cartas padre antónio vieira

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Serviço de Educação e Bolsas N.º 36 H I S T Ó R I A E ANTOLOGIA DA LITERATURA PORTUGUESA S é c u l o XVII

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Serviço de Educação e Bolsas

N.º 36

FUNDAÇÃOCALOUSTE

GULBENKIAN

H I S T Ó R I AE A N T O L O G I ADA L I T E R AT U R AP O R T U G U E S A

S é c u l o

XVII

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HALP N. 36

Professores/Investigadores

Margarida Vieira MendesMaria Lucília Gonçalves PiresJosé van den Basselaar

Agradecimentos

Biblioteca NacionalEdições CosmosFaculdade de Letras da Universidade de LisboaMuseu Calouste Gulbenkian

Ilustração Capa:

Nicolas-Bernard Lépicié(1735-1784)

Auto-retrato (pormenor)c.1777. Óleo sobre telaA. 0,908 X L. 0,715 m. (N. Inv. 2386)Lisboa: Museu Calouste Gulbenkian

Ficha Técnica

Edição da Fundação Calouste GulbenkianServiço de Educação e BolsasAv. de Berna 45A - 1067-001 LisboaAutora: Isabel Allegro de MagalhãesConcepção Gráfica de António Paulo GamaComposição, impressão e acabamentoG.C. Gráfica de Coimbra, Lda.Tiragem de 11.000 exemplaresDistribuição gratuitaDepósito Legal n.° 206390/04ISSN 1645-5169Série HALP n.° 36 - Novembro 2006

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PADRE ANTÓNIO VIEIRACARTAS

HISTÓRIA DO FUTURO

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ÍndiceNota Prévia ................................................... 7

ESTUDOS BREVES: INTRODUÇÕES

“A epistolografia de Vieira”Maria Lucília Gonçalves Pires ................. 11

“O relevo de Chaves dos Profetas”Margarida Vieira Mendes ........................ 15

“Alguns dados sobre a História do Futuro”José van den Basselaar ............................. 19

TEXTOS LITERÁRIOS:

Cartas (excertos)

Vol. IIntroduções. Cartas: I, IV.Introdução. Cartas: XV, XVI, XIX, XLVII.Introduções. Cartas: LI, LV, LVII, LXI, LXII, LXIV,LXV, LXIX, LXXVII, LXXX, LXXXIII ........ 25

Vol. IIIntrodução. Cartas: II, XIX, XL, LII, CXVI,CXXIX, CXLIX, CLII, CLXXV, CLXXX,CXC, CXCIV ............................................... 57

Vol. IIICartas: II, XXXVII, XLI, XLIII, LXI, LXVI,LXXIII, LXXV, CVIII, CXV, CXVI, CXXII,CXXXIV, CXXXVIII, CXLI, CXLIV, CLIV,CLVIII.Introdução. Cartas: CLXXX, CXCI, CCIII,CCXXX........................................................ 66

Clavis prophetarum / Chave dos ProfetasCaps.: I, II, III, IX (excertos) .......................... 79

História do Futuro, Livro AnteprimeiroCaps.: III, IX, X (excertos) ............................. 00

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Nota Prévia

Este penúltimo número (36) da Antologia dedi-ca-se a algumas das Obras do Padre AntónioVieira:* Dois Tratados – a Chave dos Profetas, em trêslivros, escritos em latim, e a História do Futuro;* Epistolografia: numerosíssimas Cartas (publica-das agora em três volumes), escritas durantequase todas as décadas da vida do Autor, a partirdos vários locais onde viveu, com diversíssimosdestinatários que são, em geral, figuras de relevoda política, da aristocracia, da Igreja, em Portugale na Europa do seu tempo.

– Do amplo conjunto das Cartas, um total dequase mil, figuram aqui naturalmente apenasalgumas, e de quase todas apenas excertos, porvezes brevíssimos. Foram escolhidas de quasetodos os períodos em que é possível dividir avida, a intervenção e a escrita de Vieira. Dessemodo, é possível o leitor dar-se conta da diversi-dade de níveis de intervenção que envolveu eocupou a vida do Autor, bem como da quanti-dade de relações e amizades que manteve e dosobstáculos que a sua visão e coragem provoca-ram nas autoridades da época (tanto da Igrejacomo da política, o que se torna particularmen-te grave perante a Inquisição).Esta edição das Cartas apresenta, entre os agru-pamentos temporais e espaciais em que se orga-niza a Correspondência, pequenas introduçõesque situam o contexto histórico e biográfico emque as cartas foram escritas. Daí que nesta Anto-logia essas pequenas notas informativas ecomentativas, ou excertos delas, tenham sido in-cluídas e mantidas, tal como acontece nestaedição, no início de cada novo período.

– A Chave dos Profetas (Clavis prophetarum) tratade matérias diversas e, enquanto “tratado”, faz apar e passo a apresentação de argumentos sobrecada tópico para a seguir os refutar ou confir-mar, deles extraindo sempre algumas conclusõesquanto ao ponto contemplado. Este texto, talcomo claramente o mostrou Margarida VieiraMendes na sua apresentação da edição que ten-cionava elaborar deste texto, não é (como emtempos foi considerada) a última obra de Vieira:“O autor escreveu o texto em Roma, onde per-maneceu entre 1669 e 1675”.De tal modo são variados os assuntos que, con-forme sugeriu também Margarida Vieira Mendes,quase se poderia considerar estarmos presenteum conjunto de “pequenos tratados indepen-dentes”. De entre os temas, lembremos comoexemplo os seguintes: os lugares e os tempos emque o Reino foi anunciado, de que maneiras e aquem se dirigia esse anúncio, a pregação univer-sal do reino de Deus, a questão de uma lei natu-ral e a de a ignorância dos “bárbaros criados nasselvas” poder funcionar como inocência diantede Deus, as atitudes de rejeição, por parte dosJudeus, relativamente a S. Paulo e o modo comoS. Paulo reagiu a essas atitudes judaicas, etc.Deste tratado temos aqui excertos de alguns doscapítulos, e apenas do Livro III, já que foi porele que se começou a edição crítica da obra (eaté hoje é o único publicado).

– Quanto à História do Futuro: o plano giganteque Vieira elaborou para esta obra não chegou apoder ser cumprido. Dele nos fica apenas umlivro, destinado a preceder os conteúdos dessaHistória. Aliás, o próprio título geral, atribuídoao tratado a escrever, mostra a ambição do planogizado:

História do Futuro, Esperanças de Portugal e Quinto Impé-rio do Mundo. Livro Anteprimeiro. Prolegómeno a toda aHistória do Futuro em que se declara o fim e se provam osfundamentos dela. Primeira Parte. Matéria, Verdade e Utili-dades da História do Futuro.

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Aquilo que Vieira deixou pronto é afinal umlivro preliminar, curiosamente chamado LivroAnteprimeiro, em que expõe os objectivos a que aobra iria obedecer e os argumentos que a torna-riam útil e significativa.Deste livro, figuram neste volume também sóexcertos de alguns dos capítulos que dão contadas intenções do conjunto da obra e sua funda-mentação.Os textos, como é já usual nestes Boletins, sãoprecedidos por breves Introduções críticas quefuncionam como abertura a um melhor enten-dimento das obras do seu conjunto.A Bibliografia, longa e mesmo assim sumária –atendendo ao volume de obras críticas existen-tes sobre o autor –, diz respeito a estes doisúltimos volumes da Antologia, ambos sobre Vieira– pelo que o próximo número (37) não incluiráqualquer bibliografia, a não ser a que diz respeitoaos textos seleccionados: os Sermões.Para simplificação da leitura, foram retiradas dostextos quase todas as notas.

Lisboa, Julho, 2006

ISABEL ALLEGRO DE MAGALHÃES

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I N T R O D U Ç Õ E S

ESTUDOS BREVES

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A epistolografiade Vieira(excerto)

MARIA LUCÍLIA GONÇALVES PIRES *

[...]

2. As cartas como documento histórico

As cartas de Vieira têm sido lidas principalmentecomo documento histórico, o que é perfeita-mente justificado pela riqueza de informaçõesque contêm acerca da vida do autor e da suaépoca. Antes de mais, informações que permi-tem traçar com bastante minúcia o seu percursobiográfico, pelo que a valiosa História de AntónioVieira, de Lúcio de Azevedo, tem as cartas comoprincipal fonte de informação. São documentoprecioso e imprescindível para a história daCompanhia de Jesus em Portugal no séculoXVII e, sobretudo, da missionação do Brasil(veja-se o aproveitamento de textos das cartasnas obras de historiadores da Companhia comoFrancisco Rodrigues e Serafim Leite). Do mesmomodo António José Saraiva baseia essencialmenteno texto das cartas o seu trabalho intitulado «OPadre António Vieira e a liberdade dos índios»,trabalho em que analisa de forma sistemática odesenrolar do que foi um dos grandes combatesda vida de Vieira.Mas também para a história política do nossoséculo XVII abundam os materiais nestas cartas

* In Vieira Escritor. Org. Margarida Vieira Mendes, M.ª LucíliaG. Pires, J. Costa Miranda. Lisboa: Cosmos, 1997, p. 24-29.

escritas por um homem que em boa parte fez ahistória do seu tempo (como escreve em cartaao conde da Ericeira de 18/8/88, «a parte [dahistória] que pertence ao Brasil, vi-a com osolhos, e a outra parte das embaixadas passou-mepelas mãos»); um homem apaixonado pelasquestões da res publica, pelos meandros da diplo-macia, pelas intervenções nas esferas do poderdeliberativo. Da sua intervenção directa em negó-cios do Estado fala, em jeito de balanço, na céle-bre carta ao conde da Ericeira (Baía, 23/5/89),refutando com acrimónia o juízo pouco elogiosoque de tal actividade aquele autor formula nasua História de Portugal Restaurado. E aí recorda assuas bem sucedidas diligências para obter odinheiro necessário à defesa do reino em mo-mento desesperado, a proposta de transferir parao Brasil a produção de especiarias da Índia paraas fazer chegar aos mercados europeus a preçomais competitivo, e, sobretudo, o que ao longodos anos sempre considerou a coroa de glória dasua actuação política – a criação, em 1649, dacompanhia do comércio do Brasil – lamentandosempre que o seu plano não tivesse tido plenarealização, pois nunca se chegou a criar a com-panhia do comércio do Oriente que reiterada-mente propusera. Se é certo que as cartas deVieira nos dão a imagem de um homem apaixo-nado por várias causas, política (no seu sentidoetimológico) é talvez a palavra que unifica osdiversos objectos da sua paixão. O apaixonadoempenhamento de Vieira nas questões políticas,expresso na acção e na escrita, unifica no seupensamento o pendor pragmático e a utopiamessiânica, ilumina as diversas facetas da suavida. De tal modo que uma semana antes demorrer, com noventa anos, cego e quase comple-tamente surdo, ainda dita cartas em que manifestaa sua preocupação pelas consequências políticasda morte do rei de Espanha e tece considera-ções sobre o preço do açúcar, denunciando a

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injustiça de uma política económica que exploradespudoradamente os recursos do Brasil.A epistolografia de um espírito assim atento aosacontecimentos políticos, que participou emmuitos deles, que se correspondeu ao longo dasua longa vida com as figuras mais relevantes dacena nacional, bem como da sua Companhia emesmo da cena internacional, é obviamente umdocumento histórico de valor inapreciável.

3. As cartas como auto-retrato

Mas a perspectiva de leitura que me parece maissedutora consiste em encarar as cartas comoconstrução de um auto-retrato, procurando ana-lisar os processos mobilizados nessa construção ea imagem multifacetada deles resultante.Verney, um autor que ninguém pode considerarsuspeito de particular simpatia por Vieira, tendoem conta as críticas impiedosas que formulacontra os seus escritos em geral e os seus ser-mões em particular, escreve a concluir as suasapreciações: «Vejo nas suas cartas retratado umânimo grande, um desinteresse nobre, uma vivapaixão pelos aumentos do seu reino e ardentedesejo de se sacrificar por ele (...) Se eu vivesseno seu tempo, seria o seu maior amigo». É, afi-nal, esta personalidade que nas cartas se revela oúnico aspecto que atrai a simpatia de Verney.Sabemos como o género epistolar se prestaparticularmente a esta revelação do sujeito queescreve, dada a ausência de normas rígidas acodificarem as formas de expressão neste tipo dediscurso. Mas sabemos também como a imagemque do autor se revela num texto, mesmo na-queles que, pelas suas características genológicas,mais se prestariam a uma comunicação directa eimediata, constitui uma construção resultante deum conjunto de processos literários mobilizadospelo autor. Analisemos, pois, alguns desses pro-cessos.

Em primeiro lugar, consideremos a utilização dodiscurso narrativo. Ele torna-se evidente sobre-tudo nas cartas dirigidas aos seus superiores como objectivo de lhes dar a conhecer os principaissucessos da vida da Companhia nos lugares emque se encontrava. Trata-se de um tipo de litera-tura abundantemente cultivada pelos membrosda Companhia de Jesus que não se limitavam amera finalidade informativa; aliás, algumas dasobservações de Vieira permitem-nos apreenderoutras funções consignadas a estas cartas: a apo-logia da Companhia e da sua obra, a edificaçãoespiritual dos seus leitores, e também o estímuloa que alguns desses leitores se deixassem conta-giar pelo entusiasmo apostólico de que elaseram testemunho.Estas cartas narrativas de Vieira, analisadas comoprocesso de construção de um auto-retrato,apresentam o autor, não apenas como simplesnarrador, mas como protagonista da acção narra-da: como sujeito de um agir, quase sempretriunfante, mas também como sujeito de umfalar, dominando pela palavra situações difíceisou conflituosas. A técnica retórica da argumen-tação persuasiva, tão engenhosamente exploradanos seus textos parenéticos, prolonga-se e reper-cute-se, de forma aparentemente mais natural,mas não menos eficaz, no texto das suas cartas.Recordo o passo da carta ao Provincial do Brasil(22/5/1653) em que relata o efeito do seu vio-lento «Sermão das tentações» (1.ª Dominga daQuaresma de 1653) com que procurou resolvero magno problema da liberdade dos índios.Escreve Vieira, depois de ter resumido as linhasessenciais da argumentação desenvolvida nessesermão: «Nas cores que o auditório mudavabem via eu claramente os afectos que, por meiodestas palavras, Deus obrava nos corações demuitos, os quais logo de ali saíram persuadidos ase querer salvar e a aplicar os meios que paraisso fossem necessários a qualquer custo. Namesma tarde, antes que a memória se perdesse

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ou alguma conferência secreta a confundisse,deu o capitão-mor princípio a uma junta (...)Pediram-me então quisesse tornar a propor oque de manhã dissera, e aprovado por todos,nemine discrepante, chegou-se aos meios de exe-cução».Aqui temos a imagem do orador e do homemde acção: do homem que triunfa no plano daacção pela força da sua palavra veemente e ilu-minada.Mas nem sempre os relatos nas cartas de Vieiranos dão dele esta imagem triunfante. São mes-mo muito numerosas aquelas em que dá de siuma imagem enfraquecida: a sua frágil saúdeafectada pelos frios de Coimbra ou de Roma; adoença que o debilita e o leva a «cuspir sangue»quando, sob custódia da Inquisição, é obrigado aescrever em breve tempo a sua defesa (carta aDiogo Velho, 21/9/1665). Mas nunca estas ima-gens de fraqueza diminuem a força do seudiscurso: um discurso que é a expressão da auto-ridade que emana da sua clarividência, da suacapacidade de ver e de entender: os factos, oshomens, os sinais. Esta clarividência de que seapresenta dotado é a base, tanto dos seus conse-lhos políticos, com a marca da autoridade dosaber, como das suas previsões messiânicas, vozde profeta capaz de ler o que está evidenteapenas àqueles que tenham olhos de ver.Este sujeito que se apresenta como protagonista,quase sempre triunfante, das acções que narra;este conselheiro e comentador dotado de auto-ridade; este visionário capaz de decifrar os sinaisdos tempos e de entender os textos que ensinama decifrá-los, é também um espírito dotado deuma sensibilidade que se exprime frequente-mente por meio de uma linguagem profunda-mente emotiva. Umas vezes deparamos comuma emotividade que se manifesta de formadirecta, impressionante de intensidade. E asemoções que assim se exprimem tanto pode sero seu acrisolado amor pela pátria, como a raiva

pela cegueira e incompetência dos seus dirigen-tes, como a dor pela marginalização de que sesente vítima.O dolorido amor por uma pátria que se vê nadecadência devido à insensatez de quem agoverna exprime-se sobretudo em cartas escritasde Roma (1669-75) ao seu amigo DuarteRibeiro de Macedo, com quem partilha preocu-pações e ideias políticas. Em algumas dessas cartaseste amor é referenciado como loucura, comodoença capaz de o levar à morte: «Já se meacabou a paciência, e tenho tão pouco coração etão pouco juízo, que também me há-de acabar avida este indiscreto amor de uma pátria que tãopouco o merece», escreve em 19/7/72. O remé-dio seria esquecer esta pátria ingrata. Por issoaconselha ao amigo: «Se V S.ª quer melhorar dosseus achaques, busque algum meio de não cui-dar em Portugal, porque só este remédio podemter os que o amam, e isto é o em que eu andocuidando há muitos dias» (7/2/1673). Mas é-lheimpossível pôr este remédio em prática, o quelhe provoca mesmo um problema de naturezareligiosa: tendo, durante os dias de exercíciosespirituais ordenados pela Companhia, analisadoa sua consciência para descobrir o seu principaldefeito, revela: «achei que era o afecto portuguêse imoderado amor e zelo da pátria, e contra estetão forte inimigo me tinha armado (...). Masainda que o tenho muitas vezes convencido, nãoacabo de o ver vencido» (17/10/73). Daí a suaconfissão desesperada: «Confesso a V. S.ª que,depois de ter nascido em Portugal, a maior felici-dade fora ou não chegar a uso de razão ou tê-loperdido» (7/11/73).A linguagem da emoção assume por vezes umtom sarcástico, uma ironia cortante, sobretudoquando se trata de julgar os responsáveis peladramática situação da pátria. Recordando asupremacia da França nos mares do Orientepara onde acabara de mandar uma forte armada,comenta: «E nós cuidamos que, com ter duas

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gôndolas em que passar a Salvaterra, somos reisde aquém e de além mar»; um sarcasmo quechega mesmo a parodiar a primeira das bem--aventuranças: «A nossa pobreza de espírito nospoderá segurar o reino do céu, mas não sei se oda terra» (7/2/1673).As cartas escritas nestes anos da estadia emRoma, gozando de protecção e prestígio e libertodas forças que em Portugal o ameaçavam, sãoaquelas em que os seus sentimentos se expri-mem de forma mais livre e veemente, sobretudoas que dirige a Duarte Ribeiro de Macedo,encarregado de negócios em Paris, embora porvezes recorra prudentemente ao uso de lingua-gem cifrada. Mas em anos anteriores e em cir-cunstâncias muito diferentes, a intensidade daemoção encontra formas de expressão não menosimpressionantes na sua dramática contenção.Recorde-se a carta escrita ao príncipe D.Teodósio ao partir para as missões do Maranhão,em Dezembro de 1652. O relato minucioso,quase hora a hora, de passos, gestos, diligências,comunica a ansiedade com que espera umapalavra do rei que o impeça de partir, até aodesespero da decepção final: «As velas se larga-ram e eu fiquei dentro [da caravela] e fora demim». Uma carta que, à superfície do texto, é aconstrução da imagem do vassalo fiel preocupa-do apenas com a salvaguarda da sua obediência àvontade do rei; mas, na sua minúcia narrativa,diz essencialmente a angústia de quem vê corta-rem-se, de forma abrupta e inesperada, os laçosque o ligavam a um estilo de vida que o seduzia.É uma carta que nos dá também a imagem deum daqueles momentos de viragem frequentesna vida e na alma de Vieira: o homem de corte,desesperado por se ver afastado dela, dá lugar,neste mesmo texto, ao missionár io jáembrenhado na preocupação com a salvação dasalmas dos gentios.Neste auto-retrato que as cartas constróem sur-gem também pinceladas que desenham o Vieira

escritor. Sobretudo o autor de Sermões, a cujapreparação dedica os últimos vinte anos da suavida, embora manifestando frequentemente asua contrariedade perante essa tarefa que atribuiao dever de obediência aos superiores. Já em1652, em carta ao provincial do Brasil, refere ahipótese dessa publicação para arranjar dinheiropara as missões do Maranhão: «Quando não hajaoutras [receitas], resolver-me-ei a imprimir osborrões de meus papelinhos que, segundo omundo se tem enganado com eles, cuida oPadre Procurador Geral que poderá tirar da im-pressão com que sustentar mais [missionários]dos que agora vão» (14/11/52). E em 1658, emplena actividade missionária, conta a um sacer-dote amigo: «Ordenou-me o Padre Provincial eo Padre Visitador que alimpasse os meus papéisem ordem à impressão, para com os rendimen-tos dela ajudar a sustentar a missão». Mas só vinteanos mais tarde se dedicará sistematicamente aessa tarefa, publicando o primeiro volume dosseus Sermões em 1679. E o autor, que insistente-mente refere a dificuldade de recuperar essestextos pronunciados noutros tempos, não deixade ir fornecendo informações acerca do desen-rolar dessa tarefa e mesmo do seu desagradoperante edições não autorizadas ou traduçõesimperfeitas.Quanto à elaboração da História do Futuro, vãosurgindo breves observações em cartas escritasnos anos difíceis de 1663-65,e todas exprimema urgência de concluir essa obra anunciadora daplenitude dos tempos antes que chegue a reali-zação, que julga iminente, desse futuro de que seapresenta como cronista.Mais tarde, quando já em Roma, é da elabora-ção da Clavis Prophetarum que fala, com um maldisfarçado orgulho de autor: «Tenho em grandealtura um livro latino intitulado o Quinto Impé-rio, ou Império consumado de Cristo, que vema ser a Clavis Prophetarum, e ninguém o lê semadmiração e sem o julgar por importantíssimo à

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inteligência das escrituras proféticas» (22/10//1672). A escrita desta obra, que foi obrigado air intercalando com a preparação dos sermões,foi interrompida pela sua morte. Seis dias antesde morrer, a 12/7/97, ainda ditava uma carta emlatim (a última que conhecemos) em que infor-mava o Superior Geral do andamento dessa obraem que trabalhava há tantos anos. Uma obra queficou incompleta, a testemunhar a permanênciadesse sonho messiânico que iluminou toda a suavida.

O relevode Chavedos Profetas(excerto)

MARGARIDA VIEIRA MENDES *

A Chave dos Profetas

[...]Entremos então nos problemas editoriais daClavis. Primeiramente questões de método. Nãocabe na metodologia da crítica genética por setratar de um caso de mobilidade na transmissãode um texto, mais do que propriamente na criaçãoou produção textual; na falta de qualquer autó-grafo ou idiógrafo, o que temos é a presença derefundições, de testemunhos textuais. E digo-vosjá que os testemunhos que até agora conheçosão doze. Vi-os todos (de visu), excepto dois queestão no México. É possível que haja mais ma-nuscritos, mas não serão necessários. Porquê?Porque já estudei e decifrei as famílias, o códiceoptimus e os dois que servirão para ajudar areconstituir o texto, o mais próximo possível doque terá sido o original. Lembro que os locaisonde se encontram os manuscritos são: ArquivoNacional da Torre do Tombo, Biblioteca da Ajuda,Roma (em três arquivos), Loyola – os sítios poronde andei, em Roma com o apoio da Funda-ção Calouste Gulbenkian – e México. Na fase

* In Vieira Escritor, p. 33, 34, 36-39.

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em que nos encontramos, só lidamos com doistestemunhos, pois não temos dinheiro paramandar vir um terceiro de Roma de que aindanecessitamos.A Clavis, ou De regno Christi in terris consummato(que certamente será o último título escolhidopor Vieira), insere-se dentro do campo de pro-blemas que a crítica textual enfrenta na ediçãode borrões, das obras manuscritas não acabadas,capelas imperfeitas, embora não exclusivamente.Começamos a descobrir, com a tradução doúltimo tratado, que é mais literária do que terápensado Barbosa Machado na Biblioteca Lusitana,onde a classifica no género da exegese oucomentário (que aliás não deixa de ser). Maisadiante reflectirei sobre a questão do género,que é do maior interesse e beleza emocionante.A história da feitura da Clavis anda mal contadae empolgada, e Vieira foi responsável, pois sempreanunciou obras espectaculares que só tinhamtítulo ou fachada, ou fragmentos, ou plano, esobretudo intenção, muita intenção, de intervirno estado das coisas do tempo. História do Futuroe Apologia, por exemplo, que são discursos in-completos, mas de acção e circunstância, e agora,por efeito perverso da edição, são lidos comolivros inteiriços e não como obras dotadas deintencionalidade mas fragmentárias.É contra tal que a nossa edição se vai edificar.De facto, Clavis, redigida em Roma, não é coisade cinquenta anos, nem trinta, como diziaVieira. Só em Roma quis ver as suas proposi-ções, proposições anteriormente condenadaspela Inquisição portuguesa, aprovadas pelo Papa,e para tal redige rapidamente uma obra. Maisuma vez, intenção e circunstância. Como conse-guiu um Breve que o isentava da Inquisição,resolveu regressar. Terá havido problemas e dis-cussões por causa de uma parte da Clavis quetrata da conversão dos judeus, que foi um com-bate romano do padre António Vieira, como ésabido. A questão da restituição dos ritos judaicos

com outra simbologia tornou-se controversa nacorte papal, mas não posso agora tratar disso.Passemos à questão da incompletude da obra.Existe uma descrição do original feita peloPadre Casnedi em 1714, que aponta as lacunas,imperfeições, falta de capítulos, nos Livros II eIII, estando apenas o Livro I bem acabado, comdoze capítulos. [...]Sobre a minha leitura, queria deixar apenas qua-tro observações ou comentários:1) Várias vezes o jesuíta alude ao fim do século,como hoje diríamos. Neste tratado, que agoracomeço a conhecer, expõe um grande númerode questões sobre a pregação universal do evan-gelho, dado que, segundo a doutrina escatológicacristã, ela é uma das condições para a consuma-ção do reino de Cristo. Apercebemo-nos logodo problema e drama de Vieira: a constatação daimpossibilidade dessa pregação universal e daconsequente salvação das almas dos gentios ouíndios, e de muitas outras. O calafrio vieirianoera decerto menos metafísico que o de Pascal,mas não menos visceral. Vieira tem a noção dasdimensões intangíveis do mundo e a consciênciaderrotada das vastíssimas partes dele onde oEvangelho ainda não chegou (África interior,América interior, a dita «terra austral» – regiãooriental em que se encontram as dez tribos per-didas). Ao mesmo tempo, o jesuíta manifestaalgum desânimo como missionário do mundonovo, um desânimo bem contrário à euforiaépica do Livro Anteprimeiro da História do Futuro.Parece que as amadas visões poéticas de Isaíascomeçam a fazer outro sentido para Vieira, queadiante vou explicar. Pela primeira vez, vaiapontar as dificuldades derivadas da chamadainvencível ignorância de Deus e da irracionali-dade que existe nos bárbaros. Não já como umdesafio divino, como uma prova heróica, comouma necessidade política, mas sim como umabarreira tragicamente intransponível. É que

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Vieira está a falar da salvação das almas e nãodos corpos.2) O que me parece mais importante e muitobelo é que, na sua busca do sentido anagógico,ele vai preferir sempre textos de profetas e após-tolos – os fundadores, os primeiros: salmos deDavid, Isaías sobretudo, e S. Paulo. E insiste sem-pre no sentido literal (estou a situar-me, obvia-mente, no método hermenêutico dos quatrosentidos). Se usa os exegetas, comentadores e teó-logos como Suárez, é para os refutar e condenarcomo obscurecedores, lançadores de confusão eencobridores do verdadeiro sentido dos profetas.Os que só fazem atrasar o conhecimento. Agrande base de sustentação ou quadro passionaldo pensamento de Vieira é a tomada à letra dabeleza imagética da citação profética. Estabelecesempre a sua aliança com a acção do tempo eesclarecimento do futuro. Tudo o mais é antigoe não se realizou. Só a crença, a fé nas imagensdeleitosas de Isaías, sobretudo as da abundância,pode, segundo Vieira neste tratado, declarar arealidade vindoura. Junta assim os arquétiposfundadores, que são de natureza literária e sim-bólica, com a realidade final da salvação e do fimdos tempos.3) Outro fundamento sólido usado pelo autor éa experiência vivida pelo próprio jesuíta, em quemuito insiste. Parece-me o reverso do célebreSermão do Espírito Santo e da imagem optimistada conhecida e genesíaca estátua do índio-pedraonde a arte apostólica corrige a natureza. Asrazões desse sermão eram pragmáticas ouperlocutórias, como se sabe, questão de incutirânimo aos missionários.Agora, pelo contrário, argumenta a favor de umaintervenção providencial e maravilhosa do sa-grado, cujos desígnios paradoxais se propõeousadamente descobrir, dada a impotência dosmeios humanos. Vieira parece desistir de levar àprática o preceito jesuítico e discreto de BaltazarGracián em forma de quiasmo e que espelha

bem as relações difíceis entre o céu e a terra.Cito, embora seja bem conhecido: procurem-seos meios humanos como se não houvesse divinos,e os divinos como se não houvesse humanos.Neste derradeiro tratado da Clavis, escrito naBaía, era Vieira a sós consigo, com os textos quemais leu, os dos profetas e salmos, os mais poéti-cos, de que se apropriou e alucinou (o que nãosignifica loucura, por favor, mas conhecimento esentido). Nunca como aí insistiu tanto no recursoprobatório à sua experiência pessoal. Veja-secomo remata a defesa da ignorância invencívelde Deus e da lei natural: «Eu, que durante catorzeanos completos tenho convivido com estas gen-tes, pela minha parte confesso que, se porventuraanuísse a tal forma de pensar, duvidaria tanto daminha sanidade mental quanto, por experiência,estou certo da ignorância insuperável de muitosdesses bárbaros».E ao discordar dos teólogos romanos e dos falsose pretensiosos saberes dos europeus, Vieira con-clui: «É inevitável, ó mais ilustres dos teólogos,que sintais que entre os vossos raciocínios e osnossos olhos há um grande abismo, e talvez maiorpor causa do próprio oceano que se estendeentre nós».É desta tensão e do seu pessoal desconsolo queVieira cria um paralelo pungente entre os fun-dadores apóstolos, dos quais traça um retratocomo de super-homens – representados pelasmetáforas aéreas de nuvens e pombas e benefi-ciários da graça do pentecostes, numa idade deouro –, e os pregadores missionários jesuítas(que também eram chamados apóstolos), meti-dos na crueza da história, nos limites do espaçoe do tempo, sem a luz das línguas, humanosbichos da terra deixados ao abandono e frontei-ras da sua condição, com uma dura empresadivina – o descobrimento e conquista dos índios,conquista espiritual, manifestação dos planosdivinos para o futuro do mundo e para o quartocontinente. E Deus teimava em não ajudar.

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Vai ser diferente o assunto que Vieira expõe nocapítulo IV, sobre a salvação dos que não ouvi-ram nem entendem a palavra divina. Enquantonos Sermões Vieira refere essa dificuldade, maspara encontrar soluções, na Clavis mostra-sebem mais pessoal e pessimista, optando peladoutrina do pecado filosófico e da ausência depecado mortal e, por conseguinte, de culpa e depenas eternas, nos que têm uma ignorânciainsuperável, quer da lei natural, quer de Deus.Não vou explicar aqui a controvérsia teológicado pecado filosófico, que ocorreu entre Arnaud,o jansenista, e alguns jesuítas, doutrina que opapa Alexandre VIII condenou em 1690. Lembroapenas que este facto prejudicou a publicação daClavis no começo do século XVIII.4) Noto ainda que mais importante é descobrir-mos as fontes semânticas, e mesmo lexicais eimagéticas, da representação que Vieira tem dosíndios e que expõe de maneira muito literáriaou visionária em alguns sermões. O seu retratodo índio não o fez directamente, por observação,mas pelos livros. Apercebemo-nos da visãodiferida ou mediada e classificada que ele temdo índio, ou das duas classes de índios, baseadanas leituras de representantes da corrente biblistade que falou Marcel Bataillon, como Acosta,Solórzano Pereira, Frei Pedro mártir, Bózio, etambém portugueses do século anterior, comoManuel da Nóbrega e Pêro de MagalhãesGândavo. Assim descreve Vieira os índios: «Sendocompletamente obtusos devido à extrema rudezade inteligência, sem quem os ensine e conduzanão podem penetrar no conhecimento de Deusinvisível. E devido à extrema corrupção de cos-tumes e à depravação, abundando e prevalecendoos vícios que sufocam todos os preceitos natu-rais, a própria lei, toda ela, é submersa, extinta esepultada. Mas uma vez que esta matéria não seaprende estudando e discorrendo, conhecendo-sepela prática e pela experiência, como que apal-pada com as mãos e observada com os olhos,

comecemos pela ignorância de Deus e ouçamosas testemunhas.«Seja o primeiro o Padre José Acosta (...): A raçados índios, diz ele, ainda que uns sejam superio-res a outros, toda ela é destituída de toda a ino-cência, toda ela é sórdida, toda servil, de umcarácter o mais obtuso possível, de costumesdesleais, ingratos, cedendo apenas ao medo e aosmaus tratos, mal tendo o sentido da honra epudor quase nenhum. O seu carácter não é ape-nas servil, mas também, de certo modo, bruto,de tal modo que se julga ser mais fácil domesti-car feras do que refrear a sua temeridade oulevantá-los do seu torpor, tão rudes como sãopara aprender e duros e teimosos para ceder.Finalmente, como gado irracional naturalmenteaptos para caça e para presa, vivem em perpétuacorrupção. Não respeitando nem as leis do matri-mónio nem as da natureza, usam da sensualidadeem vez da razão. Até aqui o primeiro oráculo, ode um eclesiástico.«O segundo oráculo (...), o Senhor D. JoãoSolórzano Pereira (...), diz: Formam a terceira eúltima classe de bárbaros, de entre outras inú-meras tribos e regiões, aqueles que habitam nasflorestas e são semelhantes às feras, que dificil-mente têm algo de sentimento humano, sem lei,sem rei, sem contrato, sem um magistrado certoe sem estado, mudando continuamente de lugar,ou tendo habitações fixas que mais imitam covisde feras ou currais de gado. Aqui pertencemtodos aqueles que os nossos chamam Caribes,que nada mais praticam do que a sanguinolên-cia, são cruéis para com todos os estrangeiros ealimentam-se de carne humana (...). Esta é aopinião de Solórzano, um pouco diversa no estilo,mas pelo assunto e pela experiência uma teste-munha inteiramente igual à primeira».E Vieira prossegue: «Na verdade, na perspectivade Deus, maior mal é negá-lo do quedesconhecê-lo, e todavia ele permite que hajaateus; maior mal é atribuir divindade a pedaços

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de madeira e de pedra do que ignorá-lo, e toda-via permite que haja idólatras; maior mal é aignorância superável de Deus, ou com culpa, doque a insuperável e inocente. Por que motivo,pois, Deus não há-de permitir antes a ignorânciaque não ofende a sua majestade, porque a des-conhece, do que a ignorância que a ofende?».E conclui: «Eu, que durante catorze anos com-pletos tenho convivido com estas gentes, pelaminha parte confesso que, se porventura anuíssea tal forma de pensar, duvidaria tanto da minhasanidade mental quanto por experiência estoucerto da ignorância insuperável de muitos». [...]

Alguns dadossobre a Históriado Futuro(excerto)

JOSÉ VAN DEN BASSELAAR *

* “Introdução”. Livro Anteprimeiro da História do Futuro. Novaleitura, introd. e notas de J. van den Basselaar. Lisboa: BN,1983, p. 11-12.

Sobre a História do Futuro

[...] António Vieira, que, por duas vezes, se esfor-çou por dar uma exposição sistemática da suagrande tese, não conseguiu terminar nem a His-tória do Futuro nem a Clavis Prophetarum. Semdúvida, explica-se o estado inacabado dos doistratados por certas circunstâncias externas, taiscomo doenças, achaques de velhice, cargosimpreteríveis, etc. Mas a explicação cabal pare-ce-me que reside na própria índole do autor.Vieira necessitava de uma forte pressão externapara poder se dar com assiduidade a um trabalhode largo fôlego. Sentindo uma certa coacção, eracapaz de levar a cabo uma tarefa imposta; não asentindo presente, deixava-se facilmente distrairdo seu assunto, sempre propenso a tomar atalhosfloridos e pitorescos, em vez de seguir a estradarégia; além disso, era homem extremamenteactivo, que não suportava por muito tempo aatmosfera bolorenta de uma biblioteca. A vida láfora era tão cativante e arrebatadora! No fundo,Vieira não tinha nem a paciência nem a discipli-na de um erudito.

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II

UM PLANO PRETENSIOSO

O projecto ideado era vasto e pretensioso. Pos-suímos ainda o plano da História do Futuro, peloqual sabemos que a obra se devia compor desete livros, que deviam abordar (e resolver!) 59questões, cada uma com os seus corolários indis-pensáveis. No parágrafo inicial do capítulo IIIdo Livro Anteprimeiro, o leitor poderá encontrar oargumento de cada um dos sete livros. Pareceque só uma parte relativamente pequena chegoua ser executada do vasto projecto; uma partemuito menor ainda chegou aos nossos dias. JoséLúcio de Azevedo achou, em dois apensos aoprocesso inquisitorial de Vieira, alguma matériamais ou menos elaborada e concluída da Históriado Futuro, editando-a em 1918. A matériapublicada, repartida por dez capítulos (algunsdos quais representam lacunas consideráveis),devia fazer parte dos dois primeiros livros e tra-tam apenas de três questões das 59 planeadas.Calculando a extensão da obra inteira na dosfragmentos conservados e publicados, julgamosnão desacertar muito quando dizemos que aHistória do Futuro, quando acabada, devia ter cercade 2000 páginas. Uma empresa enorme, mesmopara quem tivesse a pena corrente de umAntónio Vieira!Mas o autor não parou ali. Ao elaborar os diver-sos capítulos da História do Futuro, foi sentindo aconveniência de a fazer preceder de um livrointrodutório, em que pudesse dar, entre muitasoutras coisas, uma exposição sistemática do espí-rito profético e do verdadeiro método de expli-car as profecias. O edifício que pretendia erguerfundamentava-se todo em profecias: profeciascanónicas e não canónicas. As profecias canónicaseram indubitavelmente verdadeiras e infalíveis,mas nem sempre era verdadeiro e infalível osentido que lhes atribuíam os antigos exposito-res da Bíblia. Entre as profecias não canónicas

havia algumas que gozavam a simpatia da Igreja,mas outras eram consideradas como duvidosas eaté suspeitas. Convinha, pois, classificar as profe-cias e descobrir-lhes o verdadeiro sentido; im-portava ainda definir em que reside o espíritoprofético e examinar se Deus, por vezes, o con-cede também a pessoas não universalmentereconhecidas como santas e até a pecadores(Bandarra!). Igualmente cumpria demonstrarque o Reino de Portugal, desde a sua fundaçãonos campos de Ourique, fora sempre um temapredilecto dos profetas bíblicos e outros viden-tes: o profeta Isaías refere-se tantas vezes aos des-cobrimentos portugueses que, segundo Vieira,pode ser contado entre os cronistas de Portugal.Assim foi-lhe nascendo a ideia de escrever oLivro Anteprimeiro, obra essencialmente lusocên-trica, na qual o jesuíta empregou o melhor dassuas forças durante os primeiros meses de 1665.O Livro Anteprimeiro devia ser o amplo vestíbuloda História do Futuro propriamente dita. Mastambém o vestíbulo não chegou a ser acabado.Quanto saibamos, tudo o que dele nos restalimita-se aos seus doze capítulos iniciais que,pela maior parte, remontam ao “retalho da peça”que, como já vimos, Vieira mandou para Lisboana Primavera de 1665. No apenso 8.º ao já refe-rido processo inquisitorial se encontram aindadois trechos mais ou menos elaborados, quedeviam integrar-se no capítulo XII, mas nãosem terem sido submetidos a diversos retoques.A obra, tal como era planeada, devia ser muitovolumosa. No capítulo VIII, Vieira refere-se, portrês vezes (pp. 80, 83 e 84 da presente edição),ao “capítulo sessenta”, no qual promete falarsobre o espírito profético do Bandarra. Prova-velmente, o tal capítulo nunca existiu senão nointento do autor. Mas as referências provam queele, ao fazê-las, tencionava tratar de inúmerosassuntos antes de entrar na exposição sistemáticadas trovas do sapateiro de Trancoso. Esta exposi-ção devia, sem dúvida, constituir o ponto culmi-

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nante do Livro Anteprimeiro, o qual, fazendo-seum cálculo muito por alto, poderia chegar a terumas mil páginas. A ambição de Vieira não re-cuava diante de vastos projectos. Mas uma coisa éconcebê-los, outra executá-los.Aliás, os sete manuscritos, que nos transmitem otexto completo ou incompleto dos doze capítu-los, trazem a indicação (omitida por todas asedições impressas): Primeira Parte, indicaçãoinsofismável de que a ela se havia de seguir, pelomenos, mais uma parte, se não fossem duas, trêsou quatro.Os manuscritos transmitem-nos também ostítulos e subtítulos da obra. De acordo com ogosto barroco da época, eles são pomposos: [...]

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TEXTOS LITERÁRIOS

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Cartas

Vol. I(excertos)

ÂNUA DA PROVÍNCIA DO BRASIL(1626)

O Padre António Vieira nasceu em Lisboa, de famí-lia modesta, a 6 de Fevereiro de 1608. Com 6 anosde idade foi com seus pais residir na Baía. Aos 15entrou como noviço no Colégio dos Jesuítas, quejá frequentava como aluno diligente e de grandespromessas. No ano seguinte, de 1624, foi tomada acidade pelos Holandeses, sob o comando do almi-rante Jacob Willekens. Com o grosso da populaçãoem fuga para o interior foram os Jesuítas, e comeles António Vieira, permanecendo numa povoaçãode índios, que os padres dirigiam, até à retirada doinvasor, passados doze meses.Tanto se havia distinguido o noviço, durante essetempo, pela agudeza do entendimento e saberadquirido, e tais provas dera de exímio latinista, quea ele os superiores encarregaram de redigir a CartaAnnua, circunstanciado relatório que, pela regra,todas as províncias da Companhia hão-de mandarao geral.Desta carta existem nos arquivos da Sociedade, emRoma, dois exemplares, ambos autógrafos e assina-dos por António Vieira, um com a data de 21 deNovembro, outro de 1 de Dezembro de 1626. PeloPadre. Francisco Rodrigues, jesuíta, que ultima-mente as examinou, sabemos ser o texto latino

mais breve; o português, evidentemente depoisconcertado na linguagem, mais copioso de notícias.O escrito, nesta forma, e como tem sido publicado naimprensa, difere igualmente na data, 30 de Setem-bro de 1626, porventura a do primitivo rascunho,vertido a latim, e a que mais tarde o autor aditoureminiscências e poliu a linguagem. A narrativa,além do valor histórico, tem o que deriva de nosfornecer a primeira parte um capítulo de autobio-grafia, embora sem referência pessoal; pois, nos factosmencionados, em alguns foi António Vieira figurante,ao mesmo tempo que observador.

CARTA I

Ao geral da Companhia de Jesus

1626 – Setembro 30

Pax Christi

[...]

COLÉGIO DA BAÍA

[...]Abre esta costa do Brasil, em treze graus da partedo sul, uma boca ou barra de três léguas, a qual,alargando-se proporcionalmente para dentro, fazuma baía tão formosa, larga e capaz que, por sertal, deu o nome à cidade, chamada, porantonomásia, Baía. Começa da parte direita emuma ponta, a qual, por razão de uma igreja efortaleza dedicada a Santo António, tem o nomedo mesmo santo; e, correndo em meia lua espaçode duas léguas, se remata em uma língua deterra, a que deu o nome de Nossa Senhora deMonserrate uma ermida consagrada à mesmaSenhora. No meio desta enseada, com igual dis-tância de ponta a ponta, está situada a cidade, noalto de um monte, íngreme e alcantilado pelaparte do mar, mas por cima chão e espaçoso;rodeiam-na por terra três montes de igual altura,

PadreAntónio Vieira*

* António Vieira. Cartas. Coord. e anot. por J. Lúcio deAzevedo. Vols. I, II e III. Lisboa: INCM, 1997 (reimp. de1970).

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por onde estende seus arrabaldes, dos quais oque fica ao sul tem por remate o Mosteiro de S.Bento, e no que lhe responde ao norte, estásituado o de Nossa Senhora do Carmo; o terceiroestá ao leste e menos povoado. É a praia dacidade em baixo estreita, e defendem-na trêsfortes, dois em terra e um no mar, avantajadoaos mais por razão do sítio e fortaleza.Alguns dias antes da chegada dos inimigos, es-tando no coro em oração dois dos nossos padres,viu um deles a Cristo Senhor Nosso, com umaespada desembainhada contra a cidade da Baía,como quem a ameaçava. Ao outro dia apareceuo mesmo Senhor com três lanças, com que pare-cia atirava para o corpo da igreja. Bem entende-ram os que isto viram que prognosticava algumcastigo grande; mas de qual houvesse de ser esta-vam incertos, quando, em dia da Aparição de S.Miguel, que foi a 8 de Maio de 1624, aparece-ram de fora, na costa, sobre esta Baía, 24 velasholandesas de alto bordo, com algumas lanchasde gávea, as quais fizeram crer aos cidadãos, cos-tumados a viver em paz, o que lhes não persua-diram de todo os avisos que dois anos antesmandara Sua Majestade, nem a nau capitainadesta mesma armada, que quase todo o mêspassado tinha andado na barra, e roubado umnavio que de Angola vinha carregado comnegros para o serviço e maneio desta capitania.Mandou logo o Sr. Governador Diogo de Men-donça Furtado dar rebate; ajuntou-se a gente,que foram pouco mais ou menos três mil homens,e, armados, cada um como pôde, se repartiramem companhias, deram cargos e assinaram estân-cias. [...]Tanto que emparelhou com a cidade a almi-ranta, a salvou sem bala, e despediu um batelcom bandeira de paz. Mas à salva, e à embaixadaantes de a ouvirem, responderam os nossos compelouros, o que vendo os inimigos, se puseramtodos a ponto de guerra. Viraram logo as nausenfiadas sobre a terra, e, por onde iam passando,

descarregavam os costados na cidade, forte e na-vios que estavam abicados na praia, o que conti-nuaram segunda e terceira vez, até que, depoisdo meio-dia, puseram todos a proa em terra, e astrês dianteiras em determinação de abalroarem afortaleza, mas, impedidas dos baixos, lançaramferro, e em árvores secas, como se foram todasde fogo e ferro, começaram a desfazer tanto neleque parecia pelejava nelas o inferno. E foi tal atempestade de fogo e ferro, tal o estrondo econfusão, que a muitos, principalmente aos poucoexperimentados, causou perturbação e espanto,porque, por uma parte os muitos relâmpagos fu-zilando feriam os olhos, e com a nuvem espessado fumo não havia quem se visse; por outra, ocontínuo trovão da artilharia tolhia o uso daslínguas e orelhas, e tudo junto, de mistura comas trombetas e mais instrumentos bélicos, eraterror a muitos e confusão a todos.Respondiam-lhe da terra o forte e as nossasnaus, ainda que desigualmente, por ser a artilha-ria pouca, e andar já quente com o avantajadoemprego.Mas, enquanto nos ocupávamos em defender apraia, duas ou três naus holandesas, que ficavamna retaguarda, despejaram na ponta que dissemos,de Santo António, muita gente, e dizem seriamquinhentos para seiscentos soldados. Vendo istoduas bandeiras nossas, que lá estavam em guarda,não aguardaram que chegassem, antes, não seatrevendo a resistir, voltaram para a cidade, es-quecidos daquele nome português que ainda emnossos tempos fez tremer e fugir exércitos intei-ros; e, posto que um padre nosso os animava quetornassem, adiantando-se com ânimo de verda-deiros portugueses e verdadeiros soldados deCristo, até chegar cara a cara com os inimigos,armados só da confiança em Deus, contudoestavam tão frios do medo que não foi partepara os apertar o fervor e espírito do padre.Entretanto não cessava a bateria, antes cada vezse acendia mais. [...]

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Não ficaram aquém nesta empresa os índiosfrecheiros das nossas aldeias; antes eram a princi-pal parte do nosso exército, e que mais horrormetia aos inimigos, porque, quando estes saíame andavam pelos caminhos mais armados eordenados em suas companhias, estando o solclaro e o céu sereno, viam subitamente sobre siuma nuvem chovendo frechas, que os trespassa-vam, e, como lhes faltava o ânimo do outroEspartano (que disse pelejaria mais a seu gostoquando as setas do Persa fossem tão espessas que,cobrindo o sol, lhe fizessem sombra), não seatreviam a resistir, porque, enquanto eles prepa-ravam um tiro de arcabuz ou mosquete, játinham no corpo despedidas do arco duasfrechas, sem outro remédio senão o que davamos pés, virando as costas; mas nem este lhe valia,porque, se eles corriam, as frechas voavam e,descendo como aves de rapina, faziam boa presa;e ainda que não matavam algumas vezes de todo,todavia, como muitas eram ervadas, ia o venenolavrando por dentro até certo termo, em quelhes dava o último da vida.Entre estes índios se avantajavam uns na destrezado atirar, outros no ânimo de acometer, mas emgeral se experimentou em todos os desta capita-nia grande ódio aos contrários e maior fidelidadeaos nossos, porque, sendo assim que muitos negrosde Guiné, e ainda alguns brancos, se meteramcom os holandeses, nenhum índio houve quetravasse amizade com eles, o que foi muito par-ticular e especial mercê de Deus, e indústriatambém dos nossos padres, os quais sempre, eagora mais que nunca e com mais eficácia, osinstruíam na fé, intimando-lhes o amor quedeviam ter a Cristo, e lealdade a Sua Majestade;grande bem espiritual e não menor temporalpara os moradores deste Brasil, porque sem índiosnão podem viver, nem conservar-se, como todosconfessam.Tornemos aos inimigos, os quais, enquanto presose encerrados na cidade, não estavam ociosos,

porque, entendendo que havíamos de ser socorri-dos com a armada de Portugal, todo o seu cui-dado era fortificar-se quanto mais podiam contraela. Para reforçar os muros da cidade e das suasportas, que estavam fracos, levantaram uns montesde terra, tão altos que mais pareciam criadoscom poder da natureza que levantados à forçade braços, e a mesma terra que tiravam abriauma cova, tão profunda quanto era a altura dosbaluartes. Fizeram sobressair por cima umas pontasde paus, tão agudas e unidas sobre si que dificul-tavam notavelmente a subida se alguém a inten-tasse. Pelas quebradas dos três montes, que disse-mos cingiam a cidade, represaram as correntesde algumas fontes, e fizeram um tanque, tão largoe alto quanto bastou para impedir a passagem aqualquer força ordinária. Levantaram o forte dapraia que estava imperfeito. Por toda a cidadeem roda assentaram artilharia nos portos e pos-tos mais importantes. E, porque lhes não faltassecoisa alguma, com que pudessem impedir-nos aentrada na cidade, semearam ao redor dela, edentro, nas bocas das ruas, uns estrepes de ferro,feitos por tal arte que, de qualquer parte quecaíam, assentavam três pontas no chão ficandooutra para cima, e estes em tal distância uns dosoutros que, caminhando, ainda em boa paz, nãobastava qualquer tento para assentar o pé emsalvo, e, errando o passo, ficava um homem presoe enredado sem remédio.À vista destas prevenções crescia muito, em todosos nossos, o desejo de ver já o socorro que espe-ravam. Nas aldeias, onde estávamos os da Com-panhia, além das orações e penitências que seacrescentavam, todas as sextas-feiras e sábados sefazia uma procissão com ladainhas cantadas,pedindo misericórdia a Deus, até que o mesmoSenhor, no dia da Redenção do Mundo, nosquis mostrar a nossa, antecipando-nos as aleluiascom a primeira vista da nossa armada, a qual, diade Páscoa da Ressurreição, primeiro de Abril de1625, amanheceu toda dentro na baía, posta em

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ala, para que as velas inimigas que no porto esta-vam não pudessem sair, nem escapar.Vinham todas juntas as armadas, a de Espanha, ade Portugal, a Real de Castela, a do Estreito e acapitania, de Nápoles, com outros galeões enavios; por todas eram sessenta velas, pouco maisou menos. Por generalíssimo de todas estas ar-madas vinha o Sr. D. Fradique de Toledo, generalda Real de Castela, e bem afamado pelos anosque há é general, e pelas vitórias que houveainda contra os mesmos holandeses; esta armadafoi a mais poderosa que até agora passou a linha,e nela pudera vir a pessoa real, conforme afidalguia que de Portugal vinha.Começou a desembarcar a gente em terra semresistência, porque os nossos de cá tinham tudopor seu, até à cidade, que, a não ser assim, haviade custar as vidas de muitos o desembarcar. Masesta facilidade e segurança foi causa da desgraçaque direi.Os que vinham da armada, vendo que eramtantos mil, e que quatro homens tinham emtanto aperto o Holandês, fizeram pouco casodele, não advertindo que o inimigo quanto maisdesprezado mais ousado, e assim se começaram aalojar nas casas de S. Bento, desarmados e comoquem estava em sua casa, descansando do traba-lho que tiveram em andar uma légua de cami-nho até àquele posto.Vendo os da cidade o inimigo, botaram umamanga de duzentos ou trezentos arcabuzeiros,que de repente os acometeram, estando descui-dados de tal ousadia; saiu logo cada um com asarmas que a pressa lhe ofereceu, e investiram osmais com piques. Os inimigos, disparando osarcabuzes, se iam retirando para a porta da cidade,e os nossos seguindo-os; mas, tanto que os des-cobriu a artilharia da porta, recolhendo-se emsalvo os holandeses, deram fogo a umas peçasque, espalhando um chuveiro de balas, pregos eferro miúdo, fizeram grande estrago em muitossoldados e alguns fidalgos castelhanos de muita

importância e valor na guerra. Entre estes, omais ilustre foi um espanhol, mestre de campo,chamado D. Pedro Osório, o qual, fazendo umaconfissão geral com um dos nossos padres, foitão venturoso que, sendo absolto, foi imediata-mente morto no mesmo conflito. Parece queDeus o quis salvar, em lhe trazer o padre naquelaocasião, sendo que o chamavam para outra partee ele se escusou, com intento de concluir aquelaconfissão.Desembarcados que foram todos, dividiram-se,juntamente com os soldados da terra, nos trêsmontes, onde se recolheram uns em algumascasas que havia, outros em barracas de palha.Aqui trabalharam todos, e foram levantandotrincheiras de terra e fachina, servindo na obra,além da soldadesca ordinária, os melhores docampo; entre estes se assinalaram muitos fidalgosportugueses, que na armada vinham, particular-mente os que vinham por soldados ordinários,que então resplandecia mais neles a nobrezaquando, carregados com os feixes de rama oucestos de terra, andavam servindo entre os ple-beus pela glória e honra de seu Deus e rei. Ver-dadeiramente que nos alegrámos, e todos nosenternecemos, de ver os condes e senhores titu-lares feitos mariolas nesta empresa gloriosa,como se foram daquele primeiro Portugal ovelho. Não nomeio aqui a todos, dando a cadaum os grandes louvores que merece, porquenem posso, nem também pertence ao meu in-tento, além de que cada um deles merece por sisó uma relação inteira.Esta alegria nos aguava o muito dano que osinimigos nos faziam, não cessando todo o dia etoda a noite de jogar a artilharia, com a qualfaziam pontaria aos nossos, por andarem muitoamontoados e em montes altos e descobertos.Sobretudo, nos magoou a morte do morgadoMartim Afonso de Oliveira, fidalgo tão ilustre,esforçado, conhecido, benquisto; tratou-o tãomal uma bala que, em espaço de dois ou três

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dias, concluiu a vida. Mas consolou-nos que re-cebeu todos os Sacramentos, e morreu verdadeirocristão, como sempre foi.No mesmo tempo quase, botou o inimigo umanoite duas naus abrasadas em fogo, para que,levadas da maré, dessem pelas nossas e, ateando-seem uma, fosse o fogo saltando às outras e desba-ratasse a todas; mas, como estavam prevenidas epreparadas, escaparam largando velas, amarras eâncoras, ainda que com grande perigo das maisvizinhas, das quais livrou Deus uma ou duas mi-lagrosamente.Por esta ocasião temeram os nossos que, deses-perados os holandeses de se poderem defender,intentassem acolher-se nas suas naus, porque,ainda que as nossas tinham bem tomada a barra,com facilidade, particularmente na revolta danoite, podia escapar alguma. Pelo que, chegandomais as nossas às inimigas, e ajudadas também danossa artilharia de terra, desaparelharam a umasmastros e enxárcias e meteram no fundo outras,por maneira que todas ficaram mancas para na-vegar.Impossibilitada ao inimigo esta fugida, estavamjá as trincheiras e plataformas levantadas. Planta-ram nelas a artilharia, e aos 16 pouco mais oumenos da chegada, que foram outros tantos deAbril, começou a bateria formada e mui furiosaa varejar de todas as partes a cidade, derrubandogrande parte do muro e muitas casas, que comsua ruína davam a morte a muitos; porque,quantas pedras se batiam e caíam, tantas balas sedespediam, as quais não eram de menos efeitoque as de ferro, se acertavam. Respondiam-lheos de dentro com animosa continuação, asses-tando umas peças com pontaria contra os com-batentes e atirando com outras a montão, que,como era muita a gente, não matavam menosque as primeiras, nem lhes desacordava os âni-mos a destruição de seus anteparos e baluartes,porque punham tanta diligência em os refazerque, quanto anoitecia derrubado com a bateria

de dia, tanto amanhecia ao seguinte reedificadocom o trabalho da noite, e não só renovavam ocaído, mas faziam novas e mais grossas trincheiraspor dentro, que atravessavam as ruas, abocandonelas peças para fora. Mas em tudo trabalhavamdebalde, porque a nossa artilharia eram meioscanhões, mui reforçados, que com muita facili-dade quebravam e arrasavam tudo, e a seu ímpetonão havia força que resistisse, nem reparo queparasse.Prosseguindo sem descansar o combate, à sombrada artilharia se iam os nossos chegando comtrincheiras, para serviço das quais faziam primeirocavas na terra, por onde pudessem caminhar semo inimigo dar fé deles, porque o mesmo eraserem vistos dos olhos que pescados dospelouros. Por momentos se viam cada vez maisapertados, porém maior aperto era o em que ospunha a destreza dos nossos bombardeiros, que,embocando umas balas pela sua artilharia deles eoutras pelas ruas, com as primeiras descavalga-vam as peças, matando os que as governavam,com as segundas levavam quanto havia diante,exercitando grande mortandade e carniçariacruel.Passados doze ou treze dias de bateria, vendo oHolandês por terra toda a sua artilharia, e osmais dos artilheiros mortos, em quem principal-mente confiava, e que estavam já quase abar-badas as nossas trincheiras com as suas, conside-rando como o resistir lhe custava tanto e rendiatão pouco, e que, se quisesse sustentar o cerco, searriscava a serem metidos à espada e acabaremmiseravelmente todos, houveram por bem ren-der-se e vir a concertos. Pelo que, depois devárias propostas e réplicas de parte a parte, seassentou que entregariam a cidade com todo orecheio e os rebeldes, e que em suas pessoas eno que sobre si tivessem se não buliria; e quepara tornarem às suas terras lhe dariam embar-cação, algumas armas e mantimentos, pagandoeles holandeses tudo pelo seu justo preço.

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PRIMEIRA MISSÃO DIPLOMÁTICA

PARIS E HAIA

(FEVEREIRO A JULHO DE 1646)

Tendo-se distinguido como orador sagrado daBaía, o Padre António Vieira veio em 1641 à me-trópole, onde logo captou a admiração pública, porsua eloquência no púlpito, e o favor de D. João IV,pelo modo como apreciava os negócios do Estado.Em 1646 a situado destes era grave. Na Europafalhavam os recursos para a guerra com Castela; naAmérica a revolta dos colonos, em Pernambuco,contra o domínio holandês, infundia receios deque as Províncias Unidas, dando por quebrada atrégua ajustada em 1641, rompessem por sua vezem declarada beligerância. Para o congraçamentocom este possível contendor, e para a resistência aooutro, efectivo, contava D. João IV com o socorroda França. Desde a proclamação da monarquianova, em Portugal, prosseguiam as negociaçõespara uma liga entre as duas coroas contra aEspanha, inimigo comum; mas continuamente osministros franceses, Richelieu primeiro e depoisMazarino, pródigos de promessas, iludiam as espe-ranças afagadas em Lisboa.Nesta época D. João IV, desanimado sobre osnegócios do Brasil, cuidava de concertar-se com aCompanhia Ocidental holandesa, resgatando pordinheiro Pernambuco, transacção que excluía aeventualidade de guerra formal com a República;e para esse fim pretendia a intervenção da França.No intuito de reforçar a tentativa, e estimular ozelo dos embaixadores, deliberou mandar a Paris eHaia um emissário, e escolheu o Padre Vieira, peloque fiava de suas aptidões em política e comoentendido nas coisas do Brasil.O jesuíta saiu de Lisboa por mar em 1 de Fevereiro,e chegou a 20 a Paris, onde não encontrou oembaixador, conde da Vidigueira, que dali haviapartido a embarcar em Nantes, de regresso a Por-tugal. Em posse da embaixada achava-se o secretá-rio António Moniz de Carvalho, com o título deresidente. Com ele o Padre Vieira visitou a

Mazarino. Depois, desempenhada a sua incumbên-cia, deixou Paris em 2 de Abril, domingo dePáscoa, de caminho a Ruão, onde tinha de receberdos judeus portugueses, lá estabelecidos, créditosbancários para Amsterdão. De Ruão viajou paraCalais, e dali embarcado a Roterdão, chegando aHaia em 18 de Abril.Na Holanda ficou três meses, sem que o propósitoda jornada fosse realizado. Em Agosto achava-senovamente em Lisboa.A última carta deste período corresponde à chegadado padre à capital flamenga. Da sequência dosacontecimentos não temos informação por Vieira,e as cartas que no-la haviam de dar podem ter-sepor definitivamente sumidas.

CARTA IV

Ao marquês de Nisa

1646 – Março 11

O certo é, senhor, que, como as coisas de Françase entendem diferentemente em Portugal, assimdas de Portugal não pode haver cabais notíciasem França, e ainda no mesmo Portugal receioque as ache V. Ex.a com dificuldade, porque agente daquele país, que V. Ex.a muito bemconhece, poucas vezes julga das coisas com osolhos livres de paixão. Grande mercê faz Deus aPortugal em levar lá a V. Ex.a; mas entendo que anão tem feito menor a V. Ex.a em ter a V. Ex.a

tantos anos fora de Portugal. Do que V. Ex.a mediz na sua carta entendo eu que V. Ex.a está noconhecimento desta verdade; mas as experiênciasde mais perto ainda hão-de confirmar mais a V.Ex.a nela. Esta é a razão por que se obra menosdo que convém, e do que se pudera, e não têmtanta culpa as causas primeiras como o mundolhes imputa; porque com instrumentos contráriossó Deus pode obrar, e quando o faz é milagrosae não naturalmente. Deus nos mude as condi-

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ções, que, enquanto formos portugueses, não seise faremos coisa digna de tão honrado nome.Muito estimo que haja sempre sido da opiniãode V. Ex.a a paz com Holanda, a qual está nostermos que V. Ex.a vê, porque a alguns valentõesde Portugal lhes pareceu que eram poucos parainimigos os castelhanos. Eu estava numa camasangrado dezasseis vezes, quando do Brasil mevieram as primeiras notícias do que se queriaintentar; e, porque o impedimento me não per-mitia falar com S. M., e dizer-lhe pessoalmenteo que entendia naquela matéria, como quemtantos anos havia estado no Brasil e sabia o quelá se pode, pedi a um prelado muito confidentede S. M. lhe quisesse representar de minha parteo perigo e dificuldade desta empresa, e que osegurasse que era impossível render-se a princi-pal força, por mais que os de lá, enganados dodesejo da liberdade, o prometessem; e acrescen-tava que, ainda quando o Brasil se nos desse degraça, era matéria digna de muita ponderaçãover se nos convinha aceitá-lo com os encargosda guerra com a Holanda, em tempo que tãoembaraçados nos tem a de Castela; porque sãohomens os Holandeses com quem não sóvizinhamos no Brasil, senão na Índia, na China,no Japão, em Angola, e em todas as partes daterra e do mar onde o seu poder é o maior doMundo. Estas e outras razões propus àquele pre-lado, que não sei se as representou a S. M.; só seique por nosso mal fui profeta, e queira Deusque aqui parem os meus temores.O que V. Ex.a diz de se haver de propor o trata-do da paz absolutamente para que, descendo-seaos meios da conveniência, se ponha em práticao da compra, é matéria que não tem dúvida pelaaceitação e conveniência do mesmo contrato,que, oferecido da nossa parte em primeiro lugar,fica de muito desigual condição; mas não meconformo facilmente com os que querem que aproposição da paz com Holanda, e da mediaçãode França, haja de nascer dos mesmos Holande-

ses; porque, se havemos de esperar que elesdêem o primeiro movimento a este negócio,nunca se começará; porque a eles está-lhes muitomelhor a guerra que a paz, e nós não estamosem tempo de a dilatar, porque na dilação cresce-rão os empenhos, e com eles a dificuldade daconvencia. [SIC] [...]Criado de V. Ex.a

António Vieira

CARTA XV

A Pedro Vieira da Silva

1647 – Dezembro 30

Senhor meu. – Escrevo esta já de Holanda, e,ainda que se aumenta a distância e a ausência,posso afirmar com toda a verdade a V. M.cê quenão se diminuem, antes crescem cada vez maisas saudades. Lembro-me daquelas horas solitáriasdessa secretaria, em que o coração de V. M.cê e omeu, como tão conformes no zelo e no desejo,se costumavam entristecer ou consolar junta-mente; e de uma e outra cousa oferecem cadadia os tempos novas causas, mas sem aquele alí-vio que até por carta me falta há cinco meses.Pelo assento que tomou o Conselho de Estado,sobre os agradecimentos que se mandaram aoembaixador Francisco de Sousa, julguei quantolá se estimará a conclusão desta paz. Nas primei-ras cartas, que escrevi de Paris, quase a segurei,pelas que me mostrou o marquês de Nisa; nassegundas a comecei a duvidar, pelo que fui ex-perimentando; e agora tenho por quase certoque se não concluirá, por mais que digam osque vão, e escrevam os que ficam, ainda que apaz entre Castela e Holanda se publique, que éo termo que lhe assinam os ministros de Françae nossos. O sucesso da Baía, senhor, é o que parasempre nos há-de concertar ou desconcertar

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com esta gente; e até vir recado dele poderãoentreter-nos com conferências, mas não hão-deconcluir o tratado.Sobre o modo da guerra que se deve fazer,escrevo o que me ditou o zelo, e o desejo deque acertemos em negócio tão grande e tãoarriscado. V. M.cê risque e emende o que lheparecer menos acertado, mas peço-lhe muitoseja de voto que vençamos antes em seis mesesdo que arriscarmos tudo num dia. Concertemosa armada, estorvemos os mantimentos ao inimi-go; e eu seguro o cunctando restituit rem.Manuel de Sequeira leva uma via deste papel, eo Padre José Pontilier, meu companheiro, outra;encomendo-o muito a V. M., e porque nestamesma ocasião tenho cansado a V. M.cê, comoito cartas de diferentes matérias para S. M., ealgumas muito largas, não quero dilatar maisesta, e acabo com pedir a Nosso Senhor muitobons princípios de ano de 48, em que Deus nosfaça ver as felicidades que as profecias nele parecenos prometem. – Haia, 30 de Dezembro de1647.Depois de escrita esta, houve conferência on-tem, 3 de Janeiro, na forma que V. M.cê lá verá.As esperanças da paz antes se adiantaram quediminuíram: muitas graças devemos a Deus, quepeleja e negoceia por nós. A armada tem arriba-do duas vezes, perdeu já alguns navios, vai-lhemorrendo gente, e os ventos, cada vez mais con-trários e tempestuosos: e já se persuadem algunsdestes fiéis cristãos, e seus predicadores, que nãoquer Deus que vão ao Brasil, com que estãomais brandos os que furiosamente queriam aguerra, mas ainda pedem como quem a nãoteme. Agora era o tempo de negociar, mas,como o dinheiro e os créditos estão na mão doMarquês, e se gastam três semanas com ir e vir ocorreio, perdem-se ocasiões que às vezes consis-tem num momento. Eu não aprovo nem conde-no; mas, ou S. M. não fie as embaixadas de quemnão fia o dinheiro ou fie o dinheiro de quem fia

as embaixadas. - O maior e mais verdadeiro ser-vidor de V. M.cê

António Vieira

CARTA XVI

Ao marquês de Nisa

1648 - Janeiro 6

Já não fazia conta de poder escrever neste cor-reio a V. Ex.a, pela muita ocupação destes diasem escrever a Portugal, que foi necessário fazê-locom mais largueza, dando-lhe conta desta arma-da, e discorrendo com as notícias do Brasil, sobreo modo da guerra que lá se deve fazer, que, senão for muito particular, pode correr risco anossa armada, e, após ela, tudo. Se puder, manda-rei a V. Ex.a a cópia de um papel, para que, com aaprovação de V. Ex.a, tenha esperanças de queem Portugal se aceite, e no Brasil se execute.Leva-o o Padre Pontilier, que, sobre hoje nosaguar a solenidade dos Reis com os sentimentosde sua despedida, agora se fica para outra oca-sião, porque, como o bom vento aqui é tão raro,os pilotos não esperam por ninguém. Várias per-das se referem de navios e gente do inimigo,particularmente morta de bexigas, que depoisque o reverendo Padre Francisco as lisonjeoutanto em El-Rei de França, puseram-se da partede El-Rei de Portugal. Houve conferência, emque antes alcançámos que perdemos esperanças.Veio Zelanda, que nunca tinha vindo, e agora éo tempo de a comprarmos, se ela se quiser ven-der, com que a principal dificuldade ficarávencida.Mr. de la Thuillerie me chama demasiadamenteconfiado, porque me vê rijo em condescendercom petições demasiadas destes senhores; bemsabe V. Ex.a que ninguém mais que eu deseja apaz, mas há-de ser como convém. Sinto que não

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haja partido a fragata de Ruão, porque de cá nãofoi nem pode ir aviso até agora, nem poderá irsenão como mesmo vento que levar a armada, eimportava muito que chegara quando menosum mês antes. Também me pesa que o negóciodas de S. Maló não tivesse efeito até agora. Espe-ro que S. M. o aprove, e entendo que, com avisoseu e sem ele, lhe fará V. Ex.a mui particularserviço nesta negociação.Tomei tão pouco papel, porque cuidei que menão desse lugar a tantas regras o Sr. Embaixador,com quem imos esta tarde a cear com Mr. de laThuillerie, que nos convidou.Deus nos tenha as cabeças de sua mão, e a V. Ex.a

dê muito bons Reis, e, se for bom, um basta.Pelos meus peço me tenha V. Ex.a em sua graça.Haia, 6 de Janeiro de 648. – Criado de V. Ex.a

António Vieira

CARTA XIX

Ao marquês de Nisa

1648 - Janeiro 27

[...]Suponho mais, como é ainda mais evidente, quede todos os aliados de França nenhum lhe im-porta mais que Portugal, por seu maior poder,por fazer a guerra a Castela dentro nas entra-nhas, pela diversão de Holanda nas conquistas, eprincipalmente porque, se Portugal fizesse pazcom Castela, que é o mais fácil meio de a fazertambém com Holanda, no mesmo dia ficavaFrança arruinada; porque contra Castela, Portu-gal, Holanda e o Império unidos, não há emtoda a Europa resistência no mar nem na terra, etudo isto conhecem muito bem os Franceses.Donde se segue que este temor há-de obrigarmais a França a fazer a liga que nenhum outrointeresse de socorros que lhe possamos prometer:

porque o socorro, qualquer que seja em respeitode França, nunca pode ser mui considerável; maso temor de nos podermos concertar comCastela é de tanta consideração que não importamenos que a firmeza ou ruína de França. E,como esta dependência é tão grande e tão conhe-cida, se nos apressarmos a pedir a liga, e mostrar-mos grande desejo dela, conceder-no-la-ão osFranceses com partidos sempre a seu favor; mas,se dissimularmos um pouco, e dermos tempo aque a França discorra sobre o nosso silêncio, nãohá dúvida que nos há-de rogar com a liga e quea há-de fazer como nós quisermos.Este discurso é evidente em toda a parte, e nestasonde eu agora ando muito mais que em Paris,porque lá não vemos mais que as grandezas deFrança, e aqui vêem-se as suas dependências, osseus receios, as suas contemporizações e as suasrogativas. E, finalmente, boa experiência tem V.Ex.a de quanto mais obra com esta gente omedo que a obrigação. Solicitou V. Ex.a muitoacertadamente o primeiro socorro de França e osegundo, a fim que estas demonstrações obrigas-sem aos Franceses, e lhes dessem novo motivopara nos concederem o que queríamos; e o quealcançámos com isto foram desenganos, em lugarde agradecimentos. E bastou só que depois selhes desse a entender que alguma diferente reso-lução era possível para mudarem logo de estiloem todas as partes e para prometerem os novossocorros que tão obstinadamente negavam.Assim que, senhor, continuando a forma em queV. Ex.a com tanto acerto tem respondido, meparece que, quando os ministros de França tor-narem a falar nos socorros, se lhes deve respon-der que Portugal assistirá àquela coroa, até aotempo da paz ou trégua, com número de oitonavios, a qual condição não começará a ter seuefeito senão depois de feita a paz entre Portugale Holanda, pois se entende que, formada a deCastela, se concluirá também esta. Porém que,em caso que esta paz se não efectue, ou pelo

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tempo que durar a guerra, Portugal de nenhummodo pode assistir a França com socorro algumde dinheiro, nem navios, mais que com as diver-sões de Castela e Holanda, cuja importância étão grande que não deixará França de nos con-ceder a liga e procurar ter-nos seguros com ela.E quando, contudo, os ministros franceses insis-tam, com se lhes mostrar a impossibilidade tãonotória em que estamos e com lhes dizermosque não nos queremos obrigar ao que depoisnão podemos cumprir, parece que é toda a satis-fação que lhes devemos dar; e, se os deixarmosque cuidem nela, eles tomarão melhor conselho.Até domingo se espera que se firme a paz, e,excluída França uma vez dela, será coisa muinecessária à utilidade e autoridade que essesmonsieurs sejam também requerentes e que co-nheçam a diferença dos tempos, como já V. Ex.a

vai experimentando nas audiências e recados doCardeal. Deixe-se V. Ex.a tratar alguns dias commimo, ainda que a nau da Rochela espere maisum pouco por melhores ventos, que eu confioem Deus que os que correm nos hão-de ser tãofavoráveis nessa terra como nestes mares. V. Ex.a

está hoje com o mesmo jogo com que entrouem França o monteiro-mor, e porventura avan-tajado, e já me tem contentíssimo a esperançacom que fico de que agora nos há V. Ex.a deganhar o que então perdemos.Criado de V. Ex.a

António Vieira

CARTA XLVII

Ao marquês de Nisa

1648 – Agosto 24

Ex.mo Sr. – Dou a V. Ex.a o parabém de haveremchegado as ordens de S. M., podendo tambémdar o pêsame de haverem chegado tão tarde, e

tão em outro tempo do que foram pedidas, quenão podem deixar de variar muito, assim naspropostas de V. Ex.a como nas respostas do Car-deal, pois o estado presente das cousas é tãodiverso do passado; mas a providência divina nosdá bastantes seguros de que haverá disposto, edisporá tudo, como mais convenha ao bem econservação do Reino que tanto ama.Não me dê V. Ex.a ainda recados para Lisboa,porque não estão ainda os negócios nesse estado,e sendo que o pouco que eu faço, ou possofazer neles, era bastante razão para me não teremem Holanda, onde vim pelo que V. Ex.a sabe,tenho, contudo, junto a S. M. amigos que, compretexto de seu serviço, querem que esteja eulonge, como se o não fora mais a minha provín-cia, onde só me desejo. Não são isto só suspeitas,porque tive carta em que mo avisa assim pessoaque o sabe, para que V. Ex.a se não espante dosofícios que V. Ex.a experimenta nos nossos cor-tesãos, quando até contra um religioso, que lhesnão pode tirar nada, se armam. Mas vamos anegócio de que agora darei a V. Ex.a a conta queda outra vez não pude, por estar tão doente,como V. Ex.a sabe, quando se fez a proposta.Dois inconvenientes acha V. Ex.a no açúcar quese ofereceu aos Holandeses: primeiro a quanti-dade, que ainda depois cresceu mais e chegou adez mil caixas pagas em dez anos; segundo, omodo com que se ofereceu, que foi debaixo dotítulo de terceira parte dos dízimos que S. M.recebe no Brasil.Quanto à quantidade do açúcar, bem tomára-mos nós que os Holandeses se contentaram commenos; e bem vemos que a nossa necessidadepedia que antes eles nos dessem fazenda que nósa eles. Mas, se passarmos a outras considerações,acharemos que não é demasiado este preço, secom ele comprarmos a paz e remirmos a nossavexação.Primeiramente os Holandeses nos pedem satis-fação das perdas e danos que tiveram no Brasil,

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as quais verdadeiramente foram grandíssimas,porque os levantados queimaram capitanias in-teiras, e nelas muitos engenhos; e os que ficaramem pé nas outras não os hão-de receber senãomui danificados e diminuídos. A mesma dimi-nuição, e muito maior, hão-de ter nos escravos enos gados, de que depende todo o sustento elavoura daquelas terras. Ajuntaram-se a isto asdespesas de muitos socorros particulares e deduas grandes armadas, a de Sigismundo, quecustou melhor de trinta e três tonéis de ouro, ea de Wit Wites, que custou quarenta e sete, quefazem da nossa moeda a soma de quatro milhõesde cruzados. E em satisfação de tudo isto, e dosfrutos e interesses que deixaram de lograr emperto de quatro anos, mais é na cobiça dos Holan-deses o contentarem-se com dez mil caixas deaçúcar que na nossa necessidade o darmos-lhas.Bem vejo que também eles nos deram muitasperdas, mas a isto respondem que as suas são deboa guerra, porque foram provocados, e as nossasnão, porque fomos os agressores. E ainda mal,porque isto se pode tão mal encobrir ou negar,quando os principais soldados que hoje defen-dem Pernambuco são todos vassalos de El-Rei,mandados da Baía, donde também vieram osquatro governadores, de cinco que governamaquela guerra, e ultimamente um mestre decampo general mandado de Lisboa.O que os Holandeses queriam e pediam poresta satisfação, como V. Ex.a viu na sua proposta,era a reparação dos engenhos com todos os es-cravos e cobres, dez mil bois de carro, dez milvacas, cinco mil ovelhas, cinco mil cavalos, doismilhões de florins em dinheiro e quarenta milcaixas de açúcar pagas em vinte anos; e não serápequeno milagre, contratando com holandeses,que tudo isto se venha a reduzir só a dez milcaixas em prazo de dez anos, e a metade delasde açúcar mascavado, e no Brasil.Também se deve considerar que lhes vimos adar menos agora do que antes se lhe tinha pro-

metido; porque se lhe tinha prometido que, poralguns anos, lhes pagaria El-Rei, no Brasil,quinhentos soldados, cujos soldos, e os de seusoficiais, é certo que montam tanto cada anoquanto podem valer no Brasil mil caixas daqueleaçúcar. Assim mais se lhe tinha prometido que asperdas e danos que pediam se pusessem emjuízo de árbitros; e sendo tão manifesta apresunção, ou a prova, de a trégua se haver que-brado por nossa parte, julgue V. Ex.a se compra-mos barato o livrarmo-nos só deste pleito.Ultimamente o que se dá em açúcar é muitomenos dinheiro do que as ordens de S. M. per-mitem se ofereça. Porque a estimação do açúcarnão se há-de fazer pelo que hoje vale em Lis-boa, senão pelo que há-de valer no Brasil depoisde feitas as pazes com os Holandeses. E sabemosos que temos experiência do Brasil quão grandeabatimento hão-de ter os açúcares. Muitas vezesvi lá vender o branco a cruzado, e a pataca, ealgumas vezes a muito menos. A Gaspar DiasFerreira, que é mercador de muitos anos doBrasil, mandou o Sr. Embaixador perguntar quepreço lhe parecia que teriam os açúcares nosprimeiros dez anos depois das pazes: e respon-deu que, uns anos por outros, feita a conta pormascavados e brancos, não haviam de chegar aseis tostões por arroba. Segundo este preço,montam as sobreditas dez mil caixas trezentosmil cruzados, que é a metade do dinheiro que S.M. é servido se possa oferecer, porque quinhen-tos mil cruzados pagos hoje em Holanda sãomais de seiscentos da nossa moeda.Afora isto, dava poder S. M. para se oferecer afortaleza do Porto, sustentando o presídio à cus-ta de S. M., que é outra boa partida que por estavia se poupa, tão considerável para a fazendacomo para o crédito.Não é menos digno de considerar que o dinhei-ro que S. M. manda oferecer diz que se pagarálogo; e foi grande o serviço que se fez a S. M.em estender o pagamento a prazos de dez anos,

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assim pela maior facilidade, como pelo menorvalor do que se há-de pagar. Porque só com osinteresses daquele dinheiro, a razão de juros, sepode pagar o açúcar, e no cabo de dez anos ficaro capital em ser. E, sobretudo, pagarmos aos Ho-landeses em dez anos é termos todo este tempoem nossa mão um penhor e caução sua, paramelhor nos guardarem o que nos prometerem.Finalmente, muito mais nos tomaram os Holan-deses nos mares do Brasil, nestes seis meses, doque nós lhes prometemos em todos os dez anos.Façamos conta que lhes damos cada ano doisnavios de açúcar, para que nos deixem livres osdemais, e as nossas naus da Índia, e o nossocomércio da China e o de todo o Mundo, enfimtodos os bens da paz que com isto lhes com-prarmos. [...]Haia, 24 de Agosto 648.

António Vieira

PRIMEIRA JORNADA A ROMA

(FEVEREIRO A JUNHO DE 1650)

Não logrando obter a segurança do trono pelaaliança francesa, tentou D. João IV alcançá-la directa-mente do adversário, e para tal fim propor emCastela o matrimónio recusado por Mazarino eAna de Áustria. Mais uma vez foi o Padre Vieira oemissário escolhido, agora, porém, sem credenciais,e incumbido de urdir na sombra um ajustamentoque teria levantado protestos, sabido em Portugal.Nada menos que reunir de novo as coroas daPenínsula, pelo consórcio do príncipe D. Teodósiocom a infanta D. Maria Teresa, filha então única deFilipe IV. Como satisfação ao patriotismo português,punha-se a condição de ficar sendo Lisboa a capitalda monarquia unida, quando juntos os dois Estados,por morte dos soberanos reinantes, em herançacomum dos noivos.

Para o êxito da empresa, havia de descobrir oPadre o projecto, como seu, aos jesuítas castelhanos,sondar por meio deles o embaixador, e, achandofácil o caminho, dar os primeiros toques à negocia-ção. Ao mesmo tempo, e para coagir o Gabinete deMadrid a entendimento, devia ele secretamenteestimular os propósitos de nova rebelião em Nápo-les, contra o domínio espanhol, fazendo constar aosconjurados que o Governo Português ajudaria aomovimento e facultando-lhes dinheiro por umintermediário.Mal lhe ia saindo a aventura, porque, aos primeirosrumores da proposta, o embaixador, duque delInfantado, o forçou a deixar precipitadamenteRoma, com ameaça de morte, no caso de nãoabandonar logo a cidade e a Itália, cominação quepelo geral da Companhia lhe foi transmitida.Durante o tempo que esteve em Roma, nãodescurou Vieira de procurar providências em favordos cristãos-novos, seus protegidos de sempre; masdisso só temos notícia mais tarde. A ausência deLisboa foi de quase seis meses. Partiu do Tejo, comdestino a Lionne, a 8 de Janeiro de 1650, e regressouem Junho, data não conhecida. Na ida arribou aBarcelona, que dominavam os Franceses. De látemos carta sua para o Secretário de Estado. Outracarta de Roma, aonde chegou a 16 de Fevereiro,escrita em Maio, para o Príncipe, incitando-o atomar as armas, quando em Lisboa se temia umassalto da armada inglesa; mais outra carta, do mêsseguinte, para o Rei, com as correntes novidadespolíticas: eis tudo quanto se tem até agora colhidodesse período. Da negociação tentada veio a saber--se, muitos anos depois, pelo sermão, na Baía, emacção de graças por ocasião do nascimento do in-fante D. António, filho de D. Pedro II. O acto doduque del Infantado, que motivou a retirada, oumelhor a fuga, de Roma, é conhecido pelo rol dosserviços, alegados por Vieira num memorial a favorde Gonçalo Ravasco, seu sobrinho.A última carta da presente série devia ter precedi-do poucos dias a saída de Roma.

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CARTA LI

Ao príncipe D. Teodósio

1650 – Maio 23

Senhor. – Meu Príncipe e meu senhor da minhaalma. – [...]Ah Senhor! Que falta pode ser que faça a V. A.nesta ocasião este fidelíssimo criado, e quãopoucos considero a V. A. com a resolução e valore experiência que é necessário para saberemaconselhar a V. A. o que mais lhe convém em tãoapertados casos! Mas, já que na presença nãoposso, aconselhe a V. A. a minha alma, que todamando a V. A. neste papel, e com toda ela lhedigo que, tanto que chegar esta nova, V. A. logosem esperar outro preceito se ponha de curto, omais bizarro que puder ser, e se saia a cavalo porLisboa, sem mais aparato nem companhia que aque voluntariamente seguir V. A., mostrando-seno semblante muito alegre e muito desassustado,e chegando a ver e reconhecer com os olhostodas as partes em que se trabalhar; informando-sedos desígnios e mandando e ordenando o quemelhor a V. A. parecer, que sempre será o maisacertado; mandando repartir algum dinheiro en-tre os soldados e trabalhadores, e, se V. A. por suamão o fizesse, levando para isso quantidade dedobrões, este seria o meu voto; e que V. A. sehumane conhecendo os homens e chamando-ospor seu nome, e falando não só aos grandes emedianos, senão ainda aos mais ordinários: por-que desta maneira se conquistam e se confor-mam os corações dos vassalos, os quais, se V. A.tiver da sua parte, nenhum poder de fora serábastante a entrar em Portugal, sendo pelo con-trário muito fácil ainda qualquer outra maiorempresa a quem tivesse o domínio dos corações.S. M. tem nesta parte uma vantagem muitoconhecida, que é estar de posse e poder dar,quando Castela só pode prometer. Como hápoucos Antónios Vieiras, há também poucos que

amem só por amar e S. M. não deve esperarfinezas, senão contentar-se muito de que sequeiram vender aqueles que lhe for necessáriocomprar. A pólvora, as balas, os canhões, sãocomprados, e bem se vê o ímpeto com que ser-vem, e o estrago que fazem nos inimigos; e maisnatural é em muitos homens o interesse quenestes instrumentos a mesma natureza. Os quemenos satisfeitos estiverem de S. M., esses che-gue V. A. mais a si, que importará pouco que noafecto se dividam as vontades, contanto que noefeito S. M. e V. A. as achem obedientes e unidas.Faça-se V. A. amar, e nesta só palavra digo a V. A.mais do que pudera em largos discursos. [...]Perdoe V. A. ao meu amor este e os outros atre-vimentos desta carta.

António Vieira

TEMPOS DE MISSIONÁRIO

(JUNHO DE 1651 A JUNHO DE 1661)

Desgostoso pela oposição dos émulos na Corte,magoado da hostilidade de alguns padres, dos maisinfluentes, dentro da Companhia, e provavelmenteobedecendo a imposições agenciadas por estes,António Vieira decidiu pôr ponto à intromissão napolítica e consagrar-se inteiramente aos deveres dereligioso. Ainda em 1652, rejeitou o convite doconde de Penaguião para o acompanhar na em-baixada a Inglaterra. Após uma primeira missão deensaio a Torres Vedras, das com que era uso estimu-lar o fervor devoto das populações, preparou-se opolítico desenganado para outras de maior esforçoe sacrifício, e escolheu para local de sua operosida-de Maranhão e o Pará, onde, por acidentes vários,não havia então ninguém da Companhia de Jesus.Com o ardor próprio do seu temperamento, e uti-lizando o favor do rei, dispôs António Vieira ascoisas da missão, elegeu os companheiros, tomou ocargo de superior, e se achava pronto a partir emSetembro de 1652. Parece, porém, que à última

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hora lhe esfriou o entusiasmo de apóstolo; e, muitoa propósito, uma ordem régia levada a bordo oforçou a desembarcar, seguindo os companheirosviagem sem ele.É crível que o recuo não fosse do agrado dosconfrades, empenhados em afastá-lo de Lisboa, e osuperior da missão teve definitivamente de partirem Novembro, não sem esperar, até sair a barra, arepetição do chamado, que dois meses antes o fizeraretroceder. Tudo isto consta das cartas dirigidas aopríncipe D. Teodósio em termos queixosos e oconfirmam as confidências em que descobre o seuestado de alma a dois padres amigos.Não tardou ele, contudo, a dominar as saudades davida das cortes. Arribando a Cabo Verde, já sentiadespertar de novo o zelo pela difusão da fé. AoMaranhão chega a 16 de Janeiro de 1653, e logo asobrigações de sacerdote e missionário lhe absor-vem a actividade e o pensamento. As cartas ao seuprovincial, as que vão ao Conselho Ultramarino,com o rótulo de serem para o rei, descrevem ostrabalhos e privações suportados, as resistênciasvencidas, o esforço enorme que custava iniciar nacivilização o selvagem, e preparar o terreno paraque ela mais tarde prevalecesse, em territóriosvastíssimos, desconhecidos e muitas vezes de peri-goso acesso.Em Junho de 1654, tendo pregado no Maranhão osermão famoso de Santo António, o missionárioausentou-se, para ir à Corte requerer providênciasnovas, em proveito da sua obra. Mas, demorado nomar pelo tempo, e aprisionado a segunda vez porcorsários, que o foram largar nos Açores, só emNovembro chegou a Lisboa, e em Abril do anoseguinte regressou à missão.Daí por diante, os seis anos que nela permaneceupassou-os, na mor parte, em viagens pelo estuáriodo Amazonas, e rio a cima até onde as povoaçõesde índios, introduzidos no cristianismo, pediam asua inspecção; ou ao longo da costa, indo e vindo,entre Maranhão e Pará, e, por duas vezes, maislonge, buscando de uma delas a Baía, jornada a querenunciou em caminho, da outra, a serra deIbiapaba.

Nisto, em Maio de 1661, levanta-se o povo noMaranhão para expulsar os jesuítas. Vieira, emcaminho para lá, tem de voltar a trás. As cartasXCII e XCIII são escritas quando ele, ao ter notí-cia da sedição, se refugia no Pará. Mas aí se repeteo movimento, e o Padre é conduzido em custódiaao Maranhão, e, como os demais religiosos da Com-panhia, embarcado para Portugal, aportando aLisboa em Novembro. Depois nunca mais tornouaos lugares que tinham sido, nove anos quase, teatrode seus labores.

CARTA LV

Ao padre provincial do Brasil

1652 – Novembro 14

Pax Christi

[...]Acrescem mais os cinquenta mil réis do meuordenado, com que nos remediaremos dois; e,como a renda se nos há-de pagar na Baía e Riode Janeiro, tomando-a os dois colégios em si, emandando-nos açúcares da sua lavra, com quenos façam esmola dos melhoramentos da sualiberdade, empregando-se tudo aqui nos génerosmais necessários ao Maranhão, sempre virá achegar lá muito acrescentado.Bem vejo que os riscos do mar são grandes, masalguma cousa hão-de deixar a Deus os que de-dicam tudo a Ele. No Maranhão, como de lá nosavisam, também temos ainda alguns escravos ecriação de vacas, de que se poderão ajudar osdaquela casa; e, se nas outras e nas missões sefizer o fruto que se espera, logo S. M., comotem prometido, acrescentará mais renda, e nãofaltarão pessoas particulares e devotas que nosajudem com suas esmolas. E, quando não hajaoutras, resolver-me-ei a imprimir os borrões demeus papelinhos, que, segundo o mundo se temenganado com eles, cuida o Padre Procurador--Geral que poderá tirar da impressão com que

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sustentar mais dos que agora vão: assim que, porfalta de sustentação não deixe V. Rev.a de man-dar o número dos sujeitos que S. M. pede; enesta confiança, como digo, resolvemos que decá fossem logo os doze.Disposta assim a missão, e tomado no navio omais largo e cómodo lugar que pode ser (o qualtambém deu El-Rei), em 22 de Setembro co-meçou a partir a frota, e os nossos missionáriosse foram embarcar todos: e eu dos últimos, como Padre Francisco Ribeiro, como que nos íamosdespedir deles ao navio. [...]O Padre Manuel de Lima leva comissão do San-to Ofício para o que naquele Estado se oferecertocante a este tribunal; e também no ConselhoUltramarino lhe quiseram encarregar o ofício depai dos cristãos, que agora se cria de novo noMaranhão, à imitação da Índia, para que os índiosrecorram a ele como a seu conservador, contratodas as vexações que lhes fizerem os Portugue-ses; mas, como o exercício deste cargo é de muidificultosa execução e mui odiosa, não nos pare-ceu que convinha que a levássemos, principal-mente quando imos fundar de novo, para o quenos é tão necessária a benevolência dos povos; etambém porque, sendo o nosso principal intentoabrir novas conversões pelo sertão e rio a cima,não serviria esse ofício mais que de embaraço eimpedimento a outros maiores serviços de Deus.[...]A Província do Brasil foi principalmente funda-da para a redução e conversão dos gentios, e, nãohavendo nela hoje outra missão senão esta, justoé que não faltem sujeitos para ela e que estessejam tais que a Província sinta muito perdê-los,como acontecia a S. Francisco de Borja, porquenunca melhor ganhados, nem mais bem empre-gados; que Deus, a quem se dão, dará outros poreles, e quando a Província de Portugal, a quemtoca menos, não repara em se privar dos sujeitosde maiores esperanças para os dar ao Maranhão,maior obrigação corre à do Brasil em não faltar

com os que só nele se podem achar, que são oslínguas. [...]Também se todos os línguas não forem padres, ehouver algum irmão estudante eminente nela,venha embora, que no Maranhão terá estudos eordens, como os demais que lá vão; que tudohá-de facilitar e compor o tempo, e com osprimeiros bispos que tiver Portugal o há-de tertambém aquele novo Estado, e, se a conversãofor por diante, não só um, senão muitos; e,quando totalmente o não haja, faremos o quefazem hoje os do Brasil, que todo o outro incon-veniente é menor que começar uma conversãosem homens muito práticos na língua principal-mente entre gente que mede por ela o respeito.[...]14 de Novembro de 1652. – De V. Rev.a filhoem o Senhor.

António Vieira

CARTA LVII

Ao Padre André Fernandes

1652 - Dezembro 25 [De Cabo Verde]

Pax Christi

[...]É o caso que nesta ilha de Santiago, cabeça deCabo Verde, há mais de sessenta mil almas, e nasoutras ilhas, que são oito ou dez, outras tantas, etodas elas estão em extrema necessidade espiri-tual; porque não há religiosos de nenhuma reli-gião que as cultivem, e os párocos são mui pou-cos e mui pouco zelosos, sendo o natural dagente o mais disposto que há, entre todas asnações das novas conquistas, para se imprimirneles tudo o que lhes ensinarem. São todos pre-tos, mas somente neste acidente se distinguemdos europeus. Têm grande juízo e habilidade etoda a política que cabe em gente sem fé e sem

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muitas riquezas, que vem a ser o que ensina aNatureza.Há aqui clérigos e cónegos tão negros comoazeviche, mas tão compostos, tão autorizados,tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos ebem morigerados, que podem fazer invejas aosque lá vemos nas nossas catedrais. Enfim, a dis-posição da gente é qual se pode desejar, e onúmero, infinito: porque, além das cento e vintemil almas que há nestas ilhas, a costa que lhecorresponde em Guiné e pertence a este mesmobispado, e só dista daqui jornada de quatro oucinco dias, é de mais de quatrocentas léguas decomprido, nas quais se conta a gente, não pormilhares, senão por milhões de gentios. Os queali vivem ainda ficam aquém da verdade, pormais que pareça encarecimento: porque a genteé sem número, toda da mesma índole e disposi-ção dos das ilhas, porque vivem todos os que ashabitam sem idolatria, nem ritos gentílicos, quefaçam dificultosa a conversão, antes com grandedesejo, em todos os que têm mais comérciocom os Portugueses, de receberem nossa santa fée se baptizarem, como com efeito têm feitomuitos; mas, por falta de quem os catequize eensine, não se vêem entre eles mais rastos decristandade que algumas cruzes nas suas povoa-ções, e os nomes dos santos, e os sobrenomes deBarreira, o qual se conserva por grande honraentre os principais delas, por reverência e me-mória do Padre Baltasar Barreira, que foi aquelegrande missionário da Serra Leoa, que, sendotanto para imitar, não teve nenhum que o se-guisse, nem levasse adiante o que ele começou.E assim estão indo ao Inferno todas as horasinfinidade de almas de adultos e deixando de irao Céu infinitas de inocentes, todas por falta dedoutrina e baptismo, sendo obrigados a proverde ministros evangélicos todas estas costas econquistas os príncipes de um reino em quetanta parte de vassalos são eclesiásticos e se ocu-pam nos bandos e ambições, que tão esquecidos

os trazem de suas almas e das alheias; mas tudonasce dos mesmos princípios.Padre da minha alma, este é o estado destagentilidade e desta cristandade; porque os dasilhas, ainda que todos baptizados, por falta decultura vivem quase como os da terra firme.Afirmo a V. Rev.ma que, chegando aqui e vendoe informando-me deste desamparo, e experi-mentando nas confissões destes dias o grandeque há nas almas dos portugueses que por estaspartes vivem, assim a mim como aos compa-nheiros nos vieram grandes impulsos de nãopassarmos mais adiante, e aplicarmos as nossasfoices a esta tão vasta e tão disposta messe; e semdúvida o fizéramos, se a metade da missão nãotivera ido no outro navio, e sem pessoa que alevasse a cargo. E, com eu ser tão apaixonadopelo Maranhão, confesso a V. Rev.ma que nãoposso deixar de conhecer quantas vantagens estamissão faz àquela; porque está muito mais pertode Portugal, muito mais junta, muito mais dis-posta, e de gente sem nenhuma comparaçãomuito mais capaz e ainda muito mais numerosa;em que nestas ilhas não têm necessidade de selhes aprender a língua, porque todos a seu modofalam a portuguesa, e apenas se pode em nenhu-ma nação considerar necessidade mais extrema.Eu me arranco daqui com grande inveja e dor, eparece que se me está dizendo nesta parte daÁfrica o que na oposta se disse: Facta fugis,facienda petis. Mas, como os fados me levam aoMaranhão, já que eu não posso lograr este bem,contento-me com testar dele, e o inculcar e dei-xar a quem mais amo, que são os meus padresdo Alentejo, de cujo espírito, que eu conheçomelhor que outros, espero que hão-de abraçaresta empresa com tanto afecto e resolução queas dificuldades, que nela se representam, sejamos principais motivos de a quererem por sua. [...]Cabo Verde, 25 de Dezembro de 1652. – Humildeservo, e que muito ama a V. Rev.ma

António Vieira

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CARTA LXI

Ao Padre Francisco de Morais

1653 – Maio 6

[...]Amigo, não é o temor do Inferno o que me há--de levar ao céu, o amor de quem lá se deixa vere gozar, sim. Oh! Que bem empregados mares, eque bem padecidos maranhões, se por eles sechegar com mais segurança a tanta felicidade! Sóum defeito acho nesta minha, que é não a poderrepartir convosco; mas já que vivemos sem nós,vivamos com Deus, pois está em toda a parte;vejamo-nos n’Ele e ouçamo-l’O a Ele, que me-lhor será que ouvirmo-nos.Se eu ouvira Suas inspirações, já não fora tãogrande pecador; mas, se o menos mal é parte dobem, alguma consolação posso ter hoje, que nooutro tempo me faltava. E, para que vós tambéma tenhais, sabei, amigo, que a melhor vida é esta.Ando vestido de um pano grosseiro cá da terramais pardo que preto; como farinha de pau; dur-mo pouco; trabalho de pela manhã até à noite;gasto parte dela em me encomendar a Deus; nãotrato com mínima criatura; não saio fora senão aremédio de alguma alma; choro meus pecados;faço que outros chorem os seus; e o tempo quesobeja destas ocupações levam-no os livros damadre Teresa e outros de semelhante leitura. [...]Maranhão, 6 de Maio de 1653. – Vosso amigo daalma.

António Vieira

CARTA LXII

Ao rei D. João IV

1653 – Maio 20

[...]Este dano é comum a todos os índios. Os quevivem em casa dos portugueses têm demais oscativeiros injustos, que muitos deles padecem, deque V. M. tantas vezes há sido informado, e queporventura é a principal causa de todos os casti-gos que se experimentam em todas as nossasconquistas.As causas deste dano se reduzem todas à cobiça,principalmente dos maiores, os quais mandamfazer entradas pelos sertões, e às guerras injustassem autoridade nem justificação alguma; e, aindaque trazem alguns verdadeiramente cativos, porestarem em cordas para serem comidos, ou porserem escravos em suas terras, os mais deles sãolivres, e tomados por força ou por engano, eassim os vendem e se servem deles como verda-deiros cativos.O remédio que V. M., senhor, e os senhores reisantecessores de V. M. procuraram dar a esta tira-nia foi mandar totalmente cerrar os sertões eproibir que não houvesse resgates e declarar porlivres a todos os já resgatados de qualquer modoque o fossem. Este remédio, senhor, verdadeira-mente é o mais efectivo de quantos se podemrepresentar; mas é dificultosíssimo e quase im-possível de praticar, como a experiência temmostrado em todos os tempos, e muito mais nosmotins deste ano, fundados todos em serem osíndios o único remédio e sustento dos morado-res, que sem eles pereceriam.O meio que parece mais conveniente e praticá-vel (como já se tem começado a executar) éexaminarem-se os cativeiros, e ficarem livres osque se acharem ser livres, e cativos os que seacharem ser cativos. [...]Os índios que moram em suas aldeias com títu-los de livres são muito mais cativos que os que

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moram nas casas particulares dos portugueses, sócom uma diferença, que cada três anos têm umnovo senhor, que é o governador ou capitão--mor que vem a estas partes, o qual se servedeles como de seus e os trata como alheios; emque vêm a estar de muito pior condição que osescravos, pois ordinariamente se ocupam emlavouras de tabaco, que é o mais cruel trabalhode quantos há no Brasil. Mandam-nos servir vio-lentamente a pessoas e em serviços a que nãovão senão forçados, e morrem lá de puro senti-mento; tiram as mulheres casadas das aldeias, epõem-nas a servir em casas particulares, comgrandes desserviços de Deus e queixas de seusmaridos, que depois de semelhantes jornadasmuitas vezes se apartam delas; não lhes dão tempopara lavrarem e fazerem suas roças, com queeles, suas mulheres e seus filhos padecem e pere-cem; enfim, em tudo são tratados como escravos,não tendo a liberdade mais que no nome, pon-do-lhes nas aldeias por capitães alguns mame-lucos ou homens de semelhante condição, quesão os executores destas injustiças, com que ostristes índios estão hoje quase acabados e consu-midos; e, para não acabarem de se consumir detodo, estiveram abaladas as aldeias este ano parase passarem a outras terras, onde vivessem foradesta sujeição tão mal sofrida, e sem dúvida ofizeram, se por meio de um padre, bom língua,os não reduzíramos a que esperassem nova reso-lução de V. M.As causas deste dano bem se vê que não sãooutras mais que a cobiça dos que governam,muitos dos quais costumam dizer que V. M. osmanda cá para que se venham remediar e pagarde seus serviços, e que eles não têm outro meiode o fazer senão este.O remédio que isto tem, e não há outro, é man-dar V. M. que nenhum governador ou capitão--mor possa lavrar tabaco, nem outro algumgénero, nem por si, nem por interposta pessoa,nem ocupem, nem repartam, os índios, senão

quando fosse para as fortificações ou outrascousas do serviço de V. M., nem ponham capi-tães nas ditas aldeias, e que elas se governem sópelos seus principais, que são os governadores desuas nações, os quais os repartirão aos portuguesespelo estipêndio que é costume, voluntariamente,como livres, e não por força; e que, no tocanteao espiritual, visitem suas aldeias ou residam ne-las, podendo ser, os religiosos, o que costumamfazer, que é a forma a que depois de muitasexperiências se reduziu o governo das aldeias doBrasil, sem se intrometerem com os índios nemos vice-reis nem os governadores, mais quemandando-os chamar, quando eram necessáriospara o serviço real na paz ou na guerra: e sódesta maneira se poderão conservar e aumentaras aldeias, e viver como cristãos os índios delas.[...]Maranhão, 20 de Maio de 1653.

António Vieira

CARTA LXIV

Ao provincial do Brasil

1653 – Maio 22

[...] De sorte que achei a maior parte dos índios,que vivem entre os portugueses, como se entãoacabaram de descer do sertão, e com alguns víciosdemais, que se lhes pegaram dos mesmos portu-gueses. [...]Maranhão, 22 de Maio de 1653.

António Vieira

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CARTA LXV

Ao padre provencial do Brasil

1654

[...]Com esta frota partimos pelo rio Tocantins,aproveitando-nos da enchente da maré, que sóaté aqui nos acompanhou, prometendo-nosmuita felicidade na jornada, por ser em dia deNossa Senhora de Expectação, a 18 de Dezem-bro. À meia-noite fizemos pabóca, que é frasecom que cá se chama o partir, corrompendo apalavra da terra, e nos dias seguintes passámos àspraias da viração. Parecerá que se chamam assimpor correr nelas vento fresco; mas a razão porque os portugueses lhe deram este nome é aque direi a V. Rev.a. Nos meses de Outubro eNovembro saem do mar e do rio do Pará grandequantidade de tartarugas, que vêm criar nosareais de algumas ilhas que pelo meio desteTocantins estão lançadas. O modo da criação éenterrarem os ovos, que cada uma põe em nú-mero de oitenta até cem, e cobertos com a mes-ma areia os deixam ao sol e à natureza, a qual,sem outra assistência ou benefício da mãe, oscria em espaço pouco mais ou menos de ummês. Destas covas saem para as ondas do marpor instinto da mesma natureza, a qual tambémos ensina a sair de noite, e não de dia, pelaguerra que lhe fazem as aves de rapina, porquetoda a que antes de amanhecer não alcançou orio a levarão nas unhas. Saem estas tartarugui-nhas tamanhas como um caranguejo pequeno;mas nem esta inocência lhe perdoaram os nossosíndios, comendo e fazendo matolatagem, porquesão delícia, e havia infinidade delas. Os portu-gueses as mandam buscar aqui, e as têm porcomer regalado, e a mesma informação nos deutambém o Padre Manuel de Sousa, o qual está játão grande prático que, sendo todos os outros,que aqui viemos, mazombos, ele é o que menosestranha esta diferença de manjar.

A estas mesmas praias vem, no seu tempo, quasetodo o Pará a fazer a pesca das tartarugas, quecada uma ordinariamente pesa mais de umaarroba, e assim as têm em currais ou viveiros,onde entra a maré, e as sustentam sem lhe da-rem de comer, salvo algumas folhas de aninga,arbusto que nasce pela borda dos rios, sustentan-do-se delas quatro e seis meses. A carne é comoa de carneiro, e se fazem dela os mesmos guisa-dos, que mais parecem de carne que pescado. Osovos são como os de galinha na cor, e quase nosabor, a casca, mais branca e de figura diferente,porque são redondos, e deles bem machucadosse fazem em tachos as belas manteigas do Pará; eo modo com que se faz esta pesca requer maisnotícia que indústria, pela muita cautela e poucaresistência das tartarugas. Quando vêm a desem-barcar nestas praias, trazem diante duas, comosentinelas, que vêm a espiar com muita pausa;logo depois destas, com bom espaço, vêm oitoou dez, como descobridores do campo, e depoisdelas, em maior distância, vem todo o exércitodas tartarugas, que consta de muitos milhares. Seas primeiras e as segundas sentem algum rumor,voltam para trás, e com elas as demais, e todas sesomem num momento: por isso os que vêm àpesca se escondem todos atrás dos matos e espe-ram de emboscada com grande quietação esilêncio.Saem, pois, as duas primeiras espias, passeiam dealto a baixo toda a praia, e como estas acham ocampo livre, saem também as da vanguarda, efazem muito devagar a mesma vigia, e, comodão a campanha por segura, entram à água evoltam, e depois dela sai toda a multidão doexército com os escudos às costas, e começam acobrir as praias e correr em grande tropel para omais alto delas. Aplica-se cada uma a fazer suacova, e, quando já não saem mais e estãoentretidas umas no trabalho, outras já na dordaquela ocupação, rebentam então os pescadoresda emboscada, tomam a parte da praia, e, reme-

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tendo as tartarugas, não fazem mais que ir viran-do e deixando, porque em estando viradas decostas não se podem mais bulir, e por isso estaspraias e estas tartarugas se chamam de viração.Há diferença de outros modos de pescaria, comque se toma ou uma ou outra espécie delas:porque, afora estas tartarugas do mar, que sãoinferiores, a que os índios chamam de viração, ede ordinário magras, há outras criadas em lagos,e mortas com arpões nas pontas das flechas, eestas são as mais singulares; como também outraespécie, que sempre vive em terra, que nas índi-as de Castela se chamam icotéas, e aqui jabotis,que é sustento muito geral em todas estas partes,e foram os que nesta jornada nos mataram mui-tas vezes a fome. Nascem estes jabotis e vivemsempre na terra, sem nunca entrarem no mar,nem nos rios, e, contudo, são julgados por peixe,e como tais se comem nos dias em que se proí-be a carne, por se ter averiguado que têm osangue frio. Sustentam-se muitos dias e muitossem outro mantimento que o dos próprios fíga-dos, que são grandes e muito saborosos, e nosdias em que estes se consomem morrem tam-bém eles. São comer muito sadio, não só para ossãos, mas também para os enfermos: e verdadei-ramente quem os comer sem memória do queparecem, não só podem servir para a necessida-de, senão para o gosto.Na manhã do outro dia, que foi o de S. Tomé,nos receberam os matos com alvorada de passa-rinhos, cousa nova e que até aqui não experi-mentámos, antes tínhamos notado quase nãohaver pássaros do mato no Pará, havendo infini-tas aves marítimas, e de muito alegres cores, emtodos seus rios. A razão natural desta diferençanos pareceu ser não só a do sítio, senão a doclima, porque depois que partimos do Camutáfomos sempre inclinando para o sul, e estes trêsdias últimos direitos a ele, com que nos fizemoshoje quase em dois graus para cá da Linha; e,como o Pará está quase debaixo dela, a modera-

ção, com que aqui vem já inclinada a intempe-rança da equinocial, dará mais lugar à criação econservação das aves terrestres, principalmentedas menores.Muito desejámos trazer astrolábio para notarcom certeza as alturas deste rio; mas, como aeste porto vêm tão raros navios, e é mais raraainda a curiosidade, não o achámos: governámosa esmo pelo Sol, e este basta, com conhecimentodos ventos, para saber a que rumo pouco maisou menos navegamos. Ficarão as averiguaçõesmais exactas para os que depois de nós vierem,que esperamos não seja muito depois. O argu-mento infalível de estarmos desviados da Linhaé que, nos primeiros dois dias, nos alcançaram astrovoadas, que no Pará, por estar debaixo dela,são quotidianas, e de então até hoje nunca maisouvimos trovoar, nem vimos chuveiro; e estapode ser também a razão de já aqui haver maisaves destas pequenas, pois mostra a experiênciaquanto mal faz o abalo dos trovões à criação deoutras maiores antes de crescerem.A tarde deste mesmo dia de S. Tomé tivemosfestejada com touros de água, que vimos de pa-lanque, porque, estando nós alojados num assentosobre o rio, à sombra de árvores, com as canoasabicadas em terra, vieram dois crocodilos (queaqui chamam jacarés) a rondar-no-las por fora.Não provaram neles os índios as frechas, porquejá sabem que as conchas de que estão armadossão impenetráveis a elas, sendo que as frechas decana, a que chamam tacoáras, não há saia de ma-lha tão forte, nem tão dobrada, que lhes resista, e,se são tiradas de boa mão, passam uma porta demadeira rija de parte a parte. Os nossos soldados,porém, empregaram neles as suas espingardas,mas com o mais acertado efeito que se puderaimaginar, porque a um meteram três balas nacabeça; e, posto que a cada tiro mostravam sentiro golpe, saltando e mergulhando abaixo, torna-vam logo a sair acima, e a nadar como antes, tãoalheios de fugir, nem temer, que antes buscavam

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o lugar donde sentiam que viera a ferida. Com aquarta bala finalmente mergulhou, e não apare-ceu mais, com que entendemos que morto sefora ao fundo. Seriam estes crocodilos de catorzepalmos de comprido, e não eram dos maioresque há nestes rios. Têm a boca muito rasgada edisforme, e os dentes tão fortes, agudos e juntosque o braço ou perna que alcançaram de umbocado a cortam cerce, e o mesmo fazem aosremos se andam assanhados. Uma cousa nos afir-mam aqui pessoas práticas (sobre o que suspen-do o meu assenso), e é que estes crocodilos, quese criam de ovos como as aves e tartarugas, omodo com que os chocam é pelos olhos. Fazemo ninho à borda de água, e às vezes em parteonde a água lhes chega e os cobre, e logo ocrocodilo está desde o rio com os olhos fitosnos ovos, e perseveram assim os dias necessários,sem se divertirem mais que por breve tempo acomer, como as aves. Desta maneira os fomen-tam com a vista e lhes comunicam aquele calorvital com que os animam. Padece isto as mesmasdificuldades de a víbora conceber pelos ouvidos,e de o basilisco matar com os olhos.O dia depois de S. Tomé gastámos em espalmare calafetar as canoas, e acabar de prevenir cordas,para passar as cachoeiras em que daqui por dian-te havemos de entrar. E não cause estranheza ocalafetar das canoas, porque, posto que aqui sefazem de um só pau, como no Brasil, são, po-rém, abertas pela proa e pela popa e acrescenta-das pela borda com falcas, para ficarem mais altase possantes; e assim as costuras destas, como osescudos ou rodelas com que se fecham a proa epopa, necessitam de calafeto. Os armazéns deque se tiram todos estes aprestos são os que aNatureza tem prontos, em qualquer parte desterio aonde se aporta (o mesmo é nos mais), que écousa verdadeiramente digna de dar graças àprovidência do Divino Criador, porque, indonesta jornada trezentas pessoas (é o mesmocomo se foram três mil) em embarcações calafe-

tadas, breadas, toldadas, velejadas e não providasde bastimentos mais que uma pouca de farinha,em qualquer parte que chegamos achamos preve-nido de tudo a pouco trabalho. A estopa se fazde cascas de árvores, sem mais indústria que des-pi-las. Destas mesmas, ou outras semelhantes,fazem os índios as cordas muito fortes e bemtorcidas e cochadas, sem rodas, carretilhas, nemoutro algum artifício. Os toldos se fazem de vi-mes, que cá chamam timbòstiticas, e certas folhaslargas, a que chamam ubi, tão tecidos e tapadosque não há nenhuns que melhor reparem do sol,nem defendam da chuva, por mais grossa e con-tinuada, e são tão leves que pouco peso fazem àembarcação. O breu sai da resina das árvores, deque há grande quantidade nestas partes, e sebreiam com ele não só as canoas, senão os navi-os de alto bordo, quando querenam, tão bemcomo o nosso, senão que este é mais cheiroso.As velas, se as não há ou rompem as de algodão,não se tecem, mas lavram-se com grande facili-dade, porque são feitas de um pau leve e delga-do, que com o benefício de um cordel se serrade alto a baixo, e se dividem em tabuinhas dedois dedos de largo; e com o mesmo de quefazem as cordas, que chamam embira, amarram evão tecendo as tiras como quem tece uma esteira,e este pau de que elas se formam se chamajupati, e estas velas, que se enrolam com a mesmafacilidade que uma esteira, tomam tanto maisvento que o mesmo pano.É um louvar a Deus. Tudo isto se arma e sustentasem um só prego, o que se não vê numa canoapara o intento, pois todo o pregar se supre comatar, e o que havia de fazer o ferro fazem osvimes, a que também chamam cipós, muito for-tes, com que as mesmas partes da canoa se atra-cam; e tudo quanto dela depende vai tão seguroe firme como se fora pregado. Nos bastimentoshá a mesma facilidade, porque primeiramente aaguada vai debaixo da quilha, e em qualquerparte, e em qualquer hora que se tira, é fresca e

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muito sadia. Em abicando as canoas à terra, saemos índios, uns à caça, outros à pesca, e a poucadetenção trazem de uma e outra muitas vezesem grande abundância, e sempre o que bastapara todos. No mesmo tempo (sendo Inverno)se ocupam outros em fazer as casas que se fazemtodos os dias, quando se não tem por melhorpassar à sombra de arvoredo, que sempre é verde,alto e tapado. As casas são ordinariamente cober-tas de palma, e, quando na jornada vai tropa deportugueses, se fazem tão largas e reparadas quemais parecem para viver que para as poucas horaspara que são levantadas.Aqui será bem que se note que os índios são osque fazem as canoas, as toldam, as calafetam, osque as velejam, os que as remam, e muitas vezes,como veremos, os que as levam às costas, e osque, cansados de remar as noites e os dias intei-ros, vão buscar o que hão-de comer eles e osportugueses (que é sempre o mais e melhor); osque lhes fazem as casas, e, se se há-de marcharpor terra, os que lhes levam as cargas e ainda asarmas às costas. Tudo isto fazem os tristes índios,sem paga alguma mais que o chamarem-lhescães e outros nomes muito mais afrontosos; e omelhor galardão que podem tirar destas jornadasos miseráveis é acharem (o que poucas vezesacontece) um cabo que os não trate tão mal.Jornada tem havido em que, dos índios que par-tiram, não voltaram a metade, porque o purotrabalho e mau trato os mataram. [...]

Falta a data e o final da carta «já gasto pelo tempoque tudo rói», informa o Padre José de Morais.Seria escrita, pelo menos em parte, durante a via-gem, e fechada talvez no Pará, onde Vieira se en-contrava de volta ainda em Janeiro. (Berredo, AnaisHistóricos do Estado do Maranhão, § 977.)

CARTA LXIX

Ao Rei D. João IV

1654 – Abril 6

Senhor. – E sabe Deus que com muito zelo de Seuserviço desejo que se guarde justiça a essa pobre gente,para o que vos encomendo muito me advirtais de tudoque vos parecer necessário, porque fazeis nisso muitoserviço a Deus e a mim. Estas palavras, Senhor, sãode V. M., na carta que foi servido mandar-meescrever, e muito dignas de V. M.; e porque asinjustiças que se fazem a esta pobre e miserabi-líssima gente não cabem em nenhum papel, direisomente neste o modo com que se poderãoremediar, depois de o ter considerado e enco-mendado a Deus e o ter conferido com algumaspessoas das mais antigas, experimentadas e bemintencionadas deste Estado, posto que são nelepoucos os que podem dar juízo nesta matéria,que sejam livres de suspeita e dignos de fé; por-que todos são interessados nos índios, e vivem ese remedeiam das mesmas injustiças que V. M.deseja remediar.O remédio, pois, Senhor, consiste em que semude e melhore a forma por que até agora foramgovernados os índios; o que se poderá fazermandando V. M. guardar os capítulos seguintes:I. Que os governadores e capitães-mores nãotenham jurisdição alguma sobre os ditos índiosnaturais da terra, assim cristãos como gentios, enem para os mandar, nem para os repartir, nempara outra alguma cousa, salvo na actual ocasiãode guerra, a que serão obrigados a acudir, eles eas pessoas que os tiverem a seu cargo, comofazem em toda a parte; e para serviço dos gover-nadores se lhe nomeará um número de índiosconveniente, atendendo à qualidade e autoridadedo cargo e à quantidade que houver dos ditosíndios.II. Que os ditos índios tenham um procurador--geral em cada capitania, o qual procurador assim

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mesmo seja independente dos governadores ecapitães-mores, em todas as cousas pertencentesaos mesmos índios; e este procurador seja umadas pessoas mais principais e autorizadas e conhe-cidas por de melhores procedimentos, ao qualelegerá o povo no princípio de cada ano, po-dendo confirmar ao mesmo ou eleger outro, emcaso que não dê boa satisfação de seu ofício, oqual ofício exercitará com a jurisdição e noscasos que ao diante se apontam.III. Que os ditos índios estejam totalmente su-jeitos e sejam governados por pessoas religiosas,na forma que se costuma em todo o Estado doBrasil; porquanto, depois de se intentarem todosos meios, tem mostrado a experiência que, se-gundo o natural e a capacidade dos índios, sópor este modo podem ser bem governados econservarem-se em suas aldeias.IV. Que no princípio de cada ano se faça lista detodos os índios de serviço que houver nas aldeiasde cada capitania, e juntamente de todos os mo-radores dela, e que, conforme o número dosditos índios e dos ditos moradores, se faça repar-tição dos índios que houverem de servir aqueleano a cada um, havendo respeito à pobreza oucabedal dos ditos moradores, de maneira que adita repartição se faça com toda a igualdade,sendo em primeiro lugar providos os pobres,para que não pereçam; e as sobreditas listas erepartição a faça o prelado, dos religiosos queadministrar os ditos índios, e o procurador-geralde cada capitania, conforme suas consciências,sem na dita repartição se poder meter governa-dor, nem câmara, nem outra alguma pessoa dequalquer qualidade que seja; e em qualquer dú-vida que houver, por parte dos índios ou moradoacerca da repartição, recorrerão ao dito preladoe procurador e estarão pelo que eles resolverem,sem apelação, nem agravo nem forma alguma dejuízo.V. Que, porquanto as aldeias estão notavelmentediminuídas, os índios se unam de modo que

parecer mais conveniente, e em que os mesmosíndios se conformarem, e se reduzam a menornúmero de aldeias, para que sejam e possam sermelhor doutrinados, e que as ditas aldeias assimunidas se ponham nos sítios e lugares que foremmais acomodados, assim para o serviço da repú-blica como para a conservação dos mesmos ín-dios.VI. Que, para que os índios tenham tempo deacudir às suas lavouras e famílias e possam ir àsjornadas dos sertões, que se há-de fazer paradescer outros e os converter à nossa santa fé,nenhum índio possa trabalhar fora da sua aldeiacada ano mais que quatro meses, os quais quatromeses não serão juntos por uma vez, senãorepartidos em duas, para que desta maneira seevitem os desserviços de Deus que se seguemde estarem muito tempo ausentes de suas casas.VII. Que, para que os índios sejam pagos de seutrabalho, nenhum índio irá servir a morador al-gum, nem ainda nas obras públicas do serviço deS. M., sem se lhe depositar primeiro o seu paga-mento, o qual, porém, se lhe não entregará senãotrazendo escrito de que tem trabalhado o tempopor que se concertaram; e para o dito depósitodos pagamentos haverá uma arca com duas chavesem cada aldeia, uma que terá o religioso queadministrar, e outra, o principal da mesma aldeia.VIII. Que todas as semanas ou todos os quinzedias, conforme o número das aldeias, haveráuma feira dos índios, à qual cada aldeia, por seuturno, trará a vender todos os frutos das suaslavouras, e o mais que tiverem, o que serviráassim de que as povoações dos portugueses te-nham abundância de mantimentos, como deque os índios levem delas as cousas necessárias aseu uso e se animem com este comércio a traba-lhar; e para que não se lhes possa fazer algumengano nos preços das cousas que lhes foremdadas por comutação das suas, presidirá nestafeira o procurador dos índios ou a pessoa a quemele o cometer, eleita por ele e pelo prelado dos

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religiosos que na capitania tiverem a seu cargoos índios.IX. Que as entradas que se fizerem ao sertão asfaçam somente pessoas eclesiásticas, como V. M.tem ordenado aos capitães-mores sob pena decaso maior em seus regimentos, e que os religio-sos que fizerem as ditas entradas sejam os mesmosque administrem os índios em suas aldeias; por-que, sendo da mesma sujeição e doutrina, me-lhor os obedecerão e respeitarão, e irão com elesmais seguros de alguma rebelião ou traição.X. Que pela causa sobredita, e por evitar bandosentre os índios, que naturalmente são vários einconstantes e desejosos de novidades, e paraque a doutrina que aprenderem seja a mesmaentre todos sem diversidades de pareceres, deque se podem seguir graves inconvenientes, aindaque neste Estado há diferentes religiões, o cargodos índios se encomende a uma só, aquela que V.M. julgar que o fará com maior inteireza, desin-teresse e zelo, assim do serviço de Deus e salva-ção das almas como do bem público.XI. Que nenhuns índios se desçam do sertãosem primeiro se lhe fazerem suas roças e aldeiasonde possam viver, e que não sejam obrigados aentrar na pauta dos índios de serviço, na formaacima dita, senão depois de estarem mui descan-sados do trabalho do caminho, e doutrinados edomesticados, e capazes de serem aplicados aodito serviço dos moradores, que sempre se devefazer sem nenhuma violência, nem opressão dosíndios.XII. Que, se nas entradas que se fizerem ao ser-tão forem achados alguns índios de corda, ouque de alguma outra maneira sejam julgados porjustamente cativos, estes tais se poderão resgatar,com condição que os religiosos, com assistênciado cabo que for, julguem primeiro os ditos cati-veiros por justos e lícitos, examinando-os por simesmos; e, para este fim, irão sempre às ditasjornadas religiosos que sejam juntamente bons

línguas e bons teólogos, e quando menos queum seja bom teólogo, outro boa língua.XIII. Que, em caso que os ditos resgates se fa-çam nas entradas do sertão, a repartição deles sefaça pro rata por todos os moradores do Estado,conforme o número dos índios que se resgata-rem, começando sempre pelos mais pobres, paraque tenham quem os ajude; e os repartidoresserão os mesmos procurador-geral e prelado dareligião, que, como fica dito, hão-de repartir osíndios forros para o serviço.XIV. Que, porquanto as jornadas ao sertão, quese fazem, são ordinariamente perigosas, por ra-zão dos bárbaros, para segurar os religiosos e osíndios que forem nas ditas jornadas, haja compa-nhia de soldados brancos, a qual, ou inteira, oudividida lhe dê escolta, conforme a necessidadeo pedir; e que a dita companhia se chame daPropagação da Fé, e para ela será escolhido capi-tão e soldados de maior cristandade e capacidadepara o sertão, aos quais V. M. honre com algumprivilégio particular; e que o dito capitão e sol-dados não seja companhia criada de novo, senãouma das mesmas que há, formada de ramo delas,e que só esteja sujeita aos governadores e capi-tães-mores em ocasião de guerra actual ou delitoque cometesse, e no mais estará à disposição doprelado maior da religião que tiver a seu cargoas missões do sertão, que também será missioná-rio geral de todo o Estado; e, conforme o que odito missionário geral dispuser, o dito capitãoouvirá ou mandará os soldados que forem ne-cessários para cada uma das missões com seuscabos, e os ditos cabos somente terão jurisdiçãona disposição da guerra, em caso que se haja defazer, a qual sempre será defensiva, e de nenhumamaneira se intrometerão a praticar aos índios,nem por si, nem por outrem, sob pena de casomaior, como V. M. tem ordenado.XV. Que as peças, que se levarem ao sertão paraos ditos resgates, irão entregues ao dito cabo quefor nas ditas entradas, ou a alguma das ditas

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pessoas brancas que forem na mesma tropa, dequem o povo mais as confiar, o qual dará contado dito cabedal à câmara, ou a quem lhe fizer adita entrega.XVI. Que os índios, que se descerem, se porãonos lugares que forem mais acomodados e ne-cessários à conservação e aumento do Estado;mas isto não fazendo força ou violência algumaaos mesmos índios, senão por vontade; e, se nadescida dos ditos índios se fizeram algumas des-pesas, serão à custa das capitanias em que osditos índios se puserem.XVII. Que, para que nas aldeias haja muita gentede serviço, e os índios se conservem em maiorsimplicidade e sujeição, se não multipliquem nasaldeias oficiais de guerra, e somente haja, comono Estado do Brasil, os principais e meirinhos, eum capitão da guerra, e quando muito um sar-gento-mor, por estar introduzido. Mas, porqueseria grande desconsolação dos índios que aopresente têm os ditos cargos se lhes fossem tira-dos, se conservarão neles até que se extingam, enão se meterão outros em seu lugar.XVIII. Que a eleição dos ditos oficiais se nãofaça pelos governadores, nem por provisões suas,senão pelos principais das mesmas aldeias, comparecer dos religiosos que as tiverem a seu cargo,sem provisão alguma mais que uma simples no-meação, como se faz no Brasil, para que os pobresíndios não sejam enganados com semelhantespapéis, como até agora foram, nem se lhes pa-guem com eles seus trabalhos: e somente quandofaltasse sucessor ao principal de toda a aldeia ounação, e se houvesse de fazer eleição em outro,no tal caso proporão os ditos prelados e procu-rador-geral dos índios a pessoa que entre elestiver mais merecimento e lhes for mais bemaceita, e o governador ou capitão-mor, em nomede V. M., lhe passará provisão.XIX. Que, para que os religiosos, que agora epelo tempo em diante tiverem o cargo dos ditosíndios, não tenham ocasião de os ocupar em

interesses particulares seus, não possam os ditosreligiosos ter fazenda, nem lavoura de tabacos,canaviais, nem engenhos, nos quais trabalhemíndios, nem livres, nem escravos. E os índios quelhes forem necessários para o serviço dos seusconventos se lhes repartirão na forma sobredita,assim a eles como aos religiosos das outras reli-giões, conforme a necessidade dos ditos conven-tos e quantidade que houver de índios.Estes são, Senhor, os meios pelos quais, sendogovernados os índios, cessarão de uma vez osinconvenientes gravíssimos que, com razão, dãotanto cuidado a V. M.; e, para prova do zelo edesinteresse com que vão apontados, não queromais justificação que a dos mesmos capítulos.Muitas cousas das que neles se propõem estão jáqualificadas, ou com o uso do Estado do Brasil,recebido depois de larga experiência, ou comprovisões e regimentos de V. M., nos quais V. M.tem mandado o mesmo que aqui se aponta. [...]Maranhão, 6 de Abril de 1654.

António Vieira

CARTA LXXVII

Ao Rei D. Afonso VI

1657 – Abril 20

[...]O remédio de tudo é um só, e muito fácil, e quemuitas vezes tenho representado a V. M., e é queV. M. resolutamente mande fechar a porta atodo o requerimento em contrário do que V. M.com tanta consideração mandou resolver; e quequem o encontrar ou impedir seja castigadocom a demonstração que a matéria merece.Tudo o que se assentou acerca dos índios doMaranhão foi com consulta da junta de teólo-gos, canonistas e legistas, em que se acharam ostrês lentes de prima, e não houve discrepânciade votos; foi com notícias de todas as leis antigas

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e modernas, e de todos os documentos que sobreesta matéria havia; foi ajustado com os dois pro-curadores do Maranhão e Pará e com o gover-nador de todo o Estado, que estava nessa corte, ecom o superior dos missionários, que tambémera procurador-geral de todos os índios; e ultima-mente com parecer de todo o Conselho Ultra-marino, que tudo viu, examinou e aprovou.Donde parece que não fica lugar a inovar cousaalguma, sem grande prejuízo e menos autoridadedas leis reais e perturbação de tudo. Sobre esteponto enviei o ano passado papel particular, queV. M. pode mandar; ver, sendo servido, em quese apontam muitas outras razões do grande pesoe gravíssimos inconvenientes que do contráriose seguem, ainda ao crédito da mesma fé, quedebaixo dos termos da dita lei se tem publicadopor todas estas gentilidades.E digo, Senhor, que, além da firmeza da lei, énecessária demonstração de castigo nos violado-res dela, não só pelo que importa ao estabeleci-mento da missão e aumento da fé, senão aindaao de toda a monarquia. E dá-me atrevimentopara fazer esta lembrança a V. M. o peso de tãogrande obrigação e o nome que ainda tenho depregador de V. M.Senhor, os reis são vassalos de Deus, e, se os reisnão castigam os seus vassalos, castiga Deus osseus. A causa principal de se não perpetuarem ascoroas nas mesmas nações e famílias é a injustiça,ou são as injustiças, como diz a Escritura Sagrada;e, entre todas as injustiças, nenhumas clamamtanto ao Céu como as que tiram a liberdade aosque nasceram livres e as que não pagam o suoraos que trabalham; e estes são e foram sempre osdois pecados deste Estado, que ainda têm tantosdefensores.A perda do Senhor Rei D. Sebastião em África,e o cativeiro de sessenta anos que se seguiu atodo o Reino, notaram os autores daquele tempoque foi castigo dos cativeiros que na costa damesma África começaram a fazer os nossos pri-

meiros conquistadores, com tão pouca justiçacomo a que se lê nas mesmas histórias.As injustiças e tiranias que se têm executado nosnaturais destas terras excedem muito às que sefizeram na África. Em espaço de quarenta anosse mataram e se destruíram por esta costa e ser-tões mais de dois milhões de índios, e mais dequinhentas povoações como grandes cidades, edisto nunca se viu castigo. Proximamente, noano de mil seiscentos cinquenta e cinco, se cati-varam no rio das Amazonas dois mil índios, entreos quais muitos eram amigos e aliados dos Por-tugueses e vassalos de V. M., tudo contra a dispo-sição da lei que veio naquele ano a este Estado,e tudo mandado obrar pelos mesmos que tinhammaior obrigação de fazer observar a mesma lei;e também não houve castigo: e não só se requerdiante de V. M. a impunidade destes delitos, senãolicença para os continuar!Com grande dor, e com grande receio de arenovar no ânimo de V. M., digo o que agoradirei: mas quer Deus que eu o diga. A El-ReiFaraó, porque consentiu no seu reino o injustocativeiro do povo hebreu, deu-lhe Deus grandescastigos, e um deles foi tirar-lhe os primogéni-tos. No ano de 1654, por informação dos procu-radores deste Estado, se passou uma lei com tantaslarguezas na matéria do cativeiro dos índios quedepois, sendo S. M. melhor informado, houvepor bem mandá-la renovar; e advertiu-se queneste mesmo ano tirou Deus a S. M. o primogé-nito dos filhos e a primogénita das filhas. Se-nhor, se alguém pedir ou aconselhar a V. M.maiores larguezas que as que hoje há nesta ma-téria, tenha-o V. M. por inimigo da vida, e daconservação, e da coroa de V. M.Dirão porventura (como dizem) que destes cati-veiros, na forma em que se faziam, depende aconservação e aumento do Estado do Maranhão;isto, Senhor, é heresia. Se, por não fazer umpecado venial, se houver de perder Portugal,perca-o V. M. e dê por bem empregada tão cristã

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e tão gloriosa perda; mas digo que é heresia,ainda politicamente falando, porque sobre osfundamentos da injustiça nenhuma cousa é se-gura, nem permanente; e a experiência o temmostrado neste mesmo Estado do Maranhão, emque muitos governadores adquiriram grandes ri-quezas e nenhum deles as logrou, nem elas selograram; nem há cousa adquirida nesta terraque permaneça, como os mesmos moradoresdela confessam, nem ainda que vá por diante,nem negócio que aproveite, nem navio que aquise faça que tenha bom fim; porque tudo vaimisturado com sangue dos pobres, que estásempre clamando ao Céu.Se o sangue de um inocente deu tais vozes aDeus, que será o de tantos? E mais Abel, Senhor,salvou-se, e está no Céu. E, se uma alma que sesalva pede vingança, tantos milhares e milhõesde almas que, pelas injustiças deste Estado, estãoardendo no Inferno, tendo Portugal obrigaçãode justiça de as encaminhar para o Céu, quevingança pedirão a Deus? E, sendo isto assim,Senhor, só os que defendem esta justiça são per-seguidos; só os que salvam estas almas são afron-tados; só os que tomaram à sua conta este tãogrande serviço de Deus têm contra si todos oshomens.Sirva-se V. M. de mandar considerar que, en-quanto as sobreditas tiranias se executavam noMaranhão, nenhuma pessoa houve, eclesiástica,nem secular, que zelasse o remédio delas, nemda salvação destas almas; e depois que houvequem tomou por sua conta um e outro serviçode Deus, logo houve tantos zelosos que se arma-ram contra esta obra, sinal manifesto de ser tudotraça e instigação do Demónio, para impedir obem espiritual tanto dos Portugueses como dosíndios, que uns com os outros se iam ao Inferno;e seria desgraça muito para sentir que os minis-tros do Demónio prevalecessem contra os deCristo, num reino tão cristão como Portugal.

Os outros reinos da Cristandade, Senhor, têmpor fim a conservação dos vassalos, em ordem àfelicidade temporal nesta vida e à felicidadeeterna na outra: o Reino de Portugal, demaisdeste fim universal a todos, tem por fim particu-lar e próprio a propagação e a extensão da fécatólica nas terras dos gentios, para que Deus olevantou e instituiu; e quanto Portugal mais seajustar com este fim, tanto mais certa e seguraterá sua conservação; e quanto mais se desviardele, tanto mais duvidosa e arriscada.Nas segundas vias dos despachos de V. M. esperoque V. M. haverá mandado deferir a tudo o querepresentei nos navios do ano passado; e, porquenão sei o que poderá ter sucedido, resumo outravez aqui tudo o que de presente é necessário,para a conservação, aumento e quietação destacristandade, que são principalmente as quatrocousas seguintes:Primeira: que na lei e regimento de V. M. sobreos índios e missões se não altere cousa alguma, eque a este fim se não admita, nem defira, arequerimento em contrário.Segunda: que os governadores e capitães-moresque vierem a este Estado sejam pessoas de cons-ciência; e, porque estas não costumam vir cá,que ao menos tragam entendido que mui deve-ras hão-de ser castigados se em qualquer cousaquebrarem a dita lei e regimento.Terceira: que os prelados das religiões sejam taisque as façam guardar a seus religiosos, nem con-sintam que de público ou secreto as contradigam,e se houver algum religioso desobediente nestaparte, seja mandado para fora do Maranhão.Quarta: que V. M. mande vir maior número dereligiosos da Companhia, para que ajudem a levaradiante o que têm começado os que cá estamos;porque é o meio único (posto que mui traba-lhoso para os ditos religiosos) com que só sepodem reduzir estas gentilidades.E, porque à nossa notícia tem chegado que con-tra os missionários que neste Estado servimos a

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Deus e a V. M. e contra o governo da dita missãose tem apresentado a V. M. algumas queixas, pe-dimos humildemente a V. M. seja V. M. servidomandar-nos dar vista de todas, ainda que sejamdas que tocarem ao Estado, porque a todas espe-ramos satisfazer de maneira que fique conhecidocom grande clareza quão úteis são os missioná-rios da Companhia, não só ao melhoramentoespiritual dos Portugueses e índios, senão aindaao temporal de todos.A muito alta e muito poderosa pessoa de V. M.guarde Deus, como a Cristandade e vassalos deV. M. havemos mister. – Maranhão, 20 de Abrilde 1657.

António Vieira

CARTA LXXX

A um padre provincial do Brasil

1658 – Junho 10

[...]Somente inquieta estes índios o conhecimentoque têm de que os padres os querem arrancar desuas terras e passá-los às do Maranhão, o quemuitos deles, particularmente o maior principal,de nenhuma maneira querem admitir, assimpelo amor natural da pátria como pelo temorque têm ao trato dos portugueses, de que tra-zem estudado muitos exemplos, ajudando nãopouco a isto a lembrança dos delitos passados,posto que perdoados pelos governadores emnome de S. M. Fomenta este temor a compa-nhia dos retirados de Pernambuco, que, comomais culpados, temem ainda mais e, como maisladinos, sabem enfeitar melhor os motivos destereceio. Nem uns e outros estão totalmente esque-cidos da amizade e dádivas dos Holandeses, comquem comerciavam nesta costa, porque, quandoolham para si, como eles dizem, vêem aqueles

chapéus, aquelas espadas, aquelas ungarinas, e omais com que se vestem, que tudo lhe deram osHolandeses, e os Portugueses, nada. Finalmenteconcluem que, se os querem tirar daquelas terras,por serem vassalos de El-Rei, que tambémaquelas terras são de El-Rei, e se por seremcristãos e filhos de Deus, que Deus está em todaa parte e que ali o podem servir também, comono Maranhão.Estas são as razões que os padres e os principaisreferem nas suas cartas, com que os padres total-mente desconfiam de os índios haverem de des-cer sem violência, a qual violência não é menosduvidosa, antes quase impossível e mui arriscada,e de que se pode seguir uma grande ruína, prin-cipalmente em tempo que temos guerras apre-goadas com os Holandeses; e nesta suposiçãodizem os padres que ficam esperando a últimaresolução dos superiores, para, ou ficarem, ou sevirem, acrescentando, porém, que, se houveremde vir, há-de ser com muita consideração e pre-venções, depois de arriscarem não menos que asvidas, representando juntamente quão lastimosacousa será haverem de deixar aquelas almas, de-pois de cristãs, para que tornem a viver comogentios, oferecendo-se de mui boa vontade aficar e padecer com elas. [...]10 de Junho de 658.

António Vieira

CARTA LXXXIII

Ao Padre André Fernandes

1659 – Abril 29

Conta-me V. S.a prodígios do mundo, e esperan-ças de felicidades a Portugal: diz-me V. S.a quetodos referem tudo à vinda de El-Rei D. Sebas-tião, de cuja vinda e vida tenho já dito a V. S.a oque sinto. Por fim ordena-me V. S.a que mande

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alguma maior clareza do que tantas vezes tenhorepetido a V. S.a da futura ressurreição do nossobom amo e senhor D. João o quarto. A matéria émuito larga, e não para se escrever tão de cami-nho como eu faço, numa canoa em que vounavegando ao rio das Amazonas, para mandareste papel noutra a alcançar o navio que está noMaranhão de partida para Lisboa. Resumindo,pois, tudo a um silogismo fundamental, digo assim:O Bandarra é verdadeiro profeta; o Bandarra profeti-zou que El-Rei D. João o quarto há-de obrar muitascousas que ainda não obrou, nem pode obrar senãoressuscitando: logo El-Rei D. João o quarto há-deressuscitar. – Estas três proposições somente pro-varei, e me parece que bastarão para a maiorclareza que V. S.a deseja. [...]

PROVA-SE A PRIMEIRA PROPOSIÇÃODO SILOGISMO

A verdadeira prova do espírito profético nos ho-mens é o sucesso das cousas profetizadas. Assimo prova a Igreja nas: canonizações dos santos, eos mesmos profetas canónicos, que são parte daEscritura Sagrada, fora dos princípios da fé nãotêm outra prova da verdade de suas revelaçõesou profecias senão a demonstração de ter suce-dido o que eles tantos anos antes profetizaram.O mesmo Deus deu esta regra para serem co-nhecidos os verdadeiros e falsos profetas: Quod sitacha cogitatione responderis – Quomodo possumintelligere verbum quod Dominus non est locutus?Hoc habebis signum, quod in nomine Dominipropheta ille praedixerit et non evenerit, hoc Dominusnon est locutus. No capítulo 18.º prometeu Deusao povo hebreu que lhe daria profetas de suanação, e, porque no mesmo povo costumavam ase levantar profetas falsos, e podia haver dificul-dade em conhecer quais eram os verdadeiros emandados por Deus, o mesmo Deus deu porregra certa, para serem conhecidos uns e outros,

o suceder ou não suceder o que se tivesse profe-tizado: «Se não suceder o que o profeta disser,tende-o por falso, e se suceder o que disser, tende-opor verdadeiro e mandado por mim.» Não se podelogo negar que Bandarra foi verdadeiro profeta,pois profetizou e escreveu tantos anos antes tan-tas cousas, tão exactas, tão miúdas e tão particu-lares, que vimos todas cumpridas com nossosolhos, das quais apontarei aqui brevemente asque bastem, sucedidas todas na mesma forma ecom a mesma ordem como foram escritas.Primeiramente profetizou Bandarra que, antesdo ano de quarenta, se havia de levantar emPortugal uma a que ele chama «grã tormenta»,que foi o levantamento de Évora, e que os in-tentos dessa tormenta haviam de ser outros doque mostravam, porque verdadeiramente erampara levantar todo o Reino, e que essa tormentahavia de ser logo amansada, e que tudo se haviade calar, e que os levantados não teriam quemos seguisse ou animasse, como verdadeiramentesucedeu. Isto querem dizer aqueles versos do«Sonho primeiro»:

Antes que cerrem quarentaErguer-se-á grã tormentaDo que intenta,Que logo será amansada,E tomarão a estradaDa calada,Não terão quem os afoite.

Advirta-se que estes versos se hão-de ler entreparênteses, porque não fazem sentido com ostrês versos imediatamente seguintes, os quais seatam com os de cima, e estes vão continuando ahistória com os que depois se seguem, estilo tãoordinário nos profetas como sabem os que oslêem.Profetizou mais o Bandarra que havia de havertempo em que os Portugueses (os quais, quandoele isto escrevia, tinham rei e reino) haviam dedesejar mudança de estado, e suspirar por tempovindoiro, e que o cumprimento deste desejo e

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deste tempo havia de ser no ano de quarenta: eque neste ano de quarenta havia de haver umrei, não antigo, senão novo; não que se introdu-zisse ele senão levantado pelo reino; não comtítulo de defensor da pátria, como alguns queriam,senão de rei; e que este rei se havia de pôr logoem armas e levantar suas bandeiras contraCastela, a qual Castela muitos tempos havia deter gostado e logrado o reino de Portugal. Assimo dizem claramente os versos do mesmo «Sonho»:

Já o tempo desejadoÉ chegado,Segundo o firmal assenta,Já se chegam os quarenta,Que se amentaPor um doutor já passado.O rei novo é levantado,Já dá brado,Já assoma sua bandeiraContra a grifa parideiraLagomeiraQue tais pastos tem gostado.

A grifa significa Castela com muita propriedade,porque os reinos distinguem-se por suas armas,e o grifo é um animal composto de leão e águia,em que grandemente simboliza, com as águias eleões, partes tão principais do escudo das armasde Castela; e chama-se com igual energia, nessecaso, grifa parideira, porque, por meio de partose casamentos, veio Castela a herdar tantos reinose Estados como possui, que foi também o títulocom que entrou em Portugal.Profetizou mais o Bandarra que o nosso rei ha-via de ser de casa de infantes, que havia de terpor nome D. João, que havia de ser feliz e bemandante, e que com suma brevidade lhe haviamde vir novas de todas as conquistas que chama«terras prezadas», as quais se declarariam pelonovo rei, e daí por diante estariam firmes porele; como tudo se tem visto inteiramente, e sobrea esperança de todos e do mesmo rei, o que eu

lhe ouvi dizer muitas vezes. Os versos são nomesmo «Sonho»:

Saia, saia esse InfanteBem andante,O seu nome é D. João.Tire e leve o pendãoGlorioso e triunfante.Vir-lhe-ão novas num instanteDaquelas terras prezadas,As quais estão declaradasE afirmadasPelo Rei de ali em diante.

Profetizou mais, com circunstâncias prodigiosas,que nas ditas terras prezadas, ou conquistas, haviade haver naquele tempo dois vizo-reis, o quenunca houve de antes nem depois; e que umdeles, que foi o marquês de Montalvão, era agudo,e outro, que foi o conde de Aveiras, era sisudo ecabeludo; e que o primeiro não havia de serdeteúdo, ou detido no governo, isto é, que haviade ser tirado dele; declarando mais que se haviade chamar Excelência, e que a causa de ser tiradohaviam de ser suspeitas de infidelidade; mas queessa infidelidade não havia de estar no seu escudo,como verdadeiramente não esteve naquele tempo,porque ele, como diz o mesmo Bandarra, foi oinstrumento da aclamação em todo o Brasil,aonde mandou ordens que fosse El-Rei D. Joãoaclamado. Pelo contrário, que o conde deAveiras havia de pôr alguma dificuldade e comoresistência à aclamação de El-Rei no Estado daÍndia, o qual Estado, com grande desejo e ímpe-to, e sem os reparos do vizo-rei o terem mão,havia de aclamar, como fez. Dizem os versos domesmo «Sonho»:

Não acho ser deteúdoO agudo,Sendo ele o instrumento;Não acho, segundo sentoO ExcelentoSer falso no seu escudo;

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Mas acho que o LanudoMui sisudoQue arrepelará o gato,E fá-lo-á murar o ratoDe seu fato,Leixando-o todo desnudo.

Porque esta trova é a mais dificultosa doBandarra, e a que ninguém jamais pôde dar sen-tido, posto que já fica explicada, a quero comen-tar verso por verso, para que melhor se entenda.

Não acho ser deteúdo:

Todos os que governavam as praças de Portugalnas conquistas foram deteúdos ou detidos nelas,porque os conservou El-Rei nos mesmos pos-tos; só ao marquês de Montalvão mandou S. M.tirar por ocasião da fugida dos filhos e do ânimoda marquesa, e por isso diz Bandarra que nãoacha ser deteúdo.

O agudo:

Os que conheceram o marquês sabem quãobem lhe quadra o nome de agudo, pela espertezanatural que tinha em todas suas acções e execu-ções, e ainda nas feições e movimentos do corpo;mas mais que tudo no inventar, traçar, negociar,introduzir-se, etc.

Sendo ele o instrumento:

Em muitas partes foi instrumento da aclamaçãoo povo, e não os que governavam: no Brasil omarquês de Montalvão foi o instrumento daaclamação, a qual executou com grande prudên-cia e indústria, por haver na Baía dois terços decastelhanos e um de napolitanos, que puderamsustentar as partes de Castela, e, quando menos,causar alvorotos.

Não acho, segundo sento:

Note-se muito o segundo sento, ou segundo sinto,que é falar já Bandarra com alguma dúvida namesma fidelidade do marquês, que nesse lugar

abonava. Verdadeiramente, é certo que o marquêsmuito tempo foi fiel; o modo com que acaboumostrou que o não fora sempre.

O Excelento:

Chama-lhe Excelência por marquês e vizo-rei,sendo o único vizo-rei e o único marquês quegovernou o Brasil. Mas todas estas circunstânciasvia Bandarra; e por que lhe não chama Excelente,senão Excelento? Sem dúvida para que deste mas-culino tão desusado se inferisse a diferença dofeminino. Como se dissera: «A fidelidade de quefalo, advirtam que é do marido, e não da mu-lher; do Excelento, e não da Excelenta», comologo explica.

Ser falso no seu escudo:

Para estranhar Bandarra, como estranha, o sertirado ou não ser deteúdo o marquês, sendo eleo instrumento da aclamação, parece que bastavadizer que não era falso; mas acrescentou: no seuescudo, porque assim como viu a fidelidade domarquês na aclamação, assim viu também a infi-delidade de sua mulher e seus filhos, como sedissera: «Falso não no seu escudo; mas no de suamulher e seus filhos sim.»

Mas acho que o Lanudo:

O conde de Aveiras era mui cabeludo ebarbaçudo, como todos vimos; tinha muitos ca-belos nas sobrancelhas, nas orelhas, no nariz pordentro e por fora, e só dentro dos olhos nãotinha cabelos, posto que lhe chegava a barbamuito perto deles; e ouvi dizer a seu sobrinho, oconde de Unhão, D. Rodrigo, que seu tio tinhapelo corpo lã como um carneiro; por issoBandarra lhe chama Lanudo.

Mui sisudo:

Só em ir segunda vez à Índia o não foi; mas nofalar, no calar, no andar, no negociar e em todassuas acções, por fora e por dentro, não há dúvida

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que tinha o conde de Aveiras aquelas partes porque o mundo chama aos homens sisudos; e portal otinha El-Rei ainda quando o não gabava.

Que arrepelará o gato,E fá-lo-á murar o rato:

O gato significa o Estado da Índia, o qual, tantoque chegou a nova da aclamação a Goa, quislogo aclamar publicamente; mas o vizo-reiarrepelou, porque foi à mão ao ímpeto do povoe dos soldados, fechando-se dentro no Paço, paraconsiderar como sisudo o que havia de fazer emmatéria tão grande: e esta foi a única detença oumora que a aclamação teve em Goa, que seexplica pelo murar do gato ao rato, que é aquelamora ou detença em que o gato está como du-vidando se arremeterá ou não.

De seu fato,Deixando-o todo desnudo:

Conclui o Bandarra contra o conde, como des-gostado dele, que deixaria o Estado da Índiadesnudo de seu fato: porque trouxe da Índiamuita fazenda, a qual na Índia propriamente sechama fato, assim como em Itália se chama rou-pa; e fundado eu nesta menos aceitação doBandarra acerca do conde de Aveiras, quandoEl-Rei o fez segunda vez vizo-rei da Índia, dissea S. M. que me espantava muito que S. M. ele-gesse por viso-rei da Índia a um homem dequem o Bandarra dizia mal. Que não lhe podiasuceder bem o efeito o mostrou.Todos estes versos que tenho referido vão con-tinuados, e neles descrito o sucesso da aclama-ção do Rei no Reino e nas conquistas, comtodas suas circunstâncias, e logo imediatamentese segue no mesmo «Sonho primeiro»:

Não tema o turco não,Nesta sezão,Nem o seu grande mourismoQue não conheceu baptismo,Nem o crismo;É gado de confusão, etc.

Estes versos contêm uma circunstância admirá-vel de profecia, porque não só profetizou e de-clarou Bandarra as cousas que haviam de ser, e otempo em que haviam de ser, senão também ostempos e conjunções em que não haviam de ser.O principal assunto do Bandarra é a guerra queEl-Rei há-de fazer ao Turco, e a vitória que delehá-de alcançar: e, porque não cuidássemos queesta empresa havia de ser logo depois da aclama-ção do novo rei, adverte, e quer que advirtamos,o mesmo Bandarra que a empresa do Turco nãoé para o tempo da aclamação, senão para outrotempo, e para outra sezão muito depois. E porisso diz que nesta sezão bem podia o Turco estarsem temor: «Não tema o Turco não, nesta se-zão,», etc.A esta profecia negativa do Turco se ajunta outratambém negativa do Papa, o qual Papa supõeBandarra que não há-de reconhecer a El-Reisenão depois que o Turco entrar pelas terras daIgreja, e assim o declaram os versos do «Sonhosegundo»:

O Rei novo é acordadoJá dá brado,Já ressoa o seu pregão,Já Levi lhe dá a mão,Contra Siquém desmandado.

[...]Camutá, no caminho do rio das Amazonas, 29de Abril de 1659.

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Volume II

(excertos)

DESTERRO E PROCESSO EM COIMBRA

(SETEMBRO DE 1662 A FEVEREIRO DE 1668)

Ao chegar Vieira a Lisboa em 1661, encontrouacesa a discórdia na corte entre as duas facções quepretendiam, uma investir no governo a D. AfonsoVI, ainda sob a tutela da rainha sua mãe, a outraprotelar a regência, e porventura alterar a sucessãoda Coroa aclamando o infante D. Pedro. A estaúltima logo aderiu António Vieira, e se lhe atribui aredacção da reprimenda, lida ao rei em grandeassembleia, quando se procedeu à prisão e desterrodo valido Conti.Entretanto ocupava-se o padre em defender osmissionários das acusações que um procurador dacolónia trouxera à corte, e compunha o longo arra-zoado, de que existe cópia na Biblioteca de Évora,sem nome de autor, onde rebatia os argumentos deseus adversários, e por seu turno formulava contraeles queixas não de todo infundadas.O golpe de Estado pelo qual D. Afonso VI, emJunho de 1662, se apossou do Governo, anulou adefesa dos Jesuítas, que perderam muitos dos seusprivilégios no Maranhão, sendo-lhes todavia asse-gurado o regresso à colónia, excepto ao superiorAntónio Vieira, que na ocasião de terminar aregência fora desterrado para o Porto, e daí transfe-rido para Coimbra.Aqui lhe iniciaram no Santo Ofício o processo porofensas à fé, contidas naquela carta ao bispo doJapão, em que comentava o Bandarra e anunciava aressurreição de D. João IV.Desde chegar a Coimbra ficou como em detenção,à ordem do Santo Ofício, não podendo sair dotermo sem licença do inquisidor, e alternando aresidência entre o colégio na cidade e a quinta deVila Franca, pouco distante, à beira do Mondego,de onde se afastou algumas vezes para clandestinasvisitas em Tentúgal ao duque do Cadaval e seu

irmão D. Teodósio. No correr do processo foiamiúde chamado à Inquisição de Coimbra e inter-rogado, até que afinal recolheu ao cárcere em 1 deOutubro de 1665.Até essa data manteve aturada correspondênciacom, entre outras pessoas, o duque do Cadaval e omarquês de Gouveia, desterrados como ele, e D.Rodrigo de Meneses, regedor das justiças, e irmãodo marquês de Marialva, grande amigo do infanteD. Pedro. Nos vagares ia compondo a extensa obraque tinha em mente e não concluiu a que chamavaHistória do Futuro.A 23 de Dezembro de 1667 voltou ao Colégio,acabado o processo, em que o sentenciaram areclusão e outras penas, delas a privação de pregar,todas as quais lhe foram dentro em pouco releva-das. Recluso estava nesse tempo D. Afonso VI,governava o infante, e ditavam leis na corte o du-que do Cadaval e outros amigos de Vieira, que porele intercediam. As cartas, que sucederam de pertoà sentença, descobrem abatimento de ânimo emágoa verdadeira. Bem depressa porém veio areacção. Transferido de Coimbra para o noviciadoda Cotovia, em Lisboa, Vieira achava-se junto dopríncipe, de quem esperava galardão merecido; nacorte, que fora por tantos anos teatro de sua activi-dade e de seus triunfos; restituído à liberdade e aodireito de pregar.Na expectativa de satisfações de amor próprio, quelhe negou o destino, ali permaneceu até Agosto de1669.

CARTA II

Ao marquês de Gouveia

1663 – Janeiro 20

[...]Narrarei o caso como tem passado, posto que jádei a V. Ex.a as primeiras notícias dele. Tive aviso,haverá quinze dias, que me estava decretadonovo desterro: uma versão diz que para o Brasil,outra para o Maranhão, outra para Angola; saiu

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isto de um dos maiores ministros, e com termostão efectivos, que se tomou informação dos na-vios que havia para aquelas partes. Desejei sabera causa desta novidade, e no correio passado meavisaram, ou notificaram, fora por uma carta oucartas, que eu escrevera a V. Ex.a, discorrendosobre as pazes do Minho, a favor da negociação,e de quem a obrava, etc., e que, comunicando V.Ex.a estas cartas, chegara de mão em mão o quenelas se dizia a parte onde de tudo se fizera(palavras formais) refinadíssima peçonha.Não há heresia que se não tirasse da SagradaEscritura, e contudo as palavras são ditadas peloEspírito Santo. Mas não está o mal nas palavras,senão na interpretação que lhes querem dar; e,como dizem que foram de mão em mão, bempode ser que chegassem tão diferentes, que total-mente não fossem as minhas, e assim o creio.Mas de qualquer modo que haja ou não hajasido, eu estou pela sentença, e irei para onde memandarem, seja África ou América, que em todaa parte há terra para o corpo e Deus para a alma,e lá nos acharemos todos diante daquele tribu-nal, onde só testemunha a verdade, sentenceia ajustiça e nunca é condenada a inocência.Além deste castigo, que dizem está decretado, seme notifica outro, posto que me não declaramde que tribunal saiu, em que me ordenam, pormodo de conselho, que me abstenha de escreveràquela personagem, a quem escrevi o sobredito(porque não nomeiam a pessoa de V. Ex.a), e quesó o faça por esta vez, dando satisfação de mim econta da ocasião. Esta é, senhor, toda a históriacom que entrou o ano de 1663, e se vai decla-rando por crítico contra mim, pois não só des-terram a V. Ex.a de Lisboa, mas a mim de V. Ex.a;da qual sentença o meu coração se ri muito nomeio do seu sentimento, apelando dos instru-mentos da memória para a mesma memória, edando graças a Deus, porque os que têm jurisdi-ção sobre o papel não a têm sobre a alma.

São hoje os 20, que V. Ex.a tem sinalado por diadecretório da partida. O tempo está claro e con-certado, ainda que o não esteja o mundo. O queimporta é que V. Ex.a tenha mui boa viagem, eque V. Ex.a a procure fazer com o maior descansoe comodidade. E, se V. Ex.a em Gouveia acharmenos Lisboa, também será alívio achá-la menos;e nenhuma cousa faltará a V. Ex.a em toda aparte, pois se leva consigo.De mim não tenho que dizer a V. Ex.a, porque omesmo que tenho dito serve para todos os tem-pos, pois sou e hei-de ser o mesmo em todos.Se com efeito me mandarem embarcar, como nahora da morte não há reservação, aproveitar-me--ei do privilégio para dizer a V. Ex.a o a Dio; noentretanto, se me não é lícito procurar novas deV. Ex.a em direitura, fá-lo-ei por outra via, quenão me hão-de impedir todos os homens. Equando eles o façam, as de Deus estão fora dasua jurisdição, e empregar-se-á o meu afectotodo em orações e sacrifícios, rogando ao mesmoSenhor, como sempre faço, pela felicidade dapessoa e casa de V. Ex.a; e sobretudo pedindo àSua Divina Majestade tenha a V.Ex.a no númerode seus vassalos, conservando sempre a V. Ex.a

em Sua graça, com grandes aumentos dela, queé o que só há-de durar e o que só importa.Guarde Deus a V. Ex.a muitos anos como desejo.Porto, 20 de Janeiro de 1663.Convém que a notícia desta resolução não passede V. Ex.a, por respeito de quem ma notificou,principalmente não se me dizendo de ondemanou, o que eu procurarei saber. – Criado deV. Ex.a.

António Vieira

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CARTA XIX

A D. Rodrigo de Meneses

1664 - Abril 14

[...]Cá tive meus rebates, como o ano passado, deme quererem mudar o degredo para mais longenesta ocasião de naus da Índia: mas não são ne-cessárias as calmas de Guiné nem as tormentasdo cabo da Boa Esperança; bastam os frios deCoimbra para satisfazerem à vontade de meusamigos. Depois que entrou Abril se esfriaramnotavelmente os dias, e ao mesmo passo se atra-sou a saúde; mas nem por isso levantei a mão danossa obra, cujo sucesso depende tanto do tem-po, que poderá ser se apresse mais do que algunscuidam.Coimbra, 14 de Abril de 1664.

António Vieira

CARTA XL

A. D. Rodrigo de Meneses

1664 - Setembro 8

[...]Se o intento deste papel demonstrativo foiporventura querer mostrar ao mundo, e à cabeçadele, que Portugal não pode ser conquistado deCastela, e mostrar à mesma Castela que, ainda nasuposição possível ou provável da sua conquista,lhe seria mais conveniente ter a Portugal poramigo que por sujeito, assuntos eram estes doisque só podiam conseguir-se com muito vivas,muito claras e muito sólidas demonstrações, aque não falta matéria neste mesmo papel, se selhe dera outra forma: mas o autor é somentediscreto de profissão; e o compreender e disporum discurso demonstrativo, que fira direitamenteos pontos, e os convença sem se divertir, pede

outros fundamentos. Tenho dito mais do quequisera, porque sempre quisera dizer bem; masfaria agravo grande à minha fé e obediência se,mandando-me V.S.a, não dissera com sinceridadetudo o que tenho na alma.Os verdadeiros papéis, e os discursos e demons-trações que hão-de defender a nossa causa, são oforte real de Valença, e as fortificações das outraspraças, e a defensa geral em que o Sr. Marquêstem posto a província de Alentejo. A falta demantimentos, que o inimigo padece em toda aparte, mostra bem quanto Deus está da nossa,pois no mesmo ano é tanta a fertilidade, portoda a Beira e Minho, que se diz não haveráonde se recolher o pão, e já hoje se está dandode graça, sem haver quem o queira. Tudo sãomisericórdias de Deus, tanto maiores quantomenos merecidas.O mesmo Senhor guarde a V. S.a muitos anos,como desejo e havemos mister.Coimbra, 8 de Setembro de 1664. - Capelão emenor criado de V. S.a

António Vieira

CARTA LII

A. D. Rodrigo de Meneses

1664 - Dezembro 29

[...]O cometa de 1577, a que se atribui a perda deel-rei D. Sebastião, segundo a conta de V. S.a saiuou apareceu no mesmo dia que este, e não faltaquem ache grandes mistérios nesta correspon-dência, que verdadeiramente é notável. Eu fizmeu estudo no caso, não como matemático mascomo marinheiro, que é o mais a que se estendea minha arte ou experiência, e achei um textoque pareceu notável a algumas pessoas a quem ocomuniquei, e é de Ptolomeu no texto 54: Cumhaec ostenta orientalia sunt, et solem antecedunt, et in

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Oriente apparent, celeritatem eventus secuturisignificant. E como este cometa seja tão propria-mente oriental, e apareça no mesmo ponto doOriente onde nasce o Sol, e vá diante do mes-mo Sol, e com curso tão apressado, parece, se háverdade no texto, que não tardarão muito seusefeitos, que é o que havemos mister, e o quepromete a circunstância do tempo e o concursode todas as outras causas. [...]Coimbra, 29 de Dezembro de 1664. - Capelão emenor criado de V. S.a

António Vieira

CARTA CXVI

Ao duque do Cadaval

1665 - Agosto 22

[...]Do mundo vão tais novas que não parece omesmo que começou este ano; e ainda não estáacabado. Holanda dizem que aparelha nova emais poderosa armada, e que França se tem de-clarado por sua parte; que os príncipes de Ale-manha se armam, sem se saber o fim; que emPolónia começam grandes revoluções, e que setemem em Europa mais universais guerras quenunca; que Carreacena, feito grande, vai gover-nar Nápoles; e que a conquista de Portugal setorna a entregar a D. João de Áustria. Assim odiziam as profecias de Évora muito antes desteaviso. Um de Madrid se me tem prometido parao correio; vindo irá a V. Ex.a [...]Vila Franca, 22 de Agosto de 1665. – Criado deV. Ex.a

António Vieira

CARTA CXXIX

A D. Rodrigo de Meneses

1665 - Setembro 14

[...]Lembrado está V. S.a daqueles intentos acerca dopapel escrito ao bispo do Japão, que foram im-pedidos pelo Sr. Marquês, interpondo-se a auto-ridade da rainha nossa senhora. A estes pontosme mandaram responder os ministros destaUniversidade, apontando neles tudo quanto disseou escrevi, e tudo quanto imaginei dizer ouescrever em minha vida, que tudo se pediu con-ta, e de tudo se me fez cargo. A tudo prometiresponder e satisfazer, e sobre matérias (que sãoinfinitas e não tratadas até agora pelos doutores)tenho escrito muito, mas falta muito mais porescrever, e tudo por concluir, porque as pedrasdeste edifício estão lavradas a pedaços e semnenhuma ordem, como acontece em todas, emuito mais nas deste género, de que V. S.a podebem ser testemunha, pela mercê, que me temfeito, de descobrir e me mandar tantos livros, eainda de me mandar buscar fora do Reino osque não têm chegado. E é de direito natural queninguém possa ser julgado sem se lhe dar defesae o tempo necessário para ela. Sobre ser muitodesproporcionado o tempo que se me tem dadopara a minha, a despeito da multidão das matéri-as e qualidades delas, é tal o rigor da minhadesgraça que me não querem levar em conta otempo das minhas enfermidades, sendo tão gravese tão perigosas, por serem mui dilatadas, e queme não valha o axioma tão recebido e ditadopela mesma natureza, que legitime impedito noncurrit tempus: represento e requeiro que, ou seme dê tempo suficiente para responder por es-crito, ou que me permitam responder verbal-mente, ao que me ofereço desde logo. E sendoesta resposta tão justa e tão justificada não érecebida, e, sem embargo do estado em que estou,

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continuam as baterias com tal aperto que pareceme querem matar, como já estivera morto poresta mesma causa, se Deus me não sustentara avida depois de tão desconfiados todos dela; por-que dos excessos que fiz, sendo obrigado a estu-dar e escrever de dia e de noite, vim a lançarmuito sangue pela boca, de que tantas vezes mequeixei a V. S.a e ultimamente a cair em umacama com tanto risco. Tenho notícia que todosestes apertos manam dessa cidade, e como nelanão tenho outra esperança nem outro amparomais que aquele ministro, parente de V. S.a, quetão propício se mostrou sempre às minhascousas, estimarei muito que V. S.a nesta tão aper-tada ocasião me valha com ele, esperando dainteireza e piedade queira acudir por minha jus-tiça, e que ela, pois é tão manifesta neste inci-dente, de que depende o demais, não pereça aodesamparo. [...]Capelão e menor criado de V. S.a

António Vieira

CARTA CXLIX

A D. Rodrigo de Meneses

1669 – Dezembro 3

Senhor. – Já dei conta a V. S.a da minha chegadaa Roma onde também tive notícia da forma queS. A., que Deus guarde, tinha dado ao despachoordinário, e o lugar que V. S.a tem nele, de quenão dou a V. S.a o parabém, mas de muito boavontade beijara a mão a S. A. pela resolução eeleição.Agora dou conta do meu negócio a V. S.a que jáse não poderá tratar neste pontificado, porque oPapa fica morrendo. Presente é a V. S.a que opapel censurado foi escrito no Maranhão, e en-viado de lá por mãos do confessor à rainha nossasenhora que está no Céu, e para seu alívio na

morte de el-rei. Deste papel, interpretado comopareceu aos qualificadores, se formaram proposi-ções e se mandaram a Roma, onde foram cen-suradas, sem aqui nem em Portugal eu ser ouvi-do, porque quando isto se fez estava eu noMaranhão, sem se me dar notícia de tal cousa.Suposto isto, eu não quero ter pleito algum comos inquisidores de Portugal, que foram merosexecutores das censuras, e só quero e devo tercom os ministros de Roma que as censuraram, epedir ao Papa que, pois eu não fui ouvido, meoiça, e depois de cuidar a razão do que eu dissemande julgar de novo o que for justiça. Assimque o meu pleito todo é em Roma com osministros romanos, não entrando para mal nempara bem nesta causa os ministros de Portugal;com que fica totalmente cessando o reparo queS. A. tinha de que a autoridade do seu embaixa-dor se interpusesse a favor deste negócio, e étanto assim que o mesmo inquisidor Alexandreda Silva, por cujas mãos correu toda a causa, meexortou e aconselhou que assim o fizesse, alegandomuitos exemlos de que os inquisidores não tive-ram sentimento algum, pois não ofende seu cré-dito e autoridade que o Papa desfaça, ouvindo aparte, o que o mesmo ou outro Papa fez, não aouvindo. Sendo esta suposição tão diversa e tãoalheia de todo o inconveniente, espero que S. A.me favoreça com uma carta para o embaixador,em que lhe mande dizer que, além do negóciodas canonizações dos mártires do Brasil, tenhooutro que lhe comunicarei, e que me assistacom tudo o que puder etc.Também estimaria muito, para o mesmo fim,que S. A. me fizesse mercê honrar com umacarta sua em resposta da inclusa, dando-me con-fiança ou atrevimento para pedir este favor ogrande número de cartas, que se acham regista-das em ambas as secretarias, que el-rei, que estáno Céu, me mandou sempre escrever, não só denegócios mas de benevolência, além das particu-lares que não iam a registo.

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E se este exemplo não bastar, sirva-se V. S.a, porme fazer mercê, de trazer à memória a S. A. queeu sou aquele que tantas vezes arrisquei a vidapela sua Coroa, indo a Holanda, Inglaterra,França e Itália, sem mais interesse que o do zelo;e aquele que por respeito e serviço de S. A. foidesterrado, e afrontado por haver dado os meioscom que se restaurou o Brasil e Angola, e comque o Reino teve forças e cabedal para se de-fender. [...]Roma, 3 de Dezembro de 1669. – Criado de V. S.a

António Vieira

CARTA CLII

À rainha D. Catarina de Inglaterra

1669 – Dezembro 21

[...]V. M. por sua clemência perdoe a indecênciadestas queixas, que a dor não tem juízo, e ne-nhuma é maior que a do amor ofendido.Determino pleitear de novo a minha causa, ebuscar em Roma a justiça que não achei emPortugal; e ainda que espero me não falte Deus,como defensor da verdade, tenho grande confi-ança que, por meio da protecção de V. M., tereimais segura a divina. [...]Roma, 21 de Dezembro de 1669.

António Vieira

CARTA CLXXV

A D. Rodrigo de Meneses

1671 – Maio 11

Quer o padre-geral que estampe os meus ser-mões em diversas línguas, e nisto trabalho sememulação e com merecimento porque o faço

por obediência, que é a melhor disposição paraoutra vida, de que só quisera tratar.Se eu vira que em Portugal servia a S. A., tam-bém soubera ajuntar o seu serviço como deDeus, como em outro tempo fiz, e não era ne-cessário outro motivo para eu me não apartar deseus reais pés; mas, como experimentei que nãoera útil, para nada, e que este sagrado me nãovalia contra a perseguição de meus émulos, pa-receu-me melhor tirar-me de seus olhos, e verse podia escapar de suas línguas, de que aindame não vejo livre: mas estas setas, de mais longe,ou não chegam ou ferem menos; com que te-nho a satisfação que neste vale de misérias podelograr quem o conheceu tarde.Com isto tenho dito o que basta para que a V. S.a

lhe conste do estado de minha vida, e da dispo-sição de meu ânimo, que sempre foi, é e será omesmo, posto que mais desenganado e tambémmagoado; procurando porém de alcançar, aquelainsensibilidade, que só com a consideração ecom o tempo se pode mudar.Roma, 11 de Maio de 1671. – Criado de V. S.a

António Vieira

CARTA CLXXX

A Duarte Ribeiro de Macedo

1671 – Junho 30

[...]A maior pena que aqui padeço é ouvir falar emPortugal, porque todas as nossas acções desme-recem a nossa fortuna, quando a pudéramos portodas vias adiantar ao sumo auge da felicidade egrandeza. Mas, como o que há basta para a am-bição dos presentes, não querem aventurar nadacom a esperança, porque possuem o que nuncaesperaram.

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Se aqui me pudera consolar com V. S.a, fora umgrande alívio; mas nem esse posso ter, porquenão há por cá quem se desconsole. Deus lhe façabem com o seu pouco, e lhe o sustente pormuitos anos, como Ele só sustenta, obrando,como na criação do Mundo, sem concurso decausas segundas.Ontem busquei ao Sr. Marquês Embaixadorpara lhe apresentar o livro de V. S.a, mas nãoestava em casa, onde lhe o deixei a bom recadopara que pudesse responder neste correio. Aoabade Francisco de Azevedo dei o que lhe toca-va, e o seu ao padre Bento Pereira, que muitoestimaram.Eu li os meus de dois fôlegos, que a doçura doestilo não me consentiu fazê-lo com menossofreguidão. Aprendi muito, e o maior encareci-mento que posso dizer do meu gosto é que nãoinvejei nada, sendo que conheci que não seifalar português. Não sei se faz bem aos príncipessaberem que têm tão altas descendências! [...]Roma, 30 de Junho de 1671. – De V. S.a capelãoe criado.

António Vieira

CARTA CXC

A D. Rodrigo de Meneses

1671 – Outubro 24

Soli[...]Os danos, senhor, que experimentou até agoraPortugal com os cristãos-novos, se reduzemprincipalmente a cinco. Primeiro: a contagiãodo sangue pela mistura com os cristãos-velhos.Segundo: os sacrilégios ocultos que são infinitose sabidos. Terceiro: a infâmia da Nação, pela línguaque falam, em todo o mundo. Quarto: a perdadas conquistas, com a extensão da heresia e im-

pedimento da propagação da Fé, pelo que aju-dam as armas e o poder dos hereges. Quinto: adiversão e extinção do comércio, cujas utilidadeslogram os estrangeiros, assim pelos mercadoresque têm em Portugal, como pelos cabedais dosPortugueses, que por medo da confiscação trazemseguros em todas as outras praças de Europa.Estes inconvenientes se pretenderam até agoraevitar por meio da Inquisição, mas posto queeste tribunal seja santíssimo e unicamente ne-cessário para a conservação e pureza da Fé, aexperiência tem-nos mostrado que não basta sóele para o remédio, e a mesma experiência ensinaque, quando um remédio não aproveita, se de-vem buscar outros mais eficazes, como S. A. comtanta piedade e prudência resolveu se fizesse.Se os meios, que se propuseram e se têm decre-tado, foram suficientes para acudir a estes incon-venientes, não havia mais que desejar. É porémcerto que, excepto o primeiro dano casamentos,que em parte se remedeia, todos os outros nãosó ficam em pé, mas com muito mais danosas eevidentes consequências, assim para a mesma Fécomo para o Estado.Se é este o comum sentir de Roma e de toda aEuropa, informe-se S. A. de seus ministros. Eu sóposso testemunhar desta casa, que, como já dissea V. S.a, é uma abreviatura do mundo. Ao padreassistente e mais portugueses que aqui nos acha-mos parece que a dita resolução se não deviatomar, e muito menos executar-se, pelos mani-festos inconvenientes dela, a que não chamammenos que perdição do Reino e das conquistas.O mesmo sentem os padres italianos, franceses ealemães, não com pouca admiração do decreto,ainda que com grande reverência do zelo de S.A. Só os Castelhanos por dentro estimam muitoesta expulsão, não só pelo que experimentam nasua dos Granadinos, mas porque consideram adiferença e consequências que se lhe podem se-guir, tirados de Portugal e passados a Castela osque com os seus cabedais sustentaram a guerra.

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Suposto isto, o meu voto seria uma doutrinamuito alta, mas em matéria muito baixa, como éa de que se trata, e que muito claramentedemostra tudo. O esterco (diz Santo Agostinho)fora do seu lugar suja a casa, e posto no seulugar fertiliza o campo: e, aplicando-se a doutri-na e semelhança ao nosso caso, com o maior dosdoutores digo, senhor, que os Judeus se tirem deonde nos sujam a casa, e que se ponham ondenos fertilizem o campo. Assim o faz o Papa, e aigreja romana, que é a regra da Fé e da Cristan-dade, tirando desta permissão muitos proveitosespirituais, e evitando muitos inconvenientestemporais. Lancem-se de Portugal os Judeus, ossacrilégios, as ofensas de Deus, e fiquem emPortugal os mercadores, o comércio, a opulência,e tenham de aqui por diante separados a doutri-na, que nunca tiveram até agora, e os que seconverterem serão verdadeiros cristãos, e os de-mais importa pouco que vão ao Inferno de aíou de outra parte, como de aqui vão tambémaos pés de S. Pedro.Pergunto a V. S.a pelo amor de Deus, pelo amorda Fé, e pelo amor do príncipe: Qual é melhor?Judeus declarados, ou judeus ocultos? Judeusque casem com cristãs-velhas ou judeus que nãocasem? Judeus que confessem e comunguemsacrilegamente, ou judeus que não façam sacri-légios? Judeus que afrontem a Nação, ou judeusque a não afrontem? Judeus que enriqueçamItália, França, Inglaterra e Holanda, ou judeusque enriqueçam a Portugal? Judeus que comseus cabedais ajudem os hereges a tomar as con-quistas e impedir a propagação da Fé e propagara heresia, ou judeus que com os mesmoscabedais ajudem as armas do príncipe mais cató-lico a recuperar as mesmas conquistas, e dilatar aFé por todo o Mundo? Assim o tinha determi-nado el-rei, que está no Céu, e não o fez, por-que não tinha paz nem acesso ao Pontífice.Mais, senhor, é certo que heresia é mais contagi-osa que o judaísmo: antes o judaísmo não é

contagioso, e a heresia sim e muito, como seexperimenta com todas as nações da Europa,onde tantos se fazem hereges, e nenhum judeu.Pois se Portugal em Lisboa, e em todas as praçasdo Reino, permite hereges ingleses, holandeses,franceses, alemães, que vivem com liberdade deconsciência, misturados com os católicos semsinal e distinção, só pelas utilidades do comércio,que não são utilidades senão destruição dele; porque razão, pelas utilidades mesmo comércio, senão permitirá o mesmo aos judeus portugueses,estando não misturados, senão separados comoem Roma, e com sinal por onde sejam conheci-dos, com obrigação (como aqui) de ouvirempregações e doutrinas, em que se impugne a suaseita?Vejo que só se pode opor que os judeus dePortugal são baptizados, mas também sãobaptizados os calvinistas de França, e por justascausas se lhe permite a dita liberdade, e assim sepode permitir aos ditos judeus; propondo-se ascausas ao Pontífice, que é o legítimo juiz destamatéria, e quando ele o resolva, ficam seguras asconsciências do príncipe e seus ministros, e li-vres de todo o escrúpulo, não deixando de ohaver muito grande em algumas cousas que nodecreto se tem resoluto, fundado sobre uma pre-sunção muito duvidosa.O modo da execução é assinalarem-se bairros,onde esta gente viva, e certo tempo em que sedeclare, sendo moralmente infalível que todo oque for judeu (pois se não afrontam antes sepresam da sua lei) se declarará, como fazem emtoda a parte onde têm a dita liberdade: e os queforem verdadeiros cristãos serão conhecidos portais, ficando sujeitos às penas do Santo Ofício,como até agora.Isto é, senhor, resumidamente o que me parece,e que esta imundície, que até agora se sofreucom tanta indecência, se lance em lugar separa-do, como faz a economia nas casas, a política nascidades, a natureza nos corpos, e a utilidade e o

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remédio nos campos; e se acaso a V. S.a se ofere-cer algum reparo, como têm todas as cousasgrandes, creio e espero que não será de tantomomento que possa entrar em peso com a pu-reza da Fé, limpeza do sangue, honra da Nação,opulência do Reino, recuperação das conquistas,conversão da gentilidade, e infinitas outrasconsequências do serviço de Deus e salvação dasalmas, não só dos cristãos e gentios, senão aindados mesmos judeus, como aqui se experimenta,seguindo-se do contrário tantos inconvenientese perigos, quais se podem temer a um reinopobre, e que de vassalos úteis faça inimigos po-derosos, tendo tantos e tão vizinhos.A matéria não era para tanta brevidade; mas falocom V.S.a, ficando certo que, quando V. S.a repro-ve este pensamento, não deixará V. S.a de conhe-cer que tenho visto muito mundo e ouvido aosmaiores homens dele, estudado alguma cousa, esacrificado a vida à propagação da Fé e padecidomuito por ela, e que só tenho no coração aglória de Deus, o serviço e honra do meu prín-cipe, e a conservação e aumento da sua monar-quia, sem nenhum outro interesse humano.Olhemos solidamente, e não por apreensões dovulgo, para o que verdadeiramente é fé e reli-gião, e servir a Deus e aumentar Sua honra, eevitar pecados e salvar almas; e se o príncipe,que Deus guarde, quiser tudo isto, e ser junta-mente o mais poderoso monarca do mundo, useda ocasião que tem entre mãos, e sem mais des-pesa que o seu beneplácito o poderá conseguir.Soli, soli, outra vez. E Deus me guarde a V. S.a,muitos anos, como desejo.Roma, 24 de Outubro de 671.[...]

António Vieira

CARTA CXCIV

A D. Rodrigo de Meneses

1671 – Novembro 21

Desejara eu em Roma parte do zelo de S. A., eem Portugal parte das atenções de Roma. Nemnos lembramos do passado, nem olhamos para ofuturo, nem dispomos o presente. Desgraçagrande é, e parece fatalidade, que nos não dêcuidado nem o ódio de Castela, nem o desamorde Inglaterra, nem a cobiça de Holanda, nem osintentos de França quando a todos devemos te-mer igualmente, e mais aos mais distantes.Diz-me V. S.a que estamos faltos de cabedal, enão podia o juízo de V. S.a deixar de conhecerque este é o fundamento do poder, da autorida-de, do respeito e da conservação de todas asmonarquias. E que meios são, senhor, os que nósaplicamos ao aumento deste cabedal, quando opouco que temos o levam Genoveses, Franceses,Ingleses, Holandeses, e quantas nações há naEuropa, afora o que nos rouba África? A piorcircunstância que isto tem é o meu coração, edesvelarem-me estas considerações em Roma ena minha cela, quando tinha tantas razões de oamor de Portugal se me converter em ódio, e asmemórias em detestações. Mas, quando mehaviam de doer as minhas bofetadas, doo-me sódas suas. [...]Roma, 21 de Novembro de 1671. – Criado de V.S.a

António Vieira

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Volume III

(excertos)

SEGUNDA JORNADA A ROMASEGUNDA PARTE

(JANEIRO DE 1674 A AGOSTO DE 1675)

CARTA II

A Duarte Ribeiro de Macedo

1674 - Janeiro 9

[...]De Madrid e Lisboa me escrevem com grandesdesconfianças de tudo, e tudo atribuem à faltade resolução. Não basta o valor pessoal com quedas mãos à cabeça nos chamamos valentes. Tudose teme e todos temem, e entretanto a nau, senão se vai ao fundo, dizem que é por milagreque nós não merecemos dure muito. Lastimo-síssimas são as metáforas por onde se declaramos que não se atrevem a fazê-lo por outros ter-mos. Pedro Jaques tornou a partir em 26 deNovembro; concordam todos em que vai paratornar, e os mais julgam que sem dúvida vaibuscar a el-rei, antes de cuja chegada se nãocomeçarão as Cortes. Pessoa de dentro me dizque estavam dilatadas até os Reis, mas o nossoresidente não tem esse aviso, nem clareza algumadestes mistérios, posto que a corte onde ele estánão faz consequência com essa. Humanes ficaem Madrid muito a seu salvo, e, se há verdadenas cartas, não merecia a amassadura que a for-nada se cozesse tão afogadamente. Já se acaba-ram as pás de Aljubarrota!Em Évora se fez acto da fé, no qual saíram maisde 140 pessoas, um relapso negativo a queimar, eduas freiras também a queimar, negativas, doConvento da Conceição, de Beja, naturais deAlvito, com quarenta anos de hábito, e uma de-las que tinha servido todos os maiores cargos da

Religião. Não costumam aqui pôr em públicosemelhantes exemplos, e ouço dizer que tam-bém em Portugal o não há daquele sexo. Ficavapublicado acto para os 10 de Dezembro em Lis-boa. Sempre esperei que este teatro se pusessediante dos olhos a todas as Cortes, para que elasse comovam a pedir este remédio da Religião eimpedir que o Papa se não intrometa. [...]Roma, 9 de Janeiro de 674.

António Vieira

CARTA XXXVII

A Duarte Ribeiro de Macedo

1674 – Agosto 22

[...]Até aqui o que se escreveu a Portugal, e emPortugal se creu, e de que o residente se procuralivrar por todas as vias, sendo verdade que nuncafalou a favor dos cristãos-novos, senão muitocontra eles e pela Inquisição, e disto são teste-munhas o Papa e os dezasseis cardeais e quatroministros grandes. Porém que a causa de se falarem serem chamados a Roma e castigados osbispos fosse esta calúnia, é cousa para mimnovíssima, e que se não pode facilmente crerque a Sé Apostólica se houvesse de empenharcom uma tal demonstração, por acudir pelo cré-dito do residente de Portugal, em matéria quenão era do serviço da mesma sede, e infinitasoutras incoerências e impossíveis que facilmentese deixam ver. A verdade do facto é que osbispos, por palavra e por escrito, disseram emPortugal muitas proposições mais que temerári-as, em descrédito de Roma e seus ministros, econtra a jurisdição, autoridade e devida obedi-ência ao Pontífice, e, porque o bispo de Leiriafoi o que mais se alargou e mais publicamentenesta matéria, há indícios aqui que houve votosna Sagrada Congregação da Inquisição que ele

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fosse chamado a Roma e repreendido ou casti-gado; mas a ninguém veio ao pensamento queesta demonstração se houvesse de fazer por osmesmos bispos, ou algum outro haver impostoao residente que favorecia a causa dos cristãos--novos, a qual, segundo ouço, não parece estartão mal vista que se tenha por pecado odefendê-la, nem por crime digno de castigoafirmar-se que alguém a defende ainda que onão faça. E se com isto ficar mascavada a verda-de dos nossos eclesiásticos, não será isso o pior,mas este testemunho não é o que lhes fará aguerra. O inquisidor está em Génova, o enviadodos bispos em Siena, e quanto mais se apressar arefrescada tanto mais cedo serão aqui, e começa-rão esta nova campanha.Deus guarde a V. S.a muitos anos, como desejo ehavemos mister.Roma, 22 de Agosto de 674. - Capelão e criadode V. S.a

António Vieira

CARTA XLI

A Duarte Ribeiro de Macedo

1674 – Setembro 18

[...]Se suceder o segundo, e são certas a paz dePolónia e maior rebelião da Hungria, não parecetotalmente incrível a exposição que aqui se dáaos versos seguintes de Nostradamus:

O vaste Rome ta ruine s’approche,Non par tes murs, par tu sang e substance;L A S pre par lettre te fairá voer lhorrible cangeSe fer pointu te pascerá iusque a la manche [SIC nooriginal]

O enigma pelas letras dizem que está na palavraou palavras L A S pre, significando as três pri-meiras, L. A. S., l’anno santo, e as três que seseguem, pre, o número de 1675.

A conta se tira tomando a quantidade dos nú-meros segundo a ordem das letras do Abe destamaneira:

A b c d e f g h i k l m n o p q r

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17

Daqui se segue que as três letras da sílaba premontam os três números 15 17 5. E estes trêsnúmeros formados conforme as regras da aritmé-tica, começando do último, vêm a fazer justa-mente 1675, dizendo e escrevendo assim:E são 5 ...........................5R são 17 ........................7 e vai 1P são 15. 1 e 15 são 16 ....6 e vai 1 ..........................1

E tudo junto pela ordem natural – 1675

V. S.a perdoe a divisão do papel, ocasionado deum erro dos números.E Deus guarde a V. S.a muitos anos, como desejoe havemos mister.Roma, 18 de Setembro de 674. – Capelão ecriado de V. S.a

António Vieira

CARTA XLIII

A Duarte Ribeiro de Macedo

1674 – Outubro 2

Senhor meu. – V. S.a conhece de mais tempo apessoa que V. S.a chama antigo descobridor detemperamentos, e eu, com a pouca prática quetenho dela, entendi sempre que tudo o que co-zinhar será segundo o paladar dessa corte e osinteresses da sua nação, e a nossa pagará comopaga os adubos. Grande fatalidade é que, tendoPortugal tão pouco cabedal, despenda vinte mil

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cruzados todos os anos com dois homens, quenão só não fazem os seus negócios, mas os con-trariam e impugnam, em todas as ocasiões quepróxima ou remotamente se opõem aos desígni-os da coroa que descobertamente servem; nãohavendo nesta corte quem se não ria por isso donosso Governo, e nos não repute por insensíveise sem juízo. Dois ou três meses antes que oresidente escrevesse a Portugal, tinha eu dadoconta de tudo, e apontado o remédio, e propostoas pessoas que podiam entrar em consideraçãopara este lugar, nomeando somente três, porqueos demais, ou por incapacidade de talento, oupor empenho com outras coroas, ou por conser-vadores da neutralidade na expectação dopapado, não nos podem servir como havemosmister. De lá me escrevem se falaria na matéria,como se os casos da honra sofreram dilação, ehouvesse necessidade de conselho ou estudo emponto tão decidido.Dizem mais que el-rei se esperava por momen-tos, e que não estava ainda preparado nem reso-luto o lugar onde o hão-de guardar. Perco apaciência, e não posso deixar de temer algumagrande fatalidade, porque além de o negócio serde tal qualidade, por várias vias me afirmam quese duvida muito do ânimo de muitos, e dos quetêm à sua conta ou todo ou quase todo o espiri-tual do Reino. [...]Roma, 2 de Outubro de 674. – Capelão e criadode V. S.a

António Vieira

CARTA LXI

A Duarte Ribeiro de Macedo

1675 – Janeiro 28

Senhor meu. – Quando li esta de V. S.a, de 4 deJaneiro, me resolvi que V. S.a e eu éramos osverdadeiros químicos de Portugal: verdadeiros,porque ambos me parece temos descoberto apedra filosofal, e químicos, porque ambos me-dramos pouco.Para prova da primeira parte desta proposição,há muitos anos que sei se dá no Brasil a pimentae quase todas as outras drogas da Índia, como seexperimentou no primeiro descobrimento; e el--rei D. Manuel, por conservar a conquista doOriente, mandou arrancar todas as plantasindiáticas, cara lei capital que ninguém as culti-vasse, e assim se executou, ficando somente ogengibre que, como é raiz, dizem no Brasil, semeteu pela terra dentro; mas ainda se conserva aproibição, e se toma por perdido.Com esta notícia aconselhei a el-rei, que está noCéu, mandasse do Brasil à Índia, ou que da Índiafosse ao Brasil, um navio carregado das ditasplantas, já nascidas e acompanhadas de pessoaspráticas da dita cultura, e que em diversos luga-res e tempo do ano as fossem transplantando ousemeando, para que a experiência mostrasse emqual clima daqueles vastíssimos Estados se davammelhor. De onde se seguiria que, uma vez quetivéssemos abundância das ditas drogas, conduzi-das elas a Portugal com viagem e despesa tantomenor que as que navegam os Holandeses, ven-dendo-as nos a muito menor preço, ficavam elesperdidos e a Índia restaurada sem guerra. Omesmo representei ao príncipe que Deus guar-de, e não sei se a algum de seus ministros, mas oefeito foi como o que V. S.a e eu temos experi-mentado em outras muitas advertências, que malpode perceber como convém quem nunca saiudaquele canto do mundo, nem cuida que háoutro.

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Isto é, senhor meu, a pedra filosofal em quecuido nos temos encontrado, sendo muito maispara estimar, quando me não engane, haver V. S.a

inferido esta consequência de premissas tão re-motas como os ditos de el-rei de Inglaterra eGrotius, ou havê-la eu proposto depois das notí-cias do Brasil, que entre os antigos se referiamcom sentimento e hoje estarão lá quase esqueci-das. Também suspeito que o livro, em que V. S.a

leu acaso esta experiência, podia ser o da Histó-ria Natural de Pernambuco, escrita por um, cuidoque médico holandês, com as estampas dos ani-mais, peixes e plantas, no qual me lembro quenão muito longe do princípio se refere isto mes-mo; por sinal que me pesou muito de ver tãopúblico um secreto, que podia acrescentar a co-biça daquelas terras que nós tão pouco sabemosestimar. [...]Roma, 28 de Janeiro de 1675. - Capelão e cria-do de V. S.a

António Vieira

CARTA LXVI

A Duarte Ribeiro de Macedo

1675 – Março 19[...]Amanhã se resolve na Sagrada Congregação doSanto Ofício o modo que me pode segurar emPortugal de qualquer violência daquela monar-quia, que lá se estima imediata a Deus. Sem esteseguro, e mui seguro, não me hei-de arriscar,porque o perigo da vida é muito menor. Se eutivera a confiança do autor proximamente refe-rido, pudera dizer a V. S.a alguma cousa do quemostram sentir a minha ida os que melhor sen-tem. Serei ingrato para ir sofrer ingratidões, edeixarei muitos príncipes, que me amam, para irservir a um de cujo amor posso duvidar. Nocorreio seguinte darei mais certas novas da mi-nha partida, e antes dela as espero da de V. S.a,

para saber onde posso ter a fortuna de ouvir eser ouvido de V. S.a Muito temos que discorrer;e não será o ponto mais inútil o das artes emanufacturas. [...]Roma, 19 de Março de 675. – Capelão criadode V. S.a

António Vieira

CARTA LXXIII

A Duarte Ribeiro de Macedo

1675 – Maio 10

[...]Eu ainda não hei podido expedir-me de Roma,e se não houver impedimento de novo, por todaa semana que vem não estarei aqui. E falo amedo porque a experiência de quantas vezes metenho enganado me faz sempre recear, e de pre-sente muito mais, porque me consta que sefazem diligências para que eu não vá a Portugal,e são maiores as daqueles a quem solicita omedo que o amor. Cuida-se de mim que possopersuadir lá coisas que não estejam bem a quemdeseja nosso mal, e assim não sei o que há-de serde mim. [...]Roma, 10 de Maio de 675. – Capelão e criadode V. S.a

António Vieira

CARTA LXXV

A Duarte Ribeiro de Macedo

1675 – Junho 25

[...]Por tudo isto desejo sumamente chegar com amaior brevidade, posto que não com muita es-perança de persuadir o que convém, assim pela

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grande potência dos empenhados, como pelomenos crédito que se dará a minhas informa-ções, constando-me que por muitas vias meprocuram fazer suspeito, não só a este negócio,senão ainda a todos os outros do serviço de S. A.e bem do Reino, chegando a quererem fazerduvidosa a minha fidelidade.Este é o estado em que estamos, e esta terraaonde me vou meter, deixando aquela onde mefaziam tanta honra, que os termos, com que osmaiores falavam na minha partida, era dizer queme perdiam, procurando estorvá-la por tantosmeios que só os pôde vencer o temor de nãopoder conservar a vida, pondo-me eu sempre daparte da enfermidade para o conseguir. Julgue V.S.a que bem empregadas finezas. [...]Génova, 25 de Junho de 675. – Capelão e criadode V. S.ª

António Vieira

CARTA CVIII

A Duarte Ribeiro de Macedo

1678 – Abril 18

Meu Senhor. – As nossas cartas, se houvermosde dizer somente o que se passa de portas aden-tro, virão a ser como as gazetas dessa corte, quetodas se resolvem em dizer que Su Majestad(Dios le guarde) assistió en la capilla real a las funcio-nes ecclesiásticas, y fue a la caza. Não porque S. A.não trabalhe incansavelmente nos negócios, queentende melhor que todos; mas porque a suamodéstia natural o tem reduzido a tanta descon-fiança do seu mesmo juízo, que todo o tempo sepassa em juntas, de que se vêem poucos ou ne-nhuns efeitos. [...]El-rei (de quem muitos duvidam dizer Dios leguarde) fica de todo livre de perigo. Diz que há--de arranhar a perna para deter lá mais tempo os

médicos, com quem sempre teve ojeriza. E comeste desenfado tem engrossado tanto, que, seestima a circunferência em nove palmos. [...]Deus guarde a V. S.a muitos anos como desejo ehavemos mister.Lisboa, 18 de Abril de 678. [...]

António Vieira

CARTA CXV

A Duarte Ribeiro de Macedo

1678 – Junho 13

Meu Senhor. – [...]Nesta semana houve na sala do Santo Ofício umacto particular, a que foram chamados todos osprelados presentes e proximamente passados, etodos os fidalgos e títulos, mas não se achou lá oduque nem o marquês mordomo-mor. Cuidou-seque seria alguma grande demonstração e casoque a pedisse: e depois de esperarem duas horassaiu um Simão Sutil, rendeiro de não sei onde,familiar do Santo Ofício, penitenciado com de-gredo para o Algarve, por sentir mal do procedi-mento do sagrado tribunal, e sem ordem delefazer prender em seu nome um homem que lhedevia parte das rendas.Todos os estrangeiros aqui dão por infalíveis aspazes universais. E se assim suceder, ficando nóssem inclusão nelas, bem necessários serão a V. S.a

e a mim todos os graus da fé com que nosconsolamos.Lisboa, 13 de Junho de 678. - Capelão e criadode V. S.a

António Vieira

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CARTA CXVI

A Duarte Ribeiro de Macedo

1678 – Junho 21

Meu Senhor. – Muitos dias há tenho notíciaque se bolia dessa banda, por parte de algunsreligiosos émulos da Companhia, contra os doislivros que lá se imprimiram em meu nome, sen-do grande parte dos sermões totalmente alheiose supostos, e os que na substância eram meuscheios de infinitos erros, e com os discursos outrocados ou diminuídos ou acrescentados, e fi-nalmente corruptíssimos. E como havia catorzeanos que os ditos livros, sem consentimentomeu, antes muito a meu despeito, corriam semreparo nem objecção, e este zelo se levantoucontra eles depois que eu tive o recurso e privi-légio de Roma muito mal aceito a estes minis-tros, também entendo que as delações, se ashouve, foram motivadas desta banda, e que tudose ordenava a alguma demonstração deprecadaque lá se executasse pois cá não podia ser: e estanotícia me excitou a que no mesmo tempo pro-curasse o que muito havia desejava, isto é, oremédio da dita impressão, e que os livros outotalmente se proibissem, ou se tirasse o meunome dos que o não são, e em qualquer doscasos ou modos se declarasse ser eu o autordesta reforma; e para o dito fim, com conselhode quem mo podia dar como prático desses esti-los, fiz o memorial de que dei conta a V. S.ª, eagora me asseguram que tudo se comporá como crédito que se pretendia. Este é o facto; estasas razões dele, com a sinceridade que professo, ecom que me costumo confessar com V. S.a. Assimque não acho inconveniente em que V. S.a possamanifestar a notícia que tem de eu haver feito omemorial a esse tribunal, e ser o motivo dele osentimento de ver estampadas em meu nometantas cousas, que ou por totalmente alheias, oupor corruptas e depravadas, não podia nem de-

via reconhecer por minhas. E para que tambéma estes senhores conste minha diligência, paraque não atribuam os efeitos às suas, num segun-do prólogo do livro que têm há muitos dias emseu poder faço queixa das ditas impressões deMadrid, e declaro lhe tenho procurado remédio;e, porquanto até agora o não tenho conseguido,faço lista dos sermões alheios e meus, e destessegundos prometo ir saindo nos tomos seguin-tes, como já comecei a fazer no primeiro, comos mesmos correctos e emendados, e em tudoconformes com seus originais. Já passa de quatrosemanas que o dito primeiro tomo está naInquisição, entregue por S. A. ao inquisidor-geral,com pacto de o haver de restituir outra vez emsua real mão, como já dei conta a V. S.a. E porqueesta dilação não se conforma com a boa vonta-de, que o mesmo inquisidor significou a S. A. e amim, vou entrando em receios que havemos deter algum pleito. Seja o que quiserem. Mas, senão for o que devia ser, pode ser que se motivecom este desengano algum que eu possa tomarcom a Pátria, de acabar a vida fora dela. [...]Lisboa, 21 de Junho de 678. – Capelão e criadode V. S.a

António Vieira

CARTA CXXII

A Duarte Ribeiro de Macedo

1678 – Agosto 2

Meu Senhor. – Já disse a V. S.a que o meu livrotinha saído aprovado, e a causa da dilação foi alarga apologia que fez um revisor franciscanocontra uma cláusula de um epitáfio de Escoto,que diz: «Semel sepultus bis mortuus» fundadana opinião comum que o sepultaram vivo, repu-tando-o por morto, por ocasião de um largoacidente de apoplexia, o que os Franciscanos

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procuram defender dizendo que foi invençãodos tomistas. Mas que importa isto para a Fé oubons costumes, principalmente que eu só refiroa cláusula do epitáfio, que verdadeiramente selhe fez e anda estampado, sem me meter a averi-guar a verdade da história ? Estes são os nossosclassificadores, e esta a terra em que vivemos.[...]Lisboa, 2 de Agosto de 678. - Capelão e criadode V. S.a

António Vieira

CARTA CXXXIV

A Duarte Ribeiro de Macedo

1678 – Novembro 7

Meu Senhor. – Muita razão tem V. S.a de temerque os nossos vícios tornem a entregar Goa nasmãos dos gentios, pois lá e cá estão tão esqueci-das e degeneradas as virtudes com que ela e asmais da Índia se conquistaram. Não me lastimode se ter quase acabado entre nós a cristandade,mas de se ter totalmente perdido a honra queantes dela professáramos, e depois conservámose adiantámos tão gloriosamente por tantos sécu-los. Isto devemos em grande parte a essa corte,que igualmente nos inficionou a nós e se arrui-nou a si. [...]Todas as nossas indústrias se empregam em des-cobrimento de minas, e se gastam nestas contin-gências tesouros que noutros empregos nos pu-deram ter enriquecido. As de Vila Real eBragança já se desvaneceram; as dos rios se têmtotalmente errado; para as de Parnaguá se têmmandado novos ministros, que nada entendemdaquele mister, mas para si têm já descoberto eembolsado muita prata, pelos grandes saláriosque levam, com poderes sobre tudo quanto hánaquele Estado. A nau da Índia, que não veio,

tem gastado na Baía 55 000 cruzados, e são ne-cessários mais vinte para tornar a continuar aviagem. Julgue V. S.a que utilidade se pode tirarde semelhantes viagens. Enfim, tudo é fatalidadeao longe e ao perto. [...]Lisboa, 7 de Novembro de 678. – Capelão ecriado de V. S.a

António Vieira

CARTA CXXXVIII

A Duarte Ribeiro de Macedo

1678 – Dezembro 5

Meu Senhor. – Muito meditei estes dias na opi-nião que V. S.a tem de que a Índia se não poderestaurar senão pelas mesmas virtudes com quese conquistou, que para mim é artigo de fé, equanto mais o creio tanto mais me desconsolo,porque é tão universal a corrupção dos vícios,em tudo contrários a essas mesmas virtudes, queparece se nos tem já convertido em natureza.[...]Lisboa, 5 de Dezembro de 678. – Capelão ecriado de V. S.a

António Vieira

CARTA CXLI

A Duarte Ribeiro de Macedo

1679 – Janeiro 9

Meu Senhor. – Estes dias me chegaram à mão oslivros da madre Maria de Jesus que li com admi-ração, posto que não tenho passado mais que avida, e a primeira parte. Se é certo que é mulhera que aquilo escreveu, também tenho por certoque não foi por ciência natural. E se acaso foihomem, nenhum conheço dos que tenho lido

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em que se achem juntas todas as disposições queaquela escritura requer, assim pelas matérias quetrata e envolve, como pelo estilo com que seexplica. Isto é o que me admira, e não as revela-ções, que ainda se podem fingir criais admiráveise mais críveis. Contudo me não asseguro que oespírito que as ditou seja conhecidamente divi-no, pela grande diferença que faz não só dasescrituras sagradas, mas ao de todos os santos esantas que falaram naquele género. Enfim, a ma-téria é gravíssima e que, sem embargo das ob-jecções anotadas e doutamente respondidas, selhe podem pôr outras que porventura não te-nham fácil resposta. Está-se revendo por ordemdo Santo Ofício, e há muitos senhores e senhorasque fazem grandes instâncias pela impressãocuido, contudo, que se não imprimirá.Lisboa, 9 de Janeiro de 679. – Capelão e criadode V. S.a

António Vieira

CARTA CXLIV

Ao padre João Paulo Oliva

1679 – Janeiro 30

R. P. N. Geral. – [...]E para que V. P. Rer.ma tenha individual notícianão só do meu espírito, que por minha grandenegligência cada dia é mais imperfeito, senão daminha saúde e forças corporais, lhe digo queestas ao presente se acham em mui pior estadodo que estavam quando V. P. Rev.ma, por faltadelas, se serviu escusar-me do governo da CasaProfessa. A minha idade passa de 70 anos; a vistatotalmente perdida em um dos olhos e, no ou-tro, mui debilitada; e, em uma palavra, os demaissentidos e potências, principalmente a memória,estão mui débeis e defeituosas; e de dois meses aesta parte tão maltratado de uma perna que,

hoje mesmo, dando-me licença o padre provin-cial para ir a cavalo a uma consulta, não me foipossível montar na mula e sustentar-me nela.Em consideração de todas estas enfermidades,originadas do frio e humidade deste clima, aindaque mais benigno nesta parte que o de Roma,havia chegado a persuadir-me que não podiaviver em Portugal outro Inverno; e assim estavez, por própria conveniência, tinha ajustadominha viagem para o fim do Verão, para a minhaprovíncia do Brasil; duvidando somente se devoir ao Maranhão, a prosseguir as antigas missões,ou à Baía, onde com mais comodidade podereicontinuar no trabalho de pôr em limpo os meussermões, esperando somente que a ordem de V.P. Rev.ma me tiraria desta dúvida, determinando--me o lugar para onde devo partir.Esta é, Rev.mo Padre, a ingénua informação doestado em que actualmente me acho enquanto àsaúde do corpo; e mais enquanto à do espírito,indiferente e sempre pronto para tudo aquiloque V. P Rev.ma julgar ser vontade e de maiorglória de Deus. [...]Lisboa, 30 de Janeiro de 679. – De V. P. Rev.ma

humilíssímo, devotíssimo e obrigadíssimo servo

António Vieira

CARTA CLIV

A Duarte Ribeiro de Macedo

1679 – Abril 4

Meu Senhor. – [...]Sábado de Aleluia foi o conde da Ericeira lançarfora uma nau que vai para a Índia e outra paraos rios, e os comboios e frota do Brasil, da qualficou grande parte no rio, sem poder incorpo-rar-se com o resto por falta de vento. Este cava-leiro não é venturoso com estes elementos. Asduas naus que hão-de passar o cabo vão tão

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metidas no fundo e tão empachadas, sem leva-rem uma peça lestes, que disse um estrangeiro seatrevia a render cada uma delas com umachalupa. Eu as vi ambas, e me lembrou o capítu-lo latino daquele holandês que V. S.a me comu-nicou, em que dava a causa das nossas perdições.Mas em todas queremos antes a contumácia quea emenda. [...]Lisboa, 4 de Abril de 679. - Capelão e criado deV. S.a

António Vieira

CARTA CLVIII

A Duarte Ribeiro de Macedo

1679 – Maio 1

Meu Senhor. – [...]Na segunda vinda de Cristo Senhor Nosso aomundo (se acaso se entende em presença visívele permanente) não se conforma a minha opi-nião, porque só a admito em espírito, de maneiraque a primeira vinda fosse ad redimendum in carne,a segunda ad reformandum et Perficiendum inspiritu, a terceira ad judicandum in gloria.E, sendo isto assim, houve cá quem me conde-nasse por muito menos do que aí se não repro-vou, e em Roma se deu licença para que seimprimisse. Haver advogado a si a junta da Con-ceição os livros, que tratam do mesmo mistério,deve de ser para examinar os fundamentos, e ospropor à Sé Apostólica em ordem a definição. Olugar da madre Agreda é bem particular; eu o vi,por sinal que abrindo o livro foi pontualmentena mesma folha e número. Neste ponto se nãomete a minha Clavis Prophetica porque se tratade Regno Christi in terris consummato, e da Féuniversal e outras prerrogativas do mesmo tem-po, que me parece estão mui expressas nas Es-crituras. E também mostro ser da Fé a conversão

e aparecimento das tribos. Não me persuado aque tenham já conhecimento do Messias, masque o terão a seu tempo por meio de algumprofeta, que Deus levantará como antigamenteentre eles, ou de algum varão apostólico que aProvidência Divina leve, sem milagre ou de ou-tro modo, às terras onde estão escondidas. Assimparece que se tira de Esdras, cujos livros, postoque em alguma parte sejam ou possam serapócrifos, não tira que em muitas outras conte-nham verdadeiras revelações e profecias. Enfim,como V. S.a diz, estas matérias são mais para apresença que para cartas.Da profecia de S. Francisco Xavier me admiranão haver notícia entre nós, como verdadeira-mente não há, não só pela diligência que aquifiz com padres da Índia, e que estiveram muitosanos em Macau, donde só podia passar a Manila;mas porque não faz menção de tal cousa o padreQueirós, eleito patriarca da Etiópia, em seu livromanuscrito que compôs com grande diligênciana Índia, e chegou aqui há poucos anos, sendo oseu intento em muitos capítulos o império uni-versal, que também espera e pretende provar há-deser em Portugal. Se V. S.a contudo puder havercópia da dita profecia, será muito para ver, ha-vendo tantos anos que é feita, e tendo-se verifi-cado por outros sucessos que, ainda que não sejado santo, a qualificaram por revelada. [...]Lisboa, 1.º de Maio de 679.

António Vieira

ANOS FINAIS NA BAÍA

(MAIO DE 1682 A JULHO DE 1697)

As cartas deste último período traduzem na pri-meira parte o desalento de quem, vencido dosémulos, se afasta para não confessar a humilhaçãoda derrota; mais adiante a conformidade, ainda que

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com seu ressaibo de amargura; por fim e alternada-mente a escuta ao chamado da morte, que se apro-xima, e a vontade de viver, enunciada no afã dotrabalho e na atenção permanente ao que no mun-do acontece.A ausência não aplacou o mal-querer dos que emPortugal o aborreciam. Diziam-no vendido aos ju-deus, e de uma canta sua consta que, pouco tempodepois da viagem, os estudantes e a ralé deCoimbra publicamente o afrontaram, queimandona rua em suposto auto-de-fé uma figura que orepresentava. Ao partir deixara queixoso o marquêsde Gouveia, por motivo que se não averiguou ain-da, e sobre o qual ele da Baía submissamente sedesculpava.Por desavenças de seu irmão Bernardo Ravascocom o governador António de Sousa Meneses, su-cedeu ser aquele implicado, com um filho seu, nohomicídio do alcaide-mor da Baía, e atribuiu-se ainspiração do crime ao parente jesuíta. Disso dáconta Vieira ao governador antecedente, Roque daCosta Barreto, em carta de 25 de Junho de 1683.O caso, de que resultaram procedimentos judiciaise a prisão para o irmão e sobrinho, não teveconsequências para o religioso, aleivosamente acu-sado.Em 1688 recebeu do geral a nomeação devisitador, que lhe entregava a direcção da provínciabrasílica, exercendo o cargo por três anos. Salvoum conflito de jurisdição nesse período com obispo de Pernambuco, e outro mais tarde, quandojá não exercia prelatura, com o provincial, decorreu--lhe em serenidade o restante da vida.Grande parte do tempo passou-o na Quinta doTanque, que os jesuítas possuíam no subúrbio, es-tância propícia a seus estudos e trabalhos, onde fezresidência preferida, até que a enfermidade o for-çou a recolher definitivamente ao Colégio. Aliprincipalmente preparou os sucessivos volumes desermões, que foi mandando para se imprimirem noReino, e o famoso tratado da Clavis Prophetarum,que não logrou completar.Todos os anos, por ocasião das frotas, escrevia larga-mente aos amigos e conhecidos que deixara dooutro lado do oceano. Essas cartas nos revelam ao

mesmo passo as mágoas de seus desenganos, e seuperpétuo interesse por tudo, credor de atenção emPortugal e no mundo. Da política se não despediununca, e poucos dias antes de expirar ainda tratavadela nas cartas que, impossibilitado de escrever, iaditando.Em 1694, achando-se leso de uma queda grave,que por longo espaço alie não consentiu servir-se dapena, resolveu pôr termo ao trato epistolar em quese comprazia, e ditou a carta de despedida geral, de31 de Outubro, de que o padre Baltasar Duarte,procurador da província, distribuiu as cópias emLisboa. Mas o propósito cedeu ao influxo das me-lhoras, assim como ao insistir dos amigos que nãorenunciavam o deleite da correspondência; e nosanos seguintes reatou-a, se não com todas, comaquelas pessoas que mais lhe mereciam afecto egratidão.Assim continuou até à frota de 1697, pela qual,faltando-lhe quase de todo o ouvido e a vista,escreveu ainda. Os mesmos navios trouxeram àEuropa as cartas e a nova da sua morte.

CARTA CLXXX

Ao marquês de Gouveia

1682 - Maio 23

Sr. Marquês. – [...]Outras chegaram cá (para que dê conta de mima V.Ex.a como dantes), as quais me quiseram en-cobrir ao princípio, mas deram tamanho ecoque foi força chegarem-me aos ouvidos1. Nãomerecia António Vieira aos Portugueses, depoisde ter padecido tanto por amor da sua pátria earriscado tantas vezes a vida por ela, que lheantecipassem as cinzas e lhe fizessem tão honra-das exéquias.Fez-me, porém, Deus tanta mercê, que nemcom os primeiros movimentos senti um tão

1 Arruaça em Coimbra, onde um grupo de estudantes egente baixa simulou um auto-da-fé, queimando nela a figuraque diziam ser do Padre Vieira. [...]

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exorbitante agravo, o qual se me não havia defazer se os executores ou motores não estives-sem persuadidos que antes lisonjeavam queofendiam a quem não fez a demonstração quedevera.Quiseram muitos que a fizesse eu e que noprimeiro navio mandasse impedir a impressãodo livro que lá tinha chegado, e que não escre-vesse mais na língua de uma nação que assimme tratava, antes o fizesse na castelhana, italianaou outra estrangeira, em cuja piedade tinha maisseguro o crédito que na fúria dos meus naturais.Eu, contudo, tive por mais conforme à vida oumorte que professo não alterar nada do exercí-cio em que me tomou este caso, e assim conti-nuarei enquanto me não constar que V. Ex.a

aprova o contrário. [...]Baía, 23 de Maio de 1682.

António Vieira

CARTA CXCI

Ao marquês de Gouveia

1683 – Junho 24

Ex. mo Sr. – [...]Não julguei que o segundo sermão de SantoAntónio houvesse de ser mal recebido, caiandoaquelas sombras sobre as luzes do outro. Todosos autores das mais famosas nações do Mundo,escrevendo da sua, as notam da inveja, que porser vício primogénito da altiveza e da generosi-dade, entenderam que não desdouravam muitocom ele as mesmas nações. Assim o fizeramGregos e Romanos, e nos Espanhóis e Portu-gueses se lêem sem repreensão semelhantesexemplos. Quarenta e dois anos há que pregueiem S. Mamede este mesmo assunto e ninguémentão se queixou de mim; antes o aplaudiramtodos os queixosos, que pela maior parte são os

mais beneméritos. Canudo, sem fazer raso destanem de nenhuma outra razão, me sujeitei logoao parecer de V. Ex.a, e em lugar daquele sermãovai outro para suprir o número.O mesmo juízo faço do sermão que a V. Ex.a

pareceu menos mal que os outros daquele tomo,posto que não sei qual seja o que teve esta ven-tura. Por uma circunstância que me refere Fran-cisco Barreto, dizendo-me que V. Ex.a o mandaraler, entendo que é o sermão do Banquete; maseste, como ele aponha, é de uma dominga daQuaresma; e assim não posso atinar qual seja. Ocerto é que nenhum destes dois sermões eranaquele tomo o meu mimoso, nem agora meadmiro da diferença; porque deve supor V. Ex.a

que os meus ditames neste ermo são todoscomo os dos primeiros oito dias, quando saíados exercícios, em que V. Ex.a dizia que se nãopodia falar comigo.Na Universidade do México me dedicaramumas conclusões de toda a teologia, que eu re-meto e dedico a V. Ex.a; e, posto que da empresada Fénix, das palmas e das trombetas nenhumcaso faço, porque tudo é vento e fumo, nãoposso deixar de me magoar muito que no mesmotempo em uma Universidade de portugueses seafronte a minha estátua, e em outra Universida-de de castelhanos se estampe a minha imagem.Por certo que nem a uns nem a outros mereciaeu semelhantes correspondências. Mas assim ha-via de ser, para que quanto em uma parte sefaltou à justiça, tanto se excedesse na outra. E,para que não pareça que são isto influências daAmérica, quando na que é sujeita a Portugal mefazem as afrontas, de que V. Ex.a será informadopor outras vias.Deus guarde e nos conserve a V. Ex.a muitosanos, como o mesmo Portugal, qual é, e os cria-dos de V. Ex.a havemos mister.Baía, 24 de Junho de 1683. – Criado de V. Ex.a

António Vieira

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CARTA CCIII

Ao marquês de Gouveia

1684 – Agosto 5

Ex.mo Sr. – [...]Pelo impedimento da doença, que me levou osdois meses últimos, em que se havia de limpar oquinto tomo, que já estava quase acabado, nãovai nesta ocasião; mas, dando Deus vida, irá nanau do Rego, que se fica aprestando para irneste ano. Sobre a aprovação do quarto, em quevejo tão demasiadamente encarecida a pobrezado meu engenho, não sei que diga a V. Ex.a. Afrase com que no Brasil se declara que os enge-nhos não moem é dizer que pejaram; e eu ver-dadeiramente tenho pejo de que se diga nofrontispício do livro o que se não há-de acharnele. Já estava contente com que, tendo-se pas-sado o nosso arcebispo a este outro imundo, nãohaveria nesse quem tanto me envergonhasse;mas V. Ex.a, pelo excesso da mercê com quesempre me honrou, não achando sobre a terraquem o fizesse, o foi desencovar nas serras daArrábida. Se V. Ex.a julgar que o autor não mere-ce censura, senão graças, V. Ex.a lhas dê, pois a V.Ex.a quis adular e não louvar-me a mim. E quedirá o mundo, vendo-me tão aprovado na Mesado Paço, quando do Paço, de que ela se denomi-na, só mereço repreensões?Para encher o número do dito quarto tomo fal-tavam dois sermões, que agora vão. O primeiroé de S. Roque e tem por assunto: «A homens,nem servir nem mandar; a Deus, e só a Deus,servir.» Foi pregado na capela real, e parece queem profecia dos desenganos que agora experi-mento. O outro preguei também no mesmo lu-gar, quando cheguei com meus companheiros aLisboa, lançado das missões do Maranhão pordefender as leis do rei e os injustos cativeiros dosÍndios. Agora nos tornaram a lançar de lá pelasmesmas causas, que assim acontece quando falta

o castigo. Mas, se faltou o da Terra, não faltou odo Céu; porque todos os motores daquelessacrilégios morreram desastradamente» sem sa-cramentos. O Sr. Arcebispo, que hoje é de Braga,ouvindo este sermão, disse que entre os meusfora o menos mau. Devia de ser porque não fuieu o que preguei, senão o Evangelho, sem haverpalavra em todo ele que não desse vozes ao Céupela justiça e inocência daqueles miseráveis. […..]Baía, 5 de Agosto de 1684. [...]

António Vieira

CARTA CCXXX

Ao conde da Ericeira

1689 – Maio 23

Ex.mo Sr. – Como religioso, e também sem esterespeito, antes quero padecer com silêncio, quedefender-me com apologias; contudo, como nacarta que V. Ex.a me fez mercê escrever em 3 deAbril de 1678, entre as outras excelentes virtu-des que nela venero, com aquela que V. Ex.a

chama sinceridade me ordena V. Ex.a diga o deque poderia estar queixoso na História de Portu-gal Restaurado, respondendo com a mesma since-ridade, digo que não pude deixar de estranharna dita História, a fl. 633, as palavras seguintes:

E para que os negócios pudessem tomar melhor for-ma, depois de várias conferências que houve entre osmaiores ministros, mandou S. M. a França o padreAntónio Vieira, da Companhia de Jesus, sujeito emquem concorriam todas as partes necessárias para sercontado pelo maior pregador do seu tempo; porém,como o seu juízo era superior, e não igual, aos negó-cios, muitas vezes se lhe desvaneceram, por querertratá-los mais subtilmente do que os compreendiamos príncipes e ministros com quem comunicou mui-tos de grande importância.

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Primeiramente admirei nesta sentença não termatéria alguma sobre que caísse; porque, se pre-cedera a narração de algum negócio propostopor mim, que el-rei e os seus ministros nãopercebessem, ou quando menos se tivesse desva-necido (ainda que não bastava ser um para sedizer muitas vezes e para que a proposição fosseuniversal), deste caso se poderia tomar ocasiãopara se estender a muitos o que se afirma. Mas écerto que V. S.a nele foi informado por quemnão sabia, nem soube, nem podia saber o motivopor que el-rei me mandou naquela ocasião aFrança, e daí à Holanda.O fundamento e fim por que S. M. me mandoua estas duas cortes foi porque não estava satisfei-to dos avisos pouco coerentes que lhe faziam osdois embaixadores de França e Holanda, e quisque eu, em uma e outra parte, me informasse doestado de nossas cousas com toda a certeza, sin-ceridade e desengano, o que os embaixadoresnão faziam, querendo, com bom zelo, antesagradar que entristecer, que era a moeda queentão corria, tão falsa como perigosa. De ondetambém se convence que a minha jornada nãofoi tratada em conferência dos ministros, comoacima se diz, pois S. M. não comunicou o seuintento a outra pessoa mais que a mim; e, comonão lavei a meu cargo negócio algum mais que adita informação, a qual somente fiz com as cau-telas necessárias, e logo tornei para Portugal ainformar de boca a S. M.; sobre que desvaneci-mento dos meus negócios podia caber àquelaproposição universal, metida, como ali se vê, en-tre os três navios do Varejão mandados a França,e a partida do duque de Guisa para Nápoles?Suposto pois que nem deste lugar, nem de al-gum outro da mesma História, consta que eupropusesse negócio que se me desvanecesse, há--de-me dar licença V. Ex.a para que, discorrendopor eles, demonstre o contrário.O primeiro negócio que propus a S. M., (poucodepois da sua feliz aclamação e restauração, foi:

que em Portugal, à imitação de Holanda, selevantassem duas companhias mercantis, umaoriental, e outra ocidental, para que, sem empe-nho algum da real fazenda, por meio da primeirase conservasse o comércio da Índia, e por meioda segunda o do Brasil, trazendo ambas em suasarmadas, defendido dos Holandeses, o que elesnos tomavam, e bastaria a sustentar a guerracontra Castela. A isto se ajuntava que, como asnossas companhias fiem mais perto de uma eoutra conquista, seriam menores os gastos seus emaiores os lucros, os quais naturalmente chama-riam e trariam a Portugal o dinheiro mercantilde todas as nações, e muito particularmente dosPortugueses, que na Holanda estavam muito in-teressados nas companhias, e com Castela tinhamtodos os assentos. E, porque na dita proposta sedizia que o dinheiro aplicado às companhias dePortugal estivesse isento do fisco (porquanto deoutra maneira nem os mercadores estrangeirosnem os do mesmo reino, que o trazem divertidopor outras partes, o quereriam meter nas nossascompanhias sem a dita condição ou segurança),esta condição foi causa de que o Santo Ofícioproibisse o papel da proposta, posto que semnome, e que ela por então não fosse aceitada.Porém, depois que os apertos da guerra mostraramque não havia outro meio igualmente efectivo,não só foi abraçada com a mesma condição, se-não com outras muito mais largas, consultadas eaprovadas pelos letrados mais doutos do Reino.Assim que este negócio se não desvaneceu, esomente tardou em se aceitar, até que a experiên-cia desenganou aos ministros, que ao princípioporventura o não capacitaram. Quanto fosse autilidade e eficácia dele bem o mostrou a Com-panhia Ocidental, a qual foi trazendo sempre doBrasil o que bastou para sustentar a guerra deCastela, conservar o Reino, restaurar Pernambuco,e ainda hoje acudir com prontos e grandescabedais às ocorrências de maior importância.

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E, se juntamente se ajuntara e fizera a Compa-nhia Oriental, não chegara a Índia ao estado emque hoje a temos, tão desenganada porém dautilidade e necessidade deste mesmo meio, queagora em Portugas e na mesma Índia; se tratadele. E, para que se veja quão sólido e funda-mental é e foi sempre este meio, não deixarei dereferir aqui, o que me escreveu o padre João deMatos, assistente das províncias de Portugal emRoma. Chegou lá o dito papel, e diz ele quelendo-o os políticos romanos lhe disseram «Nósaté agora cuidávamos que Portugal se não podiaconservar; mas, pois ele tem homens que sabemexcogitar semelhantes arbítrios, não duvidamosda sua e conservação.» E este é o primeiro ne-gócio meu, ou proposto por mim, que V. Ex.a

julgará se merece o nome de desvanecido.O segundo negócio que pratiquei a S. M. foique mandasse passar as drogas da Índia ao Brasil,referindo como nele nasciam e se davam igual-mente, e el-rei D. Manuel as mandara arrancarsob pena de morte, para conservar a Índia, comocom efeito se arrancaram todas, ficando somenteo gengibre, do qual se disse discretamente que«escapara por se meter pela terra dentro», comoraiz que é. Consistia a utilidade deste meio emfique, tendo nós no Brasil as ditas drogas, e sen-do a condução delas tanto mais breve mais fácil,as podíamos (dar muito mais baratas que os Ho-landeses, com que os ficávamos destruindo naÍndia. Respondeu el-rei: «Que lhe parecia muitobem o arbítrio, e que o tivéssemos em segredoaté seu tempo, pelos embaraços com que depresente se achava.» [...]Baía, 23 de Maio de 1689. – Criado de V. Ex.a

António Vieira

Clavis prophetarum/Chave dos Profetas*

Capítulo I

Será lícito perscrutar os temposdas coisas futuras e estabelecer alguns

critérios a esse respeito?

[...] Como, pois, nos oráculos dos Profetas o anonão contém um ano, nem o dia um dia, nem osrestantes vocábulos e medidas do tempo contêmalgum significado certo e permanente, mas umacoisa é o que soam, outra o que significam, émanifesto que a partir daí nada podemos con-cluir ou estabelecer sem grave censura de teme-ridade e perigo certo de errar.Mas adiante. Concedamos generosamente queaquilo que aqui demonstrámos não pode ser.Pergunto então que utilidade ou que vantagemse conseguiria com esta longa fadiga, uma vezque toda a questão acerca dos tempos futuros eaté o próprio desejo de prosseguir nesse conhe-cimento é completamente inútil, vão e pueril?De igual modo se afadigavam os Tessalonicenses,aos quais Paulo responde na primeira epístola,cap. 1, dizendo: Irmãos, sobre os tempos e os mo-mentos não necessitais que vos escrevamos (1Tes. 5:1).Comentando estas palavras, S. Crisóstomo(Homilia 9) explica-as mais ou menos nestes ter-mos: “Como é evidente, nada há tão curioso eávido de conhecer coisas obscuras e recônditascomo a natureza humana. Isto costuma aconte-cer quando tem uma inteligência débil e aindanão desenvolvida. As crianças menos inteligentesnunca deixam de maçar as amas, os preceptorese os irmãos com as suas frequentes perguntasque se reduzem a ‘quando é isto, quando éaquilo?’. Apressa-se, por conseguinte, o nossoespírito a conhecer e a compreender já muitas

* Edição crítica. Livro III. Lisboa: BN, 2000.

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coisas, sobretudo a saber o tempo da consuma-ção. E que há de admirar se isto nos sucede?Pois os próprios santos fizeram isso mesmo maisque todos. Com efeito, os Apóstolos, aproximan-do-se de Cristo antes da paixão, pediram-lhe:Diz-nos quando serão estas coisas e qual é o sinal datua vinda e da consumação do mundo (Mat. 24:3).Todavia, depois da paixão e da ressurreição deentre os mortos, pediam-lhe: Diz-nos se é nestetempo que vais restaurar o reino de Israel (Act. 1:6).Mas depois não o voltariam a fazer. Na verdade,depois que mereceram receber o Espírito Santo,não só eles mesmos nada pedem levados pelacuriosidade, nem suportam penosamente aignorância, mas ainda reprimem aqueles quesofrem dessa curiosidade intempestiva. Ouçamoso que diz S. Paulo: Irmãos, não tendes necessidadede que eu vos escreva acerca dos tempos e dos momen-tos dos tempos (1Tes. 5:1). Dizer não tendes necessi-dade significa que não permite que procurem,como se a procura fosse coisa supérflua e atécerto ponto inútil. Assim diz Crisóstomo.De tudo isto se conclui claramente, pelo menosparece concluir-se, que a presente disputa e todaa matéria deste livro versa sobre uma coisa inú-til, vã e pueril; e, o que mais é de acautelar,contrária à doutrina de Cristo, dos Apóstolos edos Padres. Seria mais aconselhável auscultar oEclesiástico (cap. 3) que proclama bem alto: Nãobusques coisas mais altas do que tu, e não perscrutescoisas mais fortes do que tu: pois não te é necessáriover com os teus olhos aquilo que está escondido (Eccli.3:22). E de novo: Em coisas supervazias não multi-pliques as tuas indagações e em várias das suas obras(ou seja de Deus) não serás curioso (Eccli. 3:24).Nestas, com efeito, como bem notou Agostinho,mais é de culpar a presunção temerária do queuma cauta ignorância.

Capítulo II

Resolução da questão: afirma-see prova-se a parte afirmativa

[...] Digo em terceiro lugar que, quando o factoé na verdade revelado enquanto futuro, mas nãose diz absolutamente nada sobre o tempo, aindanesse caso é lícito e louvável indagar este mes-mo arcano de Deus e perscrutar o limite dotempo oculto. Seja-me permitido esclarecer empoucas palavras um passo da Primeira Epístola deS. Pedro, cap. 1. Referindo-se nesse passo à graçado Novo Testamento e à salvação das almastrazida ao mundo por Cristo, diz: Desta salvaçãoinquiriram e indagaram os Profetas que predisseram agraça que havia de vir a vós, procurando descobrir emque tempo ou em qual tempo o Espírito de Cristo, queestava neles, revelaria. Eis aqui Profetas que conhe-cem por iluminação divina o mistério da reden-ção e simultaneamente ignoram o período detempo destinado por Deus em que devia com-pletar-se, porque o mistério lhes tinha sido reve-lado, mas não o tempo. E todavia, nem por issomenos diligentes, esforçavam-se com todas asforças da mente por investigar a parte a elesnegada, procurando e perscrutando com o mai-or empenho e solicitude em que tempo ou em qualtempo o Espírito de Cristo, que estava neles, revelaria,isto é, como diz a glosa, em que ano, em quereinado e em que estado do universo haveria devir aquele que apenas sabiam que havia de virum dia, mas sem saberem quando. [...] Portanto,embora Deus tenha ocultado os tempos das suaspromessas por ele determinados e predefinidos,embora até saibamos que o próprio Deus não osquis revelar aos seus Profetas, nem mesmo assimnos é proibido investigá-lo. Daí que, depois de oanjo ter dito sela o livro até ao tempo determinado,acrescentou: muitíssimos passarão e múltipla será aciência. Deus diverte-se à maneira daqueles queprometem um prémio a quem adivinhar umenigma proposto, para que principalmente os

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sábios se exercitem, pia e louvavelmente, naperscrutação dos seus arcanos, o que nunca te-riam feito os Profetas que o Príncipe dos Após-tolos refere e elogia, se não fosse plenamente doseu conhecimento que isso era agradável a Deus.Resta o último nó que os adversários julgamabsolutamente impossível de desfazer, a propósitodo que digo finalmente o seguinte.Em quarto lugar: quando é revelado um factofuturo e não só se omite o tempo, mas aindaDeus proclama bem alto que não é possívelsabê-lo, ainda assim é lícito, acerca do mesmotempo, conjecturar, disputar e afirmar o queparece provável, não com precisão e definida-mente, mas indeterminadamente. Esta conclusãofoi colocada principalmente por causa do fim domundo ou dia do Juízo, que Deus quis que fossesecreto para os anjos e para os homens, segundoa palavra de Cristo (Marcos 13): Acerca daqueledia ou daquela hora ninguém sabe nada, nem mesmoos anjos no Céu. Este decreto de modo algumimpede que possamos opinar com probabilidadeacerca do fim da duração do mundo, não defi-nindo o dia ou a hora, nem o mês e o ano (oque igualmente parece estar no sentido do quedisse Cristo), mas um tempo entendido de for-ma mais lata e moral, apenas com um termoprefixado indeterminadamente. A razão disso émanifesta: aquele desconhecimento não colidecom este conhecimento. Com efeito, não dize-mos que o mesmo tempo pode saber-se e nãosaber-se do mesmo modo, mas sim que nãopode saber-se determinadamente, podendoporém saber-se indeterminadamente. Nem sedeve pensar que foi outra a intenção de Cristoquando disse terminantemente: acerca daquele diaou daquela hora. Foi por isso que, quando os dis-cípulos lhe pediram: Diz-nos quando serão estascoisas e qual será o sinal do teu advento e da consu-mação do mundo (Mat. 24:3), não só lhes deusinais mais remotos, e que ocorrem muito antes,de existirem ímpios e injuriosos contra esta afir-

mação de Cristo, mas também outros sinais detal modo próximos do juízo iminente que elespodiam dizer com certeza: está mesmo à porta(Mat. 24:33), acrescentando ainda o Senhor osímil da figueira cujos figos ainda verdes e cujasfolhas acabadas de nascer prenunciam a aproxi-mação do Verão (Cf. Luc. 21:30 e Mat. 13:28),com um intervalo ou demora de um ou doismeses, não mais. Por isso, Cristo não só conce-deu mas também quis que nós, preocupadoscom o fim do mundo, procuremos saber, pormeio da observação das Escrituras e da evoluçãodos acontecimentos, se está distante ou próximoe em que medida. [...]

§IExplicam-se as objecções contra

a doutrina estabelecida

À frase de Cristo com que se fez a primeiraobjecção: Não vos pertence saber os tempos ou osmomentos que o Pai reservou ao seu poder, respondoque, numa espécie de senso comum, ela se podeexplicar ou aplicar de duas formas. Em primeirolugar que significa não nos pertencer, isto é, nãopertencer à capacidade humana atingir e apre-ender por dentro os arcanos da sapiência e pro-vidência divinas, quais são os tempos e as opor-tunidades dos tempos a que os Gregos chamammomentos. Foi deste modo que Cirilo e Agosti-nho, já referidos, parece terem recebido e trans-mitido esses princípios; mas isto de modo algumera desconhecido dos discípulos de Cristo, e atéporque o sabiam perfeitamente, pediram aoMestre que lhes revelasse uma coisa oculta.Pode-se em segundo lugar entender no sentidode que não nos pertence, isto é, não nos convéma nós, enquanto vivemos entre os mortais,conhecer antecipadamente, antes que aconte-çam, os tempos das coisas futuras, os quais estãoguardados só na vontade e no poder de Deus, a

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saber, nos seus divinos decretos. Todavia, isso nãoé universalmente verdadeiro, visto que são donosso conhecimento muitas coisas reveladaspelos Profetas e pelo próprio Cristo com umaindicação exacta dos tempos, o que ele não fariase não fosse do nosso interesse. Deve-se, portanto,dizer que tais conhecimentos prévios de factos etempos ocultos são às vezes úteis aos homens,outras vezes não; mas, no caso presente, seria denenhuma utilidade, mais ainda, seria causa degrave perturbação e tristeza para os discípulos, seconhecessem com certeza e claramente o queDeus decidira sobre o reino de Israel, cuja res-tauração eles esperavam para breve. Com efeito,ou nunca deve ser restaurado o estado hebreu,ou muito tarde e no fim dos tempos, depois dafé universal de um só povo e da conversão aCristo; ambas as coisas, porém, ser-lhes-iam mo-tivo de consternação e tristeza, com que oSenhor na sua bondade não quis nem devia per-turbar os seus discípulos, sobretudo estando parapartir. Usou, por isso, da sua habitual [...].

Capítulo III

Da pregação universal do Evangelho prévia ao últimoestado da Igreja e à consumação do Reino de Cristo

§1Acaso é hoje o Evangelho pregado em todo

o orbe, ou alguma vez o foi?

Questão 1.ªNão seria difícil esta questão, e nem sequer seporia, se o Apóstolo Paulo, já no seu tempo, nãotivesse seguido e ensinado a opinião afirmativa.As suas palavras, na Epístola aos Romanos 1, 8, sãoas seguintes: A vossa fé é anunciada em todo omundo; e aos Colossenses 1, 5: pela palavra da verda-de do Evangelho, o qual chegou até vós, como a todo omundo, e frutifica e cresce, como entre vós. Assim seexprime uma e outra vez o grande Apóstolo,

grande não apenas em sabedoria e verdade, masainda, por eleição divina, encarregado entre osrestantes da missão de pregar o Evangelho aosgentios. Por isso, não parece sequer precisoconhecer testemunhos mais claros ou de maiorautoridade para admitir e defender a asserçãoacima enunciada. [...]São estas as viagens dos Apóstolos, de todos ecada um, no primeiro século depois de Cristo,século que apenas João, o mais longevo de entreeles, igualou com a duração da sua vida. Se,porém, a extensão de tantas viagens, por maisdiversa que seja e por mais longinquamente quese tenha dilatado, for comparada com todo oorbe da terra, imediatamente salta aos olhos, daanálise dos mapas, a quantidade de muitas outrase vastíssimas regiões, situadas além dos limitesdefinidos, que não foram tocadas pelos pés dosevangelizadores e que permaneceram inacessí-veis, as quais, abandonadas em absoluto silênciodo Evangelho, nunca puderam ouvir as palavrasdele, nem erguer-se das trevas em que jaziam.Quanto ao séc. III: em todo este intervalo decem anos, de tal modo foi estéril ou muda apregação do Evangelho a novos povos, que setorna difícil encontrar um exemplo ou umdocumento em favor da continuação da nossatese. Entretanto, a vaidade dos gentios alçou inú-meros troféus sobre a religião cristã, em toda aparte prostrada e abolida. [...]No começo do séc. IV, dentro da própria Roma,imperava de tal modo a ignorância da lei e dagraça do Evangelho que o imperador Constantino,esmagado pelo remorso dos seus gigantescos de-litos, e sobretudo desejando a expiação por seufilho Crispo, que fora morto estando inocente, aprocurou inutilmente entre as seitas pagãs, sendoele próprio ainda pagão; tendo o imperador sidoiluminado por ambos os Príncipes dos Apósto-los, e curado pelo Papa Silvestre da lepra exteriore interior com o baptismo, foi então aberta umalarguíssima e segura porta, em todo o mundo

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romano, para a pregação do Evangelho, não pelaimposição da obrigatoriedade de crer no Evan-gelho, mas pela concessão da possibilidade de opregar. Daí resultou que a pregação, ultrapassan-do as fronteiras do Império Romano, submeteua Cristo muitos outros povos, ainda não domi-nados; e a própria Roma, como elegantementediz o eloquentíssimo S. Leão, estendeu mais longeo seu ascendente com a religião divina, do quecom a dominação terrena, sendo muito menos oque o esforço bélico lhe acrescentou do queaquilo que a paz cristã lhe submeteu.Por essa mesma altura, a Escandinávia, durantemuito tempo desconhecida, fora dos cursos doano e do sol, mãe fecundíssima de fortíssimospovos, e fatal para toda a Europa, veio para a luz,como que saindo das trevas cimérias. Aos seushabitantes, uns chamam Godos, o nome maisconhecido, outros chamam Getas, de tal modosupersticiosamente bárbaros que, quando o céutroveja, pensando que o deus que adoram está acombater com os outros deuses, atiram comtodas as forças as suas setas para esse lado, e como arremesso destas armas, como que auxiliares,pensam que o estão a ajudar. O imperadorValente enviou-lhes mestres arianos para os ins-truir na fé, fazendo deles simultaneamente cris-tãos e hereges. Deus, gravemente ofendido, cas-tigou esta impiedade, pois o mesmo imperadorfoi depois vencido numa batalha e feito prisio-neiro por eles, já convertidos pela pregaçãoortodoxa; foi-lhe negada sepultura e ele consu-mido pelo fogo que atearam por baixo do cadá-ver, para cumprir a pena de tamanho crime.Ia já o séc. V adiantado, precisamente no ano de430, quando emigrou desta vida Santo Agosti-nho, grande luminar da Igreja, deixando-nos, nolivro das suas epístolas (Epistola 80), o testemu-nho de que o Evangelho não fora pregado emtodo o mundo. Segundo uma tradição persisten-te, esse livro e os restantes monumentos da suapena foram, por milagre, arrancados ao incêndio

de toda a cidade, e guardados pelos anjos, quandoHipona foi tomada e incendiada pelos Vândalos.As palavras do doutíssimo e santíssimo Padre daIgreja ao bispo Hesíquio são as seguintes: “Issoque vossa venerabilidade julga, eu provei, comdocumentos fidedignos, que tal não foi realizadodesse modo pelos próprios Apóstolos. Há entrenós, isto é, na África, inúmeros povos bárbaros,entre os quais podemos verificar, dia a dia, que oEvangelho ainda não foi pregado, a julgar poraqueles que de lá são trazidos como prisioneiros,e já se encontram ao serviço dos Romanos.” [...]No séc. VII, os Frisões e os Saxões, aos quaisnunca fora pregada a palavra de Deus, são con-vertidos à fé por novos apóstolos, mandados deRoma.No séc. VIII, a Igreja, dilatada de variadas formascom a conversão dos Búlgaros, dos Catos, dosBóios e de outros povos, cresceu admiravelmen-te, quando também toda a Arduana repudiou oculto dos ídolos.No séc. IX, os Russos, ou Rossulanos, povoscíticos que habitam junto de Arctoo do Tauro,ferozes e selvagens, submetem a cerviz ao suavejugo de Cristo. A ele se juntaram, pela mesmaaltura, os Morávios e os Rogianos.No séc. X, os Polónios, que antes eram conheci-dos por Sármatas, e os Hunos são iniciados nosmistérios cristãos, abrindo-se aos pregadores doEvangelho o difícil acesso à Vandália.No séc. XI, os Transilvanos vêm aos redis doSenhor, dentro dos quais são recebidos tambémos povos Bazinaces, que habitam além do Istro,desde o rio Borístenes até às planícies daPanónia.No séc. XII, o propósito que prosseguimos podeser confirmado, em expressão mais breve masmais eloquente, com uma nova prova, precisa-mente com a da dor sentida por S. Bernardo,que não se conformava por, na sua época, a pre-gação da fé não ser levada com assiduidade aosgentios, pois que, de certo modo, faltava mais

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Evangelho aos gentios do que gentios ao Evan-gelho. [...]No séc. XIII, muitos Sarracenos, mudando paramelhor o furtivo nome da sua origem, que derivado de Sara, foram adoptados da condição servilda escrava para a condição de filhos da mãe livre,em virtude da fé daquela descendência (querodizer, em virtude da fé de seu pai), na qual devi-am ser abençoadas todas as tribos da terra. Destemodo, vários povos Tártaros, gente nómada eerrante, conhecido o caminho da vida e da ver-dade, pediram espontaneamente o baptismo,para nesse caminho ingressarem com Gengiscão,seu rei.No séc. XIV, caíram as barreiras do marinavegável, e ninguém ignora quão numerososforam os povos da Guiné que, por obra dosmissionários portugueses, embranqueceram nosangue do Cordeiro, pelo banho da regeneração,a sua negritude congénita. Pouco depois, jun-tou-se e submeteu-se às chaves de Pedro o reinodo Congo, o mais nobre entre os africanos,como primícias dos restantes.No séc. XV, foi célebre aquele prodígio que,qual luzeiro enviado do Ocidente, iluminou osol do Oriente que nascia nas trevas. Esse foi S.Francisco Xavier, que não só iluminou e abra-sou, com os raios da sua pregação, toda a Índia etoda a Ásia Maior, como testemunham por todaa parte nessas terras os despojos sem contaarrancados ao paganismo, pendurados, emhomenagem a Cristo vitorioso, nos templos enos padrões por ele erigidos; mas também,como está expresso na bula da sua canonização,foi ele o primeiro que levou o Evangelho e a féa sete nações de povos diversos, cujo nome éconhecido, a saber: Japões, Paravás, Malaios, Ace-nos, Mindanaus, Jaios e Malaqueses. São, pois,sete os seus nomes, uma vez que dos outrospovos, segundo uma tradição constante, se igno-ram os nomes.

Do séc. XVI e deste nosso século, que direi eu?Por mim fale, através das suas múltiplas bocas,maiores que o Nilo, o Amazonas, como vulgar-mente lhe chamam, o maior de todos os rios, eque é também chamado, numa palavra luso-ín-dia; Grão-Pará, isto é, Grande Mar. No ano de1640, o Padre Cristóvão da Cunha, da Compa-nhia de Jesus, tendo-o percorrido, e não todo,no espaço de dez meses, sem obstáculos, rioabaixo ao sabor da corrente, viu e registou nassuas cartas, como testemunha ocular, que ambasas margens eram habitadas por um número detribos de diversos nomes e línguas não inferior acento e cinquenta, mais ou menos. São já algunsos que, pelos missionários da mesma Compa-nhia de Jesus, são instruídos na doutrina e naspráticas cristãs, nos dois pontos extremos do rio,por estarem, de um lado, próximos das colóniasdos Portugueses e, do outro, das dos Castelhanos;todavia, os que habitam as terras mais recônditasdo curso intermédio do rio (o qual, por causados longuíssimos meandros, muitas vezes passaora de um lado, ora do outro lado da linhaequinocial e se pensa ter cerca de duas milléguas de extensão), todos esses, mergulhados epresos nas trevas da cegueira e da ignorânciapagã, como que colocados fora do mundo, en-contram-se tão afastados do contacto humanoque, quando pela primeira vez viram os nossoscompatriotas portugueses a navegar ao longo dasmargens das suas aldeias, ficaram surpreendidose estupefactos com a cara deles, a cor, a barba, ovestuário e o resto. Alguns, como se vissem es-pectros ou fantasmas, fugiram e esconderam-senas florestas.É, pois, evidente que estes povos estiveram pri-vados absolutamente, até este século, de todos osmeios e ensinamentos com que pudessem hau-rir a luz do verdadeiro Deus, dado que nemnunca viram um pregador, nem nunca ouvirama palavra do Evangelho.

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Não falo daqueles rebanhos ou manadas de bár-baros (chamam-lhes Tapuias) que vagueiam, àmaneira de animais selvagens, pelos sertões eflorestas do interior da América, os quais nemsemeiam nem colhem, alimentando-se dos fru-tos espontâneos das árvores silvestres, sem deus,verdadeiro ou falso; nem estão cobertos por outropensamento ou prática das coisas celestes quenão seja o próprio céu, que têm por sua casa.Não falo das multidões de negros pertencentes aoutros rebanhos, ou seja, da imensa barbárie daÁfrica mediterrânea, que não vivem em gruposob a direcção de um sábio regime, como oselefantes, mas que, como leões e tigres, naturaisda mesma região, habitam nas grutas das monta-nhas e vivem do arco e da seta. Nem nas suasrefeições são dotados de hábitos mais civilizados,pois não se coíbem de comer carnes humanas, eaté cruas.Não falo da quinta parte do mesmo mundo, asaber, da Terra Austral e Desconhecida, situadaalém do estreito de Magalhães e das ilhas dosconfins do oceano Pacífico, hoje inacessíveis porcausa dos seus habitantes, grandes de mais para aestatura comum dos seres humanos, e que, ape-nas com o seu aspecto, repelem os restantes dassuas praias.Não falo, finalmente, das dez tribos de Israel, dasquais é muito estranho que nenhum comenta-dor da Escritura se lembre, no que se refere aesta questão. No entanto, três coisas são certas.Em primeiro lugar, que as mesmas tribos,vencida a Samaria por Salmanasar, foram na suatotalidade levadas para a Assíria (4 Reis, 1 8). Emsegundo lugar, que não desapareceram, mas queainda subsistem, embora se forem tidas na devi-da conta, como é justo, e forem comparadascom a pregação actual e nossa, como eu dizia.Nós, concebendo no nosso espírito a conversãodas terras e das gentes mais remotas, largamos daEuropa navegando, e, percorrendo longuíssimosmares, acossados pela violência das tempestades,

muitas, vezes somos forçados a regressar ao mes-mo porto. Deles, como se tivessem asas, diziaIsaías cheio de admiração (Isaías 60, 8): Quem sãoestes que voam como nuvens e como pombas para osseus pombais? Nós, lutando com as ondas, com osescolhos, com os tufões, com as nuvens trove-jando horrendamente, entre raios e coriscos, ecom toda a natureza quase em delírio: eles,caminhando a passo tranquilo sobre os abismosdo mar, ou iam lentamente, ou, se fosse necessá-rio, eram levados num só momento [...]. Nós,saindo da pátria em grande número, sofrendo anovidade e a intempérie de climas estranhos,não preparados para resistir, atingidos por doen-ças incuráveis, e mais que uma vez dando nomar sepultura aos companheiros, em pequenonúmero chegamos às praias almejadas: ao passoque eles, sãos e robustos, superiores ao cansaço, àdoença e à peste, nada tinham de adverso quelhes barrasse o caminho ou que lhes quebrasseou diminuísse as forças. [...]

§ XI[S. Paulo] cala a boca aos Judeus

Os judeus deviam aderir à opinião de S. Paulo,ao seu integríssimo juízo. Todavia, ele mesmonão esperou que o fizessem, mas sim que obstina-damente e, mais ainda, impiamente o recusassem,rejeitando e negando a interpretação do textode David do seguinte modo.David (podiam replicar) de forma alguma falade uma pregação terrena ou dos homens, massim dos Céus, como ele próprio diz: Os Céusproclamam a glória de Deus, e o firmamento anunciaas obras das suas mãos (Sal. 18:2). Logo, a ilaçãode Paulo, fundamental nessa interpretação, nadapode provar que não seja vão, distorcido e infini-tamente afastado da verdade. Se tal argumentaçãofosse feita por um cristão, seria indubitavelmenteherética e digna de não menos censura. A razão

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disso é que (como consta de todo o Novo eVelho Testamento) o sentido alegórico da Escri-tura, abonado por um autor canónico, adquireautoridade de fé. Como Paulo não ignorava que,entre os judeus, não gozava de tal veneração,mas sim de uma profunda aversão, como réu desacrilégio, sem esperar pela réplica, mas anteci-pando-se com prudente silêncio, pensou quecontra eles devia utilizar outras armas e fulminá--los com outras flechas da mesma Escritura, decuja força, por eles próprios admitida, nãopudessem desviar-se por nenhuma espécie detergiversação, nem escapar-se para outro refúgio.Respondendo ao argumento exposto mais atrás,o Apóstolo disse: Mas eu digo: Porventura não ouvi-ram? Agora, servindo-se do mesmo exórdio, diz:Porventura Israel não compreendeu? (Rom. 10:19).[...]

§ XVIIDa pregação muda pelas criaturas

Desta raiz surge ao mesmo tempo a questãoagora proposta, não tão fácil de explicar, a saber:como há-de e deve ser a pregação necessaria-mente requerida e suficiente, de tal modo quetorne réu de culpa inescusável quem ouvir oEvangelho e se recusar a crer?E em primeiro lugar, para sofrer e contrair aculpabilidade desta acusação, parecerá que demodo algum é necessário que conste aberta-mente uma voz da pregação, já que as obras deDeus, mesmo as mudas, pregam gloriosamente oseu autor. Se para elas voltarmos os nossos olhos,ainda que mudos, como ouvintes atentos (poisnão pronunciam discursos, nem palavras, nem fazemouvir a sua voz (Sal. 18:4)), esses pregadores mu-dos serão suficientes para vermos o Deus invisí-vel, oculto mas operante, na maravilhosa,belíssima e ordenadíssima máquina do mundo.Os atributos invisíveis de Deus, incluindo o seu poder

sempiterno e a sua divindade (diz o Apóstolo, Epís-tola aos Romanos 1), são entendidos e contemplados apartir da criação do mundo por meio das coisas queforam criadas (Rom. 1:20). É como se dissesse:Que são as obras de Deus desde o princípio domundo e todas as coisas por ele criadas? Sãoefeitos infinitamente maiores que toda a causacriada e finita; são espelho onde se reflectemcom nitidez a sua sabedoria e potestade; são telaem que o divino Apeles representou em corespróprias a verdadeira imagem de si mesmo; sãolivro que, mudo, fala, e que se ouve e não cessade proclamar o seu Artífice: Deus é invisível,invisível a sua essência, invisíveis os seus atribu-tos, invisível o seu agir e o modo de agir; e, noentanto, tudo isto, que em Deus e acerca deDeus não pode ser visto, é visto e apreendidomanifestamente como que pelos próprios olhos,como se estivesse escrito num livro, pintadonum quadro, reflectido no imenso espelho que étodo o universo. [...]

Capítulo IX

Em que tempo simultaneamente ou em que temposseparadamente se deve realizar a conversão

universal de todo o mundo à fé?

§ VI

Porventura todo o mundo há-de um diaser cristão própria e verdadeiramente?

Com este exemplo, fundamentado no sentidopróprio do texto e recebido dos Setenta e deoutros especialistas da língua hebraica, nada demaior e de mais manifesto pôde ser dito para aprova inegável, como dissemos, da opinião, paranão dizer da evidência, relativamente ao conhe-cimento de Deus que há-de dar-se nesse tempo.Nesse tempo, repito para o advertirmos pela se-gunda vez, tal como muitas vezes se deve adver-

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tir e notar que nem tudo o que é dito acerca daIgreja deve ser entendido em relação a todo oseu tempo, duração e estado, mas em relação aum estado mais sublime que um dia há-de ser,como há-de ser aquele estado relacionado como Reino de Cristo consumado na terra.Mas, para vermos a que ponto é ajustado e con-corde com os outros passos das Escrituras estedilúvio do conhecimento de Deus assinaladopor Isaías, ouçamos, muito antes dele, a eloquên-cia de David (Salmo 28, 10), que se serve damesma comparação: O Senhor faz habitar o dilú-vio, o Senhor sentar-se-á como rei para sempre; masqual e quanto há-de ser este dilúvio na Igreja,fácil e claramente o saberemos em dois Douto-res da mesma Igreja, Jerónimo e Ambrósio.Lorino alega-os e apresenta-os assim no comen-tário ao mesmo salmo: “Jerónimo insinua quehá-de ser tanta a multidão e tanto o afluxo dosfiéis, proveniente de ambos os Testamentos, quese poderão comparar ao dilúvio, para o qualdilúvio Deus se incline como que para um riode paz e para uma torrente que inunda a glóriados povos”. Ambrósio, porém, não insinuandoou fazendo conjecturas sobre o futuro, masfalando como que de uma coisa presente e feita,diz: “Consideremos toda a terra; olhemos para asnações bárbaras; percorramos mentalmente oimpério romano: por toda a parte se crê emCristo, por toda a parte são baptizados os quecrêem no nosso Deus; e assim sucede que nãohá apenas uma água de baptismos, mas umaespécie de dilúvio.”Assim diz ele. Aqui de modo algum se devepassar em silêncio tanto a diferença de ambos osdilúvios como o conhecimento prévio dosegundo, o futuro. Com efeito, no primeiro di-lúvio, o de Noé, fez o Senhor um dilúvio quedevastou e extinguiu toda a terra; enquanto nosegundo, o verdadeiramente seu, fará um dilúviocom que Deus habitará o mesmo mundo oufará habitar. Ou seja, um foi o dilúvio dos mor-

tos, outro será o dos que vivem na graça dobaptismo.Se, pois, todo o mundo há-de ser baptizado pormeio deste dilúvio, sem dúvida todo o mundoserá cristão, e então seguir-se-á aquilo que aprofecia de David narra com grande júbilo: E oSenhor sentar-se-á como rei para sempre, a saber,quando Cristo, pela fé e obediência de todos ospovos, reinar finalmente em todo o mundo.Baste, por enquanto, o que foi dito para refutar aopinião de Maldonado e de Cornélio, a qualopinião de novo voltará a nós, posteriormente,para ser provada em sentido mais maravilhoso emais sublime no próprio Reino de Cristo jáconsumado.

Fim do livro terceiro

História do FuturoEsperanças de Portugal

e Quinto Império do Mundo

Livro Anteprimeiro*

Capítulo III

Terceira parte, do título, e divisãode toda a história

O que encerra a terceira parte do título destahistória só se pode declarar inteiramente com odiscurso de toda ela, porque toda se emprega emprovar a esperança de um novo império, ao qual,pelas razões que se verão a seu tempo, chama-mos Quinto. Entretanto, para que a matéria deuma vez se compreenda e saiba o leitor emsuma o que lhe prometemos, porei brevementeaqui sua divisão. Divide-se a Hislória do Futuro

* Edição de José van den Besselaar. Lisboa: BN, 1983.

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em sete partes ou livros: no primeiro se mostraque há-de haver no mundo um novo Império;no segundo, que Império há-de ser; no terceiro,suas grandezas e felicidades; no quarto, os meiospor que se há-de introduzir; no quinto, em queterra; no sexto, em que tempo; no sétimo, emque pessoa. Estas sete cousas são as que há-deexaminar, resolver, e provar a nova história, queoferecemos do Quinto Império do mundo. [...]

Capítulo IX

Verdade desta história: declara-se o modocom que se podem conhecer os futuros

A primeira qualidade da história (quando nãoseja a sua essência) é a verdade; e porque estaparecerá muito dificultosa e, porventura, impossí-vel na História do Futuro será razão que, antesque vamos por diante, sosseguemos o escrúpuloou receio (quando não seja o risco e o desprezo)dos que assim a podem imaginar. E pois pedi-mos aos leitores o assenso da fé, justo é que lhemostremos primeiro os motivos da credibilidade,não duvidando da pia afeição de todos, pois amatéria é tanto para querer e tão sua.Confesso que entramos em um caos profun-díssimo e escuríssimo, de que se pode dizer comtoda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi. Masneste mesmo abismo de trevas, se o Espírito doSenhor (como esperamos) nos não faltar comsua assistência, como ali não faltou [...] diráDeus o que só ele pode dizer, e far-se-á o quesó ele pode fazer. Fiat lux, et facta est lux. [...]

Capítulo X

Resposta a uma objecção: mostra-se que o melhorcomentador das profecias é o tempo

[...] Os futuros, quanto mais tempo vai corren-do, tanto mais se vão eles chegando para nós, enós para eles; e como há tantos centos de anosque estão escritas essas profecias, também há ou-tros tantos centos de anos que os futuros se vãochegando para elas, e elas para os futuros, e porisso nós nos atrevemos a fazer hoje o que osAntigos não fizeram, ainda que tivessem acesa amesma candeia; porque a candeia de mais pertoalumeia melhor. Para ver com uma candeia nãobasta só que a candeia esteja acesa, é necessáriotambém que a distância seja proporcionada: utluceat omnibus qui in domo sunt, disse Cristo. Comuma candeia pode-se ver o que há em uma casa,mas não se pode ver o que há em uma cidade.O grande precursor de Cristo era lucerna lucens etardens, e ainda que todos os outros profetasanunciaram a Cristo, o Baptista mostrou-omelhor, porque era candeia de mais perto. Osoutros diziam: “Há-de vir”; e ele disse: “Este é.”As visões e revelações de Deus vêem-se melhorao perto que ao longe. De longe viu Moisés avisão da sarça, e que disse? [...]“Irei e verei esta grande visão.” Estava vendo avisão e disse que a iria ver, porque vai muitadiferença de ver as visões de Deus ao longe, ouvê-las ao perto. Ao longe via só Moisés a sarça eo fogo; ao perto entendeu o que aquelas figurassignificavam. A mesma luz e a mesma candeia aolonge vê-se, ao perto alumeia.Esta é a diferença que não nós, senão os nossostempos fazem aos antigos: nos antigos reconhe-cemos a vantagem da sabedoria nos nossos afortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dosfuturos com igual luz (ainda que não seja comigual vista), porque os não veremos melhor?Assim a confessou Santo Agostinho, o qual,achando-se às escuras em muitos lugares das

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profecias, reservou a verdadeira inteligência delaspara os vindouros.Um pigmeu sobre um gigante pode ver maisque ele. Pigmeus nos reconhecemos em compa-ração daqueles gigantes que olharam antes denós para as mesmas Escrituras. Eles sem nósviram muito mais do que nós pudéramos versem eles, mas nós. como viemos depois deles esobre eles pelo benefício do tempo, vemos hojeo que eles viram e um pouco mais. O últimodegrau da escada não é maior que os outros,antes pode ser menor; mas basta ser o último eestar em cima dos demais, para que dele se possaalcançar o que dos outros se não alcançava. En-tre toda a multidão dos que acompanhavam erodeavam a Cristo, o mais pequeno de todos eraZaqueu que, por si mesmo e com os pés nochão, não podia alcançar e ver o que os outrosviam; mas subido em cima de uma árvore, viumelhor e mais claramente que todos. Mui bemmedimos a nossa estatura, e conhecemos quãopequena, quão desigual e quão inferior é com-parada com aqueles cedros-do-líbano e comaquelas torres altíssimas que tanto ornato, gran-deza e majestade acrescentaram ao edifício daIgreja, mas subidos, por merecimentos seus efortuna do tempo, a tanta altura, não é muitoque alcancemos e descubramos um pouco maisdo que eles descobriram e alcançaram. [...]Quantas vezes os que trabalham no descobri-mento de algum tesouro cavam por muitos dias,meses e anos, sem acharem o que buscam; edepois de estes cansados e desesperados, sucedevir um mais venturoso, que, descendo sem tra-balho ao profundo da mesma cova e cavandoalguma cousa de novo, descobre a poucasenxadadas o tesouro, e logra o fruto dos traba-lhos e suores dos primeiros! Assim acontece notesouro das profecias: cavaram uns, e cavaramoutros, e cansaram-se todos; e no cabo descobreo tesouro, quase sem trabalho, aquele últimopara quem estava guardada tamanha ventura, a

qual sempre é do último. Eis aqui como podeacontecer que descubram o tesouro os quecavam menos. Saepe abjectus quispiam et vilisinvenit, quod magnus et sapiens vir praeterit, disseverdadeira e judiciosamente São João Crisóstomo.O último dos apóstolos foi São Paulo e, confes-sando-se por mínimo de todos, afirma ter rece-bido a graça de descobrir aos mesmos anjos noCéu os tesouros que lhes estavam escondidos:Mihi omnius sanctorum minimo (diz ele, na Epístolaaos Efésios) data est gratia haec, in gentibusevangelizare investigabiles divitias Christi etilluminare omnes, quae sit dispensatio sacramentiabsconditi a saeculis in Deo, qui omnia creavit; utinnotescat principatibus et potestatibus in caelestibusper Ecclesiam multiformis sapientia Dei secundumpraefinitionem saeculorum. Nas quais palavras sedevem ponderar muito quatro cousas: que é oque se descobriu; quem o descobriu; a quem sedescobriu; e quando se descobriu.O que se descobriu é um grande segredoescondido a todos os séculos passados porquecostuma Deus ter algumas cousas encobertas eescondidas por muitos séculos conforme aordem e disposição de sua Providência. Quem odescobriu foi o último de todos os apóstolos ediscípulos de Cristo, que já o não alcançou, nemviu nem ouviu neste mundo, como os demais, ese confessa por mínimo de todos: mihi omniumsanctorum minimo; porque bem pode o último emínimo alcançar e descobrir os segredos que osmaiores e primeiros não alcançaram. [...]

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