de profecia e inquisição - padre antônio vieira-

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Conselho E ditorialEdies Eletrnicas

De Profecia e Inquisio

Padre Antnio Vieira

Biblioteca Bsica

Classicos da Poltica

Brasil 500 anos

Memria Brasileira

O Brasil Visto por Estrangeiros

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SUMRIO

Nota editorialp. IX

Vieira e o Reino deste Mundo, por Alfredo Bosi -- p. XI

Prefcio

Defesa do livro intitulado QUINTO IMPRIO, que a apologia do livro CLAVIS PROPHETARUM, e respostas das proposies censuradas pelos senhores inquisidores: dadas pelo Padre Antnio Vieira, estando recluso nos crceres do Santo Ofcio de Coimbra -- p. 3

DE PROFECIA I

Esperanas de Portugal, Quinto Imprio do Mundo, primeira e segunda vida de El-Rei D. Joo o quarto. Escritas por GONSALIANES BANDARRA, e comentadas pelo Padre Antnio Vieira da Companhia de Jesus, e remetidas pelo dito ao Bispo do Japo, o Padre Andr Fernandes -- p. 63

II

Discurso em que se prova a vinda do Senhor Rei D. Sebastio -- p. 111

III

Reflexes sobre o papel intitulado Notcias Recnditas do modo de proceder do Santo Ofcio com os seus presos: pelo Padre Antnio Vieira -- p. 173

IV

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Petio do Padre Antnio Vieira ao Tribunal do Santo Ofcio de Coimbra -- p. 209

DE INQUISIO V

Sentena que no Tribunal do Santo Ofcio de Coimbra se leu ao Padre Antnio Vieira em 23 de dezembro de 1667 -- p. 231

VI

Breve de Iseno das Inquisies de Portugal e mais Reinos, que alcanou em Roma a seu favor o Padre Antnio Vieira pelo Papa Clemente X -- p. 273

VII

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Nota Editorial

Este livro, que leva o ttulo De Profecia e Inquisio, rene textos de autoria do Padre Antnio Vieira e referentes ao processo que o Santo Ofcio promoveu contra o grande missionrio e pregador. Esta edio tem por base o livro editado em 1856 por Editores, J.M.C. Seabra & T.Q. Antunes, de Lisboa, lanado em trs tomos, com o ttulo Obras Inditas do Padre Antnio Vieira. Os trs tomos, que somaram cerca de 650 pginas, trazem na Advertncia a afirmao: "os preciosos e rarssimos manuscritos... no presente volume saem pela primeira vez luz". So 28 textos independentes, alguns mantendo relao entre si, como os que tratam de "gente de nao", os dos indgenas, os da Inquisio, os do debate das profecias e "esperanas" de Portugal no sebastianismo, cartas, epigramas e mesmo sonetos. Deles esta edio apresenta a "Defesa do Livro intitulado Quinto Imprio, que a apologia do livro Clavis Prophetarum etc."; a "Petio do Padre Antnio Vieira ao Tribunal do Santo Ofcio de Coimbra"; as "Esperanas de Portugal, Quinto Imprio do Mundo, primeira e segunda vinda de El-Rei D. Joo o quarto"; a "Sentena que no Tribunal do Santo Ofcio de Coimbra se leu ao Padre Antnio Vieira"; o "Breve de Iseno das Inquisies de Portugal e mais Reinos que em Roma alcanou a seu favor o Padre Antnio Vieira, pelo Papa Clemente X"; as "Reflexes sobre o papel intitulado Notciassumrio prxima anterior sair

Recnditas do modo de proceder do Santo Ofcio com os seus presos"; e o "Discurso em que se prova a vinda do senhor Rei D. Sebastio". Como no podia deixar de ser, procurou-se acrescentar a esta edio, alusiva e inserida no mbito do terceiro centenrio da morte de Vieira, que ocorre neste ano da graa de 1998, um documento crtico altura da obra, razo por que cometeu-se ao Professor Alfredo Bosi a anlise destes textos to curiosos de e sobre o Padre Antnio Vieira.

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XII PADRE ANTNIO VIEIRA

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Prefcio

VIEIRA E O REINO DESTE MUNDO Alfredo Bosi Embora eu j conhecesse a edio exemplar que Hernani Cidade fez da defesa de Vieira perante o Santo Ofcio, no pude deixar de me comover quando tive em mos o processo original que se encontra na Torre do Tombo1. So quase novecentas folhas de pergaminho, malcosturadas com fio grosso. A letra do ru fina e se mantm clara at uma certa altura, depois comea a empastar-se. Entrevemos o rosto do acusado ardendo em febres da malria que contrara nas misses do Amazonas. Ouvimos a tosse do tsico j cortada nos ltimos meses de crcere por violentas hemoptises. Muitas das folhas j esto coladas, e o manuscrito parece s vezes uma s mancha informe. Mas o esprito, que sopra onde quer, no se abate nem desfalece em momento algum. Vieira insiste em provar o tempo todo aos seus inquisidores a verdade e a ortodoxia da sua leitura das trovas profticas do sapateiro Bandarra: versos messinicos escritos havia mais de um sculo em uma vila da Beira chamada Trancoso. O processo durou de 1663 a 1667. Para defender-se Vieira redige duas longas representaes. O Tribunal no se convence e o submete a exames(1) Pe. Antnio Vieira, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofcio. Introduo e notas do Prof. Hernani Cidade. Tomos I e II. Salvador, Livraria Progresso Ed., 1957.

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De Profecia e Inquisio XIII

pontuais cada vez mais apertados, aos quais o ru responde esgrimindo a sua retrica temerria que se engenha em tornar crvel o impossvel, provvel o apenas possvel, e absolutamente certo o apenas provvel. Mas no fundo dessa arte ingenuamente sutil pulsava um desejo que belo e nobre ainda e sempre: o sonho de um reino de justia que se realizaria c na Terra, neste nosso mundo, e no to-somente no outro. Pelos autos v-se o quanto essa utopia do ru suscitou as iras dos seus juzes. O fato que Vieira atrara contra si um concurso de motivaes ameaadoras. O anti-semitismo da Inquisio, de velas enfunadas nos Seiscentos, vislumbrou, com a perspiccia feroz dos perseguidores, traos judaizantes naquelas elucubraes profticas. Era, alis, notria a posio do nosso jesuta em favor dos "homens de nao" desde quando interviera junto ao rei pedindo-lhe que fossem bem acolhidos em Portugal os judeus dispersos pela Europa. Deles poderiam vir recursos para financiar a Companhia das ndias Ocidentais projetada pelo mesmo Vieira. Esse o teor da sua "proposta feita a El-Rei D. Joo IV, em que se lhe representavam o miservel estado do reino e as necessidades que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa". Havia ainda outros motivos que explicariam a animosidade do Santo Ofcio: a antipatia que os dominicanos nutriam pela Companhia de Jesus e, last but not least, a vaidade literria de um de seus pregadores, Frei Domingos de Santo Toms, ferida pelas setas do nosso orador, que traara a sua caricatura no Sermo da Sexagsima. Voltemos aos autos. Vieira exalta as trovas do Bandarra, erguendo-se altura das profecias de Isaas e Daniel e dos versos dos Salmos e dos Cantares. No contente com essa mostra de credulidade, interpreta a figura do Encoberto como aluso a D. Joo IV. Sucede que este rei, seu protetor, morrera em 1656. Vieira no hesitara ento em escrever rainha viva uma carta anunciando a prxima ressurreio de D. Joo IV, o qual venceria os maometanos e instauraria o Quinto Imprio, enfim, o reino de paz profetizado nas Escrituras. Vieira operara uma substituio ttica, pois o Encoberto era para os primeiros crentes do Bandarra ningum menos que D. Sebastio, o jovem rei que desaparecera nos areais de Alccer-Quibir. A este sim, o povo, desconsoladosumrio prxima anterior sair

XIV PADRE ANTNIO VIEIRA

com o desastre nacional, atribua poderes messinicos, esperanas tenazes que, passados trs sculos, o nosso Euclides da Cunha ainda ouviria da boca dos sertanejos reunidos em Canudos em torno do Conselheiro. O leitor culto dos nossos dias talvez pasme ao perceber o candor com que um homem da estatura de Vieira dissertava sobre a ressurreio prxima de um rei morto havia pouco. No entanto, esse homem o mesmo a quem Cristina da Sucia, discpula de Descartes, escolheria para diretor espiritual nos seus anos romanos. E mais se espantar quando ler, na Defesa, a justificao do ru, que declara ter feito uma diligncia (diramos hoje uma pesquisa), a qual "sem ser to esquisita como eu quisera, nem estar acabada, j tinha descoberto, nesses 120 ltimos anos, 95 mortos ressuscitados; pois assim como ressuscitaram 95, que muito seria que fossem 96?" O monarca redivivo fundaria o Quinto Imprio que duraria mil anos, at que sobreviesse o dia do Juzo. Aqui confluem o trao mais arcaico e o mais atual do milenarismo. Vieira imagina um tempo que nunca existiu a no ser nas dobras de um desejo coletivo de felicidade. Eram saudades do futuro as que ditavam as suas esperanas. Os inquisidores exigiram que ele falasse do reino somente em termos metafricos. Vieira sustentou quanto pde o sentido literal: o reino se erguer na terra dos homens. Ao cabo de dois anos, abalado pela informao de que o papa condenara as suas proposies, retratou-se. Mesmo assim, foi proibido de pregar em Portugal. Saiu da ptria, foi viver em Roma, onde Clemente X lhe concedeu honrarias e um salvo-conduto, o Breve, que o livraria de novas arremetidas da Inquisio lusitana. No fim da vida, j octogenrio, no refgio baiano da Quinta do Tanque, Vieira continuou a escrever, contra tudo e contra todos, a Clavis Prophetarum.

O que a profecia Esta apenas uma primeira leitura do que se pode considerar o ncleo do processo: as profecias do Bandarra foram acolhidas por Vieira segundo uma perspectiva messinica, mas j no sebastianista em senso estrito, porque adaptada espera da ressurreio de D. Joo IV, o Restaurador.sumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio XV

Convm fazer algumas reflexes tentando verticalizar a simples constatao do fato. Qual o fundamento da leitura proftica de Vieira? Como hiptese de trabalho, diria que o pressuposto de toda viso proftica a crena de que o processo histrico no se faz por um mero agregado de eventos casuais. No horizonte de profeta, a Histria seria dotada de um telos, uma direo, um sentido final, que, por sua vez, tende a ser totalizante. Verifica-se no discurso proftico uma combinao singular de contingncias aparentes e finalismo sistemtico. O termo "contingncia" no de fcil entendimento. Para a tradio escolstica, familiar a Vieira, contingente um termo que se situaria em posio mdia na escala que vai do meramente possvel (mnimo de determinao) ao necessrio (mximo de determinao). A contingncia o evento que, dentro do vasto campo dos possveis, pode acontecer se alguma causa o tornar necessrio. Haveria, pois, certo grau de determinao condicional na contingncia (poder...se), que a distinguiria do acaso e da indeterminao prpria da esfera dos meros possveis. A contingncia seria uma situao possvel que, em relao a certas condies, se efetuaria, tornando-se ento relativamente necessria. Convenhamos: descemos ao subsolo das sutilezas escolsticas. Vieira sentia-se vontade nesses desvos... Mais simples e mais drstica a verso que do mesmo conceito nos d o filsofo da Necessidade. Segundo Espinosa, existe uma e nica Ordem Necessria, que preside ao cosmos e vida humana. Tudo o que aconteceu, acontece e vier a acontecer obedece a uma lei inflexvel. Nesse universo geomtrico, o fato de algum imaginar que um evento poder acontecer ou no (o que o conceito tomista de contingncia) resulta de uma iluso e deve-se aos limites do nosso conhecimento. Na tica (I, 33, scol. 1), est explcita a relao entre a crena em eventos contingentes e a insuficincia da mente. S em Deus -- outro nome da Ordem Natural -- tudo est eternamente presente e conhecido; e onde tudo necessrio no h lugar para casuais intervenes de Deus na Histria. A profecia se reduziria ento a um conhecimento racional alcanado por um intelecto mais lcido do que o do comum dos homens. Vieira, nos marcos de um pensamento providencialista, cr tambm que s Deus onisciente, mas que, mediante sucessivas revelaes, Ele pode tirarsumrio prxima anterior sair

XVI PADRE ANTNIO VIEIRA

os homens da ignorncia no que toca aos futuros contingentes, para que o homem "no atribua a causas naturais (e muito menos ao acaso) os efeitos que vm sentenciados como castigos por sua justia e ordenados para mais altos e ocultos fins por sua Providncia" 2. Os profetas seriam os porta-vozes por excelncia desses desgnios divinos que, em parte, j se realizaram na Histria da Salvao, em parte ainda vo realizar-se. Se o evento profetizado como, por exemplo, a queda de um imprio, fosse universalmente previsvel e tido por natural e necessrio (do mesmo modo que todos sabem que fatal a seqncia dia-noite), ele no precisaria ser objeto de revelao: j estaria inscrito na expectativa do comum dos mortais. Mas, na medida em que o evento profetizado s pode ser previsto mediante o anncio que Deus faz a alguns homens excepcionais, a sua necessidade no aparece como evidente a todos: a crena na sua realizao exige f na palavra do profeta. Da vem o desencontro e at mesmo o conflito entre o profeta e os seus ouvintes incrdulos para os quais s se pode prever com certeza o que j est "naturalmente" predeterminado. Quanto aos crentes, e s para estes, a profecia deixa de ser predio de um evento contingente, e passa a ser fatum, necessidade, pois foi proferida por um eleito de Deus. Nab, em hebraico; prophets, em grego: aquele que fala em lugar de Deus. Em suma, crer na profecia, antes da sua realizao, sempre um ato de f. Vieira est ciente dessa condio subjetiva da crena, e procura confortla com as lies da Histria, seguindo o preceito agostiniano de que o novo est latente no antigo, e o antigo se patenteia no novo. Quod in Vetere Testamento latet, in Novo patet (De spiritu et littera, 7). A vigncia de uma relao estreita dos sucessos atuais com a profecia antiga afirmada e reiterada pelos evangelistas que a enunciam por meio da frmula "estas coisas se fizeram para que se cumprissem as Escrituras" ou de suas variantes. As Trovas do Bandarra estariam confirmadas pelos sucessos da Restaurao portuguesa e pelas aes patriticas de D. Joo IV: provas de que a(2) Livro Anteprimeiro da Histria do Futuro, Lisboa, Bibl. Nacional, p. 40.

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De Profecia e Inquisio XVII

histria acontecida perfez as palavras do sapateiro de Trancoso escritas havia mais de um sculo. Quanto viso de eventos futuros, Vieira recorre a profecias bblicas, interpretando-as em consonncia com as alegorias das Trovas. As profecias ainda no realizadas, como a vitria definitiva sobre os maometanos, a converso dos judeus e a instaurao do Quinto Imprio, deveriam ainda necessariamente cumprir-se. Mas para tanto D. Joo IV haveria de ressuscitar, pois fora a este mesmo rei que o Bandarra atribura misses universais. Da matria da profecia, os futuros contingentes, passemos ao seu sujeito e natureza. Quanto ao sujeito que profetiza, mostra Vieira que s merece confiana e digno de receber o nome de verdadeiro profeta aquele cujas predies de fato se realizaram. (Lembro de passagem que a previso correta , para alguns crticos modernos da cincia, o banco de prova de qualquer teoria...) O dom proftico no dependeria de nenhuma das virtudes especficas da santidade crist. Foram profetas tanto magos do Egito e sibilas da antiga Grcia quanto judeus e, entre os cristos, homens notoriamente pecadores, que viveram dentro ou fora da Igreja: "S o efeito das cousas profetizadas tem forosa e necessria conexo com o esprito e verdade da profecia" (Representao I, 38). Logo, o Bandarra foi verdadeiro profeta. Enfim, a essncia do discurso proftico de ordem originariamente religiosa. O profeta se cr inspirado por uma fora sobrenatural que o transcende e de que ele mensageiro. Revelao divina e esprito proftico so expresses que definem o ser da profecia e marcam tanto o sujeito que a profere quanto a sua matria. Ambas se encontram acopladas no texto da defesa de Vieira (Representao I, 29). Essa pertena do profetismo linguagem religiosa no impede que a sua aplicao ordem secular, ao mundo, ganhe uma dimenso poltica; ao contrrio, o profeta trata de poderes que sero abatidos e de poderes que sero levantados. O que explica as reaes violentas com que as instituies dominantes rejeitaram tantas vezes a sua palavra: Isaas escarnecido pelas ruas dasumrio prxima anterior sair

XVIII PADRE ANTNIO VIEIRA

cidade, Jeremias apedrejado at a morte, o Bandarra sujeito ao tribunal do Santo Ofcio...

Figura e profecia "Figure porte absence et prsence, plaisir et dplaisir." "La figure a t faite sur la vrit, et la vrit a t reconnue sur la figure." (Pascal, Penses). Vieira aproxima figura e prognstico. O dicionrio de Morais, que compendia o uso da lngua portuguesa dos autores clssicos, registra como uma das acepes do termo figura precisamente esta: "imagem significativa de cousas futuras". Figura toma-se aqui na acepo ampla de imagem portadora de smbolos. A retrica ensina que figura toda expresso cujo significante remete a outro significado que no o convencional, dito literal. Metforas e alegorias so linguagem figurada na medida em que o seu fundamento a translao analgica de um significado a outro. preciso atentar para esse movimento semntico. A figura articula duas dimenses complementares. H uma dimenso icnica que pode ser projetada e construda no espao: a esttua de ps de barro do Livro de Daniel uma imagem que aparece no sonho de Nabucodonosor e pode ser descrita plasticamente. Mas esse carter espacial no inerte nem esgota o campo de significaes da figura. Nele pulsa outra e mais profunda dimenso: quando a imagem do sonho verbalizada e exige decifrao, a figura se d ao intrprete como viveiro de smbolos, ncleo fecundo de potencialidades que se desdobram e entram na corrente do tempo histrico. Aquela figura-cone inicial revelou-se, por fora da sua dinmica interna, uma figura narrativa. Dizia Vico, na Cincia Nova, a propsito da metfora, que esta era na origem uma "piccola favoletta", narrativa mnima, fbula em embrio. O profeta Daniel desentranha da imagem da esttua sonhada pelo rei a histria fusumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio

XIX

tura de quatro imprios sucessivos afinal destrudos por uma pedra que encheria toda a Terra -- alegoria do ltimo e eterno reino de justia e paz (Dan 2, 44). Corao do processo narrativo, a figura ora traz tona experincias submersas no passado, sendo ento objeto de reconhecimento da memria ( o que faz o analista na anamnese dos fantasmas onricos do paciente); ora movida pelo desejo, recebendo o estatuto de figurao de coisas e tempos futuros. A figura, neste caso, descola-se da sua forma aparentemente esttica e mostra a sua verdadeira face de conhecimento antecipado, narrativa dos futuros, viso, profecia. Se o intrprete der figura um significado unvoco e o fixar como o nico legtimo, a profecia ser lida como alegoria. Ou seja, um "outro discurso", que, embora individual, pode cristalizar um desejo comunitrio, uma utopia social. A figura que parecia apenas imagem produzida em sonhos tende, na economia da vontade coletiva, a ser prognstico infalvel. Dom Sebastio voltar. Em face do sinal (antes que serrem quarenta, erguerse ha gran tormenta), os leitores e os ouvintes produzem "wishful thinking", pensamento desejoso. H uma ponte que comunica a figura enunciada com o evento que dever um dia acontecer. Entre os plos -- a figura plasmada no pretrito e o seu cumprimento no futuro -- vigoram o desejo e a conscincia atual. o olhar presente que busca a palavra passada servindo-lhe de mediador e tradutor, mantendoa viva. A memria social, como bem a analisou Maurice Halbwachs, opera sob a ao da percepo e da vontade, aqui e agora. a histria contempornea do intrprete com os seus ideais e valores, as suas nostalgias e utopias, que escava e traz luz o passado forjando elos de coerncia interna sem os quais a profecia apareceria como vana verba, delrio da imaginao. A condio de possibilidade da profecia reside no fato de o tempo ter, para os seus crentes, um sentido.

A figura e a ao do tempo "Ali onde chega o presente e comea o futuro era at agora o Cabo de No."sumrio prxima anterior sair

XX PADRE ANTNIO VIEIRA

(Histria do Futuro, X). Talvez o modelo mais prximo daquele sobre o qual se constri a figura de cunho proftico seja o do fluxo dos movimentos csmicos. A analogia de base a seguinte: os momentos histricos se sucedem, assim como os da natureza; mas, tal como na natureza, no se trata de pura sucesso linear, srie indefinida de diferenas, pois se verificam recorrncias, refluxos, fases de ciclos, redes de relaes entre o que agora e o que j foi, entre o que e o que ser, entre o que ser e o que j foi. A noite que se segue ao dia de ontem precede o dia de amanh, que a rotao do Planeta prepara, segundo por segundo, imperceptivelmente. O dia volta de novo, uma vez mais, sendo sempre um novo dia. Novo novidade; de novo repetio. A criana que abre os olhos para a luz da manh v que o sol mal rompeu; no entanto, a idade do astro que ilumina o novo dia contada em bilhes de anos. O novo se reprope desde a origem dos tempos. Este o fundamento da esperana. Se as situaes apenas decorressem umas aps as outras na srie das diferenas, se no houvesse a possibilidade de retomar, de novo e renovadamente, o que j foi alguma vez produzido, ento jamais uma figura traada outrora poderia ser atualizada agora ou no futuro. Mas o que se esvaiu no tempo do relgio persiste nas mars da memria e do desejo. Quem vive o presente e se volta para olhar o passado sabe, por ntima experincia, que o futuro existe, precisamente porque o seu presente o futuro do passado. A palavra dita por algum que j morreu, a palavra de um morto, no ser palavra morta. Figuras j enunciadas em qualquer tempo esto ainda hoje afetadas de potencialidades de leitura e de realizao. A imagem proftica uma palavra que sobrevive. Enquanto signo reitervel tal e qual ao longo dos sculos, a profecia parece ilustrar o topos sapiencial do nihil novum sub sole. Todas as palavras j teriam sido ditas, e no restaria a ns e aos psteros se no rediz-las. Mas a verdade mais complexa: ao lado da semelhana reponta a diferena, que no pequena. A figura proftica recebe o benefcio do tempo quesumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio XXI

avana: novos acontecimentos podem descobrir uma verdade que o passado encobria. Um leitor de Vieira, dos mais escrupulosos, Jos Van Den Besselaar, chamou a ateno para o valor que se d, na Histria do Futuro, passagem dos anos e, da, boa fortuna dos comentadores modernos das profecias. Teriam estes melhores condies de ver o que os Antigos no puderam conhecer3. um discurso raro, atpico, por isso significativo, de valorizao do novo e de um tempo que se adianta j no mais em direo morte dos indivduos e entropia das naes. No mais o famigerado "tempo roedor das coisas", "tempo minaz", mas um tempo que procede no sentido da sua plenitude. Examinem-se de perto as metforas do lume da profecia e do lume da razo com que Vieira nomeia o entendimento progressivo dos desgnios da Providncia. No captulo X "mostra-se que o melhor comentador da profecia o tempo". Os Antigos, posto que tivessem melhor candeia (ainda a deferncia ao princpio da autoridade), no poderiam ter enxergado os futuros to claramente quanto os modernos: a estes foi dada a vantagem de estarem mais prximos do cumprimento das promessas, "porque a candeia de mais perto alumeia melhor". Os profetas do Velho Testamento anunciaram a Cristo, sim, mas "o Batista mostrou-o melhor, porque era candeia de mais perto. Os outros diziam: H de vir; e ele disse: Este ." E neste passo, munindo-se das cautelas necessrias a um religioso que deve enfrentar a suspiccia inquisitorial, Vieira aponta as novidades espantosas que os tempos recentes trouxeram humanidade. As candeias de mais perto tambm ajudaram os comentadores a ver nas profecias o que os Antigos no teriam podido sequer vislumbrar. O cabo No foi dobrado, dobrado foi o Bojador. O mar oceano de tenebrosa memria foi cortado por naus lusitanas. O nauta Gil Eanes "quebrou aquele antiqssimo encantamento e mostrou que tambm o no navegado era navegvel". E Vieira no deixa de evocar os camonianos mares nunca dantes navegados.(3) Ver a Apresentao de Besselaar ao Livro Anteprimeiro, cit., pp. 14-16.

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XXII PADRE ANTNIO VIEIRA

No meio de uma chuva de exemplos o comentador lembra barrocamente que este mundo um teatro, "uma comdia de Deus", em que o segredo do enredo s vem a ser descoberto na hora do desfecho. Antes que o pano caia tudo so mistrios e expectaes. Os captulos XI e XII da Histria do Futuro contm uma apologia firme da novidade. A comear pela palavra "evangelho", que quer dizer precisamente boa nova. Ora, a nova crena sofreu rejeio tanto da parte dos judeus quanto da parte dos pagos, pois todos se escandalizaram com a sua novidade. O mesmo se deu quando So Jernimo se ps a verter a Bblia do grego para o latim. A sua traduo, mais tarde reputada como a nica cannica, foi estranhada por um filsofo da estatura de Santo Agostinho, que pediu em carta a Jernimo que desistisse de faz-la: "Quanto verso das Escrituras Sagradas na lngua latina, obra em que eu no quisera que empregsseis o vosso trabalho, porque ou elas so escuras ou so manifestas. Se escuras, com razo se cr que tambm vs vos podeis enganar na sua interpretao, como os outros escritores; e se manifestas, suprflua diligncia quererdes vs explicar o que os outros no podem deixar de ter entendido" (Epstola 28, 2, citada e traduzida por Vieira). So Jernimo rebateu com o mesmo argumento perguntando a Agostinho por que ele prprio comentara o Livro dos Salmos, divergindo, alis, dos seus primeiros exegetas... O que foi uma venervel estocada no princpio de autoridade. No conheo a trplica de Agostinho, caso a tenha feito. A antigidade como valor em si submetida por Vieira a um olhar desassombrado: "No o tempo, seno a razo, a que d crdito e autoridade aos escritos, nem se deve perguntar quando se escreveram, seno quo bem. A antigidade das obras um acidente extrnseco, que nem tira nem acrescenta qualidade." A causa de serem preteridos os novos a ignorncia da maioria ou, pior, a inveja dos contemporneos; inveja que s louva os mortos para melhor denegrir os vivos. Observao psicolgica fina, digna dos moralistas franceses dos Seiscentos. No texto de Vieira ela abonada com versos do satrico Marcial, "o nosso discreto Espanhol": "Como poderei explicar que se negue a fama aos vivos? E por que to raro o leitor que aprecie os livros do seu tempo? Decerto a inveja, Rgulo, que produz tais costumes: ela prefere sempre os antigos aos modernos. Assim, ingratos que somos, procuramos a sombra de Pompeu; assim os velhos louvam o

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De Profecia e Inquisio

XXIII

templo trivial de Ctulo. Tu, Roma, lias nio durante a vida de Virglio, e Homero foi metido a ridculo pelos seus contemporneos." 4 Os escritores medievais que comentaram as profecias bblicas antes dos descobrimentos portugueses no podiam saber que a Terra era esfrica, julgavam fantasiosa qualquer aluso aos antpodas e, naturalmente, ignoravam a existncia do Novo Mundo. Mas o conhecimento cresceu com o tempo e junto nova cincia da Terra (a nova astronomia, a nova cosmografia) cresceu o entendimento das Escrituras. No me detenho aqui, por brevidade, nas engenhosas leituras que Vieira faz dos Cantares e do Livro de Isaas, provando que nesses textos j estavam figuradas as maravilhas da China, do Japo e das Amricas, incluindo as do Maranho e das Amazonas. Mais interessantes me parecem os trechos da Histria do Futuro em que Vieira defende o carter progressivo do conhecimento, combinando a sua f na Histria da Salvao com as evidncias do novo saber que os descobrimentos e a Renascena trouxeram ao homem europeu. As imagens, verdadeiras comparaes, so a matria-prima do seu discurso probatrio. O pigmeu montado s costas do gigante, embora to menor do que este, consegue ver melhor e mais longe. O ltimo degrau da escada, mesmo que seja mais estreito que todos os outros, permite a quem nele subir enxergar o que no enxergou quem escalou s at o penltimo. Os cavadores da vinha que, na parbola evanglica, chegaram na undcima hora, receberam o mesmo salrio dos que j haviam trabalhado o dia inteiro; embora ltimos, foram tratados como primeiros. "Quantas vezes os que trabalham no descobrimento de algum tesouro cavam por muitos dias, meses e anos, sem acharem o que buscam; e depois de estes cansados e desesperados, sucede vir um mais venturoso, que, descendo sem trabalho ao profundo da mesma cova, e cavando alguma cousa de novo, descobre a poucas enxadadas o tesouro, e logra o fruto dos trabalhos e suores dos primeiros! Assim acontece no tesouro das profecias: cavaram uns, e cavaram outros, e cansaram-se todos; e o cabo descobre o tesouro, quase sem trabalho, aquele ltimo para quem(4) Trata-se de um dos epigramas de Marcial (V, 10). Transcrevi acima a verso de Besselaar, que consta em nota ao captulo nono da Histria do Futuro.

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XXIV PADRE ANTNIO VIEIRA

estava guardada tamanha ventura, a qual sempre do ltimo." V-se aqui, pela evidncia das analogias, o quanto urgia a Vieira inverter o argumento tradicional que d prioridade aos Antigos! Para tanto, era preciso encarecer "o benefcio do tempo", pelo qual "as profecias se vo descobrindo ordenada e sucessivamente aos mesmos passos -- ou mais vagarosos, ou mais apressados -- com que se vo seguindo e variando os tempos". E enfaticamente: "O tempo foi o que interpretou a profecia, e no Daniel". Apaixonado pelo tema e conhecendo bem o poder de fogo do argumento contrrio, Vieira se pe caa de exemplos probantes da sua tese arriscando-se a dizer, pura e simplesmente, que o novo superior ao antigo. O sol veio depois das trevas, o homem depois dos animais, o Novo Testamento depois do Velho, o cristianismo depois do paganismo. No plano do conhecimento, se a memria nos bastasse, por que Deus nos teria dado o entendimento? Saber s o que os Antigos souberam, no saber, lembrar-se -frase de Sneca citada para ressaltar a necessidade de ir alm do culto do passado. Os eruditos, como certos alemes (que tm a cabea virada para as costas, no dizer sarcstico dos italianos), s se ocupam com o passado "sem descobrir nem inventar cousa alguma". E neste sculo dezessete e ibrico de tesourizadores, de "adoradores ou aduladores da Antigidade", no deixa de ser prova de inconformismo dizer que muitos doutores se restringem a "estudar o j estudado, escrever o j escrito, tomando a gua no regato por no se cansarem de a ir buscar fonte. E estes mais so copiadores de livros que autores, acrescentando s opinies nmero, mas no peso" (Repres. 2a., 11). "Mas querer forosamente que nos atemos em tudo aos passados, querer atar os vivos aos mortos" (Histria, XI). Segundo esse novo modelo, os tempos no s passam como tambm crescem na direo da plenitude. "Incrementa temporis", diz So Gregrio, e Vieira o alega para mostrar que o conhecimento do mundo e dos desgnios de Deus se amplia com a passagem dos sculos. E o mesmo Aristteles, em que pese ao magister dixit, sups que os cus fossem slidos e incorruptveis e, no entanto, a "nova opinio... to bem recebida em nossos dias" os considera fluidos. Teria Vieira notcia do processo movido pela Inquisio a Galileu, fazia apenas trinta anos, quando este ousara contraditar a astronomia de Aristteles? Creio que no,

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De Profecia e Inquisio XXV

porque, do contrrio, no teria lanado mo de exemplo to perigoso na sua prpria defesa perante o Tribunal do Santo Ofcio. De todo modo, a concepo de tempo que sai dos escritos de Vieira mais do que simplesmente linear. Diria que cumulativa e ascensional, pois nela o presente traz no bojo todo o passado, enriquecendo-o com os achamentos do novo; este, por seu turno, espera outros e melhores acrscimos com o advento do futuro. Concepo sem dvida progressiva e (arriscaria dizer) progressista. O crescimento do saber universal se fez com os descobrimentos dalm-mar, glria dos portugueses. Na visada teleolgica de Vieira, o sentido deste novo saber se inscreve na rota da Igreja enquanto corpo mstico que igualmente cresce com os tempos no rumo da plenitude final. A comparao por figuras se faz inicialmente com a imagem do rio. "O rio que nasce da fonte, quanto mais caminha e mais se aparta de seu princpio, tanto mais se engrossa, porque vai recebendo novas correntes e novas guas, com que se faz mais largo, mais profundo, mais caudaloso" (Histria, XII). A imaginao de Vieira no pra a. Se as guas do rio crescem com o tempo, tambm se dilata pouco a pouco a luz do dia, comeando pelo raiar da aurora, figurada belamente nos cnticos de Salomo (quae est ista, quae progreditur quasi Aurora consurgens?) e admirada no seu iluminar gradativo at os fulgores do meio-dia, de claridade em claridade. Se assim , inverte-se engenhosamente o sentido mesmo das palavras: o novo, por vir ltimo e tarde, verdadeiramente o antigo, pois tem a idade dos sculos; e o antigo, por ter vindo primeiro, verdadeiramente mais novo e tenro como a infncia em relao idade madura... Aplicando ao curso dos tempos a sua esperana no advento do Quinto Imprio, Vieira divide a Histria da Salvao em trs etapas, nas quais j se vislumbraram traos da doutrina das Trs Eras do Abade Joaquim de Flora5: I -- o Reino de Cristo incoado -- tempos do judasmo antigo;(5) Ver, a respeito, as observaes judiciosas que faz Maria Leonor Carvalho Buescu na sua introduo Histria do Futuro (Lisboa, Imprensa Nacional, 1982, pp. 17-21).

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XXVI PADRE ANTNIO VIEIRA

II -- o Reino de Cristo incompleto -- desde o nascimento de Cristo at uma data misteriosa, fixada em torno de 1666; III -- o Reino de Cristo consumado -- a partir do momento em que se estabelecer o Quinto Imprio, e por mil anos at a vinda do Anticristo profetizado no Apocalipse. Singular e rica de conseqncias a identificao que Vieira faz da "Natureza humana" com a "mulher do Apocalipse" ( 257). A mulher estar, no fim dos tempos, vestida de Sol e inteiramente iluminada pela verdade divina que j comeou a irradiar-se no seu corpo desde o "Reino incoado de Cristo." Ela trar sob os ps a Lua, "que luz vria e inconstante, e que admite mistura de manchas, qual o estado presente da natureza humana". Este mesmo estado presente e incompleto chamado "estado de meninos" no pargrafo em que Vieira equipara o crescimento do Corpo Mstico (isto , a humanidade regenerada) estatura natural do corpo de Cristo, que tambm cresceu at chegar " mesma perfeio, e nela estava em os ltimos anos de sua vida" ( 254). Trata-se de smiles derivados da analogia entre a histria dos homens e o amadurecimento do corpo. A dimenso comum o tempo que avana fazendo crescer tudo o que vivo. E nessa altura acodem memria do ru as parbolas que comparam o Reino ao fermento que, escondido no meio da farinha, leveda a massa inteira; e semente de mostarda pequenina que se fez com o tempo uma bela rvore, e as aves do cu vieram habitar nos seus ramos.

A s profecias do Bandarra " quem pudera dizer os sonhos que o homem sonha! Mas eu hei gro vergonha de nos no quererem crer. E depois de acordado,sumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio

XXVII

fui ver as escrituras e achei muitas pinturas e o sonho afigurado" Trovas, Sonho Terceiro, CIX e CXXVI. J sabemos qual era o propsito de Vieira ao encarecer o novo, isto , os profetas e os comentadores recentes: fazer a apologia do Bandarra e de si prprio, testemunhos dos feitos portugueses e de uma ptria gloriosa, depois decada e sujeita ao estrangeiro, enfim restaurada e prestes a sediar o quinto, ltimo e maior dos imprios deste mundo. Boa parte da primeira Representao ( 72 a 121) dedicada a alinhar provas de que muitas das profecias do Bandarra j se haviam cumprido cabalmente. Vieira faz citaes de memria, inclusive das Trovas, base de sua argumentao, pois lhe fora negado o acesso a outros livros alm de uma Bblia latina sem concordncias e do brevirio. Sigo aqui a lio do texto de Bandarra tal qual se transcreve na Defesa, mesmo quando constem divergncias em relao a outras edies. Respeito a ortografia quinhentista do Bandarra, aqui e ali alterada pelo prprio Vieira. O sapateiro de Trancoso teria acertado em tudo quanto se reportava Restaurao e a D. Joo IV. Vejamos algumas das suas profecias seguidas pela interpretao dada por Vieira: Antes que serrem quarenta erguerse ha gram tormenta do que intenta, que logo ser amanada, & tomaro a estrada de callada; no tero quem os affoute. Vieira explica: "Falam estes versos do levantamento de vora, como se ver pela combinao deles com a histria do sucesso que to pblica foi neste Reino".sumrio prxima anterior sair

XXVIII PADRE ANTNIO VIEIRA

Depois, verso por verso: Antes que serrem quarenta. "No ano de 637, sucedendo a aclamao (de D. Joo IV) ao cerrar do ano 40." Erguerse ha gram tormenta. "Chama tormenta grande ao dito levantamento, pelos grandes excessos que houve em Castela e pelo grande alvoroo e expectao e ainda risco, em que se meteu o Reino. E diz com muita propriedade, que esta tormenta se ergueria como por si mesma, porque se experimentavam os efeitos sem ver a causa, e se viam os movimentos sem se saber o motos..." Do que intenta. "Porque, sendo grande a tormenta e grandes os movimentos de vora, os intentos ainda eram maiores, intentando aquele povo, ou quem ocultamente o mandava, convidar e empenhar ao Duque [de Bragana, futuro D. Joo IV], e fazer farol a Lisboa e s mais cidades do Reino." Que logo ser amanada. "Disse o tempo da tormenta, agora diz tambm o de sua durao, declarando que no cresceria nem iria por diante, como se intentava, seno que logo se amansaria como com efeito amansou." E tomaro a estrada de callada. "Porque o caminho que se tomou em negcio to dificultoso e de tanta conseqncia, assim de parte dos culpados no motivo, como de parte do Rei e da Justia, foi pr-se silncio a tudo, calar-se a matria, e no se falar nela. Se j no quer dizer (e porventura com mais propriedade) que os que pretendiam persuadir o Duque a levantar o Reino, vendo que por aquele caminho to pblico e to estrondoso lhe no sucedia, tomaram novo caminho e nova estrada, que foi o de obrar pela calada, como com efeito fizeram, e com melhor sucesso." No tero quem os affoute. "D a razo de no continuar a tormenta e de se calarem os que a moveram, e o no haverem tido quem os seguisse e fomentasse, e desse costas e nimo a seus intentes. Mas no era chegado o tempo, como logo diz: J o tempo dezejado he chegado, segundo firmal assenta; j se serro os quarenta, que se emmenta, por hum Doutor j passado. O Rei novo he levantado,sumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio

XXIX

j d brado; j assoma a sua bandeira contra a Grifa parideira, langomeira, que taes prados tem gostado." Verso por verso: J o tempo dezejado he chegado. [Vieira aqui vai recapitulando a histria dinstica de Portugal desde o reinado de D. Joo III, quando Bandarra escreveu as suas profecias, at os anos da Restaurao. Note-se, linhas adiante, a meno inoportunidade da empresa africana de D. Sebastio, levada a efeito "em tempo to incompetente"; o que revela um Vieira capaz de guardar distncia do sebastianismo stricto sensu.] "Considere-se bem o tempo em que foram escritos estes dous versos, e ver-se-h o muito que dizem, e o muito que supem, tudo futuro, e no imaginado, nem ainda imaginvel. Foram escritos os ditos dous versos no tempo DelRei D. Joo III, sendo vivo o Prncipe D. Joo, seu filho, e dous ou trs irmos do mesmo Rei, gozando o Reino, em paz e abundncia, as felicidades naturais da terra prpria e as dos mundos estranhos e novos, de que El-Rei Dom Manuel, seu Pai, o deixara tambm herdado. E neste mesmo tempo, to feliz e tanto para estimar, e no desejar outro, diz Bandarra que haveria outro tempo desejado, supondo o desejo deste tempo todas aquelas mudanas e voltas da fortuna, que em mais de cem anos seguintes padeceu Portugal; sendo necessrio para isso que DelRei D. Joo o 3 se no lograsse mais que o Prncipe D. Joo; que esse acabasse na flor de sua idade, no deixando mais que o pstumo D. Sebastio; que o mesmo Rei D. Sebastio empreendesse em tempo to incompetente uma tal jornada, e que se perdesse nela; que o Infante D. Duarte no tivesse herdeiro varo; que El-Rei D. Henrique no nomeasse sucessor; que o Bastardo do Infante D. Lus no fosse seguido; que o direito da senhora D. Catarina fosse oprimido de dentro com a inveja e de fora com as armas; e que a Imperatriz Dona Isabel, para complemento e instrumento de toda esta tragdia, tivesse por filho a Filipe segundo. E, finalmente, que debaixo do Imprio de Castela, sendo to poderoso, se perdesse a ndia e o Brasil; sendo to poltico, se avexasse e descontentasse a nobreza; e sendo to rico e opulento, lhe fosse necessrio carregar de to imoderados

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XXX PADRE ANTNIO VIEIRA

tributos o Povo que foram as ltimas e mais apertadas disposies dos nimos, para que todos desejassem, e suspirassem por outro tempo e no soubessem quando j havia de acabar de chegar. E o que muito particularmente se deve notar aqui que estes mesmos dous versos eram um dos principais motivos que muito animavam os ditos desejos; porque na confiana deles se esperava que o tempo desejado havia de chegar sem dvida, como chegou." Segundo firmal assenta. "Firmal o decreto firme e imutvel de Deus, que tinha determinado e assentado o tempo em que havia de chegar o termo e cumprimento dos desejos." E declarando qual este termo e este tempo havia de ser, diz: J se serro os quarenta. "Porque havia de ser pontualmente, como foi, no ano de quarenta. E no s no ano de quarenta, seno no fim dele, quando o ano se cerra, sucedendo a mudana da Coroa como sucedeu, no primeiro de Dezembro, que o ms que fecha e cerra o ano; com que veio a declarar o ano e mais o ms, sendo a maior maravilha desta pontualidade, que tendo-se ajustado entre os fidalgos que traaram e executaram a Aclamao, que ela se fizesse em dia sinalado, primeiro de Janeiro do ano seguinte; ocorreram tais acidentes que foi necessrio antecipar o dia assentado; porque a profecia ou predio se havia de cumprir, no segundo os fidalgos assentassem, seno segundo o firmal assenta." Que se emmenta por hum Doutor j passado. "Este Doutor j passado se entendo que Santo Isidoro, cujas profecias falam do Rei encoberto, mas deve-se advertir nelas, que no determinam ano de quarenta, e somente dizem -- Tiempos trs tiempos vendrn: e estes tempos que Santo Isidoro ementou em comum, determinou Bandarra em particular, declarando quando havia de comear o princpio deles." O Rei novo he levantado. "Trs cousas diz este verso em trs palavras, e todas trs se cumpriram. Porque no fim do prometido ano de quarenta houve em Portugal Rei e Rei novo, e Rei levantado. Queriam alguns que ao princpio se introduzisse o Duque com nome de Defensor da Ptria; mas no foi seno com nome e coroa de Rei. Cuidavam muitos que o Rei do ano de quarenta seria El-Rei D. Sebastio, Rei velho e Rei que j tinha sido; mas no foi senosumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio XXXI

Rei novo. E finalmente foi Rei levantado, porque no foi ele o que buscou o Reino, e se introduziu, mas o Reino foi o que o buscou a ele, e o levantou." J d brado. "E foi brado que no s se ouviu em Espanha e em Europa, seno em todo o mundo; em umas partes com horros, em outras com aplauso (conforme os interesses de amigos e inimigos) e com admirao em todas." J assoma a sua bandeira contra a Grifa parideira. "Depois do Rei novo levantado, segue-se nesta narrao do futuro, como se fora histria do passado, o que tambm logo se seguiu; que foi porem-se em campo as bandeiras e armas de Portugal contra Castela; a qual chama Grifa parideira com duas notveis propriedades: o grifo um animal composto de guia e leo, porque tem o corpo e garras de leo, e o bico e asas de guia, e esta mesma a composio das armas de Castela pelos lees de Espanha e guias de ustria. E porque Castela tem a terminao feminina, por isso lhe chamou Grifa e no Grifo. O epteto de parideira alude condio ou fortuna daquela Monarquia, que por casamentos e heranas ajuntou a si tantos Reinos e Estados e se fez to grande, por onde se disse dela: Bella gerant alii, tu, feliz Austria, nube: Quae Mavors aliis dat, tibi regna Venus. E vinha o epteto muito ao intento do que Bandarra contava ou predizia, porque pelo casamento da Princesa D. Isabel com Carlos Quinto, e por ela parir a Filipe, veio a Grifa a ser senhora de Portugal." Langomeira, que taes prados tem gostado. "A palavra langomeira prpria da terra de Bandarra, e daquela Provncia, e significa gulosa ou lambisqueira, em que alude ambio de Castela em adquirir e ajuntar estados. E conforme ao mesmo nome de langomeira e gulosa, diz que teria gostado os prados de Portugal, nas quais palavras supem e declara duas cousas, ambas mui dificultosas de crer nem presumir: uma que sucedeu dali a quarenta anos, que foi senhorear-se Castela e Portugal; outra que sucedeu sessenta anos depois dos quarenta que foi tornar Portugal a livrar-se das mos de Castela, sendo as garras da Grifa de to boa presa, e os prados to gostosos." Saya, saya esse Infante bem andante; o seu nome he Dom Joo.sumrio prxima anterior sair

XXXII PADRE ANTNIO VIEIRA

Tire e leve o pendo e o guio glorioso e triunfante. "Depois de dizer em comum que no ano de quarenta havia de haver Rei novo, e que o Reino por meio dele, se havia de libertar da sujeio de Castela, passa a dizer em particular quem h de ser este Rei." Saya, saya este Infante. "Chama-lhe Infante, porque a casa de Bragana casa de Infantes, e foi fundada por um Infante filho Del-Rei D. Joo o 1 e teve o direito coroa por outro Infante, filho Del-Rei D. Manuel. A palavra saya significa ser pessoa que estava retirada, como estiveram sempre aqueles Prncipes. E a repetio saya, saya significa as repugnncias do Duque, que foram grandes, e as instncias que se lhe fizeram, que foram maiores; e tudo era de uma e de outra parte conforme a necessidade da empresa e o risco dela." (...) O seu nome he Dom Joo. "Alguns exemplares menos antigos, em lugar de D. Joo, tinham D. foo; mas com erro e corrupo manifesta, que se prova por muitas e mui eficazes razes. 1 pelo efeito; porque o Rei novo levantado no ano de quarenta verdadeiramente, antes de Rei e depois de Rei, se chamava e se chama D. Joo. 2 porque o mesmo verso declara que dizia e queria dizer o seu nome, e foo no nome. Antes quem ignora o nome, ou o no quer dizer, diz foo. 3 porque, no mesmo captulo ou no mesmo sonho, tornando a falar no mesmo Rei, e na posse do Reino e Quinas de Portugal em que entrou, lhe chama outra vez Joo; e nisto concordam todos os exemplares. Os versos dizem: Soccedeu a El Rey Joo em possesso o Calvario por bandeira, Levallo ha por cimeira etc. 4 porque so muitos mais sem nmero os exemplares que tem Joo, que os que tm foo. E esta razo ainda mais forosa, se se pondera,sumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio XXXIII

como deve ponderar, que, para se mudar Joo em foo, havia a esperana e opinio dos sebastianistas, a cujo propsito no fazia aquele nome." Interrompo aqui as transcries, que j vo longas. E julgo oportuno insistir na distino que faz Vieira entre a sua leitura do Bandarra, toda centrada na figura de D. Joo IV (tanto o Restaurador quanto o Esperado do Quinto Imprio), e "a opinio dos sebastianistas" que, em mais de uma passagem, ele reelabora substituindo o nome do infortunado rei. Outros acertos do Bandarra so expostos nos pargrafos 91, 100101 e 103-107, que em seguida resumo e comento em razo de seu pondervel interesse histrico: Pargrafo 91 -- Vieira decifra a expresso "terras prezadas" como alusivas ndia e ao Brasil, colnias que logo reconheceram a nova situao portuguesa enviando a Lisboa embaixadores deferentes a D. Joo IV. Pargrafos 100-101 -- Vieira mostra a exata correspondncia entre a trova cujo primeiro verso Comendadores, Prelados, e a formao da Junta dos Trs Estados na qual acordaram entre si nobreza, clero e povo em pagar os tributos para sustentar o Reino contra as investidas de Castela. Pargrafos 103-107 -- Vieira comenta as coincidncias entre certas expresses do Bandarra e fatos acontecidos antes da Restaurao: trinta dous anos & meio valeria sessenta e um anos de dominao castelhana, pois o cardeal D. Henrique morreu em janeiro de 1580 e D. Joo IV foi aclamado em dezembro de 1640; aver sinaes na terra prediz o aparecimento do "cometa funesto" que varreu o cu pouco antes da morte de D. Sebastio; e a "nova estrela", que surgiu no Serpentrio no ano em que nasceu D. Joo, tendo sido notada por Keplero [sic]... E outros prodgios aparecidos no cu, na terra e no mar.

Bandarra: leigo, casado, idiota e de baixo ofcio e condio Como se sabe, os Inquisidores arremeteram contra a autoridade mesma do Bandarra, que fora elevado pelo ru e pelos sebastianistas altura dos profetas do Velho Testamento, modelos efetivos do seu discurso. Isaas e Daniel, Jeremias e Zacarias falaram das vicissitudes do seu povo e do destino de Israel.sumrio prxima anterior sair

XXXIV PADRE ANTNIO VIEIRA

Quanto a Vieira, transpe para a histria de Portugal as previses do sapateiro de Trancoso. O Tribunal desautorizou a leitura das Trovas chamando a seu autor "leigo, casado, idiota e de baixo ofcio e condio". Vieira responde cerradamente a cada uma dessas objees. Por que um profeta no poderia ser leigo? "Mas sabemos que Jac e Jos, no sendo arrbidos nem cartuxos, e ambos com poucos anos de idade e de perfeio, um viu a escada que chegava da terra ao cu, cheia de tantos mistrios, e outro no cu e na terra conheceu os seus futuros e mais os dos Egpcios" ( 235). E continua, no sem uma pontinha de petulncia, antes como quem ensina do que se defende, lembrando ao inquisidor que, afinal, "consta que os monges e religies monacais no vieram ao Mundo seno da a quatrocentos anos [depois de Cristo], no Oriente por So Baslio e no Ocidente por So Bento". E o remate traz a verve dos que pensam livremente: "De sorte que o esprito de profecia no anda vinculado correia nem ao escapulrio." Por que um profeta no poderia ser casado? Aqui a objeo do Santo Ofcio virada de cabea para baixo: "Digo que o primeiro casado foi o primeiro profeta." Foi Ado, a quem ainda em pleno sono Deus fez as primeiras revelaes. Casado era No quando lhe foi anunciado o segredo do dilvio. Casado Jac, visionrio, que teve quatro mulheres. E Davi, que teve dezoito. Enfim, Salomo, em cujos Cantares est escrito: "Sexaginta sunt reginae et octoginta concubinae et adolescentarum non est numerus" ( 236). Por que um profeta dever ser letrado? O epteto de "idiota", na acusao do Tribunal, significava homem sem letras, homem simples. O preconceito do inquisidor estava to distante da mensagem evanglica, e to radicalmente a contradizia, que se tornava fcil para o ru acumular citaes e exemplos e rebater o argumento da incultura do sapateiro de Trancoso como bice ao exerccio dos seus dons profticos. Comea com Davi, criado que foi no campo entre jumentas, reconhecendo lisamente: "Porque no conheci letras, entrarei nas potncias do Senhor" (Quoniam non cognovi litteraturam, introibo in potentias Domini). Vem depois o tema caro tica paulina: a sabedoria do mundo estultcia aos olhos de Deus. E o exemplo dos doze apstolos, pois Cristo "no os foi buscar s universidades de Atenas, desumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio XXXV

Roma ou de Jerusalm, seno s praias do mar da Galilia". E So Jernimo, o tradutor da Bblia para o latim, posto que erudito nas letras sagradas e profanas, sentencia que no futuro s aos parvulis ser revelado o que Deus escondeu dos sbios e astutos. Enfim, por que um profeta no poderia ser de baixo ofcio e condio? A argumentao afim anterior. Vieira taxativo: "Os humildes e desprezados do mundo so os escolhidos de Deus." Sem querer especular em torno de um tema que mereceria estudos analticos no campo da histria das mentalidades, caberia ao menos indagar se o aristocraticismo da Inquisio, evidente nesse desprezo do povo, no lanaria razes na conjuno (bem seiscentista) de alto clero e nobreza, estamentos de "f antiga" e "gerao limpa": estratos privilegiados que desdenhavam tudo quanto Vieira defendeu -- o Terceiro Estado e os judeus em Portugal, os ndios no Brasil. Exemplos de pobreza colhidos nas Escrituras: Moiss, enquanto vivia no Pao do Fara, no recebeu revelaes do alto: Deus lhe falou em meio sara ardente s depois que o ps a guardar ovelhas nos desertos de Madi. Cristo viveu humildemente toda a infncia e juventude na casa de um carpinteiro. Paulo, apesar da sua origem familiar, trabalhou como oficial mecnico nas artes do couro. So Crisstomo lhe chama expressamente sutor noster, o nosso sapateiro. Vieira consegue pinar nos Atos dos Apstolos matria para afirmar que at mesmo Pedro teria exercido o mesmo ofcio. O que lhe rende mais um voto em favor do sapateiro Bandarra. Pedro vivia na cidade de Jope, segundo consta dos mesmos Atos, "de maneira que no indignidade para Deus a baixeza do ofcio, e que em Jope, e fora de Jope, pode ser talvez o mais digno um sapateiro" ( 238). Fora de Jope: por que no na vila de Trancoso?

A expanso da profecia: o Quinto Impriosumrio prxima anterior sair

XXXVI PADRE ANTNIO VIEIRA

Se a primeira Representao tinha por fim expor os motivos de crena na volta iminente de D. Joo IV, a segunda desdobra amplamente a leitura proftica no sentido de abrir-se viso do Reino consumado de Cristo. So trinta as questes que o ru elabora em um papel entregue ao Tribunal para defender a verdade e a ortodoxia das suas esperanas. Entremos animosamente por esse labirinto de perguntas com suas objees e respostas, suas figuras e respectivas alegorias, sua imaginao frondosa dotada de lgica prpria, que parecer estranha a um esprito moderno, mas de uma estranheza metdica pelo uso reiterado de silogismos e simetrias. Uma obra barroca, enquanto fuso de contedos medievais (no caso portugus, antes mercantis e absolutistas do que redondamente feudais) e linguagem clssica, s vezes alatinada, outras espertada por uma picante oralidade que a urgncia da defesa estimulava. E a sua constante deferncia aos escritos profticos da Bblia vem misturada com atrevidas extrapolaes de sentido e contexto. A tcnica da exegese textual, que Vieira aprendera nos exerccios meio retricos meio ldicos da Companhia, escorava-se em citaes tomadas s Escrituras com generosas surtidas pelas vidas dos santos e pelos cronistas fantasiosos da histria portuguesa. Entre os quais destacam-se os monges de Alcobaa, que canonizaram as origens do reino com o milagre de Ourique, e o padre jesuta Joo de Vasconcelos cuja Restaurao de Portugal prodigiosa uma fieira de espantos digna do ttulo. A citao dava sempre a prova inicial fundada na auctoritas do texto. Dessa plataforma zarpava o telogo-orador, mais orador que telogo, para a prtica infatigvel de operaes analgicas. a sua estratgia. A palavra dos Antigos figura, logo prognstico do que veio a suceder ou ainda vir. As provas, assim alcanadas, no costumam vir ss. Como se o ru tivesse receio da prpria vulnerabilidade, a sua defesa se pe a alinhavar novos exemplos tentando faz-los amarrar melhor a argumentao. Que afinal semelha antes um emaranhado de opinies cruzadas do que um fio puxado pela evidncia de cada ponto ou pela firmeza da obra costurada. Retomando as proposies que Vieira julga provadas ao longo da defesa, obtm-se um discurso centrado no advento do Quinto Imprio. Desenovelando os temas capitais, eis a linha do arrazoado:sumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio XXXVII

Vir e est prximo o Reino j anunciado pelos profetas, embora difcil de prever pelo vasto mar dos futuros, entre nuvens e cerraes das Escrituras profticas. Este reino ser o Quinto Imprio do Mundo porque suceder aos quatro j conhecidos: o Assrio, o Persa, o Grego e o Romano. A profecia que tudo sustm a que fez Daniel ao interpretar o sonho de Nabucodonosor. O Quinto Imprio ser Imprio e Reino da terra, ou na terra. Diz o profeta que a pedra que derrubou a esttua encheu a terra inteira (Dan 2, 35). O Quinto Imprio comear na era de 666 (1666), nmero que figura no Apocalipse de Joo (Jo 13, 18). Estender-se- pelo mundo inteiro ao mesmo tempo. Todos se convertero, gentios e judeus. Haver um s rebanho e um s Pastor. O poder espiritual ser regido pelo Sumo Pontfice. O poder temporal ser regido por um Imperador cristo. Os judeus, depois de terem sofrido tantos castigos e afrontas, como nenhum outro povo, sero restitudos sua Ptria, assim como os portugueses o foram por obra da Restaurao. A Igreja ser toda uma Jerusalm nova, santa e descida do Cu. Reinar a paz universal por muitos e muitos anos at a chegada dos tempos do Anticristo: tempos de catstrofes que precedero o Juzo Final. O Imperador, que h de vir como instrumento de Deus para vencer os Turcos, conquistar a Terra Santa e inaugurar o Quinto Imprio, ser portugus. O seu nome no mencionado nesta Representao segunda, ao contrrio do que o ru fizera na primeira, cujo alvo era, precisamente, provar que se tratava de D. Joo IV, o Encoberto, o Esperado, o Desejado, o Redivivo.

Entre Israel e Portugal: o paralelo e o convergente Das acusaes movidas pelo Santo Ofcio s proposies de Vieira a mais grave era a que nelas entrevia uma tendncia judaizante, termo empregado por Frei Alexandre da Silva, o inquisidor. Entrevia, digo mal, melhor diria farejava, porque o promotor fala em odor judaico: redolet sensum judaicum. A questo candente do processo incide no carter declaradamente terreno do Reino de que falam ambos os Testamentos, o primeiro em figuras, o segundo literalmente. Vieira no tem dvidas a respeito. O Reino ser da terra ou na terra. o que diz no pargrafo 7 e, enfaticamente, nos 61 a 65 da segunda representao.sumrio prxima anterior sair

XXXVIII PADRE ANTNIO VIEIRA

O que tornava difcil a posio do ru era a sua insistncia em afirmar como iminente a restituio da terra de Israel aos judeus dispersos pelo mundo. Esse retorno triunfal ptria aparece como integrante do reinado prometido de justia e paz. Um dos passos da defesa particularmente suspeito ao inquisidor encarecia a frase de So Paulo aos Romanos: "os judeus so carssimos a Deus por causa dos seus pais". Na mesma epstola Vieira descobria matria para dizer que os judeus so "conaturalmente" mais afins revelao do que os pagos ( 241). Como exemplo dessa conaturalidade, alega a parbola da oliveira mansa e da oliveira silvestre em que Paulo compara hebreus e gentios: "E se alguns dos ramos foram cortados fora, e tu, oliveira agreste, foste enxertada entre eles, para te beneficiares da raiz e da seiva da oliveira mansa, no te vanglories diante dos ramos; porque, se te vanglorias, no s tu que sustentas a raiz, mas a raiz que sustenta a ti" (Rom 11, 17-18). Comenta Vieira, seguindo de perto o texto paulino, que o leo da f crist natural oliveira mansa, cujas razes so os patriarcas do povo judaico, ao passo que o ramo da oliveira brava, enxertado na oliveira mansa, o "povo gentlico", ou os pagos enxertados em uma f que lhes era estranha e no natural ( 241). Aprofundando a analogia, diz Paulo que h ramos da oliveira que foram cortados: so os judeus apartados da revelao crist, que aparece, no contexto, como expanso natural da religio da Antiga Aliana. De todo modo, os mesmos ramos sero um dia reintegrados na Nova Aliana; e a volta ser facilitada pela afinidade que h entre as duas religies. Valendo-se de outra parbola, Vieira chama o povo judaico de filho prdigo, que voltar ao Pai comum quando chegarem os tempos da "plenitude de Israel". Cavando um pouco mais fundo o sentido deste discurso proftico, nele se encontra um evidente modelo messinico em parte semelhante ao esquema finalista que se foi articulando ao longo da histria do povo judaico. Os profetas tinham identificado a ptria perdida nos anos do cativeiro com a Terra da Promisso. O Livro de Daniel, lido pelos comentadores ps-exlicos (do sculo V a.C. em diante) e especialmente ao tempo da revolta dos Macabeus (sculo II a.C.), reforava a esperana na vinda de um Messias que seria rei e libertador do seu povo. No Salmo 72 encontra-se umasumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio XXXIX

das expresses mais vivas dessa expectativa: "Que em seus dias floresa a justia e muita paz at o fim das luas; que ele domine de mar a mar, desde o rio at os confins da Terra" 6. No caberia aqui sequer mencionar as mltiplas encarnaes da figura do Messias-Rei que a Histria registra dentro e fora do contexto judaico. Recomendo uma obra admirvel pela sua erudio e nitidez expositiva, Le messianisme royal, de J. Coppens 7. O autor acompanha a formao do messianismo real judaico desde o orculo de Nathan e a uno de Davi at s profecias cannicas e s suas verses contemporneas do advento de Cristo. Os intrpretes dessa longa tradio messinica ora a reduzem a uma ideologia nacional-judaica, ora a elevam a um nvel escatolgico universal que confina com a expectativa dos primeiros cristos. Do mesmo autor o ensaio de sntese "Lesprance messianique, ses origines et son dveloppement", que admite uma justaposio do "rei nacional" e do "imperador universal" em vrias passagens das Escrituras8. Essa figura recorrente do Messias-Rei (com a qual o Jesus dos Evangelhos, enquanto "Filho do Homem", no quis identificar-se) reaparece nos milenarismos medievais, em Bandarra, nos sebastianistas e em Vieira, que a projetou na histria vindoura de Portugal e do mundo. Nas representaes, porm, e na Histria do Futuro, Vieira jamais confunde na mesma pessoa o Imperador do Quinto Imprio, que seria um rei portugus, e o Messias cristo. O Tribunal, nesse ponto, usou de m f para poder conden-lo como milenarista judaizante, isto , como crente na vinda de um Messias terreno. Convm distinguir, nesta altura, discursos paralelos e discursos convergentes. Transcrevo abaixo trs passagens em que fica explcita a comparao entre os judeus, tantas vezes cativos e afrontados, e os portugueses oprimidos pelos castelhanos: I. "Finalmente, deixados exemplos antigos, assim como os Portugueses, sendo verdadeiramente cristos e catlicos, esperavam que havia de(6) (7) (8) Verso da Bblia de Jerusalm. Paris, Les ditions du Cerf, 1968. In Revue des sciences religieuses, Univ. de Strasbourg, 1963, pp. 113-249. Agradeo ao historiador Magno Vilela a generosidade com que me indicou esta e outras fontes bibliogrficas.

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XL

PADRE ANTNIO VIEIRA

haver tempo, em que tivessem rei portugus que os libertasse da sujeio de Castela, que eles chamavam cativeiro, para tornarem a ser reino separado, livre e soberano, como dantes eram, se que esta esperana encontrasse [=contrastasse] em alguma coisa a f de verdadeiros cristos, assim os judeus (se o forem verdadeiramente e de corao receberem a f de Cristo) sem ofensa nem repugnncia da dita f, podem esperar a restituio de sua Ptria e repblicas e que o instrumento e autor dela seja algum prncipe ou outra pessoa particular prpria ou estranha, que Deus escolheu para esta obra." (Repres. 2a., 393; grifos de Vieira). II. "Os futuros portentosos do mundo e de Portugal, de que h de tratar a nossa histria, muitos anos h que esto sonhados, como os de Fara, e escritos como os de Baltasar; mas no houve at agora nem Jos que interpretasse os sonhos, nem Daniel que construsse as escrituras; e isto o que eu comeo a fazer" (Livro Anteprimeiro, 41). III. "J Deus, Portugueses, nos livrou do cativeiro. J por merc de Deus triunfamos de Fara e do poder dos seus exrcitos. J os vimos, no uma mas muitas vezes, afogados no Mar Vermelho do seu prprio sangue; imos caminhando para a Terra da Promisso, e pode ser que estejamos j muito perto dela e do ltimo cumprimento das prometidas felicidades" ( 43). Comparao no identificao. E paralelismo supe diferena. Vieira no ignora nem omite a diversidade de significados que tem a palavra Messias nas tradies hebraica e crist. s ler o pargrafo 395 da segunda Representao para avaliar a nitidez com que o ru expe o contraste entre as duas crenas. Para os judeus o Messias ser um rei terreno e temporal que governar a Terra da Promisso em tempos vindouros de justia e paz. Para os cristos o Messias prometido pelos profetas j chegou: Jesus Cristo, que s voltar no dia do Juzo universal. As expectativas so, portanto, diversas. Mas no excludentes. A interpretao de Vieira conserva ortodoxamente a crena na volta final de Cristo, mas inclui a vigncia de um longo perodo de concrdia e felicidade, a que chama Quinto Imprio do Mundo, "tempo vacante", ou "tempo em meio" entre o Imprio Romano j findo e a hora do Apocalipse. provvel que nessa expectativa se encontrem traos de esperanas judaicas.sumrio prxima anterior sair

De Profecia e Inquisio XLI

Nesse tempo intermedirio os povos todos se convertero paz, sendo os judeus libertados dos seus vexames e cativeiros pelo retorno ptria: as dez tribos dispersas na poca da dominao assria sero finalmente reintegradas aos descendentes de Jud e formaro de novo um s povo. o que o ru sustenta em face dos inquisidores, escudando-se na Bblia, nas trovas do Bandarra e, temerariamente, em um dilogo que mantivera, em 1648, com um rabino marrano da sinagoga de Amsterd, Manasss-ben-Israel, o qual o convencera de que um segundo Messias terreno viria devolver aos judeus o seu lar e instituir um reinado universal, sem prejuzo da redeno espiritual que s se daria no fim dos sculos. A meno a esse encontro, que se teria dado em uma estalagem daquela cidade holandesa, consta de um depoimento da 17. sesso de interrogatrio a que Vieira foi submetido aos 29 de novembro de 1666 (Defesa, II, pp. 330-331). Nessa ltima passagem, em lugar de retas paralelas, Vieira traa linhas convergentes: o ponto de cruzamento a analogia entre Portugal e Israel, dois povos eleitos por Deus e voltados para um destino supranacional.

O mito entre a ideologia e a poesia "Este futuro sermos tudo" Fernando Pessoa A ortodoxia, isto , o dogma investido de poder, condenou Vieira retratao pblica e ao silncio. Um sculo mais tarde, sob a frula do despotismo ilustrado, mandou Pombal que se queimassem os livros em que se fizesse meno do Bandarra e das suas predies. A razo no poder tem pesadelos de vingana. Pouco depois, o panfletrio Jos Agostinho de Macedo, tristemente notrio por suas diatribes contra a linguagem de Cames (livre demais para o seu gosto rcade), escreveu um libelo contra "a ridcula seita dos sebastianistas". Em 1813 recolhido a um manicmio de Lisboa o "ltimo sebastianista" 9.(9) Ver os lcidos comentrios de Joel Serro em Do sebastianismo ao socialismo, Lisboa, Livros Horizonte, 1969, pp. 9-34.

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XLII PADRE ANTNIO VIEIRA

Condenada primeiro pelo Santo Ofcio e depois pelo zelo do racionalismo leigo, a esperana messinica repontaria, nas suas formas populares mais arcaicas, entre os sertanejos reunidos em fins do sculo XIX em torno de um profeta rstico, Antnio Conselheiro. A nova Repblica brasileira, temendo uma conspirao monrquica de largo espectro, massacrou o arraial de Canudos, e no faltaram a alguns ilustrados da poca prestantes racionalizaes para justificar a ao armada. Euclides da Cunha, lacerado entre o darwinismo social e a piedade fraterna, testemunhou n Os Sertes o desfecho sangrento daquele conflito, no de civilizaes, mas de barbries. O sebastianismo povoou o imaginrio da poesia de cordel nordestina. Mas no s, como bem sabem os estudiosos das letras portuguesas. H um momento em que mitos e utopias, tendo perdido a sua funo original, subsistem ora como reforo sentimental de certas ideologias polticas, ora como matria-prima da fantasia potica. Leituras sebastianistas da histria portuguesa junto com poemas mticos enchem as estantes do simbolismo e do saudosismo portugus desde fins do sculo XIX at o quarto decnio do sculo XX. Separar o joio do nacionalismo passadista do trigo da livre fico e da pura lrica tarefa que exige mo firme e delicada. O mito est presente na ideologia e na poesia, mas o seu modo de operar no o mesmo em ambas. Para os idelogos do nacionalismo agrrio, do pendo monrquico e do colonialismo em agonia, os mitos do Esperado eram instrumentos de persuaso, imagens trabalhadas para servirem a fins partidrios, figuras coladas ao interesse10.(10) Desde que Oliveira Martins, na Histria de Portugal (1879), julgou ver no sebastianismo um trao definidor do carter nacional, acendeu-se uma polmica que iria envolver mais de uma gerao de intelectuais "explicadores de Portugal". Se Joo Lcio de Azevedo, o bigrafo exemplar de Vieira, soube manter uma atitude compreensiva em face de um tema to complexo, no seu A Evoluo do Sebastianismo (1918), veio de Antnio Srgio a crtica mais demolidora s razes mesmas do mito no ensaio Uma interpretao no-romntica do sebastianismo, que de 1920. No campo ideolgico a luta no conheceu trgua.

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De Profecia e Inquisio XLIII

Situando-se em outra dimenso, uma obra mitopotica da altura de Mensagem de Fernando Pessoa est purificada de qualquer escria utilitria: o seu vo livre de peias e tende a alcanar valores universais. O mito sebastianista toca, nos versos de Mensagem, aquele "nada que tudo" de que fala o poeta. nada, porque nada pesa nem quer pesar nos lugares e nas engrenagens do poder. Mas tudo, pela amplitude que pode assumir como expresso de um desejo de felicidade que desconhece limites geogrficos ou ideolgicos. Fernando Pessoa, como se sabe, desqualificou todas as interpretaes reacionrias da obra, encarecendo a sua destinao supranacional: "A Humanidade outra realidade social, to forte como o indivduo, mais forte ainda que a Nao, porque mais definida que ela." E adiante o poeta-pensador formula um conceito mediador de nao como caminho entre o Indivduo e Humanidade: " atravs da fraternidade patritica, fcil de sentir a quem no seja degenerado, que gradualmente nos sublimamos, ou sublimaremos, at fraternidade com todos os homens"11 . Aspirando a uma "super-Nao futura", Fernando Pessoa transcende o lusitanismo peculiar ao discurso dos passadistas do qual foi sempre frontal adversrio. No mecanismo ideolgico acionado pelos integristas para fins prticos ou pedaggicos, aquilo que pode parecer superao das bases estreitas nacionais, sob a forma da misso universalista de Portugal, apenas generalizao abusiva, misto de esprito de cruzada com ambies coloniais requentadas. A ideologia no se liberta desse quadro esttico; antes, busca expandi-lo. Mas na atividade mitopotica livre, a superao se faz realmente dialtica, na medida em que transfigura o passado em vez de fix-lo em mscara ocultadora de interesses particulares. Tudo quanto se esboara no sonho do Quinto Imprio do sapateiro Bandarra, ou na imaginao poltico-messinica de Vieira, se sublimaria, sculos depois, na viso sem margens do Pessoa da Mensagem.(11) "Explicao de um livro", em Obras em prosa, Rio, Aguilar, p. 71. Texto escrito em 1935, poucos meses antes da morte do poeta.

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XLIV PADRE ANTNIO VIEIRA

Trata-se da prpria formao da utopia: o desejo recorrente de um tempo de justia que se abrir um dia aos olhos da humanidade inteira, enfim consciente da sua condiofraterna. Por enquanto s vemos brumas, imagem to cara ao mito sebastianista. Mas essa nvoa ainda no dissipada, essa antemanh grvida de expectativas, o obstculo necessrio, a matria-prima densa de experincia sofrida, a prova dos nove de que a utopia no capricho ou veleidade, mas lana razes em algum lugar visvel sobre a face deste nosso mundo terrenal: "Tudo disperso, nada inteiro. Portugal, hoje s nevoeiro... a Hora!"

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PROFECIA

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I Defesa do livro intitulado QUINTO IMPRIO, que a apologia do livro CLAVIS PROPHETARUM, e respostas das proposies censuradas pelos senhores inquisidores: dadas pelo Padre Antnio Vieira, estando recluso nos crceres do Santo Ofcio de Coimbra

endo ontem chamado mesa, me foi dito que estavam nela os senhores inquisidores para sentenciarem a minha causa, e que antes disso queriam ouvir de mim tudo o que tivesse que dizer ou alegar para bem dela; e porque a ltima doena (de que estou mal convalescido) me no deixou com foras nem alento para poder falar em pblico, pedi licena para falar por papel, que me foi concedida. Protesto pois do modo que me possvel, diante desses senhores, que antes de se me dar a notcia que as minhas proposies estavam censuradas, e as censuras aprovadas por sua santidade, fazia eu teno de propor em presena de vossas senhorias todos os pontos ou questes delas, dando os fundamentos das opinies que segui, ou determinava seguir, respondendo aos das contraditas; mas depois que me foi dada a notcia da aprovao e autoridade do sumo pontfice, que argumento a que a minha f, resignao e obedincia, no sabe outra soluo seno a da venerao, obsquio e silncio, sem que para isso

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PADRE ANTNIO VIEIRA

seja necessrio cativar ou fazer fora ao entendimento, que sempre est e esteve sujeito aos menores acenos da Igreja, e de qualquer de seus ministros, havendo por esta via cessado o escrpulo que s me dilatava; e tendo eu aceitado, sem mais demora da razo, ou explicao das ditas proposies, a todas as censuras delas, e suas dependncias, nenhuma outra coisa se me oferece, que possa fazer ou dizer importante ao bem da minha causa, mais que o represent-la a vossas senhorias em um menor e mais abreviado processo, no qual a possa compreender toda junta de uma vez, dividindo-a para isso em partes certas e determinadas, onde se veja brevemente o dilatado, distintamente o confuso, e claramente o escuro e mal declarado por mim: e pois no posso fazer a dita representao com razes vivas (como muito desejava) falaro por mim estas poucas regras, no como nova alegao, pois no digo nelas coisa de novo, mas como um breve memorial deste processo, repartido, para maior facilidade, clareza, e distino, nas oito ponderaes seguintes: PONDERAO 1. a ACERCA DO ASSUNTO DO LIVRO O argumento ou assunto do livro que quis h muitos anos escrever, e do qual tinha totalmente desistido, depois que me apliquei s misses, era o Imprio Consumado de Cristo debaixo do nome de Quinto Imprio: digo -- Imprio -- conforme o cmputo dos imprios de Daniel, entendendo-se por imprio consumado de Cristo, no algum imprio que Cristo havia de ter nos tempos futuros, seno um novo e maior estado do mesmo imprio e reino que Cristo hoje tem, e teve sempre depois que veio ao mundo, que vem a ser por outros termos, um novo e perfeito estado da Igreja Catlica, que o nico e verdadeiro reino de Cristo. As partes, circunstncias, e felicidades de que se compe esse novo e mais perfeito imprio ou estado, eram a extirpao de todas as seitas de infiis, a converso de todas as gentes, a reforma da cristandade, e a paz geral entre os prncipes, a mais abundante graa do Cu, com que salvariam pela maior parte os homens, e se encheriasumrioprxima anteriorsair

De Profecia e Inquisio

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o nmero dos predestinados, sendo os instrumentos imediatos da dita converso um sumo pontfice santssimo, e alguns vares apostlicos de singular esprito, que, divididos por todas as terras de infiis, as reduziriam e sujeitariam Igreja, e um imperador zelosssimo da propagao da f, o qual empregaria toda a sua autoridade em servio do dito pontfice, e favor dos pregadores, segurando-lhes o passo, e defendendo-os onde necessrio fosse com as suas armas, e sujeitando com elas a todos os rebeldes, principalmente o imprio romano, com que o faria senhor do mundo. At aqui o assunto em geral, o qual de nenhum modo invento meu, seno promessa e esperana, e exposio de muitos santos antigos e modernos, e de muitos comentadores das escrituras, e de muitas pessoas de esprito proftico, geralmente aprovado e recebido, de que porei somente os nomes: S. Justino, e S. Gaudncio, S. Joo Crisstimo, S. Hilrio, Osrio, Uberto, Pannio, Eclio, Herculano, Pedro Bolorengo, Serafino de Berma, Genebrardo Taio, Pedro Galatino, Salazar, Serelego, Arrias Montano, Bandale, Joaquim Abade, Aperilas, S. Metdio, Tefilo Eremita, Malaquias, S. Francisco de Paula, S. Brzida, S. Amatildes, S. Isidoro, S. fr. Gil, o Beato Amadeu, S. ngelo mrtir, o irmo Mem Rodrigues da Companhia de Jesus, e outros muitos catlicos pios, e, exceto o ltimo, todos doutos. E porque os sobreditos autores que falam no imperador que Deus h de dar sua Igreja, para as execues temporais desta espiritual conquista, no declaram absolutamente, que pessoa particular haja de ser, acrescentava eu, ou pretendia acrescentar, posto que digam muitas propriedades e circunstncias, de que se pode conjecturar o argumento geral dos ditos autores acomodao e explicao do reino, para que tinha Deus guardado aquela grande empresa e imprio, interpretando em honra da nao, que seria rei portugus, e do reino de Portugal, fundando este pensamento principalmente nas palavras de Cristo a El-Rei D. Afonso Henriques -- volo in te, et in semine tuo imperium mihi stabilire.sumrioprxima anterior

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PADRE ANTNIO VIEIRA

A este fim (o que muito se deve notar) determinava eu seguir ou supor duas opinies necessrias ao dito intento, ambas comumente recebidas dos telogos; a primeira, que o imprio de Cristo no s espiritual, seno tambm temporal, cada um a respeito de seus vassalos, sendo este ttulo ainda mais prprio no prncipe, que o fosse de todo o mundo, em suposio das quais duas opinies, aplicando o sobredito imprio a um prncipe descendente Del-Rei D. Afonso Henriques, se vinha a cumprir e verificar nele inteiramente toda a profecia das palavras e promessas de Deus, pois no tal prncipe estabelecia Cristo um imprio, o qual juntamente seria imprio de Cristo, e imprio dum descendente do mesmo D. Afonso Henriques, que toda a energia -- in te, et in semine tua -- em seguimento desta aplicao, e descendo a individuar a pessoa deste prncipe, determinava eu chamar pretenso do dito imprio todos os que descendem Del-Rei D. Afonso Henriques, e principalmente por serem a sua dcima sexta gerao, ou descendentes dela, tinham conhecido direito promessa de Cristo, como so ao presente o imperador da Alemanha, por filho da imperatriz D. Maria: El-Rei de Frana por filho da rainha D. Ana, ambas irms de Filipe IV de Castela, ou seu filho pela prpria descendncia. Mas porque o meu intento total era concluir que este prncipe no s havia de ser descendente Del-Rei D. Afonso Henriques, seno tambm rei portugus, e de Portugal, assentado neste princpio segundo, chamava da mesma maneira a pretenso aos reis portugueses, que parece podiam ter maior direito a ela, pondo em primeiro lugar a opinio comum Del-Rei D. Sebastio, e todos os fundamentos que tinha, e no segundo a El-Rei D. Joo IV, pela estimao tambm comum com que na restaurao do reino foi reputado pelo verdadeiro encoberto, satisfazendo ao fortssimo argumento da sua morte, com exemplos e razes que mandei rainha nossa senhora no papel deste assunto, por ser o que naquela ocasio podia servir de alvio de sua majestade, sendo porm certo que o meu intento no era resolver por ltimo, que o Senhor Rei D. Joo fosse ou houvesse de ser o prometido imperador: assim o puderam testemunhar algumas

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pessoas dignas de toda a f, a quem foi fora comunicar o meu segredo e o meu pensamento, os quais sabem que verdade era dedicar eu este livro a El-Rei D. Afonso VI, que Deus guarde, e concluir por remate de tudo, haver sua majestade ser o futuro imperador, em quem tivesse princpio o imprio prometido ao rei do mesmo nome, provando esta final resoluo com a clusula do mesmo juramento do rei, e promessa de Cristo -- usque ad decimam sextam generationem in qua atenuabitur proles, et in ipsa sic atenuata respiciam, et videbo -- nas quais palavras expendia ou havia de expender, que o relativo -- in ipsa -- no se referia dcima sexta gerao, que foi El-Rei D. Joo IV, seno prole da dcima sexta gerao, que El-Rei D. Afonso. Este , senhores, em geral todo o argumento daquele assunto, esta em particular toda a aplicao, ou a acomodao dele, em que peo se ponderem quatro motivos, que no pouco demonstram a sinceridade e pureza da minha teno: 1. Quanto ao assunto em geral, se me no deve imputar culpa, pelo ter por catlico e pio, e sem escrpulo de perigosa doutrina, pois tem por si a autoridade e revelaes de tantos santos, e de tantos e to graves autores de nossos tempos, cujos livros, aprovados pelo Santo Ofcio, correm sem reparo algum em toda a cristandade. 2. Quanto aplicao do dito assunto, e imperador dele, o rei de Portugal, que Rusticano (ita), um dos autores acima alegados, religioso de S. Francisco, em um livro que imprimiu em Veneza, aprovado pelo Santo Ofcio de sua santidade, com ttulo de recopilao das profecias modernas, aplica o mesmo imprio a el-rei de Frana, o qual rei se v estampado em muitas partes do mesmo livro: e pois coisa lcita e aprovada pelo Santo Ofcio, e maiores ministros da Igreja, o ser a mesma aplicao a um prncipe da cristandade, porque me no pareceria a mim tambm lcito aplic-lo a outro, principalmente no havendo nenhum no mundo que tenha a seu favor um to notvel e autntico testemunho, como o do juramento Del-Rei D. Afonso Henriques? 3. Quanto ao dito assunto, e aplicao dele, se colhe manifestamente qual foi a teno que tive em seguir a opiniosumrioprxima anterior

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PADRE ANTNIO VIEIRA

comunssima do mesmo temporal de Cristo por partes, se eu supusesse a opinio contrria, que admite em Cristo o imprio espiritual, quando viesse a dizer sobre a clusula -- inte -- mihi -- que o mesmo imprio de Cristo, e mais del-rei de Portugal, papa ou cabea da Igreja; pois o imprio espiritual de Cristo no tem, nem pode ter outra cabea seno o papa: sendo porm esta razo to natural e manifesta, e sendo outrossim a eleio da dita opinio do imprio temporal de Cristo, forosamente necessria para o dito assunto, bem se deixa ver quo alheio do meu sentir o fundamento sobre que me foi argida tanta mquina de suspeitas e erros, fundados todos na opinio do dito imprio temporal de Cristo, e quo impossvel coisa parece, que a disposio de todo este meu fundamento, assim como estava truncada e imaginada, se houvesse de penetrar ou perceber antes de se declarar, donde nasceu interpretar-se o ttulo de Quinto Imprio, como so tambm todas as conseqncias que dele se inferem. 4. Que o dito chamado livro, verdadeiramente de nenhum modo , nem foi, nem se pode chamar livro, seno pensamento de livro, e pensamento retratado, e totalmente deixado, por haver mais de onze anos que tinha desistido do sobredito pensamento: nem faz contra esta verdade, bem provada com o retiro do Maranho, e com me haver aplicado converso das gentes, o intento que tinha de dedicar o dito livro a sua majestade, porque este pensamento era ex necessitate, et preter intentionem, depois que pelos cargos que se me deram no Santo Ofcio fui obrigado a explicar o dito assunto, e o Quinto Imprio, e questes dele, para mostrar os fundamentos e motivos por que o tivera por provvel e s doutrina; e em disposio de me ser foroso gastar o tempo neste estudo, fao conta de o no perder, e dedicar o dito livro a el-rei, no caso em que depois de representar nesta mesa todos os pontos principais, mas no reprovassem em coisa essencial que desfizesse o dito assunto. Assim que, quanto minha teno, nem por pensamento me passara fazer o dito livro, e s tratava de alimpar e imprimir os meus sermes, como o padre geral me tinha mandado.

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PONDERAO 2. ACERCA DOS PAPIS Os papis de que se tiraram as culpas de que fui argido so quatro: o primeiro, o papel do Maranho, no qual se deve ponderar que todas as culpas que dele se formam se reduzem a um s ponto, que foi o ter o Bandarra por profeta, na qual suposio, que muito que eu provasse o que ele expressamente diz, ou o que das suas trovas por boa conseqncia se segue. Os fundamentos por que tive para mim que fora profeta, e o pretendi privadamente provar naquele papel, so os que presentei na mesa expendidos em escrituras, autoridades e razes especulativas e prticas, em que se seguia a opinio geral, do que por palavras e escritos impressos assim o julgam e pregoavam, entendendo da mesma maneira, que assim como se pode provar que tal ao foi milagre, e que tal morte foi martrio, assim se pode provar que tal predio ou predies foram profecias, e assim como se pode inferir que o que faz tal ao milagroso, e o que padece tal morte mrtir, assim se podia inferir, que o que disse tais predies era profeta; tendo para mim, finalmente, que os papis ou discursos em que as sobreditas coisas se provam, as podem provar e comunicar seus autores privadamente, sem violar a proibio, ou incorrer penas dos que publicam ou divulgam semelhantes tratados; e em prprios termos, o que eu s fiz, remetendo o dito papel a uma rainha, pelo modo e meio mais secreto que podia ser, que foi por mo de seu confessor: e se ele ou outrem o divulgou, parece se me no deve imputar essa culpa. O segundo papel o que enunciei ao conselho geral, pedindo restituio de tempo em que havia estado doente, e mudana de lugar por alguns dias, para convalescer da dita enfermidade, como ordenavam os mdicos do Santo Ofcio, sendo a mesma petio e submisso, com que nela to miudamente fiz de mim atos mui formais da mesma obedincia, reconhecimento, e respeito, e no podendo haver direito algum que presuma que quem pede favor e graa queira ofender ao juiz que o h de sentenciar ou absolver, sendo os juzessumrioprxima anterior

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10 PADRE ANTNIO VIEIRA

principalmente em sentena de que se no pode apelar; assim que, se no sobredito papel intervieram alguns erros ou defeitos, foi por no ser feito por letra minha, ou procurador versado (o que eu por esta mesma razo pedi) nos estilos do Santo Ofcio, e por ser eu totalmente falto de semelhantes notcias, e por no serem exatas as que procurei do modo que me era possvel, os quais defeitos e erros, finalmente, se purificaram no mesmo papel, com dizer que nas minhas propostas ou peties, pedia ou pretendia somente o que me fosse lcito, protestando e pedindo perdo de tudo, e de qualquer coisa em que pelas sobreditas causas houvesse errado, ou faltado ao que devia. O terceiro papel foram os cadernos de apontamentos escritos pela razo que fica dita nesta mesa, para mostrar como obedeci e trabalhei, os quais eu de nenhum modo oferecerei em resposta ou defesa das proposies, ou proposio alguma, antes sendo-me ordenado que as deixasse, contra minha vontade e teno o fiz, em pretexto (ita) de todo o sobredito, e de que eu no afirmava, nem sabia, o que nos ditos papis estava escrito, porque no tivera tempo para os ler, e quando os escrevia, ainda no estava resoluto no que havia de dizer, ou de seguir, sendo somente lanados a pedaos naqueles cadernos, o que estudava ou me ocorria informe ou irresolutamente at a ltima eleio, assim como fazem todos os escritores de livros, os quais depois de toda esta matria estudada e junta, e depois de mui ponderadas e examinadas as dificuldades, se resolvem no que absolutamente ho de dizer, e conforme a dita resoluo, ou moderam, ou ampliam, ou mudam, prosseguem, ou tiram, ou acrescentam, e muitas vezes riscam e retratam as mesmas concluses que determinavam seguir, no havendo coisa alguma to exatamente escrita no primeiro correr da pena, que no tenha sempre que emendar; e tudo isto o que havia e determinava fazer nos sobreditos cadernos, nos quais, como bem se v, no h parte ou discurso algum que esteja concludo, havendo muitos riscados, e outros prosseguidos por diferentes modos e razes, para que depois se elegesse o mais conveniente. Assim que, nem os ditos discursos, nem as proposies, ou palavras deles, ou conseqncias algumas, se me devem imputar por

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De Profecia e Inquisio 11

culpas, por serem todas duvidosas, e indeterminadamente apontadas, e no absolutamente escritas, nem proferidas, antes da sinceridade e confiana com que pus na mo dos ministros do Santo Ofcio todos os ditos papis, sem emendar, nem ainda rever coisa alguma deles, se mostra claramente a pureza da f, e verdade da teno com que foram escritos, e entregues sem temor nem imaginao de receio, porque pudesse vir ao pensamento o que nunca tinha passado pelo meu. O quarto e ltimo papel o que fiz depois da minha recluso, de cujo princpio e fim largamente consta que nenhuma das coisas que nele escrevi foi a fim de as defender ou afirmar, seno de referir e representar a vossas senhorias os motivos e fundamentos que tivera para reputar por provvel o que tinha escrito, ou determinava dizer ou escrever; e que haver-me enganado, como confessava, nas matrias das proposies censuradas, fora sem m teno nem culpa. Nos sermes impressos em Castela no falo, porque absolutamente aqueles papis no so meus, seno de quem os quis imprimir debaixo do meu nome, para me afrontar, ou para ganhar dinheiro. PONDERAO 3. ACERCA DAS PROPOSIES Antes de propor o que devia seguir, se pon