os filósofos e a máquina (koyre)

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OS filÓSOfOS E A MÁQUINA* I. A APRECIAÇÃO DO MAQUINISMO a notável livrinho do Sr. P.-M. Schubl' nos apresenta a história das re- lações da filosofia com a técnica ou, mais exatamente, a história das atitu- des da filosofia e dos filósofos (termos esses tomados em sua acepção mais ampla) com relação à técnica e, particularmente, com relação à má- quina. A curva que essas atitudes esboça é muito curiosa, e pode ser resumi- da como segue: ela vai da resignação sem esperanç9 (Antiguidade) à es- perança entusiasta (época moderna) para retornar ~ rª-signação desespe- rada (época contemporânea). Ao que todavia é necessário acrescentar que é à eusêocie da máquina que a filosofia antiga se resigna, e que é com a sua presença que a contemporânea é obrigada a se resignar. a comportamento dessa curva que, para dizer a verdade - pelo menos na sua segunda parte - exprime muito bem a evolução normal das atitudes humanas, explica-se sem dúvida pelo fato de 'que, com rarfssimas exce- ções, o que interessava e preocupava aos filósofos não era a máquina en- quanto tal, nem mesmo a máquina enquanto realidade técnica, mas a má- quina enquanto realidade humana e social. Em outros termos, o problema filosófico do maquinismo não se coloca em função do papel da máquina na "Crnique, n QS 23.e 26,1948. 243

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Dos ateliês dos artistas fiorentinos do início do século XV à Enciclopédia de Diderot e D'Alembert, Os filósofos e as máquinas reconstrói a ascensão do novo saber científico, nascido independentemente e quase à revelia da universidade e das tradicionais disputas filosóficas. É uma ciência freqüentemente humilde, ligada a atividades consideradas vis. Alguns de seus textos "sagrados": o De re metallica, tratado de mineralogia do alemão Agricola, que os missionários de Potosí mantinham sobre o altar para que os mineradores lhe prestassem devoção quando iam consultá-lo; os tratados sobre magnetismo utilizados pelos navegadores que exploravam o Novo Mundo, como o Newe attractive de Robert Norman, ex-marinheiro inglês que se dedicou à construção e ao comércio de bússolas; os textos de Leon Battista Alberti, de Piero della Francesca e de Leonardo da Vinci sobre a arte de pintar. Esse enorme e desordenado patrimônio de novos dados e descobertas será posteriormente transformado num sistema organizado de conhecimentos pelas grandes personalidades filosóficas do século XVII (Galileu, Bacon, Descartes, Leibniz) e, no Iluminismo, desembocará numa nova visão do mundo.

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OS f i l SOf OS E A M QUINA *I.A A P R E C I A O D O M A Q U I N I S M Oa notvel livrinho do Sr. P.-M. Schubl' nos apresentaa histria das re-laes da filosofia com a tcnica ou, mais exatamente, a histria das atitu-des da filosofia e dos filsofos (termos esses tomados em sua acepomais ampla) com relao tcnica e, particularmente, com relao m-quina.A curva que essas atitudes esboa muito curiosa,e pode ser resumi-da como segue: ela vai da resignaosem esperan9(Antiguidade) es-perana entusiasta(poca moderna) para retornar ~ r-signao desespe-rada (pocacontempornea). Ao que todavia necessrio acrescentarque eusocie da mquina que a filosofia antiga se resigna, e que coma sua presena que a contempornea obrigada a se resignar.a comportamento dessa curva que, para dizer a verdade - pelo menosna sua segunda parte - exprime muito bem a evoluo normal das atitudeshumanas, explica-se sem dvida pelo fato de 'que, com rarfssimas exce-es, o que interessava e preocupava aos filsofos no era a mquina en-quanto tal, nem mesmo a mquina enquanto realidade tcnica, mas a m-quina enquantorealidade humana e social. Em outros termos, o problemafilosfico do maquinismono se coloca emfuno do papel da mquina na"Crnique, nQS 23.e 26,1948.243produo, mas em funo de sua influncia sobre a vida humana, em fun-o das transformaes que o desenvolvimento do maquinismo lhe provo-ca ou pode faz-Ia sofrer. Isso est muito claro para-Aristteles que, numaclebre passagem do inreio da Polftica, declara que a "escravido deixariade ser necessria se as lanadeiras e os plectros pudessem mover-se porsi mesmos"," o que leva justificativada escravido: - na ausncia ou im-possibilidadeda mquina no so necessros "instrumentos animados" aolado dos "instrumentos inanimados"? - e implica,como premissa suben-tendia (to evidente para um grego que Arist6teles no tem necessidade deexpress-Ia), a idia de que existem trabalhos to penosos,ou to aborre-cidos, que nenhum homem digno desse nome, ou pelo menos que nenhumhomem livre poderia aceitar realiz-los:" trabalhos que, por isso mesmo, spodem ser realizados pelos escravos; ou pelas mulheres. E partindo darcompreende-se bem o sentido humano dos cantos de alegria de Antifilosde Bizncio quando glorifica os beneHcios do moinho d'gua "que libera asmulheres do penosotrabalho da moagem": "Tirai vossas mos da m,moleiras; dormiat tarde, mesmo que o canto do galo anuncie o dia, poisDemeter encarregou as ninfas do trabalho daquilo que se encarregavamvossas mos: elas se precipitam do alto de uma roda, fazem girar o seu ei-xo que, atravs de rodas de engrenagem, move o peso cncavo das msde Nisyra. Ns degustaremos a vida da idade de ouro se pudermosapren-der a saborear sem fadiga as obras de Demeter."Infelizmente, para difundir seus beneHcios pelo mundo,Demeter e asNinfasesperaramuma dezena de sculos, e apenas nos sculos XVI eXVII que a utilizao das mquinas,e em particulara utilizao da forahidrulica, comeoua se difundir e a representar papel de alguma impor-tncia. Em todocaso, deimportncia suficiente paraqueDescartes,constatando"quantosautmatos diversos ou mquinas moventes a inds-tria do homem pode fazer",contemplando "as grotas e as fontes que estonos jardins de nossosreis" ... "relgios,fontes artificiais, moinhos e outrasmquinas semelhantes", concebe (na seqnciade Bacon,mas contrrioa ele, no sobre um sensualismo empirista, mas sobre um matematismoplatonizante) a idia de uma cincia (ou at mesmo de uma filosofia) ativa,operativa, de uma filosofia"prtica pela qual conhecendo o forno e asaes do fogo, da gua, do ar, dos astros,dos cus e de todos os outroscorpos que nos cercam, to claramentequanto conhecemos os diversosoHcios de nossosartesos", poderlarnos "tornar-nos senhores e domina-dores da natureza", da natureza exterior pela "mecnica" e da natureza donosso corpo pela medicina.Dar compreendemos que, animadopor esse sonho grandiosode ~cincia que seria ao mesmo tempo sabedoria e potncia, Descartes tenhaacreditado que no poderia ocult-Iado mundo "sempecar gravementecontra a lei que nos obriga a buscar tanto quanto esteja a nosso alcance, o244bem geral de todos os homens", e que, no estivesse apenas decidido asolicitar o apoio pblico para as experincias que estava fazendo, mas queainda tivessesonhadoem "criar uma Escola de Artes e Otlcios"e acon-selhado "a construir, no CoJJegeRoyale em outros lugares que se consa-graria ao pblico, diversasgrandes salas para os artesos; a destinar cadasala para cada corpo de artesos;a juntar cada sala umgabinete repletode todos os instrumentos mecnicos necessrios ou utensOios das Artesque ali se devia ensinar, a realizar fundos suficientes no apenas para co-brir as despesas que as experincias demandariam, mas tambm paramanter os Mestresou Professores cujo nmero seria igual ao das Artesque ali se ensinaria. Os Professores deveriam ser hbeis em Matemtica eem Flsica,para poder responder a todas as questes dos artesos, dar-Ihes a razo de todas as coisase esclarec-los para fazer novas desco-bertas nas Artes".O sonho cartesianode uma humanidade liberada pela mquina de suasujeios foras da natureza, de uma humanidadevitoriosados malesque a oprimiam,animou a Europa durante mais de dois sculos. E aindahoje est vivo e atuante.' No entanto,h mais de cem anos, exatamentedesde a poca em que a conquista de novas fontes de energia e de novosmateriais,em que a substituioda gua e da madeira pelo fogo e pelo fer-rQ..inaugurou, com a primeira revoluo industrial,a idade tcnica da nist-ria humana e tornou possfvel a realizao dessas mquinas to ardente-mente desejadas e to ingenuamente esperadas e tambm to ingenua-mente glorificadas,que vozes discordantes se fazem ouvir. Pois a mquinailudiu as esperanas que se haviam colocado nela: destinada aaviar fadi-ga dos homens ela, pelo contrrio, s parecia agrav-Ia. A idade da mqui-na, ao invs de ser a idade de ouro da humanidade,revelou-se a sua idadede ferro. As lanadeiras e os plectos moviam-se bem sozinhos, mas o te-celoPermanecia mais do que nunca encadeado ao seu oHeio. Ao invs delibertar o homem e fazer dele "o senhor e dominador da natureza", a m-quina transformou o homem num escravo de sua prpriacriao. Almdisso, por um paradoxo surpreendente, a mquina, ao aumentar a potnciaprodutiva do homem,sem dvida criou a riqueza mas, ao mesmo tempo,difundiu a rnlsria. Enfim, a mquina, ou pelo menos a indstria,destruiu abeleza e criou a feira."A mquina fonte de misria .. Seria mpossfve no ficar desiludido esurpreso. Ma era necessrio render-se evidncia: a mquina(ou pelomenos a mquina funcionando em condies econmicas e sociais dadas)aumentou consideravelmente o rendimento do trabalho; mas, por issomesmo,criou o desemprego. Alm disso,levando sempre mais longe a di-viso do trabalho e sua decomposio em operaes elementares, a m-quina tornouo trabalho mais simples (o que,comoProudhon viu muitobem, permitiu substituir o arteso ou o operrioqualificado por um traba-245, Ihador braal),mas desumanizando-o e tornando-omuito mais montono eaborrecido; enfim, a mquina, aliviando efetivamente a fadiga dos homens,ou seja,eliminandoo recurso fora ffsica do operrio e substituindo-opela aplicaode uma energia mecnica(o que permitiu substituir os tra-balhadores braais por mulheres e crianas), substituiu tambm o ritmohumano, o ritmo vitaldo trabalho formado pela alternncia de esforoedescanso, pela uniformidade do ciclo mecnicoque se podia repetir e re-produzir indefinidamente. Em outras palavras,as mquinas no conheciama fadiga, podiam trabalhar sem parar. Sem dvida os operrios se cansa-vam. Mas onde estava o J jrnite daquilo que eles podiam suportar? Ningumsabia e, de mais a mais, no queria saber. Alm disso, seria necessriosepreocupar com o desgastedesse material humano j que, exatamente gra-as ao desemprego criado pela mquina, ele era excessivo e que, com aajuda do progresso tcnico, estavaassegurado que sempre o seria?Porisso a jornada de trabalho atingiu quatorze,dezesseis e at mesmo dezes-sete horas,enquantoo salriobaixava nessa mesmaproporo e 'que,confessado pelos prpriosindustriais,"seis dcimos .dos operrios .. noganham. o estritamente necessrio". Compreende-se ento que, at osesplritos mais fiis f otimista e democrtica do sculo XVIII, tenham-serevoltado.Como Michelet,que mesmoreconhecendo que a mquina "pe ao al-cance dos mais pobres uma grande quantidade de objetos de utilidade, atmesmo de luxo, e de arte aos quais eles no podiam ter acesso", escreveque ao mesmo tempo era "impossfvel no ver esses lastimveis rostos dehomem, essas jovens fanadas, essas crianas retorcidas ou inchadas"pelo serviodas mquinas. Como Villerm, que observaas deplorveiscondies de vida dos operrios nas grandes cidades manufatureiras (par-dieiros, promiscuidade etc.), e a explorao desumana do trabalhodascrianas "que permanecemdezesseis, dezessete ou dezoito horas em pcada dia, das quais pelo menos treze numa pea fechada quase sem mu-dar de lugar nem de posio. Isto no mais um trabalho, uma tarefa, uma tortura .:'Isso na Frana. Porque na Inglaterra a situao, como descrita por Buret e Engels, ainda pior. Especialmente nas minas. Por is-so "Haussez no hesita em comparar a sorte dos operrios ingleses dosnegros da Amrica", e Robert Owen em nos dizer que "a escravido bran-ca nas manufaturas era, nessa poca de completa liberdade, mil vezes piordo que nas casas de escravos que eu vi nos EstadosUnidos e nas ndias;no que diz respeito sade, alimentao, s vestimentas, estas ltimaseram preferfveis s manufaturas inglesas".Ora, ento o que fazer? Fourier condenao industrialismo, "a mais re-cente de nossas quimeras cientrficas", e o trabalhoindustrial,qerador deinsuportvel desgosto, "vcio radical do mecanismocivilizado", e procura oremdio no Falanstrio "ondecada grupo de trabalhadores exercer su-246cessivamente as diversas atividades que preferir; Owen "preconiza umanova organizaodo trabalho numa comunidade meio-industrial meio-agrf-cola que ele tenta, em vo, realizar nos Estados Unidos"; Sismondi obser-va "que mais vale a populao se compor de homens do que de mquinasa vapor, ainda que os tecidos fabricados pelos primeiros fossem mais ca-ros do que os fabricados pelas segundas" e aplica indstria moderna afbula do aprendiz de feiticeiro incapaz de desfazer o encantamento; Car-Iyle ope o passado medieval ao presente e "convidaos chefes de inds-tria a deixarem de ser bucaneirospara se tornarem cavaleiros conscientesde seu dever feudal" para com seus operrios;Ruskin "sonha com umtra-balho feliz e apreciado,feito mo, sem ajuda de mquinas alm daquelasque so movidas pelo vento e pela gua"; Samuel Butler, finalmente,reto-mando no plano ideolgico a revolta dos cartistas, * descreve no Erewohna vida de um pas que realizou uma revoluo industrial s avessas e des-truiu as mquinas "cuja invenono remontasse para alm dos ltimosduzentos e setenta anos"."Poderfamos continuar,e acrescentar aos textos citados pelo Sr.'Schuhlinmeros outros . De fato, medida que a idade tcnica desenvolvetodasas suas virtualidades inerentes, as condenaes que emanam de pensa-dores (ou escritores) mais ou menosreacionrios (cat6Iicos) ou mais oumenos romnticos, tornam-se cada vez mais numerosas. A mquina e acivilizaoindustrialrecebem a carga de todos os males do momento pre-sente. Reprova-se-Ihes destruir a diversidade cambiante do mundo esubstituf-Ia em toda parte pela uniformidade montona da bugiganga produ-zida em srie; de substituir a noo de valor e de qualidade pela de gran-d~a -puramente quantitativa -; de provocar um rebaixamento Cio gosto, eat mesmo da cultura; de submeter o homem perseguiodo lucro e dosprazeres brutais e de extingir nele qualquerestabilidade e ,at mesmoqualquer vida interior.Essas crfticas - que s vezes se apresentamsob o disfarcede umadescrioda vida americana_7certamente nem sempre estavam erradas. verdade,por exemplo, que nada se pode comparar feira horrenda dossubrbios industriais, a no ser a feira pretensiosados quarteires ricosdas cidades da idade do ferro; verdade que quase tudo que nossas cida-des - e nossaspaisagens - ainda contm de beleza Ihes vem da pocapr-maqufnica." E perfeitamenteexato que a trepidao e a complicaosemprecrescentes da vida modernaso o mfnimo possfvel compatveiscom a meditao, com a reflexo,em resumocom a cultura. E para re-tornar ao papel econmicoda mquina e de sua influncia sobre o homem,*Adeptos do partido ingls que reivindicava a adoo da carta democrtica que redigiu,e que continha importantes reformas sociais. (N. da Trad.)247 verdade que nada mais absurdo do que a misria e o desempregocria-dos pela. "superproduo" e pelo progresso tcnico e, finalmente, que otrabalho taylorizado, estandardizado e regulado do operrio de uma linha demontagem moderna, to degradante e to embrutecedor quanto,o da es-cravido grega ou romana.Devemos, ento, condenar a mquina e - nos resignando,alis, com asua presena - pregar a beleza do artesanatoe do retorno terra? O Sr.Schuhl no pensa assim. Com muita razo ele demonstra que a mquina, nofim das contas,manteve a sua promessa: ela efetivamente aumentou (tal-vez de maneira demasiado rpida e brusca) a potncia do homem e quasefez dele "o senhor e o dominador da natureza"; que, incontestavelmente,ela aumentou o bem-estar e o nfvel de vida das populaes dos pafses in-dustriais; que os horrores do perlodo "herico" do capitalismo pertencemao passado e que a legislaosocial, cada vez mais desenvolvida, a pro-teo mulher e criana,as limitaes da durao do trabalho e a melho-ria de suas condies, sobretudo depois da "segundarevoluo industrial";concederamaos homens alguma coisa que - exceto uma pequena minoria- nunca haviam possuldo, ou seja, tezeres" e portanto,a possibilidade deaceder cultura. Ou de criar uma cultura. Pois no do trabalho que nas-ce a civilizao: ela nasce dos lazeres e do jogo.Assim, poderemos acrescentar que cabe ao prprio homem saber queemprego dar sua potncia e aos seus lazeres. Particularmente, se eledesejar salvaguardar para o ndivfduo uma zona de liberdade e de vidapessoal, de vida "privada" ou se pelo contrrio, criando deliberadamenteuma civilizao de massa, levando at o fim as tendncias ao conformis-mo, uniformizao e ao nivelamentoinerente a ela, ele optar pela des-personalizao do homem e sua imerso total - que tambm se podechamar "integrao" ou adjustment - no grupo,para chegar a um bravenew world do gnero daquele que Aldous Huxley j nos ofereceu uma ima-gem, talvez,proftica. Mas a mquina,enquantotal, no tem nada a vercom isso; de fato, existiam civilizaes, e bem grandes, como a chinesa ea hindu, que recusarama personalizao sem nunca terem conhecido omaquinismo.Do meu ponto de vista, o Sr. Schuhl tem toda razo ao valorizar a "se-gunda revoluo industrial" que encerrou a idade do ferro e inaugurouaidade da eletricidade. De fato, com ela a humanidade deixou o perodo tc-nico da sua histria e entrou no perodo tecnolgico, perlodo que tem seuscaracteres prprios, freqentementeopostos aos da poca precedente;"De minha parte, acredito que ainda se poderia ir mais longe e pretenderque, mesmo em sua fase inicial, os delitos do maquinismo(exceto no planoesttico) tenham sido muito menoresdo que se diz. Sem dvida,no sepode ler sem revolta as descries da misria atroz das classes operriasna primeira metade do sculo XIX que foram coligidas, por exemplo, por248Engels e Buret. E menos ainda se pode ler, sem repugnnciae horror, asprodues da propaganda capitalista que defendiam, emnome da liberdadee do cristianismo, o direito de o patro fazer trabalhar crianasnas minas emandar para a rua os operrios doentes ou idosos ( pena que o Sr. Schuhltenha considerado no ser necessrio citar exemplos dessaliteratura).llA histria da acumulao capitalista, tal como contada por Marx na pri-meira parte do Capital, no uma histria bonita. Nem uma histria muitoedicante." E no entanto, eu temo bastante que, ao afirmar que a situaodas classes trabalhadoras piorou em decorrncia da revoluoindustrial,cometa-se um erro muitograve no determinando suficientemente ostermos da comparao. Sem dvida correta,se nos limitarmos a compa-rar o nrvel de vida do operrio do incio do sculo XIX com o do arteso dosculo XVII ou do XVI, essa assero na verdade falsa se lhe dermos,como freqentemente se faz, um alcance geral. preciso resistir miragem romntica e sua idealizao das "guildas"e dos "mestres-artesos" e, em contrapartida, preciso no esquecernunca o fato de que o artesanatomedievaltrabalhavasobretudo para umaclientela restrita e rica, que seus produtoseram to caros que atualmenteseriam classificados entre os objetos de luxo" e que, apesar disso, a per-sistncia da utilizaoda fora humana como fora motriz e fonte de ener-gia (eram os homens que faziam girar os tornos dos torneirase a roda dosoleiros,eram os homens. e no os cavalos ou as quedasd'gua que, nagrande maioria dos casos, acionavamas serras e os aparelhos para le-vantarpesos, eram os homens que faziam funcionar os foles das fundi-ese das ferrarias}" implicava a existncia de uma grande massa detrabalhadores no qualificados, cujo modo de vida e nvel de-existncia di-feriam completamente do modo de vida e nvel de existncia de Umarmei-ro, umjoalheiro ou um mercador de panos.Porm, mesmono que diz respeitoa essas indstrias de luxo cujasobras at hoje admiramos, pensemos um pouco na misria fisiolgica dovidreiro, do tecelo, do mineiro.Alm disso, preciso no esquecer que a cidade medieval(assim comoa cidade do sculo XVI e do XVII), centro administrativo e religioso e, antese depois de tudo,centro de comrcio e no de indstria, era um osis debem-estar no meio da misria atroz dos campos.Pois o campons, excetodurante um perodo muito curto da Alta Idade Mdia quando a impossibili-dade dos transportes forou o consumolocalizadoe, com isso,limitou ospretvements * dos senhores, era pobre. Muito pobre. At mesmo o yeo-man ingls,cuja situaoeconmica e social,graas invenodo arco*Imposto emnatura cobrado pelos senhores feudais aos camponeses. (N. da Trad.)249de seis ps, infinitamentesuperior do campons continental,era apenasconfortvel. Ainda af, precisono se deixar influenciar pela imagem daOld merry England; precisoantes pensar nas sublevaes, nas escas-sezese, sobretudo, na realidade demogrfica: no fato de que, at a revolu-o industrial,a populao da Inglaterra oscilou entre 4 e 7 milhes de ha-bitantes sem nunca ter ultrapassadoessa cifra.No decorrer dos sculos XVI e XVII, a situao do campesinatoinglsainda piorou terrivelmente: a introduo e o aperfeioamento das armas defogo, que acabaram por destruir a base militar do feudalismo e permitiram aformao dos Estados Modernos, tambm privaram o arco de seu valormilitar e com isso a yeomanry no conseguiu resitir invaso da nova no-breza que a privou de suas terras comunais (enclosures). A desero doscampos e a invasodas cidades pela misria foram os seusprimeirosefeitos: foi a existnciadessa massa de homens que, em suas aldeias, lite-ralmente morria de fome, o que permitiu a industrializao to rpida da In-glaterra e, ao mesmo tempo, determinou o nfvel de vida do operrio. Nfvelmuito baixo, sem dvida, mas evidentementemuito superior ao nfvel de vi-da campons,j que a revoluoindustrial e a industrializao das cidadesprovocou uma formidvel expanso demogrficaque, por sua vez, favore-ceu o desenvolvimento sempre crescente da indstria. Poder-se-ia atmesmo sustentarque a exploraodesavergonhada do trabalho e em par-ticular do trabalho das crianas que foi o fator -ou umdos fatores - de-terminantes dessa expansodemogrfica:as crianas que trabalham, pro-duzem, e com1isso aumentam a massa dos bens - de comida - que aclasse laboriosa usufrui ou que partilha."Essa expanso demogrfica, resultado da baixa da mortalidade infantil eda mortalidade em geral, em si um bem ou um mal? A concentrao demassas humanas cada vez mais numerosas nas grandes cidades, quea tcnica moderna (a do transporte) tornou posslvel um bem ou um mal?As opinies, sem dvida, podem estar divididas. verdade que tfnhamosmais espao quando ramos menos numerosos; verdade tambm que apaisaqerncamponesa maisbela, e falando genericamente, at mesmomais humana do que os desertosde pedra e cimento de nossas grandescapitais.Mas quem sabe? A mquina, criando a riqueza,parece nos reconduzir oligantropia e talvez tambm seja a mquina,- que j recriou o noma-dismo -o que permitir a redispersodas populaes urbanas e sua rein-sero, dessa vez consciente, na natureza.A mquina, quero dizer a intelignc.ia tcnica do homem, manteve a suapromessa. Agora cabe sua inteligncia polltica e sua inteligncia toutcourtdecidir para que fins ele empregar a potncia que foi colocada suadisposio.2501 1 . A S OR IG ENS D O MA QUINISMOo estudo da evoluodas atitudes da filosofia, e dos filsofos com rela-o mquina, de que esboamos uma curva sumria, curva que, em l-tima anlise, se explicapelo progressodo maquinismoe pelo desenvolvi-mento gradualde suasconseqncias humanas, nos. conduz ou nos re-conduz aos problemas do maquinismo e do progresso tcnico enquantotais. Problemas cuja importncia e interesse no podem escapar a nin-gum. Pois, mesmose no admitirmos, como os marxistas, que a evolu-o da tcnica determinae explica toda a histria humana, que ela forma oargumento do qual todo o resto - moral, polftica, filosofia, arte - so apenasfunes dependentes, nem por isso deixa de ser verdade que as revolu-es industriais dos dois ltimos sculos modificarame at mesmo sub-verteramprofundamente as condies e os quadros da vida humana, e queessas subverses nos criaram uma mentalidade e hbitos de pensamentomuito diferentes dos que eram comuns na Idade Mdia e na Antiguidade.Poder-se-ia dizer, grosso modo, que a civilizao industrial "desnatu-rou" nosso mundo e substituiu o meio, d quadro e o ritmo naturais da vidapor uma ritmo mecnico, um quadro artificiale um meio fabricado. '6 E, pa-ralelamente, o pensamento moderno substitui em toda parte o esquemabiolgico pelo esquema mecnico da explicao. Poder-se-iatambm dizer- e talvez isso venha a dar no mesmo - que a tcnicapr-industrial erauma tcnica de adaptaos coisase que a tcnicaindustrial a tcnicada explorao das coisas.Poder-se-ia at mesmo acrescentar que a tc-nica moderna a tcnica da criao das coisas."*Como e por que nasceu essa tcnica? Qual a fonte e a origem do ma-quinismo? No fundo, no se sabe nada sobre isso. Pois todas as explica-es, por maisplausveis que sejam, terminampor girar em cfrculos.Oque,apesar de tudo, no um escndalo para o esplrito, bastantenormal que existam na histria -mesmo na histria do espfrito - aconteci-mentos inexplicveis, fatos irredutfveis, comeosabsolutos.As origens da tcnica se perdem na noite dos tempos. possvel,alis,que a tcnica, assim como a linguagem no tenha,estritamente falando,origem: o homem sempre possuiu utensflios,da mesma forma que semprepossuiu a linguagem. Parece at que ele sempre foi capaz de fabric-Ios.Exatamentepor isso foi possvelcomparar a definio do homem pela pa-lavra com a definio do homem pelo trabalho: o homem enquanto homemseria essencialmente faber, fabricador de coisas,fabricador de utensflios."E tambm, nem a pr-histria nem a etnografia nos permitem assistirao251nascimentodo utensfllo, mas apenas acompanh-Ioem sua evoluo e emseus aperfeioamentos.Se o utensOio no tem origem, a mquina seguramentetem. Mas no uma origem hist6ric. Pois se certamente existiram, se ainda existem gru-pos humanos to primitivosou degeneradosque ignorem qualquer espciede mquina, em contrapartida, todas as civilizaes cuja histria podemosestudar, j se encontram de posse delas, ou pelo menos de posse de apa-relhos que, como o torno do oleiro, o tear do tecelo,o forno, o lagar, osaparelhos para levantar objetospesados, colocam-se, por assim dizer,ameio caminho entre o utensOio e a mquina propriamentedita. E todas asgrandes civilizaes da Antiguidade possuem, ainda que em nmero rnfi-mo,mquinas verdadeiras. Por isso, o grande problema que preocupatanto a histria da civilizaoquanto a histria das tcnicas, no explicarpor que existirammquinas no Egito, na Grciae em Roma,mas pelocontrrio, explicarpor que existiram to poucas,explicar no o progressomas a estagnao, explicar particularmente como e por que o admirveldesenvolvimento da civilizao grega no foi nem precedido nem acompa-nhado por umdesenvolvimento tcnico correspondente.Para explicar esse fato em verdade surpreendente, poderlarnos invocara falta de matrias-primas -o ferro emespecial -,no mundo antigo. O fer-ro era raro e caro. E sem ferro como fabricar mquinas? -Corretfssimo,caso se tratassem de mquinas modernas.Menos correto no caso de m-quinas mais simples: a indstria dos sculos XVI e XVII construiu muitobem as suas de madeira, assim como foi de madeira que os ribeirinhos doEufrates fizeram - e ainda fazem - suas enormes rodas de irrigao.Poderfarnos invocar a pobrezaenergtica do mundo antigo que noapenasdesconhecia a mquina a vapor,como nem mesmo sabia atrelarconvenientemente os seus cavalos. Bastante correto ainda; incontest-vel que apenas a descobertada potncia motriz do fogo (e a utilizao docarvo em metalurgia) que permitiu o desenvolvimento da grande inds-tria e que apenas no sculoXI os arreios modernos fizeram sua apari-o." Este ltimo ponto, seguramente, no de pouca importncia:para otransporteeficaz e rpido, O cavalo de fato indispensvel. Mas para giraruma roda de moinho, ou uma roda de engrenagem ele o muito menos; pa-ra essasnecessidades pode-se da mesma forma utilizar bois. Alm disso,no que diz respeito atrelagem do cavalo deveras surpreendente queuma invenoto simples tenha sido realizada to tardiamente; nenhumdos que puxavam barcos com a sirga teve jamais a idia de passar a cor-da de sirgar pelo pescoo do cavalo:era pelo flanco ou atravs do peitoque ela passava. Como pode ter acontecidoque nenhum condutor de car-ros de combate tenha observado isso ou ainda, que nenhum dos puxado-res sirga jamais lhe tenha feito observar?" Enfim, considerando que aroda a ps e a roda de engrenagem existiam,nada se oporia utilizao252das forashidrulicas pelos romanos e pelos gregos,pelo menos da ma-neira como isso foi feito no inrcio dos tempos modernos.A estanao tcnica do mundo antigo poderia ser explicada,de manei-ra muito mais profunda, por razespsico-sociolgicas; ela seria determi-nada pela prpria estrutura da sociedade e da economia antigas: sociedadearistocrtica, economiafundamentada sobre a escravido. Esta a expli-cao que, segundo mile Meyerson,o Sr. Schuhl aceita: "Se no se tinhao recurso s mquinas .era porque no se tinha necessidade de econo-mizar a mo-de-obra que havia disposio, numerosa e pouco custosa,mquinas vivas, to distantes do homem livre quanto a besta: os escra-vos." - "A abundnciada mo-de-obraservil torna a mquina anti-econ-mica; alis, o argumento retorna, formando um crculo de onde a antiguida-de no conseguiu sair: pois, por sua vez, a ausncia de mquinas faz comque no se possa dispensaros escravos. Alm disso, a existnciada es-cravidono cria apenas condies determinadas onde a construo demquinas que economizammo-de-obra parecepouco desejvel de umponto de vista puramente econmico: ela tambm promove uma hierarquiaparticular dos valores que provoca o desprezo pelo trabalho manual."Esse desprezo, trao comumdas civilizaes aristocrticas (e atmesmo das outras),era de tal maneira difundido entre os gregos que, con-forme nos lembra o Sr. Schuhl,o prprio termo l3&v(xuao,>,que significaarteso, torna-sesinnimo de desprezfvel e se aplica a todas as tcnicas:"tudo que artesanalou manufatureirotraz vergonha e deforma a alma aomesmo tempo que o corpo" -o corpo,porque o exerccio de umoffcio de-terminadoentrava e impede o seu desenvolvimento harrnonoso, e a almaporque a indstria tem como finalidade "satisfazer aquilo que existe de infe-rior no homem, o desejo de riqueza .." "Dessamaneira o desprezo que setem pelo arteso se estendeaIDcomerciante: com relao vida liberal'ocupada pelos lazeres estudiosos (