padre antônio vieira sermõesii_1

Upload: adrianoweber

Post on 10-Jul-2015

68 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

7MINISTÉRIO DA CULTURA Fundação Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro SERMÕESPe. Antonio VieiraSERMÃO DE SANTO ANTÔNIOPREGADOEMEXTRAORDINÁRIO DOROMA, NA IGREJA DOS PORTUGUESES, E NA OCASIÃO EM QUE O MARQUÊS DAS MINAS, EMBAIXADOR PRÍNCIPE NOSSO SENHOR, FEZ A EMBAIXADA DE OBEDIÊNCIA À SANTIDADE DE CLEMENTE X.Vos estis lux mundi.1 §I Um português italiano e um italiano português celebra hoje Itália e Portugal. Como o sol, Santo Antônio nasce em uma parte e sepulta-se em ou

TRANSCRIPT

7

MINISTRIO DA CULTURA Fundao Biblioteca Nacional Departamento Nacional do Livro SERMESPe. Antonio Vieira

SERMO DE SANTO ANTNIOPREGADOEM

EXTRAORDINRIO DO

ROMA, NA IGREJA DOS PORTUGUESES, E NA OCASIO EM QUE O MARQUS DAS MINAS, EMBAIXADOR PRNCIPE NOSSO SENHOR, FEZ A EMBAIXADA DE OBEDINCIA SANTIDADE DE CLEMENTE X.

Vos estis lux mundi.1 I Um portugus italiano e um italiano portugus celebra hoje Itlia e Portugal. Como o sol, Santo Antnio nasce em uma parte e sepulta-se em outra. O que v a Itlia em Pdua, e o que v em Lisboa Portugal. Argumento: Santo Antnio foi luz do mundo porque foi verdadeiro portugus, e foi verdadeiro portugus porque foi luz do mundo. 133. A um portugus italiano e a um italiano portugus, celebra hoje Itlia e Portugal. Portugal a Santo Antnio de Lisboa: Itlia a Santo Antnio de Pdua. De Lisboa, porque lhe deu o nascimento; de Pdua, porque lhe deu a sepultura. Assim foi, mas eu cuidava que no havia de ser assim. Jos, o prodigioso, Jos, o que tanto cresceu fora de sua ptria, mandou que seu corpo fosse levado a ela, e no ficasse no Egito. Em Egito obrou as maravilhas, em Egito recebeu as adoraes, mas no quis que descansassem os seus ossos na terra onde reinara, seno na terra onde nascera. Quis que conhecesse a sua ptria que estimava mais a natureza que as fortunas. Antes quis uma sepultura rasa, em sete ps da terra prpria, que os mausolus e as pirmides egpcias na estranha. Assim cuidava eu que lei de bom portugus devia fazer tambm Santo Antnio, mas quando por parte da ptria me queria queixar do seu amor, atalhou-me o Evangelho com a sua obrigao: Vos estis lux mundi. Reparai, diz o evangelista, que Antnio foi luz do mundo. Foi luz do mundo? No tem logo que se queixar Portugal. Se Antnio no nascera para sol, tivera a sepultura onde teve o nascimento; mas como Deus o criou para luz do mundo, nascer em uma parte, e sepultar-se na outra, obrigao do sol. Profetizando malaquias o nascimento de Cristo, diz que nasceria como sol de justia: Orietur vobs sol justitiae (Mal. 4,2). E que fez Cristo como1 Vs sois a luz do mundo (Mt. 5, 14).

8 sol, e como justo? Como sol, mudou os horizontes; como justo, deu a cada um o seu. Como sol mudou os horizontes, porque nasceu num lugar e morreu noutro; como justo deu a cada um o seu, porque a Belm honrou com o bero, a Jerusalm com o sepulcro. Assim tambm Antnio. Se Lisboa foi a aurora do seu oriente, seja Pdua a sepultura do seu ocaso. 134. Levante Pdua glorioso mausolu s sagradas relquias de Antnio, e veja-se esculpida nas quatro fachadas dele a obedincia dos quatro elementos sujeitos a seu imprio. A terra com os animais prostrados, o mar com os peixes ouvintes, o ar com as tempestades suspensas, o fogo com os incndios parados. Pendurem-se nas pirmides por trofus os despojos inumerveis de sua beneficncia: as bandeiras dos vencedores, as ncoras dos naufragantes, as cadeias dos cativos, as mortalhas dos ressuscitados, e dos enfermos de todas as enfermidades, os votos. Dispa-se a fama para fazer cortinas a este sacrrio, bordadas como fazia a antigidade de olhos, de lnguas e de orelhas. Das orelhas, com que deu ouvidos a tantos surdos; dos olhos, com que restituiu a vista a tantos cegos; das lnguas, com que desimpediu a fala a tantos mudos. E por alma de todo este corpo milagroso, veja-se como hoje se v e adore-se em custdia de Cristal a mesma lngua de Antnio, depois da morte, viva, antes da ressurreio, ressuscitada, apesar da terra, incorrupta, apesar das cinzas, inteira, apesar da sepultura, imortal, e apesar dos tempos, eterna. 135. Isto o que v Itlia em Pdua. E em Lisboa, que v Portugal e o mundo? No se vem ali muitos milagres: v-se ali um s milagre; no se vem os milagres do santo; v-se o milagre dos santos. V-se Antnio sobre os altares, com as mos carregadas de memoriais, como primeiro valido de Deus, e como bom valido, despachados logo. V-se a casa onde nasceu, convertida e consagrada com magnificncia real em suntuoso templo, e v-se, com religiosa razo de estado, fundado sobre as abbadas do mesmo templo, o Capitlio ou Senado daquela triunfante cidade, daquela cidade, digo, que, depois de pr freio ao nunca domado oceano, descobriu, conquistou e sujeitou, e uniu Igreja Romana aqueles vastssimos membros do corpo do mundo, de que Roma j se chamava a cabea, mas ainda o no era. 136. Neste templo e naquele sepulcro se v dividido Antnio entre Portugal e Itlia; nestes dois horizontes to distantes se v dividida a luz do mundo entre Pdua e Lisboa. Gloriosa Pdua, porque pode dizer: Aqui jaz. Gloriosa Lisboa, porque pode dizer: Aqui nasceu. Mas qual das duas mais gloriosa? No quero decidir a questo: dividi-la sim. Fiquem as glrias de S. Antnio de Pdua para a eloqncia elegantssima dos oradores de Itlia. E eu, que me devo acomodar ao lugar e ao auditrio, s falarei hoje de S. Antnio de Lisboa. 137. Para louvor, pois, do santo portugus, e para honra e doutrina dos portugueses que o celebramos, reduzindo estes dois intentos a um s assunto, e fundando tudo nas palavras do Evangelho: vos estis lux mundi, ser o argumento do meu discurso esse: que Santo Antnio foi luz do mundo porque foi verdadeiro portugus, e que foi verdadeiro portugus porque foi luz do mundo. Declaro-me: bem pudera Santo Antnio ser luz do mundo, sendo de outra nao, mas, uma vez que nasceu portugus, no fora verdadeiro portugus, se no fora luz do mundo, porque o ser luz do mundo nos outros homens s privilgio da graa; nos portugueses tambm obrigao da natureza. Isto o que hoje ho de ouvir os portugueses de si e do seu portugus. Ave Maria. II Ser luz do mundo, graa universal da nao portuguesa. Portugal, nico reino do mundo fundado e institudo por Deus. A instituio da Igreja em S. Pedro, e a instituio do Reino de Portugal em D. Afonso Henriques. El-rei D. Afonso Henriques e Gedeo. O nome de Pedro e o nome dos portugueses.

9 Vos estis lux mundi. 138. Fala Cristo nestas palavras com os apstolos, e neles com todos seus sucessores, os vares apostlicos. E porque a obrigao do ofcio apostlico alumiar o mundo com a luz do Evangelho, por isso lhes d Cristo por ttulo o mesmo carter da sua obrigao, chamando-lhes luz do mundo: Vos estis lux mundi. Esta prerrogativa to gloriosa, que nas outras naes graa particular das pessoas, nos portugueses no s particular das pessoas, seno universal de toda a nao. A Pedro e a Joo disse Cristo que eram luz do mundo, mas, ainda que Pedro e Joo eram galileus, no o disse a toda Galilia. A Baslio e Atansio disse Cristo que eram luz do mundo, mas, ainda que Baslio e Atansio eram gregos, no o disse a toda Grcia. A Cipriano e Agostinho disse Cristo que eram luz do mundo, mas, ainda que Cipriano e Agostinho eram africanos, no o disse a toda a frica. A Antnio, porm, disse Cristo que era luz do mundo, e no s o disse a Antnio, que era portugus, seno tambm a todos os portugueses. E qual , ou qual pode ser a razo desta diferena to notvel? A razo porque os outros homens, por instituio divina, tm s obrigao de ser catlicos: o portugus tem obrigao de ser catlico e de ser apostlico; os outros cristos tm obrigao de crer a f: o portugus tem obrigao de a crer, e mais de a propagar. E quem diz isto? So Jernimo ou Santo Ambrsio? No: o mesmo Cristo, que disse: Vos estis lux mundi. 139. glria singular do Reino de Portugal que s ele, entre todos os do mundo, foi fundado e institudo por Deus. Bem sei que o Reino de Israel tambm foi feito por Deus, mas foi feito por Deus s permissivamente, e muito contra sua vontade, porque teimaram os israelitas a ter rei, como as outras naes; porm o Reino de Portugal, quando Cristo o fundou e instituiu, aparecendo a el-rei que ainda o no era Dom Afonso Henriques, a primeira palavra que lhe disse foi: Volo: quero.2 Como o Reino de Portugal havia de ser to filho da Igreja Catlica, e lhe havia de fazer no mundo to relevantes servios, quis Cristo que a sua instituio fosse muito semelhante da mesma Igreja. A S. Pedro disse Cristo: Tu es Petrus, et super hanc petram dedificabo Ecclesiam meam3; a D. Afonso disse Cristo: Volo in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire. A Pedro disse: Quero fundar em ti uma Igreja, no tua, seno minha: Ecclesiam meam. A Afonso disse: Quero fundar em ti um imprio, no para ti, seno para mim: Imperiumn mihi. A Pedro, na instituio da Igreja, no disse: In te, et in semine tuo, porque, como o imprio da Igreja era universal sobre todas as naes do mundo, quis que todas as naes tivessem direito eleio da tiara: o hebreu, como Pedro, o grego, como Anacleto, o romano, como Gregrio, o alemo, como Vtor, o francs, como Martinho, o espanhol, como Calixto, o portugus, como Dmaso. Mas na instituio do Reino de Portugal disse Cristo: In te, et in semine tuo, porque como era, reino particular de uma s nao, quis que fosse hereditrio e no eletivo, para que se continuasse na sucesso e descendncia do mesmo sangue. E por que tudo isto, e para qu? 140. No para o fim poltico, que comum a todos os reinos e a todas as naes, seno para o fim apostlico, que particular deste reino e desta nao. O mesmo Cristo o disse nas palavras com que o instituiu: Ut deseratur nomem meum in exteras gentes: para que, por meio dos portugueses, seja levado meu nome s gentes estranhas. Ainda ento no sabia o mundo que gentes estranhas fossem estas, mas da a 400 anos, quando tambm o mundo se conheceu a si mesmo, ento o soube. Vede se foi instituio Apostlica. De S. Paulo disse Cristo: Ut portet nomem meum coram gentibus;4 dos portugueses disse o mesmo Cristo: Ut deseratur nomem meum in exteras gentes. Aos apstolos disse Cristo: Videte regiones,2 Ex. Alfons, juram. 3 Tu s Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja (Mt. 16, 18). 4 Para levar o meu nome diante das gentes (At. 9,15).

10 quia alba sunt ad messem;5 e aos portugueses disse o mesmo Cristo: Ut sint messores mei in terris longinquis.6 E notai que disse nomeadamente messores: segadores, porque se havia de servir tambm do seu brao e do seu ferro. Quando Cristo apareceu a el-rei D. Afonso, estava ele na sua tenda lendo a histria de Gedeo, no s com um, mas com dois mistrios: Primeiro, para que o rei no desconfiasse da promessa, vendo que os seus portugueses eram poucos. Segundo, para que os mesmos portugueses entendessem que, como soldados de Gedeo, em uma mo haviam de levar a trombeta, e na outra mo a luz (Jz. 7, 20). A Pedro chamou-lhe Cristo Cephas: pedra (Jo. 1, 42), em significao do que havia de ser; os portugueses primeiro se chamaram Tubales, de Tubal, que quer dizer mundanos, e depois chamaram-se lusitanos; lusitanos, para que trouxessem no nome a luz: mundanos para que trouxessem no nome o mundo, porque Deus os havia de escolher para luz do mundo: Vos estis lux mundi. III Os cinco movimentos particulares da luz de Santo Antnio. Primeiro: mudar de religio: Por que deixou S. Antnio a S. Agostinho para seguir S. Francisco? As sagradas quinas, braso e armas de Portugal. As quatro chagas dos cravos e a incredulidade de S. Tom. As cinco pedras de Davi e as cinco chagas de Cristo. 141. Suposta esta verdade to autntica, para que vejamos distintamente quo bem se desempenhou Santo Antnio da obrigao de verdadeiro portugus, e do ttulo de luz do mundo, considero eu na sua luz cinco movimentos muito particulares: 1. mudar de religio; 2. deixar a ptria; 3. embarcar-se e meter-se no mar; 4. dedicar-se a vida converso dos infiis; 5. Vir a Roma, onde estamos, e dar obedincia ao Vigrio de Cristo, como Portugal lha deu agora solenemente, e com tanta solenidade. Parecem muitos os movimentos, mas como so de luz, sero breves. 142. No h coisa que mais parea contrria santidade que a mudana da vocao. Santo Antnio era religioso da sagrada Ordem de Santo Agostinho: ali se graduou de luz, e ali havia de ser. Pois por que muda de hbito e de profisso? Se o fez pela clausura de cnego regrante, para sair, como luz, ao mundo, passara-se aos eremitas, debaixo da mesma regra de Santo Agostinho. Por que deixa logo o seu patriarca, e entre todos os patriarcas escolhe a S. Francisco? Porque era portugus, e resoluto a alumiar o mundo, havia de ser debaixo das quinas de Portugal, debaixo da bandeira das cinco chagas. O mesmo Santo Agostinho, seu padre, chamou as chagas de Cristo bandeiras de luz: Fulgentia redemptionis vexilla. E como entre todos os patriarcas, entre todos os generais da Igreja militante, s Francisco levava diante a bandeira das cinco chagas, s debaixo desta bandeira se devia alistar Antnio, como portugus e como luz do mundo: como portugus, para seguir as sagradas quinas; como luz do mundo, para alumiar com elas aos infiis. 143. Infiel estava Tom, e to incredulamente infiel que dizia e protestava: Nisi videro fixuram clavo-rum, et mittam manum meam in latus ejus, non credam (Jo. 20,25): Se no vir as chagas dos cravos, e no meter a mo na chaga do lado, no hei de crer. Aqui reparo. Para crer e para fazer f, bastam duas testemunhas; as chagas dos cravos eram quatro; pois por que se no contenta Tom com as chagas dos cravos, por que pede tambm a do lado para crer? Porque as chagas dos lados, ainda que eram chagas, no eram quinas: eram quatro, no eram cinco. E para converter infiis, para os render e reduzir a crer, ho de concorrer todas as cinco chagas. Tertuliano: Omnibus divinitatis Christi probationibus instrutus, dixit:5 Olhai para essas terras que j esto branquejando prximas s ceifas (Jo. 4, 35). 6 Para que sejam meus segadores em terras longnquas (Lc. 24.35).

11 Dominos meus, et Deus meus.7 Reduziu-se a infidelidade de Tom, e rendeu-se virtude e eficcia das chagas de Cristo? Sim. Mas notai diz Tertuliano que no se rendeu a parte delas, seno a todas: Omnibus. Crers, Tom, se vires as chagas das mos de Cristo? Non credam. Crers, Tom, se vires as chagas das mos e as dos ps? Non credam. E se vires as duas dos ps e as duas das mos, e tambm a quinta do lado, crers? Ento sim: Dominus meus, et Deus meus. Assim se rendeu a infidelidade de Tom, e assim se rendeu e se havia de render a do mundo. 144. Por isso disse judiciosamente S. Pedro Crislogo que a instncia de Tom em pedir as cinco chagas no s foi incredulidade, seno profecia: Prophetia sane magis, quam cunctatio fuit. Muitas coisas profetizou S. Tom na ndia, dos portugueses, mas esta profecia foi o cumprimento de todas: Que havia de ser conquistada a infidelidade das gentes em virtude das cinco chagas de Cristo; que havia de ser conquistada a infidelidade das gentes, no pelas armas dos portugueses, seno pelas Armas de Portugal. Deu-nos Cristo por armas e por braso as sagradas quinas, e essas quinas foram as nossas armas. Quando os filhos de Israel saram do Egito para a conquista da terra de promisso, saram sem armas, porque lhas vedavam e proibiam os egpcios; e contudo diz o texto que saram armados: Armati ascenderunt filii Israel de terra Aegypti. Pois se saram sem armas, como diz a Escritura que saram armados? Milagrosamente o original hebreu: Ascenderunt filii Israel armati: ascenderunt filii Israel quini et quini (x. 13, 8). Diz que saram armados, porque saram, misteriosamente, cinco e cinco. E como saram cinco e cinco: quini et quini, estas quinas lhes serviro de armas: Ascenderunt quini et quini: ascenderunt armati. Estas foram as armas com que os hebreus conquistaram a Terra de Promisso, estas foram as armas com que os portugueses conquistaram o mundo novo, e estas foram as armas com que S. Antnio conquistou, alumiou e renovou o velho. Oh! soberano Davi, menor, vestido de saial, e vencedor do gigante, em virtude das sagradas quinas! 145. Quando Davi, entre os irmos o menor, houve de sair contra o gigante, que fez? Despe as armas de Saul, veste-se do seu saial, vai-se ao rio, escolhe cinco pedras, e sai: Elegit sibi quinque limpidissimos lapides de torrente (1 Rs. 17, 40). Para o tiro bastava uma s pedra, como bastou. Pois, se bastava uma s, por que leva cinco Davi? Porque, ainda que uma s bastava para o golpe, eram necessrias todas cinco para o mistrio. Aquelas cinco pedras eram as cinco chagas de Cristo; a torrente de que as tirou lavadas era a torrente do seu sangue. E para um homem ou um moo to pequeno, derrubar um gigante to grande, s na virtude das cinco chagas podia ser. Dispa logo Antnio as armas de Agostinho, vista-se do saial de Francisco, e, com as sagradas quinas diante, saia seguro e confiado o menor, que ele vencer o gigante. Estava uma vez pregando Santo Antnio; eis que aparece junto a ele S. Francisco com os braos em cruz, mostrando as chagas. Francisco era o Moiss, Antnio era o Josu; Francisco sustentava a bandeira, Antnio meneava as armas; Francisco arvorava as quinas, Antnio alcanava as vitrias. No corpo de Francisco estava cintilando a constelao das cinco estrelas fixas, e pela boca de Antnio saam os raios e as influncias da luz, que confundia e alumiava o mundo: Vos estis lux mundi.

7 Convencido por todas as provas da divindade de Cristo, disse: Meu Senhor e meu Deus.

12 IV Segundo movimento da luz: deixar a ptria. Sem sair, ningum pode ser grande. Os dois empregos que Cristo fez dos trinta dinheiros por que foi vendido. Como pudera Santo Antnio ser luz do mundo se no sara de Portugal? Portugal seminrio de f e de luz. 146. E se Antnio era luz do mundo, como no havia de sair da ptria? Este foi o segundo movimento. Saiu como luz do mundo, e saiu como portugus. Sem sair, ningum pode ser grande: Egredere de terra tua, et faciam te in gentem magnam,8 disse Deus, ao pai da f. Saiu para ser grande, e, porque era grande, saiu. Ao quinto dia do mundo, criou Deus no elemento da gua as aves e os peixes. E que fizeram uns e outros? Os peixes, como frios e sem asas, deixaram-se ficar onde nasceram; as aves, como alentadas e generosas, mudaram elemento. Assim o fez o grande esprito de Antnio, e assim era obrigado a o fazer, porque nasceu portugus. Uma coisa em que h muito tempo tenho reparado so os dois empregos que Cristo fez dos trinta dinheiros por que foi vendido. O primeiro emprego foi comprar um campo para enterro de peregrinos: Emerunt ex eis agrum figuli in sepulturam peregrinorum.9 O segundo emprego foi esmaltar com os mesmos trinta dinheiros o escudo das armas de Portugal: Ex pretio quo ego genus humanum emi, et quo a judaeis emptus sum, insigne tuum compones.10 Notveis empregos! E que proporo tem o escudo de Portugal com o enterro dos peregrinos, para que o preo de um seja esmalte do outro? Grande proporo. Quis Cristo que o preo da sepultura dos peregrinos fosse o esmalte das armas dos portugueses, para que entendssemos que o braso de nascer portugus era obrigao de morrer peregrino. Com as armas nos obrigou Cristo a peregrinar, e com a sepultura nos empenhou a morrer. Mas, se nos deu o braso, que nos havia de levar da ptria, tambm nos deu a terra, que nos havia de cobrir fora dela. Nascer pequeno e morrer grande chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus to pouca terra para o nascimento, e tantas terras para a sepultura. Para nascer, pouca terra, para morrer, toda a terra; para nascer, Portugal, para morrer, o mundo. Perguntai a vossos avs quantos saram e quo poucos tornaram? Mas estes so os ossos de que mais se deve prezar vosso sangue. 147. Funda-se esta penso de sair da ptria na obrigao de ser luz do mundo. Como pudera Santo Antnio ser luz de Frana e de Itlia, se no sara de Portugal? Para Abrao levar a f Palestina, houve de sair de Caldia; para Cristo derrubar os dolos do Egito, houve de sair de Nazar: ambos desterrados da ptria, mas ambos, como luz, desterrando trevas. No se pode plantar a f sem se transplantarem os que a semeiam. No debalde disse Cristo: Pater meus agricola est.11 Houve-se Deus, com os portugueses, como agricultor de luzes. Semeia o agricultor em pouca terra o que depois h de dispor em muita. Pouca terra era Portugal, mas ali fez Deus um seminrio de luz para a transplantar pelo mundo. Criou Deus a luz no primeiro dia; passou o segundo, passou o terceiro, e ao quarto dia, dividindo aquela mesma luz que tinha criado, formou dela o sol, a lua, e as estrelas, e repartiu-as por todo o firmamento. Pergunto: e esses planetas, esses astros, esses signos e essas constelaes, por que as no formou Deus logo no primeiro dia, seno depois? O mistrio foi, diz S. Baslio, porque quis o supremo artfice do universo debuxar no rascunho da natureza a traa que havia de seguir nas obras da graa. o que vimos na converso do mundo novo. Assim como a luz material primeiro a criou Deus junta em um lugar, e depois a repartiu dali por todas as regies do cu e sobre todas as da terra, umas estrelas ao Plo rtico, outras ao Antrtico, umas ao Norte, outras ao Sul, umas ao Setentrio, outras ao Meio-Dia, assim, para alumiar o Novo8 Sai da tua terra, e eu te farei pai de um grande povo (Gn. 12,1). 9 Compraram com ele o campo de um oleiro, para servir de cemitrio aos forasteiros (Mt. 27,7). 10 Compe o teu braso com o preo pelo qual comprei o gnero humano, e pelo qual me compraram os judeus. 11 O meu Pai o agricultor (Jo. 15,1).

13 Mundo, que tantos sculos havia de estar s escuras, sem ser conhecido dos homens nem ter conhecimento do verdadeiro Deus, que fez o autor da graa? Criou primeiro e conservou separado em Portugal aquele seminrio escolhido de f e de luz, para que dali, dividida e repartida a seu tempo, umas luzes fossem alumiar a frica, outras a sia, outras a Amrica, umas ao Brasil, outras a Etipia, outras a ndia, outras ao Mogor, outras ao Japo, outras China, e desta maneira, transplantada de Portugal, a f se plantasse nas trs partes do mundo. 148. verdade que Portugal era um cantinho, ou um canteirinho da Europa, mas neste cantinho de terra pura e mimosa de Deus: Fide purum, et pietate dilectum, nesse cantinho quis o cu depositar a f que dali se havia de derivar a todas estas vastssimas terras, introduzida com tanto valor, cultivada com tanto trabalho, regada com tanto sangue, recolhida com tantos suores, e metida finalmente nos seleiros da Igreja, debaixo das chaves de Pedro, com tanta glria. Medindo-se Portugal consigo mesmo, e, reconhecendo-se to pequeno vista de uma empresa to imensa, poder dizer o que disse Jeremias, quando Deus o escolheu para profeta das gentes: Et prophetam in gentibus dedi te.12 E que disse Jeremias? Et dixit: A, A, A, Domine Deus, quia puer ego sum (Jer. 1,6): Ah! Ah! Ah! Deus meu, onde me mandais, que sou muito pequeno para tamanha empresa. O mesmo pudera dizer Portugal. Mas tirando-lhe Deus da boca estes trs AAA, ao primeiro A, escreveu frica, ao segundo A escreveu sia, ao terceiro A escreveu Amrica, sujeitando todas trs a seu imprio, como Senhor, e sua doutrina, como luz: Vos estis lux mundi. V Terceiro movimento da luz: embarcar-se e meter-se no mar. Santo Antnio caminha do poente para o levante mostrando o caminho aos portugueses. O caminho do mar, aberto por Deus aos portugueses, e por eles s outras naes. As naus portuguesas, os carros do sol de que fala Habacuc. O profeta Isaas e os antpodas. Os portugueses chegam com as naus onde Santo Agostinho no chegou com o entendimento. Somente um homem passou o Cabo de Boa Esperana antes dos portugueses: Jonas, no ventre da baleia. 149. Mas como Santo Antnio j imos no terceiro movimento como Santo Antnio era a primeira luz destas luzes, ela foi tambm a que lhes abriu e mostrou o caminho, saindo do poente para o levante. No este o curso do sol; porm assim havia de ser, porque era Antnio sol que levava a sade nas asas: Et sanitas in pennis ejus (Mal. 4,2). Pediu el-rei Ezequias a Deus que lhe segurasse a sade em um sinal do sol. E qual foi o sinal? Que o sol trocasse a carreira, e no caminhasse do oriente para o ocaso, seno do ocaso para o oriente. Assim Antnio, e assim os portugueses. Ele do poente para levante, eles do ocaso para o oriente, porque levavam na luz a sade do mundo. E porque o sol, quando desce a alumiar os antpodas, mete o carro no mar e banha os cavalos nas ondas, para que assim o fizessem tambm os portugueses, deixa Antnio a terra, engolfa-se no Oceano, e comea a navegar, levando o pensamento e a proa na frica, que tambm foi a primeira derrota e a primeira ousadia dos nossos argonautas. 150. Mas por que a frase dos cavalos e carro do sol metidos no mar no parea potica e fabulosa, ouamo-la ao profeta Habacuc, que, com novo e levantado estilo, o cantou assim no captulo terceiro: Viam fecisti in mari equis tuis, et quadrigae tuae salvatio13: Vs Senhor diz o profeta fizestes o12 E te estabeleci profeta entre as gentes (Jer. 1, 5). 13 Na Vulgata: Qui ascendes super equos tuos, et quadrigae tuae salvatio: Tu, que montars sobre os teus cavalos, e as tuas carroas so a nossa salvao (Hab. 3, 8). No versculo 15 porm, l-se: Viam fecisti ir mari equis tuis, ia luto aquarum multarum: Tu abriste um caminho aos teus cavalos no mar, ao travs do lado que se acha no fundo das grandes guas (Hab. 3,15).

14 caminho pelo mar aos vossos cavalos e s vossas carroas da salvao. Carroas da salvao e cavalos que caminham pelo mar? Que carroas e que cavalos so estes? Portugallenses in suis navigationibus et conversionibus, disse Genebrardo.14 Mas ouamos antes o mesmo texto. Primeiramente diz o profeta que Deus o que lhes fez este caminho pelo mar: Viam fecisti in mari equis tuis, porque o caminho que fizeram os portugueses era caminho que ainda no estava feito. Por mares nunca dantes navegados. Deus abriu o caminho aos portugueses, e os portugueses o abriram s outras naes. Mareavam sem carta, porque eles haviam de fazer a carta de marear. As suas vitrias arrumaram as terras, os seus perigos descobriram os baixos, a sua experincia compassou as alturas, a sua resistncia examinou as correntes. Navegavam sem carta nem roteiro, por novos mares, por novos climas, com ventos novos, com cus novos e com estrelas novas, mas nunca perderam o tino nem a derrota, porque Deus era o que mandava a via: Viam fecisti in mari equis tuis. Estes eram os cavalos intrpidos e generosos. E as carroas da salvao, quais eram? Eram aquelas cidades nadantes, aqueles poderosssimos vasos da primeira navegao do Oriente, a que os estrangeiros, com pouca diferena de carroas, chamaram carracas. E chama-lhes o profeta carroas de salvao: Quadrigae tuae salvatio, porque, da quilha ao tope, isto o que levavam. Levavam por lastro os padres da Igreja, e talvez as mesmas igrejas em peas, para l se fabricarem. Levavam nas bandeiras as chagas de Cristo, nas antenas a cruz, na agulha a f, nas ncoras a esperana, no leme a caridade, no farol a luz do Evangelho, e em tudo a salvao: Et quadrigae tuae salvatio. Desta maneira entraram pelo mar dentro aqueles novos carros do sol, para levar a luz aos antpodas. Assim o disse, falando letra dos portugueses, o profeta Isaas. No a exposio minha, nem de nenhum portugus; de Vatablo, de Cornlio, de Maluenda, de Toms Bsio, e outros: Ite Angeli veloces ad gentem expectantem, expectantem, ad gentem conculcatam15: Ide depressa, portugueses, ide depressa, embaixadores do cu, levai a luz do Evangelho a essa gente, que h mil e quinhentos anos que est esperando: Ad gentem expectantem, expectantem. Ide, levai a luz do Evangelho a essa gente pisada: Ad gentem conculcatam. Gente pisada? Gentem conculcatam? E qual a gente pisada? No a busqueis, que est muito longe. So os antpodas, que vivem l debaixo dos nossos ps; eles vivem l embaixo, e os nossos ps andam c pisando por cima. To elegantemente o disse Isaas, como profeta de corte. 152. Santo Agostinho teve para si que no havia antpodas. E diz assim no livro 26, De Civitate Dei: Absurdum est, ut dicatur homines aliquos ex hac in illam partem, trajecta Oceani immensitate, navigare et pervenire potuisse, ut etiam illis, ex uno illo primo homine, genus institueretur humanum. Se h tais homens, argumentava Agostinho, so filhos de Ado; se so filhos de Ado, passaram destas partes quelas navegando e atravessando a imensidade do Oceano; tal passagem e tal navegao impossvel: logo, no h tais homens. Grande glria, Antnio, da vossa nao, que chegassem os portugueses a dar fundo com as ncoras onde Santo Agostinho no achou fundo como entendimento; que chegassem os portugueses a fazer possvel como valor o que no maior entendimento era impossvel. Por isso Isaas lhes mandou mais que homens: Ite Angeli veloces. Um s homem passou o Cabo de Boa Esperana antes dos portugueses. E qual foi, e como? Jonas no ventre da baleia. Desembocou a baleia o Mediterrneo, porque no tinha outro caminho, tomou a costa da frica mo esquerda, dobrou o Cabo de Boa Esperana, escorreu a Etipia, passou a Arbia, entrou o sino Prsico, aportou s praias de Nnive, no Eufrates, e, fazendo da lngua prancha, ps o profeta em terra: In profundum projectus est, exceptusque a ceto marino monstro, ac devoratus post triduum fere. Ninivitarum littoribus ejectus, jussa praedicat: diz Sulpcio Severo, no livro I da Histria Sagrada16.14 Os portugueses em suas navegaes e converses. 15 Ide, anjos velozes, a uma gente que est esperando, e pisada dos ps (Is. 18,2). 16 Jogado ao mar, e devorado pela baleia, depois de trs dias foi lanado nas praias ninivitas, pondo-se a pregar o que lhe fora mandado.

15 153. Mas por que fez o profeta esta viagem por debaixo do mar, dentro em uma baleia; por que a no fez por cima da gua, no mesmo navio em que navegava? Porque este milagre do valor, e esta vitria da natureza, no era para os mareantes de Tiro: tinha-o Deus guardado para os argonautas do Tejo. O Tejo era o que havia de dominar o mar; o Tejo era o que havia de triunfar das ondas e dos ventos; o Tejo era o que havia de tirar o tridente das mos ao Oceano, para o pr, reverente, aos ps do Tibre. Faltavam-lhe ao anel de pescados quase as trs partes do crculo, e essas lhe perfez o Tejo como ouro das suas areias. Muito me engano eu, se o no cantou Davi: Dominabitur a mari usque ad mare, et aflumine usque ad terminos orbis terrarum (Sl.71,8). Dominar a Igreja de mar a mar, e do rio: aflumine, at os ltimos fins da terra. E qual o rio que de fim a fim est contraposto aos fins da terra? o rio de Lisboa, o Tejo. Do rio de Lisboa saiu Antnio, e, derrotado da tempestade, foi aportar Itlia para ser luz da Europa. Do rio de Lisboa saram os portugueses, e, medindo a frica, descobrindo a Amrica, chegaram com a luz do Evangelho at os fins da sia, para que, alumiando Antnio a melhor parte do mundo, e alumiando os outros portugueses as trs maiores partes, na unio de todas quatro se devesse inteiramente ao nome portugus o ttulo de luz do mundo: Vos estis lux mundi. VI Quarto e quinto movimento da luz: dedicar-se converso dos infiis, e vir a Roma dar obedincia ao Vigrio de Cristo. Como o ofcio do sol perseguir as trevas, assim tambm os portugueses aos infiis. Para os catlicos o escudo, para os infiis a espada. O ferro portugus e a lana que abriu o lado de Cristo morto. O maior ttulo de Portugal: filho obedientssimo da Sede Apostlica. 154. No se dedicou Antnio este era o quarto movimento, mas por abreviar o ajuntarei com o ltimo no se dedicou Antnio Cristandade, porque so homens com luz; aos infiis o levava o seu esprito, porque era esprito portugus. Glria singular de Portugal, que nem no Reino, nem em toda a Monarquia domine um s palmo de terra que no fosse conquistada a infiis. Tudo quanto dominou a luz neste mundo foi conquistado s trevas, porque elas o possuam primeiro: Tenebrae erant super faciem abyssi, et dixit Deus: Fiat lux. Et facta est lux17. E, assim como o ofcio do sol ir sempre seguindo e perseguindo as trevas e lanando-as fora do mundo, assim tambm os portugueses aos infiis. Estava Portugal pela desgraa universal de Espanha ocupada de maometanos; e que fizeram os portugueses? Do Minho os lanaram alm do Douro, do Douro Estremadura, da Estremadura a Alm do Tejo, de Alm do Tejo ao Algarve, do Algarve s Costas de frica, e ali os foram sempre seguindo e conquistando, at que o peso das armas se passou s conquistas da gentilidade, onde fizeram o mesmo. Sempre como soldados de Cristo, pela f e contra infiis. 155. verdade que algumas vezes tiveram guerra os portugueses contra catlicos, mas guerra defensiva somente, nunca ofensiva. Tem Portugal para os catlicos o escudo, para os infiis a espada. A S. Pedro, que era cabea dos fiis, disse-lhe Cristo, que metesse a espada na bainha; a S. Paulo, que era conquistador da gentilidade, meteu-lhe na mo a espada. Para os infiis a espada sempre nua; para os fiis, na bainha. Com os catlicos paz, com os infiis perptua guerra. Santo Antnio meneou as armas da sua milcia na Itlia e na Frana, mas estes raios da sua luz foram reflexos. Os direitos iam frica, os reflexos foram Europa. Mas ainda a, notai, no se chamou Antnio martelo dos vcios, seno martelo das heresias: Perpetuus haereticorum malleus, porque os vcios acham-se tambm nos catlicos; as heresias, s nos infiis. Por isso Deus, para formar este martelo, foi buscar o ferro s minas de Portugal,17 As trevas cobriam a face do abismo e disse Deus: Faa-se a luz. E foi feita a luz (Gn. 1, 2, 3).

16 porque a dureza natural do ferro portugus para quebrantar e converter infiis. 156. o ferro portugus como o ferro da lana que abriu o lado de Cristo: tirou primeiro sangue, e depois gua: Exivit sanguis et aqua (Jo. 19,34). O sangue para vencer, a gua para batizar os vencidos. Mas qual foi a razo ou o mistrio porque o soldado no deu a lanada no corpo de Cristo vivo, seno no corpo morto? Pela mesma que vou dizendo: O corpo mstico de Cristo, materialmente considerado, todo o gnero humano; os fiis so o corpo vivo, porque corpo informado com a f; os infiis so o corpo morto, porque corpo informe. Quando recebem a f, ento recebem tambm a forma, e se fazem membros vivos do corpo mstico de Cristo, que a Igreja. Para isto se serviu Cristo daquele soldado e da sua lana: Ut sibi Ecclesiam fabricaret18, diz S. Cipriano. Foram sempre os soldados portugueses como os fabricadores do segundo templo de Jerusalm, que com uma mo pelejavam, e com a outra iam edificando. Nenhum golpe deu a sua espada que no acrescentasse mais uma pedra Igreja. Se pelejavam, se venciam, se triunfavam, era para tirar reinos idolatria, e sujeit-los a Cristo, para converter as mesquitas e pagodes em templos, os dolos em imagens sagradas, os gentios em cristos, os brbaros em homens, as feras em ovelhas, e para trazer essas ovelhas de terras to remotas e em nmero infinito ao rebanho de Cristo e obedincia do Sumo Pastor. 157. Assim o fez Santo Antnio em Roma, lanando-se a si e a tantos heresiarcas rendidos aos ps da Santidade de Gregrio IX. Assim o fez el-rei D. Manoel, pondo todo o Oriente aos ps da Santidade de Leo X. E assim o fez ultimamente o Prncipe reinante de Portugal, o muito alto e muito poderoso Senhor nosso, D. Pedro, que Deus guarde, oferecendo solenemente aos beatssimos ps da Santidade de Clemente X, nosso Senhor, o seu Reino, a sua Monarquia toda, e na pessoa excelentssima de seu embaixador, a sua real pessoa, como herdeiro e verdadeiro imitador de seus gloriosos progenitores. A el-rei D. Sebastio, pouco antes de dar a vida pela dilatao da f, ofereceu a Santidade de Pio V que escolhesse ttulo; e que responderia o religiosssimo rei? Respondeu que no queria outro ttulo, seno o de filho obedientssimo da Sede Apostlica. Em cumprimento deste ttulo, trs sucessores continuados do mesmo rei, em espao de vinte e oito anos, estiveram sempre oferecendo Santa Sede a mesma obedincia de filhos. E se a pblica aceitao deste ato se dilatou, foi com ateno e providncia paternal do Vigrio de Cristo, para que, no entretanto, pudesse lograr a Igreja os repetidos exemplos de to constante sujeio e obedincia, perseverando e instando sempre o primeiro rei, o segundo e o terceiro, no s como filhos obedientes, mas como obedientssimos filhos. 158. No filho prdigo, notou agudamente So Pedro Crislogo que chamou pai ao pai, reconhecendo que se no devia chamar filho: Pater, non sum dignus vocari filius tuus.19 Parece implicao. A denominao de filho funda-se na relao de filho; a denominao de pai funda-se na relao de pai, e, conforme a verdadeira filosofia, nas relaes mtuas e recprocas, quando falta uma, falta tambm a outra. Se falta a relao de filho, cessa a de pai; se falta a relao de pai, cessa a de filho. Pois, se da parte do prdigo faltava a relao e denominao de filho: Non sum dignus vocari filius tuus (Lc. 15,19), como da parte do pai no faltou a relao e denominao de pai: Pater? Porque essa foi a maravilha mais que natural diz Crislogo que, faltando no filho a relao de filho, no faltasse no pai a relao de pai: Ego perdidi quod filii est: tu quod patris est non amisisti. Voltemos semelhana. Da parte do Pai universal nunca faltaram os fundamentos prximos da relao, que eram a vontade, o afeto e paternal amor, como sempre reconheceu e experimentou Portugal. Mas que, enquanto no resultava a relao do pai, existisse sempre inteira a relao do filho? Essa foi a maravilhosa prova da verdadeira filiao. Tinha tanto de divina, que no s foi relao, mas subsistncia. Assim havia de ser para qualificar18 Para edificar uma igreja para si. 19 Pai, no sou digno de ser chamado teu filho (Lc. 15,19).

17 Portugal, que no s era filho, mas filho obedientssimo. 159. Bem sabe toda a Europa com quantos discursos, e ainda direitos mal-interpretados, procurou a poltica menos crist tentar a obedincia portuguesa em tantos anos. Mas a sua obedincia obedientssima to longe esteve de dar ouvidos a semelhantes tentaes, que nunca chegou nem ainda a ser tentada, quanto mais vencida. Quando Deus mandou a Abrao que lhe sacrificasse seu filho, diz a Escritura que tentou Deus a Abrao: Tentavit Deus Abraham (Gn. 22,1). Eu cuidava que neste caso o tentado havia de ser Isac. Sacrificar o pai ao filho amado, tentao era; mas que o filho se houvesse de deixar atar, e lanarse sobre a lenha, e aguardar o golpe, e perder a vida, essa era a terrvel tentao. Pois por que diz a Escritura que tentou Deus a Abrao, e no a Isac? Porque Isac era filho obedientssimo. O amor, no pai, podia ser tentado, mas no vencido; a obedincia, no filho, nem vencida nem tentada. 160. Tal foi a de Portugal. To longe de ser vencida, nem ainda tentada no meio de todas essas tentaes que, como filho obedientssimo, sempre esteve multiplicando obedincias sobre obedincias, e mandando embaixadas sobre embaixadas, tantas e por tantos modos. Nas duas primeiras, mostrou-se obediente; na terceira e na quarta, mais que obediente; na quinta e na ltima, obedientssimo. Uma s vez vieram os reis do Oriente a Belm protestar a sua obedincia e oferecer as coroas aos ps de Cristo. Mas como vieram? Chamados primeiro por uma estrela: Vidimus stellam ejus, et venimus.20 A obedincia de Portugal no esperou por estrela para vir, antes, vindo cinco vezes sem estrela, veio tambm a sexta. Mas, porque veio sem estrela seis vezes, por isso o recebeu o cu com seis estrelas 21. Assim recuperou Santo Antnio sua ptria, em um dia, o que tinha perdido e pedido em tantos anos. VII Agradecimento s estrelas do braso de Clemente X. 161. Vivam as clementssimas estrelas eternamente: Quasi stellae in perpetuas aeternitates22. Vivam as clementssimas estrelas, e permaneam, se concedido, sobre os anos de Pedro: Stellae manentes in ordine et cursu suo23, para que, debaixo destas estrelas, como a valente Dbora, triunfe a Igreja do brbaro Sisara, que tanto se vem chegando, mas para sua runa. E se os reis do Oriente, quando lhes apareceu a estrela escondida, gavisi sunt gaudio magno valde24, faa extremos de prazer Portugal, adorando os clementssimos aspectos e a divina majestade destas estrelas, que se na outra estrela opinio que estava um anjo, nestas estrelas f que est Deus. Alegre-se Lisboa, e alegre-se Portugal, e agora se tenha por verdadeiramente restitudo, pois se v restitudo e canonizado. Santo Antnio entrou triunfante no cu no dia de sua morte, mas os sinos de Lisboa no se repicaram milagrosamente seno no dia de sua canonizao, porque no tem Portugal as suas glrias por glrias, seno quando as v confirmadas e estabelecidas por Roma. Muitas graas a Roma, muitas graas s beatssimas estrelas que a dominam. E pois eu lhes no posso oferecer outro tributo, quero fixar ao p delas o meu tema: Vos estis lux mundi. SERMO DE S. ROQUE20 Ns vimos no oriente a sua estrela, e viemos (Mt. 2,2). 21 As armas de Clemente X so seis estrelas. 22 Como as estrelas por toda a eternidade (Dan. 12, 3). 23 As estrelas, permanecendo na sua ordem e no seu curso (Jz. 5, 20). 24 Ficaram possudos de grande alegria (Mt. 2,10).

18PREGADO NA CAPELA REAL, ANO DE 1659, HAVENDO PESTE NO REINO DE ALGARVE

Beati sunt servi illi, quos, cum venerit dominus, invenerit vigilantes: quod si venerit in secunda vigilia, et si in tertia vigilia venerit, et ita invenerit, beati sunt servi illi1. I So Roque, servo da segunda e da terceira vigia, duas vezes bem-aventurado nas vozes do Evangelho, e quatro vezes desgraciado nos sucessos e tragdias da vida. 162. Se h bem-aventurana nesta vida, os servos de Deus a gozam, e se h duas bemaventuranas, tambm as gozam os servos de Deus, porque as gozam os que so mais seus servos. Duas diferenas de servos vigilantes introduz Cristo na parbola deste Evangelho. H uns servos que vigiam nas horas menos dificultosas e arriscadas, ou sejam da noite ou do dia, e a estes chama o Senhor servos bemaventurados: Beati sunt servi illi, quos cum venerit Dominas, invenerit vigilantes. H outros servos que vigiam na segunda e terceira vigia da noite, que so as horas ou os quartos de maior escuro e de maior sono, de maior trabalho e de maior dificuldade, de maior perigo e de maior confiana, e a estes servos, sobre a primeira bem-aventurana, os chama o Senhor outra vez bem-aventurados: Quod si venerit in secunda vigilia, quod si in tertia vigilia venerit, beatti sunt servi illi. Aquele grande servo de Cristo, cujas gloriosas vigilncias hoje celebramos, S. Roque, no h dvida que foi servo da segunda e terceira vigia. Nenhum vigiou, nenhum aturou, nenhum resistiu, nenhum perseverou, nenhum esteve nunca mais alerta e com os olhos mais abertos, nem no mais alto e profundo da noite, nem em noites mais escuras e mais cerradas. Mas quando eu, segundo a regra e promessa do Evangelho, esperava ver a S. Roque duas vezes bem-aventurado por estas vigilncias, em lugar de o ver duas vezes bem-aventurado, acho-o no s duas vezes, seno quatro vezes desgraciado. Desgraciado com os parentes, e desgraciado com os naturais; desgraciado com as enfermidades, desgraciado com os remdios. Se as bem-aventuranas e felicidades prometidas no Evangelho foram s felicidades e bem-aventuranas da outra vida, fcil estava a soltura desta admirao; mas Cristo no promete s queles servos que sero bem-aventurados e felizes na outra vida, seno que o sero, antes, que o so nesta. Assim o dizem e repetem conformemente ambos os textos: Beati sunt servi illi quos, cum venerit Dominus, invenerit vigilantes. Quod si venerit in secunda vigilia, quod si in tertia vigilia venerit, beati sunt servi illi. De maneira que no diz: bem-aventurados sero, seno bem-aventurados so: beati sunt, a primeira vez, e beati sunt a segunda. Pois se os servos vigilantes, e vigilantes da segunda e terceira vigia, so duas vezes felizes, e duas vezes bem-aventurados ainda nesta vida, como se trocou tanto esta regra ou esta fortuna em S. Roque, que, por cada felicidade que lhe promete o Evangelho, achamos nele duas infelicidades, e, por cada bem-aventurana, duas desventuras? Duas vezes bem-aventurado nas vozes do Evangelho, e quatro vezes desgraciado nos sucessos, nos encontros e nas tragdias da vida? Sim. Mas para entender e concordar aquelas promessas com estas experincias, e aquelas bem-aventuranas com estas desgraas, no basta s a luz da terra, necessria a do cu. Peamo-la ao Esprito Santo, por intercesso da Senhora. Ave Maria. II1 Bem-aventurados aqueles servos a quem o Senhor achar vigiando, quando vier; e se vier na segunda viglia, e se vier na terceira viglia, e assim os achar, bem-aventurados so os tais servos (Lc. 12, 37 s).

19 s vezes est a ventura em se dobrarem as desgraas. S. Roque, quatro vezes semelhante a Cristo. Beati sunt, beati sunt servi illi. 163. s vezes est a ventura em se dobrarem as desgraas. Quando buscava o remdio a uma dvida, fui topar com outra maior. Nas primeiras clusulas do Evangelho manda Cristo aos que o quiserem servir sejam semelhantes aos servos que esperam por seu Senhor: Et vos similes hominibus expectantibus dominum suum2. E S. Roque, que tanto serviu e tanto quis servir a Cristo, que o que fez? Em vez de se fazer semelhante aos servos, que esperam pelo Senhor, fez-se semelhante ao Senhor, por quem esperam os servos. Estes servos so os santos, este Senhor Cristo, e, se bem repararmos na vida de S. Roque, ach-lo-emos semelhante, no aos outros santos, seno ao mesmo Cristo, e no s uma vez semelhante a Cristo, seno quatro vezes semelhante. Semelhante a Cristo nascido, semelhante a Cristo preso, semelhante a Cristo crucificado, semelhante a Cristo morto. Pois, santo singular, santo portentoso, santo que em tudo, parece, quereis ir por fora do Evangelho: se vos mandam ser semelhante aos servos quem vos fez, ou como vos fizestes semelhante ao Senhor? Esta , como dizia, a segunda dvida: mas nela temos respondida e desatada a primeira. Pode haver maior bem-aventurana, que chegar o servo a ser semelhante a seu Senhor? No pode. Pois eis aqui quo gloriosamente se despintaram as desgraas de S. Roque, e se transfiguraram todas em bem-aventuranas. As desgraas de S. Roque, dizamos que eram quatro: desgraciado com os parentes, desgraciado com os naturais, desgraciado com as enfermidades, desgraciado com os remdios. Mas como em todas estas que a natureza chama desgraas, se fez S. Roque semelhante a Cristo, pelo mesmo que o chamvamos quatro vezes desgraciado, veio ele verdadeiramente a ser quatro vezes bem-aventurado: bem-aventurado na desgraa com os parentes, porque ficou semelhante a Cristo nascido; bem-aventurado na desgraa com os naturais, porque ficou semelhante a Cristo preso; bem-aventurado na desgraa com as enfermidades, porque ficou semelhante a Cristo crucificado; bemaventurado na desgraa com os remdios, porque ficou semelhante a Cristo morto. De sorte que, pelos mesmos extremos por onde cuidvamos que se nos saa S. Roque do Evangelho, o temos mais alta e mais gloriosamente dentro nele, e no s duas vezes bem-aventurado, seno duplicadamente duas: Beati sunt servi illi, beati sunt. Vamos vendo estas quatro bem-aventuranas realadas sobre as quatro desgraas de S. Roque. E no ser, ao que creio, vista desaprazvel ver beatificar desgraas. III A primeira desgraa de S. Roque: com os parentes, porque o desconheceram como estranhos. A fortuna prspera muda as feies, como no caso de Jos, vice-rei do Egito. Os parentes de S. Roque semelhantes aos amigos de J, porque a sua amizade era com a fortuna e no com a pessoa. A terrvel resposta do esposo s virgens nscias. Como Cristo, veio S. Roque ao seu, e no o receberam os seus, sendo desconhecido dos homens, quando era reconhecido por um animal. 164. A primeira desgraa de S. Roque foi com os parentes. Foi desgraciado S. Roque com os parentes, porque o desconheceram como estranho aqueles que eram seu sangue, e a quem tinha dado o seu. Herdou S. Roque de seus pais o estado de Mompilher, de que eram senhores, junto com muitas riquezas: mas o santo, com maior resoluo do que prometiam seus anos, porque era muito moo,2 E sede vs outros semelhantes aos homens que esperam ao seu senhor (Lc. 12,36).

20 entregou o estado e os vassalos a um seu tio para que o governasse, repartiu as jias e toda a mais fazenda aos pobres, e, pobre como um deles, se partiu peregrino Itlia, para visitar os santos lugares de Roma. Passados alguns anos, que no foram muitos, tornou S. Roque para Mompilher, no mesmo trajo em que se partira, mas nem seu tio, nem algum de seus parentes o conheceram; e assim, pobre e vivendo de esmolas, passou o resto da vida peregrino dentro em sua prpria ptria, necessitado no meio de suas riquezas, e desconhecido dos mesmos que eram seu sangue. 165. Ora, eu no posso deixar de espantar-me muito que os parentes e vassalos de S. Roque desconhecessem em to pouco tempo a um mancebo ali nascido, ali criado, ali servido, ali senhor! Esta mudana e este desconhecimento, ou estava no rosto de S. Roque ou nos olhos dos que o viam. Se nos olhos, to depressa se esquecem? Se no rosto, to facilmente se muda? Eu digo que a mudana no estava nos olhos de quem via, seno na fortuna de quem vinha. Vinha S. Roque a Mompilher em muito diferente fortuna do que ali o viram antigamente, e no h coisa que tanto mude as feies como a fortuna. Vieram os filhos de Jac nos sete anos de fome buscar trigo ao Egito, e, aparecendo diante de seu irmo Jos, que era o vice-rei daqueles reinos, diz o texto sagrado: Cognovit eos, et non est cognitus ab eis (Gn. 42,8): Que Jos os conheceu a eles, e que eles no conheceram a Jos. Notvel caso! Parece que no havia de ser assim, porque os irmos, como eram mais velhos, conheciam de mais tempo a Jos, porque o conheciam desde menino, idade em que ele os no podia conhecer. Os irmos, de uma vez, foram dez, e doutra onze, e mais fcil conhecerem muitos a um, que um a muitos; o tempo da ausncia era igual, porque tanto havia que os irmos no viam a Jos, como Jos a eles. Pois, se todas as razes de conhecimento, ou eram iguais ou maiores da parte dos irmos, como os conheceu Jos a eles, e eles no conheceram a Jos? A razo natural porque Jos tinha mudado a fortuna; seus irmos no a tinham mudado. Os irmos antigamente tinham sido pastores, e agora tambm eram pastores; Jos antigamente tinha sido pastor, agora era vice-rei, e, como os irmos no tinham mudado de fortuna, no tinham mudado de parecer; porm Jos tinha mudado de parecer, porque tinha mudado de fortuna. Ele conhecia os irmos, porque os irmos eram os mesmos; os irmos no o conheciam a ele, porque Jos j era outro. 166. Dificultosa coisa parece que a fortuna faa mudar as feies, mas ainda mal, porque to provada est esta verdade na experincia de cada dia! Melhorou de fortuna o vosso maior amigo, e ao outro dia j vos olha com outros olhos, j vos ouve com outros ouvidos, j vos fala com outra linguagem: o que ontem era amor, hoje autoridade; o que ontem era rosto, hoje semblante. Pois, meu amigo, que mudana esta? Quem vos trocou as feies? Que daqueles olhos benvolos com que me veis? Que daqueles ouvidos atentos com que me escutveis? Que daquele bom rosto com que nos vamos sempre? O que mudou de fortuna, claro est que havia de mudar de feies. 167. E se estas mudanas faz a fortuna prspera, no so menores os poderes da adversa. Restitudo J sua antiga fortuna depois de tantos trabalhos e calamidades, diz o texto sagrado: Venerunt ad eum omnes amici et cognati ejus, qui cognoverunt eum prius (J 42,11): Que vieram visitar a J todos os seus amigos e parentes que o conheceram no primeiro estado: Qui cognoverunt eum prius, J teve trs estados nesta vida: o primeiro, de felicidade, o segundo, de trabalhos, o terceiro outra vez de felicidade. Pois se os amigos e parentes o conheceram no primeiro estado, porque no o conheceram, nem o buscaram no segundo? E se o no conheceram, nem buscaram no segundo, por que o conhecem e o buscam no terceiro? A razo disto no a h; a sem-razo, sim, e esta: Porque os homens costumam conhecer nos outros no a pessoa, seno a fortuna; e como os chamados amigos e parentes de J conheciam nele a fortuna, e no a pessoa, por isso no buscaram a pessoa enquanto a viram necessitada, e buscaram a fortuna, tanto que a viram restituida. De sorte que os amigos de J, bem considerados seus procedimentos, no foram ingratos, porque a sua amizade era com a fortuna, e no com a pessoa. E como eles no faltaram fortuna, ainda que faltaram pessoa, no foi ingratido. Se faltaram pessoa, faltaram

21 a quem no conheciam, mas fortuna, a quem conheciam, no lhe faltaram: tanto que ela voltou, tornaram eles. E como os homens se costumam conhecer pelas fortunas, e no pelas pessoas, que muito que seus prprios parentes, e em sua prpria ptria desconhecessem a S. Roque, pois ele, ainda que trazia a mesma pessoa, vinha em to diferente fortuna. 168. Oh! miservel condio das coisas humanas! Miservel na fortuna adversa, e miservel na prspera. No h fortuna que no traga consigo o desconhecimento. Se prspera, desconheceis-vos; se adversa, desconhecem-vos. E se a fortuna to enganosa que os homens se desconheam a si, que muito que seja to injusta, que os outros os desconheam a eles? S S. Roque no merecia esta ingratido, porque, sendo que se no desconheceu a si na fortuna prspera, o desconheceram os seus na adversa. E que S. Roque entre os seus, e entre aqueles a quem dera o seu, se visse desconhecido, grande desgraa! Se os seus o conheceram e o maltrataram, ingratido era, mas sofrvel; porm, sobre maltratado, ver-se ainda desconhecido, no pode haver maior desgraa. 169. Quando o Esposo divino fechou as portas do cu s virgens que tardaram, o que respondeu s vozes e instncias com que batiam e chamavam, foi: Nescio vos: No vos conheo. Breve palavra, mas digna de grande reparo. Se lhes dissera que as no admitia, que as no queria em seu servio, que no entrariam mais em sua casa, e muito menos em sua graa, pois lhe tinham faltado em ocasio de tanto gosto e empenho, merecedor castigo era de tamanho descuido; mas Deus, que tudo conhece, nem pode deixar de conhecer, que lhes diga: Nescio vos: No vos conheo? Levado desta admirao S. Joo Crisstomo, e no lhe ocorrendo com que dar sada a to profundo encarecimento, exclamou dizendo: O verbum ipsa gehenna durius! palavra, Nescio vos, mais dura que o mesmo inferno! Fechar Deus as portas do cu a estas desgraciadas criaturas foi conden-las ao inferno, mas com ser o inferno o mais duro e mais terrvel castigo que Deus d, nem pode dar, pois privao de sua vista, a palavra Nescio vos ainda foi mais dura e mais terrvel. Por qu? Porque os condenados do inferno, posto que Deus os tem lanado de si para sempre, conhece-os; porm o estado em que uma miservel criatura, sobre condenada sem remdio, se veja ainda e se considere no conhecida, se h extremo de misria, de dor e de desesperao que se possa imaginar maior que o do mesmo inferno, este sem dvida, e no outro: O verbum, nescio vos, ipsa gehenna durius! 170. Tal era o estado quanto pode ser nesta vida a que S. Roque chegou por amor de Cristo. No s de condenado a crcere perptuo, e sem remdio como logo veremos mas, sobre condenado, no conhecido: Nescio vos. E sendo este estado pior que o do inferno, que diga o evangelista que S. Roque era contudo bem-aventurado? Beati sunt servi illi? Sim, porque nesta mesma desgraa foi S. Roque semelhante a Cristo nascido. E que maior bem-aventurana que parecer-se o servo com seu Senhor, em qualquer estado que seja? 171. Nasceu Cristo neste mundo com o desamparo que sabemos, e, querendo-o encarecer So Joo Evangelista, ponderou-o com estas palavras: In mundo erat, et mundus per ipsum factus est, et mundus eum non cognovit: in propria venit, et sui eum non receperunt (Jo. 1, l0 s): Estava no mundo, e, sendo que o mundo foi feito por ele, no o conheceu o mundo; veio sua prpria casa, e no o receberam os seus. Pois valha-me Deus, evangelista entendido, evangelista amante, se quereis ponderar as razes de dor que houve no nascimento de Cristo, no estavam ali as circunstncias do tempo, e as do lugar? O rigor do inverno, o desabrigo do portal, a aspereza das palhas, o pobre, o humilde, o desprezado da manjedoura? E se no quereis mais que acusar o desumano dos homens, por que no ponderais a ingratido com que no amaram a Cristo, seno a cegueira com que o no conheceram: Et mundus eum non cognovit? porque Cristo, como quem to bem sabia pesar as razes de dor, sentiu mais o ver-se desconhecido naquela hora, que o ver-se desamado. A ingratido que desama, grande ingratido , mas a ingratido que chega a desconhecer, a maior e a mais ingrata de todas: In mundo erat, et mundus per ipsum factus est, et

22 mundus eum non cognovit. Parece que no acaba o evangelista de lhe chamar mundo: estava no mundo, e, sendo que fora feito por ele o mundo, no o conheceu o mundo. Isto ser mundo: Inpropria venit, et sui eum non receperunt: Veio ao seu, e no o receberam os seus. Por dois ttulos eram seus estes que no receberam a Cristo: eram seus pelo ttulo da criao, e seus pelo ttulo da Encarnao; pelo titulo da criao, porque eram feitura sua; pelo ttulo da Encarnao, porque eram sangue seu. E que, sendo seus por tantos ttulos, e vivendo do seu e no seu, o no conhecessem? Grande ponderao do que Cristo quis sofrer aos homens, e grande tambm do que S. Roque soube imitar a Cristo. A semelhana to semelhante, que no h mister aplicao: In propria venit et sui eum non receperunt. Veio S. Roque ao seu, e no o receberam os seus; veio ao seu, porque veio ao seu patrimnio, ao seu estado, sua casa, sua corte; e no o receberam os seus, porque os seus vassalos, os seus criados, os seus amigos, os seus parentes o trataram como estranho: Mundus per ipsum factus est, et mundus eum non cognovit. At aqueles a quem ele tinha feito, a quem tinha levantado, a quem tinha dado o ser porque lhes tinha dado o que eram, quando renunciou neles o que tinha sido at esses o desconheceram. 172. E para que neste desconhecimento lhe no faltasse a S. Roque nenhuma semelhana de Cristo nascido, teve tambm a companhia e piedade de um animal, que, sustentando-o no mesmo tempo, e regalando-lhe as feridas, agravava mais a chaga da ingratido, e fazia mais desumana a correspondncia dos homens. O que mais peso fazia ao sentimento de Cristo no prespio, era a considerao de que o desconheciam os homens, quando o conheciam os animais. Assim o significou o mesmo Senhor por boca de outrem, como quem ainda no podia falar: Cognovit bos possessorem suum, et asinus praesepe Domini sui; Israel autem me non cognovit: Conheceu o boi e o jumento o prespio de seu Senhor, e Israel no me conheceu a mim3: Que se visse Cristo desamparado dos homens e bafejado dos animais, que se visse S. Roque desconhecido do seu sangue e sustentado da piedade de um bruto, grande circunstncia de dor! Porque no h coisa que mais lastime o corao humano, que as ruins correspondncias dos homens vista de melhores procedimentos nos animais. Grande sem-razo foi que os ministros de Babilnia lanassem no lago dos lees a Daniel; mas, vista do respeito que lhe guardaram os mesmos lees, ainda tem mais quilates a sem-razo. Que reconheam as feras esfaimadas a inocncia do servo de Deus, e que homens, com nome e obrigao de sbios, a persigam e a condenem? Rara desigualdade! Grande foi a crueldade da rainha Jezabel em perseguir e querer matar ao profeta Elias, mas, vista da piedade com que o sustentavam os corvos, ainda tem mais horrores aquela crueldade. Que sustente a vida a Elias a voracidade dos corvos, e que queira tirar a vida a Elias a desumanidade de uma mulher? Rara dissonncia! Grande foi o atrevimento com que o profeta Balao se arrojou a querer amaldioar o povo de Deus, mas, vista do animal em que caminhava, tem ainda mais deformidades o atrevimento. Que solte a lngua um animal, para pedir razo a um profeta, e que use um profeta de to pouca razo que ouse soltar a lngua contra o mesmo Deus? Rara desproporo! Eis aqui o que agravava o sentimento a S. Roque, como a Cristo nascido. Verem-se desconhecidos dos homens, quando se viam conhecidos dos brutos! Em Cristo, pudera-se chamar desgraa, porque se parecia conosco; em S. Roque, era verdadeiramente bemaventurana, porque se parecia com Cristo. Beati sunt servi illi.

3 Conheceu o boi a seu possuidor, e o jumento o prespio de seu dono, mas Israel no me conheceu (Is. 1,3).

23 IV A segunda desgraa de S. Roque: ser desgraciado com os naturais. Em Itlia, tratado como inimigo, porque era de Frana; em Frana, tratado como traidor, porque viera de Itlia. Homem de dois hemisfrios, como a lua, duas vezes inimigo: foi o que presumiram de S Roque franceses e italianos. As trs negaes de S.Pedro, e as trs dvidas de Cristo. A dvida e a fidelidade. A lealdade de Jos do Egito. Nas mesmas prises foi S Roque semelhante a Cristo, preso por zelo da ptria. As cadeias de S Roque e a comdia de Jos. 173. A segunda desgraa de S. Roque foi ser desgraciado com os naturais. Quando S. Roque fez a sua peregrinao de Frana para Itlia, havia guerra entre Itlia e Frana, e desta guerra lhe sucederam ao santo duas coisas notveis: a primeira que, chegando Itlia, os italianos o trataram como a inimigo e o feriram; a segunda que, tornando para Frana, os franceses o trataram como a traidor, e o prenderam por espia. H maior desgraa que esta? Que em Itlia me tratem como inimigo, porque sou de Frana, e que em Frana me tratem como traidor, porque venho de Itlia? S. Roque peregrinou de Frana para Itlia por amor de Deus, e tornou de Itlia para Frana por amor da ptria; e que, quando vou em servio de Deus, me tenham por inimigo, e, quando venho em servio da ptria, me tenham por traidor? Desgraa grande! 174. A maior circunstncia de desgraa, que eu aqui considero, que, no sendo merecida da parte de quem a padecia, parecia justificada da parte de quem a causava, porque em tempo que Frana e Itlia andam em guerras, ter entrada em Itlia, e ter entrada em Frana, no so bons indcios. No quarto dia da criao do mundo, criou Deus o sol, a lua e as estrelas, e diz o texto sagrado que um dos ofcios que Deus deu a estas tochas do cu foi que dividissem a noite e o dia: Ut dividant diem ac noctem. Que o sol e as estrelas dividam o dia e a noite, parece-me muito bem aplicado ofcio, porque, em havendo sol, no h noite, em havendo estrelas, no h dia. Porm a lua! Como pode ser que a lua a fizesse Deus para dividir a noite do dia? A lua, se bem advertirdes, uns dias anda de dia, outros dias anda de noite. Pois se a lua tem entrada com a noite e tem entrada com o dia, como a fez Deus para dividir o dia e a noite? porque ningum divide melhor, que quem tem entrada com ambos. O sol e as estrelas dividem muito bem, porque o sol divide o dia da noite, e as estrelas dividem a noite do dia; mas a lua divide muito melhor, porque tem entrada com ambos, e divide duas vezes: como tem entrada de dia com o sol, divide o dia da noite, e como tem entrada de noite com as estrelas, divide a noite do dia. De modo que a lua faz guerra a ambos, porque tem entrada com ambos. Oh! livre Deus o mundo destas luas! Ou bem da parte do dia, ou bem da parte da noite; ou bem com o sol, ou bem com as estrelas. Homem de dois hemisfrios duas vezes inimigo. O mesmo presumiram de S. Roque os italianos e os franceses: os franceses, como o viam ter entrada em Itlia, cuidavam que era inimigo de Frana, e os italianos, como o viam ter entrada em Frana, cuidavam que era inimigo de Itlia. O santo nada disto era, mas parecia tudo. Era o cidado mais fiel, era o filho mais amigo, era o zelador mais verdadeiro, que nunca teve a sua ptria, e contudo a priso, ainda que no merecida, era justificada. No havia prova para o crime, mas havia indcios para a dvida. E em matria de f e amor da ptria, um peito to nobre e to generoso como o de S. Roque, padecer a afronta ou o desar desta dvida, era a maior e mais penosa desgraa que lhe podia suceder. 175. Perguntou Cristo trs vezes a S. Pedro se o amava: Diligis me? Diligis me? Diligis me (Jo. 21,16)? E certo que estas trs perguntas e estas trs repeties no foram sem grande mistrio. Santo Agostinho e Santo Toms dizem conformemente que foram trs as perguntas, para que, respondendo Pedro trs vezes a elas, satisfizesse as trs vezes que havia negado: Trinae negationi redditur trina confessio. Divinamente advertido; mas dem-me licena agora estes grandes lumes da Igreja para que, aos raios da sua mesma luz, veja eu mais alguma coisa nesta satisfao das negaes de S. Pedro. Nas trs

24 negaes de Pedro houve trs culpas e houve trs injrias. Houve trs culpas, porque trs vezes faltou Pedro sua obrigao; e houve trs injrias, porque trs vezes fez injria a seu Mestre e seu Senhor, negando-o. As injrias pediam satisfao, as culpas pediam castigo, e tudo se fez neste caso. As trs injrias satisf-las Pedro com as trs respostas; as trs culpas castigou-as Cristo com as trs perguntas. As trs injrias satisf-las Pedro com as trs respostas e isto o que diz S. Agostinho e Santo Toms porque confessou Pedro trs vezes, como trs vezes tinha negado: Trinae negationi redditur trina confessio. As trs culpas castigou-as Cristo com as trs perguntas, e isso que eu acrescento e provo, porque perguntar Cristo trs vezes a So Pedro se o amava, era mostrar que duvidava de sua f e de seu amor. E duvidar o prncipe do corao do vassalo a maior pena e o maior castigo que lhe pode dar, e mais em tal pessoa como S. Pedro, que j nesta matria tinha telhado de vidro. E se no, vede se lhe doeram as perguntas: Et contristatus est Petrus, quia dixit ei tertio: amas-me? (Jo. 21, 27): Entristeceu-se e afligiu-se Pedro de lhe fazer Cristo tantas perguntas sobre o seu amor. As perguntas que o entristeciam, sinal que lhe tocavam no vivo, e lhe chegavam ao corao. E por que no faa reparo dizer eu que foram castigo as perguntas, o mesmo Agostinho, falando desta tristeza que nasceu delas a S. Pedro, diz que foi em pena do seu antigo pecado, porque, ainda que estava perdoado quanto culpa, no estava perdoado de todo quanto pena. De maneira que tal pena e tal castigo uma dvida em matria de f e de lealdade, que, quando Cristo quis que pagasse inteiramente S. Pedro a culpa de o haver negado, no lhe buscou outra pena nem outro castigo. Castigou as trs negaes com trs dvidas, e porque lhe tinha negado trs vezes a f, duvidou-lhe trs vezes o amor: Contristatus est Petrus, quia dixit ei tertio: amasme? 176. Mas, poder dizer algum que castigar negaes com dvidas no foi proporcionado castigo, porque a dvida pesa muito menos que a negao. Ora estimo que se ponha em balana este ponto, ainda que nos detenhamos mais um pouco nele, pois matria to prpria do tempo presente, e que tanto importa s honras dos que padecem as dvidas como s conscincias dos que as fazem padecer. Respondo pois e digo que foi a pena muito proporcionada culpa, em castigar Cristo trs negaes com trs dvidas, porque, em pontos de f e de lealdade, tanto peso tem uma dvida, como uma negao. 177. No captulo I De Haereticis se define que o duvidoso na f herege: Dubius infide est haereticus. Esta definio fundada na doutrina comum dos Padres, confirmada por muitos pontfices, e geralmente recebida de todos os canonistas e telogos. Contudo, no deixa de ser dificultosa a razo dela. Heresia erro contra a f; para haver erro necessrio juzo; quem duvida no julga, porque no nega nem afirma: logo no pode ser herege. E se herege o que duvida, em que consiste a sua heresia? Eu o direi. Quem nega a uma proposio de f, diz que falsa; quem a duvida, ainda que no diga que falsa, supe que o pode ser, e tanto ofende a f quem supe que pode ser falsa, como quem diz que o . Antes digo que maior injria faz f quem a duvida que quem a nega, porque quem a nega pode-a ofender em um s artigo, e quem a duvida ofende-a em todos. O mesmo passa na f humana, a qual em nimos generosos, nem deve ser menos delicada, nem menos sensitiva. Quem nega a minha lealdade, diz que sou desleal; quem ma duvida, ainda que no diga que sou desleal, supe que o posso ser, e tanto me ofende, no s na honra e primor da fidelidade, seno na inteireza, na constncia e no ser dela, quem supe que posso ser desleal, como quem diz que o sou. 178. Vejamos discorrer neste ponto um dos homens mais leais que teve o mundo. Tentou a egpcia descobertamente a Jos, e respondeu ele que no podia ser desleal a seu Senhor, a quem tanta confiana e tantas obrigaes devia: Ecce Dominus meus, omnibus mihi traditis, ignorat quid habeat in domo sua; quomodo ergo possum hoc malum facere?4 Neste quomodo possum reparo muito. Por que no disse Jos:4 Eis que meu Senhor, depois de me ter entregue tudo, ignora o que tem em sua casa; como pois posso eu cometer esta maldade

25 no quero, seno: no posso? Por que no disse: no quero, por no ser infiel e desleal a meu Senhor? Por que no disse: no quero, porque se pode vir a saber? Por que no disse: no quero por temor da infmia, no quero por temor da vida? Enfim, por que no disse por qualquer outro motivo: no quero, seno: no posso? Porque se deu Jos por mais afrontado na suposio da egpcia, que na mesma tentao. Esta mulher com a sua tentao, diz Jos, provoca-me a ser desleal: quem me provoca a ser desleal, j no seu pensamento supe que o posso ser. E quem supe no seu pensamento que posso ser desleal, nesta suposio e neste pensamento j me tem gravemente ofendido. Antes, mais me ofende e mais me tem ofendido nesta suposio e conceito infame que tem de mim, que na mesma tentao, porque a tentao argi deslealdade no que ela deve ser e no , e a suposio admite infidelidade no que eu devo ser, e sou. Pois, para que saiba e se desengane a egpcia, que supe um impossvel, e que no posso eu ser desleal, como ela cuida, por isso responde Jos suposio do pensamento, e no ao requerimento da tentao; por isso no disse: no quero, seno: no posso: Quomodo ergo possum? 179. Oh! servo verdadeiramente leal! Oh! nimo verdadeiramente honrado e generoso! Quantos parecem muito leais e fiis, porque no h quem lhes puxe pela capa! Por isso a largou Jos, como afrontada e no sua. Mas no deixemos sem ponderao o que mais disse. As palavras: Quomodo possum ergo hoc malum facere, acrescentou Jos: et peccare in Deum meum? Como posso eu cometer esta deslealdade a que me provocas, e pecar contra meu Deus? Segue-se logo, Jos vede o que dizeis segue-se logo que, em matria de deslealdade, no podeis pecar. Assim se segue, e assim , e assim o creio de mim, diz Jos. Nas outras matrias, basta no ser pecador; na matria de lealdade necessrio ser impecvel. Em pontos de lealdade, quem no impecvel desleal. Vede se a uma honra to delicada, e to escrupulosa, e to honrada como esta, a ofenderia mui sensivelmente s a imaginao de um possvel. A lealdade, que no to sutil como isto, mui grosseira lealdade. H-se de ofender a verdadeira lealdade da suposio de um possvel em pensamento, e to herege h de ser da minha f quem ma duvide, como quem ma negue. 180. Estas dvidas, estas suspeitas, estas suposies, estas afrontas padecia S. Roque na sua priso, e todas as ponderaes do nosso discurso eram fuzis de que ele formava outra cadeia muito mais dura e mais pesada nobreza de seu nimo, do que eram as de ferro, que lhe prendiam e atavam o corpo. Quando os irmos do mesmo Jos se viram prender no Egito por espias, de que estavam to inocentes, grande foi a sua aflio, mas l acharam a culpa deste castigo e o motivo desta desgraa, na deslealdade to cruel que tinham usado com seu irmo: Merito haec patimur quia peccavimus in fratrem nostrum5. Porm a inocncia sempre leal, e a lealdade sempre inocente de So Roque, que por uma ocasio to pia, como ir da sua ptria peregrino a Roma, se veja dentro na mesma ptria com a honra em opinies, com a vida em riscos, e com as mos e ps em cadeias? Brava desgraa! Contudo o Evangelho ainda insiste em que foi bem-aventurado: Beati sunt servi illi. E por qu? Porque nestas mesmas prises foi S. Roque semelhante a Cristo preso. 181. Quando S. Roque estava na sua priso, concorriam ao crcere os enfermos de todo o gnero, os cegos, os mancos, os aleijados, e era coisa maravilhosa de ver, que, estando o santo s escuras, dava olhos; tendo as mos atadas, dava mos, e, no tendo uso dos ps, dava ps, e todos levavam sade. Pois, homens cruis, homens mpios, homens brbaros, vedes estes prodgios, vedes estes testemunhos do cu, vedes estes sinais manifestos da onipotncia, e no rompeis esse crcere, no quebrais essas cadeias? possvel que, vista de tantas maravilhas, haveis de deixar estar preso ao autor delas? Sim, porque assim era necessrio que fosse para ser semelhante S. Roque a Cristo preso. Vieram os inimigos de Cristo a(Gn. 39,8 s)? 5 Justamente padecemos estas coisas, porque pecamos contra o nosso irmo (Gn. 42,21).

26 prend-lo por zelo da ptria que tambm se pareceu a priso de S. Roque de Cristo na causa como na inocncia disse o Senhor: Ego sum (Jo. 18,5): Eu sou, e caram subitamente a seus ps todos os que o iam prender. Quis-se aproveitar da ocasio S. Pedro, e seguir a vitria, tira pela espada, faz golpe cabea do primeiro, leva-lhe a orelha, mas o Senhor, mandando meter a espada no lugar da espada, ps tambm a orelha no lugar da orelha, e ficou em presena e nos olhos de todos como se no fora cortada. Que vos parece agora que fariam aqueles homens vista de dois milagres to grandes, to patentes, to sbitos? Parecia-me a mim que se haviam de levantar todos, e irem-se lanar aos ps de Cristo; mas o que fizeram foi o contrrio: Iniecerunt manus in Jesum, et tenuerunt eum (Mt. 26,50). Em vez de se lhe lanarem aos ps, puseram-lhe as mos e prenderam-no. Vede se se parece a priso de S. Roque com a de Cristo; a ambos no valeram os milagres contra as prises. Cristo milagroso e S. Roque milagroso, mas Cristo preso e S. Roque preso. 182. Ainda no est descoberto o mais fino da semelhana. Se Cristo com uma palavra: Ego sum: eu sou, faz cair de repente a seus ps todos os que o queriam prender, porque se deixa ir preso? E se queria como certo que queria que o prendessem, por que faz que caiam primeiro a seus ps com dizer: eu sou? A razo foi porque nos quis Cristo mostrar quanto tinha de fineza o deixar-se prender por ns. Deixar-se prender um homem, ainda que seja inocente, no coisa nova; mas um homem, que com dizer: eu sou, pode fazer cair a seus ps os mesmos que o prendem, que se deixe prender contudo por amor de outrem, grande fineza! Tal foi a de Cristo, tal foi a de S. Roque. Prenderam a S. Roque seus prprios vassalos, na sua prpria cidade, porque, como deixamos dito, vinha to mudado de trajos, e ainda de pessoa, que o no conheceram. Se S. Roque se descobrira, se S. Roque dissera: Ego sum: Eu sou, os mesmos que o prenderam, haviam de cair a seus ps e beijar-lhe a mo, como a seu verdadeiro senhor. E que podendo S. Roque fazer cair a seus ps os mesmos que o prendiam com dizer: eu sou, se deixasse prender contudo, por amor de Cristo? Fineza foi s como de Cristo e como sua. Muitos santos houve que estiveram presos muitos anos por amor de Cristo, mas a priso e a liberdade estavam na mo dos tiranos; porm S. Roque esteve preso quase todos os anos da vida, tendo a priso e a liberdade na sua mo. 183. Na vida dos Padres se conta que um santo penitente se prendeu em um deserto a uma cadeia, e, para se no poder saltar em toda a vida, lanou a chave ao mar; ao outro dia saiu praia um peixe com a chave na boca, e foi revelado ao santo que mais se agradaria Deus de que se deixasse estar preso tendo a chave na mo. Esse o verdadeiro sacrifcio da liberdade. Prender-se e lanar a chave ao mar, prenderse uma vez; prender-se e deixar as chaves consigo, estar-se prendendo sempre. Eis aqui a diferena que fazem as cadeias de So Roque s cadeias de S. Pedro e dos outros santos. S. Pedro esteve preso alguns dias, mas a chave estava na mo de Herodes. Jos esteve preso dois anos, mas a chave estava na mo de Fara. Porm S. Roque esteve preso toda a vida, e tinha a chave na sua mo. Bastara dizer S. Roque: eu sou, para trocar o crcere com o palcio, os ferros com as jias, a infmia com a honra, as injrias com os aplausos, as afrontas com as aclamaes, e contudo no quis dizer: Eu sou. Com outro eu sou, no Egito: Ego sum Joseph, frater veste,6 se trocaram aos irmos de Jos as tristezas em festas, as fomes em banquetes, os temores em parabns, e as prises em abraos. Mas S. Roque, no escuro teatro da sua priso, quis antes representar a tragdia de Cristo, que a comdia de Jos, e no disse: eu sou, porque no queria ser ele, queria ser Cristo por viva imitao, e assim o foi. E quem foi to venturoso, que, sendo servo, se pareceu com seu Senhor, no se diga que desgraciado, seno bem-aventurado: Beati sunt servi illi. V

6 Eu sou Jos, vosso irmo (Gn. 45, 4).

27 A terceira desgraa de S. Roque: ser desgraciado com as enfermidades. Trata primeiro o autor da desgraa dos remdios. Os fabricadores da Arca de No, os mais desgraciados homens do mundo. O temor de S. Paulo. S. Roque em remediar aos outros e morrer sem remdio, se pareceu com Cristo morto. Cristo morto com o remdio em que dava a vida a todos, pregado nos braos; Roque morto com o remdio em que dava a vida a todos, formado nas mos. 184. A terceira desgraa de S. Roque foi ser desgraciado com as enfermidades; mas haveis-me de dar licena para que troque o lugar a esta desgraa e a deixe para o fim, porque quero acabar com ela, como to prpria de tempo presente, e por isso abreviarei este ponto. Primeiro trataremos da desgraa dos remdios; depois falaremos na desgraa das enfermidades. E provera a Deus que fizera o vosso cuidado o que agora faz o meu discurso, porque primeiro se padecem as enfermidades, e depois se trata dos remdios: por isso, so os remdios desgraciados. 185. Foi S. Roque desgraciado com os remdios, porque curando milagrosamente a todos os apestados, ele morreu de peste. Pode haver maior desgraa que esta? Que, dando um homem remdio aos outros, lhe falte o mesmo remdio para si? No pode haver maior desgraa! A maior e mais geral desgraa que se padeceu no mundo foi o dilvio universal: mas se nesta desgraa comum houve homens mais mofinos e mais desgraciados que os outros, quem pode duvidar que foram os fabricadores da Arca de No? Tantos anos estiveram estes homens fabricando aquela nova mquina nunca vista no mundo, em que se haviam de salvar as relquias dele, j cortando, j serrando, j lavrando, j medindo, j ajustando, j pregando,j calafetando, j breando, e que no cabo entrassem na arca No e seus filhos, e os animais de todas as espcies, e se salvassem nela do dilvio, e que os mesmos que a tinham fabricado, ficassem de fora e perecessem afogados? Brava desgraa! Que fabricssemos ns o instrumento da salvao para os outros, e que eles se salvem, e ns pereamos? Que a arca fosse trabalho nosso, e no seja salvao nossa, seno sua? Que custa de nosso suor e de nossos braos se salvem eles, e que vista da sua salvao nos percamos ns? Oh! desgraa! Oh! mofina! Oh! desventura sem igual! Agora se entender a energia de umas palavras de S. Paulo, muito repetidas, mas no sei se bem pesadas: Castigo corpus meum, et in servitutem redigo, ne cum aliis praedicaverim, ipse reprobus efficiar (1 Cor. 9,27): Fao penitncia, diz S. Paulo, para que pregando aos outros, no me condene a mim. Reparai muito naquele: para que pregando aos outros. 186. A razo de no se querer condenar um homem to cabal, que no h mister ajudada de outra. Pois se S. Paulo d por razo a sua penitncia o no se querer condenar, porque acrescenta a circunstncia de ser pregador: Ne cum aliis praedicaverim? Irem ao inferno os que no so pregadores, pequena misria? Grande misria , mas em gnero de desgraa muito menor. A maior desgraa de todas no se salvar um homem; mas no se salvar um homem que tem por exerccio salvar aos outros, ainda maior desgraa que a maior de todas as desgraas. E tal seria a de Paulo se sendo pregador e ministro da salvao dos outros, ele se no salvasse. Oh! quantos desgraciados h destes no mundo, em todos os estados! Quantos prelados h que curam as almas das ovelhas, e tm enfermas as suas! Quantos governadores que guiam e encaminham os povos, e eles se desgovernam e desencaminham! Quantos conselheiros que do muito bons conselhos aos outros, e eles perdidos e desaconselhados! Caifs era Sumo Sacerdote: ensinou o remdio com que se havia de salvar o mundo, e ele ficou sem remdio. Moiss era governador do povo de Deus: introduziu as tribos na Terra de Promisso, e ele ficou de fora. Aquitofel era o melhor conselheiro daquela idade, e, vivendo tantos prncipes do seu conselho, ele foi to malaconselhado, que se matou com o seu. Oh! que grande desgraa esta! Todos a dar remdios a tudo, e ningum a tomar remdio. No s nos homens, em que as desgraas so conseqncia dos vcios, mas at nas mesmas virtudes acho esta desgraa. Que maior virtude que a f? Sem f ningum se pode salvar; mas em

28 todos os que se salvam se perde a f, porque se no pode conservar com a vista. Que no possa haver cu sem f, e que no possa haver f no cu? Virtude que mete aos outros no cu, e fica de fora? Virtude que salva aos outros, e se perde a si? Se nas virtudes pode haver desgraa desgraciada virtude! Tal era a virtude milagrosa de S. Roque: dava remdio aos outros, e ele morreu sem remdio. Mas, sendo esta desgraa to grande, diz contudo o evangelista que foi bem-aventurado S. Roque: Beati sunt servi illi, porque em remediar aos outros e morrer sem remdio, se pareceu S. Roque com Cristo morto. 187. A morte de Cristo foi remdio nosso, mas no foi remdio seu. Remediou-nos Cristo a ns, porque nos deu a vida, mas no se remediou a si, porque morreu. Esta foi a maior fineza do Salvador do mundo, nem ponderada dos homens, porm muito mal-entendida, e pior aplicada. Quando Cristo estava para expirar na cruz, blasfemavam os prncipes dos sacerdotes, e diziam: Alios salvos fecit: se ipsum non potest salvos facere (Mt. 27, 42): Salvou aos outros, e a si no se pde salvar: Grande blasfmia contra Cristo, mas grande louvor da pacincia, da misericrdia e da caridade de Cristo. Em dizerem que no podia, blasfemavam; mas em dizerem que salvando aos outros como salvou a tantos da morte no se salvava a si, diziam o maior louvor e a maior glria do mesmo Salvador e do soberano modo com que salvava. A mais gloriosa fineza e a mais fidalga soberania de quem d a sade e vida a outros, no a tomar para si; antes dar-lha custa da sua. Isto o que fez Cristo, e esta foi a maior ao de um homem que juntamente era Deus. Oh! divino Roque! Quo bem vos puderam blasfemar os judeus, e quo justamente vos devemos louvar ns. Curava S. Roque milagrosamente a todos os feridos da peste, e quando o mundo o viu ferido do mesmo mal, cuidavam todos que ele se salvaria tambm a si, discorrendo com o mau ladro: Salva temetipsum, et nos7; porm o santo, como verdadeiro imitador de Cristo na morte, salvou aos outros, e a si no se salvou: Alios salvos fecit, se ipsum non potest salvum facere. 188. Tornemos quele non potest, que, bem examinado, ainda contm outro maior primor da semelhana de S. Roque com Cristo. Cristo absolutamente pudera dar a vida ao gnero humano sem morrer; mas condicionalmente, no podia. E neste sentido era verdadeira a proposio dos prncipes dos sacerdotes, posto que eles a no entendiam. Porque, suposto o decreto divino, tantas vezes declarado pelos profetas, de que o Filho de Deus morresse para salvar aos homens, no podia deixar de morrer. Pois assim como, suposto o decreto de que Cristo havia de salvar o mundo por meio da morte de cruz, no podia deixar de morrer Cristo, assim, suposto o favor que tambm foi decreto de que S. Roque imitasse a Cristo na semelhana da sua morte, no podia deixar de morrer S. Roque. Cristo, dando a vida aos demais por meio da cruz, mas morrendo ele, e S. Roque tambm, dando a vida aos outros, e tambm por meio da cruz, e morrendo ele tambm. 189. O modo com que S. Roque sarava aos apestados, era fazendo sobre eles o sinal da cruz. E esta cruz, assim para com os outros como para consigo, foi em tudo a mais parecida com a cruz de Cristo. A cruz de Cristo, como instrumento da nossa vida e da sua morte, se bem advertirmos, tinha direito e avesso. Para fora dava vida, para dentro deixava morrer; para fora dava vida, porque a cruz foi a rvore da vida de todo o gnero humano; para dentro deixava morrer, porque em seus prprios braos expirou e morreu Cristo. Tal a cruz, ou o sinal da cruz milagroso que formava sobre os apestados a mo de Roque. Nenhum sinal da cruz se viu nunca no cu ou na terra, nem mais semelhante nem mais sinal que este. Para fora dava vida, porque a todos sarava do mortalssimo mal da peste, e para dentro deixava morrer, porque morreu S. Roque do mesmo mal. Cristo morto com o remdio, em que dava a vida a todos, pregado nos braos; Roque morto com o remdio, em que dava a vida a todos, formado nas mos. E servo, que morrendo se pareceu to vivamente a seu Senhor, vede se merece o nome que lhe d o Evangelho de bemaventurado: Beati sunt servi illi.7 Salva-te a ti mesmo e a ns outros (Lc. 23,39).

29 VI A ltima desgraa de S. Roque: ser enfermo, e de peste. Primeira razo por que a peste o pior dos males: porque faz do ar, elemento da vida, elemento de morte. A maldio de Davi contra Judas. Os laos da mesa de que fala o profeta. Segunda razo: mal, em que o dizer: estai comigo, querer mal, e o dizer: fugi de mim, querer bem. As ltimas palavras da esposa dos Cantares ao esposo. Os horrores da peste nas cidades, e a peste do reinado de Davi. Um apelido injurioso: S. Roque, como Cristo crucificado, peste da peste: a ameaa de Cristo pela boca do profeta Osias. Por que quis Cristo morrer no ar e ao ar? Cristo crucificado e o contgio da sade. Milagres de S. Roque durante a peste de Constncia. A imagem de S. Roque e o contgio divino da sombra de S. Pedro. 190. Somos chegados ltima desgraa de S. Roque, que reservei para este lugar para que nos fique mais na memria, porque nos nossos pecados, no s a devemos considerar de longe, como desgraa sua, seno de perto e de dentro, conto desgraa tambm nossa. Ardendo est em peste o Reino do Algarve, e, se der um passo adiante o incndio, que ser de Portugal? Assim como foi S. Roque desgraciado com os remdios, foi tambm, e j tinha sido, desgraciado com as enfermidades. Padecer alguma enfermidade, parece que conseqncia de ser mortal, e assim mais se deve chamar natureza, que desgraa. Contudo no deixa de ser desgraa, e notvel desgraa, que, havendo um homem de padecer a misria de enfermo, v logo topar com a pior enfermidade, e a mais terrvel de todas. Assim lhe aconteceu a S. Roque: enfermou, e enfermou de peste. E entre as misrias, que fazem to terrvel, to temido e to aborrecido o mal da peste, duas so as que a mim me causam maior horror. A primeira, ser a peste um mal que do elemento da vida nos faz o instrumento da morte. O elemento da vida o ar com que respiramos; a peste esse mesmo ar corrupto e infeccionado. E que haja um homem de beber o veneno na respirao? Que a respirao, que o elemento e o alimento da vida, se lhe haja de converter em instrumento da morte? Grande rigor! Expirar morrer, respirar viver: e que morra um homem expirando, isso morte; mas morrer respirando? Que mate o que me havia de dar vida? Bravo tormento 191. Lana uma maldio Davi contra Judas e seus sequazes, e diz assim, falando com Deus: Fiat mensa eorum in laqueum (SI. 22, 5): J que esse infame discpulo to ingrato, to desleal, to traidor, permita vossa infinita justia, Senhor, que a ele e aos que forem como ele, da mesa se lhe faa o lao: Fiat mensa eorum in laqueum. No reparo em o lao se poder fazer da mesa, porque tudo o que afoga lao. Noutra maldio semelhante tinha dito o mesmo Davi: Pluet super peccatores laqueos (SI. 10, 7): Que choveria Deus laos sobre os pecadores. Quantas coisas h que parecem vindas do cu, e so laos! Uns tecem o demnio, outros apertam os homens, outros chove Deus. Que foi o dilvio universal seno laos chovidos? Com aquela gua chovida do cu, se afogou o mundo. E se h laos que se bebem, por que no haver laos que se comam? Estes so os de que fala Davi: Fiat mensa eorum in laqueum. Mas j que h tantos gneros de laos, por que deseja o zeloso e justiceiro rei que o lao com que se afogue Judas seja lao feito da mesa? Porque a mesa o instrumento natural da vida, e perder a vida pelos instrumentos da vida o mais terrvel gnero de morte que se pode imaginar. Formar um lao de cordas, apertar com ele a garganta, fechar a respirao, e matar entre portas a vida, rigor de morrer trabalhoso, violento, angustiado, terrvel, mas alfim padecer a morte pelos instrumentos da morte; mas assentar-se mesa para alentar, para sustentar, para recrear a vida, e que o mesmo bocado que meto na boca se me converta em lao na garganta, muito maior rigor, muito maior violncia, muito maior tormento, muito maior horror este de morte, porque perder a vida pelos instrumentos da vida. Perder a vida pelos instrumentos da vida e converter-se a mesa em lao, morrer morte traidora. O bocado que me mata traidor, porque, com

30 pretexto de me sustentar a vida, ma tira. E um traidor como Judas, era bem que o matasse uma morte tambm traidora: Osculum tradis Filium hominis8? Entregaste com um beijo, morrers com um bocado. Finalmente, como a maldade de Judas merecia ser castigada com a mais cruel de todas as mortes, por isso desejava e pedia Davi que o lao se lhe fizesse da mesa, e no das cordas, porque muito mais cruel gnero de morte padecer a morte pelos instrumentos da vida que perder a vida pelos instrumentos da morte. Assim o desejava Davi, mas muito melhor o executou Judas. Davi desejava que a mesa se lhe convertesse em lao, e Judas executou em si uma morte com o lao, e outra morte com a mesa: uma morte com o lao, porque se enforcou; outra morte com a mesa, porque comungou em pecado. Matou Judas o seu corpo, e matou a sua alma, mas muito mais cruel verdugo foi com a sua alma que com o seu corpo, porque, ao corpo, deu-lhe a morte com o instrumento da morte: Laqueo se suspendit9, e, alma, deu-lhe a morte com o instrumento da vida: Qui manducat hunc panem, vivet10. E morrer s mos da vida, oh! que desgraa! No aplico, por no gastar dois tempos em uma coisa. 192. Vamos segunda. A segunda razo ou misria por que tenho pelo mais desgraado de todos os males a peste, porque nas outras enfermidades o maior beneficio que vos pode fazer quem vos ama, estar convosco; na peste, a maior consolao que vos pode dar quem amais fugir de vs. Mal em que o dizer: estai comigo, querer mal, e o dizer: fugi de mim, querer bem. Grande mal! Se a peste no fora enfermidade mortal, s por isso matara. Acaba o ltimo captulo dos Cantares, falando a esposa com o esposo, e diz assim: Fuge, dilecte mi (Cnt. 8,14): Fugi, amado meu. Estas foram as ltimas palavras que disse a esposa; com estas se lhe acabou a vida, e se acaba a histria. O que reparo aqui que no nos diga o texto de que morreu a