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OS DIREITOS DAS COLETIVIDADES NUMA PERSPECTIVA DO CONCEITO DE SUJEITO DE DIREITO. Profa. Dra. Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega Palestra proferida na PUC GO em 24/03/2011 Pensar um conceito de sujeito para atender a um novo modelo de direito que suporte a atribuição de direitos às coletividades é refletir para além do conceito de sujeito forjado na perspectiva do liberalismo econômico e às luzes do racionalismo individualista moderno. É dar um passo adiante em favor da afirmação dos direitos humanos. Também é necessário fazer uma revisão histórica deste conceito. Mais que isso é refletir sobre as coletividades que surgem numa perspectiva multicultural e de pluralismo jurídico. A questão do sujeito de direito torna-se mais complexa à medida que se pretende um ordenamento plural que recusa os primados da revolução francesa da igualdade e da liberdade, voltados para o capitalismo. Para isso, propõe-se pensar os sujeitos de direitos pelas coletividades, procurando alternativas para reflexão em autores contemporâneos que encontram outras formas de abordagem, que não as jurídicas tradicionais. Do ponto de vista do direito, a noção de sujeito-pessoa é construída no decurso da história, mas é sobretudo na modernidade, que funda o indivíduo, que ela se torna tema central das questões jurídicas. É com a Revolução Francesa, que consagra o princípio da igualdade e determina a prevalência da liberdade e da fraternidade, que esse sujeito passa a ser uma preocupação efetiva do direito. É portanto, no seio do liberalismo que é deflagrada. Antes disso, na medievalidade, o status determina os particularismos da sujeição da pessoa ao direito, o coletivo e a noção de pertencimentos obstaculizam e tornam o direito impermeáveis a essas indagações. Também não há uma visão suficientemente antropocêntrica que autorize pensar a pessoa sujeito de direito no centro de interesses deste campo de conhecimento.

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OS DIREITOS DAS COLETIVIDADES NUMA PERSPECTIVA DO

CONCEITO DE SUJEITO DE DIREITO.

Profa. Dra. Maria Cristina Vidotte Blanco Tarrega

Palestra proferida na PUC GO em 24/03/2011

Pensar um conceito de sujeito para atender a um novo modelo de direito que

suporte a atribuição de direitos às coletividades é refletir para além do conceito de

sujeito forjado na perspectiva do liberalismo econômico e às luzes do racionalismo

individualista moderno. É dar um passo adiante em favor da afirmação dos direitos

humanos. Também é necessário fazer uma revisão histórica deste conceito. Mais que

isso é refletir sobre as coletividades que surgem numa perspectiva multicultural e de

pluralismo jurídico.

A questão do sujeito de direito torna-se mais complexa à medida que se pretende

um ordenamento plural que recusa os primados da revolução francesa da igualdade e da

liberdade, voltados para o capitalismo. Para isso, propõe-se pensar os sujeitos de

direitos pelas coletividades, procurando alternativas para reflexão em autores

contemporâneos que encontram outras formas de abordagem, que não as jurídicas

tradicionais.

Do ponto de vista do direito, a noção de sujeito-pessoa é construída no decurso

da história, mas é sobretudo na modernidade, que funda o indivíduo, que ela se torna

tema central das questões jurídicas. É com a Revolução Francesa, que consagra o

princípio da igualdade e determina a prevalência da liberdade e da fraternidade, que esse

sujeito passa a ser uma preocupação efetiva do direito. É portanto, no seio do

liberalismo que é deflagrada. Antes disso, na medievalidade, o status determina os

particularismos da sujeição da pessoa ao direito, o coletivo e a noção de pertencimentos

obstaculizam e tornam o direito impermeáveis a essas indagações. Também não há uma

visão suficientemente antropocêntrica que autorize pensar a pessoa sujeito de direito no

centro de interesses deste campo de conhecimento.

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Os primados da Revolução Francesa mudam isso. Pela universalização de

normas para todos os sujeitos, instala-se a necessidade de configurar esse sujeito

subsumível ao indivíduo igual a todos. Pela noção de liberdade impõe-se um protótipo

de sujeito capaz da autodeterminação, porque já há de deliberar por si, por meio de

contrato, dispor de sua esfera de interesses. Ainda, a fraternidade exige um sujeito

indivíduo a se encontrar na relação com outro, ou ainda como terceiro. Portanto,

indivíduo.

Até a era das codificações os sistemas jurídicos consagram a desigualdade dos

sujeitos perante a lei. A complexidade dos sistemas jurídicos vários, a multiplicidade e a

sobreposição de fontes somada a multiplicidade subjetiva instalada numa sociedade por

ordens, que funciona por meio de um sistema de privilégios, impondo isso ao direito,

impede que se identifique um sujeito de direito.

É no seio da racionalidade jusnaturalista, pela afirmação dos direitos inatos do

homem que se firma a noção de direito individual e se coloca o sujeito no centro das

especulações do direito. É também no âmbito dessa corrente filosófica que o sujeito de

direito passa a ser identificado como pessoa. É, a partir de uma sociedade estamental,

que assim se reconhece, que o homem conformado ao seu status, balisado por uma série

de condicionantes que o determinam, que se pode pensar um sujeito. Não como

elemento central de um sistema, mas ainda sujeito. Sujeito que se configura pelas suas

condições de existência. E nelas se define a capacidade de cada sujeito, capacidade

mesma que será o aspecto central da jurisdição na era dos códigos.

Com a Revolução Francesa há a unificação do sujeito de direito que enquanto

indivíduo ocupa o vértice da questão jurídica. A noção de personalidade avança em

autonomia . A noção de direito jusnaturalista, individualista, fortalece a formação deste

conceito. “É este um período marcado por uma clara acentuação da tendência para a

«subjetivação dos direitos e para o reforço dos direitos individuais face ao Estado». O

espírito burguês manifesta-se através de um individualismo anticorporativo que postula

o cidadão como célula autônoma da humanidade, como centro de imputação de direitos

subjetivos” (MARQUES,2010, p.101).

É nesse contexto que o homem passa a condição de sujeito de direito, a

personalidade é igual para todos os cidadãos e a capacidade jurídica, já afastada dos

estamentos, passa a ser a medida da personalidade. O homem-pessoa será o sujeito de

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direito dos códigos. Todos dotados de personalidade, mas com possíveis diferentes

capacidades, como as mulheres e os menores. Mas esses não são o alvo do direito. São

as excepcionalidades. “O sujeito jurídico pressuposto é o homem adulto

proprietário”.(MARQUES, 2010,p. 104)

É esse sujeito de direito o homem dotado de personalidade cuja capacidade

conferir-lhe-á as dimensões que vai ser o objetivo último da normatividade. O homem

dotado de capacidade econômica plena e de autodeterminação, numa perspectiva liberal.

O sujeito na ordem liberal, na era das codificações, já não mais se define a partir

da normatividade, como nas sociedades por ordens, mas é anterior a ela. Isso fica muito

evidente, e uma simples leitura dos nossos códigos revela tal. A ordem contida no texto

normativo posto como “Matar alguém”, “Ofender a integridade física de alguém” revela

que nosso direito se estrutura em enunciados descritivos de ações.

A busca pelo sujeito de direito procede-se por ações de identificação. Mas essa

não é uma procura aberta. A procura da identificação é uma procura por um sujeito

capaz. Nesta era a capacidade dimensiona a personalidade. Como diz Ricoeur

(2008,21):“Examinando as formas mais fundamentais da pergunta quem? Somos

obrigados a conferir sentido plenos a noção de sujeito capaz”.

A capacidade é, como atributo fundamental da personalidade, o núcleo de toda

jurisdição. O Código Civil diz em seu artigo 1º “ Toda pessoa é capaz de direito e

obrigações na esfera civil” ( grifo nosso). Mas a idéia de capacidade por si só não

constrói o direito. À idéia de capacidade está agregada o reconhecimento e o respeito ao

homem, ainda que em virtude desta mesma capacidade. Esta operação levada adiante

pela tradição liberal é imprescindível para darmos sentido ao direito moderno. Mas não

é somente o reconhecimento que está agregado a noção de capacidade. À capacidade

designa também atribuição. A identificação de um agente significa atribuir á alguém

uma ação, e aqui se encontra o possível diferencial da perspectiva liberal. Porque nessa

seara se integram valores alheios à universalização do modelo codificado.

Mas o sujeito capaz, isto é o sujeito dotado de direito de deveres, não é

suficiente para considerar-se como sujeito de direito. Um sujeito de direito é aquele que

está inserido em um contexto público, que está inserido em um contexto político e

comunitário. Paul Ricoeur diz então que um sujeito de direito é aquele que está mediado

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continuamente por formas interpessoais de alteridade e formas institucionais de

associação.

Como elemento político a noção de sujeito capaz foi fundamental para o

florescimento do liberalismo. O liberalismo isolou o sujeito de direito do contexto da

esfera pública e recolocou em um espaço de contrato fundacional e a-político. É como

se no momento em que pactua, o homem se isola de toda comunidade para decidir o

futuro dessa comunidade. È uma relação paradoxal em que um sujeito de direito dado

pelo jogo comunitário se torna sujeito de direito apartado da sociedade.

A noção de sujeito de direito, ainda que seja ela construída nos moldes do

liberalismo florescente, é fundamental para a sustentação de nossa justiça. A partir dessa

idéia a relação dever e responsabilidade é posta em espaço público. Usar dessa noção de

sujeito de direito para construir uma justiça excessivamente universalista, para

promover a hierarquização a dominação dos sujeitos, talvez não seja o melhor caminho

para resolvermos nossos problemas jurídicos. Basta considerarmos os frutos gerados

pela constituição da idéia de sujeito de direito e pela proposta da universalização do

sujeito, na revolução francesa.

Há que se ter sempre em mente que o sujeito de direito advém do sujeito capaz,

no pensamento de Ricoeur. A noção de l’homme capable é o fio condutor da filosofia

ricoeuriana. O problema da capacidade humana está além dos limites impostos nos

códigos da idade moderna, referentes à possiblidade de apropriação de bens e

autodeterminação de sua disposição. Mais que isso, estabelece o link entre o ação e o

sofrimento humano . Nossas capacidades se entrelaçam com vulnerabilidades e a pessoa

capaz está apta a realizar e ser responsável. Somente dessa idéia é que se pode pensar os

sujeitos de direitos nas coletividades numa perspectiva emancipatória.

. Um sujeito capaz, na perspectiva de l’homme capable, é aquele que tem

deveres e responsabilidades, não apenas no plano da propriedade, da acumulação das

riquezas, como no liberalismo econômico. É preciso ampliar-lhe as imputações para

seus atos, para as suas atribuições, nos espaços público, comunitário e político. O

esquecimento do sujeito capaz é o esquecimento de nossas responsabilidades e dos

nossos deveres jurídicos, num plano além do econômico. A assunção dessa noção de

sujeito nos colocará melhor capacitados para resolver questões jurídicas dos direitos das

coletividades.

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Os sujeitos de direito numa perspectiva de direitos humanos

A construção do conceito de sujeito de direito é uma face da afirmação histórica

dos direitos humanos. Pode-se estabelecer um marco temporal para refletir sobre isso a

partir dos documentos modernos das revoluções, que tiveram por pressuposto o primado

da igualdade. Tanto na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América,

quanto na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa –

firma-se a noção de sujeito- indivíduo, numa perspectiva de generalização e

homogeneização, excludente de diferenças e de particularidades. Um sujeito indivíduo

ahistórico, não comunitário.

A afirmação histórica dos direitos humanos, sofreu forte influência do ideário

liberal e acompanhou a construção da instituição estatal, pautada nos princípios da

territorialidade, da soberania absoluta do Estado e da liberdade, atrelada, sobretudo, ao

direito de propriedade. Neste processo há a reafirmação do indivíduo garantido pelos

postulados da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

Essa trajetória a que vimos nos referindo, atravessa fases que imprimem a

matriz da construção da noção do sujeito de direito. A primeira delas busca afirmar os

direitos humanos como preceito ideológico universal. Mostra-se, a partir dos

movimentos revolucionários do final do século XVIII, o recrudescimento do liberalismo

econômico no processo de construção do Estado de Direito, sobretudo na afirmação da

idéia de que o direito protege o indivíduo contra o Estado.Verifica-se aqui, como dantes

afirmado, o papel desempenhado pelas revoluções e seus documentos no processo de

queda das monarquias absolutistas e no reconhecimento do indivíduo como sujeito de

direito, de forma egoísta e excludente.

O movimento seqüente promove a constitucionalização dos direitos, ou

juridicização das cartas políticas, e a codificação, em âmbito interno, firmando direitos

para o homem-sujeito-pessoa. A Constituição escrita traz a virtude de incorporar ao

ideário jurídico-político nascente a idéia de que o ponto de partida para a construção de

uma sociedade liberta das formas tradicionais de dominação é a afirmação da igualdade

formal, se abstendo de enfrentar a questão do reconhecimento da diversidade. A

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negligência se repetiu e a constitucionalização dos direitos acabou por se apresentar

como uma ferramenta para a emergência de nacionalismos, autoritarismos e

totalitarismos. Relegou os direitos humanos ao plano interno dos Estados e com isso, a

humanidade conheceu negligencias para com os direitos , o subjugo da dignidade

humana e o estabelecimento de autoritarismos, totalitarismos e terrorismos de Estado.

Com as mazelas à humanidade originária dos conflitos mundiais surgem as

manifestações do direito internacional dos direitos humanos, já visando a um direito

humanitário e à proteção internacional do trabalho. O sujeito de direito, num plano de

devir internacional, já começa a ser apresentado nos documentos como um sujeito

comunitário e responsável em seu atuar. Esse mesmo direito condena práticas dos

Estados contra coletividades. Também a proteção internacional do trabalho, ao

estabelecer parâmetros referências para a construção de seus aparatos regulatórios das

relações de trabalho, coletiviza sujeitos de direito, ampliando-se o conceito.

A Segunda Guerra Mundial impõe a noção de coletividades pela exclusão, pelo

extermínio e pela dor, negando cruelmente a igualdade formal. O extermínio passa a ser

política de Estado e a utilização de armas de destruição em massa são marcas indeléveis

deixadas pela Segunda Guerra à humanidade, que nos dizeres de Hannah Arendt (1999)

são um retrato da banalização do mal e da institucionalização do culto à virtude vazia.

A partir do reconhecimento disso, os direitos humanos ganham novos rumos, e

no âmbito internacional, portando muito mais na esfera política do que jurídica-interna,

as comunidades e coletividades são consideradas em suas diferenças e a noção de

sujeito de direito se complexifica. Isso se mostra no processo de codificação

internacional dos direitos do homem, que tem como marco a adoção da Declaração

Universal dos Direitos Humanos (1948) e os Pactos dela decorrentes, quais sejam, o

Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos adotados pela Assembléia Geral da

Organização das Nações Unidas em 1966.

A proteção dos direitos humanos do pós-guerra, consigne sua importância,

reconheceu diferenças e categorias de sujeitos mas não conseguiu mudar a relação entre

indivíduo e Estado, não interferiu suficientemente nos ordenamentos internos para

transformar o sujeito de direito em sujeito capaz, institucional, política e

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comunitariamente; tampouco foi capaz de contemplar a violência institucionalizada e

amplamente difundida pelo colonialismo europeu.

Ocorre que, embora se reconheça uma ampliação das noções de sujeito nos

documentos internacionais, percebe-se que o modelo adotado, que reproduz a ordem

político-jurídica fundada pelo constitucionalismo de direitos do século XVIII, impede

os avanços. Isso porque ele consagra a assimetria de poder e a falta de um locus central

manifestação. Seus sistemas de monitoramento pouco vão além dos postulados da

revolução francesa, em prol da igualdade e desprezando a diversidade.

Somente nos último vinte anos parece-nos que o direito esteja mais próximo de

abrigar a necessidade de reconhecimento da diferença como uma construção histórica

da humanidade. No processo de ampliação do rol de sujeitos de direitos por meio da sua

especificação, o sistema fundado pelas Nações Unidas passa a levar em conta o

indivíduo não somente na sua generalidade, mas também na sua especificidade. E aí,

com um apelo efetivo as aspectos comunitários e culturais.

A partir da década de 1990, portanto, o reconhecimento formal desses novos

sujeitos de direitos reforça a idéia de que o momento é o do surgimento de novos

direitos, quando na verdade os direitos foram os mesmos, somente foram estendidos a

grupos, minorias e coletividades, tradicionais ou não, até então negligenciadas pelo

aparato regulatório estatal.

Mas, não se funda um novo pressuposto, que deveria ser o do sujeito capaz, mas

repete o pressuposto da igualdade em detrimento da diferença, segmenta a sociedade e,

conseqüentemente, hierarquiza os sujeitos de direito.

O ponto de partida para a compreensão desse modelo é a hierarquização dos

sujeitos de direito. A idéia de direitos humanos, sobretudo quando se fala de direitos

econômicos, sociais e culturais, como “devires”, baseia-se em estamentos. “Devires

minoritários” enquanto reconhecimento e afirmação de categorias de pessoas

pertencentes a grupos minoritários que, se tomados juntos, tornam-se maioria.

Estamenta a sociedade em classes sociais e segmenta em minorias étnicas, minorias

religiosas, categorias de trabalhadores, categorias de produtores, categorias de

proprietários, e assim sucessivamente, demonstrando a falibilidade do sistema que

institui a igualdade formal como resultante de pressupostos éticos e morais universais.

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Assim, os direitos das coletividades nega o sujeito de direito enquanto homem

capaz. Reproduz formas de aprisionamento, hierarquização, segregação e domesticação

do ser humano.