jesuítas e inquisição

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A Companhia de Jesus e a Inquisio: afectos e desafectos entre duas instituies influentes (Sculos XVI-XVII)

Jos Eduardo Franco

Perspectivas desfocadas Os produtores da imagem mtica da Companhia de Jesus souberam utilizar de forma frequente o tema candente e sempre sugestivo do Santo Ofcio e da escola de medo que este tribunal representa cultural e socialmente, para implicar os Jesutas no comprometimento com esta instituio judicial e, por esta via, denegrir e sublinhar o demrito do papel da Ordem de Loyola em Portugal. Os antijesutas, de uma forma linear, procuraram acentuar a proximidade e a cooperao estreita entre as duas instituies. Algumas vises mais extremas figuram a Companhia de Jesus como o crebro-motor do refinamento da mquina de medo em que se teria tornado a Inquisio moderna, imputando aos Jesutas a responsabilidade de terem sido os mentores das mais desumanas definies regimentais deste tribunal. Especialmente pela influncia destes Padres Negros, a Inquisio teria estendido a sua teia de medo e de opresso sobre todo o reino e imprio ultramarino, fazendo definhar em lume brando, isto , paulatinamente, todas a foras vitais e criativas da nao portuguesa. Facilmente se encontra, como tema recorrente da literatura antijesuta, os Jesutas e a Inquisio colocados lado a lado como predadores vorazes da glria de Portugal (v.g. Pombal, Antero de Quental, Miguel Bombarda) 1. Do lado contrrio, a historiografia filojesutica procurava minimizar ou contraditar esta ligao ntima entre a Ordem inaciana e o Tribunal do Santo Ofcio, vincando a distino de natureza e objectivos das duas instituies e destacando os desacordos e confrontos entre ambas. Para contraminar de forma apologtica precisamente a viso univalente dada pelos antijesutas sobre a relao entre estas duas instituies eclesiais, os historiadores jesutas e filojesutas vo valorizar sobretudo o questionamento, as crispaes e afrontamentosPodemos referir aqui o ttulo sugestivo de um libelo antijesutico publicado sob anonimato autoral no perodo do liberalismo portugus que evidencia esta relao ntima ou e mesmo de identificao/confuso entre Inquisio e Jesutas: Os mystrios da religio: histria completa dos crimes da Inquisio e os escandalos dos conventos: interessante descripo sobre todos os horrorosos crimes organisados pelos tribunais da Companhia de Jesus, 3 ed. augment., Lisboa, s.d. Esta identificao da concertao estreita entre Jesutas e Inquisio, como analisaremos a seu tempo, ser confeccionada pela literatura antijesutica produzida no consulado do Marqus de Pombal, tornando-se depois, por sua influncia, um tema recorrente do antijesuitismo posterior. Na elaborao pombalina do mito jesutico, os Padres da Companhia de Jesus sero globalmente considerados os responsveis pelas metamorfoses perversas que o Santo Ofcio sofreu em termos de estilos de actuao e de legislao penal que permitiram que este tribunal tenha atingido cmulos de injustia e de desumanidade extrema. Esta associao institucional de sobremaneira exagerada para fins polmicos, tanto mais que surpreendentemente inquinada ideologicamente na avaliao e fundamentao histrica em que se funda, como bem infere Sanjay Subrahmanyam. Tanto mais que, como se sabe, a Inquisio acabou por ser prevalecentemente dirigida por membros da Ordem dos Pregadores, que em vrios momentos se antagonizaram com os Jesutas utilizando como arma este tribunal que controlavam para combat-los.1

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protagonizados por alguns Padres da Companhia contra os estilos e objectivos deste tribunal eclesistico-rgio. Os principais historiadores da Companhia de Jesus que se dedicaram, no sculo XX, feitura da histria do papel e da aco dos Jesutas em Portugal e nos seus potentados ultramarinos, luz de um programa revisionista de tom apologtico, procuraram desconstruir a imagem antijesutica de conivncia e concertao perfeita entre esta ordem religiosa e o Santo Ofcio. Podemos aludir algumas passagens interessantes. O grande historiador da Companhia de Jesus na assistncia do Brasil, Serafim Leite, sublinhou que nunca houve relaes de amizade entre os Jesutas e os quadros da Inquisio, mas apenas mtuo respeito2. E esclarece a seguir que se algum jesuta aceitou cargo nela, alis secundrio, foi sempre por imposio de pessoas estranhas Companhia, a quem no era fcil recusar 3. Isto em sintonia com Francisco Rodrigues que tinha enfatizado as reticncias e crispaes dos seus antigos confrades jesutas na relao com este tribunal no sculo XVII 4. Seguindo o mesmo desiderato de reabilitao da imagem da Companhia, na dcada de 30 do sculo XX, Henrique Heras, fundador e director do Instituto Indiano de Pesquisa Histrica do Colgio de So Francisco Xavier em Bombaim e sciocorrespondente do Comit Internacional de Cincias Histricas, procurou descolar os Jesutas da Inquisio, afirmando que os seus antigos confrades nunca tiveram nada a ver com a Inquisio de Goa semelhana do que teria acontecido, como alega, na metrpole portuguesa e em Espanha: Os Jesutas no tiveram nada a ver com a Inquisio no s em Goa, mas tambm em Portugal e em Espanha. Os Padres Dominicanos estiveram sempre empenhados na direco deste tribunal 5. E desvaloriza ao mximo as colaboraes dos jesutas com o tribunal, classificando-as de irrelevantes no panorama da hierarquia do aparelho inquisitorial, destacando a resistncia de muitos em aceitar desempenhar cargos neste organismo judicial 6. Ora qualquer uma destas perspectivas elencadas (a antijesutica e a filojesutica) padecem de uma unilateriladade enfermada pelos fins apologtico-ideolgicos que condicionam a evidenciao unvoca de um dos lados da realidade. Por isso, ambas carecem de equilbrio analtico. Com efeito, a histria da relao entre a Companhia de Jesus e a Inquisio est longe de ser uma histria linear. No faltaram simpatias em relao Inquisio e sua funo reguladora da ortodoxia da parte de religiosos da Companhia de Jesus, nem deixou de haver cooperao e participao efectiva de jesutas nos quadros deste tribunal, quer na metrpole, quer nas colnias. Esta constatao histrica, cuja a evidncia dos seus fundamentos no pode ser escamoteada, no deve ofuscar a verificao e reconhecimento do papel de outros jesutas que, em tempos diferentes ou ao mesmo tempo, se tenham destacado na crtica Inquisio, remando

Serafim LEITE, s.j., Histria da Companhia de Jesus na Assistncia do Brasil, Tomo IV, Lisboa / Rio de Janeiro, 1938-1950, p. 9. 3 Idem, Ibidem, p. 10. 4 Cf. Francisco RODRIGUES, s.j., Histria da Companhia de Jesus na Assistncia de Portugal, 8 Vols., Porto, 19311950. , todavia, justo lembrar que embora Francisco Rodrigues tenha posto o acento tnico na evidenciao estratgica dos conflitos da sua ordem com a Inquisio, no deixou de registar pormenorizadamente, na sua obra historiogrfica, o empenho de Incio de Loyola em atender ao pedido do rei de Portugal para que usasse da sua influncia junto do Pontfice Romano em ordem a desbloquear processo de aprovao definitiva do Tribunal do Santo Ofcio portugus. Esta diligncia do fundador dos Jesutas sobretudo explicada como forma de manifestar ao rei de Portugal a sua gratido pelo inestimvel patrocnio real dado Companhia de Jesus. Idem, Ibidem, Vol. II, p. 598 e ss. 5 Cf. Henry HERAS, s.j., The conversion policy of the Jesuits in India, Bombay, 1933, p. 62. 6 Cf. Idem, Ibidem, pp. 62-63. Nesta mesma esteira apologtica em prol da reabilitao da imagem da Companhia de Jesus ver o Baro de STUDART, Jesutas e jesuitismo, 2 edio anotada, Recife, 1946. 2 Jos Eduardo Franco

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Actas do Congresso Internacional Atlntico de Antigo Regime: poderes e sociedades

contra a mar maioritria das opinies, os quais, de forma verdadeiramente pioneira, encetaram o afrontamento e questionamento desta instituio judicial 7. Foi, alis, no mbito dos antagonismos e confrontaes entre a Inquisio e a Companhia de Jesus sobre diversas questes, que do lado deste tribunal sero produzidas, atravs de pareceres, relatrios judiciais e apologias, imagens altamente vexantes da dignidade e fama desta Ordem. Da justificar, dada a sua relevncia, uma anlise destacada num captulo especfico dos antecedentes do mito dos Jesutas em Portugal. O problema dos cristos-novos: avanos e recuos Um primeiro aspecto relevante marcado pela polmica e falta de consenso dentro da Companhia a ter em conta na anlise da problemtica jesutico-inquisitorial foi a questo dos cristos-novos. Est documentado o esprito de abertura e tolerncia de Incio de Loyola e dos seus primeiros sucessores no generalato da sua Ordem perante os descendentes do povo judeu, assim como a sua crtica xenofobia dominante de que estes eram vtimas no quadro das sociedades catlicas. Regista-se, com efeito, uma atitude muito favorvel da parte deste em relao aos convertidos ao cristianismo de sangue hebreu, e at se verifica uma significativa resistncia corrente anti-semita - formada essencialmente por jesutas espanhis e portugueses que emerge no seio da Companhia de Jesus , a qual fez oposio poltica de admisso de cristos-novos na Ordem. Esta corrente chegou mesmo a constituir uma espcie de grupo de presso junto das esferas superiores no sentido de vedar o acesso profisso religiosa dos candidatos provenientes dos grupos rcicos judeu e mouro. Chegaram at ns testemunhos que evocam a simpatia e at um certo carinho que Incio de Loyola nutria especialmente pelos Judeus. O fundador dos Jesutas chegou mesmo a recordar aos seus confrades que exprimiam sentimentos anti-semitas que Jesus Cristo e a Virgem Maria tinham sido tambm judeus, pelo que era honra e no oprbrio ser descendente desta raa, como testemunha Pedro Ribadeneira. Este jesuta e secretrio do Cria Geral da Companhia de Jesus advogava, contra os adversrios desta opinio, que era contra o esprito da Ordem e do seu fundador barrar a entrada de candidatos de sangue judeu. Tambm so conhecidos algumas das iniciativas pastorais e scio-caritativas do Padre Incio em Roma que visaram de modo especial algumas franjas empobrecidas da comunidade judaica da cidade papal 8. Uma das grandes figuras da nascente Companhia de Jesus que tinha sangue judeu, foi caso do segundo Superior Geral Diogo Laynez 9. A sua ascendncia hebraica referida na Histoire des Jsuites publicada em 1614 e em 1622. Esta referncia explicita no deixou de provocar reaces da parte de um grupo de jesutas da provncia de Toledo, que exigiram ao autor que numa segunda edio fosse retirada da biografia do geral essa mancha considerada ignominiosa 10. Mas depois de mais de meio sculo de presso por parte da impertinente corrente antisemita espanhola marcada pelo obsidiante mito da limpeza de sangue, que se tinha tornado numaPara uma interessante anlise, que nos d o status quaestionis desta problemtica, ver Dauril ALDEN, op. cit., p. 670 e ss. Ver tambm a obra clssica de J. Lcio d AZEVEDO, Os Jesutas e a Inquisio em conflito no sculo XVII, Lisboa, 1916. 8 Cf. Las razones que se me ofrescen para no Hazer novedad en el admitir gente en la Compaa (1593), Patri Petri de Ribadeneira, op. cit., T. II, p. 375 e ss. 9 Sobre a ascendncia do sucessor de Loyola ver J. H. FICHTER, James Laynez, jesuit, Saint Louis, 1944, pp. 3 e ss. 10 Esta Histoire des Jsuites foi comeada pelo Padre Orlandini e, depois da morte deste jesuta, a sua concluso foi confiada a um professor do Colgio Romano, o jesuta Paolo Sacchini, que recusou o veemente pedido depurador dos seus confrades espanhis, recordando o apreo dos jesutas fundadores pelos judeus. Os dois primeiros volumes desta obra historiogrfica apareceram em Antuerpia primeiro em 1614 e depois em 1622. Ver Lainii monumenta, op. cit., Tomus VIII, p. 831; e cf. Feliciano CERECIDA, Diego Laynez en la Europa y la religin de su tiempo (1512-1565), Madrid, 1943, pp. 18 e ss. A companhia de Jesus e a Inquisio 37

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verdadeira psicose nacional que hipertrofiava a sociedade espanhola 11 e tambm portuguesa 12, a Companhia de Jesus acabou por ceder; semelhana do que j tinham feito antes outras ordens religiosas. Contra o esprito dos fundadores da Companhia que repudiavam o anti-semitismo e que chegaram a qualificar o culto espanhol da pureza de sangue um erro nacional 13, a V Congregao Geral da Companhia de Jesus aprovou em 1593 a interdio dos descendentes dos judeus e mouros poderem ser recebidos na Ordem 14. Este rgo legislativo mximo dos Jesutas cedia, assim, s fortes presses da corrente anti-semita15 que vinha ganhando fora em particular nas provncias de Espanha e de Portugal 16. De qualquer modo, este impedimento absoluto durou poucos anos, pois em 1608, um ano antes da beatificao de Incio de Loyola pelo Papa Paulo V (a 27 de Julho de 1609), o decreto 28 da VI Congregao Geral entreabria novamente a porta aos cristos-novos. Este novo decreto, apesar de no abolir expressamente o decreto da Congregao Geral anterior que exclua totalmente os mouros e judeus por serem considerados raas infames, dava aSobre as consequncias desta mentalidade xenfoba ver Antonio Dominguez ORTIZ; Bernard VINCENT, Historia de los Moriscos: Vida y tragedia de una minora, Madrid, 1993. 12 Desde a Idade Mdia que pululavam em Portugal literatura apologtica contra o judasmo. Antes do final do sculo XVI circularam algumas obras de forte pendor antijudaico, em que se destaca o Tratado teolgico em que se prova a verdade da Religio de Jesus Cristo, a falsidade da Lei dos Judeus e a vinda do Messias, escrita no tempo de D. Dinis. No reinado de D. Afonso IV aparece o Sepeculum Hebraeorum da autoria de Frei Joo de Alcobaa. J na passagem para o sculo XV divulga-se o Livro da Corte Imperial, e depois no reinado de D. Joo II, o livro do mdico Antnio, judeu converso, chamado Ajuda da F. No sculo XVI, a polemizao em torno dos judeus encontrou eco na Ropica Pnefma do humanista Joo de Barros, editada em 1532 e no Espelho de Cristos-novos e convertidos de Francisco Machado, monge alcobacense, impresso em 1567, e ainda no Dilogo Evanglico de Joo de Barros de cerca de 1543, obras que se situam na linha de uma tentativa de persuaso racional para conduzir converso dos judeus. E ainda h a registar, na segunda metade do sculo XVI outras obras inseridas na mesma tradio apologtica que permaneceram manuscritas, como a que foi escrita por Diogo de S, Inquisio e Segredos de F e o Tratado dos Estados Eclesisticos (cf. Ana Cristina Costa GOMES, Diogo de S e o tratado dos estados eclesisticos e seculares (1557): elementos para uma edio crtica, Tese de mestrado em Histria Moderna apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2000). No sculo seguinte vo aparecer obras anti-semitas de tom menos pacfico, incitadoras de animosidade anti-judaica. Com a subida ao trono de Filipe IV de Castela e III de Portugal em 1621, alimentaram-se novas expectativas de atenuao da vigilncia e represso inquisitorial sobre os cristos-novos. Com efeito, como j tinha acontecido em 1605, em que lhes foi concedido um perdo geral por parte de Filipe III de Espanha, em 1627 assiste-se concesso de uma amnistia semelhante. precisamente na dcada de 20 que se regista uma nova vaga de textos antijudaicos, em que cumpre destacar o Dilogo entre discpulo e mestre catequizante de Joo Baptista de Este (1621), o Breve discurso contra a hertica perfdia do judasmo de Vicente da Costa Matos (1622) e a Demonstrao evanglica y destierro de ignorncias judaicas da autoria de Frei Lus da Apresentao (1631). Francisco Bethencourt destaca como um dos aspectos mais significativos destas obras polmicas o facto de no tratarem directamente do problemas dos cristos-novos, como se a polmica anti-judaica estivesse congelada no tempo. Cf. Francisco BETHENCOURT, Rejeies e polmicas, in Carlos Moreira AZEVEDO (dir.), Histria Religiosa de Portugal cit., p. 63; e ver Maria Idalina Resina RODRIGUES, Literatura e anti-semitismo (sculos XVI-XVII), Separata da revista Brotria (Julho/Agosto/Setembro), Lisboa, 1979. 13 Cf. Henry KAMEN, Inquisition and society in Spain in the sixteenth and seventeenth centuries, London, 1985, pp. 125-126. 14 No ano seguinte um grupo de 27 jesutas, dos quais 25 eram de origem hebraica, solicitaram ao Geral da sua Ordem e ao Papa a reviso destas orientaes xenfobas, pedindo mesmo a reviso das prprias Constituies da Companhia. Ver sobre o assunto a conferncia de I. S. RVAH, Les origines juives de quelques jsuites hispanoportugais du XVIe sicle, in IV Congrs des Hispanistes Franais, Paris, 1968, pp. 87-96. 15 Esta deciso tomada pela mais alta esfera legislativa da Companhia de Jesus para vedar o acesso aos seu seio de cristos-novos j tinha sido precedida de recomendaes dos padres gerais Everardo Mercuriano e Cludio Aquaviva, em 1577, 1574 e 1592, que exortavam os superiores provinciais a no admitirem candidatos dos grupos tnicos judeu e mouro, em razo da impopularidade que eles padeciam e da consequente desedificao que tal representava para a imagem da Ordem de Incio de Loyola. Atendiam neste sentido assim presso exercida pela corrente interna que almejava esta interdio e por figuras ligadas aos sectores inquisitoriais, entre as quais o prprio Cardeal D. Henrique. Cf. Francisco RODRIGUES, s.j., Histria da Companhia de Jesus cit., Tomo II, Vol. I, p. 347. 16 O antisemtismo atingiu alguns extremos no seio da Ordem de Santo Incio, de tal modo que no final do sculo XVI alguns religiosos de sangue judeus foram ameaados e as suas obras queimadas. Cf. Antonio ASTRAIN, s.j., op. cit., Tomo III, Vol. I, pp. 593, 663, 664. 4 Jos Eduardo Franco11

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possibilidade de serem consideradas excepes: os que pertencessem a famlias tidas por honestas e que gozassem de boa reputao; com a indicao de que o processo de recrutamento e averiguao das provenincias dos candidatos fosse conduzido com prudncia e rigor 17. Mas mantinha que no se deveriam receber candidaturas de linhagem judaica at 5 gerao. De qualquer modo, esta interdio foi-se atenuando com o passar do tempo e do barulho em torno desta questo. Numa apreciao geral, no obstante este interldio interditivo, a Companhia de Jesus foi das ordens mais abertas recepo no seu seio de candidatos cristos-novos, o que marcou para o mrito e para a crtica a sua histria. Apesar de terem existido na Provncia Portuguesa da Companhia de Jesus importantes opositores admisso de cristos-novos, como foi o caso de Simo Rodrigues 18, no deixaram entrar muitos candidatos nomeadamente de sangue judeu nesta Ordem 19. Esta falta de consenso entre os Padres da Companhia de Jesus em relao segregao dos indivduos ditos de sangue deicida e em relao prpria viso da perseguio inquisitorial aos membros da comunidade crist-nova, est bem patente em alguns textos de inspirao jesutica consignados para exortar criticamente o Santo Ofcio durante a vigncia do regime filipino em Portugal. Um deles foi Um papel no qual se continham razes e alegaes de direito, porque se tratava de provar que convinha a gente de nao misturar-se com cristos-velhos em Hespanha por via de casamento, escrito no dia 13 de Agosto de 1615 por Diogo Sanches de Vargas. O autor foi intimado a comparecer no Tribunal da Inquisio de Lisboa para responder pelo contedo daquele papel. Este manuscrito intitulado Advertncia a la catholica magestad del Rey Dom Fhilipe 3 tinha a pretenso de solicitar ao monarca para intervir a fim de moderar a inclemncia e rigor da legislao sobre a limpeza de sangue. A miscigenao inter-rcica s traria benefcios, pois contribuiria, segundo o seu autor, para aumentar a nobreza de Espanha e atenuar os conflitos intestinos que dividiam transversalmente as sociedades dos dois reinos ibricos. No interrogatrio Diogo Sanches de Vargas confessou que as citaes da Sagrada Escritura e de outras autoridades alegadas para munir a argumentao do seu Papel foram escritas com a ajuda do padre Frederico da Companhia de Jesus, que era cristo-velho e docente no Colgio de Madrid. Esta Advertncia chegou a circular de forma impressa, tendo sido o promotor da verso tipografada o Pe. Provincial Joo Montemor, o mais alto responsvel pela Companhia de Jesus em Castela 20. Segundo o especialista da histria do Santo Ofcio portugus, Antnio Borges Coelho, este documento deve ser inscrito na acesa luta ideolgica e poltica que se travava no cume do Estado sobre a poltica a seguir relativamente aos cristos-novos e, em particular, sobre a actividade da Inquisio Portuguesa 21. Ainda que tenha acabado por vingar, embora de forma titubeante, o esprito favorvel aos cristos-novos no seio da Companhia de Jesus, no quer dizer que alguns jesutas no tenham aceitado colaborar com o Tribunal do Santo Ofcio, apesar de terem preferido, em Portugal, os cargos de assessoria em vez dos cargos de maior visibilidade, isto , das funes de direco eSobre a histria do debate e da evoluo das decises das congregaes gerais ver Francisco RODRIGUES, s.j., Histria da Companhia de Jesus cit., Tomo II, Vol. I, pp. 361 e ss. 18 Neste perodo tambm ficou conhecida a denncia feita por Simo Rodrigues Inquisio das posies heterodoxas do humanista Damio de Gis.Cf. Damio de GIS, Descrio da cidade de Lisboa, Transcrio, edio e introd. de Jos da Felicidade Alves, Lisboa, 1988, pp. 7-8. 19 Vrios jesutas de origem crist-nova destacaram na Companhia de Jesus pelas competncias e cargos exercidos, entre os quais se podem mencionar os seguintes: Diogo de Cisneros, especialista em Teologia Moral que foi docente da Universidade de vora e Roma; Vasco Baptista, professor de Teologia em Portugal, Paulo Ferrer, professor tambm na Universidade de vora; Gonalo Simes, meste de novios; Henrique Henriques, que se destacou como missionrio no Oriente. Cf. Francisco RODRIGUES, s.j., Histria da Companhia de Jesus cit., Tomo II, Vol. I, pp. 339, 342, 343, 373. 20 Cf. Antnio Borges COELHO, Inquisio de vora, Lisboa, 1987, pp. 134 e ss. 21 Idem, Tradio e mudana na poltica da Companhia de Jesus face comunidade dos cristos-novos, Separata da Revista Histria, Vol. 10, Porto, 1990, p. 91. A companhia de Jesus e a Inquisio 517

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magistratura suprema 22. No podemos esquecer que a Inquisio moderna foi constituda tambm como instrumento para precaver e combater as novas heresias do protestantismo, que era um dos alvos programticos privilegiados da aco pastoral dos Jesutas no quadro do seu empenho eclesiolgico no movimento da Contra-Reforma. De perseguidos a colaboradores Na reequao do quadro das relaes dilemticas entre estas duas instituies de natureza diversa existentes no seio da Igreja Catlica, cumpre comear por lembrar o facto da Companhia de Jesus ter nascido em luta com os tribunais do Santo Ofcio. O prprio percurso espiritual e universitrio do seu fundador foi marcado por vrias intimaes, prises e repreenses feitas pelos tribunais da Inquisio das cidades por onde Incio de Loyola e os seus companheiros passaram, residiram e estudaram, quer da Espanha, da Frana ou de Itlia 23, como j fizemos meno anteriormente. Incio, os seus Exerccios Espirituais e o seu grupo de seguidores no deixaram de ser fortemente estigmatizados pela suspeita de estarem enfermados de erasmismo, de alumbrismo e de outros ismos que faziam tremer os guardies da ortodoxia daquele tempo. No tempo em que a Inquisio se estava reforando a sua vigilncia e criando um clima de suspeio generalizada24. Mas, no quadro da mentalidade do tempo e dos jogos de poder e de influncia a que a Companhia de Jesus no poderia ser alheia, sob pena de hipotecar a sua implantao e afirmao no seu das sociedades catlicas, foi, de facto, chamada a colaborar com uma instituio que se tornou cada vez mais dominante na regulao das relaes sociais, na normalizao das vivncias e manifestaes religioso-culturais e na domesticao dos costumes e da mentalidade. Num estudo mais descomprometido ideologicamente, o historiador jesuta John W. OMalley d conta desta inapagvel cumplicidade, salientando que o prprio Incio de Loyola ofereceu o seu apoio a D. Joo III em ordem a alcanar a desejada obteno da confirmao papal para a implantao definitiva do Tribunal da Inquisio em Portugal 25. Este Tribunal tinha sido institudo provisoriamente em 1536, pela bula papal Cum ad nihil magis, e esperava a aprovao definitiva que foi conseguida da parte do papa antes do fim da dcada de 40 26. NoCf. Jos Eduardo FRANCO; Paulo de ASSUNO, Metamorfoses de um polvo: Religio e poltica nos regimentos da Inquisio (scs. XVI-XVIII), Lisboa, 2002, pp. 22 e ss. 23 Cf. Ludwing MARCUSE, Soldier of the Church: A life of Ignatius Loyola, London, 1939, p. 287. 24 Cf. C. DALMASES, Le Fondateur des Jsuites, Paris, 1984, pp 40 e ss.; e Mark ROTSAERT, Ignace de Loyola et les e Renouveaux spiritueles en Castille au dbut du XVI sicle, Paris, 1988, pp. 15 e ss. E ver ainda a obra importante de Ccil ROTH, Histoire des Marranes, Paris, 1990. 25 Cf. John W. O MALLEY, s.j., The first jesuits, London, 1993, pp. 310-320. 26 Reis Torgal coloca o acento tnico nas razes de ordem econmica para explicar o empenho do Reino de Portugal em instituir no seu seio a Inquisio: Parecem no restarem dvidas que razes de natureza econmico-social estiveram na base do esforo portugus com vista instaurao do Santo Ofcio. Significou estruturalmente a inteno de o estatuto cristo-velho representativo do decadente sistema econmico feudal, apoiado pela burguesa tradicional e at pelo povo ideologicamente controlado, dominar o estrato cristo-novo e os seus meios econmicos, que significavam no pas a nica fora que realmente existia no sentido do capitalismo comercial de concorrncia. Lus Reis TORGAL, A Inquisio: Aparelho repressivo e ideolgico do Estado, Separata da Revista Biblos, n. 51, Coimbra, 1975, p. 637. Francisco Bethencourt, especialista da Inquisio em Portugal, complexifica num quadro problematizante mais sofisticado, as razes que levaram instalao do Tribunal do Santo Ofcio no pas, mas colocando na base dos motivos uma estratgia estatizante: Sem menosprezar as causas especficas, religiosas e sociais, do pedido de estabelecimento da Inquisio, decorrentes das pulses arcaicas de tipo tnico, no podemos deixar de sublinhar que o pedido se insere numa estratgia de naturalizao e estatizao da Igreja, caracterizada pela interveno crescente do poder rgio na organizao da hierarquia eclesistica. Cf. Francisco BETHENCOURT, A Inquisio, in Carlos Moreira AZEVEDO (dir.), Histria religiosa de Portugal cit., Vol. 2, p. 99. E ver do mesmo autor a obra de carcter comparativo que j se tornou clssica para o estudo deste tribunal: Idem, Histria da Inquisio: Portugal, Espanha e Itlia, [Lisboa], 1995. Ver ainda os relevantes estudos de Maria Jos Ferro TAVARES, Judasmo e Inquisio: Estudos, Lisboa, 1987. 6 Jos Eduardo Franco22

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mesmo sentido de procura de distanciamento em relao s polmicas do passado, segue tambm esta nova linha hermenutica o volumoso Dicionrio Histrico da Companhia de Jesus editado recentemente, depois de mais de 20 anos de preparao sob a direco de Charles E. ONeil, s.j. e Joaquin M Domnguez. Na extensa entrada dedicada ao Tribunal do Santo Ofcio so apresentadas com notvel rigor e clareza as relaes de colaborao e de divergncia entre ambas as instituies eclesisticas27. certo que Incio de Loyola prestou um servio junto do Vaticano que se revelou importante para a diplomacia portuguesa desempatar a indefinida procrastinao das negociaes tendentes confirmao definitiva da Inquisio portuguesa pela Cria Romana 28, que acabou por acontecer em 1547 com a publicao da bula Meditatio Cordis de 16 de Julho 29. Contudo, verdade tambm que o primeiro Geral da Companhia levantou dificuldades ao insistente convite de D. Joo III para que os jesutas fossem destacados para ocupar o cargo de inquisidores neste novo tribunal portugus. O provincial dos jesutas portugueses, Pe. Diogo Miro, de origem espanhola tinha acolhido, porm, esta proposta do rei de forma efusiva, por entender que tal cargo se traduziria em maior prestgio para a Companhia, dada a m imagem social que tinham os cristos-novos 30 e por lhe parecer uma grande vantagem que com o controle do Santo Ofcio pela Companhia, no se viriam a suceder em Portugal as perseguies inquisitoriais sua Ordem, como acontecia em Espanha 31. Apesar de uma comisso de avaliao da proposta do rei portugus nomeada em Roma por Incio de Loyola ter dado parecer positivo, o fundador dos Jesutas, ainda que no quisesse desagradar ao monarca, fez saber das suas reservas em relao a tal aceitao e passou a deciso para o Papa. Neste empasse, o Rei acabou por nomear para inquisidor do Tribunal de Lisboa Frei Jernimo de Azambuja, tanto mais que o prprio cardeal D. Henrique no era ento muito favorvel nomeao para o cargo de um membro da Companhia de Jesus. Uma segunda proposta para que os jesutas provessem alguns importantes cargos inquisitoriais do Santo Ofcio, no quadro da expanso deste para outras cidades do pas, em particular o projecto de fundao de um tribunal desta natureza em Coimbra, foi recusada por Incio de Loyola, tendo este justificado a recusa pelo facto das imunidades concedidas aos inquisidores, nomeadamente a dispensa do voto de obedincia aos superiores da Ordem, serem incompatveis com o estatuto religioso especfico de um jesuta. Nesta linha, Francisco Rodrigues esfora-se na Histria da Companhia de Jesus na Assistncia de Portugal, por relevar uma colaborao de alguns membros da sua Ordem apenasCf. J.L. GONZLEZ-NOVALN, s.j., Inquisicin, in Charles ONEIL s.j.; Joaqun M DOMNGUEZ, s.j., op. cit., Vol. III, pp. 2028-2036. 28 Cf. Monumenta ignatiana, op. cit., p. 269 e ss. 29 Com esta bula da instituio definitiva da Inquisio em Portugal foi institudo juridicamente um instrumento poderoso de conduo dos processos pela proteco das testemunhas de acusao pelo sigilo, vedando aos rus a possibilidade de saberem quem eram os seus acusadores. Cf. Francisco BETHENCOURT, Inquisio, in Carlos Moreira AZEVEDO (dir.), Dicionrio de Histria Religiosa de Portugal cit., Vol. C-I, pp. 447-448. 30 Era j antiga a m fama dos cristos-novos em Portugal, mas ela dilatou-se ainda mais no sculo XVI com a entrada em cena do Tribunal da Inquisio. A propaganda anti-semita teceu uma forte mentalidade anti-judaica e ergueu um formidvel mito oprobrioso em torno da raa hebraica. O colector apostlico Andr Caligari apontava em 1575 a macabra imagem que corriam entre o povo de Portugal dos mdicos de origem judaica: Os mdicos em Portugal, que so todos cristos-novos, no fazem seno sangrar trs, quatro e seis vezes os enfermos. E acrescenta noutro passo que corria a fama dos mdicos terem confessado que fizeram morrer uma infinidade de cristos-velhos seus pacientes. Cartas de vora, 10 de Maro e de 16 de Abril de 1575, ASV, Nunciatura portuguesa, 2, fls. 35-35v. Assim como acontecia com o antijesuitismo, o anti-semitismo fazia correr informaes desfocadas e exageradas para denegrir a imagem da gente de nao. Recorde-se que no exerccio da medicina do tempo era prtica corrente o uso da tcnica de sangrar os doentes, pois acreditava-se que era um meio de combater algumas doenas. Testemunha tambm o Pe. Ferno Guerreiro da Companhia de Jesus numa carta escrita para Roma que a gente de nao dos cristos-novos por c to mal vista que falar num destes falar numa coisa abominvel e indigna de que os homens a vejam. Carta de Angra, Aores, 2 de Agosto de 1592, ARSI, Lus. 71., fls. 195-195v. 31 Cf. Francisco RODRIGUES, s.j., Histria da Companhia de Jesus cit., Tomo I, Vol. I, pp. 252 e 692 e ss. A companhia de Jesus e a Inquisio 727

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nas tarefas de edificao espiritual, isto , de pregao e admoestao dos condenados pela Inquisio no sentido de se arrependerem de modo a livr-los da pena capital. Um dos casos referidos foi o auto-de-f celebrado em vora no ano de 1560, em que saram em procisso para cima de setenta penitenciados por diversos delitos e cinco condenados s chamas, trs homens e duas mulheres, das quais uma, j sobre o cadafalso, confessou as culpas e alcanou o perdo. Acompanharam-nos o reitor da universidade, Leo Henriques e mais quatro padres seus sbditos, e no deixaram de os aconselhar e esforar, enquanto no terminou a longa e lastimosa solenidade. S um dos supliciados expirou sem dar sinais de contrio 32. Destacando o papel querigmtico e espiritual desempenhado pelos padres da Companhia em alguns autos-de-f, que apenas contriburam, na sua ptica, para suavizar a condenao e at libert-los de penas extremas, salienta que mais nenhum cargo ou cooperao foi dada pela Companhia a esta instituio judicial: O zelo de apstolos e a caridade compassiva os levava a suavizar, quando em sua mo estava, as acerbas torturas de alma e corpo, que atormentavam aqueles desaventurados, nem exerciam na inquisio outros empregos durante o tempo que agora nos ocupamos, seno esse de pura misericrdia com os padecentes 33. Sem queremos por em causa o pendor caritativo e espiritual da aco dos pregadores jesutas no cenrio horripilante das sesses pblicas da execuo das penas capitais do Santo Ofcio, no se pode omitir que alguns dos seus membros tiveram, de facto, um papel activo em termos conselheirsticos e de assessoria no processo de implantao, expanso e consolidao da Inquisio Portuguesa no sculo XVI. Alm do j referido contributo de Incio de Loyola, o prprio Francisco Xavier tambm desempenhou um papel influente no sentido de ilucidar o rei D. Joo III sobre a importncia da criao de uma tribunal do Santo Ofcio em Goa. Em Maio de 1546 escrevia, neste sentido, a este monarca lamentando a falta de pregadores que a ndia padecia, porque, mingua deles, (...) entre ns os portugueses, vai muito perdendo-se a F. E ajunta uma segunda necessidade existente naquela colnia, para a correco dos costumes, e para depurar a contaminao da f e combater os infiis e o paganismo: A segunda necessidade que a ndia tem para serem bons cristos que nela vivem que mande Vossa Alteza a Santa Inquisio, porque h muitos que vivem a lei mosaica e a seita mourisca, sem nenhum temor de Deus, nem vergonha do mundo. E porque isto so muitos e espalhados por todas as fortalezas, necessria a Santa Inquisio e muitos pregadores 34. Parecer que deve ser entendido em consonncia com a mentalidade eclesial dominante na poca, em especial nas cristandades ibricas, que via na Inquisio um instrumento importante para garantir a purificao da f e regular a pureza dos costumes. A Inquisio portuguesa s vir a expandir-se para Goa depois da morte de D. Joo III, por determinao do cardeal D. Henrique, a 20 de Maro de 1560, no perodo da regncia de D. Catarina35. Em Goa muitos padres jesutas vieram a prestar servios regulares Inquisio 36 quer como pregadores, quer como deputados do tribunal 37.Idem, Ibidem, p. 692. Idem, Ibidem, pp. 692-693. 34 Epistolae S. Francisci Xavarierii, Rome, 1944, Tomo I, pp. 346-347. 35 Raul REGO, Prefcio, in O ltimo Regimento e o Regimento da economia da Inquisio de Goa, Lisboa, 1983, pp. 10 e ss.33 32

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Tambm no de descurar a assessoria dada pelo jesuta Leo Henriques (1524-1589), professor da Companhia, ao Cardeal D. Henrique na elaborao do primeiro Regimento do Santo Ofcio concludo no ano de 1552 38. O texto foi preparado de forma minudente, revelando a preocupao de misturar o menos possvel as esferas do poder temporal com o espiritual. Tratase de um texto legal caracterizado pela sua feio marcadamente eclesistica. Este regimento fornece um quadro jurdico em que se acentua a subordinao desta instituio judicial ao Pontfice Romano, de modo a atenuar o seu carcter estatal, de que estava eivado desde a sua fundao em Portugal39. Apesar de no prlogo o Inquisidor-Geral reconhecer a dependncia em relao ao monarca portugus. A longa direco henriquina frente deste tribunal acentuou esta tendncia autonomizante. O que revelador de que a instrumentalizao da Inquisio ao servio de uma estratgia poltica acabou por no dar os frutos pretendidos. Pois como conclui Bethencourt, se a burocracia inquisitorial assumiu uma posio determinante no seio da Igreja em Portugal, saindo das suas fileiras muitos dos novos bispos, sobretudo nos sculos XVI e XVII, o Santo Ofcio acabou por se revelar bastante mais autnomo do que desejariam D. Manuel e D. Joo III (autores do projecto), causando problemas, a longo prazo, poltica rgia. Alis, essa poltica face Inquisio ou diversidade de sensibilidades religiosas sofreu alteraes conforme os reinados e a orientao dos grupos de poder 40. Por seu lado, os Jesutas foram chamados vrias vezes a dar uma colaborao importante enquanto peritos em assuntos doutrinais numa categoria importante chamada de qualificador do Santo Ofcio. O qualificador tinha por funo dar parecer sobre livros apreendidos ou sobre declaraes de presos e contedo de denncias 41. Tais apreciaes tcnicas tinham um peso significativo na instruo das decises judiciais. A ocupao de vrios cargos inquisitoriais por parte dos Jesutas no significa necessariamente que tivesse havido uma total e unnime identificao da Inquisio com a Ordem de Loyola, nem sequer que tivesse havido sempre uma estreiteza de relaes e sintonia plena de objectivos. Nem sequer significa que em geral os jesutas tivessem procurado avidamente ocupar cargos inquisitoriais. Muitas vezes, assiste-se prevalecentemente manifestao de sentimentos de relutncia do que de concordncia entusistica na aceitao das tarefas inquisitoriais. Outras ordens, de facto, tm uma tradio de maior expresso, como o caso dos dominicanos, no comando dos destinos da Inquisio portuguesa, bem evidente no maior nmero de cargos exercidos (e de mais importncia directiva) nesta instituio judicial. Alm36 Segundo dados apurados entre 1760 e 1718 por Antnio Baio, 20 por cento dos deputados que constituram a Inquisio goesa foram jesutas, embora isto no signifique que todos os jesutas fossem unanimemente a favor da participao e do modo de actuar deste tribunal. Cf. Antnio BAIO (ed.), A Inquisio de Goa: Correspondncia dos Inquisidores da ndia (1500-1630), Coimbra, 1930, cap. 3; e cf. Antonio da COSTA, s.j., op. cit., p. 196. 37 Ver o trabalho de pesquisa estatstico e de anlise da sociologia institucional sobre os indivduos que proviam os cargos institucionais, bem como os que exerciam funes parenticas. Cf. J. L. de MENDONA e A. J. MOREIRA, Histria dos principais actos e procedimentos da Inquisio em Portugal, Lisboa, 1980, pp. 144 e ss. Neste quadro de cooperao h que ter em conta alguns pronunciamentos inquisitoriais registados no Oriente, que eram menos favorveis Companhia de Jesus, no mbito das polmicas em torno das metodologias missionrias aplicadas pelos jesutas no processo de missionao do Malabar, do Japo e da China, com j fizemos referncia anteriormente. 38 Como tambm se deve lembrar o exerccio do cargo de deputado da Inquisio de vora e de Coimbra pelo Provincial dos Jesutas, Jorge Serro, como tambm exerceu as mesmas funes o menos conhecido Pe. Manuel Alvares Tavares. Cf. H.P. SALOMON, Portait of a new christian: Ferno Alvares Melo (1569-1632), Paris, 1982, pp. 73 e 111-112. 39 Cf. Jos Eduardo FRANCO; Paulo de ASSUNO, Metamorfoses de um polvo cit., p. 16. 40 Francisco BETHENCOURT, Inquisio, in Carlos Moreira AZEVEDO (dir.), Histria religiosa de Portugal cit., p. 99. 41 Idem, Ibidem, p. 114.

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do pouco entusiasmo manifestado por Incio de Loyola em aceitar que os seus religiosos assumissem cargos no Santo Ofcio, tambm conhecem-se casos de relutncia de outros jesutas, em consonncia com o esprito do Fundador, em aceitar de bom grado este tipo de funes. O visitador da Companhia de Jesus no Oriente, Alexandre Valignano, chegou a opinar que no era conveniente que os jesutas estivessem integrados na hierarquia inquisitorial, embora fosse de certo modo natural que alguns jesutas, em virtude da sua qualificao teolgica e jurdica, fossem requisitados para arguirem processos judiciais do Santo Ofcio 42. A este parecer no deixa de estar subjacente uma inteligente viso estratgica, que se liga com a questo das prioridades definidas constitucionalmente para a Companhia de Jesus, mas tambm a que no alheia a questo da imagem social. Ou seja, tanto Santo Incio como Valignano sabiam muito bem que a Inquisio no era propriamente uma instituio socialmente simptica, antes criava facilmente volta de si anticorpos. Um envolvimento demasiado estreito dos jesutas na hierarquia inquisitorial e na sua misso de vigilncia e punio no deixaria de trazer prejuzos para a fama da Companhia de Jesus. Em termos do discurso, os dirigentes jesutas mais notveis tenderam a ver a colaborao com o Santo Ofcio um servio que extravasava e at violava os princpios orientadores da sua Ordem. Houve casos em que estas funes tambm foram impostas aos jesutas, apesar do seu desacordo. Casos paradigmticos desta imposio foram o do Pe. Manuel de S que ao chegar a Goa em 1711, vindo de Portugal para trabalhar nas misses indianas da Companhia, foi informado que j tinha sido nomeado para deputado do tribunal local da Inquisio. Apesar do seu protesto, em que alegava que o cargo era incompatvel com as orientaes da Companhia de Jesus e do Papa a esse respeito, foi coagido pelo Inquisidor-Mor a exercer o cargo. Um ano depois, a mesma nomeao recaiu sobre um seu confrade, o Pe. Jos Pereira, que ops as mesmas objeces, mas agora com o apoio do Provincial dos Jesutas de Goa. Mas a rejeio pura e simples daquelas funes implicava uma desobedincia grave na perspectiva inquisitorial, dado que o Inquisidor-Mor contra-argumentava que detinha um poder delegado do Pontfice Romano para fazer aquela nomeao, insinuando que desobedecer-lhe equivalia a desobedecer ao Papa 43. Mas em geral, podemos concluir que as relaes entre a Companhia de Jesus e o Santo Ofcio decorreram, salvo excepes particulares, sem grandes sobressaltos e at com alguma significativa cumplicidade e cooperao44 no perodo que dista da sua implantao em Portugal at sensivelmente proclamao da restaurao da independncia do reino em 1640. Embora se tenha vindo a engendrar um clima de perturbao mais latente do que visvel, especialmente nos ltimos anos do regime filipino, devido cauo dada por alguns jesutas causa dos cristosnovos e s apreciaes desfavorveis tecidas por alguns Padres da Companhia aos estilos da Inquisio45, prenunciadoras de crticas mais contundentes que sero feitas no perodo da Restaurao, no se registou nenhum confronto srio entre as duas instituies.Cf. Alexandre VALIGANANO, Sumrio das normas para a Provncia da ndia, Abril de 1588, in J. Wicki, s.j.; J. GOMES (eds.), Documenta indica cit., Vol. 14, pp. 849-850. 43 Cf. ARSI, Goa 9, II, fls. 529-532 e 546-550; e 36, II, fl. 310. 44 Registaram-se at algumas situaes em que a Inquisio actuou em favor da salvaguarda da imagem da Companhia de Jesus, em casos em que foi aviltada pelos seus adversrios. Tal como aconteceu, por exemplo, em 1615, tendo ordenado a recolha e um inqurito rigorosoa um papel antijesutico atribudo a um lente de Anatomia da Universidade de Coimbra intitulado Razes que o Dr.Joo Bravo Chamiso, lente de Anatomia desta universidade e vereador do corpo dela fez sobre os Padres da Companhia, IAN/TT, Inquisio de Coimbra, processo n. 1427, fl. 148. 45 Por exemplo, em 1630, aquando da visitao s inquisies de Portugal feita pelo novo Inquisidor Geral D. Francisco de Castro, so apresentados queixas dos cristos-novos de vora pela mo do jesuta Gaspar de Miranda, residente no colgio do Esprito Santo daquela cidade. O seu documento crtico constitui um terrvel libelo contra a prtica judicial da Inquisio. Denuncia a crueldade das torturas inquisitoriais nos crceres do Tribunal, a desumanidade em relao aos familiares dos presos, em particular s crianas, deixando-os desamparados e sem meios de sustentao, pois mal os cristos-novos ou outros eram acusados e presos, imediatamente os seus bens eram confiscados. Cf. Antnio Borges COELHO, Inquisio de vora cit., pp. 209-234. 10 Jos Eduardo Franco42

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Crispaes e confrontaes no perodo da Restaurao A partir deste novo perodo da histria poltica do pas 46 assistiu-se a um significativa inflexo do trajecto de boas relaes entre a Companhia de Jesus e a Inquisio. Alguns incidentes de carcter jurisdicional e as posies e ideias crticas assumidas por alguns jesutas vo provocar antagonismos srios entre as duas instituies. O que tambm pe em causa a imagem muito, propalada pelo antijesuitismo liberal e republicano de filiao pombalina, do sculo de seiscentos como o sculo negro ou cadaveroso por excelncia da histria portuguesa, resultante do conluio perfeito entre a Inquisio e os Jesutas na decomposio do reino. Logo nos anos de 1642 e 1643, dois incidentes em torno daquilo que se pode chamar a questo das mas de vora, uma questo aparentemente de menor significado, comeam a azedar as relaes entre o Tribunal do Santo Ofcio e os Jesutas. No ms de Dezembro de 1642, o almotac da Feira dos Estudantes da Universidade daquela cidade, Roque Cortez, foi encarcerado nos ergstulos do Santo Ofcio por ter recusado a precedncia na venda de mas a um criado de um deputado da Inquisio em favor de um estudante da Companhia de Jesus que disputava o mesmo produto, e por no ter, depois, comparecido a uma audincia na Mesa da Inquisio para que foi intimado a comparecer. No ms de Janeiro do ano seguinte, ao Padre Francisco Pinheiro, jesuta e professor da universidade local, tambm foi lhe foi ordenada priso domiciliria por se ter atrevido a contestar a autoridade do Santo Ofcio no caso da priso do feirante. O conflito ganhou relevo porque foi visado um jesuta. Com efeito, a priso do almotac no era indita. Esta deve ser entendida numa velha tradio de acrimnia entre os funcionrios da Inquisio e os almotacs daquela cidade que no concordavam, como escreve Pedro Lage, com o privilgio que mandava que os compradores do Santo Ofcio no s fossem providos em primeiro lugar, mas tivessem tambm a possibilidade de escolher prioritariamente a qualidade dos gneros em que eram providos 47. Privilgio que os comerciantes daquela feira nunca aceitaram de bom grado. Mau grado que se manifestava na m vontade com que os feirantes o cumpriam, descurando, por vezes, o respeito por esta prioridade inquisitorial. Tambm se deve compreender o conflito que este caso gerou no quadro de outra velha disputa de privilgios entre a Universidade de vora e a Inquisio. A recluso do Pe. Francisco Pinheiro, a 29 de Janeiro de 1642, no seu colgio manteve-se, apesar das manifestaes pblicas dos estudantes ocorridas pela cidade e junto ao edifcio do tribunal do Santo Ofcio, exigindo a libertao deste professor jesuta. O caso deu origem a um longo processo que confrontou a Companhia e a Inquisio. Mais do que o caso em si, o que se revela interessante para o nosso estudo o facto da Inquisio, que estava sob o controlo dos dominicanos, ter tido manifestaes acerbas de antijesuitismo no decurso da constituio do processo judicial 48. Num dos requisitrios chegou-se a golpear a integridade da ordem de Santo Incio. O advogado de acusao referiu-se aos Jesutas, na linha da velha querela em torno da natureza da Ordem, como religiosos enteados, querendo significar a ilegitimidade dos Padres da Companhia como regulares de pleno direito. Os Jesutas so ainda adjectivados ironicamente como religiosos mimosos e estimados, e que, por isso, poderia o Tribunal Sagrado julgar que nestes casos convinha passar adiante. E, finalmente, reportando-se s queixas que o superior da Companhia de Jesus tinha enviado ao rei para pedir a sua interveno contra o procedimento acintoso da Inquisio em relao a um membro da Ordem, justifica que aquele Tribunal agiu contra as malignidades ocultas que se lhesPara uma sntese historiogrfica deste novo perodo poltico em Portugal ver Antnio de OLIVEIRA, A Restaurao, in Joo MEDINA (dir.), Histria de Portugal cit., Vol. VII, pp. 88 e ss. 47 Pedro Lage CORREIA, O caso do Padre Francisco Pinheiro: Estudo de um conflito entre a Inquisio e a Companhia de Jesus no ano de 1643, in Lusitania Sacra, Tomo XI, 1999, p. 296. 48 Cf. IAN/TT, Inquisio de Lisboa, processo n. 1446; e IAN/TT, Armrio jesutico, caixa 20. A companhia de Jesus e a Inquisio 1146

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no mede pelo pulso e indicaes extrnsecas 49. Contra os argumentos da Companhia, os inquisidores acusavam os jesutas de terem delrios e fumos de insolncia e que a sua defesa estava repleta de suspeies e libelos infamatrios (...) e, por conseguinte, cheios de paixo e de violncia (...) e de vingana to indigna de religiosos que professam a pregam a maior perfeio50. Nas vrias sesses judiciais vieram tona antigas animadverses, invejas e intrigas das ordens mendicantes, nomeadamente as velhas invectivas dos dominicanos e franciscanos, contra a nova e bem sucedida ordem de Santo Incio. O diferendo vai mais alm da mera questo da disputa de privilgios, para transbordar para o patamar da disputa institucional. Nos documentos que registam as alegaes da defesa, os Padres da companhia colocam em causa o que consideram o poder pretensamente ilimitado do Tribunal da Inquisio, chamando ateno para os seus limites e para a sua devida subordinao a uma dupla instncia suprema, o poder papal e o poder rgio, para os quais os jesutas j tinham apelado. Desta forma, a Companhia de Jesus fazia a apologia da restrico do permetro e da inteira liberdade de actuao inquisitorial. Os jesutas comearam por advogar que a aco deste Tribunal devia abranger apenas a averiguao das matrias concernentes f e aos costumes. Apenas nestes assuntos, mediante provas evidentes, aceitavam que no deveria haver apelao possvel. Mas assim no se deveria passar em matrias que extravasam estas competncias especficas, pois ter privilgios para comprar mas primeiro que a universidade para os inquisidores, ou para os crceres do Santo Ofcio em nada toca f, nem ofende o seu Tribunal (...). O padre Francisco Pinheiro que, por a Universidade de vora ter privilgios em contrrio mais fortes confirmados pela S Apostlica, para ela apelou, nem esta a matria que est proibida em direito apelar do Tribunal da F, ou ministros dela, os quais sendo delegados do Sumo Pontfice no podem estender sua jurisdio s matrias que no tocam f e bons costumes, nem fora deles impedir a apelao para Sua Santidade, ainda que o Doutor Bartolomeu de Monteagudo diga que aquele Tribunal no tem superior na terra51. Os defensores da Companhia pem tambm em causa a pretensa infalibilidade e irredutibilidade das sentenas inquisitoriais, avocando em seu favor o direito eclesistico, segundo o qual fora do Sumo Pontfice e Conclios ecumnicos, ningum tem infalvel assistncia do Esprito Santo para no errar em suas determinaes 52. Nesta lgica de contra-ataque, a Companhia de Jesus atinge a autoridade suprema de que os inquisidores se arrogam e desmistifica a prpria imagem da intocabilidade da Inquisio. Apesar de no porem em causa a natureza e misso deste organismo judicial, os jesutas no deixam de fazer uma crtica cerrada aos seus estilos de actuao, violao dos limites jurdicos e competncias e ao seu alegado poder absoluto. So acusaes graves lanadas contra uma instituio que se entendia como a garante suprema da ortodoxia e conservadora da pureza do edifcio moral da sociedade portuguesa. D. Joo IV acabou por intervir neste processo, deu sinais de querer manifestar-se favoravelmente, numa primeira fase, em relao s pretenses dos Jesutas, sendo o Pe. Francisco Pinheiro libertado, tanto mais que no era de desprezar o facto dos inquisidores em

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BNL, Seco de reservados, cd. 869, fl. 533. Idem, fl. 533 e 538. 51 Idem, fl. 467. 52 IAN/TT, Armrio jesutico, p. 18, Mao 1, n 3, fl. 20v. 12 Jos Eduardo Franco

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causa serem de origem estrangeira: Bartolomeu Monteagudo era de origem espanhola e Duarte Pedro de origem flamenga, outro territrio sob domnio filipino 53. Todavia, o rei portugus no teve coragem de ir mais longe. No satisfez um apelo dos superiores da Companhia de Jesus para que o monarca infligisse um castigo exemplar aos membros da Inquisio envolvido no processo. E acabou, no final, por ceder s presses inquisitoriais e s suas ameaas de penas espirituais, dando razo aos inquisidores na questo dos seus privilgios de primazia na feira franca de vora 54. No desfecho deste processo, que acabou por se revelar mais favorvel Inquisio do que aos Jesutas, muito contou a irritao do monarca pelo facto da Companhia de Jesus ter recorrido paralelamente ao papa, o qual decidiu em favor desta, numa poca em que as relaes de Portugal com a Santa S ainda no estavam restabelecidas, devido ao no reconhecimento da independncia deste reino pelo pontfice romano. O rei ferido na sua autoridade e orgulho recusou acatar a deciso papal sobre o assunto, manifestando uma atitude marcadamente regalista 55. Contrapondo, na sua deciso final consignada no Alvar de 28 de Maio de 1643, a sua autoridade suprema s determinaes papais em contrrio, de motu proprio, certa cincia, poder real e absoluto, reconhece e confirma oficialmente os antigos privilgios de precedncia da Inquisio de vora 56. O que no deixa tambm de ser revelador da fora que este tribunal detinha sobre a conscincia social e poltica do reino. As crticas de Vieira: sabores e dissabores Apesar de no directamente relacionado com este caso analisado, por esta altura entrou tambm na cena poltica e social portuguesa uma figura das mais notveis e das mais brilhantes da Companhia de Jesus e da cultura luso-brasileira. Trata-se de Antnio Vieira que se destacou, entre outros aspectos, pelo combate de dcadas que iria travar contra o Tribunal do Santo Ofcio e que acabaria por dar Companhia de Jesus uma significativa e indita vitria, ainda que breve.Importa recordar que at a proclamao da independncia portuguesa a coroa espanhola tinha colocado elementos da sua confiana em lugares chaves do poder portugus. Nos Tribunais da Inquisio a depurao destes funcionrios estrangeiros no foi to rpida como nas outras instituies, devido imunidade que aqueles rgos judiciais gozavam. Isto apesar do movimento restauracionista ter enclausurado alguns fidalgos principais afectos a Castela juntamente com o Arcebispo de Braga e o Inquisidor-Geral, D. Francisco de Castro, neto do Vice-Rei da ndia, os quais tinham planeado uma conjura para restaurar novamente o domnio espanhol. Mas D. Francisco de Castro teve melhor sorte que os seus correligionrios de conspirao, pois conseguiu a sua libertao em 1643, sendo-lhe restitudos todos os ttulos e dignidades. Apesar do Rei ter manifestado esta benevolncia para com o responsvel mximo da Inquisio, no tornou D. Francisco de Castro mais tolerante, antes continuou a agir em conflito com os interesses do governo independentista, em que se destaca a perseguio que desencadeou contra vrios cristosnovos ricos que apoiavam financeiramente o esforo de guerra de Portugal contra Castela. No desligvel da cumplicidade com interesses afectos aos meios hostis independncia, a Inquisio tinha, no perodo imediato Restaurao, perseguido alguns mercadores ricos, a fim de secar fontes de financiamento do movimento independentista. Vitorino Magalhes GODINHO, Ensaios, op. cit., p. 409; e cf. Jos Veiga TORRES, Uma longa guerra social: os ritmos da represso inquisitorial em Portugal, in Revista de Histria Econmica e Social, n. 1, 1978, pp. 5568. Do mesmo modo no de esquecer o brao-de-ferro existente entre Portugal e a Santa S por causa do reconhecimento da independncia e da proviso dos bispados. Com efeito, a Santa S s viria a reconhecer oficialmente a Restaurao da autonomia portuguesa em relao a Castela em 1669, no ano a seguir celebrao do acordo de paz entre Portugal e Espanha. A partir de ento Portugal passou a receber normalmente a confirmao papal dos bispos apresentados para preencher as ss vacantes. 54 Cf. J. Lcio dAZEVEDO, Os Jesutas e a Inquisio em conflito no sculo XVII, Lisboa, 1916, pp. 4-5. 55 Esta atitude do rei portugus no pode ser desligada da tendncia de subalternizo do poder espiritual ao poder temporal que se vinha afirmando a nvel internacional. Como escreve Borges Coelho, nesta poca a Europa percorria um caminho no sentido de subordinar o poder religioso ao poder poltico. Antnio Borges COELHO, Cristos-Novos, Judeus e os Novos Argonautas. Questionar a Histria IV, Lisboa, 1988., p. 112. O Tratado de Vesteflia de 1648 simboliza precisamente esta afirmao do primado do poltico sobre o religioso, e ao mesmo tempo a afirmao da autonomia daquele em relao a este. Para um estudo sobre a ideologia do poder na Restaurao ver a obra clssica de Lus Reis TORGAL, Ideologia poltica e teoria do Estado na Restaurao, 2 Vols., Coimbra, 1981-1982. 56 Alvar publicado a 28 de Maio, IAN/TT, Armrio jesutico, pasta 18, mao 1, n. 10, fl. 45. A companhia de Jesus e a Inquisio 1353

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Este que considerado o maior pregador portugus 57, aps ter regressado do Brasil e ganhado a amizade e admirao do rei D. Joo IV, que o promoveu categoria de pregador rgio, apresentou em 1643 uma ousada petio ao rei para que este autorizasse o regresso dos cristos-novos mercadores a Portugal. Vieira, na linha dos seus confrades de vora, discordava dos estilos da Inquisio e do excessivo poder que esta detinha no seio da sociedade portuguesa. Chegou a afirmar provocatoriamente em Latim, numa reunio do Conselho Rgio, que ele passou a integrar na qualidade de pregador do monarca, que no reino de Portugal quod Inquisitores ex fidei viverent, Patres vero pro fide morerentur (enquanto os inquisidores vivem da F, os Padres [da Companhia de Jesus] morrem pela F) 58. Esta provocao fez ferver a animadverso dos juizes do Santo Ofcio que mandaram um recado ameaador a este jesuta: Acautele-se o Pe. Antnio Vieira de cair nas mos dos inquisidores 59. E a Inquisio soube esperar pacientemente por esta aguardada oportunidade, que chegaria de facto, para calar o seu crtico. Por seu lado, Vieira estava convencido que a comunidade crist-nova constitua um motor importante para a reabilitao econmica do pas. A sada macia das empreendedoras famlias de sangue hebraico para outros pases como consequncia das perseguies sistemticas do Santo Ofcio e da hostil mentalidade anti-judaica, tinha contribudo para a depauperao de Portugal e beneficiado o crescimento de outros estados para onde os judeus se deslocaram, como era o caso coevo da prspera Holanda 60. A defesa desta tese ganhou mais consistncia e convico quando em 1646 o Rei D. Joo IV enviou Antnio Vieira pela primeira vez aos Pases Baixos em servio diplomtico da coroa portuguesa, onde teve a oportunidade de estabelecer contactos com a comunidade judaica ali residente de origem portuguesa 61.

Sobre o valor da figura literria de Antnio Vieira, ver as excelentes obras de Margarida Vieira MENDES, A oratria barroca de Vieira, Lisboa, 1989; e de Anbal Pinto de CASTRO, Antnio Vieira. Uma sntese do barroco luso-brasileiro, Lisboa, 1997. 58 Apud J. Lcio dAZEVEDO, Os Jesutas e a Inquisio cit., p. 446. 59 Idem, Ibidem. Ver tambm Joo Lcio dAZEVEDO, Histria do Padre Antnio Vieira cit., p. 342. Nos anos quarenta do sculo XVII, no contexto da ps-restaurao da independncia de Portugal, Antnio Vieira tornou-se uma autntica vedeta da Ordem de Santo Incio, desempenhando um papel de relevo no esforo de reabilitao do pas e da sua nova afirmao no panorama internacional. Os dominicanos que controlavam ento o Tribunal do Santo Ofcio no viram com bons olhos esta ascendncia de Vieira sobre o monarca, tanto mais que o jesuta a usava para combater o seu trabalho judicial, que avaliava como prejudicial ao reino e pouco benfico para a difuso da F. Os religiosos da Ordem dos Pregadores chegaram a alcunhar Antnio Vieira de Monopanta, a fim de caracterizar a grande unidade de aco e de opinio que existia entre si e os seus confrades. Monopanta uma palavra formada a partir da unio de dois vocbulos da lngua grega clssica: um e todos. Com este epteto os dominicanos queriam traduzir a ideia do adgio um por todos e todos por um e indicar a grande solidariedade existente entre os membros da Companhia de Jesus. Este cognome dado a Vieira, neste caso em tom depreciativo, vem documentado numa carta-libelo que o bispo dominicano de Mlaga, sob pseudnimo de Escoto Patavino, escreve contra o pregador jesuta, alegadamente em resposta a uma outra carta que o mesmo jesuta lhe teria endereado, o que Vieira veio a negar terminantemente. A carta de Patavino ostentava o seguinte ttulo: Resposta a una carta que Antnio Vieira Monopanta escrivi un Seor Obispo de la Orden de los Predicadores, Antnio VIEIRA, Cartas, Coord. e anotao de J. Lcio dAZEVEDO, Vol. III, Lisboa, 1971, p. 738. Mas esta solidariedade no era to real como a faziam os adversrios dos Jesutas. No se pode esquecer que entre os primeiros denunciadores de Antnio Vieira Inquisio se contaro alguns confrades seus, como Martim Leito. Cf. Mrio GARCIA, s.j., O Padre Antnio Vieira e outros poetas, Braga, 2000, p. 58. Alm disso, Vieira no era propriamente uma figura consensual dentro da prpria Provncia Portuguesa da Companhia de Jesus. Com graves custos para a sua imagem interna, Vieira tinha-se empenhado no projecto de diviso da provncia administrativa portuguesa em duas provncias. Projecto que foi concretizado com o apoio do Rei em 1653. Neste ano foi criada a Provncia dos Jesutas do Alentejo ou Transtagana, que abarcava a cidade de Lisboa e todo o territrio portugus a sul do Tejo, juntamente com a ilha da Madeira e Angola. Mas esta diviso artificial revelou-se efmera. Os Padres da Companhia em Portugal voltaram a unir-se numa s provncia a 19 de Maro de 1665. 60 Cf. Padre Antnio VIEIRA, Em defesa dos Judeus, Org. introd. e notas de Antnio Carlos CARVALHO, Lisboa, 2001, p. 33 e ss. 61 No contacto com muitos judeus portugueses exilados em vrias cidades da Europa, ganhou a convico de que o Santo Ofcio estava errado na sua tendncia para considerar que os cristos-novos eram em geral judaizantes, pois encontrou centenas de famlias de origem hebraica que continuavam a praticar o catolicismo Donde concluiu que o 14 Jos Eduardo Franco

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Foi na sequncia destes contactos que negociou com os cristos-novos mais ricos um avultado emprstimo para financiar o reequipamento militar e comercial do reino de Portugal 62. Mais concretamente, alcanou o financiamento para erguer uma companhia comercial, projecto decalcado do modelo holands, que tinha em vista fomentar e rentabilizar o comrcio com a colnia brasileira para onde se voltavam agora as maiores esperanas do pas 63. Em troca tinhase comprometido em conseguir a atenuao das perseguies inquisitoriais contra a comunidade crist-nova em Portugal. De facto, no ano de 1649 consegue obter a suspenso das aplicaes regimentais do confisco de bens por parte da Inquisio aos rus acusados de heresia e judasmo 64, pelo alvar rgio de 6 de Fevereiro. O intento de limitao das faculdades do Tribunal do Santo Ofcio visava tambm a alterao de alguns dos seus procedimentos regimentais mais desumanos e injustos, em particular o seu mais temvel meio de manobra que era o segredo garantido sobre a identidade dos denunciantes, que os protegia do conhecimento dos acusados. As propostas de Vieira, que tinham, ento, o aval do monarca, foram aceites pelo governo do reino e constituram um duro abalo no poder do Tribunal 65. Os inquisidores, inibidos de deitarem as mos imediatamente a este crtico to acutilante, protestaram junto da Santa S e conseguiram do Papa a anulao das decises anti-inquisitoriais do soberano portugus, embora sem efeitos prticos no imediato66. Entretanto, o Santo Ofcio foi acumulando mais razes de peso, para no momento oportuno (isto , em que Vieira estivesse menos protegido) para processar o ousado jesuta. Em 1659, Vieira tinha enviado do Brasil, mais concretamente da misso do Maranho, uma carta de teor proftico para o seu amigo Padre Andr Fernandes, bispo eleito do Japo, a fim deste faz-la chegar s mos da rainha para sua consolao pela morte do marido. Este texto que ficou famoso com o ttulo de Esperanas de Portugal, Quinto Imprio do Mundo e segunda vida dEl-Rei Dom Joo o Quarto 67... Neste e noutros escritos que o missionrio e pregador jesuta andava a engendrar, como tambm o caso da Histria do Futuro que vinha escrevendo desde 1649 68, procurava demonstrar

Tribunal da Inquisio tinha contribudo para fabricar mais judeus do que cristos. Cf. Antnio Borges COELHO, Inquisio de vora cit., pp. 235 e ss. 62 Sobre os contactos efectuados por este enviado especial de D. Joo IV nos Pases Baixos ver o estudo do holands Jos van den BESSELAAR, Antnio Vieira e Holanda, in Revista da Faculdade de Letras, Vol. III, Lisboa, 1971, pp. 5-35. 63 Mas j desde 1641 que Vieira vinha propondo ao monarca a urgncia de criar duas companhias comerciais, uma para o Oriente e outra para o Novo Mundo, a fim de relanar o comrcio nestes dois quadrantes do imprio ultramarino portugus. A proposta escrita e apresentada ao Rei, na qual defendia que os dinheiros a serem aplicados nestas empresas deveriam ficar isentos do fisco e do confisco, recebeu o desacordo total da Inquisio, que mandou apreender a referida proposta, proibindo a sua divulgao. Cf. Padre Antnio VIEIRA, s.j., Obras inditas, Tomo III, Lisboa, 1857, p. 82.; e cf. David Grant SMITH, Old christian marchants and the Foundation of the Brazil Company, 1649, in Hispanic American Review, Vol. 54, 1974, pp. 233-259. 64 Cf. Joo Lcio dAZEVEDO, Histria do Padre Antnio Vieira cit., p. 86 e ss. 65 Cf. Antnio BAIO, Episdios dramticos da Inquisio, 2 ed., Vol. I, Lisboa, 1936, p. 255 e ss. 66 Joo Lcio dAZEVEDO, Jesutas e a Inquisio cit., p. 5. 67 Carta enviada de Camut no caminho do Almazonas, 29 de Abril de 1659, in Antnio VIEIRA, s.j., Obras inditas, Tomo I, pp. 83-131; e ver IAN/TT, Inquisio de Coimbra, processo n. 1664. Convm recordar que o rei D. Joo IV tinha mantido um brao-de-ferro com o Tribunal do Santo Ofcio por causa da homologao real das propostas de Vieira que protegiam os cristos-novos, de tal modo que a Inquisio chegou mesmo a ditar a excomunho formal do monarca portugus data da sua morte em 1656. O reinado de D. Joo IV bem emblemtico de um perodo de transio em direco afirmao total do absolutismo monrquico que ser consumado mais plenamente no tempo de D. Joo V e exorbitado no reinado de D. Jos I. D. Joo IV teve de afrontar poderosas instituies eclesisticas para prosseguir a sua poltica, contrapondo a razo de Estado razo religiosa, num jogo de equilbrios difceis e de oscilaes imponderveis. No obstante gozava do apoio de outros sectores e actores da mesma Igreja que tambm se confrontaram com as instituies que estavam em divergncia com esse mesmo Estado. 68 Cf. Padre Antnio Vieira, Obras inditas cit. A companhia de Jesus e a Inquisio 15

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e fundamentar a sua f na nao portuguesa que iria no s sobreviver e afirmar-se no mundo enquanto reino auto-determinado, como iria ainda conquistar uma glria maior, a de ser a sede do Quinto Imprio, o protagonista da instaurao da era messinico-milenarista na terra que teria sido anunciada pelos textos bblicos desde os livros de Daniel ao Apocalipse, e por muitos outros profetas e visionrios da tradio crist e pag, estrangeira e portuguesa, em que destaca o lusitano Bandarra 69. Distanciando-se da corrente ortodoxa do sebastianismo (que, desde o desastre de Alccer-Quibir em 1578 prenunciador da perda da independncia consumada em 1580, acreditava ainda no regresso do rei D. Sebastio 70 para assumir novamente o trono portugus), Antnio Vieira reprojectou essa esperana de teor messinico-nacionalista em D. Joo IV 71. Mesmo depois da morte deste rei em 1656, a 6 de Novembro, o seu estimado pregador exprime alucinadamente a f na sua ressurreio. Acreditava, em coerncia com o mito do Quinto Imprio que engendrara, que aquele monarca restaurador deveria regressar para cumprir as supremas tarefas messinicas preliminares instaurao da era da paz universal: vencer o poder otomano, reconquistar Jerusalm, elevar Portugal glria de imprio universal, estabelecer uma idade de pacificao e santidade mundial, consumando o reino de Cristo em toda a face da terra72. A tomada de conhecimento desta heterodoxa doutrina milenarista por parte dos Santo Ofcio, que encerrava tambm uma vanguardista componente ecumnica de tolerncia em relao aos rituais e manifestaes de expresses religiosas, em particular da religio judaica, constitua matria mais que suficiente para que a inquisio o aprisionasse e julgasse 73. Regressado do Brasil 74 e perdida a situao privilegiada da proteco rgia que gozava (devido morte de D. Joo IV e alterao das peas de influncia do xadrez poltico, com a substituio da regncia da rainha D. Lusa em favor da ascenso ao trono de D. Afonso VI (16561667) e do seu valido Conde de Castelo Melhor 75 em 1662 76), o padre Antnio Vieira acabou porCf. Antnio Jos SARAIVA; scar LOPES, Histria da Literatura Portuguesa, 13 ed., Porto, 1985, p. 545 e ss. Bem representativo dessa corrente ortodoxa do sebastianismo portugus que mantinha a crena no regresso do Rei Encoberto a obra emblemtica e de grande condensao erudita da autoria do religioso trinitrio, frei Sebastio de PAIVA, intitulada o Tratado da Quinta Monarquia e Felicidades de Portugal Profetizadas, escrita em 1641. Ver a editio princeps e estudo de Jos Eduardo FRANCO; Bruno Cardoso Reis, O Tratado da Quinta Monarquia de Frei Sebastio de Paiva, Lisboa, 2001 (edio em preparao na Imprensa Nacional Casa da Moeda). 71 Cf. Francisco BETHENCOURT, Rejeies e polmicas, in Carlos Moreira AZEVEDO (dir.), Histria religiosa de Portugal cit., p. 82 e ss. 72 Sobre o percurso e obra proftica de Antnio Vieira ver Raymon CANTEL, Prophtisme et messianisme dans loeuvre dAntnio Vieira, Paris, 1960; P. A. Esteves BORGES, A plenificao da Histria em Padre Antnio Vieira, Lisboa, 1995; Jos Eduardo FRANCO, Teologia e utopia em Antnio Vieira, Separata da Lusitana Sacra,Vol. XI, Lisboa, 1999. 73 Cf. Anita NOVINSKY, O judasmo dissimulado do Padre Antnio Vieira, in Sigila Revue transdisciplinaire francoportuguese sur le secret, Vol. 8, Outono-Inverno, 2001, pp. 93-98. 74 Regressou do Brasil em Novembro de 1661. 75 Sobre este valido do novo rei, ver Francisco da Silveira de Vasconcelos e SOUZA, O ministro de D. Afonso VI. Lus de Vasconcelos e Sousa, 3 Conde de Castelo Melhor, Porto, 2001; e sobre a vida do rei ver um testemunho documental da poca, Camilo Avelino da Silva e SOUZA, Anti-catstrofe Histria de El-Rei D. Afonso VI de Portugal, Porto, 1845. 76 Com este novo governo verifica-se uma significativa perda de influncia da Companhia na corte portuguesa. No processo de marginalizao dos Jesutas neste novo reinado vale a pena trazer luz aqui um episdio pouco conhecido, mas que no deixa de ser indicador desta referida perda de influncia. De facto, a ousadia e frontalidade crtica de um Vieira que no reinado anterior era acatada e tolerada, neste novo statu quo poltico a crtica ao poder pelos jesutas j no era tolerada, ainda que fosse feita de forma muito mais subtil e matizada. Um sermo pregado pelo Pe. Antnio de S da Companhia de Jesus, a 21 de Agosto de 1663 no aniversrio do rei, teve como resultado a sua expulso da corte, em consequncia de uma relao crtica do sermo feita por Frei Jernimo Baa. O sermo lido de forma atenta tecia nas entrelinhas apreciaes desfavorveis ao modo como o poder era exercido pelos validos do rei, ao fazer uma espcie de teorizao sobre a importncia do poder dever ser exercido de forma imparcial em ordem a servir a felicidade geral de todos os vassalos, e no apenas de uma s parte privilegiada e protegida pela magnanimidade real. Cf. Sermo que pregou o Pe. Antonio de Saa da Companhia de Jesus no dia que sua magestade fez annos em 21 de Agosto de 1663, Em Coimbra, 1665. E ver o estudo de Lus da Silva PEREIRA, Jernimo Baa. Apontamentos sobre a vida e a obra, Separata da Revista Portuguesa de Humanidades, Vol. I, Nos. 1/2, Braga, 1997.70 69

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cair nas garras do Tribunal da Inquisio, que, entretanto, tinha conseguido tambm o restabelecimento dos seus antigos estilos e a anulao das excepes concedidas aos cristosnovos 77. O jesuta foi preso em 1664 e condenado a 23 de Dezembro de 1667 pelo inquisidor dominicano Pantaleo Rodrigues Pacheco a recluso num colgio da Companhia, sendo ao mesmo tempo retirada a faculdade de pregar e de exercer voz activa e passiva na sua Ordem religiosa 78. Precisamente por esta altura d-se uma nova substituio dos actores principais da poltica portuguesa. Afonso VI, doente paraplgico, substitudo no trono pelo seu irmo D. Pedro (16671706), que passa a exercer a regncia do reino. A pena judicial do antigo pregador da corte aliviada por interveno rgia, e, em 1669, conseguiu uma autorizao para ir em peregrinao at Roma79, onde permanece at 1675. Na Cidade Eterna ganha notoriedade como pregador e conquista a admirao do prprio papa Clemente X, que o isenta a ttulo definitivo da sentena e da autoridade da Inquisio Portuguesa 80. E mais extraordinrio do que isso, conseguiu o feito indito da suspenso pelo papa do Tribunal da Inquisio portuguesa durante 7 anos 81. Para tal importante ter em conta alguns acontecimentos que antecederam estas vitrias. Aliana judaico-jesutica: acusaes e significaes Alguns incidentes tinham feito, entretanto, atiar novamente a corrente anti-judaica que instigou vrias manifestaes populares em favor da Inquisio e do reforo do seu aparelho repressivo contra a astcia e perfdia semita. O mais grave acontecimento foi o protesto e a perseguio desencadeada contra os cristos-novos de origem judaica, na sequncia de um roubo de vasos sagrados executado na Igreja do mosteiro de Odivelas em Lisboa por um rapaz hebreu que, alm do furto teria cometido o sacrilgio de fazer estragos sobre o altar, no ms de Maio de 1671. Embora o rapaz acabasse por ser capturado, torturado e exemplarmente executado, a comunidade judaica no deixou de ser responsabilizada colectivamente pelo sucedido, sendo alvo de vrios motins incitados pelos pregadores pr-inquisitoriais. O prprio D. Pedro II, pressionado pela opinio pblica revoltada que exigia ao Santo Ofcio medidas severas contra os implicados no referido acto sacrlego, aceitou a captura de 90 comerciantes ricos. Uns foram presos e outros exilados nas cidades do interior, em particular na cidade da Guarda. Restauraram-se medidas repressivas e infligiram-se penas altura da enfatizada gravidade do acontecimento 82. O Tribunal aproveitou-se da situao para recobrar fora e prestgio, tanto mais que a populao escandalizada com o sacrilgio, queria ver justia feita 83.77 78

Cf. Lcio dAZEVEDO, Histria do Padre Antnio Vieira cit., pp. 80-82 e 340-344. Cf. Os autos do processo de Vieira na Inquisio, edio, transcrio, glossrio e notas por Adma MUHANA, Bahia,

1995. Antnio Vieira tambm levava consigo a incumbncia de tratar dos processos de canonizao do Pe. Incio de Azevedo e de mais trinta e nove mrtires jesutas que tinham sido martirizados em Julho de 1570 pelos hugenotes. A conquista do reconhecimento do martrio e da canonizao pela Igreja era um aspecto importante para que a Companhia de Jesus aquilatasse prestgio no quadro eclesial e nas sociedades marcadas ainda pelo modelo de cristandade. 80 Ver os memoriais apresentados pelo pregador a fim de demonstrar as injustias e faltas de fundamentos das alegaes que levaram sua condenao pelo Santo Ofcio: Deffeitos do juizo, processo e sentena na cauza do Pe. Antnio Vieira estando recluso na Inquisio, representados santidade de Clemente X, BPE, cd. CX/1-1; Informao do colector sobre estes papis do Pe. Antnio Vieira, Ibidem; e cf. BNL, Seco de Reservados, cd. F.R. 721. 81 Cf. Francisco RODRIGUES, s.j, Histria da Companhia de Jesus cit., Tomo II, Vol. 1, p. 475 e ss. 82 A primeira resposta, impulsiva, do monarca para satisfazer a populao amotinada e escandalizada com o acto sacrlego tinha sido a publicao do decreto de 22 de Julho de 1671 que mandava expulsar de Portugal todos os penitenciados da Inquisio desde o ltimo perdo geral de 1605 e os que tambm tivessem sado em auto-de-f. Esta ordem de expulso tambm era extensvel aos seus filhos e netos. Cf. IAN/TT, Armrio jesutico, mao 29, n 13. Mas o decreto acabou por no ser aplicado devido aos inconvenientes de tal execuo que foram dados a antever a D. Pedro II. No foi menor o papel elucidativo e de apelo reconsiderao do seu confessor jesuta. Cf. Alexandre da PAIXO, A companhia de Jesus e a Inquisio 1779

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Numa tentativa de contrariar esta ameaa que pairava sobre os cristos-novos portugueses, Manuel Gama de Pdua, um cristo-novo muito rico, dirigiu-se a Roma para tentar obter a proteco do Bispo de Roma. Na cidade papal recebeu o apoio dos jesutas para a sua causa, em particular a colaborao do seu velho amigo Antnio Vieira que l se encontrava desde 1669 em peregrinao. Os intentos de Manuel da Gama foram ao encontro dos interesses do provincial dos jesutas da Provncia do Malabar, o Pe. Baltazar Costa, que se encontrava em Roma para pedir assistncia para sua provncia que tinha sido duramente lesada pelas conquistas holandesas de 1660, com quem Vieira ps em contacto o cristo-novo portugus. O Pe. Baltazar acreditava na possibilidade de Portugal vir a recuperar os territrios perdidos na ndia em favor da Frana e da Holanda. Das conversaes com os jesutas resultou uma proposta que servia os interesses dos jesutas e dos judeus, a qual precisava de receber o aval do rei D. Pedro de Portugal. Manuel da Gama propunha coroa portuguesa a constituio de uma companhia comercial com capitais cristos-novos, decalcada do modelo da companhia de Brasil, para relanar o comrcio de Portugal com a ndia. A contrapartida seria a esperada: o perdo geral de Roma para todos os membros da comunidade crist-nova portuguesa 84. Neste acordo foram envolvidos a Universidade de vora, o confessor jesuta de D. Pedro, a rainha e alguns prelados portugueses que se uniram para pedir Santa S a concesso do perdo 85. O Rei de Portugal e a Santa S mostraram abertura para encontrar uma soluo conciliadora 86. Mas em Maro de 1673 os responsveis pela Inquisio portuguesa quiseram ver no plano gizado pelo jesuta heresia e traio e foram de parecer que a recuperao da ndia tinha menos valor que manter a pureza da f religiosa em Portugal. Os correligionrios deste Tribunal complementaram estes pronunciamentos com outras tcnicas mais persuasivas para fazer vingar o seu ponto de vista. Organizaram manifestaes populares contra o judasmo e contra a Companhia de Jesus. Turbas populares assanhadas gritaram palavras de ordem contra os Jesutas, foram afixados cartazes com mensagens ameaadoras nas portas dos colgios e residncias da Companhia de Jesus, com particular destaque para So Roque 87. Alguns mentores influentes que estavam por de trs destas manifestaes chegaram a propor solues drsticas para o problema que encareciam em termos da sua gravidade. Um deles foi Roque Monteiro Saim, prximo de D. Pedro II e que viria a ser seu secretrio particular. Este anti-semita redigiu um texto polmico caracterizado pela sua radical intolerncia, cujo ttulo bem indicativo do seu contedo: Perfdia judaica. Neste texto, defendia a expulso de todos os judaizantes, uma restrio e maior vigilncia da comunidade crist-nova, proibio dos casamentos mistos e anulao de todos os privilgios e honras concedidos aos descendentes de judeus. Afirmava com nfase temerrio e alarmista que, sob a cumplicidade jesutica, os Judeus tinham facilmente

Monstruosidades do tempo e da fortuna (1662-1680), Reimpresso por Damio PERES, Vol. 2, Porto, 1939, p. 122. Esta obra escrita naquela poca desaprova o apoio dos Jesutas, em particular do padre Antnio Vieira, s reivindicaes e pretenses dos indivduos de raa judaica. No volume III o autor desta espcie de crnica poltico-social daquele tempo, manifesta um forte anti-semitismo de contornos mitificantes, que partilha do mito do complot judeu, ao afirmar que o Reino de Portugal estava contagiado com as mais nociva das partes, o pestfero sangue desta maldita gente. Ibidem, p. 50. E ver Joo Lcio de AZEVEDO, Histria dos Cristos-Novos cit., p. 239. 83 Cf. Idem, Histria do Padre Antnio Vieira cit., p. 120 e ss.; Tristo da Cunha de ATADE, Portugal, Lisboa e a corte nos reinados de D. Pedro II e D. Joo V: Memrias histricas, Edio de Antnio Vasconcelos de SALDANHA e Carmen M. RADULET, Lisboa, 1990. 84 Cf. Lus de MENEZES, Historia de Portugal Restaurado, Vol. 2, Lisboa, 1698, pp. 468 e ss. 85 Cf. IAN/TT, Armrio jesutico, mao 29, nos. 18 e ss. 86 Cf. Richard GRAHAM, The jesuit Antnio Vieira and this plans for the economic rehabilitation of seventeenth-century Portugal, So Paulo, 1978, p. 179 e ss. 87 Cf. Jayme Constantino de Freitas MONIZ (ed.), op. cit., Vol. XIV, p. 153 e ss. 18 Jos Eduardo Franco

Actas do Congresso Internacional Atlntico de Antigo Regime: poderes e sociedades

crescido de forma assustadora em Portugal, de tal modo que no haveria a breve trecho, se assim continuasse a suceder, cristos-velhos para os julgar 88. Um oficial do Santo Ofcio chegou ao ponto de apelar para que a Igreja dos jesutas fosse purificada pelo fogo, alegando que estava a produzir herticos, alm de apelar para que o confessor rgio fosse queimado vivo 89. Hereges, renegados, educadores de hereges e pagos, traidores, eram os eptetos que o movimento pr-inquisitorial lanava contra os membros da Companhia de Jesus, vista assim como uma perigosa ordem Protestante no seio da Igreja Catlica. Com o apoio dos Jesutas, afirmava um verso de um poema annimo ento difundido, em menos de poucos dias, todos nos tornaremos judeus 90. E alguns mendicantes quiseram ver justificadas as suspeitas tradicionais em relao natureza desta Ordem, donde no poderia sair coisa boa 91. Alguns prelados deram voz para defender a causa da Inquisio, entre eles o arcebispo de vora que pediu a D. Pedro para no proteger os herticos e apostatas, ao lado do bispo de Leiria que alegava, em defesa da posio repressiva, que sempre que a coroa tinha favorecido os cristos-novos, Portugal tinha sofrido revezes nas suas conquistas e nos seus interesses coloniais. Queria com isto significar que os cristos-novos eram a raiz de todas as graves dificuldades que Portugal tinha sofrido at ento, como se de um castigo divino se tivesse tratado. Com efeito, o risco assumido pelos Jesutas, ao afrontarem a Inquisio e assumirem a defesa da causa crist-nova, significava mais do que afrontar uma instituio poderosa. Significava afrontar uma mentalidade que olhava para o Tribunal do Santo Ofcio como uma vergasta implacvel para domar uma raa entendida como nefasta, fonte de heresia, apostasia e, por isso, meio de atrair a ira e castigo divinos contra as sociedades que a albergavam. Neste quadro em que se atiou um extraordinrio dio antijesutico, alguns prelados chegaram a propor a D. Pedro que os Jesutas fossem expulsos do reino, ou, pelo menos, da capital lisboeta. Perante os ouvidos moucos do monarca, o bispo da Guarda, D. Martinho Afonso de Melo, com o apoio do Bispo de Leiria, D. Pedro Vieira da Silveira, chegou tambm a propor ao rei que pelo menos os Padres da Companhia fossem inibidos de exercer os seus ministrios nas dioceses da metrpole. Por fim, uma frustrada conspirao intentada contra o monarca em Setembro de 1673 levou D. Pedro a postergar a sua ingerncia nos assuntos do Tribunal da Inquisio, embora tivesse resistido viabilizao das propostas antijesuticas mais radicais 92. Apesar do retrocesso que este ambiente representava para as pretenses jesuticas, um novo facto surgiu em favor destas: a priso e execuo de duas freiras em vora que se afirmaram inocentes at morte. Esta execuo, feita com base em acusaes de testemunhas protegidas ao abrigo do segredo inquisitorial, foi usada por Antnio Vieira como prova exemplar do modo de proceder da Inquisio Portuguesa 93. O caso foi levado pelo jesuta ao conhecimento daCf. Roque Monteiro PAIM, Perfdia judaica, Christus vindex, manus principis Ecclesiae ab apostatis liberata, Madrid, 1671. 89 Cf. Cf. Richard GRAHAM, The jesuit Antnio Vieira cit., p. 182 e ss. 90 Alexandre da PAIXO, Monstruosidades do tempo e da fortuna cit., p. 62. 91 Cf. IAN/TT, Armrio jesutico, mao 30, n. 84. 92 Cf. Idem, Ibidem, nos. 89 e ss. Tambm no ano de 1674 entrou em aco o sector nobilirquico pr-inquisitorial. Um grupo constitudo por trinta membros da nobreza de Portugal dirigiu-se ao Sumo Pontfice advogando a causa da Inquisio contra os Judeus e os Jesutas, cuja influncia queriam quebrantar para que os hereges no ficassem impunes e a f fosse salvaguardada no reino em toda a sua pureza. Cf. Jayme Constantino de Freitas MONIZ (ed.), op. cit., Vol. XIV, p. 184. 93 Na epistolografia de Antnio Vieira desta poca est bem presente a fora do seu fogo crtico que denunciava de uma forma aguda a triste situao da sociedade portuguesa subjugada pela Inquisio. Vieira sabia e dizia que este tribunal matava inocentes. Tal era a m fama da Inquisio Portuguesa em Itlia que numa carta escrita de Roma informa que naquela capital do catolicismo corria a notcia que se algum era inocente que o mandassem para Portugal para logo o queimarem. O pregador aponta o ambiente de espionagem doentia que corroa o tecido social portugus: Em Portugal no se abre uma porta nem se fecha sem que toda a terra o no saiba. E ridiculariza ao extremo a inconsistncia das acusaes que se alegavam para condenar os cristos-novos: quando queimaram um A companhia de Jesus e a Inquisio 1988

Comunicaes

Santa S. Perante isto, o Papa vituperou os procedimentos judiciais do Santo Ofcio portugus e decretou a suspenso do seu funcionamento judicirio por tempo indeterminado no ano de 167494. E um ano depois Antnio Vieira alcana ainda oficialmente do Pontfice Romano a imunidade contra a Inquisio Portuguesa e a anulao da sentena deste tribunal contra si 95. Naturalmente que o decurso da vitria de Antnio Vieira 96 e dos Jesutas no deixou de suscitar fortes reaces em Portugal da parte dos sectores afectos aos interesses da Inquisio e manobrados por esta. Com efeito, reaces contundentes no se fizeram esperar visando Vieira e a sua Companhia de Jesus. Destas reaces so expressivas um conjunto de stiras redigidas contra Vieira e os jesutas, como so exemplos duas cartas satricas, uma de Dona Feliciana intitulada Catstrofe de Portugal 97 e outra Carta que Hyeronimo Correa Sarrapante escreveu ao Padre Antnio Vieira, da Companhia de Jesus, estando preso por louco no hospital o dito Sarrapante 98; um panfleto abjuratrio de autor annimo com o ttulo J que vossa Alteza ouve a quem to licenciosamente fala 99; e o libelo mais demolidor de Frei Martinho de Torrecilas, telogo castelhano da Ordem dos Capuchinhos, que vivia na poca em Lisboa, encabeado com a indicao do assunto: Resposta proposta feita a sua Alteza por um hebreu illudente e illuso, e collyrio sua cegueira 100. Este ltimo libelo satrico paradigmtico do tom e do contedo polmico antijesutico e antivieiriano dos polemistas pr-inquisitoriais. Est munido de uma retrica de tom picante e violento, de um estilo barroco muito enrolado, cheio de analogias sugestivas. O capuchinho espanhol desembainha a espada da pena para cegar a impura garganta de to monstruosajudeu, inocentemente acusado de ter assado o carneiro pascal, no faltou quem confessasse t-lo visto levar o carneiro na algibeira, ass-lo ao lume de candeia e depois engolir o candeeiro. Carta do Padre Antnio Vieira estando em Roma da primeira vez escreveu a um portugus e grave que tambm l se achava sobre o rigor de estilo das Inquisies em Portugal naquele tempo, BA, cd. 49-IV-23. 94 Clemente X, pelo Breve de 3 de Outubro de 1674 favorece declaradamente as pretenses dos cristos-novos: ordena aos inquisidores que cessem totalmente os autos-de-f e que suspendam qualquer actividade judicial e chama a si o julgamento das causas pendentes no Santo Ofcio portugus. Cf. IAN/TT, Armrio jesutico, caixa 1, n. 51; e BPE, cd. CX/1-1. Em contrapartida uma junta reunida por D. Pedro emitiu pareceres contra a determinao papal, que considerava lesiva dos direitos adquiridos pelo Santo Ofcio portugus. Todavia, a influncia do Pe. Manuel Fernandes conseguiu evitar que fossem tomadas medidas mais radicais em relao a esta intromisso radical da Santa S em assuntos portugueses. De qualquer modo a obedincia suspenso papal no foi imediata, pois as portas do palcio da Inquisio s se fecharam efectivamente em Maro de 1678, acatando um novo breve agora do papa Inocncio XI. CF. IAN/TT, Armrio jesutico, caixa 2, n. 304; e J. Vaz de Carvalho, Antnio Vieira em conflito com a Inquisio, in Brotria, Vol. 145, Nos. 4/5, 1997, p. 389. A Santa S tinha exigido que fossem enviados para Roma dois processos inquisitoriais para averiguao pelos tribunais da Cria Romana, exigncia que foi sucessivamente desobedecida. S em 1681 o Santo Ofcio cede neste brao-de-ferro enviando para o Vaticano os processos pedidos. Ento, o Papa aceita restabelecer a Inquisio Portuguesa em funes plenas, no dia 23 de Agosto daquele ano, ordenando que os reclusos fossem tratados com caridade, que se atenuasse o rigor das prises, que os rus tivessem direito a assistncia espiritual e a receber os sacramentos e lhes fosse facultada a leitura de obras espirituais. IAN/TT, Armrio Jesutico, caixa 2, n. 85. 95 Atravs do Breve de 17 de Abril de 1675, o papa Clemente X imuniza Antnio Vieira em relao ao poder da Inquisio Portuguesa, tornando-o apenas subordinado Congregao do Santo Ofcio de Roma. No mesmo documento exalta-lhe o zelo da F Catlica, a cincia nas Letras Sagradas, a bondade de (...) vida e costumes, e outros louvveis merecimentos e bom proceder. Antnio Vieira, s.