
palavras, a arbitragem é uma manifestação indissociável da autonomia
contratual.
265. A Lei nº 9.307 determina, no art. 1º, que “as pessoas
capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios
relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. Já o art. 852 do Código Civil
estabelece que “é vedado o compromisso para a solução de questões de
estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter
estritamente patrimonial”.
15.3 – A inconstitucionalidade da imposição compulsória da arbitragem
266. Portanto, não é cabível que uma agência reguladora
pretenda estabelecer que as divergências e discordâncias geradas no âmbito
regulado ou decorrente de suas decisões serão objeto compulsoriamente de
arbitragem. Essa determinação infringe a Constituição e as características do
instituto da arbitragem.
15.4 – A inconstitucionalidade da imposição de arbitragem pela ANTT
267. Muito menos cabível seria estabelecer que a arbitragem
seria desenvolvida de modo compulsório no âmbito da estrutura administrativa
da ANTT. Não há a menor viabilidade jurídica de impor aos litigantes a
composição de um tribunal arbitral por meio da indicação de três servidores
por uma autoridade administrativa.
268. A essência da arbitragem reside não apenas na autonomia
das partes, que se reflete inclusive na escolha dos árbitros mediante atuação
concertada. Também existem impedimentos a que assumam a condição de
árbitros sujeitos destituídos da mais absoluta autonomia funcional.
Marçal Justen Filho - 83 -
Portanto, muito menos viável é a solução porque se
pretende que "... o Superintendente de Processos Organizacionais competente
nomeará comissão composta por três servidores para condução do
procedimento".
Ora, a prestação jurisdicional depende da existência de
garantias ao jurisdicionado – entre as quais se encontram a vitaliciedade, a
inamovibilidade e outras características inerentes apenas à magistratura.
Lembre-se que tais são garantias outorgadas não em favor do magistrado,
mas como instrumento destinado a promover a imparcialidade das decisões.
15.5 – A interpretação conforme
269. A pretensão de instituir uma arbitragem compulsória, sem
lei e conduzida por servidores públicos indicados pela Agência, infringe o
sistema constitucional vigente.
Justamente por isso, não há validade também das regras
dos §§ 3º e 4º do art. 55 da REDUF, que pretendem impor sancionamento ao
sujeito que se recusar a submeter-se ao procedimento de resolução de
conflitos.
270. Assim, somente se pode admitir uma interpretação
conforme para todas as propostas que se utilizam da expressão “arbitragem”.
Deve-se reputar que a expressão não foi utilizada em sentido técnico-jurídico e
que não se trata da arbitragem propriamente dita. As propostas apenas podem
estar-se referindo a um procedimento administrativo orientado à composição
de litígios, sem natureza compulsória e que não configura equivalente
jurisdicional.
16 – O descabimento da invocação à supremacia do interesse público
271. Os defeitos e obstáculos acima referidos não podem ser
eliminados mediante a invocação da supremacia do interesse público. A
validade das modificações do marco regulatório se subordina à observância do
modelo constitucional democrático consagrado pela Constituição.
16.1 – A concepção totalitária da supremacia do interesse público
272. Anteriormente à Constituição de 1988, vigorava uma
concepção autoritária e prepotente do interesse público. Prevalecia a proposta
da ausência de direitos individuais oponíveis ao “interesse público”. O
Marçal Justen Filho - 84 -
interesse público, identificado como o interesse da “Nação”, do “Povo”, do
“Estado” ou da “Maioria”, autorizava a supressão dos direitos (senão da própria
existência) dos particulares. Essa concepção defendia que não existem
direitos subjetivos privados oponíveis ao interesse público.
Esse entendimento é incompatível com o sistema político e
o modelo jurídico adotados com a Constituição Federal de 1988.37
16.2 – A concepção democrática da supremacia do interesse público
273. A democracia consiste não apenas na consagração do
voto popular e na temporariedade dos mandatos eletivos. Também envolve um
sistema de limites intransponíveis à vontade do Estado e às decisões dos
governantes (e das maiorias populares). A democracia se caracteriza pelo
reconhecimento de direitos e garantias individuais e coletivas, que são
protegidos inclusive em face do interesse do “Povo”, do “Governo” ou da
“Maioria”.
O “interesse público” somente autoriza o sacrifício de
direitos e interesses privados nos limites da Constituição e desde que
preservados os direitos fundamentais.
16.3 – A insuficiência do argumento da supremacia do interesse público
274. Isso significa que nenhuma decisão estatal se sustenta
mediante a pura e simples invocação da supremacia do interesse público. Um
ato legislativo ou uma decisão administrativa somente serão válidos se forem
compatíveis com a Constituição e respeitarem os direitos fundamentais por ela
protegidos.
A pretensa compatibilidade com o interesse público não
transforma em válida uma decisão estatal infringente da Constituição,
violadora das leis ou incompatível com atos jurídicos perfeitos. Essa é a
essência da Democracia conquistada pela Nação brasileira, que vincula
inclusive e especialmente os governantes.
17 – Conclusão
275. Em face do exposto, apresento as seguintes respostas
37 Nas palavras de FLORIANO DE AZEVEDO MARQUES NETO, “...as transformações havidas na sociedade e no Estado contemporâneos põem em xeque a concepção clássica de prevalência absoluta e indesviável do Estado sobre a sociedade; da Administração sobre o administrado; do público sobre o privado” (ob. cit., p. 156).
Marçal Justen Filho - 85 -
para os quesitos formulados.
a) Poder-se-ia, nos termos propostos pela ANTT, alterar todo o
marco regulatório do serviço público ferroviário, inclusive para as
concessões já celebradas?
Resposta: Não. O marco regulatório do serviço público ferroviário é
composto por normas de nível constitucional, legal e regulamentar.
Alterações promovidas por agências reguladoras devem
necessariamente observar a disciplina constitucional e legal. No
caso concreto, as informações disponíveis indicam a ausência da
adoção do procedimento devido para a alteração das normas
regulamentares, tal como a pretensão de ignorar limites e garantias
constitucionais e legais.
b) As mencionadas alterações no marco regulatório podem ser
veiculadas por resolução da ANTT?
Resposta: Não. Resolução emanada de agência reguladora não é o
instrumento jurídico adequado para introduzir inovações radicais
num marco regulatório produzido por normas constitucionais e
legais. A Constituição impõe a obrigatoriedade da existência de
serviço público universal de transporte ferroviário. A Lei nº 10.233
prevê que os serviços regulares de transporte ferroviário de cargas
serão prestados de modo associado com a exploração de
infraestrutura ferroviária, mediante concessão. Não é válida
alteração dessa disciplina mediante a edição de uma resolução. Nem
é cabível uma resolução instituir deveres de contratação
subordinados ao direito privado e que não se enquadram no âmbito
do direito público.
c) Uma alteração dessa magnitude importa a eliminação da garantia
à intangibilidade da equação econômico-financeira das outorgas em
vigor?
Resposta: Sim. A relação original entre encargos e vantagens foi
estabelecida mediante a previsão contratual da prestação do serviço
em regime de exclusividade, a partir de tarifas aptas a assegurar a
amortização dos investimentos, a cobertura das despesas e a
Marçal Justen Filho - 86 -
obtenção de uma margem de lucro. A eliminação da exclusividade
significa que os usuários passarão a ter a alternativa de recorrer a
outro prestador de serviço, o qual pratica preços livres. Tal opção
regulatória apenas pode ser adotada na oportunidade da outorga da
concessão. A sua adoção em momento posterior frustra o modelo
adotado por ocasião da licitação e acarreta a supressão da garantia
da intangibilidade da equação econômico-financeira da outorga,
constitucionalmente assegurada ao concessionário. Portanto, as
propostas consideradas pela ANTT são incompatíveis com a
Constituição e com a Lei.
d) Uma alteração dessa magnitude poderia ser viabilizada mediante
mero reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos já celebrados? Em
caso negativo, seria ela nula, inclusive por representar uma rescisão
indireta dos contratos de concessão sem os requisitos e consequências
legalmente impostas a esta modalidade de extinção contratual?
Resposta: Não. A dimensão qualitativa e quantitativa das inovações
descaracteriza uma simples modificação das cláusulas de serviço e
torna irremediável o comprometimento da equação econômico-
financeira dos contratos. Existe uma transformação do objeto
contratual e uma desnaturação da identidade do contrato licitado e
outorgado em favor das concessionárias. Como consequência, as
disposições do decreto se configurarão como inválidas, se vier ele a
ser editado. A invalidade decorrerá da infração a diversos
dispositivos constitucionais e legais, bem como às condições
constantes das outorgas em vigor. Justamente por isso, a
implementação das medidas em questão configurará atuação
antijurídica do Poder Público e configurará violação às condições
pactuadas, autorizando as concessionárias a promover as medidas
adequadas para rescisão do contrato por inadimplemento do poder
concedente.
e) Admite-se que a ANTT edite ato normativo para disciplinar os
preços praticados pela concessionária em atividades de natureza privada
não incluídas no objeto da concessão de serviço público?
Marçal Justen Filho - 87 -
Resposta: Não. Ou as atividades referidas estão incluídas no âmbito
do serviço público ou nele não se compreendem (apresentando
natureza privada). Na primeira alternativa, tais atividades se
sujeitariam ao regime integral de direito público. No segundo caso,
seriam disciplinadas pelo direito privado. O Poder Público
reconheceu formalmente que tais atividades não integram o âmbito
do serviço público concedido – tal consta, de modo expresso, no
corpo dos editais e contratos de concessão. Logo, o tabelamento de
tais preços privados configura infração aos arts. 170, parágrafo
único, e 174 da Constituição Federal. Há ofensa à livre iniciativa.
Aliás, pode haver ofensa inclusive à isonomia, porque o tabelamento
acabaria sendo praticado apenas em relação às concessionárias,
não prevalecendo em face dos terceiros (que podem livremente atuar
nessa atividade).
f) A imposição de novas obrigações, com a geração de custos
adicionais de valor extremamente elevado para a concessionária, pode
ser imputada unilateralmente pela ANTT às concessionárias?
Resposta: Não. A criação de obrigações de grande dimensão
econômica, tal como a eliminação de passagens em nível, afeta a
identidade da outorga e não se enquadra na competência para
alteração unilateral das condições da prestação do serviço. Não é
cabível promover a criação de obrigações que envolvam a execução
de obras públicas dotadas de autonomia e custos aptos a afetar
intrinsecamente a outorga.
g) Por ocasião da desestatização da malha ferroviária nacional,
além da formalização dos contratos de concessão em caráter de
exclusividade, na dicção da sua Cláusula Décima Oitava, foram firmados
contratos de arrendamento dos bens vinculados à prestação do serviço
público de transporte ferroviário, cujo objeto é o arrendamento dos bens
operacionais necessários à exploração do aludido serviço. O parágrafo
segundo da cláusula primeira do contrato de arrendamento estabelece
que o arrendamento “é feito com vinculação expressa e direta ao Contrato
de Concessão...”. Considerando esse cenário e o marco regulatório de
Marçal Justen Filho - 88 -
outros setores (e.g. telecomunicações e seus segmentos telefonia fixa; TV
a cabo), mostra-se factível a exploração e o compartilhamento dos bens
operacionais arrendados, especialmente o conjunto de instalações e
equipamentos que compõem a infraestrutura e a superestrutura da
ferrovia, com outros operadores ferroviários, conforme pretendem as
propostas apresentadas pela ANTT?
Resposta: Não. Não é juridicamente viável promover o
compartilhamento da exploração dos bens que compõem a
infraestrutura e a superestrutura da ferrovia, nem impor soluções
jurídicas que resultem em competição na área das concessões
outorgadas. Isso porque as outorgas vigentes previram a sua
exploração em regime de exclusividade. A eliminação da
exclusividade acarreta a desnaturação da outorga existente,
especialmente porque acarreta a eliminação de direitos essenciais e
a criação de obrigações não existentes originalmente. A dissociação
entre a exploração da infraestrutura e a prestação do serviço
ferroviário propriamente dito pressupõe a instauração de um novo
sistema, sendo juridicamente descabido alterar as outorgas
anteriores para promover esse novo modelo. Mesmo uma reforma
legislativa quanto a esse tema teria de respeitar a vontade
constitucional de assegurar a existência do serviço público no
âmbito da atividade ferroviária. O grande óbice à adoção do regime
competitivo na prestação de serviços de transporte ferroviário de
cargas reside no risco de inviabilização do serviço público,
especialmente porque os competidores não-concessionários seriam
livres para escolher apenas os serviços rentáveis. Isso conduziria à
insolvência dos prestadores de serviço público, constrangidos a
prestar serviço universal (inclusive nas hipóteses de ausência de
rentabilidade econômica). Mais ainda, haveria os obstáculos do ato
jurídico perfeito, da intangibilidade da equação econômico-financeira
dos contratos administrativos e da identidade das licitações – que
impediriam a modificação radical das condições previstas para as
outorgas realizadas durante a década de 1990.
Marçal Justen Filho - 89 -
h) A proposta de utilização da malha ferroviária atualmente
concedida apenas para o transporte de carga própria de determinadas
categorias de usuários seria revestida de legalidade? Tal quadro não
esbarraria no regime de exclusividade na prestação de serviços de que
gozam as atuais concessionárias e, ainda, na inviabilidade de
compartilhamento da infraestrutura e da superestrutura da ferrovia?
Resposta: A exclusividade assegurada em favor das outorgas ora
vigentes não diferencia cargas próprias e de terceiros. Essa
exclusividade é ampla e ilimitada, tanto no aspecto das cargas a
serem transportadas como no tocante à utilização da ferrovia.
Portanto, a eventual determinação no sentido de que seria cabível
outorgar autorizações, mas exclusivamente para o transporte de
carga própria, não eliminaria os obstáculos apontados, que
conduzem ao reconhecimento de sua invalidade.
i) À luz do contrato (cláusula sétima, parágrafo segundo) e do Dec.
nº 1.832 (artigo 18 e seu parágrafo único), os serviços acessórios são
remunerados por meio de “taxas” adicionais mediante negociação das
concessionárias com o próprio usuário, não são compulsórios e, ainda,
não constituem receita alternativa. Dado esse cenário, estariam as
propostas de resoluções, ao transformar essas figuras em serviços
remunerados por “tarifas”, sinalizando a sua regulação para as atuais
concessionárias? Cumpre registrar que, em que pese a nomenclatura
“taxa”, fato é que jamais houve o estabelecimento de tarifas para tais
serviços, mas apenas a divulgação dos preços praticados para cada tipo
de serviço acessório pelas concessionárias à ANTT.
Resposta: Atualmente, as operações acessórias se constituem em
atividades econômicas desenvolvidas sob regime de direito privado,
sem vínculo jurídico com a concessão. Nem sequer se configuram
como receita alternativa subordinada ao art. 11 da Lei nº 8.987. A
denominação de “taxa” utilizada presentemente não é dotada de
correção técnica, eis que configura um preço privado. Existem fortes
argumentos no sentido de que as propostas consideradas pela ANTT
pretendem incluir a remuneração por tais serviços acessórios no
Marçal Justen Filho - 90 -
âmbito da concessão. Assim se passa porque a expressão “tarifa de
transporte” é explicitamente definida como remuneração devida à
concessionária (REDUF, art. 2º, XV). As “tarifas adicionais” foram
tratadas conjuntamente com aquelas destinadas a remunerar o
transporte (Seção I – Das Tarifas Principais e Acessórias). A
alteração de regime jurídico importa ofensa às condições previstas
originalmente por ocasião da licitação, eis que acarreta a ampliação
do próprio objeto da outorga.
j) Os contratos vigentes preveem que as concessionárias e o Poder
Concedente pactuarão metas anuais de produção e de redução de
acidentes para a malha ferroviária como um todo, devendo as
concessionárias prover os investimentos necessários para o alcance das
referidas metas. A proposta de reforma regulatória prevê que essas metas
deverão ser pactuadas para cada trecho ferroviário, com a realização de
investimentos também por trecho, e enuncia, ainda, metas de redução de
acidentes. Tal quadro deverá provocar impacto econômico significativo
nas concessões, na medida em que as concessionárias não mais terão
flexibilidade de distribuírem os seus ativos (material rodante) na malha
ferroviária como um todo, conforme alterações da demanda e do mercado
nas várias regiões cobertas pela ferrovia, perdendo-se em eficiência,
portanto. Partindo-se da premissa de que essas alterações trazem
significativo impacto econômico-financeiro aos contratos vigentes, poder-
se-ia sustentar a desnaturação da identidade do contrato licitado a
inviabilizar qualquer compensação que pudesse manter íntegra a sua
equação econômica original? Pode-se, por outro lado, sustentar que,
independentemente do impacto econômico verificado, tratar-se-ia de
reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos pela natureza da matéria
objeto das alterações pelo Poder Concedente?
Resposta: A alteração em questão apresenta relevo suficiente para
afetar o objeto da outorga. Não se trata de uma mera disciplina sobre
a prestação dos serviços, enquadrável no âmbito das cláusulas
mutáveis (inclusive unilateralmente). A alteração dos critérios e
regras sobre a fixação de metas de produção e de redução de
Marçal Justen Filho - 91 -
acidentes altera a configuração da outorga de modo essencial. Em
suma, a dimensão dos investimentos e desembolsos a serem
realizados pelo concessionário é radicalmente alterada, o que
significa a inutilidade das concepções originalmente adotadas e a
necessidade de reconstrução da chamada “engenharia financeira”
da concessão. Surgirá um empreendimento distinto e diverso
daquele licitado e assumido pelo licitante. Haverá a alteração
qualitativa do objeto da outorga. Por tudo isso, não se trata de
alteração que comporte contrapartida mediante a recomposição da
equação econômico-financeira da outorga. A alteração é tão grave
que resultaria na extinção antecipada dos contratos, com frustração
da concretização da equação econômico-financeira assegurada às
concessionárias.
k) Assumindo a premissa da geração de impacto econômico-
financeiro significativo, favor considerar as mesmas indagações
formuladas no quesito anterior em relação às tarifas de transporte, na
medida em que, nos termos da proposta divulgada, pretende-se que a
ANTT venha a fixar os valores das tarifas-teto das concessionárias, bem
como os seus critérios de reajuste e revisão. Tenha-se em mente que as
tarifas, o seu automático critério de reajuste e as premissas
extraordinárias para a sua revisão foram definidos por ocasião da
licitação, quando da publicação do edital, constituindo condição essencial
para que as concessionárias pudessem formular a sua proposta
econômico-financeira para a outorga da concessão e do arrendamento,
com base, dentre outras coisas, no cálculo do retorno financeiro do
investimento, aí incluída a receita das tarifas que seriam cobradas
conforme a demanda estimada.
Resposta: Não haveria obstáculo a que a regra em questão tivesse
sido estabelecida por ocasião da licitação para as outorgas ora
existentes ou que venha a ser aplicada para outorgas futuras. O
poder concedente é titular da competência para regular as condições
da prestação do serviço, o que significa que, em princípio, a
inovação contida no art. 11, caput e parágrafo único, não conflitaria
Marçal Justen Filho - 92 -
com o ordenamento jurídico pátrio. Mas o ponto fulcral reside em
que se dispôs de modo diverso relativamente às atuais outorgas.
Portanto, cada concessionária organizou o seu empreendimento a
partir do pressuposto de que era sua e própria a atribuição de dispor
sobre as condições de trafegabilidade e outras questões conexas. O
problema reside em que a regra altera a disciplina contemplada
originalmente por ocasião da outorga. Isso significa que a regra
acarreta a irrelevância de todas as projeções e de todo o
planejamento de longo prazo realizado pelas concessionárias até o
presente. A alteração dessa competência produz reflexos na
estrutura essencial da outorga, de modo a inviabilizar a manutenção
das concessões em vigor.
l) O virtual novo marco regulatório acima cogitado contraria a Lei n°
10.233/01? Em caso positivo, as resoluções propostas seriam ilegais e
inconstitucionais?
Resposta: Sim. Essa regulação, se vier a ser editada nos termos
objeto de divulgação oficial, configurar-se-á como ofensiva à Lei nº
10.233. Mais ainda, haverá ofensa à Constituição, especialmente por
colocar em risco a existência do serviço público de transporte
ferroviário de cargas.
m) É juridicamente cabível a introdução de regra determinando que
os conflitos entre operadores ferroviários seriam compostos mediante
arbitragem, a ser conduzida pela ANTT segundo critérios e regras que a
essa bem aprouverem?
Resposta: Não. Se a disciplina em questão pretendesse determinar a
adoção do instituto da arbitragem, haveria ofensa à garantia
constitucional do monopólio jurisdicional pelo Judiciário. Logo, a
única alternativa é adotar interpretação conforme a Constituição para
a hipótese, reputando que as propostas não se referem à arbitragem
em sentido técnico-jurídico. Essas propostas utilizam a expressão
arbitragem para indicar um procedimento administrativo destinado a
promover uma solução amigável – sem que a sua implementação
seja obrigatória nem o seu resultado vinculante. Mais ainda,