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INFORMATIVO DO GRUPO DE CONJUNTURA INTERNACIONAL N 22 ANO 6 JUL/SET 04 EX-PAÍSES SOCIALISTAS A ECONOMIA RUSSA: EVOLUÇÃO RECENTE E PERSPECTIVAS, 1 ENSAIO O SEGUNDO MANDATO DO PRESIDENTE PUTIN, 3 EUA AVALIAÇÃO POLÍTICA DE REAGAN, 5 EUA O BODE DE ESTIMAÇÃO E OUTRAS ESTÓRIAS, 7 ENCARTE ESPECIAL XIV ENCONTRO DA AULP, 10 EUROPA O FUTURO DA UNIÃO EUROPÉIA APÓS A INTEGRAÇÃO, 18 ENSAIO DESAFIOS DA NOVA EUROPA, 20 SEGURANÇA INTERNACIONAL FORÇA, LEGITIMIDADE E CONTINUIDADE NA MUDANÇA, 22 DA CONJUNTURA INTERNACIONAL PANORAMA GACINT economia russa tem mostrado um altíssimo de- sempenho. Em 2003, o PIB cresceu 7,3% e no primeiro trimestre de 2004, ano-a-ano, o seu crescimento foi de 8%. Ainda que esse cresci- mento tenha tido como forte propulsor o mer- cado internacional do petróleo – produto essen- cial da pauta de exportações do país –, essa evo- lução vem se dando também com base no cres- cimento na demanda doméstica, de investimen- to e consumo. Segundo cálculos de Andrei Beloussov, economista do Instituto de Projeções da Economia Nacional, no crescimento de 7,3% de 2003, 1,5% foram devidos ao aumento dos preços do petróleo, 3,5% ao volume de exporta- ções de matérias primas e 3% a fatores relacio- nados com a expansão da competitividade das empresas russas no mercado doméstico. A carta mensal do Banco da Finlândia (BOFIT Rússia Review, maio 2004) dá conta de um forte crescimento da demanda de consumo, que pode ser explicado pela elevação da renda real da popu- lação e pela difusão do crédito ao consumidor; o investimento, por sua vez, de acordo com o Ser- viço Federal de Estatística, apresentou um cresci- mento de 12,5% em 2003 e de 13,1% no primeiro trimestre de 2004 (ano-a-ano). O desemprego caiu em 2003, para 7,9% da PEA (segundo método OIT). A dívida externa em dezembro de 2003, com o nível de 121,6 bilhões de US$, caiu para 26,9% do PIB, ao mesmo tempo em que se registraram reservas de 83,4 bilhões de dólares em março de 2004 (essa importância ultrapassa o valor total das im- portações realizadas em 2003, 74,8 bilhões de US$). A inflação caiu de 20,2% em 2000 para 12,0% em 2003 e 10,3% no primeiro trimestre de 2004(ano-a-ano). O salário real médio men- sal subiu de 79 US$ em 2000 para 180 US$ em 2003 e para 230 US$ em março de 2004. O equi- líbrio fiscal tem sido mantido (2,2% do PIB em termos nominais em 2003, 1,8% no primeiro trimestre de 2004). Boa parte desses resultados pode ser também atribuída a uma condução bas- tante apropriada da política econômica (redução da dívida, equilíbrio fiscal, con- cessão dos aumentos reais de rendimentos da população, inclusi- ve aposentados) e na qual se inclui reforma tributária gradativa e a criação de um fundo de estabilização, para enfrentar a possível queda dos preços in- ternacionais do petró- leo. Esse fundo é ali- Nesta edição o PANORAMA traz um encarte especial, das páginas 10 à 17, do XIV ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO DAS UNIVERSIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA, a realizar-se na Universidade de São Paulo, no período de 22 a 25 de julho próximo, sob a coordenação da Comis- são de Cooperação Internacional (Ccint) da USP. A A ECONOMIA RUSSA: EVOLUÇÃO RECENTE E PERSPECTIVAS EX-PAÍSES SOCIALISTAS LENINA POMERANZ *

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INFORMATIVO DO GRUPO DE CONJUNTURA INTERNACIONAL − N 22 − ANO 6 − JUL/SET 04

EX-PAÍSES SOCIALISTAS

A ECONOMIA RUSSA: EVOLUÇÃORECENTE E PERSPECTIVAS, 1

ENSAIO

O SEGUNDO MANDATO DOPRESIDENTE PUTIN, 3

EUA

AVALIAÇÃO POLÍTICA DE REAGAN, 5EUA

O BODE DE ESTIMAÇÃOE OUTRAS ESTÓRIAS, 7ENCARTE ESPECIAL

XIV ENCONTRO DA AULP, 10EUROPA

O FUTURO DA UNIÃO EUROPÉIAAPÓS A INTEGRAÇÃO, 18

ENSAIO

DESAFIOS DA NOVA EUROPA, 20SEGURANÇA INTERNACIONAL

FORÇA, LEGITIMIDADEE CONTINUIDADE NA MUDANÇA, 22

D A C O N J U N T U R A I N T E R N A C I O N A LPANORAMA

GACINT

economia russa tem mostrado um altíssimo de-sempenho. Em 2003, o PIB cresceu 7,3% e noprimeiro trimestre de 2004, ano-a-ano, o seucrescimento foi de 8%. Ainda que esse cresci-mento tenha tido como forte propulsor o mer-cado internacional do petróleo – produto essen-cial da pauta de exportações do país –, essa evo-lução vem se dando também com base no cres-cimento na demanda doméstica, de investimen-to e consumo. Segundo cálculos de AndreiBeloussov, economista do Instituto de Projeçõesda Economia Nacional, no crescimento de 7,3%de 2003, 1,5% foram devidos ao aumento dospreços do petróleo, 3,5% ao volume de exporta-ções de matérias primas e 3% a fatores relacio-nados com a expansão da competitividade dasempresas russas no mercado doméstico.

A carta mensal do Banco da Finlândia (BOFITRússia Review, maio 2004) dá conta de um fortecrescimento da demanda de consumo, que podeser explicado pela elevação da renda real da popu-lação e pela difusão do crédito ao consumidor; oinvestimento, por sua vez, de acordo com o Ser-viço Federal de Estatística, apresentou um cresci-mento de 12,5% em 2003 e de 13,1% no primeirotrimestre de 2004 (ano-a-ano).

O desemprego caiu em 2003, para 7,9% daPEA (segundo método OIT). A dívida externa

em dezembro de 2003, com o nível de 121,6bilhões de US$, caiu para 26,9% do PIB, aomesmo tempo em que se registraram reservasde 83,4 bilhões de dólares em março de 2004(essa importância ultrapassa o valor total das im-portações realizadas em 2003, 74,8 bilhões deUS$). A inflação caiu de 20,2% em 2000 para12,0% em 2003 e 10,3% no primeiro trimestrede 2004(ano-a-ano). O salário real médio men-sal subiu de 79 US$ em 2000 para 180 US$ em2003 e para 230 US$ em março de 2004. O equi-líbrio fiscal tem sido mantido (2,2% do PIB emtermos nominais em 2003, 1,8% no primeirotrimestre de 2004).

Boa parte dessesresultados pode sertambém atribuída auma condução bas-tante apropriada dapolítica econômica(redução da dívida,equilíbrio fiscal, con-cessão dos aumentosreais de rendimentosda população, inclusi-ve aposentados) e naqual se inclui reformatributária gradativa e acriação de um fundode estabilização, paraenfrentar a possívelqueda dos preços in-ternacionais do petró-leo. Esse fundo é ali-

Nesta edição o PANORAMA traz um encarte especial,das páginas 10 à 17, do XIV ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO

DAS UNIVERSIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA, a realizar-sena Universidade de São Paulo, no período de 22 a25 de julho próximo, sob a coordenação da Comis-são de Cooperação Internacional (Ccint) da USP.

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A ECONOMIA RUSSA: EVOLUÇÃORECENTE E PERSPECTIVAS

EX-PAÍSES SOCIALISTAS

LENINA POMERANZ*

Page 2: PANORAMA - ri.weebly.com · sal subiu de 79 US$ em 2000 para 180 US$ em 2003 e para 230 US$ em março de 2004. O equi-líbrio fiscal tem sido mantido (2,2% do PIB em termos nominais

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mentado pelas rendas da exportação e deve seraumentado com a elevação de 15% do impostosobre a exploração mineral a partir de janeiro de2005, e com o aumento, a partir de agosto desteano, dos impostos sobre a exportação do petró-leo, estipulados proporcionalmente ao seu pre-ço internacional, em 4 níveis, variando entre 0%,quando o preço for inferior a 15$/barril, a 65%,quando esse preço exceder 25$/barril.

Há mais reformas à vista: redução do Im-posto sobre Valor Adicionado, de 20% para 18%,desde o começo deste ano, aumento do impostosobre dividendos de 6% para 9%, além de tribu-tação sobre a propriedade imobiliária das pesso-as físicas. A tentativa de mexer com o impostosocial, para reduzi-lo, tem provocado discussões,porque esse imposto financia a previdência; naescala regressiva de 4 níveis, o governo propõenão só a sua redução para três níveis, como ain-da a redução da alíquota máxima de 35,6% para26%, para incentivar a queda desse imposto so-bre a folha de pagamento. Para cobrir o rombofiscal, o governo propõe excluir da previdênciapública os trabalhadores nascidos entre 1953 e1966 (homens) e entre 1957 e 1966 (mulheres),que seriam estimulados a contribuir com no mí-nimo 4% de seus salários para o fundo previ-denciário público ou privado, ficando com ogoverno uma complementação menor.

Além disso, o governo propõe substituir osbenefícios sociais em espécie, concedidos aosaposentados e demais estratos sociais por elesbeneficiados, por pagamento compensatórioem dinheiro. A população afetada já se mani-festou contra, temendo – com certa razão, apoi-ada em sua experiência pregressa – que as mu-danças viriam em seu prejuízo, não obstante asdeclarações do assessor presidencial Illirianov,de que um “povo livre” numa sociedade “li-vre”, é aquele em que os cidadãos detém di-nheiro em suas mãos. E essas reformas não sãoas únicas à vista. Em sua mensagem à Duma,no final de maio deste ano, o presidente Putinanunciou as suas metas, em relação à habitaçãoe aos sistemas de saúde e educação. Sem afas-tar a sua preocupação com a população maispobre, que deverá ser assistida pelo Estado, pre-tende-se implantar um sistema de seguro saú-de compulsório e um sistema hipotecário paraa venda de habitação a longo prazo; no sistemaeducacional se pretende que os estudantes re-tribuam a educação profissional gratuita rece-bida, por trabalho por um certo período, ondesuas qualificações são demandadas, e sejamobrigados a devolver o dispêndio neles feito

pelo Estado, caso não se disponham a fazer aretribuição na forma referida.

Essas reformas, ou metas sociais, enqua-dram-se nas perspectivas estabelecidas por Putin,segundo sua mensagem, centradas na elevaçãodo padrão de vida da população e na redução dapobreza. Para isso, ele propõe a meta de dobraro PIB russo em 10 anos e, se possível, até 2010,ou seja, em 8 anos. Há problemas a solucionarpara que ela seja tornada factível, além daquelesmais conjunturais, como o da taxa de câmbio edo afluxo de divisas, por exemplo, provocadosnão só pelo aumento formidável das exportações,mas também pelo aumento da entrada de capi-tal estrangeiro. Além das políticas visando im-pedir uma apreciação do rublo, o governo, pre-tendendo controlar o ingresso do capital espe-culativo, criou uma lei, que entra em vigor apartir de junho de 2004, que permite ao BC con-gelar até 20% do capital ingressante em um fun-do não coberto por juros, por até um ano.

Entre os problemas apresentados, os mais im-portantes parecem ser dois: a necessidade de am-pliar a já hoje insuficiente infraestrutura de trans-portes, especialmente oleodutos para petróleo egás natural; e a diversificação da estrutura eco-nômica do país, hoje altamente dependente dossetores produtores de energia e commodities do se-tor metalúrgico. O primeiro deles deve ser ataca-do, por investimento público e privado, median-te a preparação de projetos capazes de interessarao capital privado, tanto em relação aos oleodutos,quanto às estradas de rodagem, nas quais se pro-põe o estabelecimento de pedágios.

A solução para o segundo, depende basica-mente do comportamento dos agentes econô-micos, os quais, num quadro de mercado quefavorece os setores energéticos, tendem a enca-minhar seus investimentos nessa direção. O go-verno pretende intervir nesse processo de duasformas: através da ampliação do programa deprivatização, visando eliminar as empresas esta-tais deficitárias; e através de reforma administra-tiva que, estabelecendo novas bases para a com-petência fiscal entre os diversos níveis da admi-nistração estatal, e agilizando a máquina estatalatravés de seu enxugamento, permita conduziras políticas macroeconômicas e continuar com areforma fiscal; neste último caso, introduzindoum planejamento orçamentário de longo prazo,no qual se busque essencialmente, além do equi-líbrio fiscal, o controle de resultados dos dispên-dios efetuados.

De toda maneira, a diversificação da estru-tura econômica do país se mantém como o gran-

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LENINA POMERANZ é responsável pela área temática Ex-PaísesSocialistas.

de desafio; não só pelas possibilidades de um es-gotamento gradativo do crescimento apoiado nopetróleo e no gás natural, mas também pela ne-cessidade de renovar a capacidade produtiva, cujaociosidade existente, como resultado da quedada produção ocorrida até depois de meados dosanos 90, foi sendo gradativamente eliminadadepois da moratória de 1998 e da grande desva-

a mesma forma que, por ocasião da primeiraeleição do presidente Vladimir Putin, todos seperguntavam: “Quem é Putin?”, este ano, emvésperas de sua reeleição, a pergunta era: “Quãodemocrática é a Rússia de Putin?”

Em maio último, em discursos pronuncia-dos depois de sua posse, ele deu resposta a essaindagação, negando o autoritarismo de que oacusam e pregando o fortalecimento da socie-dade civil na Rússia: “...quero enfatizar que osucesso e a prosperidade da Rússia não podeme não devem depender de uma só pessoa, deum único partido político... Precisamos de umaforte base de apoio para poder continuar comas reformas na Rússia. Estou convencido de quea melhor garantia dessa espécie de continuida-de é uma sociedade civil madura. Somente umpovo livre, num país livre, pode alcançar o su-cesso... Faremos tudo para garantir que um ver-dadeiro sistema multipartidário se desenvolvana Rússia e que as liberdades individuais sejamfortalecidas...”(discurso em 7 de maio). E tam-bém: “Nossos objetivos são absolutamente cla-ros: eles são um alto padrão de vida no país euma vida segura, livre e confortável. Eles sãouma democracia madura e uma sociedade civildesenvolvida. Para fortalecer a posição da Rússiano mundo.” (Mensagem à Nação, lida na As-sembléia Nacional em 27 de maio).

Em ambas ocasiões, Putin falou sobretudode temas domésticos: fixou metas para o cres-cimento do PIB e a redução da taxa de inflaçãoe explicou as reformas que pretende introdu-zir na habitação, na saúde, na educação, noemprego, nos sistemas fiscal e de transportes.

Na Mensagem, fez também um balanço

dos resultados de seu primeiro mandato, quan-do “...a Rússia tornou-se um país política e eco-nomicamente estável, um país independente,tanto no sentido financeiro como em sua polí-tica externa”. As inegáveis realizações de Putindevem ser comparadas com a herança nadademocrática, mas sim anárquica, que recebeude Ieltsin, ou seja, uma grave crise econômica,uma classe média pequena e achatada, e o po-der central muito enfraquecido, porque parti-lhado com os líderes regionais, uns poucos em-presários (os “oligarcas”) e a chamada “Famí-lia” (o círculo dos íntimos de Ielstin).

Os poderes quase ilimitados dados porIeltsin aos presidentes das repúblicas e aos go-vernadores das regiões os haviam transforman-do em verdadeiros barões feudais, autônomos,que legislavam sem respeitar a Constituição Fe-deral, um quadro muito negativo numa federa-ção composta de 89 unidades, que engloba maisde cem nacionalidades e está ameaçada de fraci-onamento. Quanto aos poucos oligarcas, elesabocanharam a riqueza do país e, com isso, do-minaram as instituições e a mídia. E tudo issoaconteceu para garantir a reeleição de Ieltsin em1996, a partir de uma base mínima de apoio po-pular, sob as vistas benevolentes do Ocidente,temeroso de uma vitória comunista nas eleições.Em pouco mais de quatro anos, Putin logroureerguer e estabilizar a economia, restabelecer averticalidade do poder, domar os líderes regio-nais e os oligarcas, e afastar do Kremlin e dogoverno os membros da Família.

Para os sinais de autoritarismo que sãoapontados, existem várias explicações: a) ins-titucionais – com o colapso do Estado sovié-

lorização do rublo que se seguiu, pelo processode substituição de importações suscitado poresses eventos; e em direção que propicie inser-ção adequada da Rússia no cenário econômicomundial.

O SEGUNDO MANDATODO PRESIDENTE PUTIN

DTHEREZA MARIA MACHADO QUINTELLA*

ENSA IO

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tico, as únicas estruturas que permaneceram depé foram os serviços de segurança e os minis-térios do poder, como Defesa e Interior; b) aHistória – a Rússia nunca foi democrática e de-mocracia não se constrói em um dia, nem é umpacote que se importe fechado e se implante:ela se aperfeiçoa com o tempo e a prática e ad-quire feição própria em cada país; c) a culturapolítica – o povo russo está acostumado comuma liderança forte. Putin tem alto índice deaprovação popular (mais de 70%), foi eleito li-vremente e as duas Casas legislativas têm fun-cionamento normal; d) o passado recente – osrussos identificam com a democracia a expe-riência negativa que tiveram nos anos 90 comas reformas econômicas – principalmente a te-rapia de choque da liberação dos preços e asprivatizações fraudulentas – e com as dificul-dades e desigualdades sociais que essas refor-mas acarretaram; e) filosóficas – os russos de-sejam modernizar seu país à sua própria ma-neira e não copiando modelos ocidentais ouasiáticos.

Dois episódios ocorridos no final de 2003foram as razões principais das críticas dos libe-rais russos, bem como de alguns ocidentais, prin-cipalmente norte-americanos, ao “autoritaris-mo” de Putin: a prisão em outubro do mais ricodos oligarcas, Mikhail Khodorkovsky, acusadode evasão fiscal e outros crimes econômico-fi-nanceiros, e a derrota dos dois partidos liberais,Yabloko e União das Forças de Direita (UFD)nas eleições parlamentares de dezembro.

Sobre a prisão de Khodorkovsky, eu citariaa famosa especialista francesa Hélène Carrièred’Encausse, que, em entrevista ao periódicorusso Argumenty i Facty divulgada pelo boletimnorte-americano David Johnson’s List, teria dito:“Eu me pergunto que país ocidental teria per-mitido que alguém que tivesse feito uma for-tuna colossal agindo de maneira obscura usas-se esses recursos para alcançar fins políticos.”O próprio oligarca, em Manifesto que divul-gou em março do corrente ano, fez o elogio dePutin – “mais liberal que 70% da população” –e criticou os liberais, pelos erros que comete-ram. Nesse documento, ele vem ao encontrodas motivações e preocupações de Putin, aopregar a legitimação das privatizações pela suapartilha com os pobres, mediante uma refor-ma fiscal que aumente a taxação sobre o setorde matérias primas.

Quanto à derrota eleitoral dos liberais, elesa devem sobretudo a si próprios, embora insis-tam em culpar Putin. Alegam que não tiveram

a mesma oportunidade de acesso aos canais es-tatais nacionais de televisão que o "Rússia Uni-da", o partido pró-Putin. Essa desigualdade nãoimpediu, porém, que outros três partidos ven-cessem a barreira do mínimo de 5% dos votosexigido às listas partidárias. Na Mensagem,Putin tocou nesse tema, ao afirmar que os par-tidos políticos russos (ou seja, os liberais) de-vem aperfeiçoar-se e aproximar-se mais dopovo e cooperar com as entidades civis, prati-car mais o diálogo e a coalizão. E, efetivamen-te, eles erraram porque procuraram fazer polí-tica junto ao poder central, em Moscou, oudesde Washington, ao invés de criar ou desen-volver bases no interior; porque defenderamKhodorkovsky e as impopulares privatizações,pelas quais são eles os responsáveis; porque fi-zeram uma campanha eleitoral totalmente er-rada (um dos “outdoors” da UFD mostrava osseus dirigentes viajando nas confortáveis pol-tronas de um jatinho empresarial); porque bri-garam em público no período pré-eleitoral e,sobretudo, porque não tiveram espírito públi-co suficiente para renunciar a suas ambiçõespessoais e se unirem. Coligados, estariam hojena Duma, pois somaram mais de 8% dos vo-tos. Eles devem refletir sobre os seus erros, criarum programa que possa ser popular e mudar aorientação de seu trabalho, buscando desenvol-ver bases regionais e, sobretudo, municipais,preferentemente sob novas lideranças.

No segundo mandato, já restabelecida aordem e obtida ampla maioria na Duma, estãodadas as condições para que Putin realize o seuprojeto para o país, implantando as reformasque faltam e seguindo os vetores democráticosque delineou nos discursos aqui mencionados.O seu maior desafio será vencer a burocracia.

Neles, o presidente pouco falou de políti-ca externa e não se prevê mudança de rumo. ARússia, cada vez mais assertiva, deve dar pros-seguimento à cooperação com o Ocidente con-tra o terrorismo, contra a proliferação das ar-mas de destruição em massa e para solução dosconflitos localizados; à atribuição de priorida-de aos países da CEI e à União Européia, quedesde maio chegou a suas fronteiras, aos EUA,à três países asiáticos, China, Japão e Índia, etambém “a outros países”; à defesa do sistemainternacional e de seus princípios e a sua cres-cente integração à economia global, com o in-gresso na OMC.THEREZA MARIA MACHADO QUINTELLA foi embaixadora do Brasilem Moscou de 1995 e 2001. Presidente da FUNAG −Fundação Alexandre de Gusmão, do Ministério dasRelações Exteriores do Brasil.

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omo acontece com freqüência após a mortede importante personalidade pública, RonaldReagan foi saudado em junho como um qua-se santo na maioria das análises sobre sua par-ticipação na história do mundo na segunda me-tade do século 20.

Sem dúvida, Reagan teve um papel im-portantíssimo no processo que pôs fim àGuerra Fria, primeiro ao forçar a União So-viética a uma corrida armamentista que a en-fraqueceu economicamente, depois por ar-quitetar com Mikhail Gorbatchev um acor-do nuclear que deu ao último líder do regi-me comunista soviético condições políticaspara realizar a glasnost.

Ao lado de Margaret Thatcher, Reagantambém comandou o movimento ideológicoconservador em defesa do encolhimento dopapel do Estado na economia, por meio de pri-vatização de serviços públicos e diminuição desua ação como regulador, que teve repercus-são em quase todos os países do mundo e for-neceu as bases para o que se convencionouchamar de “globalização”.

Embora se possa discutir se esses dois fei-tos tiveram efeitos positivos ou não sobre a vidada maioria da humanidade, não se pode recu-sar o fato de que eles constituíram êxitos ine-gáveis dos oito anos da administração Reagan.

TALENTO DE COMUNICADORDeve-se a eles a imensa popularidade desfru-tada pelo ex-presidente, em especial depois desua aposentadoria. Ao contrário do que a ima-gem estabelecida propaga, Reagan não foi ex-cepcionalmente bem avaliado pelos america-nos durante a sua Presidência. De fato, namédia sua avaliação positiva ficou em 52%, asexta melhor entre os presidentes após a Se-gunda Guerra (abaixo de, pela ordem, JohnKennedy, Dwight Eisenhower, George H.Bush – o pai –,Bill Clinton e Lyndon Johnson).

Além da vitória sobre o comunismo e do

desmonte do Estado, o enorme capital de sim-patia de Reagan deve ser creditado a seuraríssimo talento de comunicador. Ele foi ummestre do uso da TV e do rádio como instru-mento eleitoral e fez – com assessores compe-tentes – do marketing político uma arma de-cisiva a seu favor.

Não tem sido à toa que diversos expoen-tes do Partido Republicano – George W. Bushem especial – o têm usado como referência evêm tentando replicar os princípios que fica-ram colados à imagem de Reagan (corte de im-

AVALIAÇÃOPOLÍTICA DE REAGAN

E U A

CCARLOS EDUARDO LINS DA SILVA*

Foi na gestãoReagan queesquadrõesda morte, naAmérica Central,receberam verbase armasdo governoamericano,em grande partegraças à vendailegal de materialbélico para o Irã

postos, dureza na luta contrainimigos, adesão a valores mo-rais tradicionalistas, reduçãodrástica em programas sociais).

A revisão do governo Rea-gan, no entanto, obriga o ob-servador a levar em conta inú-meros momentos dos quaisnenhum dos supostos herdei-ros gostaria de assumir comoseus. Independentemente deconvicções, é difícil não clas-sificá-los como fracassos.

Na política externa, porexemplo: foi entre 1981 e 1989que os EUA intensificaramexponencialmente o apoio agrupos fundamentalistas islâ-micos que combatiam a presen-ça soviética no Afeganistão eque, vitoriosos, constituiriam oregime talibã e o grupo AlQaeda.

No mesmo período, o ditador iraquianoSaddam Hussein foi municiado pelos EUAcom dinheiro e armamentos em seu esforçode guerra contra o Irã. Entre 1984 e 1988,ocorreram massacres de curdos com o usode armas de destruição em massa, ignoradospela Casa Branca da época e amplamentedenunciados pela atual como justificativa

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para a invasão do Iraque em 2003.Foi na gestão Reagan, ainda, que esqua-

drões da morte na América Central receberamverbas e armas do governo americano, emgrande parte graças à venda ilegal de materialbélico para o Irã. Essa operação foi investigadapelo Congresso dos EUA, resultou em algu-mas condenações, mas Reagan conseguiu sairileso, graças – uma vez mais – a sua habilidadediante das câmeras de TV.

OUTROS MALOGROSReagan deu suporte ao regime racista da Áfri-ca do Sul quando já era evidente que ele esta-va nos estertores, invadiu a pequena ilha deGranada para depor um presidente de orien-tação marxista, sob a alegação de que a vida de

Bush é ainda mais grave) foi generoso na eli-minação de impostos mas sovina no corte dedespesas, em especial as militares.

Na verdade, apesar da clareza maniqueístado discurso de quanto menos governo melhor,nos oito anos de Reagan o número de funcio-nários públicos federais aumento de 2,8 mi-lhões para 3 milhões, a participação dos gastosda União no PIB decresceu somente um pon-to percentual e apenas uma grande agência go-vernamental (equivalente ao DAC brasileiro)foi extinta.

Apesar de um de seus filhos ser homosse-xual, Reagan assistiu impassível a epidemia daAids ser detectada e se alastrar durante os seusoito anos no poder sem usar sua grande capa-cidade de liderar e comunicar-se com o públi-co para tentar mitigá-la. O “surgeon-general”,principal autoridade médica nacional, em suagestão, Everett Koop, relataria mais tarde terimplorado por uma ação do presidente paracombater com mais recursos a doença, semêxito.

Foi apenas graças ao eficaz balanço entreos poderes existente nos EUA que avançosimportantes do passado na área dos direitos ci-vis não foram rechaçados por Ronald Reagan.O Congresso derrubou, em 1988, um veto pre-sidencial à lei que estendia direitos civis a to-dos os funcionários públicos federais e a Su-prema Corte rejeitou, em 1983, decreto doExecutivo que mantinha isenção fiscal a esco-las particulares com políticas de admissão se-gregacionistas.

Como explicar que, com um passivo tãoimpressionante, Ronald Reagan tenha se tor-nado ainda em vida (e muito mais após amorte) tão mitificado que é seu o nome doaeroporto nacional de Washington, do mai-or edifício público da capital dos EUA, deinúmeras rodovias e ruas pelo país, que secogita de colocar sua efígie em moedas e cé-dulas de dinheiro, que uma minissérie darede CBS de TV sobre sua vida deixou de irao ar por ter sido considerada pouco lauda-tória à sua figura?

A única explicação cabível está, novamen-te, pelo inigualável talento desse ator (nuncareconhecido como superior no cinema, no tea-tro ou na TV) para representar o papel de pre-sidente da República e inspirador ideológicodo povo americano.

Reagan foi, como o definiu a revista “TheEconomist”, um sectário com estilo ecumêni-co. Ele traduziu em alguns jargões de fácil

Confiançairrestrita nofuturo, certezada superioridademoral do país emrelação a todos osdemais, féirredutível nopoder daeconomianacional, sãoalgumas herançasde Reagan paraa auto-imagemcoletiva dosamericanos

estudantes americanos lá resi-dentes estava em risco, deu luzverde à invasão do Líbano porIsrael, episódio que provocouo agravamento irreversível atéhoje do conflito palestino-isra-elense, elevou barreiras comer-ciais à importação de produtospelos EUA a níveis sem prece-dentes, num golpe violentocontra o livre comércio inter-nacional.

Nos assuntos domésticos, alista de irrefutáveis malogros dagestão Reagan não é menos ex-pressiva. Embora o PIB ameri-cano tenha aumentado de ma-neira sustentada a taxas consis-tentes, foi durante a década de1980 que teve início e se esta-beleceu a tendência (que depoisnão mais retrocedeu) de con-centração de renda entre osmais ricos e crescente iniqüida-de social nos EUA.

Em grande parte, isso ocor-reu devido às reformas fiscaisde Reagan que – a exemplo das

atuais de Bush – resultaram em ganhos muitomaiores aos que vivem do capital do que aosque dependem do salário.

Também tem origem na chamada “rea-ganomics” a tradição de enormes déficits noorçamento público federal, interrompida ape-nas brevemente nos últimos anos da era Clin-ton, com todas as conseqüências macroeco-nômicas nocivas dela decorrentes. Esses dé-ficits se formaram porque Reagan (e o caso de

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compreensão alguns dos princípios fundamen-tais que regem a auto-imagem coletiva dosamericanos: confiança irrestrita no futuro, cer-teza da superioridade moral do seu país emrelação a todos os demais, fé irredutível no po-der da economia nacional.

LUMINOSIDADE DA MANHÃNas telas de TV, o presidente transpirava sin-ceridade. Após um período depressivo quedurou quase 20 anos – do assassinato de JohnKennedy ao cativeiro de dezenas de america-nos em Teerã, passando pelos conflitos raciais,

gora que estamos perto do fim do primeirogoverno de George W. Bush, é uma boa horapara se fazer um balanço dos principais e po-tencialmente mais duradouros efeitos que a suaadministração provocou, tanto domésticaquanto internacionalmente. Será curioso e tal-vez instrutivo compará-los também com os ob-jetivos que foram explicitados na plataformaapresentada lá pelos idos de 2000.

PONTOS CARDEAIS

Em artigo semanal publicado na revista ForeignAffairs, em janeiro de 2000, portanto um anoantes da posse de Bush II e vinte meses antesdo 11 de Setembro, a professora CondolezzaRice enumerou os cinco pontos cardeais dapolítica externa de uma administração republi-cana. Seriam as seguintes as suas tarefas:• assegurar que as Forças Armadas americanassejam capazes de desencorajar a guerra, de pro-jetar poder e de lutar na defesa de seus interes-ses se a intimidação falhar;• promover o crescimento econômico e a aber-tura política pela extensão do livre comércio e

de um sistema monetário estável a todos os queaderirem a esses princípios, incluindo o hemis-fério ocidental (as Américas, em academêsamericano), tão freqüentemente neglicenciadocomo uma área vital para o interesse nacionaldos EUA;• renovar as relações íntimas e fortes com osaliados que compartilham os valores america-nos e que podem por isto repartir o encargo depromover a paz, a prosperidade e a liberdade;• focar as energias dos EUA em amplos relacio-namentos com as grandes potências, Rússia eChina, que podem e irão moldar o sistema po-lítico internacional;• enfrentar decididamente as ameaças dos re-gimes “renegados” (rogue) e das potências hos-tis, que vêm crescentemente tomando as for-mas de estímulo ao terrorismo e o desenvolvi-mento de armas de destruição em massa(WMD).

Não será preciso lembrar que a autora des-sas palavras assumiu o cargo de Chefe do Con-selho de Segurança Nacional no governo BushII , de quem se tornou a auxiliar mais próxima.

A

a tragédia do Vietnã, o escândalo de Watergate,e a renúncia de Nixon – os americanos queri-am alguém em quem confiassem que lhes dis-sesse, como Reagan, que “é manhã” nos EUA.

Eles associaram a Ronald Reagan a lumi-nosidade da manhã, ainda que pudesse ter sidoilusória e ainda que muito da penumbra emque o país hoje vive nas mãos de seu presumi-do discípulo tenha se originado exatamente nosbastidores de um governo que, no entanto, lhesparece ter sido ótimo.

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA é membro titular do Gacint.

O BODE DE ESTIMAÇÃOE OUTRAS ESTÓRIAS

E U A

GERALDO FORBES*

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EUA de envolvimentos diretos nas questõespolíticas de outros países e regiões. Dizia a pro-fessora que esse ativismo americano provoca-va a distração dos assuntos domésticos subju-gados às urgências da agenda internacional. Oexemplo mais flagrante, repetia ela sempre, erao tempo e esforço que sucessivas administra-ções dedicaram inutilmente à intermediação dapaz entre Israel e Palestinos, assunto que me-lhor seria tratado se deixado nas mãos dos pró-prios litigantes.

Hoje está evidente que aconteceu exata-mente o contrário. A guerra contra o terror econtra o inimigo iraquiano irredente fez que,mais do que nunca, as atenções se voltassempara a Ásia Menor, embora tenha havido, sim,um cínico afastamento do conflito palestino.Esse fato foi tomado por Ariel Sharon comolicença para matar e oportunidade única paraimpor a expansão de Israel pela força armadana limpeza étnica de territórios ocupados. Aconstrução de um muro que incorpora terrasalheias, o recurso ao assassinato puro e simplese a destruição revoltante de moradias de pales-tinos acabam de ser sancionados por Bush emmais uma barretada irresponsável às realidadeseleitorais internas e em mais uma bofetada nalei internacional e nos Direitos do Homem.

E é neste capítulo que a presente adminis-tração americana está deixando a sua mais fun-da marca nas relações internacionais. Se fos-semos tentar sintetizar a programa Rice em umafrase, diríamos que, segundo ela, a política ex-terna americana deverá ser perseguida, se pos-sível, liderando países aliados que a aceitem,mas, se necessário, isoladamente, à margem dequalquer consideração às leis e tratados inter-nacionais, sempre que estes se chocarem como interesse nacional dos EUA.

AMEAÇA AOS DIREITOS HUMANOS

A primeira salva nessa direção deu-se logo noinício do governo Bush, quando foi explicita-mente rejeitada a adesão ao protocolo de Kyoto.Em seguida ao atentado de New York, os acon-tecimentos se precipitaram e os neoconserva-dores conseguiram a guerra pela qual sempreansiaram e o big business encontrou, nas despe-sas militares e nos contratos de reconstruçãodo Iraque, o gás para sustentar parte da reto-mada da economia, para o bem de todos e sa-tisfação geral da nação.

O enorme mal feito pelo patriotismo his-térico – propagado pela assessoria política deBush, pregado acríticamente por toda a mídia

A maior e maisduradoura derrotaamericana estáinscrita noscorações e mentes,não apenasdos árabese muçulmanosmas tambémde significativamaioria dos paísesocidentais

Com isto, o que havia antes sido escrito comouma recomendação teórica passou a ser o pro-grama concreto da política externa norte-ame-ricana, com os desastrados resultados que es-tão à vista de todos.

SINAIS DE DERROTASeus malefícios começaram a ser mais eviden-tes desde quando os falcões decidiram, depoisda expedição de vingança aos ermos doAfeganistão, encetar a guerra contra o Iraque,desprezando no processo os recursos de fis-calização das agências da ONU e a força dassanções impostas multilateralmente e prefe-rindo a certeza da destruição de um grupo po-

lítico pela utilização quaseunilateral da sua incontrastávelforça bruta.

Claro está que, do ponto devista estritamente militar, acampanha teve o mesmo suces-so que um elefante sempre teráquando lutar contra um por-quinho. Entretanto, sob váriosoutros pontos de vista, a guer-ra nem sequer terminou, masjá mostra sinais de uma derro-ta de seus planos – ao menosdos explicitados. Não são só aterrível destruição de milharesde vidas de civis e as ruínas dainfra-estrutura iraquiana e demuitos monumentos históri-cos e religiosos que atestam abarbárie do agente civilizador.A maior e mais duradoura der-rota americana está inscrita nos

corações e mentes, não apenas dos árabes e dosmuçulmanos mas também de uma significati-va maioria dos países ocidentais.

Não tendo sido achada uma única e escas-sa prova de produção ou estocagem de armasde destruição de massa, e não tendo sido nun-ca apurada qualquer conexão de SaddanHussein com Bin Laden, (apesar dos ingentesesforços dos serviços de inteligência dos EUAa serviço de propósitos político-partidários)resta apenas a ficção da “liberação” do povoiraquiano pela mudança de regime, a nova eperigosíssima doutrina-pretexto, fabricada nosporões do pensamento neoconservador,fundamentalista e sionista, chefiado porWolfowitz e Perle.

Uma das colunas mestras do documentoRice era o progressivo desengajamento dos

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vável – não se devem esperar mudanças subs-tanciais na rota. As primeiras manifestações deKerry sobre política externa são certamentemuito críticas dos enganos pontuais da políti-

As primeirasmanifestações deKerry sobrepolítica externasão certamentemuito críticas dosenganos pontuaisda política atual.Mas ao mesmotempo, fazemreferência ao “bigstick” deTheodoreRoosevelt e nãoesquecem demencionar que osEUA têm de selivrar de suadependência dopetróleo doOriente Médio.

ca atual. Mas ao mesmo tempo,fazem referência ao “big stick” deTheodore Roosevelt e não es-quecem de mencionar que osEUA têm de se livrar de sua de-pendência do petróleo do Ori-ente Médio.

O fato é que a maioria dopovo americano, como com-provam as pesquisas, não con-dena o uso unilateral da força,convicto que é para o bem ge-ral. Ao contrário, o que o ame-ricano médio não compreendeé o que assume ser ingratidãode povos e países que criticamos seus generosos e desinteres-sados esforços. E esse sentimen-to, muito generalizado, muitoarraigado e muito ligado à idéiade patriotismo e superioridademoral e militar, não desapare-cerá da noite para o dia e muitomenos será desconsiderado pe-los democratas.

No momento do ataque astorres do World Trade Center,George W. Bush lia, para alunosde uma escola primária da Fló-rida uma historinha chamada“Meu bode de estimação”. Semsaber como reagir, levou maissete minutos lendo o conto,mesmo depois de avisado doatentado.

Pois saiba-se que vai levarainda muito tempo para se reti-rar da cena das relações internacionais, o bodedo terrorismo, o bode do unilateralismo da po-tência hegemônica e principalmente o bode dacerteza da bondade que os americanos atribu-em às suas intenções e ações.

A aparentemente invencível prosperidadedos EUA só reforça a tese de seu destino mani-festo e na defesa desse grande bodinho de esti-mação, não hesitarão os americanos de qual-quer partido ou ideologia, em usar todos osmeios a seu alcance para mantê-lo, por todosos séculos dos séculos.

e pespegado como nódoa infamante a qualquermanifestação de oposição – está longe de terchegado ao fim. Receia-se que mais de duzen-tos anos de construção do Corpo dos DireitosHumanos estejam sendo postos em cheque jus-tamente por uma das nações que mais contri-buiu para essa admirável aventura do espíritohumano.

O que agora se pergunta é se será precisousar o terror para combater o terrorismo e seas liberdades civis devem ser sacrificadas noaltar da segurança pública. Como conciliar olimbo bárbaro de Guantanamo e a crueldadeindefensável de Abu Ghraib com o primórdiodo Direito e da Lei? Por ser absolutamente im-possível, já não é mais impossível imaginar umaregressão em outras áreas do Direito Interna-cional, com todas às más conseqüências paraas nações mais fracas.

É especialmente preocupante a nascentedoutrina de relativização da soberania, em ca-sos de regimes que, na visão de bem intencio-nados estrangeiros, estejam transgredindo osdireitos fundamentais de seu próprio povo. Oque parece ser distante de nossa realidade, algoque só pode ser aplicado a um Haiti ou seme-lhantes buracos negros, torna-se mais próxi-mo se observarmos o que começa a ocorrer naVenezuela.

GERALDO FORBES é responsável pela área temática EUA.

Será preciso usaro terror paracombatero terrorismoe as liberdadescivis devem sersacrificadasno altar dasegurança pública?

E como apesar dos tolos es-forços de ortodoxia econômica dogoverno Lula – a nossa fragilida-de financeira e o nosso subdesen-volvimento continuam sendo re-alidades e ameaças até crescentes– temos de ver com grande preo-cupação a também crescente ali-enação dos EUA dos problemashemisféricos, em tudo que nãoseja Castro & Chaves.

Mas a análise das razões, dastrapaças e das trapalhadas da ad-ministração Bush na guerra doIraque, seu unilateralismo e suaarrogância vêm sendo agora, bemdepois do fato consumado, obje-

to de uma impressionante febre editorial. Maisútil será especular, mesmo com as limitaçõesdesta modesta publicação, sobre os desdobra-mentos futuros prováveis da política externaamericana, nos anos à frente.

ROTAS INALTERADASE não há boas novas. Mesmo se George W.Bush não for reeleito – o que hoje é pouco pro-

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reveste de grande interesse para o Brasil, sobre-tudo neste momento em que nosso país se voltapara o estabelecimento de políticas baseadas nacooperação entre países não hegemônicos. Arti-culações dessa ordem são necessárias num mun-do onde a dinâmica dos comunitarismos favore-ce a formação de blocos que atenuem ou se con-traponham à unilateralidade dos fluxosglobalizadores. Mais ainda, quando se trata de pa-íses que têm na língua e na cultura, uma maneirade ser equivalente a ser continuamente redefinidae atualizada, para fazer face ao que esses fluxostêm de avassaladores. Pode ser uma forma alter-nativa e compartilhada de mostrar, ao lado deoutros, o desenho de um rosto que faz dos traçoshíbridos a sua diferença.

COMUNITARISMO CULTURAL

Vinculam-se à AULP as principais instituiçõesuniversitárias de Angola, Brasil, Cabo Verde,Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Prín-cipe, Portugal e Timor-Leste e da região deMacau. Encontram-se nessa associação a África,a América e a Ásia, uma Europa mediterrânica.Esta última não é paradigma, um porto de che-gada, mas uma variante de um sistema avesso aessencialismos e pretensas hegemonias. Pensar ecomunicar em língua portuguesa, vista napluralidade da fala de cada nação ou região, será,então, uma oportunidade para traçar estratégiasde âmbito universitário pautadas pelo comunita-rismo cultural que nos aproxima e que faz da di-ferença compartilhada a sua razão de ser.

O XIV Encontro não pretende enredar-se naelaboração de cartas de intenções em abstrato,

motivadas por mitologizações relativas aos pro-cessos de miscigenações que envolveram a for-mação dos povos falantes da língua portuguesa.Ao contrário dessas ritualizações, é intenção pro-mover uma reunião de trabalho que leve a resul-tados efetivos. Melhor, o encontro, que vem sen-do preparado por docentes de várias universida-des brasileiras, com a colaboração do conjuntodas instituições reunidas na AULP (Centro Uni-versitário 9 de Julho – UNINOVE, Universida-de Anhembi Morumbi, Universidade Cruzeirodo Sul – UNICSUL, PUC-SP, UNESP, Uni-versidade Federal de Pelotas e UniversidadePresbiteriana Mackenzie), deverá constituir umainstância final de decisão para uma série de açõesacadêmicas anteriormente preparadas. São açõesque deverão viabilizar programas de cooperaçãoacadêmica entre os países de língua oficial portu-guesa, envolvendo universidades e esferas gover-namentais da área da educação, da cultura, da ci-ência e das relações internacionais. A AULP, alémde se voltar para os programas de cooperaçãouniversitária dos países de língua oficial portu-guesa, é também responsável pela assessoria daCPLP – Comunidade dos Países de Língua Por-tuguesa – para os assuntos de educação e cultura.

Entre os grupos de trabalho responsáveis pelapreparação do XIV Encontro, figura o que se voltapara a discussão de questões relativas ao planeja-mento de políticas do ensino da língua portuguesae suas literaturas. Serão propostos convênios quediagnostiquem e problematizem semelhanças ediferenças entre os países envolvidos. Tópicoscurriculares comuns serão definidos para eviden-ciar o conhecimento do que existe de próprio ede semelhante entre esses países. Particularmen-te importante nestes tempos de grandes mundi-alização e movimentos migratórios será apontarpara estratégias de implementação do ensino doportuguês como segunda língua, com base numprograma que contemple as diversidades desseidioma.

MÚTUO ENTENDIMENTO

No âmbito estritamente educacional, é impor-tante aos países de língua portuguesa uma basecurricular equivalente, relativamente à formaçãode professores para o ensino médio/secundário efundamental/básico. Para aprofundar esse mútuoentendimento, estão sendo discutidos intercâm-bios a serem implementados em instituições si-milares, a partir dos delineamentos a serem en-caminhados na reunião da AULP.

Em relação aos países africanos, serão parti-cularmente relevantes os convênios de coopera-

XIV ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO DAS UNIVERSIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Pensar e pesquisarem línguaportuguesa

ADOLPHO JOSÉ MELFI

MAGDA M. S. CARNEIRO SAMPAIO

BENJAMIN ABDALA JR.

A USP realizará o XIV Encontro da As-sociação das Universidades de LínguaPortuguesa (AULP), no período de 22a 25 de julho próximo. O Encontro se

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A línguaportuguesa naformação históricado BrasilBORIS FAUSTO

ção previstos para a área de Ciências da Saúde(Aids, em especial) e das Ciências Agrárias. Aspropostas de ação educacional nesses grupos es-tão sendo igualmente formalizadas, envolvendoconvênios em níveis de graduação, pós-gradua-ção e extensão universitária. Um outro grupo detrabalho planeja a organização de uma universi-dade virtual de língua portuguesa.

ATIVIDADES PARALELAS

Outras atividades paralelas estão sendo igualmen-te preparadas, para assegurar a operacionalidadedo encontro: critérios de qualidade em nível degraduação a serem estabelecidos entre os paísesde língua portuguesa tendo em vista suacreditação / reconhecimento internacional e es-tabelecimento de textos comuns, que contem-plem as especificidades de cada instituição, paraagilização dos convênios acadêmicos entre osmembros da AULP. Vêm sendo discutidas, entreacadêmicos e profissionais do meio editorial, al-gumas idéias que contribuam para uma melhordivulgação e circulação do livro entre os paísesda CPLP. Já existem algumas propostas que estãosendo aferidas em sua exeqüibilidade, como a doestabelecimento de formas digitais de comercia-lização associadas a uma redução das tarifas porparte dos governos conveniados.

A maior mobilidade acadêmica entre as ins-tituições universitárias dos países de língua por-tuguesa, pretendida pelo XIV Encontro, se faz emvárias frentes, envolvendo instâncias governa-mentais e também empresas que atuam nos paí-ses membros da CPLP. Tenciona-se tambémimplementar a cooperação em termos da investi-gação científica.

A USP tradicionalmente firmou convêniosde cooperação com os principais centros mundi-ais de conhecimento, procurando apreender, comdistância crítica, formas de saber adequadas à si-tuação brasileira. Essa perspectiva tem-se mos-trado eficaz, possibilitando o desenvolvimento detecnologias próprias, o que pode servir de pontepara outras instituições brasileiras e do exterior.Não um porto de chegada, mas de trânsito. E nummundo onde a língua inglesa passa do estatutode língua estrangeira para o de língua franca, oXIV Encontro pode contribuir, assim, para quese fale também em português (língua, literatura,cultura), na diversidade própria de cada país e decada instituição.

Ée de uma identidade nacional, embora não fal-tem exceções à regra. Basta lembrar o exemploda Bélgica e especialmente o da Espanha.

O caso do Brasil se insere no grande quadrodas colonizações européias que tiveram início,como se sabe, com as grandes navegações, a par-tir de fins do século XV. Esse quadro comportasituações e processos históricos muito diversos,como os que ocorrem, no continente america-no, onde as línguas indígenas tem forte peso, empaíses como a Bolivia, o Equador, o Peru, o Mé-xico, o Paraguai, ao contrário de quase todos osdemais.

LONGO PROCESSO

Os ex-colonizados, não obstante as diferenças,têm em comum o fato de que a língua do coloni-zador representou uma imposição — uma vio-lência, para ser mais incisivos. Mas tal violência— sem que nem de longe pretenda justificá-la,na seqüência de um longo e tormentoso proces-so histórico, acabou se convertendo, em algunspaíses, num fator já mencionado de construçãoda nação e da identidade nacional.

Relembremos, sintetizando ao extremo, asgrandes linhas desse processo, no caso do Brasil.Nos tempos coloniais, que abrangeram um lon-go período de mais de 300 anos, o português erauma língua entre muitas outras — língua do co-lonizador branco, com uma variável presença es-pacial. Exemplificando, a situação do nordestelitorâneo, pelo menos até as primeiras décadas doséculo XVIII, contrastava fortemente com a deSão Paulo. Como lembra Luiz Carlos Villalta, nonordeste, a vinculação da economia da região com

ADOLPHO JOSÉ MELPHI é reitor da Universidade de São Pau-lo. MAGDA M. S. CARNEIRO SAMPAIO e BENJAMIN ABDALA JÚNIOR sãopresidente e vice-presidente da Comissão de Coopera-ção Internacional da USP, respectivamente.

um lugar comum afirmar-se que omonolingüismo, em um dado território,constitui um elemento da maior impor-tância na construção do Estado, da nação

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dígena, pelo bandeirismo dos aventureiros, pelaforte presença de uma língua geral — o chamadotupi do sul. Se é certo, como mostrou JohnMonteiro, que há algum exagero na afirmação deque os paulistas eram uns brutos que não fala-vam português, não é menos certo que seu por-tuguês tinha traços peculiares, dificultando a com-preensão de autoridades da Coroa.2 De qualquermodo, o português circulou precariamente, pormais de dois séculos, na maioria dos imensos es-paços regionais da América portuguesa, onde ti-veram vigência as chamadas línguas gerais — apaulista no sul e o nheengatu, na Amazônia.

Um novo elemento lingüístico veio integrara paisagem social do território brasileiro, com aimportação de escravos africanos, a partir de finsdo século XVI. Mas a capacidade de resistênciadas línguas africanas foi muito menor do que adas indígenas. As razões para esse fato são claras.Os africanos — termo genérico que abrange gentede etnias bastante diversas — não eram autócto-nes da terra brasileira, mas uma populaçãodesterritorializada e submetida por definição.Além disso, o colonizador português tratou deimpedir a solidariedade entre os africanos, já emsi mesma difícil, evitando a concentração de es-cravos de uma mesma etnia, nos navios negrei-ros e nas propriedades coloniais.

Ressalvemos porém, que isso não significafazer tabula rasa das comunidades de escravos edas formas de resistência como os quilombos; asrevoltas, sobretudo em torno de Salvador; as dan-ças e batuques, em que esta ou aquela língua afri-cana serviu de veículo de comunicação. Nem po-demos esquecer a atividade dos jesuítas, que emseu afã catequizador, procuraram entender a falados cativos. Exemplificando, um deles, chamadoPedro Dias, publicou em 1697 uma gramáticacujo título fala por si mesmo: “Arte da língua deAngola oferecida à Virgem Senhora Nossa doRosário, mãe e senhora dos meninos pretos”.3

Mas, o decisivo foi o apagamento das línguasafricanas enquanto tais e, ao mesmo tempo a co-nhecida incorporação de muitas palavras ao por-

Porém, ao comparar línguas africanas e indí-genas, algumas diferenças devem ser ressaltadas.De um lado, porque populações indígenas, comraro ou nenhum contato com os brancos, exi-sitiram no Brasil até anos recentes; de outro, por-que um processo violento de assimilação tem le-vado sobretudo os antropólogos a lutar pela pre-servação ou recuperação da cultura indígena, en-tre outras formas, pela via do ensino bilíngue.

Uma política do Estado metropolitano, nosentido de impor hegemonicamente a língua por-tuguesa na colônia brasileira, data dos tempos dotodo-poderoso Sebastião José de Carvalho eMello (Marquês de Pombal), ministro de d. JoséI, entre 1750 a 1777. Pombal tratou de asseguraro controle por parte da Coroa do vasto territóriodo Brasil, seja em termos espaciais, seja em ter-mos populacionais. Para garantir o último pro-pósito, sustentou a necessidade de emancipaçãodos índios, outorgada formalmente pela Coroaem 1758, entrando em choque com os objetivoscatequizadores e paternalistas dos jesuitas; defen-deu a miscegenação entre brancos e índios; a am-pliação de oportunidades para a nascente elite bra-sileira; a importação de escravos e a implantaçãoinconteste da língua portuguesa.4

ÊXITO LIMITADO

O último tópico vinha no bojo das reformas edu-cacionais de Pombal, cujos primeiros experimen-tos se deram no Brasil, tendo como objetivo prin-cipal trazer a educação para a esfera de controledo Estado. Nas aldeias indígenas, os professoresque substituiriam os jesuítas expulsos da Colô-nia deveriam ensinar às crianças o português eproibir o uso de sua língua própria. Quanto àselites, os mestres de latim deveriam ensinar pre-viamente aos alunos o idioma da metrópole.

Entre as intenções de Pombal e a prática hou-ve uma enorme distância. Seu esforço teve al-gum êxito apenas entre as elites e, só às vésperasda Independência, a língua portuguesa se tornounitidamente dominante no território brasileiro.Mais do que isso, a Independência incentivou a

XIV ENCONTRO DA AULP

O português circulouprecariamente,por mais de dois

séculos, nos espaçosregionais da América

portuguesa

o mercado internacional, particu-larmente pela via das exportaçõesde açúcar, redundou em maiorpresença de portugueses, facili-tando a expansão da língua por-tuguesa e seu predomínio, desdemeados do século XVI. 1

No outro extremo, a regiãode São Paulo, distante dos cen-tros mais dinâmicos da Colônia,caracterizou-se pela influência in-

tuguês do Brasil. Aparentemen-te, as línguas indígenas tiveramum destino semelhante ao dasafricanas, qual seja o de apenas in-fluenciar a toponimia e o portu-guês do Brasil, além de contribuir,como sugere Monteiro, para osurgimento de uma forma ances-tral de dialeto caipira, fortementemarcado por palavras de origemguarani.

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BORIS FAUSTO é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint.

extensão do português, como um instrumento,entre vários outros, de construção da nação e deuma identidade nacional. Isso era tanto mais im-portante porque, como salientou Evaldo Cabralde Mello, além de outros autores, o nacionalis-mo brasileiro não precedeu, mas seguiu-se á cri-ação de um Estado nacional, sendo as manifesta-ções de rebeldia contra a Coroa imperial mais aexpressão de um nativismo localista do que deum sentimento nacional. 5

O Brasil Império levou anos para consolidar-se como brasileiro, não sendo estranho ao fato ocaráter relativamente pacífico do processo deemancipação e a entronização de um príncipe por-tuguês, com o pomposo título de Imperador. Aabdicação de Pedro I e sua volta a Portugal em1831 marcaram, no plano dos acontecimentos, avitória do chamado “partido brasileiro”. O esfor-ço de construção de uma identidade nacional re-velou-se na romantização da figura do índio, oque não implicou, na prática, no respeito por suacultura; na difusão de um hino retórico que, cu-riosamente, se tornou popular; nos monumen-tos comemorativos da Independência e na fun-dação do Instituto Histórico e Geográfico Brasi-leiro, em 1838. Apoiado generosamente pelo im-perador Pedro II, que presidiu muitas de suas reu-niões, o Instituto nasceu e ganhou corpo com opropósito explícito de incentivar a elaboração deuma historiografia brasileira, a serviço da cons-trução da identidade nacional.

Seguindo adiante, a imigração em massa parao Brasil, entre 1880-1930, representou, do pontode vista do nosso tema, um influxo de milhõesde pessoas que vinham radicar-se no país sem falarportuguês, à exceção, como é óbvio, da tradicio-nal imigração portuguesa. A adoção mais ou me-nos rápida do português, pelos contingentes mi-gratórios, variou em função das diferentes etniase das regiões do país. Vejamos alguns exemplos.Em São Paulo, deu-se um processo, relativamentesem grandes atropelos, de adoção do português,por parte de italianos e espanhóis, em contrastecom o caso dos japoneses. A adoção não excluiuo bilingüismo, o falar macarrônico do portugu-ês, a importância da imprensa na língua do paísde origem, o uso desta nos antigos bairros étni-cos como o Brás e a Mooca, assim como na vidaprivada. Nem se pode afirmar que a “nacionali-zação” dos estrangeiros e, particularmente, de seusfilhos jovens, que ingressavam nas escolas, dei-xou de preocupar a elite paulista. Por exemplo,diante da mistura lingüística e do surgimento deescolas italianas e alemãs, a Liga Nacionalista, or-ganização fundada em São Paulo em 1917, tinha

como uma de suas preocupações centrais a assi-milação do imigrante, num processo em que oensino da “língua pátria” deveria desempenharpapel relevante.6

Mas o resultado final de um processo, aqui eali conflituoso, foi de adoção do português, porvezes com o chamado “acento italiano” que aca-bou caracterizando o falar de muitos paulistanos.Mesmo porque, a segunda geração de origem imi-grante tratou de integrar-se ao meio social brasi-leiro, entre outras coisas, pela via da língua, nãofaltando o caso de filhos que se envergonhavamdo “falar errado” de seus pais.

A situação mais complicada foi a do sul dopaís, especialmente com a imigração alemã, nosestados de Santa Catarina e do Rio Grande doSul. Como é sabido, as colônias alemãs, implan-tadas por colonos que começaram a emigrar porrazões nem sempre econômicas e em época queantecedeu o período da emigração em massa, ten-deram a manter costumes, tradições, a imprensae a língua de origem. A tal ponto que, em 1937,quando Vargas iniciou forçadamente, no contex-to do Estado Novo, a nacionalização do ensino,havia nos dois referidos estados 1.500 escolas comensino em alemão, a maioria delas mantidas pe-las Igrejas católica e luterana.7

Concluindo, seria falso creditar a homoge-neidade lingüística, no Brasil de hoje, a uma es-pécie de milagre que, como outros milagres, emoutros planos, não se sustentam. Houve um mistode imposição, violência e aceitação no processode introdução da língua portuguesa no territórionacional, na fase colonial e mesmo no Brasil in-dependente. Mas, ao mesmo tempo, seria exces-sivo pessimismo, negar o importante papel quetem a língua portuguesa, em nossos dias, comofator básico de uma identidade e de uma culturanacional, abertas aos ventos propícios, ou às ve-zes nem tanto, que vem de fora.

NOTAS

1 Villalta, Luiz Carlos − “ Uma Babel colonial”, in Nossa Histó-ria, n.5, março de 2004. 2 Monteiro, John Manuel − Negros da terra. (Índios e bandei-rantes nas origens de São Paulo. São Paulo, Companhia das Le-tras, 1994. 3 Villalta, cit. 4 Maxwell, Kenneth − Marquês de Pombal. (Paradoxo doiluminismo). São Paulo, Paz e Terra, 1996. 5 Mello, Evaldo Cabral de − “Um imenso Portugal”, in Umimenso Portugal (História e historiografia. São Paulo, Ed. 34,2002.6 Limongi, Fernando − “Mentores e clientelas da Universidadede São Paulo”, in Sergio Miceli (org.) − História das ciênciassociais no Brasil. vol.1. São Paulo, Idesp, 1989.7 Seyfert, Giralda − “A colonização alemã no Brasil: Etnicidade econflito, in Boris Fausto (org.) Fazer a América ( A imigraçãoem massa para a América Latina). São Paulo, Edusp, 1999.

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Ao analisar o mundo que o “português” criou anossa tendência é buscar as semelhanças. Semdúvida o uso de uma mesma língua expressa umaforma similar de percepção, facilitando o contatoentre populações que habitam diferentes conti-nentes. Contudo, não é a língua, por si só quefavorecera ou dificultara uma melhor ou, pior,inserção de um país no contexto internacional.

Tomemos, por exemplo, o caso de Timor-Leste, antiga colônia de Portugal. A complexida-de lingüística em Timor é muito grande. De acor-do com os especialistas encontramos, nesta parteda ilha, doze línguas locais, quatro austronésias eoito não austronésias que se dividem em 35 dia-letos e subdialetos. O tétum, neste contexto, de-sempenha o papel de língua geral.

Na década de setenta a pressão internacionalanticolonial era grande. A discussão em Timortinha como ponto de partida o direito de autode-terminação dos timorenses. Quanto ao caminhoa ser trilhado, as proposições eram variadas: a in-dependência gradual, a independência imediataou a integração de Timor à Indonésia. Diante deuma conjuntura internacional favorável a Fretilin(Frente Revolucionária do Timor-Leste Indepen-dente) promoveu um golpe em 28 de novembrode1975. Dando seqüência a estes acontecimen-tos a UDT (União Democrática Timorense) eApodeti (Associação Popular Democrática Timo-

rense) associando-se com a Indonésia, invadiramo território, em dezembro de 1975, sob a alega-ção de ameaça comunista. Não cabe aqui analisara complexidade desta conjuntura histórica e osdiversos fatores internos e externos que influen-ciaram os trágicos acontecimentos. De qualquerforma a violência da guerra e a diáspora dos per-seguidos pelas milícias indonésias, após a ocupa-ção, transformou definitivamente, o significadopolítico e social do uso da língua portuguesa emTimor.

O que determinou a mudança no significado do usoda língua portuguesa, em Timor, após 1975?

Com a ocupação da Indonésia os timorensesperceberam, lutando para sobreviver, a grandecapacidade de organização das diversas comuni-dades espalhadas pelo território. Em seguida com-preenderam a importância do apoio internacio-nal para ratificar a intervenção do Conselho deSegurança da ONU. A partir de duras experiên-cias amadureceram uma percepção política so-bre o que era bom ou mal, licito ou ilícito, justoou injusto, independentemente das proposiçõesdefendidas pelas instituições nacionais e interna-cionais.

O que levou os timorenses a se identificarem com alíngua do colonizador?

A trágica experiência política vivida porTimor, com um terço da população dizimada naguerra, transformou a língua portuguesa e as tra-dições do Ocidente cristão, em um instrumentopolítico e estratégico. Este é um ponto impor-tante para que possamos compreender o signifi-cado de uma conjuntura específica, pós-colonial,na qual a língua portuguesa passou a representaruma brecha na conjuntura política nacional e in-ternacional.

Por que?O Ocidente cristão é hábil na manipulação

de uma “arma” construída com palavras e a di-plomacia é o seu campo de ação. Diante do con-flito a retórica pode ser utilizada como instru-mento de negociação. Neste ponto voltamos asorigens da dominação portuguesa em Timor des-tacando a presença, ainda que difusa, da Igrejacatólica em Timor-Leste. A idéia de livre arbítrio,na forma como foi concebida pelo pensamentocristão, resgatado por uma minoria católica, au-xiliou a construção de um pensamento político,baseado na idéia de autodeterminação dos povos.Seguindo esta vertente os timorenses retomarama discussão de raiz Ocidental e cristã questionan-

XIV ENCONTRO DA AULP

Território,populaçõese relaçõeseconômico-políticas nocontexto lusófono

JANICE THEODORO

A nalisar o mundo luso é um desafio mui-to grande. Basta olhar para o mapa mundie teremos a dimensão dos territórios edas populações que falam o português.

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nização suscitou um impacto tão grande na polí-tica internacional como o massacre de Santa Cruz.As imagens do massacre, com inúmeras pessoasrezando em português criaram um fato em lín-gua portuguesa. A partir deste momento a línguae a religião se transformaram em linguagem po-lítica. As imagens do massacre difundidas em di-versas partes do mundo criaram uma interlocuçãoem nível internacional.

Qual o papel das instituições internacionais junto àpopulação de Timor-Leste e o que significa, hoje, saberfalar, ler e escrever o português?

As instituições internacionais através das ad-ministrações transitórias da ONU (UNTAET)procuraram construir um arcabouço institucionalcapaz de refletir os interesses de uma sociedadeem conformação. Porém, o modelo jurídico im-plantado não permitiu uma ação política com-partilhada com a população. Para que se possa,constantemente, avaliar a ação pública é indis-pensável criar canais de comunicação entre osdiferentes setores da população, ou seja, uma lín-gua comum. De posse deste instrumento, torna-se possível o controle da atividade estatal pelo ci-dadão. Este controle é básico para que se cons-trua a idéia de res pública, para que se compreendao Estado como patrimônio público, ampliando ograu de legitimidade das instituições.

O tétum, embora fosse utilizado para comu-nicação entre diferentes comunidades, não ser-via para inserção de Timor-Leste no contexto in-ternacional. Mas, em nível interno, a utilizaçãodo tétum pela igreja católica, como língua de cultoa partir de 1981, criou o vínculo necessário entreuma língua compreensível para maioria da po-pulação e o catolicismo. Assim, o cristianismo eas ONGs favoreceram a montagem de uma so-ciedade civil menos fragmentada internamente emais propositiva.

JANICE THEODORO é membro titular do Gacint.

mento australiano da ocupação Indonésia emTimor, passava a ter direito aos poços de petróleopróximos a Timor. Este acordo foi ratificado, pelaadministração transitória da ONU, como provi-sório, até que a fronteira dos dois países fosse,definitivamente, negociada. Mas, prevendo umapressão do governo independente de Timor, aAustrália se retirou da UNCLOS, que havia de-terminado uma linha média como base para asnegociações de fronteira marítima. Pela linha mé-dia, definida pela UNCLOS (UN convention ofthe law od the sea), a Austrália perderia o contro-le sobre a maioria dos poços de petróleo próxi-mos a Timor. Desde 1999 a Austrália vem rece-bendo aproximadamente um milhão de dólarespor dia em receitas de petróleo de poços que po-deriam pertencer a Timor-Leste, segundo a le-gislação internacional. Só em 2003 a Austráliarecebeu US$ 172 milhões do campo de Lami-naria-Corallina, dentro do território marítimo deTimor-Leste. Enquanto isto a Austrália evita co-locar as negociações em andamento. O governode Timor-Leste luta por negociações mensais,enquanto o governo da Austrália afirma não terdinheiro para isso, propondo encontros anuais.

O que fazer?Diante do “déficit democrático” na vida po-

lítica internacional a organização dos países quefazem parte do contexto lusófono podem se cons-tituir em importante espaço de articulação depolíticas críticas aos processos de concentraçãodo poder e do petróleo.

Qual é, agora, a imagem narrada em língua portu-guesa capaz de comover a comunidade internacional?

Afinal, como nos lembra Jean-Pierre Vernant“a tragédia não coloca a questão: quem sou? E,sim: o que vou fazer?”.

Para que se possaavaliar a ação públicaé indispensável criar

canais decomunicação entre osdiferentes setores dapopulação, ou seja,uma língua comum

do o conceito de representativi-dade, em crise na atualidade.Neste trajeto contaram muitasvezes com o apoio de ONGs eda Igreja.

Este percurso lingüístico,religioso e histórico após o mas-sacre do cemitério de Santa Cruzem 1991 (quando morreram 200pessoas, grande parte deles estu-dantes) transformou-se em ins-trumento político e estratégico.O surpreendente, nesta história,é que nem a guerra de descolo-

Como avaliar a capacidade deintervenção da população timorensena construção e manutenção de umEstado voltado para a construção emanutenção do bem comum?

Uma vez mais tomemosapenas um exemplo, consideran-do os fundamentos do direito in-ternacional e, também, a discus-são sobre o justo em conformi-dade com a tradição Ocidentalcristã. Em 1989 a Austrália fezum acordo com a Indonésia peloqual, em troca do reconheci-

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os outros, por ainda mais 100 anos, moveram-seininterruptamente nesse imenso espaço imperi-al, dividido pelos quatro cantos da terra, homens,bens, técnicas, modos de vida e formas de beleza.Não obstante gozarem os metropolitanos de gran-des privilégios e vantagens, um goês podia tor-nar-se magistrado em Lisboa, um santista, gover-nador em Moçambique, e um cabo-verdiano,médico em Angola; construíam-se, na África eno Brasil, casarões com a mesma traça que emPortugal, ainda que a eles, em alguns lugares, seacrescentassem amplas varandas, trazidas, com apalavra, da Índia, assim como a canja e a bananacozida polvilhada de canela; fazia-se, na África, afarinha de mandioca do mesmo modo que entreos tupis; e, aqui e ali, nos dois lados do Atlântico,os meninos empinavam pandorgas como se esti-vessem em Macau.

DEPENDÊNCIAS COLONIAIS

Não eram só os sucessos na Metrópole que afe-tavam as dependências coloniais. O que em cadauma destas se passava podia repercutir tanto noterritório europeu do império, quanto em vários

treteciam, por exemplo, as administrações da Me-trópole, da Índia portuguesa, de Angola e do Bra-sil, e por escrever-se a história individual daque-les que passaram os seus dias a mudar, dentrodesse império, de terras e de oceanos. Pois ho-mens do Brasil foram trabalhar para a Coroa emMoçambique e na Índia, passando antes, muitasvezes, por Lisboa, Guiné, Cabo Verde, São Toméou Angola. E goeses e cabo-verdianos fizerampercursos semelhantes antes de chegar ao Brasil.Ameríndios serviram como soldados em Angola.E escravos embarcados nos mais diversos pontosda África, e adquiridos com cachaça e tabaco doBrasil, panaria de Cabo Verde e da Guiné, algo-dões de Goa e sedas de Macau, não pararam dedescer, durante trezentos anos, em terras brasi-leiras e por elas se espalharam.

ESPÍRITO UNIFICADOR

Nem todos andaram a peregrinar pelos mares epelas terras do império como funcionários oumilitares, nem se foram de uma para outra comotrabalhadores forçados. Houve os que saíram porconta própria em busca do enriquecer na aven-tura. E os que resolveram mudar para outro sítioas suas empresas, como os que levaram de SãoTomé para o Brasil as suas mudas de cana, os seusengenhos e os seus escravos, já depois que de lápara cá tivessem emigrado os seus modelos e téc-nicas de produção. E houve até mesmo algunsex-escravos que passaram os seus dias de liber-dade num ir e vir de mercadores pelo Atlântico.E os que trocaram de papéis, e até os inverteram,na travessia: régulos, chefes e homens livres afri-canos que se voltaram em militares no Brasil, edegredados brasileiros que se tornaram juízes naÁfrica.

Esse processo de trocas, enlaces e confluênci-as, se o enriqueceu, não homogeneizou, contu-do, o império. As ruas podiam ser semelhantes esemelhantes as fachadas das casas no Porto, no Riode Janeiro, em Luanda, em Bissau ou na Beira,mas as pessoas nelas viviam de modo diferente epodiam ser dissímeis na cor, no modo de vestir,

XIV ENCONTRO DA AULP

Do impérioà comunidade

ALBERTO DA COSTA E SILVA

A ndamos, talvez propositadamente, ospaíses lusófonos, esquecidos de que fo-mos parte de um império. Durante maisde três séculos, num caso, e, em todos

Esse processode trocas, enlaces

e confluências,se o enriqueceu, não

homogeneizou,contudo, o império

outros de seus espaços, ou emtodos eles, e lhes modificar a vida.Estavam, por exemplo, tão vin-culados a Angola os interesses doBrasil, que dentre os seus mora-dores se recrutavam os que a go-vernavam e muitas das tropas quelá serviam, e Goa parecia colar-sea Moçambique.

Está ainda por relatar-se co-mo se interinfluenciavam e en-

de andar, de descansar o corpo ede entender-se nas ruas. Em grausvariados, eram distintos tantoTimor e as ilhas Bijagós, quando,dentro da mesma unidade do im-pério, Trás-os-Montes, Ribatejo eAlgarve, ou o antigo reino doCongo e a hinterlândia de Mo-çâmedes. Podiam ser desseme-lhantes e até opostas as paisagensfísica e humana desses variados

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ALBERTO DA COSTA E SILVA é membro da Academia Brasileira deLetras.

No planointernacional,

Portugal, Brasile os países africanos,

por própria imposiçãoda geografia,pertencema diferentesorganismos

multilateraise têm prioridadesde composições

políticas e econômicasdiferentes

territórios, mas se uniam por umespírito quase sempre unificador,compartilhavam a mesma cons-trução histórica e se regiam, aomenos nos centros de poder co-lonial, por um idioma de mandoe obediência: o português.

Se do antigo império apartar-mos os enclaves de Goa, Damão,Diu e Macau, corresponderá elecom exatidão ao atual conjunto depaíses lusófonos. Não só cada umdeles difere dos demais por suafarta variedade de panoramas na-turais e humanos, mas são tam-bém desiguais em desenho, estru-tura, volume e peso. Cabem, porexemplo, 90 ilhas de São Tomé ePríncipe no território europeu dePortugal, 14 Portugais em Ango-la, e quase 7 Angolas no Brasil. Adesproporção nas populações é tãogrande, se não maior. Se Cabo Ver-de e São Tomé e Príncipe são ar-

No plano internacional, Por-tugal, Brasil e os países africanos,por própria imposição da geogra-fia, pertencem a diferentes orga-nismos multilaterais e têm prio-ridades de composições políticase econômicas também diferentes.Cada um deles faz parte, porém,de mais de uma constelação deEstados, que parcialmente se so-brepõem. E uma delas é determi-nada pelo idioma com o qual seapresenta diante do resto domundo. Essa pluralidade deenvolvimentos em processos esistemas de integração econômi-ca e em entidades multilateraispermitirá aos membros da Co-munidade de Países de LínguaPortuguesa que se vejam, mais doque como pontes, como hífensentre essas distintas constelações.

Na constelação lusófona,há, no entanto, também desse-

quipélagos e Timor a metade de uma ilha, os de-mais países estão engastados em continentes. Por-tugal fica na Europa; o Brasil, na América; Timor,no Sudeste da Ásia; Cabo Verde, no meio do Mar-Oceano; e os demais, na África. O Atlântico banhatodos, menos dois, Moçambique e Timor, que per-tencem ao universo do Índico. Moçambique e, ain-da mais, Guiné-Bissau, possuem fortíssima presen-ça islâmica.

CONTRATES E DISPARIDADES

Do ponto de vista econômico, é enorme o hiatoentre seus graus de desenvolvimento. Suas es-truturas de produção apresentam-se de tal mododistintas que pode mudar a quantidade de alga-rismos com que se medem o Produto NacionalBruto e a renda per capita, quando se passa de umpaís para outro. Contrastes semelhantes se veri-ficam em todos os planos da organização social eaté no levantamento das potencialidades e da di-mensão dos problemas. Essas disparidades ten-dem a tornar desequilibradas as relações entreesses países, tanto no plano político quanto noeconômico e até mesmo no cultural, se não fo-rem corrigidas pela cuidadosa perseverança quedeve ter o de maior tamanho, riqueza e poder desempre oferecer mais e ceder mais ao outro maisfrágil, que oferecerá menos e cederá menos. Eisso tanto vale para as relações entre o Brasil eAngola, quanto para o diálogo entre Angola e SãoTomé e Príncipe.

melhanças no uso do idioma. No Brasil e emPortugal, é a língua do berço e da infância dequase todos os seus habitantes. Em Cabo Verdee São Tomé e Príncipe, os falares maternos sãoos respectivos crioulos, que competem com oportuguês como idioma veicular. Em certas par-tes da Guiné-Bissau, a comunicação dá-se, noseio das famílias, em crioulo, mas em outras, overnáculo é um dos vários idiomas africanos,competindo o português com o crioulo a con-dição de língua franca. Já em Angola e Moçam-bique, o português é o falar materno das mino-rias urbanas, enquanto o grosso da populaçãose relaciona, em casa e na vizinhança, num dosdiferentes idiomas bantos. Em Timor, o portu-guês é utilizado somente por uma pequena mi-noria.

Mas em todos esses países em que o portu-guês não é a língua materna do grosso das popu-lações é ele cada vez mais usado como o segun-do idioma de todos e, de idioma do dominador,tornou-se um instrumento de convivência so-cial e de unidade política. E não só de unidadepolítica interna deste ou daquele Estado, mastambém de uma aliança internacional de um gru-po de países que não necessita, em seu convívio,de intérpretes e tradutores, e retira suas promes-sas do uso da mesma língua.

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O

O FUTURO DA UNIÃOEUROPÉIA APÓSA INTEGRAÇÃO

destino político da nova União Européia (UE)parece estar a depender, dentre outros, dos se-guintes fatores: o sucesso da sua ousada expan-são para o Leste; a competência para afirmarcerta independência em relação às ações unila-terais norte-americanas, especialmente se a li-nha atual se mantiver após as próximas elei-ções nos EUA; e o futuro alinhamento daRússia. As recentes eleições gerais para o Par-lamento Europeu, que mostraram um avançoconsiderável da centro-direita e dos “euro-cé-ticos”, são um indício das dificuldades que ain-da estão pela frente.

Os dez novos países incorporados são rela-tivamente pobres – seu poder de compra (PPP)médio é cerca de 3 vezes menor do que o dosoutros países da UE – e dispõem de mão-de-obra barata e razoavelmente qualificada. Elestrouxeram ao bloco um acréscimo de 28% empopulação, mas de apenas 5% em PIB. Como ainclusão desses países veio acompanhada de se-veras restrições iniciais à movimentação livrede trabalhadores, as grandes corporações eu-ropéias estarão mais estimuladas a estabelecerpartes de suas produções nesses países, numambiente de negócios mais “familiar” do queo da distante opção-China. Com isso, aumen-tarão as pressões para a revisão da legislação tra-balhista nos países da Europa, considerada pelosetor empresarial arcaica e não competitiva.

No entanto, a Inglaterra continua a man-ter-se como o grande espinho na carne da novaEuropa. Após os desgastes profundos devidosaos fracassos no Iraque, o futuro de Tony Blairdepende agora da cicatrização – ou não – daschagas provocadas pelos graves erros da admi-nistração Bush, sempre inequivocamente apoi-adas pelo primeiro-ministro inglês. A inexis-tência das armas de destruição em massa, odesastre social e as torturas de prisioneiros mi-naram importantes apoios que ainda o susten-tavam. Neil Kinnock, ex-líder do seu partido,e Denis Healey – ex-ministro de Finanças –

são alguns dos antigos companheiros que pre-gam abertamente sua renúncia, sugerindo queceda seu lugar a Gordon Brown.

O Partido Conservador concentra seu es-paço de manobra em resistir abertamente à fu-tura Constituição européia, o que fica claro emartigo recente de seu líder Michael Howard,onde ele diz: “A UE precisa parar de fazer detudo e concentrar-se em fazer menos e commaior eficiência. Ela deve dar aos países mem-bros a oportunidade de desenvolverem umaabordagem em relação à Europa que esteja deacordo com suas tradições nacionais”. Comose vê, a atual oposição inglesa tenta forçar osnovos caminhos em direção a uma Europa light– ao gosto de parte expressiva dos cidadãos bri-tânicos – tese que tem aliados de certa expres-são em outros países europeus que não Françae Alemanha; haja vista a recente rejeição da po-pulação sueca à moeda única. Lembremos quea nova Constituição da UE terá que ser ra-tificada por 24 países, muitos dos quais obriga-dos a referendos populares, em meio a pres-sões para um esquema alternativo de amplageometria variável que possa suavizar os rigo-res da perda das autonomias nacionais. É pro-vável, pois, que venham a surgir propostas deum cardápio amplo de políticas de adesões queiriam da moeda comum, política fiscal única eexército europeu, a até apenas ao movimentolivre de bens e serviços, a critério de cada país.Esse amplo cardápio – também chamado deadesão a várias velocidades – certamente nãoajuda a tese central de que é preciso avançar emdireção a um espaço político europeu que crie,para além do segundo mercado do mundo, umpoder político inovador e reequilibrador do atu-al exercício unipolar norte-americano.

Tony Blair ainda procura sobreviver man-tendo atitudes ambivalentes em relação à sua fi-delidade irrestrita aos EUA e ao futuro referen-do sobre a proposta de Constituição européia.No caso da sua exótica sociedade com Bush, um

E U R O P A

GILBERTO DUPAS*

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GILBERTO DUPAS é responsável pela área temática Europa.

bom exemplo foram os aparentes desenten-dimentos sobre quem comandaria as tropas deocupação após a cessão do controle político doIraque à nova junta governativa, que foram ra-pidamente desmentidos. Nessa área, muito sedependerá dos resultados da transferência desoberania no Iraque e de quem vencerá as elei-ções norte-americanas. Quanto ao referendoinglês sobre a adoção do euro – que Blair agorase anuncia pronto para realizar – se sua teseadesista for derrotada, ele estará contra o muro;se for vitoriosa, dar-lhe-á um duplo alento: rea-firmará sua liderança e tirará dos conservadoresuma arma política engatilhada contra ele. En-quanto isso, o líder inglês vai vivendo de cons-trangimentos sucessivos. Em debate no parla-mento ao final de maio, o deputado Bob Russelcobrou ironicamente de Blair se ele teria sidoinformado pelos EUA do local onde Saddam estápreso, de como ele estaria sendo tratado e de“que medidas os americanos teriam tomado paraencorajá-lo a revelar a localização de armas dedestruição em massa”. A resposta do primeiroministro foi: “Posso assegurar ao honorável ca-valheiro que sei onde ele não está. Ele não estábrutalizando seu povo nem ameaçando a segu-rança de sua região”. A situação se agravou apósas eleições de junho. O Partido Trabalhista fi-cou em terceiro lugar na renovação dos conse-lhos locais, perdendo 464 cadeiras, enquanto osconservadores ganhavam 263. É um fato semprecedentes tal derrota do governo em eleiçõesde meio mandato. Blair reconheceu que “oIraque foi uma sombra sobre nosso apoio”, masinsistiu que “o mundo é um lugar mais segurosem Saddam Hussein”. A reeleição do trabalhistaKen Livingstone à prefeitura de Londres não me-lhora a sua situação. Ele é um feroz inimigo doapoio à invasão do Iraque e gosta de afirmar que“W. Bush é a maior ameaça à vida no planeta”.

Outro ponto sobre o futuro da grande Eu-ropa é o destino na Rússia. A questão centralda atual política externa russa é harmonizar seusinteresses estratégicos entre EUA, UE e Ásia,não sendo ela membro nem da OTAN, nemda OMC e nem da UE. O processo de absor-ção pela OTAN das ex-repúblicas do Cáucasoe da Ásia Central, entendidas como áreas deinfluência da Rússia – além da inclusão dospaíses da Europa do Leste, pertencentes ao an-tigo bloco comunista, e das repúblicas do Bál-tico – estabelece uma nova cortina de ferro,agora em relação à Rússia. A questão chave, noentanto, é a entrada ou não da própria Rússiana UE. Como expôs Lenina Pomeranz em paper

preliminar que preparou para o Gacint, os pri-meiros passos foram dados por Prodi, ao lem-brar que ela já cumpria a condição fundamen-tal de ser uma economia de mercado. Oscontenciosos recentes são vários, mas estão sen-do administrados. Quem olhar o novo mapada Europa deparar-se-á com um estranhoenclave russo (Kaliningrado) entre Polônia eLituânia, sem acesso ao seu território; após ne-gociações, já se acertou um acordo para garan-tir trânsito privilegiado dos russos. Em relaçãoao comércio entre a Rússia e os novos mem-bros, definiram-se cotas e taxas alfandegáriasde transição, manutenção de contratos parafornecimento de combustível nuclear e elimi-nação de restrições de ruído para permitir aosjatos russos de continuarem a voar na região. AUE prometeu aumentar a cota de importaçãode grãos russos e apoiar gestões para a entradado país na OMC; mas continua insistindo quea Rússia equalize os preços internos de petró-leo e gás natural com os internacionais, alémde eliminar o monopólio de produção de gás.Sendo esses produtos estratégicos e com sériasimplicações para o sistema de preços do país,tais questões são mais difíceis de resolver.

O fato é que a entrada dos países do Leste naUE tem implicações complicadas em relação àfutura estratégia geopolítica russa. Aqueles paí-ses não esquecem o período de domínio sovié-tico e temem recaídas. Embora todos eles aindamantenham significativo comércio com a Rússia– e ainda sejam especialmente dependentes doseu carvão, gás e petróleo – eles têm em comumum “ódio” contra o antigo dominador, o que valeespecialmente para República Checa, Polônia,Lituânia, Letônia e Estônia. Aliás, os checos pa-recem ser, entre todos os dez novos integrantes,os mais céticos quanto ao futuro da UE; e seupresidente, Vaclav Klaus tem expressado esseeuroceticismo com toda clareza. Ele é acompa-nhado pelo ex-vice-chanceler Alexander Vondra,que tem se referido assim aos futuros controlesde Bruxelas: “Quem experimentou o domíniosoviético, vê as burocracias distantes com sus-peita”. Quanto à Bielorússia, Ucrânia e Mol-dávia, últimos tampões entre a Rússia e a novaUE, esses ainda são países mais dóceis e depen-dentes. De qualquer forma, o posicionamentofuturo da Rússia, debruçada sobre alternativasgeopolíticas complexas, será essencial para a de-finição do formato definitivo da Europa e, pordecorrência, importante para o novo equilíbriodo poder mundial.

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DESAFIOSDA NOVA EUROPA

nova União Européia, que, desde o ato de am-pliação de primeiro de maio, já opera com vin-te e cinco membros, enfrenta agora o desafiode aprofundar seu processo de integração coma aprovação de um projeto de tratado cons-titutivo que satisfaça as aspirações de uns semprejudicar as conquistas de outros. Na faltadesse instrumento, cujas disposições em ma-terial de repartição de poder tanta controvérsiae mal-estar causaram no final de 2003, a UEcorre o risco de ver seu braço executivo, a Co-missão, tendo que cumprir as determinaçõesdo Tratado de Nice, com sérias implicações paraa eficiência do seu já bastante complexo pro-cesso decisório. É essa a prioridade mais ur-gente para a UE-25, mas está longe de ser aúnica e muito menos a mais crítica.

À medida que se alarga, a Europa cresce emtamanho, em mercado e comércio intrazonatornando-se ainda mais atraente como regiãocompradora de bens e de serviços procedentesde terceiros, mas, a menos que proporcionemelhores condições de acesso a seus parceirosextracontinentais, deixa de assumir as respon-sabilidades que lhe cabem num sistema multi-lateral que precisa ser mais aberto, menosdiscriminatório e baseado em regras mais es-tritas e mais claras.

Dominique Strauss-Kahn, que foi minis-tro de Finanças da França, e liderou, a pedidodo presidente da Comissão Européia, Roma-no Prodi, um painel de doze “sábios” reunidospara discutir o futuro da Europa, apresenta,num relatório de 109 páginas, sugestões con-cretas para orientar os tomadores de decisão afazer face não apenas à crise de identidade porque passa o bloco, mas também a uma falta desentido de direção que alegadamente o afeta.

Há um certo consenso que a nova Europadeve adquirir, no curto prazo, um dinamismopolítico maior para evitar que se marginalizemais adiante. Ocorre que, para desempenharum papel político à altura de seu peso econô-mico, precisaria a UE superar quatro dificul-

dades básicas, a saber: o déficit de crescimentoobservado no último decênio combinado comum elevado índice de desemprego estrutural;o lugar, algo secundário, que ocupa em algu-mas das principais instâncias de governançamundial; a construção, ainda precária, de ummodelo autênticamente europeu, em que aspreocupações de ordem social estimulem, aoinvés de inibir, o crescimento econômico; e aconcorrência dos EUA, que são ainda vistoscomo rival estratégico de uma potência que,embora se queira “serena” não é unicamente“civil” nem divisível e que, sobretudo, temconsciência dos altos custos da autonomia. Emsíntese, a Europa, na visão federalista eprospectiva dos mais lúcidos defensores daintegração, deve mover-se gradualmente, paraalém do estágio atual, de resto bastante avança-do de união econômica, comercial e monetá-ria, para o de definição de uma identidade po-lítica de longo prazo, com maior legitimidadedemocrática.

Este não é o discurso corrente entre as prin-cipais lideranças européias, relutantes quantoa alienar soberania e voltados para a tentativade equacionar problemas internos num ambi-ente econômico em que predominam cobran-ças e incertezas. O Pacto de Crescimento eEstabilidade, que estabelece limites para osdéficits orçamentários nacionais, tem sido sis-tematicamente desrespeitado, e Estados comoa França, a Alemanha e, em especial o ReinoUnido, demonstram sua falta de disposição oudeterminação política para dar passos mais lar-gos do que os acordados no Tratado deMaastricht.

Entre as propostas que Strauss-Kahn enun-cia para aprofundar a dimensão política da novaEuropa, a maioria é de natureza econômica esocial e algumas delas já estão contidas na agen-da de Lisboa do ano 2000. Trata-se, fundamen-talmente, de incrementar os gastos públicoscom pesquisa e desenvolvimento com o obje-tivo de criar uma sociedade do conhecimento

AJOSÉ ALFREDO GRAÇA LIMA*

ENSA IO

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sem descuidar dos valores sociais tradicionaisincorporados ao “welfare state”. Outras propos-tas se vinculam a governança econômica, taiscomo a revisão do direito comunitário sobreconcorrência, a proibição do chamado “dump-ing” fiscal, a criação de um mercado de traba-lho único, a reforma do Pacto de Estabilidade,e a institucionalização do eurogrupo de dozeministros de finanças responsáveis pela políti-ca macroeconômica. O relatório preconiza ain-da uma controversa, embora gradual, elevaçãodo orçamento da União de 1.2 para cerca de2.0 por cento do PIB, a ser financiada, em gran-de medida, por um imposto corporativotransfronteiriço. Evita, porém, neste contexto,qualquer referência a reformas da Política Agrí-cola Comum mais profundas do que a que foidecidida pelos ministros da agricultura em suareunião de Luxemburgo.

Fica clara aqui a inabalável resistência fran-cesa, endossada por outros Estados membros cujaagricultura ainda se beneficia de custosos subsí-dios comunitários, a compromissos autônomosou derivados de acordos multilaterais ou prefe-renciais com potencial de corrigir distorções nomercado interno, puxando para baixo os preçospraticados para as “commodities” de interesse ex-portador para países como Brasil, Argentina eoutros membros do Grupo de Cairns.

No âmbito das negociações lançadas na IVConferência Ministerial da OMC, em Doha,o Comissário de Comércio, Pascal Lamy, jun-to com seus colegas Franz Fischler e ChrisPatten, tem procurado, primeiro apenas com oUSTR Robert Zoellick, e, posteriormente aofracasso da Conferência de Cancún, tambémcom o Grupo dos 20, definir um “framework”para a liberalização do comércio dos produtosagrícolas bem como para a eliminação das prá-ticas distorcivas que afetam a produção e a con-corrência no setor. No âmbito do processo denegociações visando a um acordo de associa-ção entre o Mercosul e a UE, sua estratégia con-siste em oferecer acesso preferencial adicionalna forma de quotas tarifárias para carnes, lati-cínios, cereais, arroz, etanol. Tal oferta seriaeventualmente complementada pelos resulta-dos alcançados na Rodada Doha no que toca aacesso a mercados, cabendo aos países doMercosul a parcela que não tivesse de ser atri-buída aos demais “demandeurs”.

Na Cúpula de Guadalajara, onde se reuni-ram, pela terceira vez, Comissários europeus eMinistros do Mercosul responsáveis por ne-gociações comerciais, foi renovado o com-

promisso de buscar concluir o acordo de asso-ciação interregional até outubro de 2004, quan-do termina o mandato de cinco anos da atualComissão. A partir de agora e até lá, desenvol-ver-se-á um esforço final no sentido de me-lhorar as ofertas recíprocas de modo a que pos-sam ser atendidas as prioridades dos dois ladose se atinja um equilíbrio geral capaz de satisfa-zer as partes responsáveis pela ratificação doacordo.

As relações comerciais da Europa com pa-íses em desenvolvimento da África, do Caribee do Pacífico têm a cobertura de acertos espe-ciais autorizados pelos membros da OMC. Nosseus termos, a UE concede preferências a pro-dutos agrícolas importados de países que de-pendem fundamentalmente da venda destespara a obtenção da receita necessária para ocumprimento de seus compromissos financei-ros e comerciais. Para o conjunto dos países demenor desenvolvimento relativo, a UE praticao que ela própria qualifica de “discriminaçãopositiva”, através de um tratamento tarifário –para todos os produtos não-agrícolas – maisfavorável do que o que se aplica a outros paísesem desenvolvimento. (A ressalva é importanteporquanto, em decorrência da aceitação gene-ralizada, entre os países europeus, da teoria da“multifuncionalidade”, agricultura, para mui-tos, não é comércio, e freqüentemente se en-contram, em documentos ou discursos ofici-ais, referências à necessidade de que se “man-tenha a possibilidade de implementar políticasagrícolas internas”. Fica aqui subentendido quea integração da agricultura às regras do GATT/OMC levará ainda muitos anos). Países comoo Brasil e outros, que se tornaram exportadorescompetitivos de alimentos e produtos agrícolasprocessados, são ainda prejudicados por desviosna aplicação do Sistema Geral de Preferênciaseuropeu, tais como o “regime drogas”, que isentade tarifa concorrentes afetados pela produção etráfico de narcóticos.

A mundialização obriga, evidentemente, anova Europa a assegurar uma maior convergên-cia entre o Norte e o Sul através de ajustes nosistema de Bretton Woods e de uma reorientação daordem econômica vigente, de maneira a fortale-cer o multilateralismo, permitir um maior equilí-brio de forças como alternativa para o unipolaris-mo ou o bipolarismo, e favorecer a diversidadede modelos, preservando-se o da economia socialde mercado, que é a fórmula com que a UE pre-tende crescer de forma sustentável.JOSÉ ALFREDO GRAÇA LIMA é membro titular do Gacint.

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E

FORÇA, LEGITIMIDADE ECONTINUIDADE NA MUDANÇA

m manifestação de crítica ao presidente GeorgeW. Bush, o candidato democrata John Kerrydeclarou (citação de memória) que sua políticaexterna fundamentar-se-á mais em princípiosdo que na força. Correto: a força não é funda-mento de política, é instrumento e a condutapolítica deve ser condicionada por princípios.Mais quais princípios? De Grotius, Hobbes,Kant? De W. Wilson, de qual dos dois Roo-sevelt, Theodore ou Franklin D.?

A frase do candidato democrata aparenta sermais eleitoral do que fundamentada no direitoe em lições da história norte-americana. Inde-pendentemente do partido na Presidência,embora com nuanças distintas de estilo, os EUAvêm praticando um “destino manifesto”redentorista desde sua independência. Inicial-mente restrita à América do Norte, ao fim doséculo 19 já expandida à América Central eCaribe, a prática extravasou à escala mundialno século 20.

O isolacionismo cedeu espaço aoengajamento na medida do desenvolvimento eda capacidade do país de sustentar o poder mi-litar adequado à expansão, até a versão globalatual; no momento os EUA parecem ter assu-mido o papel protagônico na “missãocivilizatória”, basicamente europeu do século19, salvo na América da Doutrina Monroe...Desenvolvamos isso.

O poder na ordem internacional dependeda consistência de vários suportes, três delesem evidência hoje: a economia, a força e a legi-timidade. Os EUA deixaram de ter a participa-ção no PIB global que tinham há 50 anos (cer-ca de 27% em 1950); estão agora praticamenteigualados com a UE (21%) e abaixo da partici-pação da Ásia (37%), mas sua ainda exuberanteeconomia – de longe a maior economia nacio-nal – continua capaz de sustentar seu imensopoder militar, sem paralelo no mundo e sempossibilidade de ser aproximado – menos ain-da superado – nos próximos decênios.

JOGO DE RETÓRICAQuase o PIB brasileiro, e equivalente a cercade 10 vezes os orçamentos militares que se lheseguem (chinês, francês, japonês, alemão e rus-so), esse orçamento vem contando com o apoiode republicanos e democratas no Congresso eda sociedade em geral; em particular, de seto-res com interesse na indústria de defesa. Indi-cando intenção de ampliar a supremacia tecno-lógica hoje determinante, os EUA dedicaram àP&D de interesse militar (2003-2004) tambémcerca de 10 vezes o que dedicaram a essa finali-dade a Inglaterra, França e Alemanha (a fonteusada não citava China, Rússia e Japão). Evi-dentemente, o orçamento militar norte-ame-ricano (como todos os demais) é influenciadopela economia, mas nas suas dimensões a recí-proca também é verdadeira e a política não pode“ignorar” isso: o keynesianismo militar do par-tido republicano, geralmente insinuado que embenefício do capital, deve continuar com o par-tido democrata (se eleito o seu candidato); su-postamente em apoio ao trabalho, como cos-tuma afirmar esse partido. No fundo, um merojogo de retórica política porque capital e traba-lho se confundem como beneficiários dokeynesianismo militar.

A título de curiosidade: na P&D militar, àInglaterra, França e Alemanha seguem-se a Itá-lia, Suécia e Espanha, provavelmente mais pre-ocupados com o comércio de armas do quecom suas defesas nacionais; pois, além de nãoameaçados (salvo pelo terrorismo, não resolvi-do pela hipertecnologia militar), são protegi-dos pelo interesse estratégico norte-america-no. Em caso de ameaça ponderável (ao supri-mento de petróleo, por exemplo), estejam osrepublicanos ou democratas no poder, os EUAprovavelmente assumiriam a vanguarda da re-ação, com a UE criticando os EUA, conforta-velmente à sombra de sua proteção...

Pode-se dizer, portanto, que na opera-cionalização dos princípios influentes na polí-

MARIO CESAR FLORES*

SEGURANÇA INTERNACIONAL

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tica externa norte-americana – crescentementepropensos à ordem kantiana hegemoneizadapelos EUA – com a força militar servindo deinstrumento de controle do mundo hobbe-siano, o problema hoje não é a capacidade mi-litar, é o apoio legitimador da justificativa paraseu uso. Insere-se aí a questão do pluralismoversus unilateralismo. Ao tempo da ameaça so-viética, o pluralismo estava implícito na con-junção estratégica da OTAN; mas, com o fimdaquela ameaça, ele entrou em crise de neces-sidade objetiva.

Governos e sociedades da União Européia,descontentes com a prescindibilidade, passa-ram a questionar a tendência dos EUA ao usoda força, apoiada na visão norte-americana deque, apesar do fim da guerra fria, o mundo con-tinua perigoso; isso porque, embora livres daameaça de grandes potências, países de médioe pequeno porte – sob regimes autoritários –insatisfeitos ou instáveis por motivos diversose capazes de conseguir armas de destruição demassa, tendem ao caos e/ou a contestar a or-dem internacional via terrorismo ou outrasações irregulares. Essa preocupação é estendi-da às organizações não estatais, da criminalidadee do terrorismo transnacional. E são esses paí-ses e organizações os candidatos aos “puxõesde orelha corretivos” dos EUA, como eram ospaises “mal comportados” da América Centrale Caribe, há 100 anos...

PRETO NO BRANCONo complicado e interdependente mundo con-temporâneo a legitimidade do uso da força éajudada pelo apoio plural (que caracterizariauma singular espécie de direito de fato...) e éprovável que o partido democrata o procurassecom mais empenho do que o republicano. Maso que realmente significa pluralismo nesse con-texto? Significa a impossível unanimidade in-ternacional, ou apenas o aval por maioria e semveto, do Conselho de Segurança (CS)/ONU?Vale lembrar que os países europeus quedeslegitimaram a intervenção no Iraque em2003, em razão do não endosso do CS/ONUno qual eles foram influentes, intervieram nosBálcãs nos 1990 usando a OTAN à revelia daONU, onde provavelmente teriam sido obs-tados pelo veto russo. Preto no branco, o en-dosso do Conselho só é realmente praticávelquando os interesses envolvidos não são im-portantes para grandes potências contrárias àintervenção.

Ademais, para os EUA (e provavelmente

para a UE), apoio pluralista significa essencial-mente apoio de Londres, Paris e Berlim; se-cundariamente, mas a ser considerado, deRoma, Madrid e Tókio, convindo também, senão o apoio, pelo menos a omissão simpáticaou complacente de Moscou e Pekin. Os EUAigualmente apreciam, ainda que sem grandeentusiasmo, o apoio de Brasília, Nova Delhi,Estocolmo, Jacarta, Joanesburgo e por aí vai; jáquanto aos países menos expressivos, seu apoionada significa e pouco interessa, salvo eventu-almente por razão operacional-militar, quan-do da proximidade geográfica do país alvo.

Repetindo e resumindo: para os EUA aquestão da capacidade estratégica está resolvi-da; o imbróglio atual (fim de junho de 2004)do Iraque não é militar, é político e psicossocial:não fora a necessidade de evitar perdas huma-

O apoio europeué complexo,na medida em queé influenciado pelanostalgia do seupróprio ideáriohegemônico-imperial,construídodos séculos 15ao 19

nas iraquianas, imposta pelaopinião pública mundial e nor-te-americana, os rebeldes seri-am controlados em dias – masprovavelmente morreriam mi-lhares de não combatentes. Oproblema é o apoio políticolegitimador: o europeu de pri-meiro nível e, coadjutoriamen-te, o de alguns outros países depeso sensível. Contudo, esseapoio legitimador, sem dúvidaconveniente, não é decisivo,para democratas e republica-nos: de acordo com uma fontedeste artigo, o presidente Clin-ton (democrata) teria dito a res-peito de intervenção norte-ame-ricana: “multilateral if possible, uni-lateral if necessary”; e o secretáriode Estado Colin Powell (gover-no republicano) teria afirmado que “os EUAtinham autoridade para intervir no Iraque...como tiveram para fazê-lo no Kosovo”, quan-do a OTAN deixou de lado a ONU – umainsinuação de inconsistência da exigência eu-ropéia de aval do CS/ONU no caso Iraque.Intervenções norte-americanas têm ocorridosob democratas e republicanos, o Congressotem aprovado recursos para o affaire Iraque como beneplácito republicano, o envolvimento noVietnã foi exacerbado sob os democratas J.Kennedy e L. Johnson e o candidato JohnKerry votou no Congresso a favor da interven-ção no Iraque (afirmando agora que o fez con-vencido de que o Iraque tinha armas de des-truição de massa).

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ALBERTO CASTIEL

ALBERTO PFEIFER

ANA MARIA STUART

BORIS TABACOF

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA

CELSO NUNES AMORIM

CHRISTIAN LOHBAUER

CLODOALDO BUENO

EDUARDO BITTAR

EDUARDO KUGELMAS

ELIANA CARDOSO

FLORÊNCIA FERRER

GELSON FONSECA JR.GILMAR MASIEIRO

GUILHERME LUSTOSA DA CUNHA

HELGA HOFFMANN

HÉLIO NOGUEIRA DA CRUZ

HENRY PHILIPPE REICHSTUL

ISTVÁN JANCSÓ

JACQUES MARCOVITCH

PANORAMA DA CONJUNTURA INTERNACIONALUNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

GRUPO DE CONJUNTURA INTERNACIONAL

Coordenador Geral: GILBERTO DUPASMembros do Conselho Acadêmico

BORIS FAUSTO (Presidente),CELSO LAFER, GUILHERME L.S. DIAS,LENINA POMERANZ, LUIZ OLAVO BAPTISTA, MARCOS JANK

MARIA HERMÍNIA T. DE ALMEIDA

MEMBROS RESPONSÁVEIS POR ÁREAS TEMÁTICASÁsia: AMAURY PORTO DE OLIVEIRAAmérica Latina: TULLO VIGEVANI

EUA: GERALDO FORBESEuropa: GILBERTO DUPAS

Ex-Países Socialistas: LENINA POMERANZComércio Internacional: LUIZ OLAVO BAPTISTASegurança Internacional: MARIO CESAR FLORES

Oriente Médio: PETER DEMANT

MEMBROS

Rua do Anfiteatro, 181 - Favo 5 - Cidade Universitária05508-900 - São Paulo - Brasil - Tels: (011)3091-3528/3091-3531

Fax: 3814-7342 - email: [email protected] - website: www.usp.br/ccint/gacint

JOSÉ ALFREDO GRAÇA LIMA

LUIZ AFONSO SIMOENS DA SILVA

MARCO AURÉLIO GARCIA

MARIA HELENA TACHINARDI

MARY JANE JUNQUEIRA

MIRIAM DOLHNIKOFF

NINA RANIERI

OLIVEIROS FERREIRA

OTAVIANO CANUTO

PAULO EDGAR ALMEIDA RESENDE

PAULO SOTERO

PEDRO DALLARI

RAFAEL VILLA

RICARDO ABRAMOYAY

RICARDO SENNES

ROBERTO TEIXEIRA DA COSTA

ROLF KUNTZ

RUBENS BARBOSA

RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA

SAMUEL FELDBERG

SEBASTIÃO VELASCO E CRUZ

SÉRGIO AMARAL

SÉRGIO FAUSTO

VERA THORSTENSEN

PRO

JETO

GRÁ

FICO

: SIL

VIA M

ASSA

ROReitor da USP: ADOLPHO JOSÉ MELFI

Comissão de Cooperação Internacional (CCInt)MAGDA M. S. CARNEIRO SAMPAIO

Os textos aqui reproduzidos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião oficial do Gacint

MARIO CESAR FLORES é responsável pela área temáticaSegurança Internacional.

O apoio europeu é complexo, na medidaem que é influenciado pela nostalgia do seupróprio ideário hegemônico-imperial, cons-truído dos séculos 15 ao 19. Como não podecontrabalançar o poder militar norte-america-no e impedir sua correspondente capacidadede decisão eventualmente unilateral (que osEUA prefeririam plural, na concepção norte-americana do pluralismo, mas “unilateral, ifnecessary”...), a Europa procura enfatizar o CS/ONU, onde Inglaterra e França (e a Rússiaeuro-asiática) têm poder de veto, – o CS/ONUque, vale repetir, foi relegado pela OTAN nocaso dos Bálcãs.

Alguns analistas entendem que, por maisque a Europa aceitasse a inconveniência do re-gime de Sadam Hussein, os europeus (basica-mente Paris e Berlim) se opuseram à interven-ção no Iraque no intento de condicionar osEUA à visão européia da segurança internacio-nal, reduzindo, assim, a visão unilateral ameri-cana, indigesta para o orgulho daqueles países.

PODER E DIREITOO 11 de Setembro e outras manifestações dainsanidade assassina indiscriminada do terro-rismo ajudaram a justificar (?) e, polemica-mente, até a legitimar o uso da força à reveliado “consenso dos importantes” e do CS/ONU.No caso do Iraque/2003, em que pesou a su-posta ameaça de Hussein – um tanto difícil deser aceita no que tange aos EUA, salvo se es-tendida a seus interesses no Oriente Médio(não há evidência concreta de associação Iraque- Al Qaeda) – ajudou a justificar com respaldono preceito da Carta da ONU sobre defesanacional, um preceito complicado quando suainterpretação unilateral acontece em país aptoa sustentá-la a qualquer custo. Essa situação,típica de um mundo mais pautado pelo poderdo que pela utopia do direito, justifica a preo-cupação: como proteger a interpretação dascausas humanitárias, ambientais, políticas (de-mocracia ameaçada ou a ser construída...) e deauto defesa, da influência de idiossincrasias e/ou interesses, razoáveis ou nem tanto, de modoa constranger o detentor de capacidade militarnão contraditável na afirmação unilateral derazões justificadoras do descarte da soberaniados supostos (ou reais) “pecadores”?

A essência estrutural da questão independedo partido no poder nos EUA. O partido de-mocrata não poderá fugir radicalmente da na-tureza intrínseca da cultura e história norte-americana; a Europa entendida como “impor-

tante” – Moscou, Pekin e Tóquio – e uns pou-cos outros países expressivos, dependendo daregião do problema, provavelmente serão maiscortejados na hipótese democrata, mas as posi-ções desses países não serão decisivamente de-terminantes, com Bush ou Kerry. Determinan-tes mesmo, só a opinião pública norte-ameri-cana e a capacidade de infligir perdas norte-americanas em nível inaceitável para aquelaopinião, por causas não percebidas por ela comovitais para os EUA.

JAIME SPTIZCOVSKY

JANICE THEODORO

JOÃO SAYAD

JORGE WILHEIM