de profecia e inquisição

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Brasília – 1998 ....................................................... Coleção Brasil 500 anos DE P ROFECIA  E INQUISIÇÃO Padre Antônio Vieira  Tricentenário da morte do Padre Antônio Vieira

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  • Braslia 1998

    .................................................................

    Coleo Brasil 500 anos

    DE PROFECIAE INQUISIO

    Padre Antnio Vieira

    Tricentenrio da morte do

    Padre Antnio Vieira

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Nota Editorial

    Este livro, que leva o ttulo De Profecia e Inquisio, renetextos de autoria do Padre Antnio Vieira e referentes ao processoque o Santo Ofcio promoveu contra o grande missionrio e pre-gador.

    Esta edio tem por base o livro editado em 1856 porEditores, J.M.C. Seabra & T.Q. Antunes, de Lisboa, lanado em trstomos, com o ttulo Obras Inditas do Padre Antnio Vieira.

    Os trs tomos, que somaram cerca de 650 pginas,trazem na Advertncia a afirmao: "os preciosos e rarssimosmanuscritos... no presente volume saem pela primeira vez luz". So28 textos independentes, alguns mantendo relao entre si, como osque tratam de "gente de nao", os dos indgenas, os da Inquisio,os do debate das profecias e "esperanas" de Portugal no sebastian-ismo, cartas, epigramas e mesmo sonetos.

    Deles esta edio apresenta a "Defesa do Livro intituladoQuinto Imprio, que a apologia do livro Clavis Prophetarum etc."; a"Petio do Padre Antnio Vieira ao Tribunal do Santo Ofcio deCoimbra"; as "Esperanas de Portugal, Quinto Imprio do Mundo,primeira e segunda vinda de El-Rei D. Joo o quarto"; a "Sentenaque no Tribunal do Santo Ofcio de Coimbra se leu ao Padre AntnioVieira"; o "Breve de Iseno das Inquisies de Portugal e mais Rei-nos que em Roma alcanou a seu favor o Padre Antnio Vieira, peloPapa Clemente X"; as "Reflexes sobre o papel intitulado Notcias

  • Recnditas do modo de proceder do Santo Ofcio com os seuspresos"; e o "Discurso em que se prova a vinda do senhor Rei D. Se-bastio".

    Como no podia deixar de ser, procurou-se acrescentar aesta edio, alusiva e inserida no mbito do terceiro centenrio da mortede Vieira, que ocorre neste ano da graa de 1998, um documento crtico altura da obra, razo por que cometeu-se ao Professor Alfredo Bosi aanlise destes textos to curiosos de e sobre o Padre Antnio Vieira.

  • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

    Prefcio

    VIEIRA E O REINO DESTE MUNDO

    Alfredo Bosi

    Embora eu j conhecesse a edio exemplar que Hernani Cidadefez da defesa de Vieira perante o Santo Ofcio, no pude deixar de me comoverquando tive em mos o processo original que se encontra na Torre do Tombo1.So quase novecentas folhas de pergaminho, malcosturadas com fio grosso. A letrado ru fina e se mantm clara at uma certa altura, depois comea a empastar-se.Entrevemos o rosto do acusado ardendo em febres da malria que contrara nasmisses do Amazonas. Ouvimos a tosse do tsico j cortada nos ltimos meses decrcere por violentas hemoptises. Muitas das folhas j esto coladas, e omanuscrito parece s vezes uma s mancha informe. Mas o esprito, que sopraonde quer, no se abate nem desfalece em momento algum. Vieira insiste emprovar o tempo todo aos seus inquisidores a verdade e a ortodoxia da sua leituradas trovas profticas do sapateiro Bandarra: versos messinicos escritos havia maisde um sculo em uma vila da Beira chamada Trancoso.

    O processo durou de 1663 a 1667. Para defender-se Vieira redigeduas longas representaes. O Tribunal no se convence e o submete a exames

    XII PADRE ANTNIO VIEIRA

    (1) Pe. Antnio Vieira, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofcio. Introduo enotas do Prof. Hernani Cidade. Tomos I e II. Salvador, Livraria ProgressoEd., 1957.

  • pontuais cada vez mais apertados, aos quais o ru responde esgrimindo a suaretrica temerria que se engenha em tornar crvel o impossvel, provvel o apenaspossvel, e absolutamente certo o apenas provvel. Mas no fundo dessa arte in-genuamente sutil pulsava um desejo que belo e nobre ainda e sempre: o sonhode um reino de justia que se realizaria c na Terra, neste nosso mundo, e noto-somente no outro.

    Pelos autos v-se o quanto essa utopia do ru suscitou as iras dosseus juzes. O fato que Vieira atrara contra si um concurso de motivaesameaadoras. O anti-semitismo da Inquisio, de velas enfunadas nos Seiscentos,vislumbrou, com a perspiccia feroz dos perseguidores, traos judaizantes naquelaselucubraes profticas. Era, alis, notria a posio do nosso jesuta em favor dos"homens de nao" desde quando interviera junto ao rei pedindo-lhe que fossembem acolhidos em Portugal os judeus dispersos pela Europa. Deles poderiam virrecursos para financiar a Companhia das ndias Ocidentais projetada pelo mesmoVieira. Esse o teor da sua "proposta feita a El-Rei D. Joo IV, em que se lherepresentavam o miservel estado do reino e as necessidades que tinha de admitiros judeus mercadores que andavam por diversas partes da Europa".

    Havia ainda outros motivos que explicariam a animosidade doSanto Ofcio: a antipatia que os dominicanos nutriam pela Companhia de Jesuse, last but not least, a vaidade literria de um de seus pregadores, Frei Domin-gos de Santo Toms, ferida pelas setas do nosso orador, que traara a sua carica-tura no Sermo da Sexagsima.

    Voltemos aos autos. Vieira exalta as trovas do Bandarra, er-guendo-se altura das profecias de Isaas e Daniel e dos versos dos Salmos e dosCantares. No contente com essa mostra de credulidade, interpreta a figura doEncoberto como aluso a D. Joo IV. Sucede que este rei, seu protetor, morreraem 1656. Vieira no hesitara ento em escrever rainha viva uma carta anun-ciando a prxima ressurreio de D. Joo IV, o qual venceria osmaometanos e instauraria o Quinto Imprio, enfim, o reino de paz profeti-zado nas Escrituras.

    Vieira operara uma substituio ttica, pois o Encoberto era paraos primeiros crentes do Bandarra ningum menos que D. Sebastio, o jovem reique desaparecera nos areais de Alccer-Quibir. A este sim, o povo, desconsolado

    De Profecia e Inquisio XIII

  • com o desastre nacional, atribua poderes messinicos, esperanas tenazes que, pas-sados trs sculos, o nosso Euclides da Cunha ainda ouviria da boca dos sertane-jos reunidos em Canudos em torno do Conselheiro.

    O leitor culto dos nossos dias talvez pasme ao perceber o candorcom que um homem da estatura de Vieira dissertava sobre a ressurreio prximade um rei morto havia pouco. No entanto, esse homem o mesmo a quemCristina da Sucia, discpula de Descartes, escolheria para diretor espiritual nosseus anos romanos. E mais se espantar quando ler, na Defesa, a justificao doru, que declara ter feito uma diligncia (diramos hoje uma pesquisa), a qual"sem ser to esquisita como eu quisera, nem estar acabada, j tinha descoberto,nesses 120 ltimos anos, 95 mortos ressuscitados; pois assim como ressuscitaram95, que muito seria que fossem 96?"

    O monarca redivivo fundaria o Quinto Imprio que duraria milanos, at que sobreviesse o dia do Juzo. Aqui confluem o trao mais arcaico e omais atual do milenarismo. Vieira imagina um tempo que nunca existiu a noser nas dobras de um desejo coletivo de felicidade. Eram saudades do futuro as queditavam as suas esperanas.

    Os inquisidores exigiram que ele falasse do reino somente em termosmetafricos. Vieira sustentou quanto pde o sentido literal: o reino se erguer naterra dos homens. Ao cabo de dois anos, abalado pela informao de que o papacondenara as suas proposies, retratou-se. Mesmo assim, foi proibido de pregar emPortugal. Saiu da ptria, foi viver em Roma, onde Clemente X lhe concedeu hon-rarias e um salvo-conduto, o Breve, que o livraria de novas arremetidas da In-quisio lusitana. No fim da vida, j octogenrio, no refgio baiano da Quinta doTanque, Vieira continuou a escrever, contra tudo e contra todos, a ClavisProphetarum.

    O que a profecia

    Esta apenas uma primeira leitura do que se pode considerar oncleo do processo: as profecias do Bandarra foram acolhidas por Vieira segundouma perspectiva messinica, mas j no sebastianista em senso estrito, porqueadaptada espera da ressurreio de D. Joo IV, o Restaurador.

    XIV PADRE ANTNIO VIEIRA

  • Convm fazer algumas reflexes tentando verticalizar a simplesconstatao do fato. Qual o fundamento da leitura proftica de Vieira?

    Como hiptese de trabalho, diria que o pressuposto de toda visoproftica a crena de que o processo histrico no se faz por um mero agregado deeventos casuais. No horizonte de profeta, a Histria seria dotada de um telos,uma direo, um sentido final, que, por sua vez, tende a ser totalizante.

    Verifica-se no discurso proftico uma combinao singular decontingncias aparentes e finalismo sistemtico.

    O termo "contingncia" no de fcil entendimento. Para atradio escolstica, familiar a Vieira, contingente um termo que se situaria emposio mdia na escala que vai do meramente possvel (mnimo de determinao)ao necessrio (mximo de determinao). A contingncia o evento que, dentro dovasto campo dos possveis, pode acontecer se alguma causa o tornar necessrio.Haveria, pois, certo grau de determinao condicional na contingncia(poder...se), que a distinguiria do acaso e da indeterminao prpria da esferados meros possveis. A contingncia seria uma situao possvel que, em relao acertas condies, se efetuaria, tornando-se ento relativamente necessria. Con-venhamos: descemos ao subsolo das sutilezas escolsticas. Vieira sentia-se vontade nesses desvos...

    Mais simples e mais drstica a verso que do mesmo conceito nosd o filsofo da Necessidade. Segundo Espinosa, existe uma e nica Ordem Ne-cessria, que preside ao cosmos e vida humana. Tudo o que aconteceu, acontece evier a acontecer obedece a uma lei inflexvel. Nesse universo geomtrico, o fato dealgum imaginar que um evento poder acontecer ou no (o que o conceitotomista de contingncia) resulta de uma iluso e deve-se aos limites do nosso con-hecimento. Na tica (I, 33, scol. 1), est explcita a relao entre a crena emeventos contingentes e a insuficincia da mente. S em Deus -- outro nome da Or-dem Natural -- tudo est eternamente presente e conhecido; e onde tudo ne-cessrio no h lugar para casuais intervenes de Deus na Histria. A profeciase reduziria ento a um conhecimento racional alcanado por um intelecto maislcido do que o do comum dos homens.

    Vieira, nos marcos de um pensamento providencialista, cr tambmque s Deus onisciente, mas que, mediante sucessivas revelaes, Ele pode tirar

    De Profecia e Inquisio XV

  • os homens da ignorncia no que toca aos futuros contingentes, para que o homem"no atribua a causas naturais (e muito menos ao acaso) os efeitos que vm sen-tenciados como castigos por sua justia e ordenados para mais altos e ocultos finspor sua Providncia" 2. Os profetas seriam os porta-vozes por excelncia dessesdesgnios divinos que, em parte, j se realizaram na Histria da Salvao, emparte ainda vo realizar-se.

    Se o evento profetizado como, por exemplo, a queda de um im-prio, fosse universalmente previsvel e tido por natural e necessrio (domesmo modo que todos sabem que fatal a seqncia dia-noite), ele no pre-cisaria ser objeto de revelao: j estaria inscrito na expectativa do comum dosmortais. Mas, na medida em que o evento profetizado s pode ser previsto me-diante o anncio que Deus faz a alguns homens excepcionais, a sua necessi-dade no aparece como evidente a todos: a crena na sua realizao exige fna palavra do profeta. Da vem o desencontro e at mesmo o conflito entre oprofeta e os seus ouvintes incrdulos para os quais s se pode prever com certeza oque j est "naturalmente" predeterminado.

    Quanto aos crentes, e s para estes, a profecia deixa de ser prediode um evento contingente, e passa a ser fatum, necessidade, pois foi proferida porum eleito de Deus. Nab, em hebraico; prophets, em grego: aquele que fala emlugar de Deus.

    Em suma, crer na profecia, antes da sua realizao, sempre umato de f. Vieira est ciente dessa condio subjetiva da crena, e procura confort-la com as lies da Histria, seguindo o preceito agostiniano de que o novo estlatente no antigo, e o antigo se patenteia no novo. Quod in Vetere Testa-mento latet, in Novo patet (De spiritu et littera, 7). A vigncia de uma re-lao estreita dos sucessos atuais com a profecia antiga afirmada e reiterada pelosevangelistas que a enunciam por meio da frmula "estas coisas se fizeram paraque se cumprissem as Escrituras" ou de suas variantes.

    As Trovas do Bandarra estariam confirmadas pelos sucessos daRestaurao portuguesa e pelas aes patriticas de D. Joo IV: provas de que a

    XVI PADRE ANTNIO VIEIRA

    (2) Livro Anteprimeiro da Histria do Futuro, Lisboa, Bibl. Nacional, p. 40.

  • histria acontecida perfez as palavras do sapateiro de Trancoso escritas havia maisde um sculo.

    Quanto viso de eventos futuros, Vieira recorre a profecias bbli-cas, interpretando-as em consonncia com as alegorias das Trovas.

    As profecias ainda no realizadas, como a vitria definitiva so-bre os maometanos, a converso dos judeus e a instaurao do Quinto Im-prio, deveriam ainda necessariamente cumprir-se. Mas para tanto D. JooIV haveria de ressuscitar, pois fora a este mesmo rei que o Bandarraatribura misses universais.

    Da matria da profecia, os futuros contingentes, passemos ao seusujeito e natureza.

    Quanto ao sujeito que profetiza, mostra Vieira que s merece confi-ana e digno de receber o nome de verdadeiro profeta aquele cujas predies defato se realizaram. (Lembro de passagem que a previso correta , para algunscrticos modernos da cincia, o banco de prova de qualquer teoria...) O domproftico no dependeria de nenhuma das virtudes especficas da santidade crist.Foram profetas tanto magos do Egito e sibilas da antiga Grcia quanto judeus e,entre os cristos, homens notoriamente pecadores, que viveram dentro ou fora daIgreja: "S o efeito das cousas profetizadas tem forosa e necessria conexo com oesprito e verdade da profecia" (Representao I, 38). Logo, o Bandarra foiverdadeiro profeta.

    Enfim, a essncia do discurso proftico de ordem originaria-mente religiosa. O profeta se cr inspirado por uma fora sobrenatural que otranscende e de que ele mensageiro. Revelao divina e esprito proftico soexpresses que definem o ser da profecia e marcam tanto o sujeito que a pro-fere quanto a sua matria. Ambas se encontram acopladas no texto da defesade Vieira (Representao I, 29).

    Essa pertena do profetismo linguagem religiosa no impede que asua aplicao ordem secular, ao mundo, ganhe uma dimenso poltica; aocontrrio, o profeta trata de poderes que sero abatidos e de poderes que serolevantados. O que explica as reaes violentas com que as instituies domi-nantes rejeitaram tantas vezes a sua palavra: Isaas escarnecido pelas ruas da

    De Profecia e Inquisio XVII

  • cidade, Jeremias apedrejado at a morte, o Bandarra sujeito ao tribunal do SantoOfcio...

    Figura e profecia

    "Figure porte absence et prsence,plaisir et dplaisir.""La figure a t faite sur la vrit,et la vrit a t reconnue sur la figure."

    (Pascal, Penses).

    Vieira aproxima figura e prognstico.

    O dicionrio de Morais, que compendia o uso da lngua portuguesados autores clssicos, registra como uma das acepes do termo figura pre-cisamente esta: "imagem significativa de cousas futuras".

    Figura toma-se aqui na acepo ampla de imagem portadora desmbolos. A retrica ensina que figura toda expresso cujo significante remete aoutro significado que no o convencional, dito literal. Metforas e alegorias so lin-guagem figurada na medida em que o seu fundamento a translao analgica deum significado a outro.

    preciso atentar para esse movimento semntico. A figura articuladuas dimenses complementares. H uma dimenso icnica que pode ser projetadae construda no espao: a esttua de ps de barro do Livro de Daniel uma im-agem que aparece no sonho de Nabucodonosor e pode ser descrita plasticamente.Mas esse carter espacial no inerte nem esgota o campo de significaes dafigura. Nele pulsa outra e mais profunda dimenso: quando a imagem do sonho verbalizada e exige decifrao, a figura se d ao intrprete como viveiro de sm-bolos, ncleo fecundo de potencialidades que se desdobram e entram na corrente dotempo histrico. Aquela figura-cone inicial revelou-se, por fora da sua dinmicainterna, uma figura narrativa.

    Dizia Vico, na Cincia Nova, a propsito da metfora, que estaera na origem uma "piccola favoletta", narrativa mnima, fbula em embrio. Oprofeta Daniel desentranha da imagem da esttua sonhada pelo rei a histria fu-

    XVIII PADRE ANTNIO VIEIRA

  • tura de quatro imprios sucessivos afinal destrudos por uma pedra que encheriatoda a Terra -- alegoria do ltimo e eterno reino de justia e paz (Dan 2, 44).

    Corao do processo narrativo, a figura ora traz tona experinciassubmersas no passado, sendo ento objeto de reconhecimento da memria ( o quefaz o analista na anamnese dos fantasmas onricos do paciente); ora movida pelodesejo, recebendo o estatuto de figurao de coisas e tempos futuros. A figura, nestecaso, descola-se da sua forma aparentemente esttica e mostra a sua verdadeiraface de conhecimento antecipado, narrativa dos futuros, viso, profecia.

    Se o intrprete der figura um significado unvoco e o fixar como onico legtimo, a profecia ser lida como alegoria. Ou seja, um "outro discurso",que, embora individual, pode cristalizar um desejo comunitrio, uma utopia so-cial. A figura que parecia apenas imagem produzida em sonhos tende, naeconomia da vontade coletiva, a ser prognstico infalvel. Dom Sebastio voltar.Em face do sinal (antes que serrem quarenta, erguerse ha gran tor-menta), os leitores e os ouvintes produzem "wishful thinking", pensamento dese-joso.

    H uma ponte que comunica a figura enunciada com o evento quedever um dia acontecer. Entre os plos -- a figura plasmada no pretrito e o seucumprimento no futuro -- vigoram o desejo e a conscincia atual. o olhar pre-sente que busca a palavra passada servindo-lhe de mediador e tradutor, mantendo-a viva. A memria social, como bem a analisou Maurice Halbwachs, opera sob aao da percepo e da vontade, aqui e agora. a histria contempornea do in-trprete com os seus ideais e valores, as suas nostalgias e utopias, que escava e traz luz o passado forjando elos de coerncia interna sem os quais a profecia apare-ceria como vana verba, delrio da imaginao.

    A condio de possibilidade da profecia reside no fato de o tempoter, para os seus crentes, um sentido.

    A figura e a ao do tempo

    "Ali onde chega o presente e comea o futuroera at agora o Cabo de No."

    De Profecia e Inquisio XIX

  • (Histria do Futuro, X).

    Talvez o modelo mais prximo daquele sobre o qual se constri afigura de cunho proftico seja o do fluxo dos movimentos csmicos.

    A analogia de base a seguinte: os momentos histricos se sucedem,assim como os da natureza; mas, tal como na natureza, no se trata de purasucesso linear, srie indefinida de diferenas, pois se verificam recorrncias, re-fluxos, fases de ciclos, redes de relaes entre o que agora e o que j foi, entre oque e o que ser, entre o que ser e o que j foi.

    A noite que se segue ao dia de ontem precede o dia de amanh,que a rotao do Planeta prepara, segundo por segundo, imperceptivelmente. Odia volta de novo, uma vez mais, sendo sempre um novo dia. Novo novidade;de novo repetio.

    A criana que abre os olhos para a luz da manh v que o sol mal rom-peu; no entanto, a idade do astro que ilumina o novo dia contada em bilhes de anos. Onovo se reprope desde a origem dos tempos. Este o fundamento da esperana.

    Se as situaes apenas decorressem umas aps as outras na srie dasdiferenas, se no houvesse a possibilidade de retomar, de novo e renovadamente, oque j foi alguma vez produzido, ento jamais uma figura traada outrora poderiaser atualizada agora ou no futuro. Mas o que se esvaiu no tempo do relgio per-siste nas mars da memria e do desejo. Quem vive o presente e se volta para olharo passado sabe, por ntima experincia, que o futuro existe, precisamente porque oseu presente o futuro do passado.

    A palavra dita por algum que j morreu, a palavra de um morto,no ser palavra morta.

    Figuras j enunciadas em qualquer tempo esto ainda hoje afetadasde potencialidades de leitura e de realizao. A imagem proftica uma palavraque sobrevive.

    Enquanto signo reitervel tal e qual ao longo dos sculos, a pro-fecia parece ilustrar o topos sapiencial do nihil novum sub sole. Todas aspalavras j teriam sido ditas, e no restaria a ns e aos psteros se norediz-las. Mas a verdade mais complexa: ao lado da semelhana reponta adiferena, que no pequena. A figura proftica recebe o benefcio do tempo que

    XX PADRE ANTNIO VIEIRA

  • avana: novos acontecimentos podem descobrir uma verdade que o passado enco-bria.

    Um leitor de Vieira, dos mais escrupulosos, Jos Van Den Besselaar,chamou a ateno para o valor que se d, na Histria do Futuro, passagemdos anos e, da, boa fortuna dos comentadores modernos das profecias. Teriamestes melhores condies de ver o que os Antigos no puderam conhecer3.

    um discurso raro, atpico, por isso significativo, de valorizao donovo e de um tempo que se adianta j no mais em direo morte dos indivduose entropia das naes. No mais o famigerado "tempo roedor das coisas","tempo minaz", mas um tempo que procede no sentido da sua plenitude.

    Examinem-se de perto as metforas do lume da profecia e do lumeda razo com que Vieira nomeia o entendimento progressivo dos desgnios daProvidncia. No captulo X "mostra-se que o melhor comentador da profecia o tempo". Os Antigos, posto que tivessem melhor candeia (ainda a defern-cia ao princpio da autoridade), no poderiam ter enxergado os futuros toclaramente quanto os modernos: a estes foi dada a vantagem de estarem maisprximos do cumprimento das promessas, "porque a candeia de mais pertoalumeia melhor".

    Os profetas do Velho Testamento anunciaram a Cristo, sim, mas"o Batista mostrou-o melhor, porque era candeia de mais perto. Os outros diziam:H de vir; e ele disse: Este ."

    E neste passo, munindo-se das cautelas necessrias a um religioso quedeve enfrentar a suspiccia inquisitorial, Vieira aponta as novidades espantosas que ostempos recentes trouxeram humanidade. As candeias de mais perto tambmajudaram os comentadores a ver nas profecias o que os Antigos no teriam podido se-quer vislumbrar. O cabo No foi dobrado, dobrado foi o Bojador. O mar oceano detenebrosa memria foi cortado por naus lusitanas. O nauta Gil Eanes "quebrouaquele antiqssimo encantamento e mostrou que tambm o no navegado eranavegvel". E Vieira no deixa de evocar os camonianos mares nunca dantesnavegados.

    De Profecia e Inquisio XXI

    (3) Ver a Apresentao de Besselaar ao Livro Anteprimeiro, cit., pp. 14-16.

  • No meio de uma chuva de exemplos o comentador lembra bar-rocamente que este mundo um teatro, "uma comdia de Deus", em que osegredo do enredo s vem a ser descoberto na hora do desfecho. Antes que o panocaia tudo so mistrios e expectaes.

    Os captulos XI e XII da Histria do Futuro contm uma apologiafirme da novidade. A comear pela palavra "evangelho", que quer dizer precisamenteboa nova. Ora, a nova crena sofreu rejeio tanto da parte dos judeus quanto da partedos pagos, pois todos se escandalizaram com a sua novidade. O mesmo se deu quandoSo Jernimo se ps a verter a Bblia do grego para o latim. A sua traduo, maistarde reputada como a nica cannica, foi estranhada por um filsofo da estatura deSanto Agostinho, que pediu em carta a Jernimo que desistisse de faz-la: "Quanto verso das Escrituras Sagradas na lngua latina, obra em que eu no quisera queempregsseis o vosso trabalho, porque ou elas so escuras ou so manifestas. Se escuras,com razo se cr que tambm vs vos podeis enganar na sua interpretao, como os ou-tros escritores; e se manifestas, suprflua diligncia quererdes vs explicar o que os ou-tros no podem deixar de ter entendido" (Epstola 28, 2, citada e traduzida porVieira). So Jernimo rebateu com o mesmo argumento perguntando a Agostinho porque ele prprio comentara o Livro dos Salmos, divergindo, alis, dos seus primeirosexegetas... O que foi uma venervel estocada no princpio de autoridade. No conheo atrplica de Agostinho, caso a tenha feito.

    A antigidade como valor em si submetida por Vieira a um olhar de-sassombrado: "No o tempo, seno a razo, a que d crdito e autoridade aos escri-tos, nem se deve perguntar quando se escreveram, seno quo bem. A antigidade dasobras um acidente extrnseco, que nem tira nem acrescenta qualidade."

    A causa de serem preteridos os novos a ignorncia da maioria ou,pior, a inveja dos contemporneos; inveja que s louva os mortos para melhordenegrir os vivos. Observao psicolgica fina, digna dos moralistas franceses dosSeiscentos. No texto de Vieira ela abonada com versos do satrico Marcial, "onosso discreto Espanhol":

    "Como poderei explicar que se negue a fama aos vivos? E por que to raro o leitor que aprecie os livros do seu tempo? Decerto a inveja, Rgulo,que produz tais costumes: ela prefere sempre os antigos aos modernos. Assim, in-gratos que somos, procuramos a sombra de Pompeu; assim os velhos louvam o

    XXII PADRE ANTNIO VIEIRA

  • templo trivial de Ctulo. Tu, Roma, lias nio durante a vida de Virglio, eHomero foi metido a ridculo pelos seus contemporneos." 4

    Os escritores medievais que comentaram as profecias bblicas antesdos descobrimentos portugueses no podiam saber que a Terra era esfrica, jul-gavam fantasiosa qualquer aluso aos antpodas e, naturalmente, ignoravam aexistncia do Novo Mundo. Mas o conhecimento cresceu com o tempo e junto nova cincia da Terra (a nova astronomia, a nova cosmografia) cresceu o entendi-mento das Escrituras.

    No me detenho aqui, por brevidade, nas engenhosas leiturasque Vieira faz dos Cantares e do Livro de Isaas, provando que nesses textosj estavam figuradas as maravilhas da China, do Japo e das Amricas, in-cluindo as do Maranho e das Amazonas. Mais interessantes me parecem ostrechos da Histria do Futuro em que Vieira defende o carter progressivodo conhecimento, combinando a sua f na Histria da Salvao com asevidncias do novo saber que os descobrimentos e a Renascena trouxeram aohomem europeu.

    As imagens, verdadeiras comparaes, so a matria-prima do seudiscurso probatrio. O pigmeu montado s costas do gigante, embora to menor doque este, consegue ver melhor e mais longe. O ltimo degrau da escada, mesmo queseja mais estreito que todos os outros, permite a quem nele subir enxergar o queno enxergou quem escalou s at o penltimo. Os cavadores da vinha que, naparbola evanglica, chegaram na undcima hora, receberam o mesmo salrio dosque j haviam trabalhado o dia inteiro; embora ltimos, foram tratados comoprimeiros. "Quantas vezes os que trabalham no descobrimento de algum tesourocavam por muitos dias, meses e anos, sem acharem o que buscam; e depois de estescansados e desesperados, sucede vir um mais venturoso, que, descendo sem trabalhoao profundo da mesma cova, e cavando alguma cousa de novo, descobre a poucasenxadadas o tesouro, e logra o fruto dos trabalhos e suores dos primeiros! Assimacontece no tesouro das profecias: cavaram uns, e cavaram outros, e cansaram-setodos; e o cabo descobre o tesouro, quase sem trabalho, aquele ltimo para quem

    De Profecia e Inquisio XXIII

    (4) Trata-se de um dos epigramas de Marcial (V, 10). Transcrevi acima a versode Besselaar, que consta em nota ao captulo nono da Histria do Futuro.

  • estava guardada tamanha ventura, a qual sempre do ltimo." V-se aqui, pelaevidncia das analogias, o quanto urgia a Vieira inverter o argumento tradi-cional que d prioridade aos Antigos! Para tanto, era preciso encarecer "o bene-fcio do tempo", pelo qual "as profecias se vo descobrindo ordenada e sucessi-vamente aos mesmos passos -- ou mais vagarosos, ou mais apressados -- com que sevo seguindo e variando os tempos". E enfaticamente: "O tempo foi o que inter-pretou a profecia, e no Daniel".

    Apaixonado pelo tema e conhecendo bem o poder de fogo do ar-gumento contrrio, Vieira se pe caa de exemplos probantes da sua tesearriscando-se a dizer, pura e simplesmente, que o novo superior ao antigo.O sol veio depois das trevas, o homem depois dos animais, o Novo Testa-mento depois do Velho, o cristianismo depois do paganismo. No plano doconhecimento, se a memria nos bastasse, por que Deus nos teria dado o en-tendimento? Saber s o que os Antigos souberam, no saber, lembrar-se --frase de Sneca citada para ressaltar a necessidade de ir alm do culto do pas-sado. Os eruditos, como certos alemes (que tm a cabea virada para ascostas, no dizer sarcstico dos italianos), s se ocupam com o passado "semdescobrir nem inventar cousa alguma". E neste sculo dezessete e ibrico detesourizadores, de "adoradores ou aduladores da Antigidade", no deixa deser prova de inconformismo dizer que muitos doutores se restringem a "es-tudar o j estudado, escrever o j escrito, tomando a gua no regato por no secansarem de a ir buscar fonte. E estes mais so copiadores de livros queautores, acrescentando s opinies nmero, mas no peso" (Repres. 2a., 11)."Mas querer forosamente que nos atemos em tudo aos passados, querer atar osvivos aos mortos" (Histria, XI).

    Segundo esse novo modelo, os tempos no s passam como tambmcrescem na direo da plenitude. "Incrementa temporis", diz So Gregrio, eVieira o alega para mostrar que o conhecimento do mundo e dos desgnios deDeus se amplia com a passagem dos sculos. E o mesmo Aristteles, em que peseao magister dixit, sups que os cus fossem slidos e incorruptveis e, no entanto,a "nova opinio... to bem recebida em nossos dias" os considera fluidos. TeriaVieira notcia do processo movido pela Inquisio a Galileu, fazia apenas trintaanos, quando este ousara contraditar a astronomia de Aristteles? Creio que no,

    XXIV PADRE ANTNIO VIEIRA

  • porque, do contrrio, no teria lanado mo de exemplo to perigoso na suaprpria defesa perante o Tribunal do Santo Ofcio.

    De todo modo, a concepo de tempo que sai dos escritos de Vieira mais do que simplesmente linear. Diria que cumulativa e ascensional, poisnela o presente traz no bojo todo o passado, enriquecendo-o com os achamentos donovo; este, por seu turno, espera outros e melhores acrscimos com o advento do fu-turo. Concepo sem dvida progressiva e (arriscaria dizer) progressista.

    O crescimento do saber universal se fez com os descobrimentosdalm-mar, glria dos portugueses. Na visada teleolgica de Vieira, o sentidodeste novo saber se inscreve na rota da Igreja enquanto corpo mstico que igual-mente cresce com os tempos no rumo da plenitude final.

    A comparao por figuras se faz inicialmente com a imagem do rio."O rio que nasce da fonte, quanto mais caminha e mais se aparta de seuprincpio, tanto mais se engrossa, porque vai recebendo novas correntes e novasguas, com que se faz mais largo, mais profundo, mais caudaloso" (Histria,XII). A imaginao de Vieira no pra a. Se as guas do rio crescem com otempo, tambm se dilata pouco a pouco a luz do dia, comeando pelo raiar daaurora, figurada belamente nos cnticos de Salomo (quae est ista, quae pro-greditur quasi Aurora consurgens?) e admirada no seu iluminar gradativoat os fulgores do meio-dia, de claridade em claridade.

    Se assim , inverte-se engenhosamente o sentido mesmo daspalavras: o novo, por vir ltimo e tarde, verdadeiramente o antigo, pois tem aidade dos sculos; e o antigo, por ter vindo primeiro, verdadeiramente mais novo etenro como a infncia em relao idade madura...

    Aplicando ao curso dos tempos a sua esperana no advento doQuinto Imprio, Vieira divide a Histria da Salvao em trs etapas, nas quaisj se vislumbraram traos da doutrina das Trs Eras do Abade Joaquim deFlora5:

    I -- o Reino de Cristo incoado -- tempos do judasmo antigo;

    De Profecia e Inquisio XXV

    (5) Ver, a respeito, as observaes judiciosas que faz Maria Leonor CarvalhoBuescu na sua introduo Histria do Futuro (Lisboa, Imprensa Nacional,1982, pp. 17-21).

  • II -- o Reino de Cristo incompleto -- desde o nascimento de Cristoat uma data misteriosa, fixada em torno de 1666;

    III -- o Reino de Cristo consumado -- a partir do momento em quese estabelecer o Quinto Imprio, e por mil anos at a vinda do Anticristo profeti-zado no Apocalipse.

    Singular e rica de conseqncias a identificao que Vieirafaz da "Natureza humana" com a "mulher do Apocalipse" ( 257). Amulher estar, no fim dos tempos, vestida de Sol e inteiramente iluminadapela verdade divina que j comeou a irradiar-se no seu corpo desde o "Reinoincoado de Cristo." Ela trar sob os ps a Lua, "que luz vria e incon-stante, e que admite mistura de manchas, qual o estado presente danatureza humana".

    Este mesmo estado presente e incompleto chamado "estado demeninos" no pargrafo em que Vieira equipara o crescimento do Corpo Mstico(isto , a humanidade regenerada) estatura natural do corpo de Cristo, que tam-bm cresceu at chegar " mesma perfeio, e nela estava em os ltimos anos desua vida" ( 254).

    Trata-se de smiles derivados da analogia entre a histria doshomens e o amadurecimento do corpo. A dimenso comum o tempo queavana fazendo crescer tudo o que vivo. E nessa altura acodem memriado ru as parbolas que comparam o Reino ao fermento que, escondido no meioda farinha, leveda a massa inteira; e semente de mostarda pequenina que se fezcom o tempo uma bela rvore, e as aves do cu vieram habitar nos seus ramos.

    As profecias do Bandarra

    " quem pudera dizeros sonhos que o homem sonha!Mas eu hei gro vergonhade nos no quererem crer.

    E depois de acordado,

    XXVI PADRE ANTNIO VIEIRA

  • fui ver as escriturase achei muitas pinturase o sonho afigurado"

    Trovas, Sonho Terceiro, CIX e CXXVI.

    J sabemos qual era o propsito de Vieira ao encarecer o novo, isto, os profetas e os comentadores recentes: fazer a apologia do Bandarra e de siprprio, testemunhos dos feitos portugueses e de uma ptria gloriosa, depois de-cada e sujeita ao estrangeiro, enfim restaurada e prestes a sediar o quinto, ltimoe maior dos imprios deste mundo.

    Boa parte da primeira Representao ( 72 a 121) dedicadaa alinhar provas de que muitas das profecias do Bandarra j se haviam cumpridocabalmente.

    Vieira faz citaes de memria, inclusive das Trovas, base de suaargumentao, pois lhe fora negado o acesso a outros livros alm de uma Bblialatina sem concordncias e do brevirio. Sigo aqui a lio do texto de Bandarratal qual se transcreve na Defesa, mesmo quando constem divergncias em relaoa outras edies. Respeito a ortografia quinhentista do Bandarra, aqui e ali al-terada pelo prprio Vieira.

    O sapateiro de Trancoso teria acertado em tudo quanto se reportava Restaurao e a D. Joo IV. Vejamos algumas das suas profecias seguidaspela interpretao dada por Vieira:

    Antes que serrem quarentaerguerse ha gram tormentado que intenta,que logo ser amanada,& tomaro a estradade callada;no tero quem os affoute.

    Vieira explica: "Falam estes versos do levantamento de vora,como se ver pela combinao deles com a histria do sucesso que to pblica foineste Reino".

    De Profecia e Inquisio XXVII

  • Depois, verso por verso:Antes que serrem quarenta. "No ano de 637, sucedendo a

    aclamao (de D. Joo IV) ao cerrar do ano 40."Erguerse ha gram tormenta. "Chama tormenta grande ao dito

    levantamento, pelos grandes excessos que houve em Castela e pelo grande alvorooe expectao e ainda risco, em que se meteu o Reino. E diz com muita pro-priedade, que esta tormenta se ergueria como por si mesma, porque se experimen-tavam os efeitos sem ver a causa, e se viam os movimentos sem se saber o motos..."

    Do que intenta. "Porque, sendo grande a tormenta e grandes osmovimentos de vora, os intentos ainda eram maiores, intentando aquele povo, ouquem ocultamente o mandava, convidar e empenhar ao Duque [de Bragana, fu-turo D. Joo IV], e fazer farol a Lisboa e s mais cidades do Reino."

    Que logo ser amanada. "Disse o tempo da tormenta, agoradiz tambm o de sua durao, declarando que no cresceria nem iria por diante,como se intentava, seno que logo se amansaria como com efeito amansou."

    E tomaro a estrada de callada. "Porque o caminho que se tomouem negcio to dificultoso e de tanta conseqncia, assim de parte dos culpados no mo-tivo, como de parte do Rei e da Justia, foi pr-se silncio a tudo, calar-se a matria, eno se falar nela. Se j no quer dizer (e porventura com mais propriedade) que os quepretendiam persuadir o Duque a levantar o Reino, vendo que por aquele caminho topblico e to estrondoso lhe no sucedia, tomaram novo caminho e nova estrada, que foio de obrar pela calada, como com efeito fizeram, e com melhor sucesso."

    No tero quem os affoute. "D a razo de no continuar atormenta e de se calarem os que a moveram, e o no haverem tido quem osseguisse e fomentasse, e desse costas e nimo a seus intentes. Mas no era chegadoo tempo, como logo diz:

    J o tempo dezejadohe chegado,segundo firmal assenta;j se serro os quarenta,que se emmenta,por hum Doutor j passado.O Rei novo he levantado,

    XXVIII PADRE ANTNIO VIEIRA

  • j d brado;j assoma a sua bandeiracontra a Grifa parideira,langomeira,que taes prados tem gostado."

    Verso por verso:J o tempo dezejado he chegado. [Vieira aqui vai recapitu-

    lando a histria dinstica de Portugal desde o reinado de D. Joo III, quandoBandarra escreveu as suas profecias, at os anos da Restaurao. Note-se, linhasadiante, a meno inoportunidade da empresa africana de D. Sebastio, levadaa efeito "em tempo to incompetente"; o que revela um Vieira capaz de guardardistncia do sebastianismo stricto sensu.]

    "Considere-se bem o tempo em que foram escritos estes dous versos,e ver-se-h o muito que dizem, e o muito que supem, tudo futuro, e no imagi-nado, nem ainda imaginvel. Foram escritos os ditos dous versos no tempo Del-Rei D. Joo III, sendo vivo o Prncipe D. Joo, seu filho, e dous ou trs irmos domesmo Rei, gozando o Reino, em paz e abundncia, as felicidades naturais daterra prpria e as dos mundos estranhos e novos, de que El-Rei Dom Manuel, seuPai, o deixara tambm herdado. E neste mesmo tempo, to feliz e tanto para esti-mar, e no desejar outro, diz Bandarra que haveria outro tempo desejado, su-pondo o desejo deste tempo todas aquelas mudanas e voltas da fortuna, que emmais de cem anos seguintes padeceu Portugal; sendo necessrio para isso que Del-Rei D. Joo o 3 se no lograsse mais que o Prncipe D. Joo; que esse acabassena flor de sua idade, no deixando mais que o pstumo D. Sebastio; que omesmo Rei D. Sebastio empreendesse em tempo to incompetente uma tal jor-nada, e que se perdesse nela; que o Infante D. Duarte no tivesse herdeiro varo;que El-Rei D. Henrique no nomeasse sucessor; que o Bastardo do Infante D.Lus no fosse seguido; que o direito da senhora D. Catarina fosse oprimido dedentro com a inveja e de fora com as armas; e que a Imperatriz Dona Isabel,para complemento e instrumento de toda esta tragdia, tivesse por filho a Filipesegundo. E, finalmente, que debaixo do Imprio de Castela, sendo to poderoso, seperdesse a ndia e o Brasil; sendo to poltico, se avexasse e descontentasse a no-breza; e sendo to rico e opulento, lhe fosse necessrio carregar de to imoderados

    De Profecia e Inquisio XXIX

  • tributos o Povo que foram as ltimas e mais apertadas disposies dos nimos,para que todos desejassem, e suspirassem por outro tempo e no soubessem quandoj havia de acabar de chegar. E o que muito particularmente se deve notar aqui que estes mesmos dous versos eram um dos principais motivos que muito ani-mavam os ditos desejos; porque na confiana deles se esperava que o tempo dese-jado havia de chegar sem dvida, como chegou."

    Segundo firmal assenta. "Firmal o decreto firme e imutvelde Deus, que tinha determinado e assentado o tempo em que havia de chegar otermo e cumprimento dos desejos." E declarando qual este termo e este tempohavia de ser, diz:

    J se serro os quarenta. "Porque havia de ser pontualmente,como foi, no ano de quarenta. E no s no ano de quarenta, seno no fim dele,quando o ano se cerra, sucedendo a mudana da Coroa como sucedeu, no primeirode Dezembro, que o ms que fecha e cerra o ano; com que veio a declarar o ano emais o ms, sendo a maior maravilha desta pontualidade, que tendo-se ajustadoentre os fidalgos que traaram e executaram a Aclamao, que ela se fizesse emdia sinalado, primeiro de Janeiro do ano seguinte; ocorreram tais acidentesque foi necessrio antecipar o dia assentado; porque a profecia ou predio sehavia de cumprir, no segundo os fidalgos assentassem, seno segundo o fir-mal assenta."

    Que se emmenta por hum Doutor j passado. "Este Dou-tor j passado se entendo que Santo Isidoro, cujas profecias falam do Rei en-coberto, mas deve-se advertir nelas, que no determinam ano de quarenta, esomente dizem -- Tiempos trs tiempos vendrn: e estes tempos que SantoIsidoro ementou em comum, determinou Bandarra em particular, declarandoquando havia de comear o princpio deles."

    O Rei novo he levantado. "Trs cousas diz este verso em trspalavras, e todas trs se cumpriram. Porque no fim do prometido ano de quarentahouve em Portugal Rei e Rei novo, e Rei levantado. Queriam alguns que aoprincpio se introduzisse o Duque com nome de Defensor da Ptria; mas no foiseno com nome e coroa de Rei. Cuidavam muitos que o Rei do ano de quarentaseria El-Rei D. Sebastio, Rei velho e Rei que j tinha sido; mas no foi seno

    XXX PADRE ANTNIO VIEIRA

  • Rei novo. E finalmente foi Rei levantado, porque no foi ele o que buscou oReino, e se introduziu, mas o Reino foi o que o buscou a ele, e o levantou."

    J d brado. "E foi brado que no s se ouviu em Espanha eem Europa, seno em todo o mundo; em umas partes com horros, em outrascom aplauso (conforme os interesses de amigos e inimigos) e com admirao emtodas."

    J assoma a sua bandeira contra a Grifa parideira. "Depois doRei novo levantado, segue-se nesta narrao do futuro, como se fora histria dopassado, o que tambm logo se seguiu; que foi porem-se em campo as bandeiras earmas de Portugal contra Castela; a qual chama Grifa parideira com duasnotveis propriedades: o grifo um animal composto de guia e leo, porque tem ocorpo e garras de leo, e o bico e asas de guia, e esta mesma a composio dasarmas de Castela pelos lees de Espanha e guias de ustria. E porque Castela tema terminao feminina, por isso lhe chamou Grifa e no Grifo. O epteto deparideira alude condio ou fortuna daquela Monarquia, que por casamentos e her-anas ajuntou a si tantos Reinos e Estados e se fez to grande, por onde se disse dela:

    Bella gerant alii, tu, feliz Austria, nube:Quae Mavors aliis dat, tibi regna Venus.

    E vinha o epteto muito ao intento do que Bandarra contava oupredizia, porque pelo casamento da Princesa D. Isabel com Carlos Quinto, e porela parir a Filipe, veio a Grifa a ser senhora de Portugal."

    Langomeira, que taes prados tem gostado. "A palavralangomeira prpria da terra de Bandarra, e daquela Provncia, e significagulosa ou lambisqueira, em que alude ambio de Castela em adquirir eajuntar estados. E conforme ao mesmo nome de langomeira e gulosa, dizque teria gostado os prados de Portugal, nas quais palavras supem e declaraduas cousas, ambas mui dificultosas de crer nem presumir: uma que sucedeu dali aquarenta anos, que foi senhorear-se Castela e Portugal; outra que sucedeu sessentaanos depois dos quarenta que foi tornar Portugal a livrar-se das mos de Castela,sendo as garras da Grifa de to boa presa, e os prados to gostosos."

    Saya, saya esse Infantebem andante;o seu nome he Dom Joo.

    De Profecia e Inquisio XXXI

  • Tire e leve o pendoe o guioglorioso e triunfante.

    "Depois de dizer em comum que no ano de quarenta havia de haverRei novo, e que o Reino por meio dele, se havia de libertar da sujeio de Castela,passa a dizer em particular quem h de ser este Rei."

    Saya, saya este Infante. "Chama-lhe Infante, porque a casade Bragana casa de Infantes, e foi fundada por um Infante filho Del-ReiD. Joo o 1 e teve o direito coroa por outro Infante, filho Del-Rei D.Manuel. A palavra saya significa ser pessoa que estava retirada, como es-tiveram sempre aqueles Prncipes. E a repetio saya, saya significa as re-pugnncias do Duque, que foram grandes, e as instncias que se lhe fizeram,que foram maiores; e tudo era de uma e de outra parte conforme a necessidadeda empresa e o risco dela."

    (...)

    O seu nome he Dom Joo. "Alguns exemplares menos an-tigos, em lugar de D. Joo, tinham D. foo; mas com erro e corrupo mani-festa, que se prova por muitas e mui eficazes razes. 1 pelo efeito; porque o Reinovo levantado no ano de quarenta verdadeiramente, antes de Rei e depois de Rei,se chamava e se chama D. Joo. 2 porque o mesmo verso declara que dizia equeria dizer o seu nome, e foo no nome. Antes quem ignora o nome, ou ono quer dizer, diz foo. 3 porque, no mesmo captulo ou no mesmo sonho, tor-nando a falar no mesmo Rei, e na posse do Reino e Quinas de Portugal em queentrou, lhe chama outra vez Joo; e nisto concordam todos os exemplares. Os ver-sos dizem:

    Soccedeu a El Rey Jooem possessoo Calvario por bandeira,Levallo ha por cimeira etc.

    4 porque so muitos mais sem nmero os exemplares que temJoo, que os que tm foo. E esta razo ainda mais forosa, se se pondera,

    XXXII PADRE ANTNIO VIEIRA

  • como deve ponderar, que, para se mudar Joo em foo, havia a esperana eopinio dos sebastianistas, a cujo propsito no fazia aquele nome."

    Interrompo aqui as transcries, que j vo longas. E julgo opor-tuno insistir na distino que faz Vieira entre a sua leitura do Bandarra, todacentrada na figura de D. Joo IV (tanto o Restaurador quanto o Esperado doQuinto Imprio), e "a opinio dos sebastianistas" que, em mais de uma pas-sagem, ele reelabora substituindo o nome do infortunado rei.

    Outros acertos do Bandarra so expostos nos pargrafos 91, 100-101 e 103-107, que em seguida resumo e comento em razo de seu pondervel in-teresse histrico:

    Pargrafo 91 -- Vieira decifra a expresso "terras prezadas" comoalusivas ndia e ao Brasil, colnias que logo reconheceram a nova situao por-tuguesa enviando a Lisboa embaixadores deferentes a D. Joo IV.

    Pargrafos 100-101 -- Vieira mostra a exata correspondncia en-tre a trova cujo primeiro verso Comendadores, Prelados, e a formao daJunta dos Trs Estados na qual acordaram entre si nobreza, clero e povo em pa-gar os tributos para sustentar o Reino contra as investidas de Castela.

    Pargrafos 103-107 -- Vieira comenta as coincidncias entre certasexpresses do Bandarra e fatos acontecidos antes da Restaurao: trinta dousanos & meio valeria sessenta e um anos de dominao castelhana, pois o cardealD. Henrique morreu em janeiro de 1580 e D. Joo IV foi aclamado em dezem-bro de 1640; aver sinaes na terra prediz o aparecimento do "cometa funesto"que varreu o cu pouco antes da morte de D. Sebastio; e a "nova estrela", quesurgiu no Serpentrio no ano em que nasceu D. Joo, tendo sido notada por Ke-plero [sic]... E outros prodgios aparecidos no cu, na terra e no mar.

    Bandarra: leigo, casado, idiota e de baixo ofcio e condio

    Como se sabe, os Inquisidores arremeteram contra a autoridademesma do Bandarra, que fora elevado pelo ru e pelos sebastianistas altura dosprofetas do Velho Testamento, modelos efetivos do seu discurso. Isaas e Daniel,Jeremias e Zacarias falaram das vicissitudes do seu povo e do destino de Israel.

    De Profecia e Inquisio XXXIII

  • Quanto a Vieira, transpe para a histria de Portugal as previses do sapateirode Trancoso. O Tribunal desautorizou a leitura das Trovas chamando a seuautor "leigo, casado, idiota e de baixo ofcio e condio".

    Vieira responde cerradamente a cada uma dessas objees.

    Por que um profeta no poderia ser leigo? "Mas sabemos que Jac eJos, no sendo arrbidos nem cartuxos, e ambos com poucos anos de idade e deperfeio, um viu a escada que chegava da terra ao cu, cheia de tantos mistrios, eoutro no cu e na terra conheceu os seus futuros e mais os dos Egpcios" ( 235).E continua, no sem uma pontinha de petulncia, antes como quem ensina do quese defende, lembrando ao inquisidor que, afinal, "consta que os monges e religiesmonacais no vieram ao Mundo seno da a quatrocentos anos [depois de Cristo],no Oriente por So Baslio e no Ocidente por So Bento". E o remate traz averve dos que pensam livremente: "De sorte que o esprito de profecia no andavinculado correia nem ao escapulrio."

    Por que um profeta no poderia ser casado?

    Aqui a objeo do Santo Ofcio virada de cabea para baixo:"Digo que o primeiro casado foi o primeiro profeta." Foi Ado, a quem ainda empleno sono Deus fez as primeiras revelaes. Casado era No quando lhe foianunciado o segredo do dilvio. Casado Jac, visionrio, que teve quatro mulheres.E Davi, que teve dezoito. Enfim, Salomo, em cujos Cantares est escrito:"Sexaginta sunt reginae et octoginta concubinae et adolescentarum non est nu-merus" ( 236).

    Por que um profeta dever ser letrado?

    O epteto de "idiota", na acusao do Tribunal, significava homemsem letras, homem simples. O preconceito do inquisidor estava to distante damensagem evanglica, e to radicalmente a contradizia, que se tornava fcil para oru acumular citaes e exemplos e rebater o argumento da incultura do sapateirode Trancoso como bice ao exerccio dos seus dons profticos. Comea com Davi,criado que foi no campo entre jumentas, reconhecendo lisamente: "Porque no con-heci letras, entrarei nas potncias do Senhor" (Quoniam non cognovi littera-turam, introibo in potentias Domini). Vem depois o tema caro ticapaulina: a sabedoria do mundo estultcia aos olhos de Deus. E o exemplo dosdoze apstolos, pois Cristo "no os foi buscar s universidades de Atenas, de

    XXXIV PADRE ANTNIO VIEIRA

  • Roma ou de Jerusalm, seno s praias do mar da Galilia". E So Jernimo, otradutor da Bblia para o latim, posto que erudito nas letras sagradas e profanas,sentencia que no futuro s aos parvulis ser revelado o que Deus escondeu dossbios e astutos.

    Enfim, por que um profeta no poderia ser de baixo ofcio e con-dio?

    A argumentao afim anterior. Vieira taxativo: "Os hu-mildes e desprezados do mundo so os escolhidos de Deus." Sem querer especularem torno de um tema que mereceria estudos analticos no campo da histria dasmentalidades, caberia ao menos indagar se o aristocraticismo da Inquisio, evi-dente nesse desprezo do povo, no lanaria razes na conjuno (bem seiscentista)de alto clero e nobreza, estamentos de "f antiga" e "gerao limpa": estratosprivilegiados que desdenhavam tudo quanto Vieira defendeu -- o Terceiro Estadoe os judeus em Portugal, os ndios no Brasil.

    Exemplos de pobreza colhidos nas Escrituras:

    Moiss, enquanto vivia no Pao do Fara, no recebeu revelaes doalto: Deus lhe falou em meio sara ardente s depois que o ps a guardar ovel-has nos desertos de Madi. Cristo viveu humildemente toda a infncia e juventudena casa de um carpinteiro. Paulo, apesar da sua origem familiar, trabalhou comooficial mecnico nas artes do couro. So Crisstomo lhe chama expressamentesutor noster, o nosso sapateiro. Vieira consegue pinar nos Atos dosApstolos matria para afirmar que at mesmo Pedro teria exercido o mesmoofcio. O que lhe rende mais um voto em favor do sapateiro Bandarra. Pedro viviana cidade de Jope, segundo consta dos mesmos Atos, "de maneira que no indig-nidade para Deus a baixeza do ofcio, e que em Jope, e fora de Jope, pode sertalvez o mais digno um sapateiro" ( 238). Fora de Jope: por que no na vila deTrancoso?

    A expanso da profecia: o Quinto Imprio

    De Profecia e Inquisio XXXV

  • Se a primeira Representao tinha por fim expor os motivos decrena na volta iminente de D. Joo IV, a segunda desdobra amplamente a lei-tura proftica no sentido de abrir-se viso do Reino consumado de Cristo.

    So trinta as questes que o ru elabora em um papel entregue aoTribunal para defender a verdade e a ortodoxia das suas esperanas.

    Entremos animosamente por esse labirinto de perguntas com suasobjees e respostas, suas figuras e respectivas alegorias, sua imaginao frondosadotada de lgica prpria, que parecer estranha a um esprito moderno, mas deuma estranheza metdica pelo uso reiterado de silogismos e simetrias. Uma obrabarroca, enquanto fuso de contedos medievais (no caso portugus, antes mercan-tis e absolutistas do que redondamente feudais) e linguagem clssica, s vezes alat-inada, outras espertada por uma picante oralidade que a urgncia da defesa es-timulava. E a sua constante deferncia aos escritos profticos da Bblia vem mis-turada com atrevidas extrapolaes de sentido e contexto.

    A tcnica da exegese textual, que Vieira aprendera nos exercciosmeio retricos meio ldicos da Companhia, escorava-se em citaes tomadas sEscrituras com generosas surtidas pelas vidas dos santos e pelos cronistas fanta-siosos da histria portuguesa. Entre os quais destacam-se os monges de Alcobaa,que canonizaram as origens do reino com o milagre de Ourique, e o padre jesutaJoo de Vasconcelos cuja Restaurao de Portugal prodigiosa uma fieirade espantos digna do ttulo.

    A citao dava sempre a prova inicial fundada na auctoritas dotexto. Dessa plataforma zarpava o telogo-orador, mais orador que telogo,para a prtica infatigvel de operaes analgicas. a sua estratgia. Apalavra dos Antigos figura, logo prognstico do que veio a suceder ou aindavir. As provas, assim alcanadas, no costumam vir ss. Como se o ru tivessereceio da prpria vulnerabilidade, a sua defesa se pe a alinhavar novos exem-plos tentando faz-los amarrar melhor a argumentao. Que afinal semelha an-tes um emaranhado de opinies cruzadas do que um fio puxado pela evidnciade cada ponto ou pela firmeza da obra costurada.

    Retomando as proposies que Vieira julga provadas ao longo dadefesa, obtm-se um discurso centrado no advento do Quinto Imprio. Desenove-lando os temas capitais, eis a linha do arrazoado:

    XXXVI PADRE ANTNIO VIEIRA

  • Vir e est prximo o Reino j anunciado pelos profetas, emboradifcil de prever pelo vasto mar dos futuros, entre nuvens e cerraes das Escriturasprofticas. Este reino ser o Quinto Imprio do Mundo porque suceder aos qua-tro j conhecidos: o Assrio, o Persa, o Grego e o Romano. A profecia que tudosustm a que fez Daniel ao interpretar o sonho de Nabucodonosor. O QuintoImprio ser Imprio e Reino da terra, ou na terra. Diz o profeta que a pedraque derrubou a esttua encheu a terra inteira (Dan 2, 35). O Quinto Impriocomear na era de 666 (1666), nmero que figura no Apocalipse de Joo (Jo13, 18). Estender-se- pelo mundo inteiro ao mesmo tempo. Todos se convertero,gentios e judeus. Haver um s rebanho e um s Pastor. O poder espiritual serregido pelo Sumo Pontfice. O poder temporal ser regido por um Imperadorcristo. Os judeus, depois de terem sofrido tantos castigos e afrontas, como nenhumoutro povo, sero restitudos sua Ptria, assim como os portugueses o foram porobra da Restaurao. A Igreja ser toda uma Jerusalm nova, santa e descida doCu. Reinar a paz universal por muitos e muitos anos at a chegada dos temposdo Anticristo: tempos de catstrofes que precedero o Juzo Final. O Imperador,que h de vir como instrumento de Deus para vencer os Turcos, conquistar aTerra Santa e inaugurar o Quinto Imprio, ser portugus. O seu nome no mencionado nesta Representao segunda, ao contrrio do que o ru fizera naprimeira, cujo alvo era, precisamente, provar que se tratava de D. Joo IV, o En-coberto, o Esperado, o Desejado, o Redivivo.

    Entre Israel e Portugal: o paralelo e o convergente

    Das acusaes movidas pelo Santo Ofcio s proposies de Vieiraa mais grave era a que nelas entrevia uma tendncia judaizante, termo empregadopor Frei Alexandre da Silva, o inquisidor. Entrevia, digo mal, melhor diria fare-java, porque o promotor fala em odor judaico: redolet sensum judaicum.

    A questo candente do processo incide no carter declaradamente terrenodo Reino de que falam ambos os Testamentos, o primeiro em figuras, o segundo literal-mente. Vieira no tem dvidas a respeito. O Reino ser da terra ou na terra. o quediz no pargrafo 7 e, enfaticamente, nos 61 a 65 da segunda representao.

    De Profecia e Inquisio XXXVII

  • O que tornava difcil a posio do ru era a sua insistncia em afir-mar como iminente a restituio da terra de Israel aos judeus dispersos pelomundo. Esse retorno triunfal ptria aparece como integrante do reinadoprometido de justia e paz.

    Um dos passos da defesa particularmente suspeito ao inquisidor en-carecia a frase de So Paulo aos Romanos: "os judeus so carssimos a Deus porcausa dos seus pais". Na mesma epstola Vieira descobria matria para dizer queos judeus so "conaturalmente" mais afins revelao do que os pagos ( 241).Como exemplo dessa conaturalidade, alega a parbola da oliveira mansa e daoliveira silvestre em que Paulo compara hebreus e gentios:

    "E se alguns dos ramos foram cortados fora, e tu, oliveira agreste,foste enxertada entre eles, para te beneficiares da raiz e da seiva da oliveiramansa, no te vanglories diante dos ramos; porque, se te vanglorias, no s tu quesustentas a raiz, mas a raiz que sustenta a ti" (Rom 11, 17-18).

    Comenta Vieira, seguindo de perto o texto paulino, que o leo da fcrist natural oliveira mansa, cujas razes so os patriarcas do povo judaico, aopasso que o ramo da oliveira brava, enxertado na oliveira mansa, o "povo gentlico",ou os pagos enxertados em uma f que lhes era estranha e no natural ( 241).

    Aprofundando a analogia, diz Paulo que h ramos da oliveira queforam cortados: so os judeus apartados da revelao crist, que aparece, no con-texto, como expanso natural da religio da Antiga Aliana. De todo modo, osmesmos ramos sero um dia reintegrados na Nova Aliana; e a volta ser facili-tada pela afinidade que h entre as duas religies. Valendo-se de outra parbola,Vieira chama o povo judaico de filho prdigo, que voltar ao Pai comum quandochegarem os tempos da "plenitude de Israel".

    Cavando um pouco mais fundo o sentido deste discursoproftico, nele se encontra um evidente modelo messinico em parte semel-hante ao esquema finalista que se foi articulando ao longo da histria do povojudaico. Os profetas tinham identificado a ptria perdida nos anos do ca-tiveiro com a Terra da Promisso. O Livro de Daniel, lido pelos comen-tadores ps-exlicos (do sculo V a.C. em diante) e especialmente ao tempo darevolta dos Macabeus (sculo II a.C.), reforava a esperana na vinda de umMessias que seria rei e libertador do seu povo. No Salmo 72 encontra-se uma

    XXXVIII PADRE ANTNIO VIEIRA

  • das expresses mais vivas dessa expectativa: "Que em seus dias floresa a justia emuita paz at o fim das luas; que ele domine de mar a mar, desde o rio at osconfins da Terra"6.

    No caberia aqui sequer mencionar as mltiplas encarnaes da figurado Messias-Rei que a Histria registra dentro e fora do contexto judaico. Recomendouma obra admirvel pela sua erudio e nitidez expositiva, Le messianisme royal,de J. Coppens7. O autor acompanha a formao do messianismo real judaicodesde o orculo de Nathan e a uno de Davi at s profecias cannicas e s suasverses contemporneas do advento de Cristo. Os intrpretes dessa longa tradiomessinica ora a reduzem a uma ideologia nacional-judaica, ora a elevam a umnvel escatolgico universal que confina com a expectativa dos primeiros cristos.Do mesmo autor o ensaio de sntese "Lesprance messianique, ses origines et sondveloppement", que admite uma justaposio do "rei nacional" e do "imperadoruniversal" em vrias passagens das Escrituras8.

    Essa figura recorrente do Messias-Rei (com a qual o Jesus dosEvangelhos, enquanto "Filho do Homem", no quis identificar-se) reaparece nosmilenarismos medievais, em Bandarra, nos sebastianistas e em Vieira, que a pro-jetou na histria vindoura de Portugal e do mundo.

    Nas representaes, porm, e na Histria do Futuro, Vieira jamaisconfunde na mesma pessoa o Imperador do Quinto Imprio, que seria um rei portugus,e o Messias cristo. O Tribunal, nesse ponto, usou de m f para poder conden-lo comomilenarista judaizante, isto , como crente na vinda de um Messias terreno.

    Convm distinguir, nesta altura, discursos paralelos e discursos con-vergentes. Transcrevo abaixo trs passagens em que fica explcita a comparaoentre os judeus, tantas vezes cativos e afrontados, e os portugueses oprimidos peloscastelhanos:

    I. "Finalmente, deixados exemplos antigos, assim como os Por-tugueses, sendo verdadeiramente cristos e catlicos, esperavam que havia de

    De Profecia e Inquisio XXXIX

    (6) Verso da Bblia de Jerusalm.(7) Paris, Les ditions du Cerf, 1968.(8) In Revue des sciences religieuses, Univ. de Strasbourg, 1963, pp. 113-249.

    Agradeo ao historiador Magno Vilela a generosidade com que me indicouesta e outras fontes bibliogrficas.

  • haver tempo, em que tivessem rei portugus que os libertasse da sujeio de Cas-tela, que eles chamavam cativeiro, para tornarem a ser reino separado, livre e so-berano, como dantes eram, se que esta esperana encontrasse [=contrastasse] emalguma coisa a f de verdadeiros cristos, assim os judeus (se o forem verdadeira-mente e de corao receberem a f de Cristo) sem ofensa nem repugnncia da ditaf, podem esperar a restituio de sua Ptria e repblicas e que o instrumentoe autor dela seja algum prncipe ou outra pessoa particular prpria ou es-tranha, que Deus escolheu para esta obra." (Repres. 2a., 393; grifos deVieira).

    II. "Os futuros portentosos do mundo e de Portugal, de que h detratar a nossa histria, muitos anos h que esto sonhados, como os de Fara, eescritos como os de Baltasar; mas no houve at agora nem Jos que interpretasseos sonhos, nem Daniel que construsse as escrituras; e isto o que eu comeo afazer" (Livro Anteprimeiro, 41).

    III. "J Deus, Portugueses, nos livrou do cativeiro. J por merc deDeus triunfamos de Fara e do poder dos seus exrcitos. J os vimos, no umamas muitas vezes, afogados no Mar Vermelho do seu prprio sangue; imos camin-hando para a Terra da Promisso, e pode ser que estejamos j muito perto dela edo ltimo cumprimento das prometidas felicidades" ( 43).

    Comparao no identificao. E paralelismo supe diferena.Vieira no ignora nem omite a diversidade de significados que tem a palavraMessias nas tradies hebraica e crist. s ler o pargrafo 395 dasegunda Representao para avaliar a nitidez com que o ru expe o contrasteentre as duas crenas. Para os judeus o Messias ser um rei terreno e temporalque governar a Terra da Promisso em tempos vindouros de justia e paz.Para os cristos o Messias prometido pelos profetas j chegou: Jesus Cristo,que s voltar no dia do Juzo universal. As expectativas so, portanto, di-versas. Mas no excludentes. A interpretao de Vieira conserva orto-doxamente a crena na volta final de Cristo, mas inclui a vigncia de umlongo perodo de concrdia e felicidade, a que chama Quinto Imprio doMundo, "tempo vacante", ou "tempo em meio" entre o Imprio Romano jfindo e a hora do Apocalipse. provvel que nessa expectativa se encon-trem traos de esperanas judaicas.

    XL PADRE ANTNIO VIEIRA

  • Nesse tempo intermedirio os povos todos se convertero paz,sendo os judeus libertados dos seus vexames e cativeiros pelo retorno ptria:as dez tribos dispersas na poca da dominao assria sero finalmente reinte-gradas aos descendentes de Jud e formaro de novo um s povo. o que oru sustenta em face dos inquisidores, escudando-se na Bblia, nas trovas doBandarra e, temerariamente, em um dilogo que mantivera, em 1648, comum rabino marrano da sinagoga de Amsterd, Manasss-ben-Israel, o qual oconvencera de que um segundo Messias terreno viria devolver aos judeus o seular e instituir um reinado universal, sem prejuzo da redeno espiritual ques se daria no fim dos sculos. A meno a esse encontro, que se teria dadoem uma estalagem daquela cidade holandesa, consta de um depoimento da17. sesso de interrogatrio a que Vieira foi submetido aos 29 de novembrode 1666 (Defesa, II, pp. 330-331).

    Nessa ltima passagem, em lugar de retas paralelas, Vieira traalinhas convergentes: o ponto de cruzamento a analogia entre Portugal e Israel,dois povos eleitos por Deus e voltados para um destino supranacional.

    O mito entre a ideologia e a poesia

    "Este futuro sermos tudo" Fernando Pessoa

    A ortodoxia, isto , o dogma investido de poder, condenouVieira retratao pblica e ao silncio. Um sculo mais tarde, sob a frulado despotismo ilustrado, mandou Pombal que se queimassem os livros em quese fizesse meno do Bandarra e das suas predies. A razo no poder tempesadelos de vingana. Pouco depois, o panfletrio Jos Agostinho de Macedo,tristemente notrio por suas diatribes contra a linguagem de Cames (livre de-mais para o seu gosto rcade), escreveu um libelo contra "a ridcula seita dossebastianistas". Em 1813 recolhido a um manicmio de Lisboa o "ltimosebastianista"9.

    De Profecia e Inquisio XLI

    (9) Ver os lcidos comentrios de Joel Serro em Do sebastianismo ao socialismo,Lisboa, Livros Horizonte, 1969, pp. 9-34.

  • Condenada primeiro pelo Santo Ofcio e depois pelo zelo doracionalismo leigo, a esperana messinica repontaria, nas suas formaspopulares mais arcaicas, entre os sertanejos reunidos em fins do sculo XIXem torno de um profeta rstico, Antnio Conselheiro. A nova Repblicabrasileira, temendo uma conspirao monrquica de largo espectro, mas-sacrou o arraial de Canudos, e no faltaram a alguns ilustrados da pocaprestantes racionalizaes para justificar a ao armada. Euclides daCunha, lacerado entre o darwinismo social e a piedade fraterna, testemun-hou n Os Sertes o desfecho sangrento daquele conflito, no de civilizaes,mas de barbries.

    O sebastianismo povoou o imaginrio da poesia de cordel nor-destina. Mas no s, como bem sabem os estudiosos das letras portugue-sas. H um momento em que mitos e utopias, tendo perdido a suafuno original, subsistem ora como reforo sentimental de certas ideologiaspolticas, ora como matria-prima da fantasia potica. Leituras sebastianis-tas da histria portuguesa junto com poemas mticos enchem as estantes dosimbolismo e do saudosismo portugus desde fins do sculo XIX at oquarto decnio do sculo XX. Separar o joio do nacionalismo passadista dotrigo da livre fico e da pura lrica tarefa que exige mo firme e delicada.O mito est presente na ideologia e na poesia, mas o seu modo de operar no o mesmo em ambas.

    Para os idelogos do nacionalismo agrrio, do pendo monrquicoe do colonialismo em agonia, os mitos do Esperado eram instrumentos de per-suaso, imagens trabalhadas para servirem a fins partidrios, figuras coladasao interesse10.

    XLII PADRE ANTNIO VIEIRA

    (10) Desde que Oliveira Martins, na Histria de Portugal (1879), julgou ver no se-bastianismo um trao definidor do carter nacional, acendeu-se uma polmicaque iria envolver mais de uma gerao de intelectuais "explicadores de Portu-gal". Se Joo Lcio de Azevedo, o bigrafo exemplar de Vieira, soube manteruma atitude compreensiva em face de um tema to complexo, no seu AEvoluo do Sebastianismo (1918), veio de Antnio Srgio a crtica mais demoli-dora s razes mesmas do mito no ensaio Uma interpretao no-romntica do se-bastianismo, que de 1920. No campo ideolgico a luta no conheceu trgua.

  • Situando-se em outra dimenso, uma obra mitopotica da altura deMensagem de Fernando Pessoa est purificada de qualquer escria utilitria: oseu vo livre de peias e tende a alcanar valores universais.

    O mito sebastianista toca, nos versos de Mensagem, aquele"nada que tudo" de que fala o poeta. nada, porque nada pesa nem querpesar nos lugares e nas engrenagens do poder. Mas tudo, pela amplitude quepode assumir como expresso de um desejo de felicidade que desconhece limitesgeogrficos ou ideolgicos. Fernando Pessoa, como se sabe, desqualificou todasas interpretaes reacionrias da obra, encarecendo a sua destinao suprana-cional:

    "A Humanidade outra realidade social, to forte como o in-divduo, mais forte ainda que a Nao, porque mais definida que ela." Eadiante o poeta-pensador formula um conceito mediador de nao comocaminho entre o Indivduo e Humanidade: " atravs da fraternidadepatritica, fcil de sentir a quem no seja degenerado, que gradualmentenos sublimamos, ou sublimaremos, at fraternidade com todos oshomens"11. Aspirando a uma "super-Nao futura", Fernando Pessoatranscende o lusitanismo peculiar ao discurso dos passadistas do qual foisempre frontal adversrio.

    No mecanismo ideolgico acionado pelos integristas para fins prti-cos ou pedaggicos, aquilo que pode parecer superao das bases estreitas nacionais,sob a forma da misso universalista de Portugal, apenas generalizao abusiva,misto de esprito de cruzada com ambies coloniais requentadas. A ideologia nose liberta desse quadro esttico; antes, busca expandi-lo.

    Mas na atividade mitopotica livre, a superao se faz realmentedialtica, na medida em que transfigura o passado em vez de fix-lo em mscaraocultadora de interesses particulares.

    Tudo quanto se esboara no sonho do Quinto Imprio do sa-pateiro Bandarra, ou na imaginao poltico-messinica de Vieira, se subli-maria, sculos depois, na viso sem margens do Pessoa da Mensagem.

    De Profecia e Inquisio XLIII

    (11) "Explicao de um livro", em Obras em prosa, Rio, Aguilar, p. 71. Texto escritoem 1935, poucos meses antes da morte do poeta.

  • Trata-se da prpria formao da utopia: o desejo recorrente de um tempo de justiaque se abrir um dia aos olhos da humanidade inteira, enfim consciente da suacondio fraterna.

    Por enquanto s vemos brumas, imagem to cara ao mito se-bastianista. Mas essa nvoa ainda no dissipada, essa antemanh grvida de ex-pectativas, o obstculo necessrio, a matria-prima densa de experincia sofrida,a prova dos nove de que a utopia no capricho ou veleidade, mas lana razes emalgum lugar visvel sobre a face deste nosso mundo terrenal:

    "Tudo disperso, nada inteiro. Portugal, hoje s nevoeiro... a Hora!"

    XLIV PADRE ANTNIO VIEIRA

  • DEPROFECIA

    . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

  • IDefesa do livro intitulado QUINTO IMPRIO,que a apologia do livro

    CLAVIS PROPHETARUM,e respostas das proposies censuradaspelos senhores inquisidores: dadas pelo

    Padre Antnio Vieira, estando recluso noscrceres do Santo Ofcio de Coimbra

    Sendo ontem chamado mesa, me foi dito que estavam nelaos senhores inquisidores para sentenciarem a minha causa, e que an-tes disso queriam ouvir de mim tudo o que tivesse que dizer ou alegarpara bem dela; e porque a ltima doena (de que estou mal conva-lescido) me no deixou com foras nem alento para poder falar empblico, pedi licena para falar por papel, que me foi concedida. Pro-testo pois do modo que me possvel, diante desses senhores, queantes de se me dar a notcia que as minhas proposies estavam cen-suradas, e as censuras aprovadas por sua santidade, fazia eu teno depropor em presena de vossas senhorias todos os pontos ou questesdelas, dando os fundamentos das opinies que segui, ou determinavaseguir, respondendo aos das contraditas; mas depois que me foi dadaa notcia da aprovao e autoridade do sumo pontfice, que argu-mento a que a minha f, resignao e obedincia, no sabe outrasoluo seno a da venerao, obsquio e silncio, sem que para isso

  • seja necessrio cativar ou fazer fora ao entendimento, que sempre est eesteve sujeito aos menores acenos da Igreja, e de qualquer de seus minis-tros, havendo por esta via cessado o escrpulo que s me dilatava; etendo eu aceitado, sem mais demora da razo, ou explicao das ditasproposies, a todas as censuras delas, e suas dependncias, nenhumaoutra coisa se me oferece, que possa fazer ou dizer importante ao bem daminha causa, mais que o represent-la a vossas senhorias em um menor emais abreviado processo, no qual a possa compreender toda junta deuma vez, dividindo-a para isso em partes certas e determinadas, onde seveja brevemente o dilatado, distintamente o confuso, e claramente o es-curo e mal declarado por mim: e pois no posso fazer a dita repre-sentao com razes vivas (como muito desejava) falaro por mim estaspoucas regras, no como nova alegao, pois no digo nelas coisa denovo, mas como um breve memorial deste processo, repartido, paramaior facilidade, clareza, e distino, nas oito ponderaes seguintes:

    PONDERAO 1.a

    ACERCA DO ASSUNTO DO LIVRO

    O argumento ou assunto do livro que quis h muitosanos escrever, e do qual tinha totalmente desistido, depois que meapliquei s misses, era o Imprio Consumado de Cristo debaixo donome de Quinto Imprio: digo -- Imprio -- conforme o cmputodos imprios de Daniel, entendendo-se por imprio consumado deCristo, no algum imprio que Cristo havia de ter nos tempos fu-turos, seno um novo e maior estado do mesmo imprio e reinoque Cristo hoje tem, e teve sempre depois que veio ao mundo, quevem a ser por outros termos, um novo e perfeito estado da IgrejaCatlica, que o nico e verdadeiro reino de Cristo.

    As partes, circunstncias, e felicidades de que se compeesse novo e mais perfeito imprio ou estado, eram a extirpao de to-das as seitas de infiis, a converso de todas as gentes, a reforma dacristandade, e a paz geral entre os prncipes, a mais abundante graado Cu, com que salvariam pela maior parte os homens, e se encheria

    4 PADRE ANTNIO VIEIRA

  • o nmero dos predestinados, sendo os instrumentos imediatos dadita converso um sumo pontfice santssimo, e alguns varesapostlicos de singular esprito, que, divididos por todas as terras deinfiis, as reduziriam e sujeitariam Igreja, e um imperador zeloss-simo da propagao da f, o qual empregaria toda a sua autoridadeem servio do dito pontfice, e favor dos pregadores, segurando-lheso passo, e defendendo-os onde necessrio fosse com as suas armas, esujeitando com elas a todos os rebeldes, principalmente o imprio ro-mano, com que o faria senhor do mundo.

    At aqui o assunto em geral, o qual de nenhum modo invento meu, seno promessa e esperana, e exposio de muitos san-tos antigos e modernos, e de muitos comentadores das escrituras, ede muitas pessoas de esprito proftico, geralmente aprovado e rece-bido, de que porei somente os nomes: S. Justino, e S. Gaudncio, S.Joo Crisstimo, S. Hilrio, Osrio, Uberto, Pannio, Eclio, Hercu-lano, Pedro Bolorengo, Serafino de Berma, Genebrardo Taio, Pe-dro Galatino, Salazar, Serelego, Arrias Montano, Bandale, JoaquimAbade, Aperilas, S. Metdio, Tefilo Eremita, Malaquias, S. Fran-cisco de Paula, S. Brzida, S. Amatildes, S. Isidoro, S. fr. Gil, oBeato Amadeu, S. ngelo mrtir, o irmo Mem Rodrigues daCompanhia de Jesus, e outros muitos catlicos pios, e, exceto oltimo, todos doutos.

    E porque os sobreditos autores que falam no imperadorque Deus h de dar sua Igreja, para as execues temporais destaespiritual conquista, no declaram absolutamente, que pessoa particu-lar haja de ser, acrescentava eu, ou pretendia acrescentar, posto quedigam muitas propriedades e circunstncias, de que se pode conjec-turar o argumento geral dos ditos autores acomodao e explicaodo reino, para que tinha Deus guardado aquela grande empresa e im-prio, interpretando em honra da nao, que seria rei portugus, e doreino de Portugal, fundando este pensamento principalmente naspalavras de Cristo a El-Rei D. Afonso Henriques -- volo in te, et insemine tuo imperium mihi stabilire.

    De Profecia e Inquisio 5

  • A este fim (o que muito se deve notar) determinava euseguir ou supor duas opinies necessrias ao dito intento, ambascomumente recebidas dos telogos; a primeira, que o imprio deCristo no s espiritual, seno tambm temporal, cada um a re-speito de seus vassalos, sendo este ttulo ainda mais prprio no prn-cipe, que o fosse de todo o mundo, em suposio das quais duasopinies, aplicando o sobredito imprio a um prncipe descendenteDel-Rei D. Afonso Henriques, se vinha a cumprir e verificar nele in-teiramente toda a profecia das palavras e promessas de Deus, pois no talprncipe estabelecia Cristo um imprio, o qual juntamente seria impriode Cristo, e imprio dum descendente do mesmo D. Afonso Henriques,que toda a energia -- in te, et in semine tua -- em seguimento desta apli-cao, e descendo a individuar a pessoa deste prncipe, determinava euchamar pretenso do dito imprio todos os que descendem Del-Rei D.Afonso Henriques, e principalmente por serem a sua dcima sextagerao, ou descendentes dela, tinham conhecido direito promessade Cristo, como so ao presente o imperador da Alemanha, por filho daimperatriz D. Maria: El-Rei de Frana por filho da rainha D. Ana, ambasirms de Filipe IV de Castela, ou seu filho pela prpria descendncia.

    Mas porque o meu intento total era concluir que esteprncipe no s havia de ser descendente Del-Rei D. Afonso Henri-ques, seno tambm rei portugus, e de Portugal, assentado nesteprincpio segundo, chamava da mesma maneira a pretenso aos reisportugueses, que parece podiam ter maior direito a ela, pondo emprimeiro lugar a opinio comum Del-Rei D. Sebastio, e todos osfundamentos que tinha, e no segundo a El-Rei D. Joo IV, pela esti-mao tambm comum com que na restaurao do reino foi reputadopelo verdadeiro encoberto, satisfazendo ao fortssimo argumento dasua morte, com exemplos e razes que mandei rainha nossa senhorano papel deste assunto, por ser o que naquela ocasio podia servir dealvio de sua majestade, sendo porm certo que o meu intento no eraresolver por ltimo, que o Senhor Rei D. Joo fosse ou houvesse deser o prometido imperador: assim o puderam testemunhar algumas

    6 PADRE ANTNIO VIEIRA

  • pessoas dignas de toda a f, a quem foi fora comunicar o meusegredo e o meu pensamento, os quais sabem que verdade era dedicareu este livro a El-Rei D. Afonso VI, que Deus guarde, e concluir porremate de tudo, haver sua majestade ser o futuro imperador, em quemtivesse princpio o imprio prometido ao rei do mesmo nome,provando esta final resoluo com a clusula do mesmo juramento dorei, e promessa de Cristo -- usque ad decimam sextam generationem in quaatenuabitur proles, et in ipsa sic atenuata respiciam, et videbo -- nas quaispalavras expendia ou havia de expender, que o relativo -- in ipsa -- nose referia dcima sexta gerao, que foi El-Rei D. Joo IV, seno prole da dcima sexta gerao, que El-Rei D. Afonso.

    Este , senhores, em geral todo o argumento daquele as-sunto, esta em particular toda a aplicao, ou a acomodao dele, emque peo se ponderem quatro motivos, que no pouco demonstram asinceridade e pureza da minha teno:

    1. Quanto ao assunto em geral, se me no deve imputarculpa, pelo ter por catlico e pio, e sem escrpulo de perigosa dou-trina, pois tem por si a autoridade e revelaes de tantos santos, e detantos e to graves autores de nossos tempos, cujos livros, aprovadospelo Santo Ofcio, correm sem reparo algum em toda a cristandade.

    2. Quanto aplicao do dito assunto, e imperador dele, orei de Portugal, que Rusticano (ita), um dos autores acima alegados, re-ligioso de S. Francisco, em um livro que imprimiu em Veneza, aprovadopelo Santo Ofcio de sua santidade, com ttulo de recopilao das pro-fecias modernas, aplica o mesmo imprio a el-rei de Frana, o qual rei sev estampado em muitas partes do mesmo livro: e pois coisa lcita eaprovada pelo Santo Ofcio, e maiores ministros da Igreja, o ser a mesmaaplicao a um prncipe da cristandade, porque me no pareceria a mimtambm lcito aplic-lo a outro, principalmente no havendo nenhum nomundo que tenha a seu favor um to notvel e autntico testemunho,como o do juramento Del-Rei D. Afonso Henriques?

    3. Quanto ao dito assunto, e aplicao dele, se colhemanifestamente qual foi a teno que tive em seguir a opinio

    De Profecia e Inquisio 7

  • comunssima do mesmo temporal de Cristo por partes, se eu su-pusesse a opinio contrria, que admite em Cristo o imprio espiri-tual, quando viesse a dizer sobre a clusula -- inte -- mihi -- que omesmo imprio de Cristo, e mais del-rei de Portugal, papa ou cabeada Igreja; pois o imprio espiritual de Cristo no tem, nem pode teroutra cabea seno o papa: sendo porm esta razo to natural e ma-nifesta, e sendo outrossim a eleio da dita opinio do impriotemporal de Cristo, forosamente necessria para o dito assunto,bem se deixa ver quo alheio do meu sentir o fundamento sobreque me foi argida tanta mquina de suspeitas e erros, fundadostodos na opinio do dito imprio temporal de Cristo, e quo im-possvel coisa parece, que a disposio de todo este meu funda-mento, assim como estava truncada e imaginada, se houvesse depenetrar ou perceber antes de se declarar, donde nasceu interpre-tar-se o ttulo de Quinto Imprio, como so tambm todas as con-seqncias que dele se inferem.

    4. Que o dito chamado livro, verdadeiramente de nen-hum modo , nem foi, nem se pode chamar livro, seno pensamentode livro, e pensamento retratado, e totalmente deixado, por havermais de onze anos que tinha desistido do sobredito pensamento: nem fazcontra esta verdade, bem provada com o retiro do Maranho, e com mehaver aplicado converso das gentes, o intento que tinha de dedicar odito livro a sua majestade, porque este pensamento era ex necessitate, et pre-ter intentionem, depois que pelos cargos que se me deram no Santo Ofciofui obrigado a explicar o dito assunto, e o Quinto Imprio, e questesdele, para mostrar os fundamentos e motivos por que o tivera porprovvel e s doutrina; e em disposio de me ser foroso gastar o temponeste estudo, fao conta de o no perder, e dedicar o dito livro a el-rei, nocaso em que depois de representar nesta mesa todos os pontos principais,mas no reprovassem em coisa essencial que desfizesse o dito assunto.Assim que, quanto minha teno, nem por pensamento me passarafazer o dito livro, e s tratava de alimpar e imprimir os meus sermes,como o padre geral me tinha mandado.

    8 PADRE ANTNIO VIEIRA

  • PONDERAO 2.ACERCA DOS PAPIS

    Os papis de que se tiraram as culpas de que fui argidoso quatro: o primeiro, o papel do Maranho, no qual se deve pon-derar que todas as culpas que dele se formam se reduzem a um sponto, que foi o ter o Bandarra por profeta, na qual suposio, quemuito que eu provasse o que ele expressamente diz, ou o que dassuas trovas por boa conseqncia se segue. Os fundamentos por quetive para mim que fora profeta, e o pretendi privadamente provarnaquele papel, so os que presentei na mesa expendidos em escri-turas, autoridades e razes especulativas e prticas, em que se seguia aopinio geral, do que por palavras e escritos impressos assim o julgame pregoavam, entendendo da mesma maneira, que assim como sepode provar que tal ao foi milagre, e que tal morte foi martrio, as-sim se pode provar que tal predio ou predies foram profecias, eassim como se pode inferir que o que faz tal ao milagroso, e o quepadece tal morte mrtir, assim se podia inferir, que o que disse taispredies era profeta; tendo para mim, finalmente, que os papis oudiscursos em que as sobreditas coisas se provam, as podem provar ecomunicar seus autores privadamente, sem violar a proibio, ou in-correr penas dos que publicam ou divulgam semelhantes tratados; eem prprios termos, o que eu s fiz, remetendo o dito papel a umarainha, pelo modo e meio mais secreto que podia ser, que foi por mode seu confessor: e se ele ou outrem o divulgou, parece se me nodeve imputar essa culpa.

    O segundo papel o que enunciei ao conselho geral, ped-indo restituio de tempo em que havia estado doente, e mudana delugar por alguns dias, para convalescer da dita enfermidade, como or-denavam os mdicos do Santo Ofcio, sendo a mesma petio e sub-misso, com que nela to miudamente fiz de mim atos mui formaisda mesma obedincia, reconhecimento, e respeito, e no podendohaver direito algum que presuma que quem pede favor e graa queiraofender ao juiz que o h de sentenciar ou absolver, sendo os juzes

    De Profecia e Inquisio 9

  • principalmente em sentena de que se no pode apelar; assim que, seno sobredito papel intervieram alguns erros ou defeitos, foi por noser feito por letra minha, ou procurador versado (o que eu por estamesma razo pedi) nos estilos do Santo Ofcio, e por ser eu total-mente falto de semelhantes notcias, e por no serem exatas as queprocurei do modo que me era possvel, os quais defeitos e erros, fi-nalmente, se purificaram no mesmo papel, com dizer que nas minhaspropostas ou peties, pedia ou pretendia somente o que me fosselcito, protestando e pedindo perdo de tudo, e de qualquer coisa emque pelas sobreditas causas houvesse errado, ou faltado ao que devia.

    O terceiro papel foram os cadernos de apontamentos escri-tos pela razo que fica dita nesta mesa, para mostrar como obedeci e tra-balhei, os quais eu de nenhum modo oferecerei em resposta ou defesadas proposies, ou proposio alguma, antes sendo-me ordenado que asdeixasse, contra minha vontade e teno o fiz, em pretexto (ita) de todo osobredito, e de que eu no afirmava, nem sabia, o que nos ditos papisestava escrito, porque no tivera tempo para os ler, e quando os escrevia,ainda no estava resoluto no que havia de dizer, ou de seguir, sendosomente lanados a pedaos naqueles cadernos, o que estudava ou meocorria informe ou irresolutamente at a ltima eleio, assim comofazem todos os escritores de livros, os quais depois de toda esta matriaestudada e junta, e depois de mui ponderadas e examinadas as di-ficuldades, se resolvem no que absolutamente ho de dizer, e conforme adita resoluo, ou moderam, ou ampliam, ou mudam, prosseguem, ou ti-ram, ou acrescentam, e muitas vezes riscam e retratam as mesmas con-cluses que determinavam seguir, no havendo coisa alguma toexatamente escrita no primeiro correr da pena, que no tenha sempre queemendar; e tudo isto o que havia e determinava fazer nos sobreditoscadernos, nos quais, como bem se v, no h parte ou discurso algumque esteja concludo, havendo muitos riscados, e outros prosseguidos pordiferentes modos e razes, para que depois se elegesse o mais conven-iente. Assim que, nem os ditos discursos, nem as proposies, oupalavras deles, ou conseqncias algumas, se me devem imputar por

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  • culpas, por serem todas duvidosas, e indeterminadamente apontadas,e no absolutamente escritas, nem proferidas, antes da sinceridade econfiana com que pus na mo dos ministros do Santo Ofcio todosos ditos papis, sem emendar, nem ainda rever coisa alguma deles, semostra claramente a pureza da f, e verdade da teno com que foramescritos, e entregues sem temor nem imaginao de receio, porquepudesse vir ao pensamento o que nunca tinha passado pelo meu.

    O quarto e ltimo papel o que fiz depois da minha re-cluso, de cujo princpio e fim largamente consta que nenhuma dascoisas que nele escrevi foi a fim de as defender ou afirmar, seno dereferir e representar a vossas senhorias os motivos e fundamentosque tivera para reputar por provvel o que tinha escrito, ou determi-nava dizer ou escrever; e que haver-me enganado, como confessava,nas matrias das proposies censuradas, fora sem m teno nemculpa. Nos sermes impressos em Castela no falo, porque absolu-tamente aqueles papis no so meus, seno de quem os quis im-primir debaixo do meu nome, para me afrontar, ou para ganhar din-heiro.

    PONDERAO 3. ACERCA DAS PROPOSIES

    Antes de propor o que devia seguir, se pondere nasproposies (ita), referirei brevemente as ditas proposies:

    1. Reprova-se o ttulo de Quinto Imprio, por ser(como dizem) o dito imprio do Anticristo: e eu no ditoacedi, ou segui a sentena ordinria dos telogos e exposi-tores que, no imprio das vises de Daniel, dizem que oQuinto Imprio o imprio e reino de Cristo.

    2. Reprova-se provar o imprio temporal deCristo com alguns dos mesmos lugares, em que se prova oespiritual, e que isto se no pode fazer sem ser in sensujudaico , e contra Cristo. E este modo de provar a prova or-dinria de todos os telogos que seguem a dita sentena,

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  • posto que no em todos os homens, que absolutamente falam do re-ino de Cristo, seno somente aqueles em que as palavras e circunstn-cias do texto admitem ambos os sentidos, e ambos os reinos, comose pode ver nos ditos autores, e particularmente em Alonso de Men-dona, s sobre o texto do salmo 31 -- dominabitur a mari usque ad mare.

    3. Reprova-se dizer que o imprio de Cristo no sespiritual, seno tambm temporal, e esta opinio a mais comum, edos maiores telogos deste sculo, Soares, Vasques, Lugo, Molina,Salazar, Estudoro, Francisco de Mendona, Alonso de Mendona,Cabrera, e outros muitos et nobis; Sime Catena lhe chama -- Communis-simo, et verior.

    4. Reprova-se a opinio que explica as vises do cap. 2.e 7. de Daniel do Reino de Cristo na Terra, ou terreno, em que seope ao celestial, posto que o mesmo reino de Cristo se h de con-tinuar eternamente no Cu, como dito, e na dita matria segui a ex-plicao comum de todos os expositores, e de quase todos os telo-gos de um e outro; texto 61 -- Replevit omnem terram, et subter omnem ter-ram.

    5. Reprova-se o afirmar que Cristo em este mundo exer-citou alguns atos do dito domnio e jurisdio temporal. Esta aopinio recebida de muitos autores.

    6. Reprova-se a opinio do Quinto Imprio, e futuroestado consumado de Cristo, porque se poderiam queixar os pas-sados tambm de no lograrem o dito estado; e ou se diga queDeus o no fez desde o princpio da Igreja, porque o no quis, ouporque o no pde, sempre impiedade: mas sem embargo destesargumentos, a dita opinio de todos os autores, que so santoscanonizados, e se hav-lo Deu