sermões de padre antonio vieira

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Sermões de Padre Antonio Vieira

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  • Padre Antnio Vieira

    Sermes

    Volume I

    _________________________________________________________________

    Projeto Livro Livre

    Livro 24

    _________________________________________________________________

    CONTATO [email protected]

    www.poeteiro.com

  • Projeto Livro Livre

    O Projeto Livro Livre uma iniciativa que prope o compartilhamento, de forma livre e gratuita, de obras literrias j em domnio pblico ou que tenham a sua divulgao devidamente autorizada, especialmente o livro em seu formato Digital. No Brasil, segundo a Lei n 9.610, no seu artigo 41, os direitos patrimoniais do autor perduram

    por setenta anos contados de 1 de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento. O mesmo se observa em Portugal. Segundo o Cdigo dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, em seu captulo IV e artigo 31, o direito de autor caduca, na falta de disposio especial, 70 anos aps a morte do criador intelectual, mesmo que a obra s tenha sido publicada ou divulgada postumamente. O nosso Projeto, que tem por nico e exclusivo objetivo colaborar em prol divulgao do bom conhecimento na Internet, busca assim no violar nenhum direito autoral. Todavia, caso seja encontrado algum livro que, por alguma razo, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentileza que nos informe no e-mail: [email protected], a fim de que a obra seja devidamente suprimida de nosso acervo. Esperamos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam repensadas e reformuladas, tornando a proteo da propriedade intelectual uma ferramenta para promover o conhecimento, em vez de um temvel inibidor ao livre acesso aos bens culturais. Assim esperamos! Ata l, daremos nossa pequena contribuio para o desenvolvimento da educao e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obras sob domnio pblico, como esta, do Padre Antnio Vieira, um dos mais destacados oradores do sculo XVII: Sermes (Volume I) isso!

    Iba Mendes

  • NDICE

    SERMO DA SEXAGSIMA .......................................................................... SERMO SEGUNDO DO MANDATO ............................................................ SERMO DO MANDATO ............................................................................. SERMO DOS BONS ANOS .......................................................................... SERMO HISTRICO E PANEGRICO NOS ANOS DA RAINHA D. MARIA FRANCISCA DE SABIA ................................................................................ SERMO DE S. ROQUE ................................................................................ SERMO DE TODOS OS SANTOS ................................................................. SERMO DO BOM LADRO ........................................................................ SERMO DO ESPRITO SANTO .................................................................... SERMO DO QUARTO SBADO DA QUARESMA ........................................ SERMO DE SANTA CATARINA VIRGEM E CATARINA VIRGEM E MRTIR ........................................................................................................ SERMO DE SANTA TERESA E DO SANTSSIMO SACRAMENTO ................. SERMO DE SANTO ANTONIO ................................................................... MARIA ROSA MSTICA I ............................................................................ SERMO II - MARIA ROSA MSTICA ............................................................ SERMO III - MARIA ROSA MSTICA ........................................................... SERMO IX - MARIA ROSA MSTICA .......................................................... SERMO DA DOMINGA XIX DEPOIS DO PENTECOSTE ............................... SERMO DA GLRIA DE MARIA, ME DE DEUS ......................................... SERMO DA PRIMEIRA DOMINGA DO ADVENTO ...................................... SERMO DE SO PEDRO ............................................................................. SERMO DAS CADEIAS DE S. PEDRO EM ROMA ........................................ SERMO DA PRIMEIRA OITAVA DE PSCOA .............................................. SERMO DE DIA DE RAMOS ....................................................................... SERMO DA PRIMEIRA SEXTA-FEIRA DA QUARESMA (1644) .................... SERMO DA PRIMEIRA SEXTA-FEIRA DA QUARESMA (1651) ................... SERMO DA QUINTA DOMINGA DA QUARESMA (1654) ........................... SERMO DA SEGUNDA DOMINGA DA QUARESMA (1651) ....................... SERMO DE NOSSA SENHORA DO .......................................................... SERMO DA TERCEIRA DOMINGA DA QUARESMA NA CAPELA REAL .......

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    SERMO DA SEXAGSIMA Pregado na Capela Real, no ano de 1655

    Semen est verbum Dei S. Lucas, VIII, 11. CAPTULO I E se quisesse Deus que este to ilustre e to numeroso auditrio sasse hoje to desenganado da pregao, como vem enganado com o pregador! Ouamos o Evangelho, e ouamo-lo todo, que todo do caso que me levou e trouxe de to longe. Ecce exiit qui seminat, seminare. Diz Cristo que saiu o pregador evanglico a semear a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. No s faz meno do semear, mas tambm faz caso do sair: Exiit, porque no dia da messe ho-nos de medir a semeadura e ho-nos de contar os passos. O Mundo, aos que lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dispendeis, nem vos paga o que andais. Deus no assim. Para quem lavra com Deus at o sair semear, porque tambm das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do Evangelho h uns que saem a semear, h outros que semeiam sem sair. Os que saem a semear so os que vo pregar ndia, China, ao Japo; os que semeiam sem sair, so os que se contentam com pregar na Ptria. Todos tero sua razo, mas tudo tem sua conta. Aos que tm a seara em casa, pagar-lhes-o a semeadura; aos que vo buscar a seara to longe, ho-lhes de medir a semeadura e ho-lhes de contar os passos. Ah Dia do Juzo! Ah pregadores! Os de c, achar-vos-eis com mais pao; os de l, com mais passos: Exiit seminare. Mas daqui mesmo vejo que notais (e me notais) que diz Cristo que o semeador do Evangelho saiu, porm no diz que tornou porque os pregadores evanglicos, os homens que professam pregar e: propagar a F, bem que saiam, mas no bem que tornem. Aqueles animais de Ezequiel que tiravam pelo carro triunfal da glria de Deus e significavam os pregadores do Evangelho que propriedades tinham? Nec revertebantur, cum ambularent: Uma vez que iam, no tornavam. As rdeas por que se governavam era o mpeto do esprito, como diz o mesmo texto: mas esse esprito tinha impulsos para os levar,no tinha regresso para os trazer; porque sair para tornar melhor no sair. Assim arguis com muita razo, e eu tambm assim o digo. Mas pergunto: E se esse semeador evanglico, quando saiu, achasse o campo tomado; se se armassem contra ele os espinhos; se se levantassem contra ele as pedras, e se lhe fechassem os caminhos que havia de fazer? Todos estes contrrios que digo e todas estas contradies experimentou o semeador do nosso Evangelho. Comeou ele a semear (diz Cristo), mas com pouca ventura. Uma parte do

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    trigo caiu entre espinhos, e afogaram-no os espinhos: Aliud cecidit inter spinas et simul exortae spinae suffocaverunt illud. Outra parte caiu sobre pedras, e secou-se nas pedras por falta de umidade: Aliud cecidit super petram, et natum aruit, quia non habebat humorem. Outra parte caiu no caminho, e pisaram-no os homens e comeram-no as aves: Aliud cecidit secus viam, et conculcatum est, et volucres coeli comederunt illud. Ora vede como todas as criaturas do Mundo se armaram contra esta sementeira. Todas as criaturas quantas h no Mundo se reduzem a quatro gneros: criaturas racionais, como os homens; criaturas sensitivas, como os animais; criaturas vegetativas, como as plantas; criaturas insensveis, como as pedras; e no h mais. Faltou alguma destas que se no armasse contra o semeador? Nenhuma. A natureza insensvel o perseguiu nas pedras, a vegetativa nos espinhos, a sensitiva nas aves, a racional nos homens. E notai a desgraa do trigo, que onde s podia esperar razo, ali achou maior agravo. As pedras secaram-no, os espinhos afogaram-no, as aves comeram-no; e os homens? Pisaram-no: Conculcatum est. Ab hominibus (diz a Glossa). Quando Cristo mandou pregar os Apstolos pelo Mundo, disse-lhes desta maneira: Euntes in mundum universum, praedicate omni creaturae: Ide, e pregai a toda a criatura. Como assim, Senhor?! Os animais no so criaturas?! As rvores no so criaturas?! As pedras no so criaturas?! Pois ho os Apstolos de pregar s pedras?! Ho de pregar aos troncos?! Ho de pregar aos animais?! Sim, diz S. Gregrio, depois de Santo Agostinho. Porque como os Apstolos iam pregar a todas as naes do Mundo, muitas delas brbaras e incultas, haviam de achar os homens degenerados em todas as espcies de criaturas: haviam de achar homens homens, haviam de achar homens brutos, haviam de achar homens troncos, haviam de achar homens pedras. E quando os pregadores evanglicos vo pregar ar a toda a criatura, que se armem contra eles todas as criaturas?! Grande desgraa! Mas ainda a do semeador do nosso Evangelho no foi a maior. A maior a que se tem experimentado na seara aonde eu fui, e para onde venho. Tudo o que aqui padeceu o trigo, padeceram l os semeadores. Se bem advertirdes, houve aqui trigo mirrado, trigo afogado, trigo comido e trigo pisado. Trigo mirrado: Natum aruit, quia non habebat humorem; trigo afogado: Exortae spinae suffocaverunt illud; trigo comido: Volucres caeli comederunt illud; trigo pisado: Conculcutum est. Tudo isto padeceram os semeadores evanglicos da misso do Maranho de doze anos a esta parte. Houve missionrios afogados, porque uns se afogaram na boca do grande rio das Amazonas; houve missionrios comidos, porque a outros comeram os brbaros na ilha dos Aros; houve missionrios mirrados, porque tais tornaram os da jornada dos Tocatins, mirrados da fome e da doena, onde tal houve, que andando vinte e dois dias perdido nas brenhas matou somente a sede com o orvalho que lambia das folhas. Vede se lhe quadra bem o Notum aruit, quia non habebant humorem! E que sobre mirrados, sobre afogados, sobre comidos, ainda se vejam pisados e perseguidos dos homens:

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    Conculcatum est! No me queixo nem o digo, Senhor, pelos semeadores; s pela seara o digo, s pela seara o sinto. Para os semeadores, isto so glrias: mirrados sim, mas por amor de vs mirrados; afogados sim, mas por amor de vs afogados; comidos sim, mas por amor de vs comidos; pisados e perseguidos sim, mas por amor de vs perseguidos e pisados. Agora torna a minha pergunta: E que faria neste caso, ou que devia fazer o semeador evanglico, vendo to mal logrados seus primeiros trabalhos? Deixaria a lavoura? Desistiria da sementeira? Ficar-se-ia ocioso no campo, s porque tinha l ido? Parece que no. Mas se tornasse muito depressa a buscar alguns instrumentos com que alimpar a terra das pedras e dos espinhos, seria isto desistir? Seria isto tornar atrs? No por certo. No mesmo texto de Ezequiel com que arguistes, temos a prova. J vimos como dizia o texto, que aqueles animais da carroa de Deus, quando iam no tornavam: Nec revertebantur, cum ambularent. Lede agora dois versos mais abaixo, e vereis que diz o mesmo texto que aqueles animais tornavam, e semelhana de um raio ou corisco: Ibant et revertebantur in similitudinem fulgoris coruscantis. Pois se os animais iam e tornavam semelhana de um raio, como diz o texto que quando iam no tornavam? Porque quem vai e volta como um raio, no torna. Ir e voltar como raio, no tornar, ir por diante. Assim o fez o semeador do nosso Evangelho. No o desanimou nem a primeira nem a segunda nem a terceira perda; continuou por diante no semear, e foi com tanta felicidade, que nesta quarta e ltima parte do trigo se restauraram com vantagem as perdas do demais: nasceu, cresceu, espigou, amadureceu, colheu-se, mediu-se, achou-se que por um gro multiplicara cento: Et fecit fructum centuplum. Oh que grandes esperanas me d esta sementeira! Oh que grande exemplo me d este semeador! D-me grandes esperanas a sementeira porque, ainda que se perderam os primeiros trabalhos, lograr-se-o os ltimos. D-me grande exemplo o semeador, porque, depois de perder a primeira, a segunda e a terceira parte do trigo, aproveitou a quarta e ltima, e colheu dela muito fruto. J que se perderam as trs partes da vida, j que uma parte da idade a levaram os espinhos, j que outra parte a levaram es pedras, j que outra parte a levaram os caminhos, e tantos caminhos, esta quarta e ltima parte, este ltimo quartel da vida, porque se perder tambm? Porque no dar fruto? Porque no tero tambm os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Porque no ter tambm o seu Outono a vida? As flores, umas caem, outras secam, outras murcham, outras leva o vento; aquelas poucas que se pegam ao tronco e se convertem em fruto, s essas so as venturosas, s essas so as que aproveitam, s essas so as que sustentam o Mundo. Ser bem que o Mundo morra fome? Ser bem que os ltimos dias se passem em flores? No ser bem, nem Deus quer que seja, nem h de ser. Eis aqui porque eu dizia ao princpio, que vindes enganados com o pregador. Mas

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    para que possais ir desenganados com o sermo, tratarei nele uma matria de grande peso e importncia. Servir como de prlogo aos sermes que vos hei de pregar, e aos mais que ouvirdes esta Quaresma. CAPTULO II Semen est verbum Dei. O trigo que semeou o pregador evanglico, diz Cristo que a palavra de Deus. Os espinhos, as pedras, o caminho e a terra boa em que o trigo caiu, so os diversos coraes dos homens. Os espinhos so os coraes embaraados com cuidados, com riquezas, com delcias; e nestes afoga-se a palavra de Deus. As pedras so os coraes duros e obstinados; e nestes seca-se a palavra de Deus, e se nasce, no cria razes. Os caminhos so os coraes inquietos e perturbados com a passagem e tropel das coisas do Mundo, umas que vo, outras que vm, outras que atravessam, e todas passam; e nestes pisada a palavra de Deus, porque a desatendem ou a desprezam. Finalmente, a terra boa so os coraes bons ou os homens de bom corao; e nestes prende e frutifica a palavra divina, com tanta fecundidade e abundncia, que se colhe cento por um: Et fructum fecit centuplum. Este grande frutificar da palavra de Deus o em que reparo hoje; e uma dvida ou admirao que me traz suspenso e confuso, depois que subo ao plpito. Se a palavra de Deus to eficaz e to poderosa, como vemos to pouco fruto da palavra de Deus? Diz Cristo que a palavra de Deus frutifica cento por um, e j eu me contentara com que frutificasse um por cento. Se com cada cem sermes se convertera e emendara um homem, j o Mundo fora santo. Este argumento de f, fundado na autoridade de Cristo, se aperta ainda mais na experincia, comparando os tempos passados com os presentes. Lede as histrias eclesisticas, e ach-las-eis todas cheias de admirveis efeitos da pregao da palavra de Deus. Tantos pecadores convertidos, tanta mudana de vida, tanta reformao de costumes; os grandes desprezando as riquezas e vaidades do Mundo; os reis renunciando os cetros e as coroas; as mocidades e as gentilezas metendo-se pelos desertos e pelas covas; e hoje? Nada disto. Nunca na Igreja de Deus houve tantas pregaes, nem tantos pregadores como hoje. Pois se tanto se semeia a palavra de Deus, como to pouco o fruto? No h um homem que em um sermo entre em si e se resolva, no h um moo que se arrependa, no h um velho que se desengane. Que isto? Assim como Deus no hoje menos onipotente, assim a sua palavra no hoje menos poderosa do que dantes era. Pois se a palavra de Deus to poderosa; se a palavra de Deus tem hoje tantos pregadores, porque no vemos hoje nenhum fruto da palavra de Deus? Esta, to grande e to importante dvida, ser a matria do sermo. Quero comear pregando-me a mim. A mim ser, e tambm a vs; a mim, para aprender a pregar; a vs, que aprendais a ouvir.

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    CAPTULO III Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de trs princpios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus. Para uma alma se converter por meio de um sermo, h de haver trs concursos: h de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; h de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; h de concorrer Deus com a graa, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, so necessrias trs coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e cego, no se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e de noite, no se pode ver por falta de luz. Logo, h mister luz, h mister espelho e h mister olhos. Que coisa a converso de uma alma, seno entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista so necessrios olhos, e necessria luz e necessrio espelho. O pregador concorre com o espelho, que a doutrina; Deus concorre com a luz, que a graa; o homem concorre com os olhos, que o conhecimento. Ora suposto que a converso das almas por meio da pregao depende destes trs concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? Primeiramente, por parte de Deus, no falta nem pode faltar. Esta proposio de f, definida no Conclio Tridentino, e no nosso Evangelho a temos. Do trigo que deitou terra o semeador, uma parte se logrou e trs se perderam. E porque se perderam estas trs? A primeira perdeu-se, porque a afogaram os espinhos; a segunda, porque a secaram as pedras; a terceira, porque a pisaram os homens e a comeram as aves. Isto o que diz Cristo; mas notai o que no diz. No diz que parte alguma daquele trigo se perdesse por causa do sol ou da chuva. A causa por que ordinariamente se perdem as sementeiras, pela desigualdade e pela intemperana dos tempos, ou porque falta ou sobeja a chuva, ou porque falta ou sobeja o sol. Pois porque no introduz Cristo na parbola do Evangelho algum trigo que se perdesse por causa do sol ou da chuva? Porque o sol e a chuva so as afluncias da parte do Cu, e deixar de frutificar a semente da palavra de Deus, nunca por falta: do Cu, sempre por culpa nossa. Deixar de frutificar a sementeira, ou pelo embarao dos espinhos, ou pela dureza das pedras, ou pelos descaminhos dos caminhos; mas por falta das influncias do Cu, isso nunca nem pode ser. Sempre Deus est pronto da sua parte, com o sol para aquentar e com a chuva para regar; com o sol para alumiar e com a chuva para amolecer, se os nossos coraes quiserem: Qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos. Se Deus d o seu sol e a sua chuva aos bons e aos maus; aos maus que se quiserem fazer bons, como a negar? Este ponto to claro que no h para que nos determos em mais prova. Quid debui facere vineae meae, et non feci? disse o mesmo Deus por Isaas.

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    Sendo, pois, certo que a palavra divina no deixa de frutificar por parte de Deus, segue-se que ou por falta do pregador ou por falta dos ouvintes. Por qual ser? Os pregadores deitam a culpa aos ouvintes, mas no assim. Se fora por parte dos ouvintes, no fizera a palavra de Deus muito grande fruto, mas no fazer nenhum fruto e nenhum efeito, no por parte dos ouvintes. Provo. Os ouvintes ou so maus ou so bons; se so bons, faz neles fruto a palavra de Deus; se so maus, ainda que no faa neles fruto, faz efeito. No Evangelho o temos. O trigo que caiu nos espinhos, nasceu, mas afogaram-no: Simul exortae spinae suffocaverunt illud. O trigo que caiu nas pedras, nasceu tambm, mas secou-se: Et natum aruit. O trigo que caiu na terra boa, nasceu e frutificou com grande multiplicao: Et natum fecit fructum centuplum. De maneira que o trigo que caiu na boa terra, nasceu e frutificou; o trigo que caiu na m terra, no frutificou, mas nasceu; porque a palavra de Deus to funda, que nos bons faz muito fruto e to eficaz que nos maus ainda que no faa fruto, faz efeito; lanada nos espinhos, no frutificou, mas nasceu at nos espinhos; lanada nas pedras, no frutificou, mas nasceu at nas pedras. Os piores ouvintes que h na Igreja de Deus, so as pedras e os espinhos. E porqu? Os espinhos por agudos, as pedras por duras. Ouvintes de entendimentos agudos e ouvintes de vontades endurecidas so os piores que h. Os ouvintes de entendimentos agudos so maus ouvintes, porque vm s a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos, e s vezes tambm a picar a quem os no pica. Aliud cecidit inter spinas: O trigo no picou os espinhos, antes os espinhos o picaram a ele; e o mesmo sucede c. Cuidais que o sermo vos picou e vs, e no assim; vs sois os que picais o sermo. Por isto so maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda so piores, porque um entendimento agudo pode ferir pelos mesmos fios, e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quanto as setas so mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda so piores que as pedras! A vara de Moiss abrandou as pedras, e no pde abrandar uma vontade endurecida: Percutiens virga bis silicem, et egressae sunt aquae largissimae. Induratum est cor Pharaonis. E com os ouvintes de entendimentos agudos e os ouvintes de vontades endurecidas serem os mais rebeldes, tanta a fora da divina palavra, que, apesar da agudeza, nasce nos espinhos, e apesar da dureza nasce nas pedras. Pudramos arguir ao lavrador do Evangelho de no cortar os espinhos e de no arrancar as pedras antes de semear, mas de indstria deixou no campo as pedras e os espinhos, para que se visse a fora do que semeava. E tanta a fora da divina palavra, que, sem cortar nem despontar espinhos, nasce entre espinhos. tanta a fora da divina palavra, que, sem arrancar nem abrandar pedras, nasce nas pedras. Coraes embaraados como espinhos coraes

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    secos e duros como pedras, ouvi a palavra de Deus e tende confiana! Tomai exemplo nessas mesmas pedras e nesses espinhos! Esses espinhos e essas pedras agora resistem ao semeador do Cu; mas vir tempo em que essas mesmas pedras o aclamem e esses mesmos espinhos o coroem. Quando o semeador do Cu deixou o campo, saindo deste Mundo, as pedras se quebraram para lhe fazerem aclamaes, e os espinhos se teceram para lhe fazerem coroa. E se a palavra de Deus at dos espinhos e das pedras triunfa; se a palavra de Deus at nas pedras, at nos espinhos nasce; no triunfar dos alvedrios hoje a palavra de Deus, nem nascer nos coraes, no por culpa, nem por indisposio dos ouvintes. Supostas estas duas demonstraes; suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, no fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequncia clara, que fica por parte do pregador. E assim . Sabeis, cristos, porque no faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque no faz fruto a palavra de Deus? Por culpa nossa. CAPTULO IV Mas como em um pregador h tantas qualidades, e em uma pregao tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistir esta culpa? No pregador podem-se considerar cinco circunstncias: a pessoa, a cincia, a matria, o estilo, a voz. A pessoa que , e cincia que tem, a matria que trata, o estilo que segue, a voz com que fala. Todas estas circunstncias temos no Evangelho. Vamo-las examinando uma por uma e buscando esta causa. Ser porventura o no fazer fruto hoje a palavra de Deus, pela circunstncia da pessoa? Ser porque antigamente os pregadores eram santos eram vares apostlicos e exemplares, e hoje os pregadores so eu e outros como eu? Boa razo esta. A definio do pregador a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho no o comparou ao semeador, seno ao que semeia. Reparai. No diz Cristo: saiu a semear o semeador, seno, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia h muita diferena. Uma coisa o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa o semeador e outra o que semeia; uma coisa o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador nome; o que saneia e o que prega ao; e as aes so as que do o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, no importa nada; as aes, a vida, o exemplo, as obras, so as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao plpito, qual cuidais que ? o conceito que de sua vida tm os ouvintes.

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    Antigamente convertia-se o Mundo, hoje porque se no converte ningum? Porque hoje pregam-se palavras e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra so tiros sem bala; atroam, mas no ferem. A funda de David derrubou o gigante, mas no o derrubou com o estalo, seno com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. As vozes da harpa de David lanavam fora os demnios do corpo de Saul, mas no eram vozes pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mo: David tollebat citharam, et percutiebat manu sua. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar que falar faz-se com a boca; o pregar que semear, faz-se com a mo. Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao corao, so necessrias obras. Diz o Evangelho que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de uma palavra nasceram em palavras? No. Quer dizer que de poucas palavras nasceram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser s palavras! Quis Deus converter o Mundo, e que fez? Mandou ao Mundo seu Filho feito homem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, palavra de Deus, no obra de Deus: Genitum non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, palavra de Deus e obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est. De maneira que at de sua palavra desacompanhada de obras no fiou Deus a converso dos homens. Na unio da palavra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficcia da salvao do Mundo. Verbo Divino palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razo disto porque as palavras ouvem-se, as obras vem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Cu ningum h que no ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra h to poucos que o amem, todos o ofendem. Deus no o mesmo, e to digno de ser amado no Cu e na Terra? Pois como no Cu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra no? A razo porque Deus no Cu Deus visto; Deus na terra Deus ouvido. No Cu entra o conhecimento de Deus alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na terra entra-lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos ouvidos cr-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes em ns o que nos ouvem a ns, e o abalo e os efeitos do sermo seriam muito outros. Vai um pregador pregando a Paixo, chega ao pretrio de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de zombaria, diz que tomaram uma prpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o auditrio muito atento. Diz que teceram uma coroa de pinhos e que lha pregaram na cabea; ouvem todos com a mesma ateno. Diz mais que lhe ataram as mos e lhe meteram nelas uma cana por cetro; continua o mesmo silncio e a mesma suspenso nos ouvintes. Corre-se neste espao uma cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito eis as lgrimas, eis os gritos, eis os alaridos, eis as bofetadas. Que isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o que descobriu aquela cortina, tinha j dito o pregador. J tinha dito daquela

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    prpura, j tinha dito daquela coma e daqueles espinhos, j tinha dito daquele cetro e daquela cana. Pois se isto ento no fez abalo nenhum, como faz agora tanto? Porque ento era Ecce Homo ouvido, e agora Ecce Homo visto; a relao do pregador entrava pelos ouvidos a representao daquela figura entra pelos olhos. Sabem, Padres pregadores, porque fazem pouco abalo os nossos sermes? Porque no pregamos aos olhos, pregamos s aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos. As palavras do Baptista pregavam penitncia: Agite poenitentiam. Homens, fazei penitncia e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui est o homem que o retrato da penitncia e da aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum e repreendiam os regalos e demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui est o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do Baptista pregavam composio e modstia, e condenavam a soberba e a vaidade das galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui est o homem vestido de peles de camelo, com as cordas e cilcio raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasies e dos homens; e o exemplo Clamava: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as sociedades, e vive num deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vem outra, como se ho de converter? Jacob punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e daqui procedia que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem os nossos conceitos, tm diante dos olhos as nossas manchas, como ho de conceber virtudes? Se a minha vida apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras vo j refutadas nas minhas obras, se uma cousa o semeador e outra o que semeia, como se h de fazer fruto? Muito boa e muito forte razo era esta de no fazer fruto a palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experincia de Jonas. Jonas fugitivo de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo, impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da prpria estimao que da honra de Deus e salvao das almas, desejoso de ver subvertida a Nnive e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes; contudo este mesmo homem com um sermo converteu o maior rei, a maior corte e o maior reinado do Mundo, e no de homens fiis seno de gentios idlatras. Outra logo a causa que buscamos. Qual ser? CAPTULO V Ser porventura o estilo que hoje se usa nos plpitos? Um estilo to empeado, um estilo to dificultoso, um estilo to afetado, um estilo to encontrado a toda a arte e a toda a natureza? Boa razo tambm esta. O estilo h de ser muito fcil e muito natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear: Exiit, qui seminat, seminare. Compara Cristo o pregar ao semear, porque o semear uma

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    arte que tem mais de natureza que de arte. Nas outras artes tudo arte: na msica tudo se faz por compasso, na arquitetura tudo se faz por regra, na aritmtica tudo se faz por conta, na geometria tudo se faz por medida. O semear no assim. uma arte sem arte caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho. Caa o trigo nos espinhos e nascia Aliud cecidit inter spinas, et simul exortae spinae Caa o trigo nas pedras e nascia: Aliud cecidit super petram, et ortum. Caa o trigo na terra boa e nascia: Aliud cecidit in terram bonam, et natum. Ia o trigo caindo e ia nascendo. Assim h de ser o pregar. Ho de cair as coisas ho de nascer; to naturais que vo caindo, to prprias que venham nascendo. Que diferente o estilo violento e tirnico que hoje se usa! Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martrio; uns vm acarretados, outros vm arrastados, outros vm estirados, outros vm torcidos, outros vm despedaados; s atados no vm! H tal tirania? Ento no meio disto, que bem levantado est aquilo! No est a coisa no levantar, est no cair: Cecidit. Notai uma alegoria prpria da nossa lngua. O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, s de trs nasceu; para o sermo vir nascendo, h de ter trs modos de cair: h de cair com queda, h de cair com cadncia h de cair com caso. A queda para as coisas, a cadncia para as palavras, o caso para a disposio. A queda para as coisas porque ho de vir bem trazidas e em seu lugar; ho de ter queda. A cadncia para as palavras, porque no ho de ser escabrosas nem dissonantes; ho de ter cadncia. O caso para a disposio, porque h de ser to natural e to desafetada que parea caso e no estudo: Cecidit, cecidit, cecidit. J que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no Mundo foi o cu. Coeli enarrant gloriam Dei et opera manuum ejus annuntiat Firmamentum diz David. Suposto que o cu pregador, deve de ter sermes e deve de ter: palavras. Sim, tem, diz o mesmo David; tem palavras e tem sermes; e mais, muito bem ouvidos. Non sunt loquellae, nec sermones, quorum non audiantur voces eorum. E quais so estes sermes e estas palavras do cu? As palavras so as estrelas, os sermes so a composio, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do cu, com o estilo que Cristo ensinou na terra. Um e outro semear; a terra semeada de trigo, o cu semeado de estrelas. O pregar h de ser como quem semeia, e no como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas: Stellae manentes in ordine suo. Todas as estrelas esto por sua ordem; mas ordem que faz influncia, no ordem que faa lavor. No fez Deus o cu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermo em xadrez de palavras. Se de uma parte h de estar branco, da outra h de estar negro; se de uma parte dizem luz, da outra ho de dizer sombra; se de uma parte dizem desceu, da outra ho de dizer subiu. Basta que no havemos de ver num sermo

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    duas palavras em paz? Todas ho de estar sempre em fronteira com o seu contrrio? Aprendamos do cu o estilo da disposio, e tambm o das palavras. As estrelas so muito distintas e muito claras. Assim h de ser o estilo da pregao; muito distinto e muito claro. E nem por isso temais que parea o estilo baixo; as estrelas so muito distintas e muito claras, e altssimas. O estilo pode ser muito claro e muito alto; to claro que o entendam os que no sabem e to alto que tenham muito que entender os que sabem. O rstico acha documentos nas estrelas para sua lavoura e o mareante para sua navegao e o matemtico para as suas observaes e para os seus juzos. De maneira que o rstico e o mareante, que no sabem ler nem escrever entendem as estrelas; e o matemtico, que tem lido quantos escreveram, no alcana a entender quanto nelas h. Tal pode ser o sermo: estrelas que todos vem, e muito poucos as medem. Sim, Padre; porm esse estilo de pregar no pregar culto. Mas fosse! Este desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar chamam-lhe culto, os que o condenam chamam-lhe escuro, mas ainda lhe fazem muita honra. O estilo culto no escuro, negro, e negro boal e muito cerrado. E possvel que somos portugueses e havemos de ouvir um pregador em portugus e no havemos de entender o que diz?! Assim como h Lexicon para o grego e Calepino para o latim, assim necessrio haver um vocabulrio do plpito. Eu ao menos o tomara para os nomes prprios, porque os cultos tm desbatizados os santos, e cada autor que alegam um enigma. Assim o disse o Ceptro Penitente, assim o disse o Evangelista Apeles, assim o disse a guia de frica, o Favo de Claraval, a Prpura de Belm, a Boca de Ouro. H tal modo de alegar! O Ceptro Penitente dizem que David, como se todos os cetros no foram penitncia; o Evangelista Apeles, que S. Lucas; o Favo de Claraval, S. Bernardo; a guia de frica, Santo Agostinho; a Prpura de Belm, S. Jernimo; a Boca de Ouro, S. Crisstomo. E quem quitaria ao outro cuidar que a Prpura de Belm Herodes que a guia de frica Cipio, e que a Boca de Ouro Midas? Se houvesse um advogado que alegasse assim a Brtolo e Baldo, haveis de fiar dele o vosso pleito? Se houvesse um homem que assim falasse na conversao, no o haveis de ter por nscio? Pois o que na conversao seria necessidade, como h de ser discrio no plpito? Boa me parecia tambm esta razo; mas como os cultos pelo pulido e estudado se defendem com o grande Nazianzeno, com Ambrsio, com Crislogo, com Leo, e pelo escuro e duro com Clemente Alexandrino, com Tertuliano, com Baslio de Selucia, com Zeno Veronense e outros, no podemos negar a reverncia a tamanhos autores posto que desejramos nos que se prezam de beber destes rios, a sua profundidade. Qual ser logo a causa de nossa queixa? CAPITULO VI

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    Ser pela matria ou matrias que tomam os pregadores? Usa-se hoje o modo que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matrias, levantam muitos assuntos e quem levanta muita caa e no segue nenhuma no muito que se recolha com as mos vazias. Boa razo tambm esta. O sermo h de ter um s assunto e uma s matria. Por isso Cristo disse que o lavrador do Evangelho no semeara muitos gneros de sementes, seno uma s: Exiit, qui seminat, seminare semen. Semeou uma semente s, e no muitas, porque o sermo h de ter uma s matria, e no muitas matrias. Se o lavrador semeara primeiro trigo, e sobre o trigo semeara centeio, e sobre o centeio semeara milho grosso e mido, e sobre o milho semeara cevada, que havia de nascer? Uma mata brava, uma confuso verde. Eis aqui o que acontece aos sermes deste gnero. Como semeiam tanta variedade, no podem colher coisa certa. Quem semeia misturas, mal pode colher trigo. Se uma nau fizesse um bordo para o norte, outro para o sul, outro para leste, outro para oeste, como poderia fazer viagem? Por isso nos plpitos se trabalha tanto e se navega to pouco. Um assunto vai para um vento, outro assunto vai para outro vento; que se h de colher seno vento? O Baptista convertia muitos em Judia; mas quantas matrias tomava? Uma s matria: Parate viam Domini: a preparao para o Reino de Cristo. Jonas converteu os Ninivitas; mas quantos assuntos tomou? Um s assunto: Adhuc quadraginta dies, et Ninive subvertetur: a subverso da cidade. De maneira que Jonas em quarenta dias pregou um s assunto; e ns queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso no pregamos nenhum. O sermo h de ser de uma s cor, h de ter um s objeto, um s assunto, uma s matria. H de tomar o pregador uma s matria; h de defini-la, para que se conhea; h de dividi-la, para que se distinga; h de prov-la com a Escritura; h de declar-la com a razo; h de confirm-la com o exemplo; h de amplific-la com as causas, com os efeitos, com as circunstncias, com as convenincias que se ho de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; h de responder s dvidas, h de satisfazer s dificuldades; h de impugnar e refutar com toda a fora da eloquncia os argumentos contrrios; e depois disto h de colher, h de apertar, h de concluir, h de persuadir, h de acabar. Isto sermo, isto pregar; e o que no isto, falar de mais alto. No nego nem quero dizer que o sermo no haja de ter variedade de discursos, mas esses ho-de nascer todos da mesma matria e continuar e acabar nela. Quereis ver tudo isto com os olhos? Ora vede. Uma rvore tem razes, tem tronco, tem ramos, tem folhas, tem varas, tem flores, tem frutos. Assim h de ser o sermo: h de ter razes fortes e slidas, porque h de ser fundado no Evangelho; h de ter um tronco, porque h de ter um s assunto e tratar uma s matria; deste tronco ho de nascer diversos ramos, que so diversos discursos, mas nascidos da mesma matria e continuados nela; estes ramos ho-de ser secos, seno cobertos de folhas, porque os discursos ho-de

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    ser vestidos e ornados de palavras. H de ter esta rvore varas, que so a repreenso dos vcios; h de ter flores, que so as sentenas; e por remate de tudo, h de ter frutos, que o fruto e o fim a que se h de ordenar o sermo. De maneira que h de haver frutos, h de haver flores, h de haver varas, h de haver folhas, h de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um s tronco, que uma s matria. Se tudo so troncos, no sermo, madeira. Se tudo so ramos, no sermo, so maravalhas. Se tudo so folhas, no sermo, so versas. Se tudo so varas, no sermo, feixe. Se tudo so flores, no sermo, ramalhete. Serem tudo frutos, no pode ser; porque no h frutos sem rvore. Assim que nesta rvore, que podemos chamar rvore da vida, h de haver o proveitoso do fruto, o formoso das flores, o rigoroso das varas, o vestido das folhas, o estendido dos ramos; mas tudo isto nascido e formado de um s tronco e esse no levantado no ar, seno fundado nas razes do Evangelho: Seminare semen. Eis aqui como ho-de ser os sermes, eis aqui como no so. E assim no muito que se no faa fruto com eles. Tudo o que tenho dito pudera demonstrar largamente, no s com os preceitos dos Aristteles, dos Tlios, dos Quintilianos, mas com a prtica observada do prncipe dos oradores evanglicos, S. Joo Crisstomo, de S. Baslio Magno, S. Bernardo. S. Cipriano, e com as famosssimas oraes de S. Gregrio Nazianzeno, mestre de ambas as Igrejas. E posto que nestes mesmos Padres, como em Santo Agostinho, S. Gregrio e muitos outros, se acham os Evangelhos apostilados com nomes de sermo e homilias, uma coisa expor, e outra pregar; uma ensinar e outra persuadir, desta ltima que eu falo, com a qual tanto fruto fizeram no mundo Santo Antnio de Pdua e S. Vicente Ferrer. Mas nem por isso entendo que seja ainda esta a verdadeira causa que busco. CAPTULO VII Ser porventura a falta de cincia que h em muitos pregadores? Muitos pregadores h que vivem do que no colheram e semeiam o que no trabalharam. Depois da sentena de Ado, a terra no costuma dar fruto, seno a quem come o seu po com o suor do seu rosto. Boa razo parece tambm esta. O pregador h de pregar o seu, e no o alheio. Por isso diz Cristo que semeou o lavrador do Evangelho o trigo seu: Semen suum. Semeou o seu, e no o alheio, porque o alheio e, o furtado no bom para semear, ainda que o furto seja de cincia. Comeu Eva o pomo da cincia, e queixava-me eu antigamente desta nossa me; j que comeu o pomo, por que lhe no guardou as pevides? No seria bem que chegasse a ns a rvore, j que nos chegaram os encargos dela? Pois por que no o fez assim Eva? Porque o pomo era furtado, e o alheio bom para comer, mas no bom para semear: bom para comer, porque dizem que saboroso; no bom para semear, porque no nasce.

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    Algum ter experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, no h de deitar razes, e o que no tem razes no pode dar fruto. Eis aqui por que muitos pregadores no fazem fruto; porque pregam o alheio, e no o seu: Semen suum. O pregar entrar em batalha com os vcios; e armas alheias, ainda que sejam as de Aquiles, a ningum deram vitria. Quando David saiu a campo com o gigante, ofereceu-lhe Saul as suas armas, mas ele no as quis aceitar. Com armas alheias ningum pode vencer, ainda que seja David. As armas de Saul s servem a Saul, e as de David a David; e mais aproveita um cajado e uma funda prpria, que a espada e a lana alheia. Pregador que peleja com as armas alheias, no hajais medo que derrube gigante. Fez Cristo aos Apstolos pescadores de homens, que foi orden-los de pregadores; e que faziam os Apstolos? Diz o texto que estavam: Reficientes retia sua: Refazendo as redes suas; eram as redes dos Apstolos, e no eram alheias. Notai: Retia sua: No diz que eram suas porque as compraram, seno que eram suas porque as faziam; no eram suas porque lhes custaram o seu dinheiro, seno porque lhes custavam o seu trabalho. Desta maneira eram as redes suas; e porque desta maneira eram suas, por isso eram redes de pescadores que haviam de pescar homens. Com redes alheias, ou feitas por mo alheia, podem-se pescar peixes, homens no se podem pescar. A razo disto porque nesta pesca de entendimentos s quem sabe fazer a rede sabe fazer o lano. Como se faz uma rede? Do fio e do n se compe a malha; quem no enfia nem ata, como h de fazer rede? E quem no sabe enfiar nem sabe atar, como h de pescar homens? A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortia que nada em cima da gua. A pregao tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves; e governar o leve e o pesado, s o sabe fazer quem faz a rede. Na boca de quem no faz a pregao, at o chumbo cortia. As razes no ho de ser enxertadas, ho de ser nascidas. O pregar no recitar. As razes prprias nascem do entendimento, as alheias vo pegadas memria, e os homens no se convencem pela memria, seno pelo entendimento. Veio o Esprito Santo sobre os Apstolos, e quando as lnguas desciam do Cu, cuidava eu que se lhes haviam de pr na boca; mas elas foram-se pr na cabea. Pois por que na cabea e no na boca, que o lugar da lngua? Porque o que h de dizer o pregador, no lhe h de sair s da boca; h-lhe de sair pela boca, mas da cabea. O que sai s da boca pra nos ouvidos; o que nasce do juzo penetra e convence o entendimento. Ainda tem mais mistrio estas lnguas do Esprito Santo. Diz o texto que no se puseram todas as lnguas sobre todos os Apstolos, seno cada uma sobre cada um: Apparuerunt dispertitae linguae tanquam ignis, seditque supra singulos eorum. E por que cada uma sobre cada um, e no todas sobre todos? Porque no servem todas as lnguas a

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    todos, seno a cada um a sua. Uma lngua s sobre Pedro, porque a lngua de Pedro no serve a Andr; outra lngua s sobre Andr, porque a lngua de Andr no serve a Filipe; outra lngua s sobre Filipe, porque a lngua de Filipe no serve a Bartolomeu, e assim dos mais. E seno vede-o no estilo de cada um dos Apstolos, sobre que desceu o Esprito Santo. S de cinco temos escrituras; mas a diferena com que escreveram, como sabem os doutos, admirvel. As penas todas eram tiradas das asas daquela pomba divina; mas o estilo to diverso, to particular e to prprio de cada um, que bem mostra que era seu. Mateus fcil, Joo misterioso, Pedro grave, Jacob forte, Tadeu sublime, e todos com tal valentia no dizer, que cada palavra era um trovo, cada clusula um raio e cada razo um triunfo. Ajuntai a estes cinco S. Lucas e S. Marcos, que tambm ali estavam, e achareis o nmero daqueles sete troves que ouviu S. Joo no Apocalipse. Loquuti sunt septem tonitrua voces suas. Eram troves que falavam e desarticulavam as vozes, mas essas vozes eram suas: Voces suas; suas, e no alheias, como notou Ansberto: Non alienas, sed suas. Enfim, pregar o alheio pregar o alheio, e com o alheio nunca se fez coisa boa. Contudo eu no me firmo de todo nesta razo, porque do grande Baptista sabemos que pregou o que tinha pregado Isaas, como notou S. Lucas, e no com outro nome, seno de sermes: Praedicans baptismum poenitentiae in remissionem peccatorum, sicut scriptum est in libro sermonun Isaiae prophetae. Deixo o que tomou Santo Ambrsio de S. Baslio; S. Prspero e Beda de Santo Agostinho; Teofilato e Eutmio de S. Joo Crisstomo. CAPTULO VIII Ser finalmente a causa, que tanto h buscamos, a voz com que hoje falam os pregadores? Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem s vezes mais os brados que a razo. Boa era tambm esta, mas no a podemos provar com o semeador, porque j dissemos que no era ofcio de boca. Porm o que nos negou o Evangelho no semeador metafrico, nos deu no semeador verdadeiro, que Cristo. Tanto que Cristo acabou a parbola, diz o Evangelho que comeou o Senhor a bradar: Haec dicens clamabat. Bradou o Senhor, e no arrazoou sobre a parbola, porque era tal o auditrio, que fiou mais dos brados que da razo. Perguntaram ao Baptista quem era? Respondeu ele: Ego vox clamantis in deserto: Eu sou uma voz que anda bradando neste deserto. Desta maneira se definiu o Baptista. A definio do pregador, cuidava eu que era: voz que arrazoa e no voz que brada. Pois por que se definiu o Baptista pelo bradar e no pelo arrazoar; no pela razo, seno pelos brados? Porque h muita gente neste mundo com quem podem mais os brados que a razo, e tais eram aqueles a

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    quem o Baptista pregava. Vede-o claramente em Cristo. Depois que Pilatos examinou as acusaes que contra ele se davam, lavou as mos e disse: Ego nullam causam invenio in homine isto: Eu nenhuma causa acho neste homem. Neste tempo todo o povo e os escribas bradavam de fora, que fosse crucificado: At illi magis clamabant, crucifigatur. De maneira que Cristo tinha por si a razo e tinha contra si os brados. E qual pde mais? Puderam mais os brados que a razo. A razo no valeu para o livrar, os brados bastaram para o pr na Cruz. E como os brados no Mundo podem tanto, bem que bradem alguma vez os pregadores, bem que gritem. Por isso Isaas chamou aos pregadores nuvens: Qui sunt isti, qui ut nubes volant? A nuvem tem relmpago, tem trovo e tem raio: relmpago para os olhos, trovo para os ouvidos, raio para o corao; com o relmpago alumia, com o trovo assombra, com o raio mata. Mas o raio fere a um, o relmpago a muitos, o trovo a todos. Assim h de ser a voz do pregador, um trovo do Cu, que assombre e faa tremer o Mundo. Mas que diremos orao de Moiss? Concrescat ut pluvia doctrina mea: fluat ut ros eloquim meum: Desa minha doutrina como chuva do cu, e a minha voz e as minhas palavras como orvalho que se destila brandamente e sem rudo. Que diremos ao exemplo ordinrio de Cristo, to celebrado por Isaas: Non clamabit neque audietur vox ejus foris? No clamar, no bradar, mas falar com uma voz to moderada que se no possa ouvir fora. E no h dvida que o praticar familiarmente, e o falar mais ao ouvido que aos ouvidos, no s concilia maior ateno, mas naturalmente e sem fora se insinua, entra, penetra e se mete na alma. Em concluso que a causa de no fazerem hoje fruto os pregadores com a palavra de Deus, nem a circunstncia da pessoa: Qui seminat: nem a do estilo: Seminare; nem a da matria: Semen; nem a da cincia: Suum; nem a da voz: Clamabat. Moiss tinha fraca voz; Ams tinha grosseiro estilo; Salamo multiplicava e variava os assuntos; Balao no tinha exemplo de vida; o seu animal no tinha cincia; e contudo todos estes, falando, persuadiam e convenciam. Pois se nenhuma destas razes que discorremos, nem todas elas juntas so a causa principal nem bastante do pouco fruto que hoje faz a palavra de Deus, qual diremos finalmente que a verdadeira causa? CAPTULO IX As palavras que tomei por tema o dizem. Semen est verbum Dei. Sabeis, Cristos, a causa por que se faz hoje to pouco fruto com tantas pregaes? porque as palavras dos pregadores so palavras, mas no so palavras de Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como diria) to poderosa e to eficaz, que no s na boa terra faz fruto, mas at nas pedras e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores no so palavras de Deus, que muito que no tenham a eficcia e os efeitos da palavra de Deus? Ventum seminabunt, et turbinem colligent, diz o Esprito Santo: Quem semeia

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    ventos, colhe tempestades. Se os pregadores semeiam vento, se o que se prega vaidade, se no se prega a palavra de Deus, como no h a Igreja de Deus de correr tormenta, em vez de colher fruto? Mas dir-me-eis: Padre, os pregadores de hoje no pregam do Evangelho, no pregam das Sagradas Escrituras? Pois como no pregam a palavra de Deus? Esse o mal. Pregam palavras de Deus, mas no pregam a palavra de Deus: Qui habet sermonem meum, loquatur sermonem meum vere, disse Deus por Jeremias. As palavras de Deus, pregadas no sentido em que Deus as disse, so palavras de Deus; mas pregadas no sentido que ns queremos, no so palavras de Deus, antes podem ser palavras do Demnio. Tentou o Demnio a Cristo a que fizesse das pedras po. Respondeu-lhe o Senhor: Non in solo pane vivit homo, sed in omni verbo, quod procedit de ore dei. Esta sentena era tirada do captulo VIII do Deuteronmio. Vendo o Demnio que o Senhor se defendia da tentao com a Escritura, leva-o ao Templo, e alegando o lugar do salmo XC, diz-lhe desta maneira: Mille te deorsum; scriptum est enim, quia Angelis suis Deus mandavit de te, ut custodiant te in omnibus viis tuis: Deita-te da abaixo, porque prometido est nas Sagradas Escrituras que os anjos te tomaro nos braos, para que te no faas mal. De sorte que Cristo defendeu-se do Diabo com a Escritura, e o Diabo tentou a Cristo com a Escritura. Todas as Escrituras so palavra de Deus: pois se Cristo toma a Escritura para se defender do Diabo, como toma o Diabo a Escritura para tentar a Cristo? A razo porque Cristo tomava as palavras da Escritura em seu verdadeiro sentido, e o Diabo tomava as palavras da Escritura em sentido alheio e torcido; e as mesmas palavras, que tomadas em verdadeiro sentido so palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, so armas do Diabo. As mesmas palavras que, tomadas no sentido em que Deus as disse, so defesa, tomadas no sentido em que Deus as no disse, so tentao. Eis aqui a tentao com que ento quis o Diabo derrubar a Cristo, e com que hoje lhe faz a mesma guerra do pinculo do templo. O pinculo do templo o plpito, porque o lugar mais alto dele. O Diabo tentou a Cristo no deserto, tentou-o no monte, tentou-o no templo: no deserto, tentou-o com a gula; no monte, tentou-o com a ambio; no templo, tentou-o com as Escrituras mal interpretadas, e essa a tentao de que mais padece hoje a Igreja, e que em muitas partes tem derrubado dela, seno a Cristo, a sua f. Dizei-me, pregadores (aqueles com quem eu falo indignos verdadeiramente de to sagrado nome), dizei-me: esses assuntos inteis que tantas vezes levantais, essas empresas ao vosso parecer agudas que prosseguis, achaste-las alguma vez nos Profetas do Testamento Velho, ou nos Apstolos e Evangelistas do Testamento Novo, ou no autor de ambos os Testamentos, Cristo? certo que no, porque desde a primeira palavra do Gnesis at ltima do Apocalipse, no h tal coisa em todas as Escrituras. Pois se nas Escrituras no h o que dizeis e o que pregais, como cuidais que pregais a palavra de Deus? Mais: nesses lugares, nesses textos que alegais para prova do que dizeis, esse o

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    sentido em que Deus os disse? esse o sentido em que os entendem os padres da Igreja? esse o sentido da mesma gramtica das palavras? No, por certo; porque muitas vezes as tomais pelo que toam e no pelo que significam, e talvez nem pelo que toam. Pois se no esse o sentido das palavras de Deus, segue-se que no so palavras de Deus. E se no so palavras de Deus, que nos queixamos que no faam fruto as pregaes? Basta que havemos de trazer as palavras de Deus a que digam o que ns queremos, e no havemos de querer dizer o que elas dizem?! E ento ver cabecear o auditrio a estas coisas, quando devamos de dar com a cabea pelas paredes de as ouvir! Verdadeiramente no sei de que mais me espante, se dos nossos conceitos, se dos vossos aplausos? Oh, que bem levantou o pregador! Assim ; mas que levantou? Um falso testemunho ao texto, outro falso testemunho ao santo, outro ao entendimento e ao sentido de ambos. Ento que se converta o mundo com falsos testemunhos da palavra de Deus? Se a algum parecer demasiada a censura, oua-me. Estava Cristo acusado diante de Caifs, e diz o Evangelista S. Mateus que por fim vieram duas testemunhas falsas: Novissime venerunt duo falsi testes. Estas testemunhas referiram que ouviram dizer a Cristo que, se os Judeus destrussem o templo, ele o tornaria a reedificar em trs dias. Se lermos o Evangelista S. Joo, acharemos que Cristo verdadeiramente tinha dito as palavras referidas. Pois se Cristo tinha dito que havia de reedificar o templo dentro em trs dias, e isto mesmo o que referiram as testemunhas, como lhes chama o Evangelista testemunhas falsas: Duo falsi testes? O mesmo S. Joo deu a razo: Loquebatur de templo corporis sui. Quando Cristo disse que em trs dias reedificaria o templo, falava o Senhor do templo mstico de seu corpo, o qual os Judeus destruram pela morte e o Senhor o reedificou pela ressurreio; e como Cristo falava do templo mstico e as testemunhas o referiram ao templo material de Jerusalm, ainda que as palavras eram verdadeiras, as testemunhas eram falsas. Eram falsas, porque Cristo as dissera em um sentido, e eles as referiram em outro; e referir as palavras de Deus em diferente sentido do que foram ditas, levantar falso testemunho a Deus, levantar falso testemunho s Escrituras. Ah, Senhor, quantos falsos testemunhos vos levantam! Quantas vezes ouo dizer que dizeis o que nunca dissestes! Quantas vezes ouo dizer que so palavras vossas, o que so imaginaes minhas, que me no quero excluir deste nmero! Que muito logo que as nossas imaginaes, e as nossas vaidades, e as nossas fbulas no tenham a eficcia de palavra de Deus! Miserveis de ns, e miserveis dos nossos tempos! Pois neles se veio a cumprir a profecia de S. Paulo: Erit tempus, cum sanam doctrinam non sustinebunt: Vir tempo, diz S. Paulo, em que os homens no sofrero a doutrina s. Sed ad sua desideria coacervabunt sibi magistros prurientes auribus: Mas para seu apetite tero grande nmero de pregadores feitos a monto e sem escolha, os quais no faam mais que adular-lhes as orelhas. A veritate quidem auditum avertent, ad fabulas auten convertentur: Fecharo os ouvidos verdade, e abri-los-o s

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    fbulas. Fbula tem duas significaes: quer dizer fingimento e quer dizer comdia; e tudo so muitas pregaes deste tempo. So fingimento, porque so sutilezas e pensamentos areos, sem fundamento de verdade; so comdia, porque os ouvintes vm pregao como comdia; e h pregadores que vm ao plpito como comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente era acabarem-se as comdias em Portugal; mas no foi assim. No se acabaram, mudaram-se; passaram-se do teatro ao plpito. No cuideis que encareo em chamar comdias a muitas pregaes das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comdias de Plauto, de Terncio, de Sneca, e vereis se no achveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do Mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros, e muito mais slidos, do que hoje se ouvem nos plpitos. Grande misria por certo, que se achem maiores documentos para a vida nos versos de um poeta profano, e gentio, que nas pregaes de um orador cristo, e muitas vezes, sobre cristo, religioso! Pouco disse S. Paulo em lhe chamar comdia, porque muitos sermes h que no so comdia, so farsa. Sobe talvez ao plpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hbito de penitncia (que todos, mais ou menos speros, so de penitncia; e todos, desde o dia que os professamos, mortalhas); a vista de horror, o nome de reverncia, a matria de compuno, a dignidade de orculo, o lugar e a expectao de silncio; e quando este se rompeu, que o que se ouve? Se neste auditrio estivesse um estrangeiro que nos no conhecesse e visse entrar este homem a falar em pblico naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do Cu; que cada palavra sua havia de ser um raio para os coraes, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto e com as aes havia de fazer em p e em cinza os vcios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E ns que o que vemos? Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada e muito polida, e logo comear com muito desgarro, a qu? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipcios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. No isto farsa a mais digna de riso, se no fora tanto para chorar? Na comdia o rei veste como rei, e fala como rei; o lacaio, veste como lacaio, e fala como lacaio; o rstico veste como rstico, e fala como rstico; mas um pregador, vestir como religioso e falar como... no o quero dizer, por reverncia do lugar. J que o plpito teatro, e o sermo comdia se quer, no faremos bem a figura? No diro as palavras com o vestido e com o ofcio? Assim pregava S. Paulo, assim pregavam aqueles patriarcas que se vestiram e nos vestiram destes hbitos? No louvamos e no admiramos o seu pregar? No nos prezamos de seus filhos? Pois por que no os imitamos? Por que no pregamos como eles pregavam? Neste mesmo plpito pregou S. Francisco Xavier, neste mesmo plpito pregou S. Francisco de Borja; e eu, que

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    tenho o mesmo hbito, por que no pregarei a sua doutrina, j que me falta o seu esprito? CAPTULO X Dir-me-eis o que a mim me dizem, e o que j tenho experimentado, que, se pregamos assim, zombam de ns os ouvintes, e no gostam de ouvir. Oh, boa razo para um servo de Jesus Cristo! Zombem e no gostem embora, e faamos ns nosso ofcio! A doutrina de que eles zombam, a doutrina que eles desestimam, essa a que lhes devemos pregar, e por isso mesmo, porque mais proveitosa e a que mais ho mister. O trigo que caiu no caminho comeram-no as aves. Estas aves, como explicou o mesmo Cristo, so os demnios, que tiram a palavra de Deus dos coraes dos homens: Venit Diabolus, et tollit verbum de corde ipsorum! Pois por que no comeu o Diabo o trigo que caiu entre os espinhos, ou o trigo que caiu nas pedras, seno o trigo que caiu no caminho? Porque o trigo que caiu no caminho: Conculcatum est ab hominibus: Pisaram-no os homens; e a doutrina que os homens pisam, a doutrina que os homens desprezam, essa a de que o Diabo se teme. Dessoutros conceitos, dessoutros pensamentos, dessoutras sutilezas que os homens estimam e prezam, dessas no se teme nem se acautela o Diabo, porque sabe que no so essas as pregaes que lhe ho de tirar as almas das unhas. Mas daquela doutrina que cai: Secus viam: daquela doutrina que parece comum: Secus viam; daquela doutrina que parece trivial: Secus viam; daquela doutrina que parece trilhada: Secus viam; daquela doutrina que nos pe em caminho e em via da nossa salvao (que a que os homens pisam e a que os homens desprezam), essa a de que o Demnio se receia e se acautela, essa a que procura comer e tirar do Mundo; e por isso mesmo essa a que deviam pregar os pregadores, e a que deviam buscar os ouvintes. Mas se eles no o fizerem assim e zombarem de ns, zombemos ns tanto de suas zombarias como dos seus aplausos. Per infamiam et bonam famam, diz S. Paulo: O pregador h de saber pregar com fama e sem fama. Mais diz o Apstolo: H de pregar com fama e com infmia. Pregar o pregador para ser afamado, isso mundo: mas infamado, e pregar o que convm, ainda que seja com descrdito de sua fama?, isso ser pregador de Jesus Cristo. Pois o gostarem ou no gostarem os ouvintes! Oh, que advertncia to digna! Que mdico h que repare no gosto do enfermo, quando trata de lhe dar sade? Sarem e no gostem; salvem-se e amargue-lhes, que para isso somos mdicos das almas. Quais vos parece que so as pedras sobre que caiu parte do trigo do Evangelho? Explicando Cristo a parbola, diz que as pedras so aqueles que ouvem a pregao com gosto: Hi sunt, qui cum gaudio suscipiunt verbum. Pois ser bem que os ouvintes gostem e que no cabo fiquem pedras?! No gostem e abrandem-se; no gostem e quebrem-se; no gostem e frutifiquem. Este o modo com que frutificou o trigo que caiu na boa terra: Et fructum

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    afferunt in patientia, conclui Cristo. De maneira que o frutificar no se ajunta com o gostar, seno com o padecer; frutifiquemos ns, e tenham eles pacincia. A pregao que frutifica, a pregao que aproveita, no aquela que d gosto ao ouvinte, aquela que lhe d pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador um torcedor para o corao do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermo para casa confuso e atnito, sem saber parte de si, ento a preparao qual convm, ento se pode esperar que faa fruto: Et fructum afferunt in patientia. Enfim, para que os pregadores saibam como ho de pregar e os ouvintes a quem ho de ouvir, acabo com um exemplo do nosso Reino, e quase dos nossos tempos. Pregavam em Coimbra dois famosos pregadores, ambos bem conhecidos por seus escritos; no os nomeio, porque os hei de desigualar. Altercou-se entre alguns doutores da Universidade qual dos dois fosse maior pregador; e como no h juzo sem inclinao, uns diziam este, outros, aquele. Mas um lente, que entre os mais tinha maior autoridade, concluiu desta maneira: Entre dois sujeitos to grandes no me atrevo a interpor juzo; s direi uma diferena, que sempre experimento: quando ouo um, saio do sermo muito contente do pregador; quando ouo outro, saio muito descontente de mim. Com isto tenho acabado. Algum dia vos enganastes tanto comigo, que saeis do sermo muito contentes do pregador; agora quisera eu desenganar-vos tanto, que sareis muito descontentes de vs. Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermes: no que os homens saiam contentes de ns, seno que saiam muito descontentes de si; no que lhes paream bem os nossos conceitos, mas que lhes paream mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambies e, enfim, todos os seus pecados. Contanto que se descontentem de si, descontentem-se embora de ns. Si hominibus placerem, Christus servus non essem, dizia o maior de todos os pregadores, S. Paulo: Se eu contentara aos homens, no seria servo de Deus. Oh, contentemos a Deus, e acabemos de no fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma Igreja h tribunas mais altas que as que vemos: Spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus. Acima das tribunas dos reis, esto as tribunas dos anjos, est a tribuna e o tribunal de Deus, que nos ouve e nos h de julgar. Que conta h de dar a Deus um pregador no Dia do Juzo? O ouvinte dir: No mo disseram. Mas o pregador? Vae mihi, quia tacui: Ai de mim, que no disse o que convinha! No seja mais assim, por amor de Deus e de ns. Estamos s portas da Quaresma, que o tempo em que principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vcios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, contra as soberbas, contra os dios, contra as ambies, contra as invejas, contra as cobias, contra as

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    sensualidades. Veja o Cu que ainda tem na terra quem se pe da sua parte. Saiba o Inferno que ainda h na terra quem lhe faa guerra com a palavra de Deus, e saiba a mesma terra que ainda est em estado de reverdecer e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum.

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    SERMO DO MANDATO Concorrendo no mesmo dia o da Encarnao. Ano de 1655

    Pregado na Misericrdia de Lisboa, s 11 da manh Sciens quia a Deo exivit, et ad Deum vadit: Cum dilexisset suos, in finem dilexit

    eos. CAPTULO I No ano presente concorrem e se ajuntam no mesmo dia os dois maiores mistrios e os dois maiores dias: o dia da Encarnao do Verbo e o dia da partida do mesmo Verbo Encarnado. O que dizem os dias e o que declaram as noites. A competio do Amor divino consigo mesmo e a justa dos gigantes. Argumento do sermo: foi maior o amor de Cristo no dia da Encarnao ou no dia da partida? Grande dia! Grande amor! Depois que o Eterno se fez temporal, tambm o amor divino tem dias. O evangelista S. Joo querendo-nos declarar a grandeza e grandezas do mesmo amor neste dia, a primeira coisa que ponderou, com to alto juzo como o seu, foi ser um dia antes de outro dia: Ante diem festum Paschae. Tanto pode acrescentar quilates ao amor a reflexo ou circunstncia dos dias! E que farei eu? Dois dias hei de combinar tambm hoje, mas no o dia de antes com o dia de depois, seno o dia de depois com o dia de antes; e no livremente ou por eleio prpria e minha, seno por obrigao forosa dos mesmos dias. Assim como depois de longo crculo de anos se encontram e ajuntam dois planetas a fazer uma conjuno magna, assim no ano presente concorrem e se ajuntam hoje no mesmo dia os dois maiores mistrios e os dois maiores dias: o dia da Encarnao do Verbo, e o dia da partida do mesmo Verbo encarnado. O dia da Encarnao do Verbo: Sciens quia a Deo exivit que foi o princpio com seu amor para com os homens: cum dilexisset suos e a partida do mesmo Verbo encarnado: Et ad Deum vadit que foi o fim sem fim do mesmo amor: In finem dilexit eos. 0 real profeta Davi, antevendo em esprito estes dois dias, diz que o dia de hoje fala com o dia da Encarnao, e o dia da Encarnao com o dia de hoje, e que ambos se entendem entre si, e se respondem um ao outro: Dies diei eructat verbum. Assim explica este famoso texto Santo Agostinho. E se perguntarmos que o que falam estes dias, que devem de ser coisas muito dignas de se ouvir e saber, responde o mesmo Davi que as noites dos mesmos dias nos diro e declararo o que eles falam: Dies diei eructat Verbum, et nox nocti indicat scientiam. Pois as noites, que so escuras, nos ho de declarar o que dizem os dias? Sim. Porque os mistrios do dia de hoje, e do dia da Encarnao, ambos se celebraram nas noites dos mesmos dias. Tanto silncio e reverncia era devido majestade de to divinos mistrios! Os

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    do dia da Encarnao de noite: Cum quietum silentium contineret omnia, et nox in suo cursu medium iter haberet e os do dia de hoje tambm de noite: Et coena facta. As luzes a que se h de ver toda esta famosa representao so as da f; os lugares, um cenculo grande em Jerusalm, e uma casa humilde, mas real, em Nazar. E a questo ou problema, qual ser? Se foi maior o amor de Cristo no dia da Encarnao ou no dia de hoje. Posto, pois, um dia defronte do outro dia, e um mistrio vista de outro mistrio, e um amor competindo com outro amor, certo que nunca o amor divino se viu em mais glorioso teatro, pois sai a competir consigo mesmo. Nas outras comparaes do amor divino com o amor dos homens, ou seja com o amor dos irmos, ou com o amor dos pais, ou com o amor dos filhos, ou com o amor dos esposos, ou com o amor dos amigos que deve ser o maior de todos ainda que saia vencedor o amor de Cristo, sempre fica agravado na vitria, porque entra afrontado na competncia. S hoje, se vencer, ser vencedor glorioso, porque tem competidor igual, e se vencer a si mesmo. Quando Davi saiu a desafio com o gigante, mediu-lhe o gigante com os olhos a estatura, e, posto que no duvidava da vitria, na desigualdade de to inferior combatente teve por injuriosa a batalha. Do mesmo modo, e com mais verdade, Cristo. Quando o seu amor se compara com outro amor, compete o gigante com Davi; mas quando se compara o amor de Cristo com o amor do mesmo Cristo, como fazemos hoje, competir o gigante com o gigante. Assim o disse ou cantou o mesmo Davi: Exultavit ut gigas ad currendam viam. Entrou Cristo na estacada como gigante. E que fez? Justou consigo mesmo. A primeira carreira foi do cu para a terra: A summo caelo egressio ejus; a Segunda carreira foi da terra para o cu: Et occursus ejus usque ad summum ejus: e neste encontro se cerrou a justa, e se quebraram as lanas um e outro amor. em verso de Davi o mesmo que diz a prosa do nosso Evangelho. A primeira carreira: A summo caelo egressio ejus foi no dia da Encarnao, quando o Verbo saiu do Padre: a Deo exivit; a segunda carreira: Et occursus ejus usque ad summum ejus foi no dia de hoje, quando o mesmo Verbo tornou para o Padre: Et ad Deum vadit. Na primeira carreira, amor: Cum dilexisset suos; e na segunda tambm amor: In finem dilexit eos. O dilexisset e o dilexit distingue os dias: o dilexisset declara um amor, e o dilexit outro; mas nem juntos, nem divididos sinalam a vitria, nem resolvem qual foi maior. Esta famosa deciso entre os maiores combatentes que jamais se viram, havemos de ver hoje. Assistir-nos- com a graa quem foi presente em um e outro dia, e quem teve a maior parte em um e outro mistrio, que foi a Me do mesmo amor: Mater pulchrae dilectionis. Mas como invocaremos seu favor e patrocnio? Com as mesmas palavras com que tambm hoje a invocou o anjo: Ave gratia plena. CAPTULO II

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    O amor de Cristo quanto substncia e quanto aos efeitos. Os extremos do amor de Cristo no dia da Encarnao e no dia da partida. Comparando-se os efeitos Deuses dois dias, afirma o autor que maiores foram os extremos do dia da partida que os do dia da Encarnao. Cum dilexisset, dilexit. Nestas palavras como dizia deixou o Evangelista indecisa a nossa questo, porque no disse: como amasse mais amou menos, nem como amasse menos amou mais, seno como amasse amou. Distinguiu somente os tempos, e pelos tempos o amor, sem preferncia porm, ou vantagem nem do amor passado ao presente, nem do presente ao passado. Falou S. Joo como divino telogo, e no s como quem tecia a histria, mas como quem compunha o panegrico do amor de Cristo. Quanto substncia do amor, Cristo, Senhor nosso, tanto nos amou no dia da Encarnao, como no dia de hoje, e em todos os dias da sua vida, porque o seu amor amor perfeito, e no fora seu, se assim no fora. O amor dos homens, ou mngua,ou cresce, ou pra; o de Cristo nem pode minguar, nem crescer, nem parar, porque , foi, e ser sempre amor perfeito, e por isso sempre o mesmo, e sem alterao nem mudana. Ama Cristo enquanto homem, como ama enquanto Deus. Perguntam os telogos: como ama Deus a uns mais e a outros menos, se o seu amor o qual se no distingue da sua essncia sempre um s e o mesmo, infinito, simplicssimo e imutvel? E respondem que a diferena ou desigualdade no est no amor, seno nos efeitos, porque a uns sujeitos faz Deus maiores bens que a outros. Os homens amamos os objetos pelo bem que tem: Deus ama-os pelo bem que lhes faz. E assim como julgamos a maioria do amor de Deus belos efeitos, assim havemos de julgar tambm a do amor de Cristo. Este o fundamento slido e certo sobre que excitamos a nossa questo, e estes os termos de igual certeza, com que a havemos de resolver. Nem daqui deve inferir ou cuidar a rudeza do nosso entendimento que seria menos afetuoso, ou menos amoroso, este modo de amar de Cristo, porque assim como em Deus o fazer o bem se chama amor efetivo, e o quer-lo fazer amor afetivo, assim no amor de Cristo os afetos foram a causa dos efeitos que veremos, e os efeitos a demonstrao dos afetos. Vindo, pois, aos efeitos e demonstraes de um e outro amor no dia de hoje e no dia da Encarnao, parece que assim no nmero, como no modo, os esteve medindo e proporcionando o mesmo amor, que neles se quis igualar e vencer. O Conclio Niceno, no Smbolo da F, ponderando o amor de Cristo na Encarnao, reduz os efeitos dele a dois extremos: descer do cu e fazer-se homem: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis. Et incarnatus est ex Maria Virgine, et homo facctus est. Isto diz o Esprito Santo no Conclio, falando do dia da Encarnao. E falando do dia de hoje, que

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    o que diz e pondera o mesmo Esprito Santo no Evangelho? Outros dois efeitos e outros dois extremos: lavar os ps aos homens, e deixar-se no Santssimo Sacramento: Et coena facta, coepit lavare pedes discipulorum. Supostos de uma e outra parte este par de extremos, uns e outros no s admirveis mas estupendos, comparando-se o amor de Cristo, e competindo-se em uns e outros, que diremos ou que podemos dizer? Sem temeridade nem temor, digo e afirmo que maiores foram os extremos do dia de hoje que os do dia da Encarnao. E por qu? Porque, se no dia da Encarnao foi grande extremo de amor descer Deus do cu terra: Descendit de coelis muito maior extremo foi no dia de hoje lavar Cristo os ps aos homens: Coepit lavare pedes discipulorum. E se foi grande extremo de amor no dia da Encarnao fazer-se Deus homem: Et homo factus est muito maior extremo foi no dia de hoje deixar Cristo seu corpo no Sacramento para que o comessem os homens, como fez na Ceia: Et coena facta. Estes sero os dois pontos do nosso discurso, em que ele descobrir muito mais do que aparece no que est dito. CAPTULO III Estranheza da exclamao de Jac quando viu em sonhos aquela famosa escada que chegava da terra at o cu, pela qual subiam e desciam anjos. Como se h de entender o dito de Davi, quando afirma que Deus tinha feito o homem pouco menor que os anjos. O estupendo prodgio que fez Deus por amor de el-rei Ezequias em benefcio de sua sade, e o prodgio da Encarnao. To grande e to prodigiosa coisa foi descer Deus em Pessoa do cu terra que, visto de muito longe este mistrio, no s causava admirao e espanto ao entendimento, mas horror e assombro mesma f. Viu Jac em sonhos aquela famosa escada que chegava da terra at o cu, pela qual subiam e desciam anjos, encostado e inclinado Deus no alto dela, e, assombrado do que via, acordou com um grito, dizendo: Terribilis est locus iste (Gen. 28, 17)! que terrvel, que temeroso lugar! De vrios modos se costuma ponderar a estranheza deste dito. Eu s noto que nem a vista podia causar horror, nem a novidade espanto. O que s poderia causar horror a Jac era ver que os que subiam e desciam fossem somente anjos, e que nem ele, que estava no baixo da escada, subisse, nem Deus, que estava no alto, descesse, com que se demonstrava uma grande separao entre Deus e o homem, como aquela de que disse Abrao ao avarento: Inter nos et vos chaos magnum firmatum est. E posto que hoje esta apreenso seria para ns de grande horror, porque sabemos o contrrio, naquele tempo nem podia causar horror pela vista, nem espanto pela novidade, como dizia, porque tudo o que Jac viu, e tudo o que mostrava significar o que via, era o mesmo que ele e os demais supunham. At o tempo de Jac, e ainda depois, no tempo da lei escrita, nunca Deus prometeu aos homens o cu, seno tudo prmios da terra.

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    E daqui nasceu aquela parmia ou provrbio: Caelum caeli Domino; terram autem dedit Filiis hominum: que o cu era para Deus, e a terra para os homens. Logo no se podia assombrar nem espantar Jac de que ele, sendo homem, e estando na terra, no subisse pela escada, e, muito menos, de que Deus, sendo Deus, e estando no cu, no descesse. Pois, se Jac no tinha que admirar nem que estranhar no seu sonho, de que acordou com tanto horror e to notvel assombro? Acordou assombrado Jac, no do que vira, seno do que na mesma viso Deus lhe revelara.Revelou Deus a Jac que naquela escada era significado o mistrio altssimo da Encarnao do Verbo, e que para ele, Jac, os outros homens poderem subir ao cu, ele, Deus, havia de descer do cu terra: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis. E vendo Jac que a majestade suprema de Deus, deixando do modo que o podia deixar o trono do empreo, havia de descer em pessoa do cu terra, a revelao desta estupenda novidade, que nunca entrou na imaginao humana, lhe causou no mesmo sono tal horror e assombro, que acordou tremendo e gritando: Terribilis est locus iste! Duas coisas viu Jac no que viu, que muito e com muita razo lhe assombraram, no a vista, seno o entendimento. E quais foram? A primeira que, sendo a escada para descer Deus, a descida era muito maior que a escada. Pois a descida maior que a escada? Sim. Porque a escada chegava da terra ao cu, que distncia limitada, e a descida era de Deus ao homem, que distncia infinita. E vendo unir dois extremos infinitamente distantes, quem, ainda estando muito em si, no ficaria atnito e assombrado? A segunda causa, e no menor, do mesmo assombro, foi que por meio da Encarnao do Verbo, assim revelada a Jac, vinha a conseguir muito mais o menor anjo do que a soberba de Lcifer tinha afetado. Porque Lcifer quis ser igual a Deus, e fazendo-se Deus homem, ficava Deus por este lado sendo inferior ao menor anjo. Este foi o grande mistrio diz Santo Agostinho por que os anjos da escada uns desciam, outros subiam. Como Deus estava no alto da escada, e Jac ao p dela, os anjos que ficavam da parte de Deus desciam, e os que ficavam da parte de Jac subiam, e este subir e descer no era ato ou movimento da vontade dos mesmos anjos, seno ordem e constituio da sua prpria natureza. Os da parte superior da escada, onde estava Deus, desciam, porque todos os anjos so muito inferiores a Deus; e os da parte inferior, onde estava Jac, subiam, porque estes mesmos so muito superiores ao homem. E como os anjos so superiores ao homem, e Deus no havia de tomar a natureza anglica, seno a humana, isto era o que assombrava a Jac, e lhe parecia coisa terrvel: que Deus houvesse de descer, e abater-se tanto, que ficasse por esta parte muito inferior a qualquer anjo.

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    L disse Davi que Deus tinha feito ao homem pouco menor que os anjos: Minuisti eum paulo minus ab angelis (Sl 8, 6). Mas isto se entende no domnio, e no na natureza, porque deu Deus a Ado o senhorio e imprio de todos os animais da terra, do mar e do ar, como logo declarou o mesmo profeta: Minuisti eum paulo minus ab angelis; gloria et honore coronasti eum; et constituisti eum

    super opera manuum tuarum. Omnia subjecisti sub pedibus ejus, oves et boves,

    insuper et pecora campi, volucres caeli, et pisces maris. De maneira que no domnio e uso de todas as coisas criadas para servio seu nos trs elementos, o homem pouco menor que os anjos; porm, no ser e nobreza natural, no s quanto parte do barro, em que aparentamos com os brutos, seno ainda quanto parte espiritual da alma e suas potncias, em que imitamos a natureza anglica, no o homem pouco menor, seno muito menor e muito inferior a qualquer anjo, e tanto quanto for de mais superior hierarquia. A escada de Jac tinha nove degraus, que so as nove ordens de criaturas racionais que h entre Deus e o homem, as quais por outro nome chamamos nove coros dos anjos, e todos estes degraus desceu Deus, e os deixou e passou por eles, para se unir com a natureza humana, que jazia em Jac, abaixo de todos. o que ponderou S. Paulo naquelas palavras: Nusquam angelos apprehendit, sed semen Abrahae apprehendit, cujo fundo e energia no acho to declarada nos expositores como ele pede. Dizem que nusquam o mesmo que nunquam ou nequaquam, mas nusquam no simples negao, nem advrbio de tempo, seno de lugar, e propriamente quer dizer: em nenhuma parte. Pois, por que diz S. Paulo que no tomou Deus a natureza anglica em nenhuma parte, nusquam? Porque tinha Deus nove partes em que a tomar: trs na primeira hierarquia, trs na segunda e trs na terceira. E essa foi a maravilha do mistrio da Encarnao, que por tomar Deus a natureza humana, deixasse em tantas partes a anglica. Na primeira hierarquia deixou serafins, querubins, tronos; na segunda deixou potestades, principados, dominaes; na terceira deixou virtudes, arcanjos, anjos; e no homem, que era o dcimo, ltimo e nfimo lugar, onde jazia Jac, ali tomou a nossa natureza cada, para a levantar, e enferma, para lhe dar sade, que foi o fim para que tanto se abateu e desceu. Estando el-rei Ezequias mortalmente enfermo, prometeu-lhe o profeta Isaas a vida em nome de Deus; e em testemunho de que a promessa era divina, deu-lhe, por sinal no cu, que o sol tornaria atrs dez linhas, ou dez degraus, e assim sucedeu: Et reversus est sol decem lineis per gradus quos descenderat. E por que tornou o sol atrs dez linhas, ou dez degraus, e no onze, ou nove, seno dez, nem mais nem menos sinaladamente? Porque naquele prodgio, verdadeiramente grande, se significava outro maior, que era o da Encarnao do Verbo, na qual, assim como o sol, estando no znite que no podia ser de

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    outra sorte tornou atrs dez linhas, at se pr nos horizontes da terra, assim Deus, desde o mais alto de sua majestade infinita, desceu outras dez linhas at se pr na ltima e nfima da natureza humana, e assim como fez aquele estupendo prodgio por amor de Ezequias, e em benefcio da sua sade, assim obrou o da Encarnao muito mais estupendo, por amor dos homens e para sade dos homens: Qui propter nos homines, et propter nostram salutem descendit de caelis, et incarnatus est. CAPTULO IV O pasmo e o horror dos discpulos de Cristo no Cenculo. O assombro de Jac e a reverncia de Pedro. Quando se fez Deus homem e quando se fez servo? As duas metforas ou comparaes de So Paulo. Por que diz o apstolo do terceiro cu que quando Cristo se fez servo no cuidou nem teve para si que a sua divindade no era sua? Isto o que neste dia se obrou em Nazar. Mudemos agora a cena, e ponhamo-nos no Cenculo de Jerusalm, e veremos com quanta maior razo se pode dizer daquele lugar: Terribilis est locus iste! Despe-se Cristo das roupas exteriores, cinge-se com uma toalha, deita gua em uma bacia com suas prprias mos: entende-se destas aes, que quer lavar os ps aos discpulos. E qual foi, com esta vista, o assombro, o pasmo, o horror com que as mesmas paredes do Cenculo parece que tremiam? No estava aqui Jac, mas estava Pedro, o qual mais fora de si que no Tabor, exclamou, dizendo: Domine, tu mihi lavas pedes (Jo 13, 6)? Vs, Senhor, a mim lavar os ps? Eternamente. No consentirei tal coisa: Non lavabis mihi pedes in aeternum (Jo 13, 8). J neste primeiro movimento se v quanto vai de dia a dia, e de mistrio a mistrio. Comparai-me a S. Pedro com Jac. Jac, depois que viu a escada, e que Deus havia de descer por ela, desejava sumamente que descesse, e enquanto tardava a vir, lhe parecia uma eternidade: Donec veniret desiderium collium aeternorum. Pelo contrrio, Pedro, vendo que Cristo lhe quer lavar os ps, no sofre nem consente em tal ao, antes diz resolutamente que a no consentir por toda a eternidade: Non lavabis mihi pedes in aeternum. Se isto era amor e reverncia de Cristo em Pedro, tambm Jac o reverenciava e amava muito. Pois, se Jac deseja que Deus desa e se abata a se fazer homem, por que no consente Pedro que se abata a lhe lavar os ps? Por isso mesmo. Porque tanto vai de um abatimento a outro abatimento. Encarnar Deus, era fazer-se homem; lavar os ps aos homens era fazer-se servo; encarnar era vestir-se da nossa humanidade; fazer-se servo dos homens era despir-se da sua divindade. No me atrevera a dizer tanto se S. Paulo o no tivera dito, e ainda muito mais. passo muitas vezes ouvido, mas que ter que explicar at o fim do mundo: Qui cum in forma Dei esset, non rapinam arbitratus est esse se aequalem Deo, sed

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    semetipsum exinanivit formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus,

    et habitu inventus ut homo. Quer dizer: que sendo o Verbo Eterno igual ao Padre em tudo, se fez, e se desfez. Se fez porque, sendo Deus, se fez homem: ln similitudinem hominum factus, et habitu inventus ut homo; e se desfez porque, sendo Deus e homem, se fez servo, e, fazendo-se servo, se desfez e aniquilou a si mesmo: Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens. Agora pergunto: quando se fez Deus homem, e quando se fez servo? Fez-se homem na Encarnao, e fez-se servo no lavatrio dos ps. Logo, na Encarnao se fez e no lavatrio se desfez. Muitos autores entendem todo este texto s da Encarnao, e que o fazer-se Deus homem foi juntamente fazer-se servo. Mas esta interpretao imprpria, por no dizer injuriosa natureza humana. O ser homem indiferente, ou para ser servo ou para ser senhor; e Cristo, enquanto homem, no s foi Senhor, seno grande Senhor. Assim o disse o anjo no mesmo dia da Encarnao, anunciando que, enquanto Deus, seria Filho do Altssimo, e, enquanto homem, herdeiro do cetro de seu pai Davi. Nesta suposio falou sempre o mesmo Cristo: Non est servus major domino suo. Si me persecuti sunt, et vos persequentur; e hoje, depois do mesmo ato do lavatrio: Vos vocatis me Magister et Domine, et bene dicitis: sum etenim. Nem encontram, antes confirmam esta distino as mesmas palavras de So Paulo, as quais dizem que tomou o Senhor a forma de servo, no fazendo-se, seno feito homem: Formam servi accipiens, in similitudinem hominum factus porque, feito homem na Encarnao, tomou a forma de servo, lavando os ps aos homens. Expressa e esquisitamente Dioniso Alexandrino: Jesus Christus, Dominus et Deus apostolorum, cum accipisset, formam servi,

    surgit a coena, et ponit vestimenta sua, et linteo praecinxit se: haec est forma

    servi. A baixeza do servo no obra ou injria da natureza, seno da fortuna. A natureza a todos os homens fez iguais: a fortuna a que fez os altos, os baixos e os baixssimos, quais so os servos. E esta foi a fineza do amor de Cristo hoje sobre a do dia e obra da Encarnao. Quando se fez homem tomou as condies da natureza; quando se fez servo e lavou os ps aos homens, tomou as baixezas da fortuna. Aquilo foi fazer-se, e isto desfazer-se: Exinanivit semetipsum, formam servi accipiens. Com duas comparaes ou metforas, declara S. Paulo este fazer-se e desfazer-se: com metfora da roupa que se veste e se despe, e com metfora do vaso que se enche e se vaza. Com metfora da roupa que se veste e se despe: Habitu inventus ut homo; com metfora do vaso que se enche e vaza: Exinanivit semetipsum e ambas as metforas parece que as tomou S. Paulo do mesmo ato do lavatrio em que estamos. A da roupa enquanto se despe: Ponit vestimenta sua e a do vaso enquanto se vaza: Mittit aquam in pelvim. E por que usou S. Paulo destas duas metforas e destas duas comparaes? Porque s com elas podia mostrar a diferena deste ato e deste dia ao ato e ao dia da Encarnao.

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    No dia e ato da Encarnao, fazendo-se Deus homem, Deus vestiu-se da humanidade, porque a uniu a si, e se cobriu com ela; e a humanidade, que era um vaso de barro pequeno e estreito, ficou cheia de Deus, porque Deus a encheu com toda a imensidade de seu ser: Quia n ipso inhabitat omnis plenitudo divinitatis corporaliter. E, sendo isto o que se fez no dia da Encarnao, tudo isto quanto vista