conversas com filósofos brasileiros

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Marcos Nokre e José Mareio RegO Conversas com Filósofos Brasileiros Miguel Reale Henrique de Lima Vaz Gerd Bornheim Benedito Nunes José Arthur Giannotti Oswaldo Porchat Ruv Fausto Leandro Konder Bento Prado Jr. Guido Antônio de Almeida Raul Landim Filho Tércio Sampaio Ferraz Jr. Marilena Chaui Paulo Arantes Carlos Nelson Coutinho Balthazar Barbosa Filho " '’ ■w •>. ;ir.. IQ/1

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Page 1: Conversas com Filósofos Brasileiros

Marcos Nokre e José Mareio RegO

Conversas comFilósofosBrasileirosMiguel Reale Henrique de Lima Vaz Gerd Bornheim Benedito Nunes José Arthur Giannotti Oswaldo Porchat Ruv Fausto Leandro Konder

Bento Prado Jr.Guido Antônio de Almeida Raul Landim Filho Tércio Sampaio Ferraz Jr. Marilena Chaui Paulo Arantes Carlos Nelson Coutinho Balthazar Barbosa Filho

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Page 2: Conversas com Filósofos Brasileiros

“Alguns dos melhores pensadores do Bra­sil, m arxistas c ex-m arxistas, católicos e abju­rantes. m uitos deles am igos e cx-am igos de Fernando H enrique C ardoso , contam a his­tória da filosofia no país e dão suas opiniões sobre política, rehgião e arte." Quem já con­versou com filó so fo s, b rasile iros em p a rti­cu lar, im agina os arrepios que essa caricatu ­ra de in trodução jornalística p ro vocaria nos personagens destas C o n re rs js .

Filósofos são m uito ciosos das condições em que falam . O s m iasm as do m undo e da língua com um podem contagiar e estrop iar suas idéias. N o caso brasileiro , o zelo típico e an im ado ainda pelos efeitos de um traum a de origem . Os pioneiros da filosofia universi­tária obrigaram -se a d iferenciar o que faziam

do d iletantism o e do ecletism o daqueles que SC propunham filósofos no Brasil. A ntes de in iciar aven turas intelectuais destram belha­das. devia-se fo rm ar, com disciplina m onás­tica, o equivalente do estudioso europeu de filosofia , capaz de entender a relo joaria dos clássicos do pensam ento.

Essa história de substituição de im p orta­ções, vivida entre os anos 5 0 e “ 0, decerto não dá conta do percurso de todos os pensadores destas C onversas, c nem o pro jeto da filo so ­fia universitária foi tão ordenado.

Padres e idéias m edievais, a escolástica, o tom ism o, puseram m uitos de nossos persona­gens na trilha da filosofia: o m arxism o encan­tou as alm as de outros tantos. A crítica so­cial de esquerda viria a en tranhar a juventu­de católica e desaguar em m ovim entos com o a A ção Popular, cujo m entor era um padre- filósofo . C om o no Brasil os rios intelectuais são de água pouca, a AP deu tan to cm m ui­tos filósofos destas Coiiverscis com o em qua­dros do a lto tucanato.

O catolicism o e a revo lução pareciam in­gredientes que desandariam a receita da filo ­sofia universitária. M as a disciplina se firm ou, um estranho sucesso nacional, que se deveu à form ação de um sistema de universidades públicas, ao rigor m etodológico (um im plan­te a leatório dos m odos da universidade fran ­cesa no Brasil) e outras estratégias e acasos.

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16 3 2;135 10 11 89 6 7 124 15

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Marcos Nobre e José Mareio Rego

CONVERSAS COM FILÓSOFOS BRASILEIROS

M iguel Reale Henrique de Lima Vaz Gerd Bornheim Benediro Nunes José Arrhur Giannotti O sw aldo Porchat Ruy Fausto Leandro Konder

Bento Prado Jr.Guido Antônio de A lmeida Raul Landim Filho Tércio Sam paio Ferraz Jr. M ar ilena Chaui Paulo Arantes Carlos Nelson Coutinho Balthazar Barbosa Filho

editoraH34

Page 6: Conversas com Filósofos Brasileiros

ED ITO RA 3 4

Editora 3 4 Ltda.Rua H ungria, 5 9 2 Ja rd im Europa CEP 0 1 4 5 5 - 0 0 0São Paulo - SP Brasil Tel/Fax ( 1 1 ) 3 8 1 6 - 6 7 7 7 ed ito ra34@ u ol.com .br

C op yrigh t ® E ditora 3 4 L tda., 2 0 0 0Conversas com filósofos brasileiros © M arcos N obre e José M areio R ego, 2 0 0 0

A FOTOCOPIA OE QUALQUER FOLHA DESTE LtM lO É ILEGAI,, E CONFIGURA U.MA

APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIRF.HOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

C ap a, p ro jeto gráfico e ed ito ração eletrôn ica:Bracher & Malta Produção Gráfica

Imagem da capa:Nuno Ramos, M atacão , 1996, granito, terra e cimento

Revisão:Adrienne de Oliveira Firmo Cide Piquet

C réd itos das fo to grafias:Sérgio Berezovsky/Abril Imagens (p. 15); Arquivo Marcos Nobre e José Mareio Rego (pp. 31, 47, Í21, 229, 2S3, 400); Ricardo Arnt/Folha Imagem (p. 71); Matuiti Mayezo/Folha Imagem (p. 90); Claudia Gmmarães/Folha Imagem (p. 147); Paulo jares/Abril Imagens (p. 176); Cleo Velleda/Folha Imagem (p. 201); Malu de Souza/ Abril Imagens (p. 272); Juan Esteves/Folha Imagem (p. 301); Bel Pedrosa/Folha Imagem (p. 339); Marcelo Carnaval/Abril Imagens (p. 372)

r Edição - 2 0 0 0

C ata log ação na Fonte do D epartam ento N acional do L ivro (Fundação B iblioteca N acional, R J, Brasil)

N obre, M arcos N 585c C onversas com filósofos b rasile iros /

M arcos Nobre e José M are io Rego — São Paulo:Ed. 34 . 2000 .432 p.

ISBN 85-7326-190-0

Inclui b ib liografia .

1. Filósofos - Brasil - Entreviscas.2. F ilosofia. 3 . F ilosofia - Estudo e ensino - Brasil.1. Rego, José M are io . II. T itu lo .

CDD - 109

Page 7: Conversas com Filósofos Brasileiros

CONVERSAS CO M FILÓSOFOS BRASILEIROS

A p re sen taç ão ............................................................................................................. 7A grad ec im en to s ....................................................................................................... 13

1. M ig ue l R e a l e ................................................................................................................... 15

2 . H e n r iq u e de L i m a V a z ........................................................................................... 2 9

3 . G e r d B o r n h e i m .............................................................................................................. 4 5

4 . B en e d it o N u n e s ............................................................................................................ 6 9

5 . J o sé A r t h u r G i a n n o t t i ........................................................................................ 91

6. O s w a l d o P o r c h a t ....................................................................................... 119

7 . R u y F a u s t o ........................................................................................................................ 1 4 5

8. L e a n d r o K o n d e r ......................................................................................................... 1 7 7

9 . B e n t o P r a d o J r .............................................................................................................. 1 9 9

1 0 . G u id o A n t ô n i o de A l m e i d a .............................................................................. 2 2 7

1 1 . R a u l L a n d i m F i l h o .................................................................................................... 2 5 1

1 2 . T é r c i o Sam p .-vio F e r r a z J r ................................................................................... 2 7 3

1 3 . M a r i l e n a C h a u i ............................................................................................................ 2 9 9

1 4 . P a u l o A r a n t e s ............................................................................................................... 3 3 7

1 5 . C a r l o s N e l s o n C o u t i n h o .................................................................................. 3 7 3

1 6 . B a l t h a z a r B a r b o s a F i l h o ................................................................................. 4 0 1

índice Onomástico ............................................................................................................... 4 2 8

Page 8: Conversas com Filósofos Brasileiros

A

In a r a

A

L ú c i a S a n t a e l l a

Page 9: Conversas com Filósofos Brasileiros

APRESENTAÇÃO M arcos Nobre

Q uando se fala em filosofia, muitas vezes pode-se ouvir com entários como: “É assunto muitíssimo com plicado. Coisa de especialistas”. Nesse caso, a filosofia passa por algo muito profundo, talvez até interessante, mas reservado a poucos. Ou­tras vezes, o sentido da afirm ação é outro: “Filosofia é elucubração sem nenhum sentido prático. Não serve para nada” . Nesse caso, a filosofia se parece mais com o apêndice no corpo humano: existe, mas não tem qualquer função, e, vez por outra, dá apendicite.

Afirmações como essas têm algo de verdadeiro. M ostram que a filosofia é hoje quase que exclusivamente uma disciplina universitária. M ostram que a filosofia não resiste ao crivo da lógica da utilidade funcional. M as por que deveríamos nos deter aí? Por que não perguntar: a filosofia sempre foi uma especialidade ensinada ex­clusivamente em universidades? E necessário que seja assim ou pode ser de outro modo? Ou ainda: por que medir tudo o que existe pelo padrão do “para que ser­ve” ? Por que a utilidade funcional deve ser o critério para decidir sobre o valor ou desvalor de alguma coisa?

Q uando nos colocam os essas perguntas, não dá mais para vo ltar tranqüila­mente ao senso comum e afastar a filosofia, seja como algo inatingível, seja como algo demasiado inútil. E talvez esteja aí o interesse da filosofia: ela é um estorvo, uma pedra no sapato. Nesse sentido, agarrarm o-nos ao senso comum é uma das maneiras de rem over o incômodo. Porque, ao sermos chamados para dar razões para nossas opiniões, crenças e ações, cedo ou tarde iremos esbarrar também em problemas filosóficos, para os quais a história da filosofia apresenta uma serie de form ulações e de respostas. De modo que este livro de entrevistas pretende tam ­bém, à sua maneira, colaborar para o exercício e o cultivo do estorvo.

M as um livro de “Conversas com filósofos brasileiros" tem de pensar tam ­bém o que significa fazer filosofia num país periférico, tem de pensar com o a filo­sofia se instalou por aqui e qual o seu sentido para a cultura brasileira. Cada uma das entrevistas deste livro, cada reconstrução pelos entrevistados de seus respecti­vos percursos intelectuais, é também uma resposta a essas perguntas.

A dificuldade de apresentar um livro como este está justamente aí: como fazê- lo sem tom ar posição (implícita ou explicitamente) em relação a cada uma das en­trevistas, em relação a cada um dos temas tratados? E, no entanto, tom ar posição neste caso significaria abrir mão do principal objetivo deste livro: apresentar ao leitor depoimentos — revistos e autorizados pelos entrevistados — sobre temas clássicos e contemporâneos da filosofia, sobre processos de form ação intelectual, sobre a vida cultural brasileira. Nesse sentido, o título “Conversas com filósofos brasileiros” indica já que não se trata de um livro de “entrevistas” no sentido de que haveria

Apresentação

Page 10: Conversas com Filósofos Brasileiros

uma efetiva discussão, um debate sobre os temas em pauta, em que o entrevistadores buscariam confrontar, no detalhe, os entrevistados com perspectivas discordantes.

São, portanto, depoimentos. Vias são depoimentos dirigidos. Exemplo disso é a form ulação de uma pauta básica de perguntas (no total de dez) apresentada a todos os entrevistados. Nesse sentido, retorna de pleno direito a dificuldade acima, a respeito da tom ada dc posição dos entrevistadores em relação aos entrevistados. E a resposta é: a tomada de posição dos entrevistadores se deu antes da realização das entrevistas, quando da form ulação das perguntas. Cabe, então, explicitar os pressupostos dessa tomada de posição, o que servirá, simultaneamente, para apre­sentar este livro. E, espero, servirá também para dem onstrar, senão neutralidade, ao menos imparcialidade no procedimento.

Comecemos, então, pela reprodução da pauta básica de perguntas que foi apresentada a todos os entrevistados:

1. Goethe dividiu a vida de seu personagem W ilhelm M eister em dois rom an­ces, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No prim eiro, o foco está posto na form ação do indivíduo W ilhelm M eister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o(a) senhor(a) nos falasse de sua form ação intelectual?

2. Seria possível falar de uma “ filosofia brasileira” ? Com o o(a) senhor(a) vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira?

3. Que conceito(s) de sua reflexão o(a) senhor(a) destacaria com o o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que o(a) senhor(a) nos con­tasse como surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

4. Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciências e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Com o ela se dá na atualidade?

5. Desde Hegel, no século X IX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa sociedade. Com o o(a) senhor(a) se posiciona em relação a esse debate?

6. É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segun­do esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fenômeno essencial­mente nacional e, atualm ente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do m onopólio do exer­cício legítimo da violência. C^omo o(a) senhor(a) vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

7. Com o o(a) senhoria) caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?8. Com o o(a) senhor(a) se situa em relação aos problemas de uma “mudança

de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem?9. 0 (A ) senhor(a) utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão

do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?10 . Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como

riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alie­nação cultural em massa. Com o o(a) senhor(a) vê tais problemas?

Marcos Nobre

Page 11: Conversas com Filósofos Brasileiros

De saída, cabe explicitar que um prim eiro sentido do estabelecimento dessa pauta básica foi o de permitir ao leitor uma melhor condição de com paração das respostas dos entrevistados, incluindo-se aí a possibilidade de percorrer o livro tam ­bém na trilha de uma única dessas dez questões. Ressaltc-se, entretanto, que a apli­cação de tal pauta básica vem sempre complementada por questionamentos espe­cíficos a cada um dos entrevistados, muito embora uma ou outra entrevista, em razão da extensão das respostas ã pauta básica, tenha contem plado relativam ente pou­cas questões específicas. Um outro sentido im portante desse procedimento foi jus­tamente o de testar a possibilidade da aplicação de um questionário homogêneo. Pois que se trata de um elemento im portante para a avaliação mesma do que seja a filosofia no Brasil, isto é, como instrumento para investigar se há um conjunto de temas que podem ou não ser reconhecidos como um estoque comum de problemas, não obstante todas as diferenças entre os entrevistados.

Em segundo lugar, cabe exam inar diretam ente o sentido das dez questões propostas. Com o primeira observação de caráter geral, pode-se dizer que as fo r­mulações pretendiam também permitir ao entrevistado que mesclasse a exposição de suas próprias posições a esclarecim entos sobre a natureza dos problemas em pauta, de modo a aproxim ar o leitor do tema desenvolvido. Q uanto à estruturação da pauta de questões, acredito ser possível distinguir três blocos de perguntas. O prim eiro abrangeria as três primeiras perguntas, com preendendo diretam ente os dados biográficos que se põem como marcos na form ação intelectual dos entrevis­tados. Na lógica desse primeiro bloco, o percurso intelectual mescla-se necessaria­mente ã pergunta sobre o que seja fazer filosofia no Brasil e aos conceitos que apa­recem como centrais para a reflexão própria de cada entrevistado.

O segundo bloco compreenderia as questões 4 a 7. A tentativa aqui foi a de aporitar para questões tradicionais da filosofia, questões que uma entrevista não pode colocar em toda a sua amplitude: não parece possível nem razoável pergun­tar diretamente sobre a natureza da verdade, do belo e do bem. Sendo assim, a es­tratégia (no caso das questões 4 a 6) foi a de dar a essas questões sublimes uma form ulação que as ancorasse simultaneamente na atualidade e em traços distinti­vos que as tornassem em alguma medida exam ináveis. Dessa form a, as questões 4 a 6 abrem, primeiramente, a possibilidade de um exame em perspectiva histórica dos temas da ciência, da arte e da política, da moral e do direito. Em seguida, per­gunta-se pelo estatuto atual dessas temáticas. E marcante, portanto, a ênfase na form ulação atual de problemas filosóficos tradicionais. Já no caso da pergunta 7, a solução foi diversa, pois sua form ulação se deu em registro pessoal, o que permi­te estabelecer correspondência novamente com o primeiro bloco de questões. A in­da assim, nada impediu que o entrevistado examinasse o problema em registro mais am plo do que o da sua relação pessoal com a religião e a fé.

O terceiro e último bloco não disporia dc uma unidade com parável à dos dois primeiros. A sua posição no conjunto, na verdade, tem o sentido de controlar as respostas às questões anteriores, permitindo ao entrevistado prolongá-las e pers­pectivá-las. A pergunta 8 pede ao entrevistado que opine sobre a filosofia contem ­porânea a partir de uma questão genérica sobre um momento marcante da refle­xão filosófica no século X X , que é a chamada “virada lingüística”. A form ulação

Apresentação

Page 12: Conversas com Filósofos Brasileiros

permite uma especificação histórica, já que abre a possibilidade do confronto com a tradição metafísica. Nesse sentido, a pergunta remete ao segundo bloco de ques­tões. pergunta 9 pretende abrir ao entrevistado a possibilidade de desenvolver temas de filosofia da história. Nesse sentido, permite também remissões ao segun­do bloco de questões, ao mesmo tempo em que prepara a última questão da pauta básica. Pois enfrentar o conceito de “ utopia” pressupõe um determinado diagnós­tico de nossa sociedade, e vale a pena pedir do entrevistado uma especificação de tal problema. Com isso, a pergunta 10 pode significar também (potencialmente) uma transição para a teoria social, sem prejuízo de que o entrevistado tenha já analisa­do toda a pauta básica de questões dessa perspectiva.

Entretanto, a marcante ênfase na atualidade que caracteriza todo o conjunto de perguntas não tem apenas o objetivo de aproxim ar as formulações do leitor não- especialista e de tornar — na medida do possível — respondíveis as questões pro­postas. Uma tal ênfase revela também um outro pressuposto importante da pauta de questões: os entrevistados são postos na condição de filósofos. M as por que se­ria este um pressuposto problemático, já que se trata exatamente de "conversas com filósofos brasileiros” ? Porque um dos fulcros deste livro é justamente o de investi­gar se há filósofos brasileiros (e em quê sentido), se há filosofia brasileira (e em quê sentido). O que, certamente, engata também com problemas clássicos da reflexão sobre o Brasil, sobr_e a cultura brasileira.

Justifica-se um tal procedimento? Pode-se, no enquadram ento das perguntas, pressupor resolvido um dos problemas mais delicados dessas entrevistas, proble­ma que só poderia ser debatido e tratado pelos próprios entrevistados? A resposta a essas perguntas embaraçosas são novas perguntas: não é exatamente assim que procedemos quando qualificamos alguém como filósofo? Não é assim que procede­mos quando refletimos sobre o Brasil? Não pressupomos sempre um padrão (gre­go, europeu, americano) a partir do qual nos medimos' Partir dessa idéia comum, entretanto, não significa, no caso das entrevistas deste livro, que se esteja de algu­ma maneira impondo ao entrevistados qualquer conclusão, seja no sentido de que nos definimos sempre pela falta, pela carência em relação ao padrão pressuposto, seja, ao contrário, que a filosofia entre nós não tenha sequer estatuto problemático.

C]om isso, atingimos uma outra característica essencial desse conjunto dc ques­tões proposto aos entrevistados. Não obstante os pressupostos já explicitados, a pretensão é a de que as perguntas cumpram simultaneamente duas tarefas: que delimitem (com a clareza mínima requerida) os temas a ser abordados e que sejam suficientemente ra^ as para permitir não só a m aior variedade possível de perspec­tivas nas respostas, mas também — e principalmente — a m aior variedade possível de interpretações das perguntas propostas. Pois as perguntas têm form ulações que se pretendem deliberadamente vagas, de modo a fazer com que cada uma das res­postas de cada uma das entrevistas seja já uma interpretação das perguntas pro­postas. E a idéia do “depoimento dirigido” apresentada acima significa aqui que os entrevistadores não têm nenhuma pretensão de intervir no sentido de “corrig ir” as interpretações dadas às perguntas, no sentido de precisar ao entrevistado o que seria a “verdadeira intenção” da pergunta apresentada. Em termos de conteúdo, não existe uma tal intenção original.

10 Marcos Nobre

Page 13: Conversas com Filósofos Brasileiros

Concluída a análise da pauta básica, cabe passar agora ao exame de outro pressuposto da “tom ada de posição” prévia por parte dos entrevistadores. Nesse sentido, surge imediatamente a necessidade de exam inar os critérios para o estabe­lecimento da lista de entrevistados. O prim eiro critério de seleção foi de natureza geracional: havia que estabelecer a lista a partir de nomes nascidos por volta de 1940 e antes. Decisivo para o estabelecimento desse critério foi o fato de que a instala­ção de cursos de pós-graduação, a massificação dos cursos dc graduação e o cres­cimento mais expressivo no número de publicações em filosofia deu-se fundam en­talmente nas décadas de 1960 e 1970 . Desse modo, era de crucial importância obter o depoimento daqueles que tomaram parte — direta ou indiretamente — nesse pro­cesso que moldou o que hoje se costuma designar como filosofia no Brasil.

O estabelecimento desse critério prim eiro, entretanto, não foi suficiente para dele extrair uma lista de entrevistáveis que coubesse em um único volume. Com satisfação, constatam os que o número de filósofos selecionados com base nesse critério monta a algumas dezenas. M as a satisfação foi acom panhada do grave problema de ser necessário escolher dentre eles apenas dezesseis nomes. O que sig­nifica desde logo: este volume só pode ser entendido como o primeiro de uma sé­rie, mesmo mantendo o critério de tom ar apenas aqueles filósofos que nasceram por volta de 1940 e antes.

Diante dessa dificuldade, cabia proceder à escolha tendo por critério não apenas a relevância intelectual e o papel desempenhado nos diversos processos de institu­cionalização da filosofia no Brasil, mas também um certo equilíbrio entre m últi­plas variáveis, tais como regiões de origem e de atuação, ênfase cm determinados aspectos e disciplinas da filosofia, presença no debate público, visões diversas so­bre a natureza do trabalho filosófico (acadêmico ou não-acadêmico. especializado ou exotérico), reconhecimento pelos pares, compreensões diversas e divergentes sobre a natureza da filosofia. Foi com base nessa pretensão de equilíbrio relativo que foi estabelecida a lista, certamente muito incompleta, como já mencionado. De qual­quer form a, para que o leitor não tivesse seus horizontes lim itados à lista aqui estabelecida, em quase todas as entrevistas foi form ulada a pergunta sobre quais seriam, na opinião do entrevistado, os filósofos brasileiros mais importantes.

Por fim, cabe apresentar ao leitor os procedimentos adotados para a reali­zação das entrevistas. A idéia original deste livro foi de José M árcio Rego, que já havia realizado (como economista que é) dois volumes de Conversas com econo­mistas brasileiros, também publicados pela Editora 34. Vinculei-me a esse proje­to de José M árcio em maio de 19 9 9 , e, a partir daí, foi estabelecida a lista de no­mes e form ulada a pauta básica de perguntas a ser submetida a todos os entrevis­tados. A primeira entrevista foi realizada em fins de setembro de 19 9 9 e a última em abril de 2 00 0 .

O procedimento foi o de, a partir do roteiro da pauta básica, estabelecer uma pauta com plementar específica para cada entrevistado, form ulada a partir da lei­tura de seus livros, artigos e entrevistas. Em média, a pauta de perguntas montava a quarenta questões — sendo cada uma delas apresentada ou descartada, depen­dendo dos rumos que tomavam as entrevistas — , além das perguntas produzidas no próprio curso da conversa. Todas foram entrevistas gravadas. Realizado o tra-

Apresentação 11

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balho de transcrição e de edição, os textos passaram por uma primeira revisão na Editora 34 e foram encaminhados aos entrevistados para que suprimissem, m odi­ficassem ou alterassem as suas respostas. Os textos definitivos aqui apresentados são exatamente os resultantes dessas revisões feitas pelos entrevistados.

As entrevistas aparecem neste livro por ordem de data de nascimento dos entrevistados, dos quais o leitor tem, ao final de cada entrevista, uma breve notí­cia biográfica e uma lista das principais publicações. Acrescentamos também uma “ Bibliografia de referência” para cada entrevista, procurando indicar, p rioritaria­mente, traduções em língua portuguesa e edições disponíveis em livrarias e biblio­tecas públicas.

Marcos Nobre é doutor cm Filosofia pela USP, professor de Filosofia da Unicamp c pesqui­sador do Cehrap. É autor de /í dialética negativa de Theodor W. Adorno, ed. Iluminuras/Fapesp.

José Mareio Rego é doutor eni Economia pela FGV/SP e doutor cm Semiótica pela l’UC/SP. professor da FGV/.SP e da PUC7SP. É autor, entre outros, de Conversas com economistas brasilei­ros I e II e Retórica na Economia, ed. 34.

12 .Marcos Nobre

Page 15: Conversas com Filósofos Brasileiros

AGRADECIM ENTOS

Na feitura do livro, contam os com a cooperação de muitas pessoas. Antes de tudo, contamos com a assistência direta e cotidiana dos pesquisadores Fernando Costa M attos e M aurício Cardoso Keinert, que colaboraram no levantam ento e seleção do material bibliográfico, na elaboração das pautas específicas de cada entrevista e na edição do m aterial. Se há méritos neste livro, eles também cabem a esses dois pesquisadores.

M inha colaboração intelectual com Ricardo R. Terra vem de longe e, também no caso deste livro , suas sugestões e críticas foram de decisiva importância. Em específico, na preparação de três entrevistas, pudemos aprender muito com a livre troca de idéias com os professores Franklin Leopoldo e Silva, Ernani Chaves, Samuel Rodrigues Barbosa, Roberto Barros, A ldrin M oura de Figueiredo, Carlos Eduardo Batalha e Henry Burnett. Também a pesquisadora Inara Luiza M arim auxiliou na edição e na pesquisa de algumas das entrevistas. M as, no caso de Inara, devo mui­to mais que um agradecimento; devo-lhe o livro, que, de minha parte, a ela dedico.

Marcos Nobre

A viabilização deste trabalho só foi possível com a participação de um gran­de número de pessoas e instituições, impossível aqui elencar todas. A o menos re­gistro o apoio logístico da FGV/SP e a ajuda financeira do Núcleo de Pesquisas e Publicações (NPP) da FGV, bem como a influência intelectual e o apoio de Luiz Carlos Bresser Pereira. Fernando Costa .Vlattos e .Maurício Keinert foram indis­pensáveis. Agradeço por último o apoio constante da professora Lúcia Santaella, da Semiótica da PUC/SP, a quem, de minha parte, dedico o livro.

José Márcio Rego

Conversas com Filósofos Brasileiros 13

Page 16: Conversas com Filósofos Brasileiros

Miguel Reale: "O fato dc a Filosofia tratar dos problemas universais não quer dizer que o filósofo não seja condicionado pelo seu modo de ser social c histórico, e, sobretudo, pela sua lín­gua, que é o solo da cultura, que é o ponto dc interseci,'ào entre a natureza e a cultura. .-\ língua é natureza e é cultura ao mesmo tempo. E cada idioma tem as suas peculiaridades, cada língua tem os seus valores ostensivos e outros ocultos".

Page 17: Conversas com Filósofos Brasileiros

MIGUEL REALE (19 10 )

Miguel Reale nasceu em 19 10 , em São Bento do Sapucaí (SP). Formou-se em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco, onde obteve também o título de doutor em Direito e tornou-se catedrático de Filosofia do Direito. C riador do Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) e fundador da Revista Brasileira de Filoso­fia, foi secretário de Justiça de São Paulo (19 4 7 ; 1962-4) e reitor da Universidade de São Paulo. Supervisionou a comissão elaboradora e revisora do Código Civil Brasileiro, cujo p ro jeto se encontra em tram itação no Congresso N acional. F. membro da .Academia Brasileira de Letras e professor em érito da USP. Esta entre­vista foi realizada em outubro de 1999 .

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhehit Meister em dois romances. Os anos de aprendizado e Os anos dc peregrinação. No pri­meiro, o foco está posto na fonnação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um hom mote para que o senhor nos falas­se de sua fonnação intelectual?

De certa maneira, a nossa form ação intelectual tem duas valências, uma subjetiva e a outra intcrsubjetiva. Não há dúvida de que, em primeiro lugar, põe-se a formação do indivíduo como tal. Segundo os seus pressupostos genéticos e valorativos. Cos­tumo dizer que o homem está condicionado, até certo ponto, por determinadas di­retrizes, uma de natureza biológica e outra de natureza ética ou espiritual. Assim como uma pessoa nasce dependendo de determinados antecedentes biológicos, tam ­bém já possui, inerente a sua mentalidade ou a sua sensibilidade, uma vocação para esta ou aquela função social. É o que eu chamo de valor polar. Assim como há DN.A para controlar cada individualidade, cada indivíduo também é levado a certa vo ­cação, que pode ser desde para a sacralidade até para as funções empíricas normais. Eu acho que a lembrada distinção de Cioethe corresponde no fundo a essa distin­ção entre o indivíduo em si e o indivíduo para com os outros. Quando se fala, po­rém, cm peregrinação, esra palavra corresponde mais a uma situação local, euro­péia, sobretudo alem ã, que consistia num ideal que rinham os alemães, rom ânti­cos, sempre de conhecer a Itália, de fazer uma peregrinação autêntica, coisa que nós hoje podemos deixar entre parênteses. Enquanto não saímos de nós mesmos, ou seja, de nosso meio ambiente, não conseguimos form ar uma opinião clara a respei­to do mundo e da vida, de maneira que foi somente quando andei pelo mundo, par­ticipando de congressos, de atividades políticas e assim por diante, que passei a ter uma dimensão melhor, não só de mim mesmo, mas do próprio país, do Brasil como tal. É nessa correspondência interna e exterior que existe uma relação fundante.

.\liguei Reale 15

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o senhor nos diz então qtte a sua experiência em Roma, na década de 30, foi decisivaf

É, minha presença em Roma foi decisiva, porquanto eu fui como exilado, exilado por motivos políticos, e lá pude ter contato com uma grande civilização, uma grande cultura e ao mesmo tempo passei a ter uma experiência diversa do próprio fascis­mo, vendo que ele era uma coisa de longe e outra coisa de perto, tal como explico em minhas memórias. De maneira que é matéria à qual não vou fazer mais referên­cia porque já pertence à memória, é matéria que já pertence ao memorialismo. Mas a influência de Roma foi grande, porquanto definiu claramente a minha orienta­ção no sentido da Filosofia, quer da Filosofia em geral, quer da Filosofia do Direi­to em particular. Até então, eu me preocupara mais com a problemática política e literária, ao passo que em Roma tive, digamos assim, uma experiência pessoal mais forte, no sentido de um esclarecimento a respeito dos problemas fundamentais que representam o quadro básico da Filosofia.

Algumas importantes referências da sua obra estão no pensamento de Kant e dos neokantianos, nas filosofias de Husserl e Ma.v Scheler, bem como na obra de N. Hartmann, que, salvo engano, serve de modelo e contraponto à síntese filosófica pretendida pelo senhor. Em que circuns­tâncias o senhor travou primeiramente contato com as obras desses pensadores e como os avalia hoje?

Eu já tinha tido contato anterior com os neokantianos. Com o se sabe, havia duas grandes linhas do neokantismo, uma da escola de M arburgo, impregnada mais por preocupações de natureza lógico-matemática. e outros da escola de Baden, que dava mais importância e relevo à problemática social e ética. O que me atraiu mais foi o neokantismo de Baden, sobretudo pela figura estupenda dc Gustavo Radbruch que, pela prim eira vez, me colocou perante a problemática da cultura, da cultura que ele ainda via como elemento intermédio entre a natureza e o espírito. A posição de Radbruch a respeito da cultura, com o, de resto, a dos componentes da escola de Baden, era a da sua caracterização como transição. Ele não exam inava a proble­mática cultural como esta veio a ser exam inada mais tarde. Ele estabeleceu a cultu­ra como elemento de mediação, repito, entre a natureza e o espírito, de certa m a­neira retom ando o problema deixado em suspenso por Fíegel, quando identificara a cultura com o próprio espírito objetivo.

Hegel, porém, ao identificar cultura com espírito objetivo, fazia-o admitindo algo superior à cultura, que era o espírito absoluto, no qual ele incluía a arte, que é, convenhamos, um componente natural da cultura. De maneira que Hegel deixou uma solução que era, no fundo, um grande problema. Era uma série de perguntas que emer­giam da compreensão da cultura como espírito objetivo. Foi meditando sobre essa teoria que escrevi meu primeiro livro, mais significativo no plano filosófico, que é Fundamentos do Direito — o qual, na realidade, deveria ser “ fundamentos da cul­tu ra”, porquanto a Filosofia do Direito não é uma filosofia especial. Não existem filosofias especiais. A Filosofia do Direito é a filosofia mesma enquanto o pensador tem como objeto de estudo e de análise a experiência jurídica. De maneira que a Fi­losofia do Direito de Hegel c um momento da sua experiência filosófica geral. Aliás,

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aquele que mais conseqüências teve, porque foi o que mais atraiu Karl M arx e do qual este partiu para toda a sua concepção materialista, do materialismo histórico.

De maneira que houve muita importância na filosofia neokantiana, que cor­responde a minha fase inicial, superada depois com o advento de outras correntes de pensamento, sobretudo através de Husserl. Kant é um ponto de partida perene e universal. Toda filosofia moderna é crítica na medida em que herda o criticismo kantiano de uma form a mais extensa ou não. Kant é um depositário de soluções e a todo instante podemos volver a ele para descobrir coisas novas. De início, a filo­sofia da cultura foi para mim um ponto de partida para uma meditação m aior, que iria redundar naquilo que chamo de “culturalism o” . Penso que em poucos países a meditação sobre a cultura atingiu profundidade tão extensa com o no Brasil. En­quanto a cultura era, em geral, considerada de maneira com plem entar em relação ã natureza, no Brasil essa temática teve outro desenvolvim ento, com conseqüências às quais poderei fazer referência ao longo desta breve correspondência de idéias.

■Mas o importante é que Husserl veio trazer um outro elemento ao binômio do conhecimento. Não poderia haver uma teoria da cultura enquanto o homem per­manecesse voltado exclusivamente para a sua subjetividade; ou seja, enquanto fos­se uma projeção da problemática cartesiana do cogito, porquanto a cultura é um transcender da cogitação subjetiva envolvendo imediatamente a pessoa do outro. E, por outro lado, Husserl vem m ostrar que o conhecimento humano não é m ono­córdico no sentido da subjetividade, porque a própria consciência é consciência de algo, de maneira que ele soube reviver o velho conceito medieval da intencionalidade. A consciência como intencionalidade leva à idéia do objeto: o eu e o outro, esse outro que pode ser uma coisa ou uma outra pessoa, um outro sujeito, com pondo, p or­tanto, uma correlação muito complexa. Com a filosofia de Husserl, os neokantianos passaram a dar valor ao objeto e, por conseguinte, também foi possível que se pu­sesse em realce a problemática do valor.

É aí que começa a segunda fase do meu pensamento, em que supero pratica­mente a filosofia neokantiana da cultura, do culturalism o de Baden, levando em consideração a problemática do valor. A teoria do valor é antiga, mas como uma teoria autônom a é um problema recente na história das idéias, é uma problemática praticamente do fim do século XIX e começo do século X X , quando na realidade a palavra “va lo r” passou a ser mais usada, porque antigamente ela estava um pouco misturada com a teoria do bem, da m oralidade e assim por diante. O valor passou a ter um status filosófico autônom o e isso representou uma mudança de 180" no mundo da filosofia. É preciso, a meu ver, salientar que é a Axiologia que dá nova orientação à temática filosófica contemporânea. E me vi, então, em contato com grandes com panheiros de Husserl, que eram .VIax Scheler e Nicolai Hartmann. Ambos, porém, tratavam do valor com o um objeto ideal e esse é um problema so­bre o qual eu queria cham ar especial atenção. O valor é um objeto ideal? Há razão para permanecermos nesse platonismo? Será que o valor é algo que pode ser equi­parado a um objeto matemático, ou a um objeto lógico? Foi nos meus livros. Filo­sofia do Direito, em prim eiro lugar, e Pluralismo e liberdade, em segundo lugar, que procurei mostrar que o valor tem um status próprio, que o valor não é um objeto ideal. E aqui, para chegar ao trato dessa matéria, volvi novamente a Kant, mas sob

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um ângulo diferente, que é o da distinção básica entre ser e dever ser, Sein e Solleii.E, por outro lado, da correlação, desse binômio, que é o Sein-Sollen. Então, é aí que começa a segunda fase do meu pensamento, que eu chamaria de fase axiológica, porquanto cheguei ã conclusão — e este é um ponto básico de meu pensamento, e, se alguma contribuição trouxe ã matéria, essa é uma delas — de que o valor não pertence ao mundo do Sein, do ser, mas pertence, ao contrário, ao mundo do de­ver ser, do Sollen. Chegando ã conclusão, por conseguinte, de que “o ser do valor é o seu dever ser” .

Notem a importância desta frase, pois ela é fundam ental: o ser do valor é o seu dever ser. O valor, na realidade, com o o belo ou o verdadeiro, não pode ser equiparado a uma figura geométrica, a uma circunferência, por exem plo, porque um círculo, um triângulo, um número são objetos ideais. E mesmo quando se esta­belecem relações entre eles, temos o mundo da M atem ática, da Álgebra, o mundo da Lógica contem porânea, da nova Lógica, paraconsistente ou não. O importante é que as relações lógicas são sempre relações de tipo ideal, desenvolvendo-se no plano do Sein, do ser. O valor, ao contrário, converte o objeto em objetivo, porque quando digo "é belo”, essa minha afirm ação de beleza implica uma tomada de posição. Nin­guém toma posição perante um triângulo ou um círculo. O valor, ao contrário, im­plica a conversão do objeto em objetivo. E, por outro lado, enquanto no mundo da Lógica prevalece o quantitativo sobre o qualitativo, no mundo da .Axiologia, ao contrário, é a qualidade o elemento dom inante. É o qualitativo que distingue um valor de outro valor. O que permite uma gradação. Não há uma circunferência mais circunferência do que outra, mas existe mais beleza a respeito deste ou daquele dado da natureza ou do espírito. Então, o valor tem uma consistência diferente, o que me leva ã seguinte conclusão: somente se pode falar numa Axiologia, no sentido pleno da palavra, quando se tem um conceito autônom o de valor. De outra manei­ra, seremos obrigados a dizer que a Axiologia é uma parte da M etafísica, ou então que a Axiologia é uma parte da Ética etc., ao passo que eu entendo que a Axiologia é uma parte autônom a da Filosofia. A Axiologia é uma das partes autônom as, ao lado da Lógica, ao lado da Ética. Interligada sempre, porque os problemas filosó­ficos não são nunca isolados, desprendidos uns dos outros, mas sempre em cone­xão necessária, em linha de complementaridade.

É essa compreensão autônom a e dinâmica do valor que está na base do meu "historicismo axiológico”, que se distingue do historicismo hegeliano em virtude de seu sentido axiológico, do qual decorre a aplicação da dialética de implicação- polaridade ou de complementaridade, exatamente em razão de ser a polaridade uma das características essenciais dos valores, que entre si se implicam, sem se reduzi­rem uns aos outros.

Esse modo de ver veio repercutir também no cam po da Filosofia do Direito, levando-m e a dizer que não é bastante afirm ar, com o já haviam feito alguns auto­res, que a experiência jurídica se compõe de fatos, de valores e normas. Porque esse é apenas o aspecto quantitativo do problema. O importante é m ostrar que esses ele­mentos se dialetizam, se implicam reciprocamente, e foi aí que começou a teoria tridimensional do Direito. A idéia de teoria tridimensional do Direito começa não quando .se diz que há três fatores com pondo a realidade jurídica, mas, sim, quando

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se analisam esses farores e se descobre o nexo finalistico que existe entre eles. E entâo, é a dialeticidade de fato, valor e norma que está na raiz da teoria tridimensional do Direito. Com o se vê, a indagação filosófica em meu espírito marcha pari passu com a indagação jurídica. E são dois os pontos de apoio do meu raciocínio: o do ho­mem enquanto homem e o do Direito como experiência. Este, aliás, é o título de uma das minhas obras, O Direito como experiência, que marca exatamente o m o­mento culminante dessa segunda fase, que eu cham aria de axiológico-concreta. E, com isso, foi possível m ostrar que havia certo engano por parte de Nicolai H art­mann, quando fazia uma identificação entre cultura e espírito objetivo, repetindo o mesmo engano de Hegel.

.A cultura é a manifestação do homem em relação ã natureza, no instante em que ele torna a natureza diversa em razão dele mesmo: é essa intencionalidade da consciência que altera o natural para convertê-lo em algo que realiza a especifici­dade humana. Daí o conceito de cultura que estabeleço como um patrim ónio da espiritualidade, que a espécie humana vai acumulando para a realização de seus fins específicos. Em virtude da radicalidade da cultura, ultimamente eu tenho falado em j priori cultural.

-Mas é claro que, enquanto indagava acerca desse ponto de vista, sempre me surgiu o problema da ligação entre Axiologia e .Metafísica. Se, de certa maneira, eu extraíra da .Metafísica a Axiologia, que relação havia ainda entre elas? Com o pen­sar em M etafísica? E é aí que surge o terceiro período do meu pensamento, que cor­responde propriamente ao livro Experiência e cultura, que representa uma nova fase. Eu diria talvez que não são propriamente fases, mas momentos de algo que vai am a­durecendo à medida que a experiência filosófica vai se adensando.

F. claro que isto im portava em uma nova atitude filosófica no Brasil, diferen­te da que vinha dom inando, porquanto, infelizmente, o que prevalecia nas univer­sidades era uma atitude quase que passiva diante dos textos, sem se envolver com o tratam ento da matéria. Era uma interpretação dos grandes autores sem que hou­vesse o arro jo do pensamento próprio, sem uma preocupação que emerge, não por vaidade pessoal, mas pelo próprio andamento, pelo próprio processar-se da pes­quisa, no sentido de form ular uma pergunta e tom ar uma posição distinta, o que é próprio da imaginação criadora. Então, inegavelmente, na minha experiência pes­soal há algo que representa uma tomada de posição perante o pensamento alheio, não sendo apenas um aperfeiçoamento hermenêutico. É claro que ninguém nega o mérito das universidades ao surgirem as faculdades de Filosofia, que aprim oraram o aprendizado filosófico, exigindo método, exigindo ida às fontes, a meditação direta dos autores, e não apenas o recebimento da inform ação através de terceiros. Essa a grande função das universidades, a de criar a metodologia científica do aprendiza­do filosófico e o quadro das idéias universais. Porém, talvez se tenha exagerado de­mais a preocupação de atenção ao texto, até o ponto de não se ir além dele, em di­reção a uma “pergunta pessoal" que se insere no processo hermenêutico, no pro­cesso de interpretação.

O senhor identifica essa atitude, por exemplo, com a produção do De­partamento de Filosofia da USP?

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Nc) Departamento de Filosofia da USP houve e há pensadores que procuraram e procuram ter uma atitude própria; porém nunca foi, digamos assim, um objetivo permanente. Eles deixaram algo de próprio ao fazerem interpretações, em seu tra­balho hermenêutico, mas nunca houve a preocupação da revelação autônom a, so­bretudo quando dom inou a escola estruturalista, dificultando uma nova tomada de posição criadora. E nós podemos dizer em Filosofia o que A lberto Torres dizia em Política: toda revolução começa com uma tomada de posição em face dos proble­mas. Quer dizer, o problematicismo da Filosofia está faltando um pouco na vivência universitária. Foi o que me levou a criar o Instituto Brasileiro de Filosofia, que pre­tendia tornar a Filosofia aberta a todos, sem exigir diploma para ser filósofo.

V o ltando , porém , ã exposição que eu estava fazendo, ao verificar que a Axiologia tem um status próprio, surgia a pergunta: e o absoluto, e aquilo que transcende a ligação intersubjetiva na teoria do conhecimento? Aquilo que se põe com o o incognoscível? A filosofia do absoluto de Hegel, a idéia com o universal concreto, isso não representa nada de fundam ental para nós? As posições são as mais conhecidas, conform e a atitude que se tem. Hegel não admitia sequer que se pusesse em dúvida essa questão, dizendo que a pergunta sobre o conhecimento da M etafísica não tem sentido, porque a pergunta pelo conhecer já é conhecer. De maneira que a teoria do conhecimento não pode ser um pressuposto da Filo­sofia, porque ela já é Filosofia de per si. M as o im portante é que aí achei interes­sante vo lver a uma posição que foi própria de certos momentos da Filosofia me­dieval, vo lver à posição, por exem plo, de Nicolau de Cusa, quando ele fala de conjeturas. Há graus da verdade, ou m elhor, há graus do verdadeiro. Exatamente com o no caso do belo, em que os valores se hierarquizam , há graus do verdadei­ro. A liás, a Lógica contem porânea nos dá razão quando fala em “quase-verda- de”. A Lógica paraconsistente é a Lógica da quase-verdade. Então, temos que en­frentar esse problem a, e me pareceu que devíamos colocar o problema em termos conjeturais.

A palavra “conjetura” estava sendo muito usada no momento em que che­guei a essa etapa da minha experiência pessoal da Filosofia, sobretudo através das obras de K arl Popper sobre Epistemologia. Porém, meditando sobre a posição de Popper, cheguei à seguinte conclusão: Popper tem, a respeito da conjetura, uma concepção um tanto imprecisa, porque ele inclui no plano conjetural também o que se revela provável. O ra, parece-me que o provável não é conjetural, porque já se insere no quantitativo. A meu ver, o conjetural se restringe ao plausível, ao proble­mático, ao metafórico, àquela faixa na qual não se dá uma resposta afirm ativa, mas se põe um “como se”, um ais oh, que demarca a problematicidade. M ais uma vez voltando a Kant, fui verificar que ele havia tratado do problema numa fase decisi­va de sua evolução espiritual. Depois de ter publicado a Crítica da razão pura, Kant escreve pequenos estudos sobre a história. Nada mais conjetural do que a história, e ele o percebeu bem. Kant tem um trabalho dedicado à conjetura no qual declara que esta é uma form a de pensar com o, por exem plo, a de quem está numa ilha de­serta cercada pela escuridão da noite e percebe que além dela existe alguma coisa, que não sabe o que é, mas existe alguma coisa que pressupõe como existente, so­bre a qual se conjetura.

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Então, o que distingue a conjetura? A conjetura não é um devaneio, a con­jetura não é um sonho, não é uma invenção. A conjetura é uma suposição com base no real. Kant mesmo declara que a conjetura é como um pássaro que voa o mais alto possível, mas ligado sempre à experiência. É algo de experienciável, pelo menos com o tentativa. É o que penso ter dem onstrado em meu livro Verdade e conjetura, que vem com pletar Experiência e cultura, onde já aludo ao pensamen­to conjetural.

Também ocorreu aqui uma outra alteração na teoria do Direito, que foi a de m ostrar com o, no campo da Ciência do Direito, opera também a conjetura. Há uma série de problemas jurídicos que só se resolvem conjeturalm ente e que não podem ser resolvidos pela Lógica tradicional, pura ou dogmática. De maneira que o im­portante é que o filósofo do Direito não se limite ao exame dos textos, por mais altos que sejam, ainda que se trate de texto constitucional, mas indague de seus pressupostos éticos. Tom ar uma posição não por querer tom ar, mas porque o es­tudo leva a isso. Leia-se, nesse sentido, Nova fase do Direito moderno, o qual, se­gundo Antônio Braz Teixeira, devia chamar-se Direito e conietura.

Seria possível fa la r de uma “filosofia brasileira”? Como o senhor vê asrelações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Bom, estou convencido de que hoje em dia já se pode falar numa filosofia brasilei­ra, tal o número de autores que tom aram posição própria perante os grandes pen­sadores. E os portugueses foram além, fundando o Instituto de Filosofia Luso-Bra- sileira. Eles entendem que existe uma filosofia de língua portuguesa. O problema é muito delicado e diz respeito ã existência ou não das chamadas filosofias nacionais. Eu estou convencido de que não há filosofia que não seja, até certo ponto, nacio­nal. O fato de a Filosofia tratar dos problemas universais não quer dizer que o filó­sofo não seja condicionado pelo seu m odo de ser social e histórico, e, sobretudo, pela sua língua, que é o solo da cultura, que é o ponto de intersecção entre a natu­reza e a cultura. A língua é natureza e é cultura ao mesmo tempo. E cada idioma tem as suas peculiaridades, cada língua tem os seus valores ostensivos e outros ocul­tos. Há palavras alemãs que são intraduzíveis para o português, assim como até no próprio italiano, que é uma língua irmã, há palavras que não encontram uma tra ­dução rigorosa. Q uer dizer, a nossa língua é uma condicionante do nosso ser pes­soal e do nosso ser filosofante, da nossa própria capacidade de pensar e de filoso­far. Há, hoje em dia, uma filosofia brasileira, mas não no sentido, evidentemente, de uma autarquia, o que seria uma tolice. Somos uma continuação do patrim ônio do pensamento ocidental. Por mais que o Brasil possa progredir e os Estados Uni­dos possam avançar na linha do tempo, a América será sempre idealmente uma projeção da Europa.

Nós somos uma projeção do Ocidente. Nós falam os grego e falam os latim. E, com isso, tiramos desse património, que vem de milênios, um resultado para poder pensar, mesmo porque, toda vez que encontram os uma solução, essa solução põe logo em seguida um novo problema. O problematicismo é inerente ã própria inda­gação filosófica. É nesse sentido amplo que falo em filosofia brasileira. É fácil re­conhecer que a filosofia alemã não é igual ã filosofia francesa, não é igual à filoso-

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fia anglo-am ericana. Diferença de temas, predileções por assuntos, atitude na ma­neira de colocá-los, tendência a responder num sentido ou em outro , tudo isso nas­ce num cenário diferente para o pensador deste ou daquele outro país. Enquanto o Brasil se limitou passivamente a ser influenciado, não havia filosofia brasileira, havia apenas a história das influências recebidas. M as, desde o m om ento em que passa­mos a perguntar: na maneira de ser influenciado, não existe algo de próprio.^, co­meçamos a tom ar consciência daquilo que é nosso. Então se pode falar na filosofia brasileira, que significa a tom ada de posição do brasileiro perante a Filosofia.

Quais são, em sua opinião, os filósofos brasileiros mais importantes? Temos, na Lógica — e a Lógica para mim é uma parte fundamental da Filosofia — , o N ewton Carneiro Affonso da Costa, criador da Lógica paraconsistente, trazen­do uma contribuição de repercussão universal. Temos, no passado, alguns pensa­dores que, por mais que tenham tido compreensão pouco original, apresentam algo de próprio. Lembro sobretudo o nome dc Tobias Barreto, que nos apresentou uma intuição prim ordial da cultura, em função das conjunturas do Nordeste. Por que a cultura surgiu em seu espírito como o “antagônico da natureza” ? Porque o nor­destino vive em função da natureza amarga e adversa, aquela natureza que, como dizia José Américo de Almeida, é para o Nordeste menos mãe do que madrasta. O nordestino sente a necessidade dc superar a natureza e dc dom iná-la através da cultura. Então, para Tobias Barreto, a cultura é um meio, um modo de dom inar e ajeitar a natureza para poder torná-la menos agressiva. Se Ortega diz que o homem é a sua própria condição, então essa condicionalidade geral não pode deixar de existir no mundo filosófico. Dentre os pensadores nacionais atuais, eu lembraria Antônio Paim, que tem dedicado muita atenção ã problemática da cultura e também à his­tória das idéias no Brasil. O seu livro sobre a história das idéias no Brasil veio sis­tematizar a matéria e m udar o ângulo, alterar a orientação dos estudos. Aliás, uma das minhas preocupações maiores foi a de fazer com que os brasileiros tomassem consciência do que lhes é próprio, muito embora sempre no contexto do pensamento universal. Antes do Instituto Brasileiro de Filosofia e da atuação que este exerceu, estudava-se a Filosofia no Brasil partindo-se do pressuposto de que o brasileiro não produzira nada de próprio, sendo mero reprodutor do pensado alhures. E, depois, quando se queria avaliar o pensador, parece que se tomava a medida do certo e do errado conform e se estava perto ou distante de Kant, perto ou distante de São T o­más de Aquino, perto ou distante de Hegel, e assim por diante. Quer dizer, segun­do parâm etros e.xternos, sem uma avaliação íntima. O IBF veio trazer nova linha metodológico-hermenêutica, e é a que vem sendo seguida pelos que pertencem ao Instituto Brasileiro de Filosofia e que, hoje em dia, felizmente, já está prevalecendo em várias universidades brasileiras. Penso que na Unicamp os senhores já seguem uma orientação aberta e não a de fidelidade exclusiva a determinadas diretrizes, em uma compreensão abstrata do fenômeno humano.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela sedá na atualidade?

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Eu sempre rive a preocupação de colocar os problemas filosóficos levando em con­ta o aspecto científico. E tive uma grande alegria quando, no evolver do meu pen­samento, cheguei, por exem plo, à conclusão de que somente o fninctpio de com­plementaridade poderia servir de parâm etro para a problem ática ética e jurídica. E a minha alegria foi grande ao constatar que o princípio de complementaridade tam ­bém domina nas ciências físicas. Encontrar um princípio com o esse de complemen­taridade, com o base de pesquisa e de referência, tanto para o pesquisador da física como para o das ciências humanas, foi um grande avanço, uma espécie de prova de verdade. Ou, pelo menos, prova de verossim ilhança, dessa possibilidade de um novo princípio ser aplicado em um campo e em outro do conhecimento humano, no mundo da natureza e no mundo da cultura.

Não digo que o filósofo deva sempre ter vocação científica, porque seria pre­tender que todo filósofo tivesse o mesmo feitio. O meu feitio é de respeito ã ciência e de uma preocupação sempre muito ativa no sentido, por exemplo, de correlacionar a Filosofia do Direito com a Ciência do Direito positivo, de não fazer uma Filoso­fia do Direito abstrata, perdida na estratosfera, mas, ao contrário, de fazer uma Fi­losofia do Direito que diga respeito ã atividade do juiz, do advogado, daquele que toma parte no processo em defesa dos seus interesses. É uma atitude minha, como é de grande número de juristas atuais. M as não exageremos. O neopositivismo, por e.xemplo, considera que tudo aquilo que não tem vinculação com a ciência não tem sentido, é nteaningless. Considero essa atitude exagerada. Com preendo, por exem ­plo, um filósofo que seja puramente metafísico, que não dê importância absoluta­mente ã problemática científica, porque ele transcende esse aspecto da ciência para pôr os problemas apenas no plano do ser, da problemática do ser em si, e assim por diante. De maneira que não vejo razão alguma para optar por uma filosofia segundo modelos determinados e inflexíveis.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se unt debate sobre o fim da arte, sobreum possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate f

.Mas quem é que teria dito que a Estética está em risco de desaparecer? Atribui-se a Hegel essa afirm ação? Eu a considero errônea. Hegel tinha antes temor de que isso pudesse acontecer. Porque uma das partes mais belas da filosofia de Hegel é exata­mente a Estética. A sua Estética é, no fundo, a continuação daquilo que considero a concepção m aior de Kant, a Crítica do jiiizo. Porque a Crítica do juízo de Kant tem um va lo r autônom o, é conjetural. E Hegel partiu dessa visão estética para transform á-la em visão do absoluto, a arte é superada apenas pela visão do abso­luto. De maneira que algo que é superado só pelo absoluto, é inferior, por assim dizer, diante da idéia do absoluto, mas é válido enquanto momento dos mais altos do espírito. De maneira que não creio que o belo desapareça. Pode haver uma maior ou menor compreensão do belo, um sentido diferente do belo, podemos adm itir até um belo horrível e outras deformações desse tipo. Eu prefiro manter a linha trad i­cional. A beleza, para mim, é uma coisa, e a feiúra, outra. Eu poderia ser conside­rado um conservador, mas prefiro conservar certos parâm etros e paradigmas que são com o que projeções do passado, momentos de uma continuidade histórica.

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£ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutar as questões morais no debate ptiblico atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

Não creio que a política somente atualm ente, somente hoje em dia, tenha uma po­sição dc primazia ou de excelência. Já os gregos tinham a noção fundamentai da vida política. A vida política foi coeva com a vida filosófica. Sócrates tinha, a seu m odo, a sua política, assim como tinha a sua ética. O im portante é dar ã política a sua posição própria. A política sempre esteve presente no homem, porque o homem é um ser político por natureza, por ser um ser histórico. O homem é um ser histó­rico, portanto traz sempre um problema a ser resolvido. E onde há problemas a serem resolvidos na sociedade, há uma política a ser realizada. A política de .VIaquiavel, por exem plo, foi um momento fundamental na história do homem, quando a polí­tica deixou de ser parte da ética para passar a ser uma ciência autônom a, uma o r­dem de estudos dotada de significação própria. Assim como a Axiologia é dotada de significação própria, a política também é ordem de estudos de significação pró­pria. Essa foi a grande novidade de M aquiavel, mais do que o maquiavelism o que, às vezes, é uma falsa atribuição a ele do que ele não disse e não pensou. De manei­ra que a política está sempre vinculada à situação do homem.

Diz-se que, neste momento, não há mais um Estado Nacional, porquanto pre­valeceria a globalização. Parece-me ser essa a finalidade última da pergunta. A globa­lização é um fenômeno, é um fato que está aí, resultante do progresso tecnológico, da inform ática, das telecomunicações, da cibernética, em suma. Mas isso não sig­nifica que os Estados Nacionais tenham desaparecido, porquanto, por mais que se universalize, há sempre uma tomada de posição a respeito do que é próprio. M es­mo porque o Estado tem múltiplas funções. E. uma tolice, no meu modo de enten­der, afirm ar que o Estado, em economia, deixou de ter um papel próprio para ser mero receptor de choques e conflitos de capitais estrangeiros ou externos. Não, o Estado tem sempre uma função de controle, de gerenciamento, quando mais não seja, de preservação do que é próprio. Temos visto a todo instante o Estado brasi­leiro sendo obrigado a tom ar posição perante crises de vários tipos, com o a asiáti­ca, a russa e assim por diante. F. no momento de crise que a força do Estado apare­ce, e o Estado Nacional subsistirá sempre, como subsistirá também a política lo­cal, a municipal, a regional, conform e as circunstâncias e conjeturas. Porque isso é uma dimensão do homem. Dimensão universal, dimensão nacional, dimensão re­gional, dimensão local, mas sempre a expressão de modo dc ser da vida humana em determinadas conjunturas.

Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?Bom, esse é um problema íntimo, fundamentalmente. Já escrevi sobre o assunto, até um artigo que teve uma grande repercussão, escrito quando perdi minha espo­

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sa, em que tratei da problemática da morte. No meu modo de entender, a questão se põe da seguinte maneira: há muitos caminhos para a fé. Segundo a filosofia tra ­dicional, com o a escolástica, por exem plo, a razão em si mesma já é bastante para se chegar à fé, com a prova da existência de Deus, da imortalidade da alma e assim por diante. Eu entendo que a fé pode ser atingida por outras vias, com o, por exem ­plo, a do am or. Em lugar de dizer “creio, logo existo”, posso dizer “creio, logo Deus é”, ou então “am o, logo Deus é ” . São caminhos múltiplos, que não estão sujeitos a uma explicação racional, lógica, nem tampouco lógico-dialética. M as isso não quer dizer que esses problemas não existam. O incognoscível tem sido reconhecido sempre como algo de que se tem de falar, e até mesmo o silêncio tem alguma significação diante do incognoscível.

Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudançade paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcadana linguagem?

Não estou muito de acordo com aqueles que querem esvaziar a filosofia de seu con­teúdo tradicional para nos atermos apenas aos aspectos lingüísticos. A redução da filosofia ã teoria da linguagem é um empobrecimento da filosofia. É claro que a teoria da linguagem é importantíssima. Eu mesmo acabei de dizer que a língua é o ponto de contato entre a natureza e a cultura, é o ponto em que o natural se converte em cultural. É onde se encontra a raiz de tudo, com o, por exem plo, no momento em que o homem fala, o homem canta, e, cantando, surge o estético. Quer dizer, a fala, a linguagem está na raiz de tudo, tanto da beleza como da verdade. M as isso não quer dizer que devamos ficar adstritos ao conhecimento da linguagem e, bem mais do que isso, à teoria da argumentação, da comunicação. A comunicação é a pala­vra de ordem contem porânea. Não há dúvida nenhuma de que nós estamos cada vez mais enriquecidos do poder de comunicar. Penso, porém , como Apel, que, ã medida que cresce a comunicação, cresce a ética, a responsabilidade do que se co­munica e da necessidade de saber ouvir antes de falar. De maneira que a teoria da linguagem é importantíssima, mas ela será só um dos tantos caminhos do filoso­far. A beleza da filosofia está nisso, no seu pluralism o, na sua multiplicidade de posições e de respostas que produzem sempre novos problemas.

C) senhor utilizaria o conceito de “utopia " para descrever sua visão dofuturo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

Não uso a palavra “ utopia”. Prefiro usar a palavra “horizonte”. “U topia” é uma palavra vazia de significado, mera abstração, em função do querer e da aspiração de cada um. Com o multiplicar-se da com unicação, form a-se um horizonte envol­vente, o “grande envolvente” a que se referia Jaspers. Esse “grande envolvente”, que abrange tudo, é que permite que tudo tenha significado. As coisas não valem somente pelo que elas são, mas também pelo modo com o se situam aqui e agora, em determinado momento. Sendo o ser humano um ser histórico de natureza inter­subjetiva, põe-se a idéia de horizonte com o o ponto ideal que devemos alcançar, e que recua à medida que o viajor avança. De maneira que nunca poderemos abran­ger o horizonte, mas também sabemos que nada poderemos ser se não tivermos ho-

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rizonte. Essa dupla função da idéia de horizonte é a que me parece básica para uma compreensão existencial. De todas as form as existenciais a que mais me atrai é a jasperiana, exatamente por ter ele visto o horizonte como pontos de reflexão e de inspiração. Pensar que há algo que procuram os alcançar e que, quanto mais che­gamos perto dele, mais ele se projeta para frente, significa a consciência infinita do indivíduo.

O senhor acredita que há progresso na história?O progresso é uma idéia relativa. É claro que, se perguntarem se há progresso no plano da com unicação, a resposta é afirm ativa. M as progresso é uma expressão aberta. O que nós podemos dizer é que o homem avança e vai conseguindo sempre novas soluções. Mas a ciência nos demonstra que, toda vez que ela atinge uma so­lução, coloca no lugar dela um novo problema.

Não im porta que haja retrocesso. As vezes, vo ltar a certos pensadores, como, por exem plo, a Platão, significa um avanço imenso; vo ltar a Aristóteles pode signi­ficar uma conquista. De maneira que o problema do espaço e do tempo tem que ser levado em conta. O tempo cultural não é igual ao tempo cronológico, ao tem­po do relógio. Cada época vê Platão a seu modo. É possível que hoje estejamos vendo Platão melhor do que os gregos.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em- larga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais pro­blemas?

Essa questão é mesmo uma questão de fecho, de conclusão, porque é o problema que atorm enta a humanidade. Enquanto atingimos o máximo de expressão cien­tífica, ao mesmo tempo nos vemos diante da máxima expressão de violência. A vio­lência sempre existiu na história e sempre se procurou controlá-la, mas hoje pouco têm podido as leis, as regras jurídicas, de maneira que o mundo de hoje me a to r­menta. Eu sou um homem preocupado com o toda a gente. V ivo em perene preo­cupação. Preocupação comigo, com os que me cercam, com o próxim o, sem saber com o é que vamos superar essa crise.

Disseram que é um problema puramente econômico, mas não o creio. São pro­blemas que transcendem o econômico e que revelam bem a fase de transição em que nós estamos. Eu não sou milenarista, mas o fato de estarm os term inando um milênio num mundo de preocupação infinita demonstra que algo há de obscuro em tudo isso. Acho que é difícil dar uma resposta a essa pergunta sobre o destino hu­mano no momento atual. A única esperança é saber que ao longo da história tive­mos momentos iguais e eles foram superados. Não tenho nenhuma perspectiva com relação ao fim próxim o da violência. O im portante é que o homem de boa fé acre­dite em si mesmo e procure esparram ar o exem plo da com preensão, porque a crise é fundamentalmente de ordem m oral. É somente através da compreensão espiritual que poderemos vencer uma época trágica com o esta que estamos vivendo.

Quais seriam os instrumentos dessa reforma interior do homem?

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Através de um diálogo universal, que está sendo necessário. Ainda há pouco se fa­lou do Estado, ora, o Estado também tem uma função cultural e ética, cooperando para o entendimento universal. Sobretudo quando verificam os que as Igrejas estão, às vezes, esquecidas da sua função fundam ental, pensando no social apenas, quan­do se esquecem de que o seu problema é o problema espiritual. E no mistério que talvez esteja a solução para a verdade. De maneira que esperamos que surjam inicia­tivas de corporações, de grupos humanos, no sentido da “revolução m o ra l” neces­sária. Porque não bastará o Estado, não bastará a Igreja. É um dever coletivo, dc todos, para o esclarecimento da opinião pública. E, para isso, é preciso uma corre­ção ética dos meios de comunicação. Tenho pavor da televisão, com a sua força m odeladora da opinião pública, muitas vezes feita apenas com a preocupação do populisme), daquilo que tem repercussão imediata e fascinante. Tenho a impressão de que a responsabilidade dos meios de comunicação é muito, muito grande, imensa, e nós iremos chegar ao ponto de reclam ar um controle. O term o poderá parecer um pouco forte, mas uma certa “polícia da com unicação” será necessária diante dos abusos enormes que se verificam. Essa idéia de que os próprios órgãos televisivos e de comunicação colocarão para si próprios os seus limites, parece-me otimista de­mais. É necessário com binar a boa vontade dos com unicadores com a boa vontade do poder público.

O senhor acabou de dizer que talvez o mistério seja o caminho para a verdade, e eu então perguntaria o seguinte. Como o senhor escreve em Introdução à Filosofia, a Metafísica é a “parte primeira da Filosofia, empenhada em fundar o conhecimento do universo e da vida”, sendo que a reflexão metafísica tem um caráter conjetural (“A Metafísica, dizemos nós, é conjetural, e, mais ainda, uma conjetura inevitável”). Ainda em Introdução à Filosofia, o senhor atribui um caráter parado­xal ao pensamento conjetural, pois este projeta algo “que emana indi­retamente da experiência, mas que também obedece à vis atractiva de algo que a transcende”. O que confere consistência a esse paradoxo e como ele se estrutura?

Não creio que seja possível fa lar em consistência, porque a consistência é uma pa­lavra de natureza rigorosam ente positiva. Tenho a impressão de que as afirmações referidas se põem por si mesmas. Elas se justificam pelo simples aparecer, são res­postas a perguntas que surgem a qualquer homem, mesmo aos mais infensos à .Me­tafísica. Mesmo aquele que se apega de corpo e alma ao que é científico, em um certo momento depara-se com o inexplicável, com o incognoscível, e não pode deixar de reconhecer que “algo há por trás da energia”, como dizia Einstein. Enquanto houver esse estado de espírito, haverá M etafísica, como conjetura e conjetura inevi­tável, que não se confunde com paradoxo, no sentido de argumento contraditório.

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Principais publicações:

19 4 0 Fundamentos do Direito (São Paulo: Revista dos Tribunais, 19 7 2 ) ;1 9 4 9 Doutrina de Kant no Brasil (esg.);19 5 3 Filosofia do Direito (São Paulo: Saraiva);19 6 3 Pluralismo e liberdade (São Paulo: Saraiva);19 6 8 Teoria Tridimensional do Direito (São Paulo: Saraiva);19 6 8 O Direito como experiência (São Paulo: Saraiva);19 7 7 Experiência e cultura (Barcelona/São Paulo: Grijalbo/Edusp);19 8 0 O homem e seus horizontes (São Paulo: Convívio);19 8 3 Verdade e conjetura (Rio de Janeiro: Nova Fronteira);1 9 8 7 Memórias, vol. 1: Destinos cruzados (São Paulo: Saraiva);19 8 7 Memórias, vol. 2 : A balança e a espada (São Paulo: Saraiva);19 8 8 Introdução à Filosofia (São Paulo: Saraiva);19 9 0 Nova fase do Direito moderno (São Paulo: Saraiva).

Bibliografia de referência da entrevista:

Apel, K.-O . Transformação da filosofia, Loyola.Barreto, T. Estudos alemães. Record.___________ . Estudos de Direito, Record.Costa, N. A. C. da. Ensaio sobre os fundamentos da lógica, Hucitec/Edusp.___________ . O conhecimento cientifico. Discurso Editorial.Descartes, R. Meditações, coleção Os Pensadores, A bril Cultural.Hartmann, N. Principes d ’une métaphysique de la connaissance, Paris: Aubier. Hegel, G. W . F. Ciencia de la Lógica, Buenos Aires: Solar.___________ . Estética, Lisboa: Guimarães.___________ . Princípios da Filosofia do Direito, M artins Fontes.Husserl, E. Investigações lógicas, coleção Os Pensadores, A bril Cultural.___________ . Meditações cartesianas. Porto: Res.Jaspers, K. Introdução ao pensamento filosófico, Cultrix.Kant, I. Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, A bril Cultural.___________ . Crítica da razão prática, Lisboa: Edições 70.___________ . Crítica da faculdade do juízo. Forense.M arx , K. Manuscritos econômico-políticos, Lisboa: Edições 70.Paim, A. História das idéias filosóficas no Brasil, Barcelona: Grijalbo.Popper, K. A lógica da pesquisa científica, Edusp.Radbruch, G. Filosofia do Direito, Coim bra: Arm énio Amado.Scheler, M ax. Ética, M adri: Revista de Occidente.

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HENRIQUE DE LIMA V A Z (19 2 1)

Henrique Cláudio de Lima Vaz nasceu em 1 9 2 1 , em O uro Preto (M G). Sa­cerdote jesuíta, graduou-se em Teologia e obteve o título de doutor em Filosofia pela Universidade Gregoriana de Roma. Foi professor do Instituto Santo Inácio, em N ova Friburgo (RJ), até 1 9 6 4 , quando se retirou para Belo Horizonte (MG) e in­gressou na Universidade Federal de M inas Gerais, da qual é professor titular apo­sentado. É editor da revista Síntese. Esta entrevista foi realizada em outubro de 1999 .

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm M eister em dois romances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri­meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas­se de sua formação intelectual?

Também eu, como qualquer professor, passei por duas fases: a form ação e a ativi­dade docente. M inha form ação obedeceu a um padrão tradicional. Estudei filoso­fia de acordo com a sistematização aristotélico-tom ista, vigente naquela época nas faculdades eclesiásticas. Tendo entrado para a Companhia de Jesus em 1 9 3 8 , fui aluno da Faculdade de Filosofia dos jesuítas, então sediada em N ova Friburgo, Rio de Janeiro. A form ação aristotélico-tom ista foi de grande utilidade para mim. Le­vou-me a um prim eiro contato e a uma razoável fam iliaridade com os textos clássi­cos, os latino-medievais, sobretudo Tomás de Aquino, e os gregos, sobretudo A ris­tóteles. Deu-me também uma visão orgânica da Filosofia, pois o nosso curso era organizado sistematicamente, compreendendo as disciplinas: lógica, teoria do co­nhecimento, filosofia da natureza, antropologia filosófica, teologia natural e ética.

Em 19 4 5 , logo após o térm ino da guerra, fui destinado a prosseguir os estu­dos na Europa, na Universidade Gregoriana de Roma. Ali recebi o licenciado em Teologia e iniciei o curso de doutourado em Filosofia. Tive a sorte de ter nesse curso excelentes mestres: F. Copleston, autor de uma conhecida História da Filosofia em 6 volumes, Johannes B. Lotz, professor de M etafísica e ex-discípulo de Heidegger, René x\rnou, especialista em PIotino e na filosofia grega, e que foi meu diretor de tese. M inha tese de doutourado versou sobre a dialética e a intuição nos diálogos platônicos da maturidade. Foi escrita em latim, a língua que me era mais familiar entre as admitidas para a redação da tese. Permaneceu inédita, mesmo porque a sua publicação dificilmente encontraria editores no Brasil de 1954 .

Meus anos goetheanos de peregrinação começaram por volta de 1953 . Um pequeno roteiro de peregrino: permaneci dez anos como professor em N ova Fri­burgo, em seguida vim para Belo Horizonte, depois para o Rio de Janeiro e nova-

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mente Belo Horizonte. M inha saída de N ova Friburgo, em 19 6 4 , esteve ligada aos acontecimentos políticos daquele ano e aos contatos que então mantinha com a Juventude Universitária Católica [JUC] e, posteriorm ente, com a Ação Popular na sua prim eira fase. Vim para Belo Horizonte, não só por ser a sede da província jesuítica à qual pertencia, mas também por encontrar aqui um ambiente favorável no Departam ento de Filosofia da FAFICH [Faculdade de Filosofia e Ciências Hu­manas! da UFMG, no qual fui acolhido pelo então diretor, professor Arthur Versiani Velloso. Homem independente e acima das conveniências políticas do momento, o professor Velloso recebeu-me não obstante as suspeitas que cercavam meu nome. De resto, durante os 22 anos de permanência na UFM G meu trabalho intelectual não sofreu nenhuma restrição e, ao contrário, recebeu todos os estímulos. As con­vocações que recebi durante os primeiros anos para com parecer ao Dops, ã Polícia Federal ou ao Com ando M ilitar em nada interferiram na minha tarefa de professor.

Iniciei meu magistério na FAFICH dando cursos no cam po da história da fi­losofia e, mais tarde, ministrei as disciplinas antropologia filosófica e ética. Em 19 7 0 meu trabalho intelectual recebeu um novo rumo. Naquele ano ocorria o segundo centenário do nascimento de Hegel.

Nosso departam ento com em orou essa data im portante e essas com em ora­ções levaram-me a uma aproxim ação m aior com a filosofia hegeliana. Até então meu conhecimento de Hegel estivera condicionado ã leitura de M arx nos tempos da JUC, tendo em vista a poderosa atração do marxismo sobre a juventude univer­sitária da época. O encontro, ou reencontro, com Hegel em 1 9 7 0 fez-me perceber uma profunda afinidade das minhas preocupações filosóficas com alguns aspec­tos do pensamento hegeliano. A partir de então dediquei-me, juntamente com um grupo de alunos e alguns professores, a um estudo sistemático e a uma leitura li­near dos textos principais de Hegel. Esse estudo passou a fazer parte da área “Idealismo alem ão” no Curso de Pós-Graduação quando este foi instalado, em 19 7 2 . Percorremos a Fenometiologia do espírito, a Ciência da Lógica, a Enciclo­pédia das ciências filosóficas e a Filosofia do Direito. C) estudo dos textos hege- lianos dilatou meus horizontes filosóficos, ainda circunscritos basicamente ao uni­verso aristotélico-tom ista. Essa abertura se deu sobretudo na direção do método com uma m elhor inteligência da Dialética, na direção dos problem as da história e da sociedade, particularm ente do Estado moderno e sobretudo na direção do in­tento hegeliano que mais me seduziu: a releitura da metafísica clássica nos qua­dros da Ciência da Lógica.

As vicissitudes da minha peregrinação (para ficar fiel ã história de W ilhelm Meister) a partir da década de 70 foram tranqüilas. M eu problema com os órgãos de segurança estava resolvido com o habeas corpus que havia recebido do Superior Tribunal M ilitar em 19 6 8 . Em 19 7 5 fui para o Rio, chamado a ensinar novamente na Faculdade de Filosofia dos jesuítas, que para ali se transferira. Continuei, no entanto, meu magistério na UFM G, vindo todo mês a Belo H orizonte para dar mi­nhas aulas. Na UFM G permaneci até me aposentar, em 19 8 7 . Em 1 9 8 2 , a Facul­dade dos jesuítas, também peregrinante, veio fixar-se em Belo H orizonte para inte­grar-se ao Centro de Estudos Superiores (CES) do Instituto Santo Inácio. Assim voltei à minha cidade de adoção, pois sou, com muito orgulho, natural de O uro Preto.

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Henrique de Lima Vaz: “A história tem seus desertos, assim como a geografia. Um dos de­safios mais antigos das civihzaíjões é ousar a travessia de desertos, seja geograficamente, seja his­toricamente, desertos que muitas vezes o ser humano inesmo criou”.

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Em artigo de 19 63 (“La jeunesse chrétienne à l ’heure des décisions”), o senhor escreveu: “£ necessário inicialmente que o leitor europeu se deixe convencer: é verdadeiramente de uma hora decisiva que se trata.A fase pré-revolucionária parece já tocar seu fim na maioria das na­ções da América Latina e são agora as correntes revolucionárias irresis­tíveis e profundas que levam esse continente imenso e essas populações que trazem a etiqueta de cristãs para destinos desconhecidos. Eis o que parece evidente e é preciso que os ocidentais da Europa e da América do Norte se decidam a olhar de frente essa realidade, pois é também sua própria sorte que está em jogo”. Como o senhor avalia hoje essa caracterização formulada no calor da hora no início da década de 60?

Trata-se, de fato, de uma avaliação influenciada pelo clima da época. Era uma hora de efervescência político-social, de polarizações e de engajamento, com o se dizia então. Esse clima fazia-se sentir particularm ente na juventude universitária e dele participavam os militantes da JUC. Eu era relativam ente jovem e minha visão esta­va condicionada pela exacerbação ideológica que a todos envolvia, esquerda e di­reita, e esse condicionam ento refletia-se também na minha linguagem. Nossa aná­lise, hoje devemos reconhecê-lo, estava ingenuamente equivocada no que diz res­peito às forças em confronto. Isso ficou provado nos acontecimentos de 64 , e o radicalism o da reação militar mostrou que também a direita estava persuadida da iminência de uma revolução social conduzida pelos comunistas. E nesse contexto que deve ser entendido meu texto citado.

Na década de 1960, o senhor foi uma figura de referência para os mi­litantes cristãos de esquerda, tendo elaborado um programa de refle­xão que conta com textos capitais, como “Cristianismo e consciência histórica ”, de 1961. Como o senhor vê, hoje, os rumos que tomaram as organizações católicas de esquerda após o golpe de 64?

Depois da minha vinda para Belo Horizonte, em princípios de 1 9 6 4 , meu trabalho com a JU C cessou e não tive condições para acom panhar de perto os rumos segui­dos pelas organizações católicas. Entre aquelas com as quais tivera um contato maior, a JU C deixou de existir em 19 6 5 e o M ovim ento de Educação de Base [MEB] aca­bou integrado no .Ministério da Educação. Os texros a que a pergunta se refere fo ­ram elaborados numa perspectiva de reflexão teórica de caráter geral e não se refe­riam diretamente à situação brasileira. Eram roteiros dc reflexão, não de ação, e a sua contribuição situou-se, portanto, no campo das idéias.

Num texto de 1984, o senhor afirm a ter tido alguma participação “no que se poderia denominar a pré-história da Teologia da Libertação e que vai dos fins da década de 50 até Medellín (1968)”. Em que medi da a Teologia da Libertação significou uma ruptura em relação ao pr grama de reflexão que o senhor propôs? Como o senhora avalia h-

Cham o de pré-história da Teologia da Libertação o período de polarizai gica e engajamento político descrito até aqui e durante o qual as orga Igreja reunidas na Ação Católica, sobretudo a JU C, passaram a part^- S

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mente da atividade s<')cio-política e a definir-se em face das suas expressões ideoló­gicas. Para essas organizações tratava-se, então, de uma atividade sob a responsa­bilidade imediata do laicato, embora ligada estruturalm ente à hierarquia eclesiás­tica. Após 1964 , no clima de repressão cada vez mais severa, esse tipo dc atividade tornou-se inviável. Segundo uma análise que julgo plausível, uma das conseqüên­cias da Conferência de .Vledellín. eni 19 6 8 , foi a passagem de uma militância leiga relativam ente independente, própria da Ação Católica, e que era alvo fácil da re­pressão política, para um tipo de atividade sob a tutela imediata da Igreja e sob sua responsabilidade, o que assegurava um espaço de segurança relativa ao trabalho que passou a denominar-se "pastoral” . Do ponto de vista da minha análise, a Te­ologia da Libertação, que surge naqueles anos, veio oferecer a esse novo estilo de pastoral um horizonte teórico e, se assim se pode falar, um instrumento ideológico que se pretendia eficaz. Com o o nome indica, teoria e ideologia permaneciam den­tro do âmbito da reflexão eclesial; pretendiam ser uma teologia. Nesse sentido ela situava-se num plano distinto do que fora nossa reflexão pré-M edellín, que traba­lhava com categorias filosóficas e, explicitamente, com análises sócio-econômicas. Na minha opinião, o problema inicial da Teologia da Libertação, e que permane­ceu ao longo da sua história, form ulava-se em termos de uma situação teórica am ­bígua; como fazer da teologia o instrumento de uma práxis social e, eventualm en­te, política, cujo objeto exigia um tipo de análise econômica e sócio-política que a teologia, por definição, não pode fornecer? Foi a partir desse problema que, a meu ver, form aram -se diversas correntes dentro da Teologia da Libertação, tendo algu­mas delas optado por uma chamada “análise m arxista” então vulgarizada na Am é­rica Latina. Tratei desse tema num texto intitulado “Cristianismo e utopia”, pu­blicado como “Anexo V ” no livro Escritos de Filosofia I (São Paulo, Loyola, 1986 , pp. 2 9 1 -3 0 2 ) . No fundo, foi essa situação teórica ambígua que me manteve afasta­do da Teologia da Libertação.

O debate cristão das décadas de 19S0 e í 9 6 0 nos parece marcado por autores como J. M aritain, Teilhard de Chardin e E. Mounier. Como o senhor caracterizaria as diferenças que separam a sua reflexão da de­senvolvida por esses importantes autores?

Jacques .VIaritain foi talvez o intelectual católico mais influente do seu tempo. O valor e importância do seu pensamento podem ser medidos pelo fato de que essa influência continua viva, como atestam os Institutos Jacques M aritain em vários países do mundo, inclusive no Brasil, fundado em São Paulo pelo saudoso Franco .Víontoro. Foi um filósofo tomista rigoroso e, ao mesmo tempo, aberto a rodos os horizontes da cultura. Tive o privilégio de encontrar-m e com ele em Roma quando era em baixador da França junto ao V'aticano. Para nós, na década de 60 , o aspecto discutível do pensamento político m aritaineano era a idéia de uma nova sociedade vitalmente cristã, uma nouvelle chrétienté, mas que guardava vários traços de uma imagem até certo ponto idealizada da cristandade medieval. Diferente era nossa posição diante de Teilhard de ('hardin. Do ano da sua morte, 19 55 , até mais ou menos 1965 , ã medida que eram publicadas as suas obras, Teilhard conheceu uma enorme audiência na França e em quase todos os países. Seu pensamento exercia

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uma grande atração por representar uma tentativa audaciosa de síntese que abrangia ciência — ele era um paleontólogo dc profissão — , filosofia e religião. Esse pensa­mento era caracterizado por um grande otimismo cósmico e histórico regido pela idéia de uma evolução universal, por uma visão de extraordinária amplitude e pelo lugar central que atribuía ao Cristianism o na história e no destino final da humani­dade. Era, por outro lado, transm itido num estilo vibrante, de grande intensidade poética, que prendia e seduzia o leitor. Nossa geração leu avidamente Teilhard e eu mesmo li praticamente todas as suas obras. M as minha form ação estritamente filosófica e os problemas de natureza especificamente filosófica que me ocupavam caracterizavam um estilo de pensamento diferente do pensamento teilhardiano. Creio que a presença dc M ounier, cujos livros eram também leitura quase obrigatória, foi, antes de tudo, a presença de um modelo. Ele soube unir reflexão e ação sob a inspiração de uma doutrina ao mesmo tempo com unitária e personalista, e aqui residia, parece-me, o segredo da atração por ele exercida sobre a juventude univer­sitária cristã.

No ensaio “O Absoluto e a H istória”, que encerra o livro O ntologia e História, de 1968, a sua reflexão sobre o homem tem como ponto de partida e eixo central a noção de consciência. Já na Antropologia filo­sófica, de 1993, essa noção não parece ter uma importância tão gran­de. O senhor diria que há a í alguma guinada conceituai relevante?

Convém dizer inicialmente uma palavra sobre a origem do livro Ontologia e His­tória. Sua publicação deve-se ã iniciativa de alguns estudantes dominicanos que então trabalhavam na Livraria Duas Cidades. Reúne artigos publicados entre 19.53 e 1963. Com o o título indica, alguns desses artigos tratavam de problemas de Ontologia (1"' parte), outros de problemas de filosofia da História (2'* parte). O capítulo “ O Absoluto e a H istória” foi escrito ad hoc, como fecho do livro. Na época trabalhá­vam os intensamente com a categoria de “consciência histórica”, que é o conceito central da segunda parte do livro. A ênfase na noção de “consciência” como prin­cípio provinha também do confronto crítico com uma certa concepção marxista da chamada “consciência-reflexo” . De Ontologia e História a Antropologia filosófi­ca há um bom caminho andado. Para mim o clima intelectual havia mudado e o diálogo com Hegel tornara-se prioritário. Na Antropologia filosófica a noção de consciência cede lugar ã noção mais abrangente do Eu (em sentido fenomenológico- dialético, não psicológico) enquanto momento mediador entre o que nos é dado como natureza e o que é por nós significado como forma. Em outras palavras, o Eu opera no ser humano a passagem dialética entre o que ele simplesmente é e a sua auto-expressão, ou seja, a significação com que ele se anuncia na sua identida­de propriam ente humana, na sua ipseidade, para fa lar como Ricoeur. O conceito de expressividade, cuja origem se deve a J. Ci. Herder e foi retom ado por Hegel e recentemente posto em circulação por Charles T aylor, é o conceito propriam ente fundacional da Antropologia filosófica (ver vol. 1, pp. 162-7). A idéia de consciên­cia reaparece aqui com o uma das vertentes constitutivas da categoria do espírito {ibid., pp. 2 1 1 -2 ) , integrada na dialética mais am pla da auto-expressão do ser hu­mano com o espirito.

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Seria possível fa la r de uma “filosofia brasileira”? Como o setthor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Tratei desse tema em artigo intitulado “ O problema da filosofia no Brasil”, na re­vista Síntese 30 (1 9 8 4 , pp. 11-25). Inspiro-me ali num topos hegeliano conhecido.

filosofia não nasce por geração espontânea no seio de um mundo cultural. Uma cultura nacional não produz filosofia por decreto. O nascimento da filosofia obedece a condições culturais que foram justamente descritas por Hegel e que se traduzem por uma ruptura no mundo da cultura, até então relativam ente homogêneo no que diz respeito às suas certezas fundamentais. O caso paradigmático é o do nascimento da filosofia na Grécia do século V’l a.C., amplamente estudado. A filosofia passou a ser uma prática cultural que vem caracterizando a história da cultura do Ocidente nesses 2 6 séculos que nos separam da sua origem. Nas sociedades ocidentais tradi­cionais, a filosofia passou a ser uma form a privilegiada de e.xpressão dos problemas da cultura, e foi assim que veio a tornar-se como que o centro da enciclopédia dos saberes superiores. Nos países periféricos como o Brasil a filosofia não podia de início articular-se organicamente com a cultura, que não com portava ainda esse tipo de ex­pressão da sua vida, ainda em estágio pouco desenvolvido. Nessa espécie de pré-histó- ria, a filosofia entre nós era apenas um ornam ento literário ou objeto de curiosida­de de alguns intelectuais. Creio que essa situação começa a mudar, juntamente com as mudanças da própria sociedade brasileira, a partir da década de 20. Hoje a prá­tica da filosofia parece integrada no exercício normal da nossa cultura superior, isso porque sociedade e cultura atingiram um nível de desenvolvimento e complexidade que oferece à reflexão filosófica um amplo campo temático. No artigo a que me refe­ri, enumero três desses temas que com portam e, mesmo, exigem um tratam ento fi­losófico. O primeiro é o tema da tecnociência, implicado no desenvolvimento cien­tífico e tecnológico da sociedade. A reflexão filosófica sobre a ciência e a técnica sob o ponto de vista lógico-epistemológico, ético e político responde a uma exigência do estágio histórico da nossa sociedade. Em segundo lugar cito o tema da sociedade e do Estado, ou seja, os problemas da filosofia social e política que respondem, sem dúvida, a situações concretas vividas pela sociedade brasileira nessas últimas décadas e que oferecem um conteúdo real ao exercício da reflexão filosófica entre nós. Em terceiro lugar menciono os temas éticos propriamente ditos, ou seja, que dizem respei­to a fins, valores, normas de conduta, em suma, a form as de agir especificamente éticas. Com o é notório, as sociedades ocidentais vivem, nesse fim de século, uma ge­neralizada crise ética que se traduz em formas anômicas de comportamento, num per- missivismo sem limites de atitudes e condutas, denotando uma grave perda de refe­rências éticas nos indivíduos e na sociedade como um todo. Esse tipo de crise recla­ma o exercício de uma reflexão centrada sobre o problema dos valores e sobre a idéia de uma práxis correspondente a uma escala dc valores racionalmente estabelecida. Essa a lição que nos ficou da crise de Atenas no século V a.C., e da iniciativa socrática ao fundar a Ética como ciência. Mutatis mutandis nossa situação tem muitas analo­gias com a situação da Atenas de Sócrates, e a reflexão sobre os problemas éticos é, para os nossos filósofos, como o foi para Sócrates, um imperativo eminentemente ético. Podemos concluir que a filosofia no Brasil de hoje não é um hobby para intelec­tuais. É uma forma importante e mesmo necessária de participação social e política.

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o senhor nos mostra que a filosofia não pode estar entre os hens de con­sumo de massa, corriqueiros na nossa sociedade. No entanto, para o senhor, a posição da filosofia no interior da instituição universitária é paradoxal, pois a universidade está ela própria irremediavelmente vin­culada à cultura de massa. Significa isso, na sua visão, que a filosofia em sentido pleno desapareceu ou está em vias de desaparecer?

Tratei do problema da relação entre Filosofia e Universidade na conclusão de uma aula inaugural no IFAC, da Universidade Federal de O uro Preto (ver “Cultura e Filosofia”, Escritos de Filosofia 111, São Paulo, Loyola. 19 9 7 , pp. 8 1-99 ), e na qual a pergunta se inspirou. Ali distingo dois aspectos da presença da Filosofia na Uni­versidade: o aspecto institucional, que assegura a legitimidade social da prática da filosofia como fazendo parte da enciclopédia dos saberes superiores reconhecidos pela instituição universitária; e o aspecto crítico, que, de alguma maneira, confere à filosofia um lugar singular dentro da universidade, na medida em que ela se cons­titui, pela sua própria natureza, como instância crítica na qual são — ou devem ser— permanentemente avaliados os fins e o desempenho da Universidade como ge­radora de cultura. F.ssa atividade da filosofia, essencialmente o ato mesmo de filo ­sofar, não é regida pelos parâmetros de utilidade social imediata como o são os outros saberes universitários. Mas é nessa gratuidade do filosofar que reside sua significa­ção, inclusive social. Com efeito, a cultura tem uma dimensão de livre criação que tem em si mesma sua razão de ser. Na Universidade, assim penso, essa dimensão está representada principalmente pela Filosofia — e pelas Artes.

Que conceito(s) da sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

Eis uma pergunta que dificilmente poderá ser respondida em poucas palavras. Ini­cialmente devo dizer que não acredito numa filosofia, no fundo, de cunho empirista, que seja apenas um com entário, por mais sofisticado que seja, dos eventos de uma realidade sempre em mudança, sejam esses eventos de natureza político-social, cien­tífica, ou mesmo eventos de alguma moda cultural. Ligo-me a uma tradição para a qual a filosofia eleva-se, como que por um movimento inato à sua natureza, sobre o transitório e o événementiel t procede ã busca de princípios que são também fun­damentos. Em outras palavras, só entendo a filosofia como “ fundacionista”, para usar um term o hoje em moda. Nesse sentido, os conceitos representativos da mi­nha posição filosófica, ao longo da sua evolução, são conceitos “fundacionais", se assim posso falar. Eis alguns: inicialmente o conceito de “ato de existir” (esse) re­cebido de Tomás de Aquino e de alguns dos seus com entadores recentes (E. Gilson e outros), e que para mim é a pedra angular da .Metafísica, ã qual tenho voltado em textos recentes. Em seguida citarei o conceito fundamental da Antropologia fi­losófica, ou seja, o “ato de existir” do ser humano enquanto capaz de significar-se a si mesmo ou do ser humano enquanto expressividade. A Metafísica e a A ntropo­logia filosófica abriram -m e o caminho para a Ética, disciplina que tenho ensinado nos últimos anos. O conceito fundam ental aqui, recebido de Platão e Aristóteles, é o conceito de Bem, que se apresenta com o conceito metafísico, sendo um conceito

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transcendental coextensivo com o ser, e como conceito antropológico, definindo como Fim a estrutura tcleológica do ser humano como ser que se autodetermina para o Bem. Esses dois conceitos fundamentais, antropológico (Eu com o expressi­vidade) e ético (Bem), guiaram-me na redação dos dois textos. Antropologia filo­sófica (2 vols.) e Introdução à Ética filosófica (2 vols.), que publiquei recentemen­te. Penso que os conceitos que chamo “fundacionais”, presentes já desde o início no núcleo básico das idéias filosóficas nas quais fui form ado, foram sendo ex­plicitados e adquirindo uma estrutura form al mais definida ao longo do meu m a­gistério e do trabalho da preparação dos meus cursos. Aqui está realmente o roteiro da form ação das minhas idéias filosóficas fundamentais.

Segundo sua opinião, a enorme e crescente produção bibliográfica no campo da Ética surge como contrapartida ao relativismo universal e ao hedonismo que não conhecem limites e que são “os padrões de ava­liação do comportamento hoje dominantes e cujos efeitos devastado­res na vida dos indivíduos e das sociedades nos surpreendem e inquie­tam ”. Na sua visão, quais as causas que nos trouxeram a tal situação?

Segundo uma análise que me parece fundamentalmente correta, na raiz da situa­ção acima descrita está o fenômeno, já entrevisto por Bergson, de um desequilíbrio ou descompasso entre o que chamamos a produção material da sociedade e seu universo simbólico. Temos de um lado o crescimento vertiginoso da tecnociência, e, na sua esteira, a produção incessante e exponencialmente crescente de objetos que passam a ocupar quase totalmente o mundo humano, tornando-o cada vez mais um mundo de artefatos. A essa invasão do artificial corresponde, nos indivíduos e na sociedade, o aparecimento de mecanismos sempre mais aperfeiçoados de utili­zação. O útil erige-se em categoria primeira e quase exclusiva da prática social. O ra, o útil não pode, por definição, sendo condicionado pelo objeto por ele visado, de­sejado ou possuído, presidir ao universo simbólico do ser humano onde estão pre­sentes fins, normas e valores irredutíveis ao critério da simples utilidade. Negá-lo seria fazer do ser humano apenas o sujeito inquieto de desejos sem fim, aprisiona­do ã lógica do consumo e da satisfação e sem outra finalidade superior na sua exis­tência. Regido pela categoria do útil, o universo simbólico no qual se exprimem nossas razões de viver seria apenas a versão ideológica do universo material dos objetos oferecidos ao consumo. E essa a face mais visível do nosso mundo “glo­balizado” e é para ela que se voltam as reflexões de filósofos, m oralistas e de todas as pessoas lúcidas que se preocupam com o futuro da civilização. Essas reflexões são necessariamente de natureza ética e daí a atualidade onipresente da Ética.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

A permanência dessa relação está atestada pela importância da filosofia das ciências no currículo das disciplinas filosóficas e pelo fato de que os mais conhecidos filó­sofos da ciência se encontram entre os grandes nomes da filosofia contemporânea. A relação filosofia-ciência adquiriu nova feição com relação ao que fôra nos tem­

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pos pré-kantianos, quando o positivismo clássico evoluiu para a Epistemologia, nos fins do século passado, desta procedendo o impulso que levou ao desenvolvim ento da Lógica, da teoria dos fundamentos da M atem ática, em suma, de todo um es­pectro de metaciências que mantêm estrita relação com a filosofia.

Desde Hegel, no séctdo XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate?

Devo dizer inicialmente que a Estética e a Filosofia da Arte não entram no meu campo de estudos e interesses, mesmo porque não reconheço em mim quaisquer dotes a r­tísticos. As Lições de Estética permaneceram fora da minha exploração sistemáti­ca da obra de Flegel. No entanto creio ter fundam ento a visão hegeliana sobre o destino da arte nas nossas sociedades. Flá uma diferença radical entre o estatuto social da produção artística nas sociedades antigas e o que é, hoje, o mundo das artes. A arte antiga estava organicam ente integrada a algumas das necessidades sociais básicas, a serviço, por exemplo, da religião, da política ou do prestígio social, como no mecenatismo. A arte moderna foi, de alguma maneira, cooptada pelos me­canismos de produção e consumo da sociedade industrial e, portanto, posta a ser­viço de necessidades subjetivas do consumidor individual. Esse não é um juízo sobre o conteúdo estético da obra de arte ontem e hoje, mas sobre a sua relação com a so­ciedade. Só o futuro dirá qual será a situação da arte nas sociedades do século XXI.

E hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fenômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evi­dente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violên­cia. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem re­lação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

.\ pergunta refere-se a um problema que começou a delinear-se nas sociedades oci­dentais a partir do século XVIII. A paz universal e perpétua implica um Estado uni­versal? Com o é sabido, a dialética do Espírito objetivo em Hegel descreve o desen­volvim ento do Espírito na história, culminando no Estado Nacional pós-revolucio- nário sob a forma da monarquia constitucional. Daqui as reticências hegelianas com relação a um Estado universal. A história recente parece não dar razão a Hegel, no sentido de que vemos acumularem-se os fatores que apontam na direção de um Es­tado mundial e que dizem respeito sobretudo à crescente interdependência entre as nações e ao correspondente enfraquecimento do perfil institucional das identida­des nacionais. Com o conseqüência, é natural que se multipliquem insrãncias jurí­dicas supranacionais, como vemos atualm ente, e que a adm inistração da justiça e o exercício legítimo da coação dei.xem de ser privilégio do poder nacional. Tanto mais que aspirações de conteúdo ético indiscutível, como as que se referem aos di­reitos humanos, à justa distribuição dos recursos naturais, à participação eqüitati- va nos benefícios do progresso e outras, postulam organismos supranacionais que

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velem sobre a eficaz satisfação dessas aspirações. Eis porque, segundo me parece, a discussão sobre os problemas políticos dc uma possível comunidade mundial esta­belecida juridicamente em analogia com os Estados nacionais dá primazia atual­mente aos problemas ético-jurídicos. De qualquer maneira penso haver ainda um longo cam inho a andar para chegarmos a um Estado mundial autêntico, se ele um dia vier a realizar-se. Os ensaios presentes de união das nações, como na União Eu­ropéia, dão ênfase aos laços econômicos. Será esse o m elhor começo para se che­gar a um Estado supranacional eticamente saudável?

As avaliações sobre o relativamente longo pontificado de João Paulo II variam entre dois extremos. De um lado temos uma avaliação segun­do a qual João Paulo II teria salvado a Igreja de um processo destruti­vo de dessacralização então em curso, repondo o sagrado na devida distância exigida pela fé. De outro lado, uma avaliação oposta enten­de que o pontificado de João Paulo II representou um recuo nocivo dian­te do movimento emancipador que pretendia uma sólida e saudável união de fé e política. Qual a sua posição diante desses diagnósticos?

Devo dizer, em prim eiro lugar, que não disponho da soma de informações neces­sária para uma avaliação objetiva, em termos históricos, dos 22 anos desse ponti­ficado, avaliação, aliás, que deve levar em conta a personalidade excepcional de João Paulo II. Seja como for, creio que a dicotomia enunciada pela pergunta supõe uma visão simplista e, no fundo, equivocada. Comecemos pela pessoa de João Paulo II, um homem que reúne a herança religiosa e cultural das suas origens operárias e a form ação de alto nível de um professor de Filosofia numa das mais respeitadas universidades polonesas. Com o filósofo de filiação fenomenológica (escreveu tese sobre M ax Scheler), João Paulo II possui uma vasta cultura filosófica de conteúdo moderno, além da cultura teológica da sua form ação eclesiástica. Com o papa, seu ensinamento e sua ação não podem ser encerrados no dilema simplista da pergun­ta. Creio que um princípio mais acertado de análise levaria a considerar o pontifi­cado de João Paulo II nas suas duas faces: a face voltada para a vida interna da Igreja e a face voltada para os problemas do mundo: ad intra e ad extra, como se dizia no latim escolástico. Pois bem: em nenhum desses campos consigo ver um retrocesso. No prim eiro, o que João Paulo II fez foi retom ar e dirigir firmemente o processo dc atualização (aggiornamento) das estruturas e da vida da Igreja iniciado pelo C on­cílio Vaticano II e que fora continuado por Paulo \T em meio a tendências desa- gregadoras que se manifestavam aqui e ali. Quem vive a vida interna da Igreja sabe que não houve retrocesso a não ser, evidentemente, do ponto de vista dos protago­nistas daquelas tendências. Com relação à sua atividade ad extra, a presença de João Paulo II no mundo do nosso tempo é, indiscutivelmente, uma presença de extraor­dinária significação. Nenhum outro papa, talvez, esteve tão pre.sente em campos tão diversos da história do seu tempo quanto o atual pontífice, e provavelm ente ne­nhum dos grandes atores políticos contemporâneos alcançou uma visão tão uni­versal, tão rica e tão realista do nosso mundo quanto esse papa itinerante que visi­tou os cinco continentes. Por outro lado ele é, sem dúvida, o m aior artífice do m ovim ento atual do diálogo das religiões, movim ento que tem não apenas uma

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significação religiosa, mas um alcance histórico de extraordinária importância. Em suma, João Paulo II é uma das maiores figuras do século X X , e assim, tenho certe­za, o consagrará a história futura.

O senhor nos apresenta o conflito ético como “fenômeno constitutivo do cthos”. Constitutivo a ponto de podermos afirm ar que “somente uma personalidade ética excepcional é capaz de viver o conflito ético nas suas implicações mais radicais e tomar-se anunciadora de novos paradigmas éticos, como foi o caso na vida e no ensinamento de Buda, de Sócrates e de Jesus”. Podemos esperar o surgimento de uma nova personalidade ética como a de Jesus? Ou nossa condição de “Antigonas” modernas veio para ficar?

O fato de ser o ethos um fenômeno histórico-social inerente à própria estrutura do grupo humano, impõe-lhe essa condição própria de toda realidade histórica que é estar submetida à ação corrosiva do tempo. No caso do ethos essa ação se faz sen­tir sobretudo na perda ou enfraquecimento da credibilidade e da eficácia da sua função norm ativa. Daqui a crise do ethos e o aparecim ento do conflito ético, que não é um problema dos indivíduos tom ados isoladamente, mas um estado espiri­tual da sociedade. V iver esse conflito e atingir suas raízes é próprio dessas persona­lidades éticas excepcionais, com o as que foram lembradas. Do ponto de vista da fé e mesmo talvez de uma análise histórico-cultural, o caso de Jesus é único. Não creio que uma nova personalidade ética como a de Jesus possa surgir. Ele é um ephápax, segundo a expressão grega usada pelo N ovo Testamento, ou seja, “o que acontece uma só vez” . O que é possível depois de Jesus é a observância radical do novo ethos por ele proposto — o ethos evangélico — , o que permite o aparecim ento de perso­nalidades éticas que se aproxim am daquele M odelo único: com o Francisco de As­sis, no século XIII, e Teresa de Calcutá, em nosso tempo. Esses exemplos mostram que não é necessário que nos resignemos ã condição de Antigonas modernas.

Como o senhor descreveria a sua própria vivência do conflito ético? Como ela surge na vida sacerdotal que o senhor abraçou?

Nosso tempo, vamos repetir mais uma vez, é um tempo de crise ética generalizada e, por conseguinte, de agudos conflitos éticos. No conflito ético, a vivência individual é, de certa maneira, irrelevante. O que conta é a capacidade de descer até suas raízes, não puramente por uma análise teórica, mas por uma forma de experiência criadora que permite a proposição de um novo ethos, isto é, de um novo sistema de valores, normas e fins. Evidentemente, não é essa minha vivência dos conflitos éticos do nosso tempo. Posso dizer que esses conflitos éticos não se apresentaram a mim sob a form a de um questionamento da minha opção de vida com o sacerdote católico. Situo-me, aqui, ou procuro situar-me na linha da criação ética de Jesus — do seu Evangelho — , que para mim tem um valor permanente, e isso não somente em virtude da sua origem divina reconhecida pela fé mas também da sua eficácia histórica. M inha participação nos conflitos éticos da sociedade em que vivo assumiu duas formas: na linha da ação, com o foi o caso, por exem plo, da minha presença, aliás m o­destíssima, na conflitiva situação brasileira pré-64; e na linha da reflexão, que prosse­

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gue até hoje no exercício do magistério e nas investigações com que me ocupo, sobretudo no campo da Ética, e que procuro traduzir e comunicar em artigos e livros.

Como o senhor caracterizaria sua relação com a religião e a fé?Permito-me observar que não se trata propriam ente de relação, pois a religião e a fé não são para mim algo e.xtrínseco, com o qual me relacione, \e las vivo e delas me ali­mento espiritualmente. A pergunta tem em vista, naturalm ente, a compatibilidade entre as minhas convicções religiosas e a minha profissão de filósofo e professor de filosofia. Posso afirm ar que não experimentei conflitos interiores a esse respeito, pois desde o início guiei-me pela diretriz de Santo Agostinho, que conheci ainda estudante de filosofia e que João Paulo II repete na sua encíclica Fides et Ratio: “crê para enten­deres e entende para creres”. Essa dialética agosriniana entre fé e razão assegurou para mim uma convivência fecunda entre a fé que professava e a razão que praticava. Meu trabalho filosófico mantém-se rigorosamente dentro das exigências metódicas e dou­trinais da razão e todas as vezes em que atinge as fronteiras onde a razão se encontra com a fé essa linha divisória é explicitamente traçada. Convém ainda acrescentar que, não obstante um estereótipo corrente, a liberdade intelectual dentro da Companhia de Jesus é, atualmente, bastante grande, üm exemplo é a encíclica Fides et Ratio, que veio atender a questões com as quais me ocupava recentemente, por exemplo quanto às relações entre fé e metafísica e que, no entanto, sofreu restrições por parte de outros jesuítas, entre eles o padre Joseph .VIoingt, considerado o mais importante teólogo jesuíta francês atual. Essa temática guiou-me, de resto, na organização do meu livro Escritos de Filosofia I: problemas de fronteira (1"’ ed., São Paulo, Loyola, 1986).

Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudançade paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafisica” calcadana linguagem?

A pergunta suporia uma discussão preliminar sobre o uso da noção de “paradigm a” na historiografia filosófica, que evidentemente não cabe aqui. De qualquer manei­ra, não vejo como as recentes filosofias da linguagem possam constituir um novo paradigma filosófico em substituição à M etafísica. Em prim eiro lugar porque a própria M etafísica pode ser interpretada com o uma filosofia da linguagem, não no sentido óbvio de que tudo é linguagem, mas enquanto constitui uma form a especí­fica de linguagem com seu código semântico próprio e as regras definidas do seu uso, e isso pelo menos desde Aristóteles. Seria necessário que se provasse que a lin­guagem metafísica com o tal é destituída de sentido ou tneanmgless. Na minha opi­nião o positivismo lógico, que se propôs fornecer essa prova, não o conseguiu ape­sar dos esforços de Carnap. Em segundo lugar porque à filosofia da linguagem como ersatz da Metafísica aplica-se o mesmo argumento de “reto rsão” que Aristóteles empregou no Protrético contra os negadores da Filosofia: não se substitui a M e­tafísica senão com outra M etafísica. A expressão "pós-m etafísica” tem pois, essa sim, todas as chances para ser uma e.xpressão meaningless. De resto, é visível na filosofia contem porânea, mesmo entre os cultores da filosofia da linguagem, um reaparecim ento de problemas de natureza metafísica que somente um pensamento metafísico que se reconheça com o tal pode equacionar corretam ente.

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o senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever a sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

O conceito de utopia não pertence ao meu universo filosófico e, por isso mesmo, julgo-me dispensado de discorrer sobre o que seria minha visão utópica do futuro. Nesse ponto sigo a lição de Hegel: a filosofia trata do que é; o que será fica para os profetas. Reconheço que o conceito de utopia tem sido, na história intelectual e política do Ocidente, uma matriz fecunda de modelos ideais de sociedade que cum­prem uma im portante função histórica com o alim ento dessa reserva de esperança sem a qual dificilmente a humanidade prosseguiria seu caminho rumo a um futuro que se espera melhor. Talvez possamos pensar a utopia em analogia com a “idéia reguladora” kantiana: necessária para orientar a marcha da história, mas inal- cançável por definição. No contexto atual da mundialização, a situação da idéia de utopia parece problemática. De um lado ela continua alimentando o que se pode denominar a “reserva utópica”, provavelm ente indispensável em meio às distorções de todo tipo que se observam nessas nossas sociedades em acelerado processo de mudança. De outro lado, a própria com plexidade do corpo social e o número de problem as e desafios cuja face muda rapidamente tornam muito difícil a form ula­ção de utopias que conservem uma relação qualquer, seja ela negativa ou positiva, com as sociedades modernas extremamente com plexas. Esse talvez seja um aspec­to não devidamente considerado pela Teologia da Libertação ao propor aquela que considero sua utopia político-religiosa.

O senhor vê no marxismo um desenvolvimento histórico concreto em que os elementos utópicos acabaram por sufocar a raiz humanista do pensamento de Marx. Essa é uma caracterização que pode ser aplica­da a outros fenômenos históricos? O preço a pagar pela pretensão de realizar utopias é necessariamente o Terror?

Creio que as lições da história não deixam dúvidas a esse respeito. O ideal utópico, por definição — autodefinindo-se um "sem lugar” na história real — , deve neces­sariamente abrir seu caminho pela violência sem normas, pois uma norma suporia uma certa aceitação da realidade existente. Assim, a utopia é historicamente a matriz do T error, com o confirm am exemplos recentes e, de modo paradigm ático, o caso do Camboja.

Há progresso na história?Num sentido linear ou simplesmente cronológico, o progresso na história é evidente. Tanto no sentido da cultura material quanto no da cultura simbólica. Há uma dis­tância imensa, que os antropólogos, entre eles o nosso Darcy Ribeiro, tentam o r­denar em sucessivos estágios, entre nossos antepassados que iniciavam o caminho para a hom inizaçào biológica e a humanização cultural, e o homem da civilização científico-tecnológica. M as, por convenção historiográfica, a história propriam en­te dita tem início com a invenção da escritura, há cerca de 3 .0 0 0 anos a.C. A partir desse evento inaugural da história a humanidade passa a dispor de um parâm etro privilegiado, primeiro instrumento da ciência histórica, para medir, através da me­mória escrita das civilizações, seus avanços, estagnações e decadência, em suma o

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ritm o do seu progresso. Como quer que seja, participo da idéia-base do otimismo de Teilhard de Chardin de que, sem a consciência do progresso, há muito a hum a­nidade teria perdido suas razões e seus estímulos para viver, isto é, para sobrevi­ver. Acrescento, com Hegel, que o conteúdo m aior dessa consciência do progresso é a liberdade, no sentido de que, em face dos obstáculos que se levantam no curso da sua história, o ser humano experimenta a capacidade de responder ao desafio a partir de um am plo leque de alternativas em que ele afirm a, em prim eiro lugar, o senhorio de si mesmo (o livre é “em razão de si mesmo", diz Aristóteles) e, em se­gundo lugar, sua transcendência sobre a natureza.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar­ga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais problemas?

Não tenho competência para avaliar os aspectos técnicos desses fenômenos, sobre­tudo o com plexo e desafiador problema das drogas, mas vejo-os com a inquieta­ção profunda que deve tom ar conta de toda pessoa consciente ao considerá-los nos seus efeitos mais visíveis e devastadores. Não devemos nos esquecer, por outro lado, que já a pré-história nos atesta a presença do ser humano como animal gratuita­mente agressivo e depredador. A história tem seus desertos, assim com o a geogra­fia. Um dos desafios mais antigos das civilizações é ousar a travessia de desertos, seja geograficamente, seja historicamente, desertos que muitas vezes o ser humano mesmo criou. Nossa civilização dispõe de todos os recursos, técnicos, políticos e éticos, e é capaz de form ular estratégias que conjurem um triste destino de criado­ra de desertos. Às sociedades e aos seus responsáveis cabe decidir.

i\ 'o ensaio “Filosofia e Cultura: perspectiva histórica” o senhor afim ta;“Pensar a Liberdade ou unir dialeticamente Liberdade e Razão, eis aúnica tarefa da filosofia”. O senhor poderia explicar essa afirmação?

Creio que essa afirm ação pode ser explicada seja do ponto de vista histórico, seja do ponto de vista teórico. Historicamente, sabemos que toda a história da filosofia é atravessada por uma tensão profunda e de certo modo elementar entre a tendên­cia a dar primazia ã razão e a tendência oposta, que privilegiava a liberdade. Para simplificar diríamos que a tensão entre intelectualismo e voluntarismo constitui uma das chaves historiográficas clássicas para a classificação dos sistemas ao longo da história da filosofia. A descoberta grega da razão dem onstrativa manifestou logo na atividade racional os dois predicados da necessidade e da universalidade, de sorte que toda a realidade ficasse a eles submetida numa nova form a de destino, um des­tino luminoso. M as a esse novo destino, como ao antigo destino cego, a liberdade mostrou-se irredutível. Com o encontrar um lugar para a liberdade no universo da razão? Eis o desafio m aior e, dc certo m odo, a tarefa única da filosofia, pois trata- se de um problema que tem repercussões imediatas e decisivas na antropologia fi­losófica, na ética, na política, nas concepções, em suma, do universo, do ser huma­no e de Deus. Para o Cristianism o, esse tornou-se, a partir sobretudo de Santo Agostinho, um problema fundamental para a reflexão teológica, pois a fé se apre­senta como uma “geratriz de razão”, no dizer de E. Gilson: Crede ut intelligas. Ele

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encontrou uma solução genial em Santo Tomás de Aquino, no qual nos inspiramos na nossa Antropologia filosófica, vol. 1. Pensar a liberdade foi, talvez, o leitmotiv m aior do filosofar hegeliano, como procuram os m ostrar no capítulo sobre a Ética de Hegel, na Introdução à Ética filosófica I (pp. .371-400). Assim, penso estar ex­plicada a afirm ação citada na pergunta.

Principais publicaç(3es:

19 6 8 Ontologia e História (São Paulo: Duas Cidades);1986 Escritos de Filosofia 1: problemas de fronteira (São Paulo: Loyola);1991 Antropologia filosófica I (São Paulo: Loyola);19 9 2 Antropologia filosófica II (São Paulo: Loyola);1993 Escritos de Filosofia II: Ética e cultura (São Paulo: Loyola);19 9 7 Escritos de Filosofia III: filosofia e cultura (São Paulo: Loyola);19 9 9 Escritos de Filosofia IV: introdução à Ética filosófica I (São Paulo: Loyola);2 0 0 0 Escritos de Filosofia V: introdução à Ética filosófica II (São Paulo: Loyola).

Bibliografia de referência da entrevista:

Agostinho. Confissões, Vozes.Aquino, T. de. Suma teológica. Livraria Sulina.___________ . O ente e a essência. Vozes.Aristóteles. Metafísica, M adri: Editorial Credos.___________ . Ética a Nicômaco, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Bergson, H. Dos fuentes de la moral y de la religion, .VIadri: Tecnos.Carnap, R. Coleção Os Pensadores, A bril Cultural.Chardin, T. de. O fenômeno humano, Cultrix.Gilson, E. e Boehner, Ph. História da filosofia cristã. Vozes.Hegel, G. W . F. Ciencia de la Lógica, Buenos Aires: Solar.___________ . Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio, Loyola.___________ . Estética, Lisboa: Guimarães.___________ . Fenomenologia do espírito. Vozes.___________ . Princípios da Filosofia do Direito, M artins Fontes.Kant, 1. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Brasiliense. M aritain, J. A filosofia moral: exame histórico e crítico dos grandes sistemas. Agir.___________ . Por um humanismo cristão, Paulus..Vlarx, K. O Capital, coleção Os Economistas, A bril Cultural.M ounier, E. Sombras de medo sobre o século XX, Agir.Platão. A República, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.___________ . Diálogos, coleção Os Pensadores, Abri! Cultural.Ricoeur, P. Le Soi-Même comme un autre, Paris: Seuil.T aylor, Ch. Sources o f the self: the making o f modern identity, H arvard Universit}'

Press.

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GERD BORNHEIM (1929)

Gerd Bornheim nasceu em 19 2 9 , em Caxias do Sul (RS). Graduou-se em Fi­losofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde obteve também o títu­lo de livre-doccnte em Filosofia. Professor cassado em 19 6 9 , fixou-se no Rio de Ja ­neiro depois de tem porada na Europa. É professor titular aposentado da Universi­dade Federal do Rio de Janeiro. Esta entrevista foi realizada em janeiro de 2 0 0 0 .

(joethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri­meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas­se de sua formação intelectual?

Eu sou gaiicho. Na época da universidade, reinava um tipo de filosofia que hoje está quase esquecida aqui no Brasil — o tomismo. Isso me deu uma base medieval e grega bastante sólida. C laro que para mim o tomismo está totalm ente ultrapas­sado, mas, com ele, tive a vantagem de ter uma espécie de form ação clássica, e a desvantagem de ter um tipo de ensino completamente alheio aos problemas con­temporâneos.

O senhor chegou a freqüentar seminário? Como foi o seu contato com o tomismo?

Não. Na verdade, a minha intenção prim ordial era fazer psiquiatria, e, antes disso, queria adquirir cultura. No entanto, a form ação que se tinha na universidade era muito especializada: era necessário estudar línguas, inclusive o grego, um pouco de literatura, e, evidentemente, eu lia tudo o que podia. Queria com plementar essa form ação com uma consciência social — digamos assim — voltada para o pensa­mento sociológico. M as os cursos de sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, não aconteciam todos os anos, devido a terem pouca procura. Então, descobri que havia uma cadeira de sociologia no curso de filoso­fia, entrei na filosofia e fiquei. De fato, a liberdade de escolha é uma coisa muito peculiar ao indivíduo, a gente escolhe muito menos do que pensa, e as coisas vão acontecendo de um modo muito inusitado.

Esse tipo de form ação clássica que tive em Porto Alegre tem lá as sua vanta­gens, só que, em geral, a tendência é alienar um pouco o indivíduo. Talvez eu não tenha me alienado tanto, na medida em que li muita sociologia brasileira, os clás­sicos como Gilberto Freyre, Oliveira Vianna etc. Naquela época, já havia muita coisa no Brasil. Aliás, foi justamente nessa época que, através de G ilberto Freyre, houve

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uma influência muito forte do pensamento sociológico am ericano, e isso, cie certa m aneira, foi definitivo no Brasil. M as eu não me queixo dessa form ação.

Quando o senhor foi pela primeira vez à Europa?Em 19.53, fui pela primeira vez a Paris, onde estudei na Sorbonne como bolsista do governo francês. E isso foi muito importante para mim, porque foi lá que comecei a descobrir o pensamento contem porâneo. De Paris fui para O xford fazer um cur­so de quatro meses e, depois, fiquei ainda oito meses na Alem anha. Paris foi muito im portante, porque foi lá que conheci e estudei com a nata do pensamento francês do início do século — com exceção de Sartre, que não dava aula. A Sorbonne era muito rica nessa época. Além disso, ter conhecido M erleau-Ponty valeu a pena. Eu assisti também ao último curso de Bachelard sobre a vida filosófica, uma coisa his­tórica e fantástica, pois a sua experiência filosófica foi posta em aula. Estava tudo escrito, mas não sei o que aconteceu com esse texto.

Na Alem anha, estudei com o meu amigo M ax M üller, que queria me levar para conhecer Heidegger. M as não cheguei a conhecê-lo, porque fui convidado para lecionar na Federal de Porto Alegre e não podia me dar ao luxo de perder essa oportunidade, pois estava precisando de dinheiro. Então voltei para o Brasil.

Como foi a diferença entre o ambiente cultural francês, de meados dadécada de Í9S0, e o ambiente no Rio Grande do Sul?

Na França, tive dois professores muito bons: Jean W ahl e Jean Hyppolite. Tinha também [M artial) (juérou lt, [Jean] Piaget, enfim, muita gente. Vi tudo o que havia de m elhor, sem ter preocupação com exame, provas e coisas do tipo — pois não queria fazer tese para ficar “m urado” em hotéis baratos. Então fiquei assistindo a vários cursos. W ahl e Hyppolite estavam dando curso sobre Heidegger. No Brasil, Heidegger era transm itido sobretudo por um cônego argentino que, quando falava da “náusea” de Sartre e da “angústia” de Heidegger, virava a própria náusea, ta­manho o nojo que tinha [risos]. E foi através de Jean W ahl e de Jean H yppolite que conheci o Fleidegger autêntico. Foi através deles que a questão ontológica em Heidegger começou a me preocupar e a se tornar uma das minhas maiores influên­cias. Nessa época, ter entrado em contato com o pensamento contem porâneo foi uma revelação para mim, e causou uma abertura extraordinária em meu pensamento. E verdade que isso também me custou inimigos em Porto Alegre: a Congregação M ariana de Jesuítas caiu em peso em cima de mim. Mas toda essa aventura foi muito interessante.

Como o senhor avalia a figura de Emani Eiori no Rio Grande do Sul?Ele era um catedrático. Tive dois professores catedráticos: Fiori e Arm ando Câm a­ra, que não é conhecido no Rio de Janeiro. Foi Câm ara quem me convidou para dar aula. Era um homem venerando, uma belíssima figura e um grande orador. No entanto, eu preferia o Fiori, que tinha mais método de trabalho, e passei para a sua cadeira. Daí começaram as brigas filosóficas, porque Fiori era tomista. Para ame­nizar de certa maneira o seu tomismo, começou a estudar Lavelle, um pensador ca­tólico muito estranho. Certa vez, eu lhe disse: “Desculpa, Fiori, mas em Paris Lavelle

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Gerd Bornheim: “Fala-se hoje em globalização, mas tem de se tomar cuidado com esse ter­mo ao torná-lo sinônimo de neoliberalismo. A globalização já está presente em M arx, pois foi ele o primeiro a dizer que o capital é, por definição, internacional”.

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não existe” . Fiori subiu pelas paredes quando percebeu que eu estava me tornando heideggeriano, com os temas da angústia e da náusea. E assim eu tui também me al'astando dele. Acabam os brigando feio, e respondi às suas provocações fazendo a livre-docência. Mas Fiori era um homem de respeito e tinha um excelente nível.

Na época, as coisas eram muito provincianas, a universidade era muito pro­vinciana, e eu consegui romper com tudo isso. Tinha de se fazer muita política. Q uando fui chefe de departam ento, eu tinha três assistentes, um bispo e dois pa­dres. Eram amigos meus, mas tinha de fazer esse tipo de jogo político. Quando perdi o meu lugar no departam ento, lecionei literatura alemã por dois anos, e, quando voltei para a filosofia como livre-docente, aproveitei para dar cursos mais livres, que eram muito mais interessantes para mim. E foram um sucesso fantástico: eram “m ultidões” que vinham me ouvir.

O seu livro Introdução ao filosofar, publicado em 1969, originalmente tese de livre-docência defendida em 19 61 , pode ser considerado como uma descrição do seu caminho para a filosofia?

Pode, do ponto dc vista existencial, porque, de fato, a grande carga da minha fo r­mação cultural, de um modo geral, foi dada pelo romantismo alemão, com as idéias de experiência negativa, de nostalgia e do tema da distância. Essa form ação do rom antism o foi muito importante para mim. Foi a partir dela que a noção de ex­periência negativa começou a tom ar form a de sistema, e foi nessa época que come­cei a 1er Hegel. Não tinha um plano delim itado para escrever a tese, comecei a es­crever e saiu assim. Publiquei exatam ente como tinha escrito a prova. Em concur­so, a gente fica meio tonto com a gente mesmo, mas a prova saiu perfeita do ponto de vista form al. Depois, só traduzi as notas para o português. E o livro já está na nona edição, com um sucesso que me deixa espantado. Não sei nem mais se pensa­ria o livro do mesmo jeito hoje.

Ao contrário do seu livro sobre Sartre, de 19 7 1 , esse seu livro Introdu­ção ao filosofar não parece ter sido retomado pelo senhor em nenhuma obra posterior. Isso procede?

Isso é mais ou menos normal em mim. Tenho esse livro sobre Sartre, mas nunca fui sartreano, embora tenha uma adm iração muito grande por ele. Foi um livro que fiz com paixão, achando Sartre uma m aravilha. M as sempre gostei mais de Hei­degger, tanto que a crítica que faço a Sartre, na segunda parte do livro , é toda de inspiração heideggeriana. excessiva hegemonia da dicotomia sujeito-objeto em Sartre é uma limitação muito grande, e eu aceito ainda hoje a crítica de Heidegger a essa questão. dicotomia é uma exacerbação muito grande, há sujeito ou obje­to. e não há um terceiro term o possível. Essa exacerbação mereceu a crítica de Heidegger, embora eu não concorde inteiramente com essa crítica. M as Satre era vítima disso, era um cartesiano de fato, e sujeito e objeto eram os pilares do seu pensamento. Critico justamente isso.

M uita gente pensa que sou sartreano, talvez pelo fato de nunca ter escrito um livro sobre Heidegger, mas apenas textos esparsos. Também me afastei um pouco de Heidegger. Em Dialética: teoria práxis, por e.xemplo, há um com entário bastante

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extenso a Heidegger, em que faço a seguinte crítica: eu o acuso pelo esquecimento do ente. Com o não-esquecimento do ser, ele acaba esquecendo-se do ente, quer dizer, ele desresponsabiliza demais o ente, a participação do homem na história, justamente porque ele é radicalmente contra a subjetividade, contra a interpreta­ção moderna da subjetividade a partir de Descartes. Então, por esse cam inho, aca­bei afastando-me de Heidegger. Mas confesso que agora estou lendo alguns de seus textos póstum os, que são fantásticos.

Na ética, Sartre é fundam ental, porque todo o seu pensamento é uma ética de ponta a ponta, em que a questão da liberdade é fundam ental. Ele mostra o drama da liberdade no homem contem porâneo. Radicaliza muito bem a tese de Descartes e mostra a liberdade como uma síndrome negativa, uma coisa brutal e pesada, como se estivesse perguntando a si mesmo: com o é possível me libertar da liberdade? E Sartre tem o mérito de ter feito a crítica à hipocrisia, ã mentira. Ele é um dos prin­cipais responsáveis pelo descalabro da mentira. .Acho que a mentira praticamente não existe mais. Com muito m arxism o, muita psicanálise, tudo ficou muito trans­parente, de modo que a mentira, hoje em dia, está desmoralizada [risos]. Sartre diz: "Há de surgir um dia cm que todos os homens serão transparentes” . Não se pode exagerar nessa transparência absoluta, mas, de qualquer maneira, ele tem razão. O processo de autoconhecim ento do homem está chegando, está levando a hum a­nidade a esse limite extremo de transparência. Nesse particular, Sartre é fundamental: a denúncia da hipocrisia em todos os níveis.

O predomínio do ensino tomista na faculdade foi um dos fatores quelevaram o senhor a passar para a escola de teatro?

N ão, na verdade isso foi um acidente. Sempre gostei muito de teatro e de música. O rganizaram um curso de arte dram ática em Porto Alegre, e convidaram Ruggero Jacobi para ser professor. Nós ficamos muito amigos. Ruggero, na parte prática, não era tão bom, mas era um teórico m aravilhoso. Comecei a assistir a umas aulas suas à noite e depois saíamos para tom ar uma cervejinha, com er uma m acarronada, e fui gostando daquilo. Ele montou o Egnumt de Goethe e Cacilda Becker levou M ana Stuart. Tudo foi feito concomitantemente: a escola e as montagens. Ruggero obrigou-me a fazer uma série de conferências sobre Goethe e Schiller, e, com isso, fiquei ligado também ao teatro. Logo comecei a escrever uns ensaios menores so­bre teatro. Aí aconteceu uma fatalidade; Ruggero simplesmente desapareceu do Brasil sem se despedir de ninguém, sumiu. Entâo a coisa sobrou para mim, porque ele dava teoria do teatro. Fui obrigado a dar teoria do teatro e acabei diretor da escola. Isso foi um desvio muito interessante e muito bom para mim.

Em 1969, o senhor foi cassado...Fui cassado em novem bro de 196 9 , e, a partir de então, não podia mais dar aula em universidade. Fiquei dois anos dando aula em um curso pré-vestibular. Aquele tempo foi terrível, havia policiam ento m ilitar nas ruas, e eu era cham ado todos os meses para depor na Polícia Federal iVlilitar de Porto Alegre — uma coisa humi­lhante. Nessa época, a Universidade de Frankfurt tinha uma política interna de fazer intercâmbio com professores americanos, que já estava funcionando há alguns anos.

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Estenderam isso também para a América Latina, e, com o sei alem ão, convidaram - me para ir. Foi uma sorte incrível, independentemente da questão política. Fui p ro­fessor durante um semestre em Frankfurt. Até queriam que eu ficasse lá, oferece­ram-me uma ótima bolsa, mas, naquele tempo, eu detestava a Alem anha. Achava Frankfurt e Freiburg horríveis. Aliás, só me reconciliei com a Alemanha há dez anos, quando fui convidado para ir a Berlim. Fiquei dois meses e me apaixonei pela cida­de — que, do ponto de vista cultural, está muito superior a Paris. Terminado esse semestre em Frankfurt, em que dei um curso sobre Sartre a pedido deles, fui imedia­tamente para Paris, onde fiquei quatro anos. No começo, dei aulas de alem ão para sobreviver, e um amigo francês muito rico, dono de um jornal, convidou-me para organizar uma galeria de arte. Eu me “atirei” nesse projeto e fiz um acervo para a galeria. Isso foi muito interessante como experiência. Daí voltei para o Brasil, de­vido ã doença de meu pai. Fiquei três anos em Caxias do Sul cuidando de meu pai, que não podia trabalhar, e escrevi O idiota e o espírito objetivo.

Qual era a diferença entre o ambiente de meados da década de 1950 eo do começo dos anos 19 7 0 na França f

Toda aquela efervescência dos anos 19.50 desapareceu, a Sorbonne ficou muito apática e o pós-modernismo não tinha ninguém com o Sartre e M erleau-Ponty, que tinham um nível muito elevado, uma seriedade muito grande. Ambos tinham um nível de produção, de energia e de pensamento extraordinário. Na Inglaterra, em O xford , assisti a aulas de filosofia política e literatura inglesa contemporânea. M as em filosofia os ingleses realmente não são bons, e a filosofia política era o estudo dos programas dos partidos, enfim, não se fazia filosofia [risos]. M as, no curso de literatura, eu assisti a uma palestra m aravilhosa sobre Conrad, que era um tratado de sociologia. F. por meio da literatura que eles são bons para pensar a política. Quan­do têm de fazer filosofia, não a fazem, ficam na linguagem, na política prática e efetiva, no empírico. M as quando fazem literatura, a crítica literária “vo a” que é uma m aravilha. Entâo aprendi muito e acabei interessando-me pela parte mais fi­losófica. Então, esse desvio também foi muito interessante.

Na Alemanha, era aquela coisa germânica de cidade pequena, concentradíssima nos estudos. Mas também havia coisas m aravilhosas que não vejo mais na Europa. Havia um alemão, já falecido, chamado Hans Jantzen, que foi possivelmente o maior especialista do século X X em estilo gótico. Estava em Freiburg, onde deu o seu úl­timo curso. O tema foi uma das grandes paixões da minha vida: a catedral gótica de Chartres. Ele dissecou o tema e isso foi uma das grandes experiências da minha vida, porque eu tinha paixão por essa catedral. Q uando fui a Chartres, a primeira visão que tive da catedral foi um choque cultural muito grande. Eu estava dentro de um daqueles carros am ericanos, cheio de brasileiros, sentado atrás, junto ã por­ta. Q uando o carro parou na catedral, nós estávam os discutindo alguma coisa, eu abri a porta, vi a catedral, e tive a sensação de estar sem pernas. Daí eu entendi su­bitamente o que é, para nós brasileiros, não ter vivido a Idade .Média. F. impossível para nós ter a experiência do gótico, mesmo por via indireta, pois é um dado cul­tural. Isso foi uma experiência muito forte para uma pessoa como eu, que era da colônia alemã e, de repente, estava em Paris. E eu aproveitei esses anos, pois a mi­

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nha política era a de assistir aos cursos mais importantes e não abandonar o tea­tro, os concertos, as boates etc. Eu pude refazer na Alemanha e, sobretudo, em Paris, aquilo que no Brasil não podia fazer. A minha preocupação de base era me educar com a experiência européia. Tive uma form ação superficial, mas européia.

Em fins da década de 1970, o senhor volta para Caxias do Sul para cuidar do seu pai, durante três anos, e escreve O idiota c o espírito ob­jetivo. Depois vem para o Rio de Janeiro. O que motivou essa mudança?

A necessidade de trabalho. Se São Paulo tivesse antecipado um pouco mais o inte­resse, eu teria ido para São Paulo. Não queria ficar em Porto Alegre, porque os meus inimigos estavam todos dentro da universidade. Eu tinha sido chefe de departamento e ficaria numa situação muito desagradável. Então eu tinha de trabalhar, e vim para o Rio.

Qual a diferença do ambiente intelectual gaúcho em relação ao carioca?Eu fui muito bem recebido no Rio de Janeiro. É interessante porque eu sempre fa­zia conferências em São Paulo. Nunca tinha recebido convite para fazer conferên­cias no Rio. Eu dizia: “Que cidade estranha essa, que não convida a gente para fazer conferência, enquanto São Paulo faz numerosos convites”. E, de repente, estava dando aula para um ótimo público. E comecei com o pé direito.

Evidentemente, quando acabou o período da ditadura, houve uma espécie de reação interna, uma espécie de reivindicação a favor de um espírito crítico mais acentuado. Então saímos daquelas trevas, o tomismo foi em bora, e houve uma es­pécie de faxina gerai a favor de um espírito mais ventilado, acentuando-se o espíri­to crítico. Houve uma transform ação muito forte na universidade. O aspecto reli­gioso começou a ,se diluir, algumas universidades católicas perderam sua importância e deixaram de ser “católicas”.

Na década de 1960, três paradigmas teóricos marcaram o ambiente intelectual: estruturalismo, existencialismo e marxismo. Como o senhor avalia a evolução desses paradigmas até os dias de hoje, e que balanço o senhor faria da sua relação com eles?

Nunca fui muito fã do estruturalismo, que na filosofia foi representado por Guéroult. E aí é que está o problema, porque eu assisti a essa m etodologia de Guéroult com muito respeito em seu curso sobre Descartes, “A ordem das razões”, na Sorbonne. Mas, no fundo, percebi a deficiência do método. Guéroult estudou na Alem anha, onde havia um hegeliano cham ado Kuno Fischer que havia escrito uma história da filosofia moderna — eram dez volumes em tipo gótico. Comprei parte desses livros num sebo em Porto Alegre. Quando ouvi o curso de Guéroult sobre Descartes, eu disse: “ .Mas issoé Kuno Fischer” . Daí surgiu a minha crítica a ele, porque Guéroult, no fundo, reduzia Descartes, Espinosa e Fichte a um objeto. Ele não fazia filosofia, mas dissecava uma filosofia ã maneira de um laboratório. Pensando bem, mesmo não querendo inferiorizá-lo, pode-se dizer que um homem como G uéroult nunca teve uma idéia, nunca foi um filósofo. Heidegger chama essa filosofia de Wissens- chaft, a ciência filosófica. No fundo é isso: essa secura do estruturalism o não me

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agrada. E, pensando bem, a Poética do velho Aristóteles é um hvro estruturalista, em que há apenas a descrição da estrutura. E como é a interpretação dele? É muito fraca. Eu tenho a impressão de que falta um rigor filosófico m aior na Poética.

Eu gostei demais do existencialismo. M as, logo de saída, fui para a questão ontológica, que me preocupava mais do que o existencialismo. E fui me aproxim ando mais lentamente do m arxism o, através da dimensão política também. Tanto é que sou meio marxista, meio hegeliano, heideggeriano e sartreano. Faço um jogo ã minha maneira. A gente vai desenvolvendo certo espírito crítico, e eu não posso dizer hoje que sou heideggeriano, pois critico Fleidegger. Mesmo M arx tem uma posição es­pecial, pois ele é muito mais lido do que parece, e os problemas postos por ele es­tão todos aí. Acho, inclusive, que M arx foi pioneiro em relação a certas dimensões do pensamento político contem porâneo. Fala-se hoje em globalização, mas tem de se tom ar cuidado com esse term o ao torná-lo sinônimo de neoliberalism o. A glo­balização já está presente em M arx, pois foi ele o prim eiro a dizer que o capital é, por definição, internacional. Ele disse isso, se não me engano, baseado na experiência do patriarca dos Rothschild, que enviou cada um de seus cinco filhos para um cen­tro financeiro do mundo. M arx fundou a Primeira Internacional, não a primeira nacional. Isso é muito im portante e está esquecido, porque a esquerda ficou muito contagiada pelo espírito nacionalista, que é uma coisa toda cheia de contradições, que é de direita e de esquerda. O fascismo, pelo menos, era nacionalista. É o caso de Heidegger, que era um homem de esquerda no final dos anos 1 9 2 0 e entrou no movimento nacional-socialista, não no nazismo. M as foi o velho M arx o primeiro a dizer que o capital é internacional, e que a internacionalização é uma fatalidade, uma questão de tempo. E ele estava certo, porque isso está se realizando. Só que hoje tudo está concentrado nesse tipo de capitalism o que está todo apoiado no mundo das finanças e tecnológico, como se fosse um espírito absoluto que conduz o capital. E ninguém sabe onde isso tudo vai parar. M as a idéia de globalização é de M arx, foi ele quem entendeu realmente o problem a e a necessidade do trans- nacionalismo.

Com toda essa transform ação, pela primeira vez M arx está sendo considera­do um filósofo. Essa é a grande vantagem , porque, no passado, tudo era muito dogmático e stalinista, tudo fazia parte de um catecismo político. Os comunistas eram pessoas meio estranhas, meio separadas, não se m isturavam nunca e eram muito dogmáticos — uma coisa muito curiosa. Dc fato, davam-se a pequenas fo r­mas de adultérios. M ário Pedrosa e M ário Schemberg, por exem plo, adoravam pintura abstrata — que, em geral, era considerada com o uma decadência burguesa pelos marxistas. De qualquer maneira, eles mantinham o dogmatismo. Eu adorava M ário Schemberg, mas uma vez tive uma briga com ele sobre a minha tese, pois ele ficou horrorizado com ela. Dizia que tinha excesso de Hberdade, muita subjetivi­dade, que só tinha sujeito e que não tinha objeto.

O pessoal que saiu da Fundação Getúlio Vargas foi uma geração dc tecnocratas muito violenta e despreocupada com a política, que esqueceu aquilo de que M arx falava tanto, ou seja, que a economia é política — esse é o meu modo de interpre­tar a proposta. M as isso mostra também aquilo de que estava falando: que essa re­dução de tudo é própria da época, porque aquilo que estava presente nos m arxis­

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tas clássicos, como M ário Schemberg e M ário Pedrosa, está presente hoje nos eco­nomistas, ou seja, a questão do objetivismo. Hoje, estamos em um tipo de cultura em que tudo é sujeito ou objeto. E o fantástico é outra coisa: há uma espécie de intercâm bio entre sujeito e objeto, que vai muito mais longe do que parece, pois esse problema dos nossos economistas e políticos no fundo expressa esse intercâm­bio. Essa é uma experiência radicalmente nova na história do homem. A primeira análise sobre isso foi feita por Hegel na “Dialética do senhor e do escravo”: o es­cravo é reduzido à condição de objeto pelo senhor e depois essa relação se inverte, mas, com isso, o estatuto de subjetividade e de objetividade pela primeira vez entra em crise. E isso, evidentemente, vai ser fundamental para M arx. .Mas aí é que está: há uma inversão na situação, o sujeito passa a ser objeto, e o objeto passa a ser sujeito. Q uer dizer que essa idéia do intercâmbio permite entender a frase de Sartre que diz: “Hoje, a m elhor situação para se entender o homem é a do sadom asoquism o” . Pensando bem, parece que ele tem razão, porque é a form a de sujeito e objeto anu­larem-se. É o sujeito permeado de objetividade e vice-versa: um é sempre o objeto do outro, com patologia ou sem patologia. Heidegger, por exemplo, passa por cima desse problema.

A relação com a máquina, por exem plo, também é assim. Eu acabei de escre­ver um pequeno ensaio, “A educação pela m áquina”, que saiu num livro em ho­menagem a Carneiro Leão. Procuro m ostrar nesse ensaio que o século X X caracte- riza-se pelo conflito entre o homem e a máquina. M arx não percebeu esse proble­ma, pois fez o elogio da máquina, e até chegou a dizer que o jovem operário tem de trabalhar, acostumar-se e assimilar a máquina, para produzir mais e aum entar o poder do corpo. Ele viu o problem a do capitalism o, mas não viu esse conflito. E a máquina é fundamentalmente capitalista, está dentro do processo histórico. É no século X X que surge o conflito entre o homem e a máquina, que muito cedo foi percebido por Carlitos [Charles Chaplinj, em Tempos modernos. Pode-se pensar em [Herbert] M arcuse, que, em 1964 , escreveu o Homem unidimensional. Esse li­vro , para mim, está totalm ente superado, já que hoje não há mais o conflito com a máquina apresentado por ele. Não tem sentido dizer que o com putador “maquiniza” o homem. Ao contrário, o com putador é um instrumento de trabalho fantástico. Eu tenho de ’-etomar esse tema, mas é necessário pensar a máquina enquanto cor­po, porque dc certa maneira a relação que o homem tem com seu corpo é am bí­gua: em certo sentido eu sou o meu corpo, mas, em outro sentido, eu tenho o meu corpo, ele se torna um objeto. Isso eu comecei a entender através de um pastor, personagem do expressionismo alemão, que, numa peça, fazia experiências com seu próprio corpo, reduzindo-o à condição de objeto. Foi a primeira vez que vi isso acontecer na literatura. Então o corpo é um objeto, e o outro também pode ser um objeto para mim. Essa relação vai muito longe. E essa é a ambigüidade invertida que o homem tem com a máquina, porque, num certo sentido, eu tenho a m áqui­na, que está à minha disposição, mas, em outro sentido, eu sou a máquina — in­clusive se se pensar as próteses e coisas do gênero. De fato, há um intercâmbio en­tre o homem e a máquina, e M arx tinha razão quando dizia, como se falasse den­tro da tradição da Revolução Industrial, que de fato a máquina não se entende apenas mecanicamente, mas se entende biologicamente, ou seja, é um prolongam ento do

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corpo do homem. E, por definição, ele dizia que tem de haver uma espécie de inti­midade muito maior entre o homem e a máquina.

Vlarcuse que me desculpe, mas nós temos de repensar esse medo que temos das máquinas. Isso não funciona mais. Pelo contrário, o homem está dom inando a máquina. C laro que há sempre um perigo, como diz Heidegger, com o futuro da medicina, por exemplo, mas é uma transform ação. O que se quer? A doença do pas­sado? A peste? Numa época em que o homem começa a controlar a doença, é ne­cessário controlar o sistema imunológico, pois a AIDS está aí. O utra coisa é a lon­gevidade. Eu não farei parte dessa geração longeva, mas o meu neto vai fazer parte com certeza, vai passar dos cem anos de idade. Essa transform ação é fantástica. Com o as pessoas podem ter medo disso? Temos de desmistificar isso tudo. Será uma vida muito superior, sem doenças e com tudo cada vez mais sob o controle do ho­mem. O medo, a vergonha em relação à tecnologia, no fundo, é o medo em relação ao futuro, que é um buraco negro.

Estou reconciliando-m e com a máquina. Isso é muito interessante. O pessoal de vez em quando ri de mim, mas acho que essa questão tem de ser pensada e leva­da a sério. A máquina, na Revolução Industrial, foi fundam ental, e, com ela, o pro­cesso de libertação do homem é extraordinário.

Seria possível fa la r de uma “filosofia brasileira”? Como o senhor vê asrelações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Elas não estão muito boas, e resolvem-se muitas vezes em termos de ironia, como diria o meu amigo [Roberto] Schwarz. Gostaria que houvesse, de um lado, um maior intercâmbio com a política e as ciências sociais, e, de outro lado, com a crítica lite­rária. M as não vejo isso no Brasil, porque a cultura filosófica é também meio rara entre nós. .Vias há uma atividade filosófica muito intensa no Brasil. Am anhã, por exem plo, participarei da banca de uma tese m uito bem -feita, acadêm ica, sobre Benedetto Croce. Isso é muito interessante, porque ressuscita o Croce e o “ põe em cima da m esa” . Acho muito boa essa cultura acadêmica entre nós, porque se não tivesse m estrado e doutorado, Croce estaria m orto. Então a tese é fundam ental, porque trata desses autores esquecidos.

Também é im portante falar das traduções que estão sendo feitas, porque, no Brasil, tradução sempre foi um problem a, e, de repente, surgiu uma tradução que já está em sua sétima edição — O ser e o nada de Sartre, publicada pela Vozes. Eu não entendo isso até hoje. O sucesso deve ser para encher prateleira. Acompanhei de perto essa tradução, dei muitas sugestões, e, até a quinta edição, ela foi revista e reexam inada, para ver se estava tudo certo. Quer dizer, há mais material à disposi­ção. Estou aceitando até traduções como tese de mestrado para incentivar a parte de tradução, que sempre foi uma lacuna muito grande neste país. É curioso: as gran­des editoras normalmente possuem estantes filosóficas, o que é uma novidade para mim, porque, antigamente, isso não existia.

A atividade filosófica, entretanto, está bastante diversificada, e todas as orien­tações estão mais ou menos representadas. Eu só implico um pouco com a filosofia analítica, nós não nos damos muito bem [risos]. Vias essa implicância está ligada àquele problema do objeto, é apenas uma outra versão: reduz-se tudo, a começar

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pela linguagem, a objeto. Com isso, não se vai muito longe, pois não é uma possi­bilidade de criação do pensamento. Não posso passar a minha vida inteira dando aula sobre Descartes. E hoje fazem isso: e Descartes, Espinosa e mais um ou outro que absorvem as preocupações dos analíticos. E eles fazem o que? Fazem ativida­des policiadas. Flá muito policialismo nessas filosofias da linguagem, e há uma ob ­sessão excessiva pelo método. Uma coisa a que nunca dei importância foi o m éto­do. O método tem de ser inventado na hora, pois, dependendo do que se está pen­sando, tem de se inventar uma metodologia. .Mas não é possível partir de um mé­todo a priori, estabelecido como camisa de força, para prender tudo lá dentro. Aliás, isso é uma característica do século X X .

Como o senhor vê o processo de instalação das faculdades de filosofia nas universidades federais?

i\cho que têm o mesmo vício de base, o tomismo. Porque foram os padres que co­meçaram a dar aula. E os cursos funcionavam muitas vezes como uma espécie de prolongam ento dos sem inários, pois os professores eram fundam entalm ente os mesmos. Isso felizmente acabou. Naquela época, o tomismo ortodoxo era de uma violência incrível, não havia alternativa nenhuma. Agora a situação se inverteu: vai- se a um sem inário e constata-se que tem muito padre que é m arxista, hegeliano, heideggeriano — não são mais tomistas. Isso foi uma transform ação muito violen­ta que ocorreu no Brasil e que tem os seus méritos. Não creio que haja grandes fi­lósofos no Brasil, mas temos uma atividade filosófica muito intensa. Pela prolife­ração de teses, o nível geral está subindo, está cada vez melhor. A atividade filosó­fica no Brasil já está intensa, embora isso não esteja acontecendo em relação aos pensadores, que estão faltando no país. .Mas a filosofia tem muito público hoje. Quem faz conferência como eu faço, percebe que em qualquer lugar do Brasil há público. Atualm ente, fazer filosofia no Brasil é uma coisa muito gratificante.

Em seu artigo “Filosofia e realidade nacional”, o senhor menciona o positivismo e o neotomismo como duas correntes de grande importân­cia no cenário da filosofia brasileira, apontando aspectos positivos na primeira e negativos na última. Além dessa caracterização histórica do nascimento da filosofia, quais outras correntes o senhor apontaria como importantes no cenário da filosofia no Brasil? Como o senhor avalia a atividade que é praticada nas faculdades de filosofia?

M arx é im portante, e sempre foi estudado com um espírito filosófico mais eleva­do, com preocupações políticas e sociais. Infelizmente Hegel ainda é pouco estuda­do, talvez por causa das traduções de seus textos. .Vlarx tem muito mais público e gente empenhada em estudá-lo. Gostaria que isso acontecesse também com Hegel. Há [Henrique Cláudio de] Lima Vaz, há M arcos M üller, que está trabalhando se­riamente. O estudo de Hegel está caminhando.

Acho que todo o positivismo brasileiro deveria passar por uma revisão. Aqueles católicos, Jackson Figueiredo, aquela turm a do começo do século vilipendiou o positivismo. Pensando bem, de uma certa perspectiva, é possível dizer que a lei dos três estados estava errada? Não, pois, do ponto de vista do pensar a realidade cientifi­

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camente, estava correta. £ Comte foi o primeiro a fazer a grande crítica sobre a con­cepção metafísica do homem, porque pensou a função do engenheiro. Foi o primeiro que acabou com a idéia do animal racional e, ao mesmo tempo, fez uma ponte com essa idéia. O engenheiro é o indivíduo, o operário, que estudou física e matemá­tica. A teoria e a prática estão ligadas. Ele fica dentro da tradição do animal racio­nal, mas com uma revolução muito grande. Toda relação da vida contem plativa, do artesanato, digamos assim, pôde ser transform ada não por causa de Comte, mas por causa da Revolução Industrial. Comte foi o primeiro que chamou a atenção para essas coisas todas, e tem de ser revalorizado, pensado corretam ente. Dessa form a, sou a favor de uma revisão sobre a importância do positivismo no Brasil.

Como o senhor avalia, por exemplo, a produção do Departamento deFilosofia da USP?

Acho que ainda é a melhor do Brasil. A segunda eu diria que é da UERJ. A USP tem muita gente boa, embora diversas pessoas tenham se aposentado. Há poucos dias, Scarlett M arton esteve aqui para participar de uma banca da qual eu era o presidente. Gostei muito de conversar com ela. Os Cadernos Nietzsche são uma preciosidade. A USP tem essas coisas e sabe com pô-las muito bem.

Quais são, em sua opinião, os filósofos brasileiros mais importantes? Renato Janine Ribeiro é muito bom e muito sério. Acho também interessante o tra ­balho feito por M arilena Chaui, que é meio apressadinha, às vezes. O seu livro so­bre Espinosa, que não li e não vou 1er, é muito importante. E se o livro de índices e notas for bem-feito — não pude ainda 1er com atenção — , então o seu livro deve ser muito bom, porque remete para toda a obra. Aqueles índices e aquelas biblio­grafias têm de estar muito bem realizados. Eazer um livro desses sobre Espinosa no Brasil é muito bom. Não posso esquecer Scarlett [Marton] também.

Lima Vaz é um hegeliano que está em Belo H orizonte, e tem diversos livros sobre Hegel. Seus escritos são importantes porque dinamitam as bases da igreja. .Aqui, no Rio, há diversas pessoas também: Carneiro Leão, que está se aposentan­do, e uma geração nova que está comigo. Jovens que fazem tese sobre Espinosa — que está na moda. Há um rapaz chamado Ricardo Barbosa de quem eu gosto mui­to. Tem uma tese sobre o jovem Lukács que é muito interessante. Ele acabou escre­vendo um “ensaio sobre o ensaio”, e está nessa linha de pesquisa ainda hoje. É um rapaz bem sério, bem jovem , e bom escritor — o que é raro na filosofia brasileira, pois o pessoal ou não escreve muito bem, ou escreve bem, mas em alemão. Não posso esquecer-me de Roberto M achado também, que é muito bom.

Eu dou muita importância a escrever bem, e isso é um traum a na minha vida. Sou um “alem ão”, e não sei até que ponto consegui recuperar o tempo perdido em relação à língua portuguesa. Norm almente, o meu estilo é mais elogiado em rela­ção à clareza, então procuro 1er padre Bernardes, Rubem Braga e M achado de Assis. Não me interessa o que eles dizem, interessa-me o modo com o eles escrevem. Leio com o lápis na mão para dom inar a língua. Isso é um problema que não tem fim, porque a língua tem de ser criada, tem de ter um envolvim ento criativo quando se vai escrever alguma coisa. A té certo ponto consigo fazer isso, mas é muito difícil.

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o senhor é um leitor dos escritos de Benedito Nimes?Ele é um grande amigo meu. A gente o esquece, porque está lá no Pará, e o Brasil é imenso. M as é um heideggeriano. como Carneiro Leão também o é. Quem intro­duziu Heidegger no Brasil, como professor, fui eu — o Heidegger ontólogo. C ar­neiro l.eão veio logo depois de mim, chegou a estudar com Heidegger, e só come­çou a publicar depois que eu já tinha aberto a boca. E o Benedito “passeia” muito bem por esse assunto.

Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais repre- sentativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o senhor o(s) vê hoje.

Um tema-chave para mim, e sobre o qual escrevi muito pouco, é o conceito de di­ferença. Não a velha distinção de Aristóteles do ser diferente, mas, em última aná­lise, a idéia da pluralidade e da multiplicidade. Foucault, por exem plo, é im portan­te para esse tema porque não fez exatamente aquilo que eu acuso Heidegger de ter feito: o esquecimento do ente. Lamento Foucault largar a base ontológica e ficar no ôntico, embora sempre nos planos das diferenças, nas margens da sociedade. .Aquilo que no passado não era pensado, de repente começa a ser assimilado pelo pensamento, e isso é e.xtremamente positivo. A diferença ontológica, ainda criticando Heidegger, é o cerne e a base do pensamento filosófico, porque é a única maneira de conciliar o pensamento ontológico com uma base não-metafísica, de que há muito se precisava para pensar o real que está aí. Ela é um alargam ento muito grande da realidade. Do século passado para cá, a proliferação da ciência é uma coisa fantás­tica. E incrível a liberdade metodológica da antropologia científica e a descoberta do outro. No meu livro O conceito de descobrimento, analiso esse tema da dife­rença, da alteridade. F. um livro bem-bolado — embora eu não goste muito da sua parte final — , em que m ostro a questão da alteridade como uma crítica essencial ã metafísica tradicional da identidade, e como essa questão não é precipuamente fi­losófica, ou seja, introduz-se por dentro da evolução do pensamento da cultura moderna. A busca da alteridade, o mapeamento da alteridade, é o cerne da ques­tão do descobrimento.

Em seu livro Dialética: teoria práxis, de 1977, o senhor afirm a que “o problema crucial da metafísica está no modo como ela recusa a finitude do fin ito”. Numa atitude pós-metafísica como a sua, como então acei­tar a finitude do finito?

Na específica estrutura dela mesma, enquanto, por exemplo, um jorro de alteridade. O que eu quero indicar nesse livro é justamente a idéia da realidade em form a de jo rro , que é algo heraclitiano, no sentido do cosmos como a modalidade de jorro. É a idéia de vem e vai, de alto e baixo, superior e inferior, que é um jorro — é uma harmonia que tem essa dimensão de jorro. Isso está presente em certos pensadores atuais e fascina-me muito: em .VIerleau-Ponty, por exemplo, que chegou a essa idéia do jorro. C’om essa idéia, não se pode mais falar em sistema. Não é que não exista mais sistema — o que acaba por criar também uma análise — , pois ele ainda é fo r­

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te demais na sociedade, tudo é sistema na sociedade contem porânea. Então, tem de se procurar um outro caminho mais com patível com o não-sistematizável, se é que isso existe. De qualquer maneira, o caminho parece ser por aí: a questão da alteridade, da diferença, do jorro.

Em Introdução ao filosofar o senhor escreveu: “Quem se resolve, ou se sente condenado a fazer filosofia, assume, pelo simples fato dessa re­solução, uma certa responsabilidade. Um compromisso que como todo compromisso impõe determinadas condições, as quais coincidem e ao mesmo tempo transcendem o que possa haver de arbitrário e redutivel em uma existência individual”. No que consiste esse compromisso do filósofo?

O senso de responsabilidade não é simplesmente algo de interior, mas remete, em prim eiro lugar, à sociedade. E o sentir-se responsável dentro da sociedade na qual a gente vive — essa é a grande responsabilidade. Tem de haver, algo que para mim sempre foi meio deficiente, uma espécie de consciência política no sentido amplo da palavra, não no sentido estrito. F o pertencer de fato ã cultura. Esse com pro­misso com a cultura não se revelava, por exem plo, no tomismo, que antigamente não tinha com promisso com nada, era uma teoria descompromissada e abstrata. A minha geração aprendeu; temos de ter com promisso com a cultura e participar dela. Sempre me sinto em déficit com a cultura brasileira, porque, quando toco nesse assunto, é sempre meio de passagem, de raspão, um artigo mais curto que escrevo. Mas eu não fui educado para isso, e é esse o problema todo. No entanto, tem a parte de participação mais efetiva na vida cultural do país. Isso eu faço bastante.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

Permanece, porque o conceito de ciência é de uma riqueza impressionante. .Aquela revisão do positivismo, de que falei anteriorm ente, tem de passar por essa questão também. No fundo, a limitação do velho Comte foi ter entendido a ciência dc modo muito unívoco. Hoje a ciência é um cabedal de conhecimentos de uma am plidão extraordinária, o reino das diferenças está hoje nas ciências. Todos os velhos es­quemas desm oronam com muita facilidade, e isso tudo é de uma riqueza, de um enriquecimento impressionante.

E muito difícil fazer ciência e filosofia. E tem a parte da arte e da literatura, que também é essencial, mas a gente tem de fazer um esforço para saber o que está acontecendo com o ramo da ciência, e isso varia muito. Hoje, é a questão da ele­trônica, e, querendo ou não, temos de estar conscientes disso. Não é preciso se es­pecializar, mas é necessária uma certa dose de inform ação, para saber a quantas se caminha, porque há uma cisão muito grande não só da filosofia com a ciência, mas da ciência consigo mesma, internamente. Hoje é impossível um físico saber sobre toda a física; ele sabe, se muito, apenas um capítulo. Quem faz filosofia está mais aberto à possibilidade de desrespeitar certos limites e cometer certas heresias. En­tão, é necessário tom ar muito cuidado. Eu evito falar de ciência como escritor.

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Com o é que se pode julgar Kant. por exem plo? Para mim, ele fez uma inter­pretação do modo pelo qual funcionava, na época, a cabeça de Newton. Ele só ti­nha uma ciência, que era a física matemática, ou seja, Galileu e Newton. Então aquele tipo de saber científico era o saber científico. M as não faz sentido ter uma atitude dessas, pois é uma limitação fantástica. Prefiro então deixar a ciência dc lado.

Desde Hegel, tto século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate?

Isso simplesmente é um tema hegeliano. Fala-se muito em morte da arte, contra a morte da arte, mas isso é um falso problema. Porque Hegel tem toda a razão quan­do põe essa questão, mas apenas para a arte do passado, a chamada arte da im ita­ção, que é sempre teológica e político-religiosa. Essa arte m orreu, não por causa de Hegel, mas a partir do Barroco. Depois do Barroco, não há mais arte religiosa, ela acabou de vez. Existe apenas por razões de economia privada e doméstica, mas mesmo isso é muito raro. O que existe hoje é, em prim eiro lugar, a criatividade. E essa idéia está muito enraizada no século X X com as escolinhas de arte. O utro dia dei uma aula inaugural para uma escola de arte aqui do Rio, onde se discutia o seguinte problema: parte-se da idéia de que a criança tem originalidade e criatividade, então põe-se a criança sozinha, sem modelo na frente, com lápis e papel à vontade, e é uma festa. O ser humano é criativo, e isso já está na criança. C laro que isso é um exagero brutal, mas parte-se do pressuposto de que a criatividade pertence ã condição humana. Na análise que fiz, procurei m ostrar que o prim eiro autor que chamou a atenção para esse fato foi M arx , para quem a criatividade, a invenção do novo, da novidade, pertence à condição humana. Porque no passado era Deus quem fazia a novidade, eram os gênios com o Da Vinci. Foi no século XVI que sur­giu a palavra gênio na sua acepção m oderna; quer dizer, só o gênio, por delegação especial de Deus, era criador. Isso caiu com pletamente, e a criatividade, hoje, per­tence ã cozinheira. Qualquer pessoa tem capacidade de criar.

Isso ocorre também por causa da influência das diferenças, essa abertura da criação do novo. Com o dizia .Vlarx: "O homem tem de suprir suas necessidades, e, com isso, ele cria a novidade, ele faz o n o vo ”. E isso não é um acidente para V larx , é um tema belíssimo que ele não chegou a explorar em sua totalidade. Tem um ensaio meu que é exatamente sobre o adjetivo "novo” em M arx. De fato, esse é um ponto de partida completamente novo para uma antropologia. Procurei isso em Hegel, mas ele não fala em novo. Ele é, no entanto, o prim eiro filósofo que fez referência à moda. Percebeu que a moda já estava presente na Revolução Industrial, e que sua força já estava perdendo estabilidade. Já em M arx , a idéia do novo é uma revolu­ção, porque ela já está aí. A novidade é uma dimensão natural do homem, e não há nada de religioso nisso.

Nesse sentido, como o senhor vê o trabalho de W alter Benjamin? Em especial A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica.

Não gosto muito dos frankfurtianos, porque escreviam muito mal. A Dialética negativa, a Teoria estética... o que é aquilo? A gente tinha que fazer seminários para

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decifrar o que A dorno queria dizer realmente. Por que não escreveu direito? Ago­ra, o seu livro sobre M ahler é bom, mas é aquela sinfonia: a prim eira, a segunda, a terceira. Tem coisas em que às vezes os frankfurtianos acertam. E Benjamin tem aquele livro ilegível sobre a tragédia alemã. Ele tem umas coisas que eu não consi­go “engolir” muito bem, a questão da aura, por exem plo. Não dá para aceitar isso, porque essa noção tem ranço religioso. E essa crítica à máquina parece ser difícil de aceitar também, é deficiente e não tem sentido. Acho que as reproduções hoje são tão perfeitas, podem ser colocadas em qualquer casa. Deixa a gente viver com isso! Nós temos de ter em casa uma pequena pinacoteca em livro, porque é neces­sário conhecer as obras. Acho que Benjamin tinha um pouco de medo, essa aura era uma espécie de nostalgia que não consigo entender muito bem.

Quais são os artistas plásticos brasileiros de que o senhor gosta?No Brasil, ponho em prim eiro lugar Iberê Cam argo. Ele queria que eu escrevesse sobre suas obras. M as era muito difícil, porque ele morava aqui, eu morava em Porto Alegre, e ficava difícil assentar as idéias. De Portinari eu não gosto muito. Ele tem coisas interessantes, mas era mau desenhista.

Segundo uma afirmação do senhor, em Páginas de filosofia da arte, a missão da crítica consiste em tom ar visível o fundamento invisível da arte, em “pôr de manifesto os vasos comunicantes que fazem com que a arte contemporânea diga a verdade do homem de hoje”. O senhor poderia nos fa la r um pouco sobre esse papel da crítica? Seria possível mencionar alguns traços desse “homem de hoje” que a arte contempo­rânea veicula?

Esse processo é a superação da dicotomia sujeito e objeto, e é uma verdade que não diz mais respeito ao juízo de adequação, mas diz respeito ao desvelamento. Daí eu volto bastante para Heidegger. C) quadro é esse processo dc desvelamento, e eu só consigo atingir esse desvelamento se me puser na raiz criativa do quadro. Dessa form a, tenho de desm ontar o quadro, e é isso que me preocupa. Não é seguir sem­pre o que já está feito, o que está construído como objeto, mas desmontar para pegar essa raiz e tentar cam inhar com ela. C laro que isso, radicalmente, é impossível, mas tenho de fazer esse esforço.

Com o é que me aproxim o de um quadro? Não vejo o quadro como objeto, vejo com o uma linguagem, e escrevo com o se pudesse cam inhar paralelamente em relação à linguagem do quadro. Então recrio o quadro na palavra. C laro que isso é impossível, mas procuro cam inhar nesse sentido. Dessa form a, eu não faço crítica, porque a crítica sempre repousa no objeto, procuro fazer um outro tipo de abor­dagem das artes plásticas.

Seria essa a diferença entre crítica de arte e estética filosófica?Eu diria que sim. A crítica de arte é sempre objetivante. Nunca fiz isso e não me interessa fazer. Escrevi um ensaio sobre Vasco Prado, um grande amigo meu, para a Folha de S. Paulo. Foi uma coisa linda — e é isso o que me interessa. Aliás, esse artigo assemelha-se muito com o livro que escrevi sobre Brecht. Tanto Vasco como

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Brecht são “ P C ” [Partido Com unista] inconform ados. E a maneira com o eles re­solveram superar essa inconformidade foi através da pesquisa formal. É preciso saber com o V asco, por meio de suas esculturas, faz essa pesquisa form al, através de quais cam inhos exatos. E eu enum eraria várias form as; ele tinha, por exem plo, técnicas que usava para form alizar o seu trabalho sem sair de um certo realismo social. M as, abrindo o seu trabalho com uma certa deform ação, há um senso de m onum en­talidade, inclusive em suas obras pequenas, que Brecht tam bém tem. Foi a partir disso que parti para o estudo de Brecht, dessa questão da linguagem form al.

Em Páginas de filosofia da arte, o senhor se refere à “perplexidade em que se move o teatro atual e que deriva daquele fulcro fragmentário, obrigando o teatro a ‘escolher’ entre a diversão e o pedagógico, entre o psicológico e o social, entre o literário e o espetáculo absoluto”. Tendo em vista tal circunstância, como o senhor vê a situação do teatro hoje?Em que medida seria possível falar na “necessária atualidade” de Brecht— para usar os seus termos — , levando-se em conta que um dos prin­cipais pontos do teatro brechtiano é o papel de despertar o espectador para uma tarefa que ele deve assumir, conduzindo assim à produção de modificações sociais?

A atualidade de Brecht, em meu entender, prende-se essencialm ente ao caráter pro­fundamente fragmentário dc sua obra. Ele chegou a ter intolerância, porque o modelo da Mãe coragem era para ele uma coisa sagrada e inamovível. Isso já não tem sen­tido, não leva a nada e já acabou. xVlas o que quero dizer é que essa fragm entação de Brecht o força a se m odificar sempre, tanto que no fim de sua vida, no tal “tea­tro dialético” , não se sabe muito bem o que ele estava propondo — já estava bo­lando uma outra coisa. Conheci o Berliner Ensem ble há doze anos, um pouco an­tes da queda do muro de Berlim. Ele estava ficando muito rígido, e H einer M üller m elhorou um pouco essa situação. Tenho a impressão de que Brecht, nos últimos anos, já estava se sentindo sufocado com essa rigidez. Ele queria ir para a Suíça, sentia-se sufocado em Berlim, não agüentava mais aquilo. M as tem toda essa ques­tão prática, que estava dentro de um com prom isso partidário, da organização de um trabalho. E sua situação era muito delicada, já que nunca foi bem-visto na Rússia. Ele tinha que cam inhar sobre ovos. Tenho a impressão de que se ele não tivesse m orrido, teria ido para Zurique.

Pensando ainda no teatro atual, como o senhor vê o quadro brasileiro, tanto em termos das encenações feitas como das obras teóricas produ­zidas? Que grupos teatrais o senhor destacaria como mais relevantes?

O s paulistas, pois São Paulo tem um “ laboratório” muito grande. N o Rio também há coisas boas. O que é fantástico no teatro brasileiro de hoje é que reflete mais ou menos com fidelidade a situação internacional. Então há um experimentalismo muito rico, com diversas linhas de funcionam ento que são de certo m odo mundiais. As preocupações de base são idênticas. Todos têm certas matrizes que são fundam en­tais: a palavra e o corpo — duas coisas que se com portam uma em relação ã outra. Pensando bem , Brecht já era assim , Antunes [Filho] é assim, Zé Celso jM artinez

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CorrêaI é assim e Gerald Thom as é assim. Vê-sc por aí a fantástica diversidade de posições. ( ) que me encanta é justam ente isso, essa falta dc m onotonia — já não dá mais para agüentar o teatro chato , aquelas fórm ulas pisadas e repisadas. Então a gente tem de ver o panoram a do teatro mais arejado, mais criativo e com mais téc­nica, pois o teatro não pode ficar nas mãos de amadores.

Como o senhor avalia os escritos de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi?

São grandes amigos meus. .\cho que fazem parte de um m om ento im portante da evolução do pensam ento sobre teatro no Brasil. Foi por meio do Estadão e do T B C que o teatro com eçou a apresentar uma m aior m aturidade profissional e produziu também esse tipo de crítica profissional. Eles tiveram um papel muito im portante dentro dessa evolução do teatro brasileiro. O trabalh o de Sábato sobre Nelson Rodrigues foi im portantíssim o. N ão sou um grande fã de Nelson Rodrigues, em ­bora sua linguagem tenha sido fundamental para o teatro brasileiro. M as quando vejo uma de suas peças, penso: “ Esse cara é um ‘cato licão ’ ” . Ele tinha de colocar sentimento de culpa na gente? .A grande tarefa da cultura contem porânea, com M arx, com Freud etc., foi erradicar o sentim ento de culpa, e Nelson quer colocar o senti­mento de culpa. É um catolicão! Recordo-m e de um artigo de Gustavo C orção sobre Nelson Rodrigues que dizia: “Esse é um dos nossos” . Por meio desse artigo é que com ecei a entender esse mecanism o de culpa em Nelson: ele tem o sentim ento do pecado e não vai além disso, cultua o pecado, que é a grande realidade para ele. N elson Rodrigues pode ser ateu e tudo o que ele quiser, mas essa realidade do pe­cado teológico é forte em sua obra. Então não tem muito futuro, é um limite de sua obra, pois não consegue ultrapassar essa teologia do pecado. E uma coisa fantas­m agórica de sua cabeça.

Em Páginas de filosofia da arte, o senhor afirma: “Hoje, ponho-me a imaginar um cinema outro, os albores de uma nova arte, que nem ima­gino por onde andarão. Fica a promessa: se tudo passa, o cinema con­segue colocar esse problema m aior — o do próprio futuro da arte”. O senhor poderia nos falar um pouco sobre essa idéia de uma “nova arte” e sobre a sua relação com o cinema f

É um exagero falar assim, mas diria o seguinte: hoje, as artes da representação es­tão com pletam ente dissociadas. No passado, sempre tivemos uma unidade muito grande. M as, com essa questão, voltam os novamente ã questão da m áquina, por­que a máquina no teatro grego, medieval e até no barroco era fundam ental, pois tinha uma função teológica. Ela fazia repetir, por exem plo, os milagres de Cristo. E o povo gostava do fabricante da m áquina, porque, de repente, via-se São Pedro cam inhando sobre a água sem afundar. Isso era simplesmente um truque. Então, até o barroco, havia essa junção entre a palavra e a máquina. Vi há pouco o Orfeu de M onteverdi. N o fim, há a cena de Orfeu e seu pai Apoio, que salva o filho e o conduz para o céu. E eles sobem ao céu cantando — uma cena belíssima. Sobem e a máquina é necessária para a suspensão. Dessa form a, a máquina existia com uma força muito grande. H oje, não há mais isso, quer dizer, houve uma dissociação muito

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grande. Tivemos a radionovela, passamos pela televisão, teatro e cinem a, e está tudo dissociado. E lógico, por uma espécie de coerência interna, im aginar que isso vá se fundir de alguma m aneira, pois, no passado, sempre houve essa fusão. E quem percebeu isso muito bem foi Brecht, que trabalhou com Piscator e foi o primeiro que ficou fascinado pelo cinem a dentro do teatro. Ele viu um espetáculo em Paris, m ontagem de Barrault, que colocou com o cenário uma vela de navio. De repente, voa uma pom ba, o Espírito Santo, que foi filmada e projetada na vela. Isso, segun­do Brecht, foi a primeira experiência de cinem a em teatro. Ele detestava C.laudel, evidentemente, mas ficou impressionado com aquilo. Brecht, com o Barrault, tinha essa preocupação em fazer a síntese. Ele gostava da máquina porque ela ficava apa­rente para o público. E legítimo im aginar que mais cedo ou mais tarde vão ser fei­tas coisas assim. N ão sei com o vai ser, mas o normal é que haja essa síntese. Inclu­sive uma síntese pela qual o espectador pudesse participar mais diretam ente.

Nessa imagem, como ficaria a música?Aí o problem a é com a literatura — com a literatura codificada. Ela adquiriu uma espécie de solenidade nos últimos séculos que não tinha, que nunca teve. O texto na Grécia, por exemplo, era todo conhecido, com histórias conhecidas. N ão se podia mexer! O que está escrito na Bíblia, por e.xemplo, está escrito, e é sacrilégio mexer naquilo. E isso foi substituído por uma glorificação da língua, o que é muito nega­tivo. .Vias essa situação está se transform ando. Se você pega N elson Rodrigues, por exem plo, não há nada de solene em sua linguagem. E a melhor coisa de seu teatro é a linguagem, aliás, o que todo mundo fala e está certo. M as ele não tem preten­sões de alta literatura, tem apenas um linguajar cotid iano muito saudável e muito bonito. Quer dizer, as coisas estão se transform ando. A tendência é a síntese, e quem mais se aproxim ou disso foi Chaplin. Chaplin também teve uma capacidade de sín­tese fantástica, pois reabilitou a mímica, a pantom im a, colocou texto quando pôde colocar e procurou uma reflexão do cinema dentro do cinem a, na sua própria téc­nica. Já me ocorreu isso, mas nunca ouvi ninguém afirm ar. .Aqueles filmes mudos do início de sua carreira eram todos quebradinhos, eram pulinhos. .Vlesmo a m a­neira com o fez Tempos modernos é assim , tudo cm pedacinhos, e ele com eça a cam inhar assim , porque essa é a técnica do cinem a. Então ele inventa uma técnica de atuação física que imita a técnica cinem atográfica. Carlitos foi um homem de síntese, de associar todas as coisas.

Chaplin seria o Brecht do cinema...C laro , Brecht era m aníaco por cinem a e gostava muito dos filmes de Chaplin. M as tenho a im pressão, em bora não saiba quando ocorrerá isso, de que surgirão tenta­tivas de síntese. Há um processo de fragm entação, e de dissociação, que é extraor­dinário, que vem já do século X V II. Será normal que uma pessoa faça a síntese. As coisas estão muito estruturadas. Nesse sentido, quero uma espontaneidade mais saudável.

£ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar.Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe-

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nômetto essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutaras questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

T em o que o Estado hoje esteja passando por uma crise muito forte, e há a necessi­dade interna de transform ação. O problema é saber com o pensar hoje uma sociedade sem o Estado. N o fundo, são certos tipos de organização que têm de ser reestru­turados. C laro que não se deve confundir Estado com governabilidade, a gover­nabilidade é um conceito muito mais am plo, e o Estado m oderno muitas vezes é confundido com ela. A análise de Hegel sobre isso é fantástica, mas é uma “ sin fo­n ia” . Entretanto , tanto no Manifesto comunista, quanto no Capital, M arx fala do Estado e o associa à violência. Já Hegel fala no “terreno divino”, na soberania di­vina em última instância, quer dizer, ele elogia o Estado. E há uma outra im plica­ção nessa questão: o capitalism o. O Estado está por detrás do capitalism o, m ani­pula o capitalism o, daí a violência. M as podemos pensar o Estado sem o capitalis­mo. Isso é praticam ente impossível. Pode haver, no m áxim o, uma certa transfor­m ação interna. Simplesmente superar o Estado não é possível, porque daí vira uma esculham bação universal e absoluta. O curioso é que M arx era muito otim ista, dizia que só tinha de se estatizar duas coisas: o banco central e o transporte, para garan­tir a locom oção do povo na Revolução. E isso tudo tem de durar o mínimo na di­tadura popular. Tem de durar pouco tempo para se reestruturar tudo. Quer dizer, M arx parte da possibilidade de que se pode reestruturar tudo com o se fosse um jogo de xadrez, que se pode fazer um outro tipo de distribuição da riqueza. M as, hoje, já se sabe que as coisas não são bem assim , e que tudo e mais com plicado. E que o desvio do m arxism o feito por Stalin e Lênin, no fundo, foi uma necessidade histó­rica. O velho M arx era muito ingênuo, pois não é fazendo um castelo de cartas que se vai transform ar o capitalism o.

Eu não vejo saída. E tem mais uma coisa: nós não tem os mais grandes políti­cos, com o não tem os grandes filósofos, com o não temos um novo Picasso ou um novo Brecht. Isso é uma coisa muito séria, temos de tom ar muito cuidado para não cair em uma situação meio fascistóide. M as, até a metade do século, na direita ou na esquerda — isso não interessa — , havia política e havia políticos que dom ina­vam o mundo. H oje é tudo m uito ruim e tudo m uito fraco. Então, com o é que fica a política? Quem faz uma reform a? Tem de surgir um político forte. Por que não surge um Picasso novo? Isso é um problem a, pois não posso fazer um clone de Picasso. M as eu acho que o mundo está precisando de política e de gente que saiba ter as rédeas na mão. N ão estou falando de ditadura de esquerda ou de direita. No passado, tinha H itler, tinha Stalin, tinha Churchill e Roosevelt. Esse era um grupo de gente que tinha as rédeas na mão. Pode-se pensar em G etúlio, Perón, M ussolini, Franco, Salazar, todo um nacionalism o de direita ou dc esquerda. Havia a vanta­gem de uma diretiva, de uma orientação. N ão tenho nostalgia dessa política, mas faltam política e políticos que saibam ter as rédeas na m ão. Isso está faltando. Está tudo muito óbvio, Fernando Henrique pensa com o se o capital fosse cam inhando

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sozinho, não há projeto para nada, não há necessidade. Assim não se pode gover­nar, e ele não governa mesmo.

Cowio o setthor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé f Eu sou ateu convicto. Isso não quer dizer que eu desrespeite a rehgião. Para mim, a questão de Deus é essenciahnente histórica; quer dizer, tudo o que a fé, a rehgião. Deus, a divindade, a política, no passado, fizeram para prejudicar o homem faz parte de um princípio de alienação muito violento. Isso foi danoso, e acho que a Igreja foi a m aior assassina da história, pois destruiu culturas inteiras com uma facilidade bru­tal. Essa história do descobrim ento é um fenômeno muito am bíguo, porque a alteri­dade vem para cim a. e com o é que se “engole" a alteridade? Tem de m atar e acabar com tudo. Eu espero que a fé e a religião desapareçam . Pela primeira vez na histó­ria, o homem está fazendo a experiência do ateísm o coletivo. Nós, no Brasil, ainda temos religião, porque estamos num país subdesenvolvido, mas na França, na .Alema­nha, tem pouquíssima religião. Uma psicanalista da antiga Alemanha O riental es­teve aqui há pouco tempo e eu lhe perguntei com o, depois da queda do m uro, esta­va a situação da religião. Ela falou que não há mais. .\s vezes surge um ou outro caso patológico. Nesse sentido, a experiência da Alemanha O riental foi fantástica. Foram três gerações de experiências socialistas que desmoronaram, e, com isso, todos os ideais e todas as crenças desapareceram . Eles não voltaram para a religião, e esse fato é extraordinário . Esse tipo de experiência é im portante, porque não se restrin­ge só ã classe culta, mais elevada, mas ã classe popular tam bém . Se se pega toda uma sociedade, uma cidade com o Berlim, ninguém mais pensa em voltar para a re­ligião. Simplesmente acabou. Então, tem de se inventar uma religião muito diferente.

Se eu tivesse de escolher uma religião, sabe qual escolheria? A grega, porque é a mais humana. Os deuses não têm nada a ver com o am or cristão e essas boba­gens. É simplesmente o pensamento que pensa a si próprio. Apoio é o deus do Sol, da cabeça e do pensam ento. Tod os põem em primeiro lugar o pensamento na mi­tologia e na filosofia, e deus sempre é o pensador principal. Então, acho muito mais interessante a filosofia com o ciência. .A ciência pode modificar as estruturas sociais, ela é essencialm ente revolucionária. Por isso é que a questão da mentira também se torna im portante. Tudo se liga, tudo forma um con junto, e trata-se de um proces­so de libertação. Pode ser meio ingênuo, mas há um processo de transform ação em curso, e o homem tem medo disso, pois não é fácil aceitar essas coisas.

Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudançade paradigm a” da fdosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcadana linguagem?

Tem de aparecer o filósofo. Eu não concordo com o que fazem hoje com a lingua­gem, na medida cm que se cai numa objetivação generalizada. C om o é que vai ser a filosofia? .Vias agora eu acho que há uma espécie de crise. A coisa está indo num tom m enor, mas logo surge alguém. A gente está muito acostum ado com a filoso­fia m oderna, que dura do século X V I até hoje — é muita filosofia. Então não dá para saber que tipo de pensamento vai de fato ocupar a sociedade. Esse pensam en­to terá de estar voltado para a tecnologia, para a com putação, eletrônica etc.

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o senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana f Em que consistiria tal utopia?

Utopia no sentido dos soniios. C^laro que a gente sempre vai sonhar com uma socie­dade ideal e coisas desse tipo. M as acho que a utopia se com plica no século X X — e isso não está no meu livro — , porque surge, de um lado, toda uma literatura antiutópica, com o O admirável mundo novo, de Aldous H uxley, que esvazia a idéia de utopia. E essa utopia tem uma linha que vem de Thom as M oore, passa pela experiência socialista do século passado e chega ao esvaziam ento no século X X .

Há tam bém uma nova utopia que deve ser pensada — e ninguém está pen­sando isso — , que é a utopia cientificista, das histórias em quadrinhos. C om o é essa utopia das histórias em quadrinhos? O s autores fazem que tipo de projeção? Qual é o im aginário (e utopia é imaginário) que está na base? Tem uma evolução? C a­minha de que m aneira? Porque o nosso im aginário está hoje form ado por essas histórias. E é essa a utopia de hoje, a tecnológica. Por exem plo: a fantástica loco­m oção das naves que fincam os céus e os universos. N ós estam os apenas no princí­pio disso. M as aí eu gostaria de saber porque surge esse no\'o tipo de utopia justa­mente na história em quadrinhos? Por que surgiu nesse meio? E tem futuro: o avião já é uma coisa anacrônica, o automóvel é execrável, tem de se acabar com essas coisas. Então eu fico perplexo, pois a utopia acom panha o pensamento moderno. .Acho que a intervenção que faço deve estar correta, porque não tem nada de Pla­tão , S. A gostinho, coisas antigas. F. a capacidade reflexiva do hom em , de auto-re- fletir, de criticar-se, que está presente na utopia.

E aí voltam os para a questão da transparência, pois a sociedade moderna é transparente demais. Com o é que, de repente, o homem se torna tão transparente? Quem tentou fazer isso foi o velho Aristóteles, que queria colocar tudo em conceitos. Foi o único na G récia, na terra da filosofia, a fazer isso. Para nós, hoje, isso é um hábito cotidiano, (,'om muito m arxism o, muita psicanálise, surgiram as técnicas da transparência. E isso afeta a organização da sociedade. Há um esfacelam ento mui­to grande do Estado, para o qual ninguém está vendo a saída, e que tem de ser acom ­panhado por uma exigência de reflexão muito forte. .Vias a coisa está fervendo, essa transparência é uma das coisas mais impressionantes que existem hoje em dia, e teria de ser analisada do ponto de vista sociológico para ver a sua relação com a utopia.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais pro­blemas?

\'ejo com o o horror, mas o cam inho é clássico: pedagogia. E através dessas experiên­cias negativas que vamos poder construir um novo regime. N ão se pode apenas tapar os buracos. N o passado, tapavam -se os buracos, mas hoje em dia não dá mais para fazer isso, tem de se enfrentar os problem as. E a questão ecológica está aí, é um tema político. Existe a parte tecnológica, que é fundam ental, mas tem de se ver o processo de conscientização que está havendo. Aqui no R io , por exem plo, é muito forte. Em São Paulo tam bém deve ser, em qualquer cidade da Europa tam bém . Os bandidos podem ser mais facilm ente desm ascarados nessas questões. É com o esse

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problema da Petrobrás, que ocorreu agora: esse tipo de problem a ocorre por pura negligência, e deve haver punição séria, pois não se pode com eter esses crimes. Nunca conseguiram despoluir essa Baía da G uanabara!

Nessa entrevista, o senhor levantou alguns temas sobre os quais tem trabalhado atualmente, como a antropologia e a questão da alteridade, a máquina e o organismo, e mesmo a moral da finitude. Como o se­nhor vê esses temas em sua produção futurai

Eu sou muito fragm ento. N ão planejo as coisas, tenho diversos livros na cabeça que estão por ser escritos, mas não tenho tem po, devido a ser sempre convidado para me ocupar disso e daquilo — e não é possível recusar tudo, senão fico trancado dentro de casa. Estou planejando um livro sobre antinom ias que pode ser muito interessante. Parto do princípio de que o nosso mundo estaria povoado por anti­nom ias, com o, por e.xemplo, a questão entre sujeito e ob jeto — essa questão é uma antinom ia que se com plica. Ou então, uma outra questão antinôm ica, a linguagem de cálculo e a linguagem de criação — uma antinom ia que tam bém se com plica. O utra, ainda, é a antinom ia presente na relação entre sistema e fragm ento, pois hoje somos sistema e fragmento ao mesmo tempo. Descobri que há umas dez antinom ias [risos]. Q ueria, então, fazer uma análise que passasse pela questão da linguagem, da organização social, uma espécie de ensaio para analisar tipos de antinom ias — e não a lógica de antinom ias.

Deve sair em breve uma reedição de Metafísica e finitude, em que acrescentei mais dois ensaios. Há ainda mais uma coletânea de ensaios para sair. Eu quero também reeditar a Dialética: teoria praxis, mas sem correção nenhuma, porque não dá tempo de fazer.

Principais publicações:

19 6 7 Os filósofos pré-socráticos (São Paulo: C ultrix, 1985 );1969 Introdução ao filosofar: o pensamento filosófico em bases existenciais {Porto

Alegre: G lobo);1969 O sentido e a máscara (São Paulo: Perspectiva);1971 Sartre: metafísica e existencialismo (São Paulo: Perspectiva);1973 Metafísica e finitude (São Paulo: Perspectiva, reedição no prelo);1 9 7 7 Dialética, teoria praxis: ensaio para uma crítica da fundamentação onto­

lógica da dialética (Porto .Alegre: G lobo);19 8 0 C) idiota e o espírito objetivo (Porto Alegre/ R io de Jan eiro : Globo/Uapê,

1998);1983 Teatro: a cena dividida (Porto .Alegre: I .& P M );1993 Brecht: a estética do teatro (R io de Janeiro : G raal);1998 Páginas de filosofia da arte (R io de Janeiro : Uapê);1998 O conceito de descobrimento (R io de Janeiro ; Eduerj).

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Bibliografia de referência da entrevista:

Aristóteles. Metafísica, M adri: Editorial Gredos.____________. Poética, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.C'omte, A. Curso de filosofia positiva, coleção Os Pensadores, Abril Cultural. Foucault, -M. As palavras e as coisas, M artins Fontes.Freyre, G. Casa grande e senzala, José O lym pic.Hegel, G. W . F. Estética, Lisboa: Guimarães.____________. Fenomenologia do espírito. Vozes.Heidegger, M . Ser e tempo. Vozes.____________. Chemins qui mènent nulle part, Paris: Gallim ard.____________. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Kant, L Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.____________. Crítica da faculdade do juízo. Forense.M arx, K. O capital, coleção Os Econom istas, .Abril Cultural.M arx . K. e Engels, F. Manifesto do Partido Comunista, in Ohras escolhidas. Alfa

Omega..Merleau-Ponty, M . Fenomenologia da percepção, M artins Fontes.Sartre, J.-P . O ser e o nada. Vozes.____________. Crítica de la razón dialética, Buenos Aires: Losada.____________. Cahiers pour une morale, Paris: Gallimard.____________. C oleção Os Pensadores, Abril Cultural.

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B E N E D IT O N UN ES (1929 )

Benedito Nunes nasceu em 1 9 2 9 , em Belém (PA). Form ado em D ireito, foi editor da revista Norte. Criou o curso de Filosofia da Universidade Federal do Pará, da qual é hoje professor em érito. Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2 0 0 0 .

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances. O s anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri­meiro, o foco está posto na fonnação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas­se de sua fonnação intelectual?

Sou um autodidata, talvez o liltim o representante dessa espécie em extinção. For- mei-me em direito, e passei a lecionar filosofia com 19 anos — desde cedo, já es­crevia sobre questões filosóficas e literárias. Flavia um suplemento literário muito bom aqui, que durou de 1946 a 1 9 5 1 , cham ado Suplemento Literário da Folha do Norte, que não só publicava matérias locais, de escritores locais, com o publicava tam bém escritos de Drum m ond, de Cecília M eireles etc. Com o se filiava a um ser­viço de distribuição de matérias jornalísticas, o Suplemento recebia sem analm ente um envelope com artigos de O tto M aria Carpeaux, Álvaro Lins etc. Publiquei muitos textos nesse suplemento.

O utro dia eu contestei uma biografia minha que dizia que eu era form ado em filosofia. Sou formado em Direito. Eu tinha um tio que morava em São Paulo, Carlos Alberto Nunes, que era tradutor. Ele estava disposto a me receber em sua casa para eu estudar filosofia na USP. .Meu estudo seria custeado por um outro tio, irmão dele, que naquela época era banqueiro. M as esse meu tio banqueiro faliu. F o que eu ia fazer? Entrar para medicina? Para farm ácia? O dontologia? Acabei entrando em direito, onde se ensinava bem teoria do conhecim ento. Trabalhávam os muito o li­vro de Flartm ann: Metafísica do conhecimento. Grande parte desse livro era dado no curso de direito. Essa parte foi muito boa, mas o resto eu abom inava, principal­mente a parte de legislação e de direito positivo. E isso foi bom porque, nessa épo­ca, com ecei a nam orar minha mulher — que era minha colega — e, com o não gos­tava do curso, tínham os muito tempo e condições para nam orar [risos].

Havia bons professores aqui, com boa form ação. Tod os eram autodidatas. N ão tive um professor que tenha feito curso de pós-graduação. C laro que todos tinham a fam osa tese. M esm o para o curso ginasial era exigida a defesa de uma tese. Tinham de escrever com os próprios m eios, não havia bolsa, não havia orientador. Editava-se a tese e apresentava-se a uma banca constituída por outros autodidatas.

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D eixa eu m ostrar um texto que fala da tese de Francisco M endes, Raízes românti­cas, escrita em 1944 : “Naquela época, exigia-se da parte dos que lecionavam no curso médio uma tese com o dem onstração de sapiência, escrita sem orientador ou bolsa, mas que por força das cirscunstâncias tinha de ser invenção do candidato, com as obras apontadas na bibliografia de sua exclusiva propriedade. À falta de bibliotecas locais atualizadas, o candidato era o dono real dos livros que citava. Tinha de os possuir guardados em sua casa” . Eu tive de com prar os meus próprios livros, porque aqui não havia livros. Havia som ente o de Estevão Cruz — uma história da filosofia — e o de um senhor cham ado Lars, que era escolástico, editado pela M e­lhoram entos. Depois surgiu Teobaldo de M iranda Santos. Q uando com ecei a dar aula na Faculdade de Filosofia, eu traduzia certos textos do francês, do inglês, e passava para os alunos — isso foi um ótim o exercício. Com ecei ensinando no gi­násio, no tem po em que havia filosofia no ginasial, que era um pouco de psicolo­gia, de história da filosofia, um pouco de ética. O s alunos gostavam muito quando eu falava sobre psicanálise — que era um novidade e despertava muito interesse.

Como se deu a decisão de seguir uma carreira acadêmica em filosofia?Bom , teve aquela história de entrar na filosofia, que gorou por causa do meu tio banqueiro. D aí eu fiz uma espécie de autodidatism o sistem ático e metódico [risosl. I.ia Hegel durante meses, toda a Fenomenologia do espírito, a Filosofia da história etc., e ia anotando num caderno. Passava em seguida para Husserl, lia as Idéias para uma filosofia fenomenológica, as Investigações lógicas. Na verdade, eu estou mui­to nesses caderninhos que estão atrás de vocês, nesse arm ário. Há dezenas de pe­quenos cadernos. Li sistem aticam ente tam bém Heidegger. Prim eiro li em espanhol, que foi a primeira tradução de Heidegger, anterior ã tradução francesa. A tradu­ção francesa foi tardia, com o também a brasileira. Em relação a esta última, não gosto da tradução do term o Dasein por “presença” . É aquela história shakespea- reana: um defeito põe tudo a perder. Escrevi um artigo, que não publiquei porque adm iro muito a M árcia — a tradutora — , em que há um trecho de Heidegger que diz: “Dasein não é presença. A presença é conta das coisas e dos o b je to s” . Alguns ainda separam “pre-sença” : “sença” com o verbo ser. Esse etim ologism o é “b rabo” .

Em sua Aula Inaugural do ano de 1999, na UFPA, o senhor diz que a partir da geração de 1870, uma parcela da intelligentsia paraense com­posta de médicos, advogados e professores, “a maioria sem fonnação acadêmica especializada, realizou a conquista de sua identidade inte­lectual à custa de afincado autodidatismo, que ainda se prolongou por muitos anos em um bom número de seus herdeiros, já quando partícipes do magistério universitário”. E o senhor lembra que “José Veríssimo foi o melhor e mais competente autodidata dentre os expoentes paraenses das idéias novas”. Na sua visão, o que distingue a sua geração daque­la de José Veríssimo e da imediatamente posterior?

O autodidatism o da geração de José Veríssim o tinha as .suas enorm es falhas, mas fez com que ele se encam inhasse para a antropologia, escrevendo trabalhos notá­veis. A minha geração, em grande parte, foi alcançada pela preparação dos cursos

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Benedito Nunes: “ Enfim, fazer filosofia é descobrir um novo ângulo não só para analisar as doutrinas passadas, a própria história da filosofia, mas para colocar sob nova angulação o con­creto, o real. a história, a sociedade etc. Quer dizer: fazer filosofia é pensar de novo aquilo que é com um ".

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de pós-graduação. É isso que distingue a nova geração: é beneficiada — e às vezes prejudicada — pelos cursos de pós-graduação. Digo prejudicada porque muitas vezes esses cursos levam a uma rotina, uma rotina muitas vezes de escrita. E são raros os trabalhos que dão o prazer da leitura, pois, na sua m aioria, são uma espécie de relatórios aborrecidos. H á, no entanto, exceções notáveis. Certa vez recebi uma tese de Joaquim Brasil Fontes, de Cam pinas, que queria que eu participasse de sua ban­ca de tese. O trabalho era muito honroso. Com ecei a ler, e foi um deslum bram en­to, era um trabalho m agnífico, um trabalho de um helenista sobre Safo. Ele partia de Baudelaire, chegava a Safo e, depois, traduzia os seus fragm entos. São essas sur­presas que com pensam . Então, pode-se dizer que Joaqu im tem uma form ação re­gular no velho estilo, e tem um com ponente humanista muito grande em sua fo r­m ação. E é esse com ponente que, no curso de ciências hum anas, falece um pouco a cada dia, pois está faltando o conhecim ento de línguas. Até mesmo a leitura em voz alta de certos estudantes é penosa, é gaguejada. Isso é uma deficiência que a for­m ação regular deixa. N ão estou criticando com isso os cursos de graduação, estou criticando essas deficiências que não são supridas. Na verdade, essas deficiências dependem de um esforço pessoal que recua até esse fundo de reserva que chamei de autodidatism o. Se você não se empenha realm ente, se você não é um pouquinho apaixonado pelo que faz, não há jeito ...

O senhor vê então uma linha de continuidade entre a geração de José Veríssimo e a sua?

Sim. Francisco M endes era um autodidata, e era form ado em direito tam bém . Foi ele quem com eçou a me ensinar literatura. C laro que hoje o M E C não deixaria que esse tipo de coisa acontecesse |risosJ. Eu ensinei filosofia porque, naquele tem po, o M E C tinha um concurso feito nos estados cham ado Exam e de Proficiência, e era isso que dava a autorização para lecionar.

Também em sua Aula Inaugural de 1999, na UFPA, o senhor enfatizou a importância da existência de uma intelligentsia, que precedeu a cria­ção da Universidade do Pará, “e que já formara uma cultura erudita sem a qual a nossa Universidade não teria existido. E também verda­deiro que, criados esses estabelecimentos de ensino superior, surgia em 1957 algo novo, a form ação universitária, que no Brasil foi uma tar­dia floração da terceira década deste século, próspero no Sul e no Nor­deste, entre 1934, data da fundação da Universidade de São Paulo, e 1946, data do aparecimento da Universidade de Pernambuco. A do Distrito Federal, depois da Universidade do Brasil e da Bahia, apa­recidas respectivamente em 1936 e 1946. E evidente que a cultura eru­dita, já antes desenvolta, vai radicar-se na universidade como fonte ins- titucionalmente forte em ensino superior de técnicas, artes, letras, ciên­cias e filosofia”. O senhor considera que esse enraizamento da cultura erudita local também se verificou na fundação de outras universida­des, ou seria essa uma peculiaridade daquela que viria a ser mais tar­de a UFPA?

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Se nós adm itirm os o autodidatism o com o gerai, isso pode ter ocorrido em outras universidades. .Vias não tenlio base para afirm ar isso. Conlieço a situação muito peculiar daqui, não só porque tive contato com pessoas da geração passada, com o também devido ã minlia própria experiência de autodidata. N ão posso generalizar isso para toda parte, mas é possível que sim. Dado que a universidade surgiu tardia­mente entre nós, e dado que a produção intelectual, mesmo com grandes falhas, não cessou, essa form ação extra-universitária sempre ocorreu. Isso nós vemos mais na literatura e menos na filosofia. M as a filosofia, a meu ver, já exige uma espécie de apropriação da tradição antiga, quer dizer, sem Platão e Aristóteles não há filo­sofia. O Platão da universidade é uma coisa singular. De qualquer m odo é uma contribuição extra-universitária, porque da universidade propriam ente dita não surgiu isso. Isso veio de fora. Certa vez, em São Paulo, o meu tio C arlos Alberto disse-me que estava disposto a ceder os direitos autorais de Platão para quem qui­sesse assum i-los. porque a M elhoram entos já havia publicado os diálogos mais com uns — os pequenos diálogos. Isso com eçou a ser publicado na época da adm i­nistração de .Aluísio Chaves — são onze volumes no total. Agora estão tratando de reeditar, com eçando por A Repiiblicd. M as falta dinheiro à universidade, aliás, acho que falta vontade de fazer alguma coisa.

O trabalho do meu tio era m onum ental: ele escrevia ã m ão, datilografava e encadernava. Eu tenho todos os cadernos. Precisava de uma disciplina muito gran­de para realizar isso. Antes ele traduziu a OíiisséIíJ e a Ilíadii de H om ero, de que .Viário Faustino gostava muito. M eu tio foi um dos meus grandes fornecedores de livros. Q uase todo mês eu recebia um pacote de livros vindo de São Paulo, com rom ances, livros dc filosofia. Por exem plo: a edição de 1921 que tenho de K ant, de Berlim, foi presente dele. A edição original de Schelling tam bém . A la recherche du temps perdu, de Proust, na edição da Gallim ard do tempo da Guerra, feita no C a- nadà em doze volumes, foi ele tam bém que me forneceu.

Vlas ele era engraçado, um pouco arcaizante. Ele sabia muito a respeito de Platão, de .Antiguidade em gérai, mas não prezava literatura moderna. Até os dra­mas que ele escrevia eram em versos. Eu não gostava, e ele sabia disso. A minha entrada no modernismo foi para valer.

O senhor escreveu o “Prefácio” à reunião dos poemas de Max Martins,N ão para consolar. Esse “Prefácio” pode ser considerado também como um documento de balanço geracional. O senhor afirma que o grupo de intelectuais a que estava ligado teve como uma de suas experiências decisivas a reunião em tomo do Suplemento Literário da Folha do Norte, fundado e dirigido por Haroldo Maranhão, também ele um membro destacado desse circulo de intelectuais. Nas sttas palavras: “o encarte dominical da Folha do N orte, que durou de 1946 a 1951, também di- recionou a convivência intelectual que nos ligava. Por meio do nosso atualizadíssimo mestre Francisco Paulo Mendes, ligatra pessoas mais velhas ou apenas menos jovens do que nós. Por fim, criou-se um espí­rito comum na maneira de sentir e de pensar o mundo real e a literatu­ra”. No que consistia esse espírito comumi

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Esse espírito com um era o cultivo dos mesmos autores, poetas e filósofos, muitos dos quais M endes apontou para nós. Ele dizia: “ Leia Julien Green, leia François M auriac, ou então leia Rainer M aria R ilk e” , pelo qual ele era apaixonado. Então surgiu esse espírito com um que, com o todo espírito com um , era um pouco faccio­so, pois nós culti\'ávamos esses autores e detestávamos outros. Esse grupo era fo r­mado por duas gerações diferentes: uma geração mais velha, da qual participavam Francisco Mendes, Rui Barata — que era poeta — , Paulo Plínio Abreu — que morreu cedo — ; e a outra geração, que era formada por mim, .Viário Faustino, M ax M artins, Cauby Cruz — que também morreu novo e era poeta. Essas duas alas se uniram em torno do professor VIendes, numa mesa do Café Central — o qual desapareceu há muito tem po. N aquela época, havia ainda relações que se form avam em torno de mesas de café. O golpe de m isericórdia foi dado em 1 9 6 4 , porque todos esta­vam sob suspeita de ser com unistas. C laro que nós éramos mais de esquerda do que de direita — óbvio! Tínham os as nossas sim patias, tínham os amigos com unistas, mas não pertencíam os a nenhum partido, o que fazia parte desse espírito com um . Encontrei uma frase em um livro de Unam uno, que eu usava muito naquela época, corroborando as posições de M endes, que dizia: “homem de partido, homem par­tid o” . E, assim, esse grupo durou muito. VIendes, depois, continuou a debater idéias e expor seus pontos de vista na casa de um am igo mais velho, que não freqüentava o Café C entral, V lachado Coelho. Essa fase foi muito im portante, porque daí co ­m eçam os a conhecer certos autores, e eu com ecei a conhecer certos filósofos com o Heidegger, Sartre, Paul Landsberg.

Como esses autores chegaram ao senhor? Através de alguém, ou foi descoberta solitária?

.Vluitos eu descobri sozinho, com o Unam uno, por exem plo. Landsberg e Sartre foi

.VIendes quem descobriu. Ele era o elem ento catalisador, dava inform ações e ju lga­va os poetas. Eu tentei ser poeta. Até essa fase, acho que não havia brasileiro com form ação literária que não tentasse ser.

E o crítico Francisco Mendes matou o poeta Benedito Nunes...Ele agiu certo , viu que eu não era poeta. Q uando eu apresentava meus poemas, percebia que ele não gostava m uito, em bora fosse sempre muito delicado. E foi ele quem me encam inhou para o ensaio. O prim eiro ensaio que fiz, em que citava Paul Landsberg, cham ava-se A morte e o cotidiano em Ivan Illitch — ensaio que eu não publicaria hoje. Ivan c a personagem de Tolstói. Depois, escrevi um ensaio sobre M ário Faustino, e um sobre Fernando Pessoa.

A leitura do “Prefácio” a N ão para consolar indica que a sua geração não recebeu imediatamente o impacto modernista da Semana de 1922, nem da passagem de Mário de Andrade por Belém em 1927, de modo que a recepção da Semana viria já amalgamada à da chamada gera­ção de 194S. Mas o senhor afirma que isso não pode ser computado simplesmente ao isolamento, aliás, bastante relativo. O que havia a mais, além do isolamento? A leitura do mencionado “Prefácio” suge­

Convcrsas com Filósofos Brasileiros

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re-nos, parece, que saltara etapa da Semana foi, antes de tudo, um golpe de sorte para a sua geração. É assim mesmo? Como o senhor avalia esses dois momentos do modernismo brasileiro — o da Semana e o da gera­ção de 194.5?

Nós perdemos a Sem ana, e essa perda foi muito negativa, porque nós tínham os um fundo acadêm ico terrível, parnasiano, ao qual ficam os grudados durante muito tempo com a “Academia dos N ovos” . E essa academia prosperou. Lem bro-me bem que, antes de fundarm os a Academ ia, H aroldo M aranhão escreveu um artigo ata­cando a poesia m oderna. E a Academia foi fundada para defender a boa lingua­gem, os clássicos e, conseqüentem ente, o parnasianism o. Então, fez falta o conhe­cim ento acerca da arte moderna. Em 1945 , .Mário de Andrade m orria e nós está­vamos saindo da Academia. É bem verdade que entram os na academ ia muito cedo, eu devia estar no terceiro ano ginasial — devia ter meus 14 ou 15 anos.

Em um trabalho que vou publicar sobre o professor M endes, vou colocar um apêndice cham ado “ Crônica de uma academ ia”, m ostrando com o as pessoas pro­cediam , com o falavam — enfim , vou falar sobre o ritual acadêm ico. Isso era muito engraçado, principalm ente pensando hoje, com a distância do tempo.

Foi muito im portante ter conhecido a Semana por intermédio da geração de 1 945 . Essa geração fez uma forte crítica ã Sem ana, talvez um pouco exagerada, mas, de qualquer modo, salutar. Houve um balanço, e nós ficamos com os melhores; lemos muito Drum m ond e Cecília M eireles. M ário Faustino, quando entrou em contato com tudo isso, assumiu-se com o um poeta adulto. Salvo alguns poemas que publi­cou em jornal, o dom ínio que ele tinha sobre a palavra era muito grande. A princí­pio, escrevia apenas crônicas no estilo de Rubem Braga. Ele tinha uma prosa mui­to fina, m uito interessante, destinada para o leitor de jornal do bonde, do ônibus— eram muito rápidas.

Nesse mesmo “Prefácio”, o senhor escreveu o seguinte: “dois fatos re­levantes, em nossa vivência geracional, contribuíram para o desenvol- vimento da poesia de Ma.v ulteriormente à publicação de O estranho; a convivência intelectual com Robert Stock, e o impacto do livro de Mário Faustino O hom em e sua h ora”. Qual foi a contribuição desses dois fatos para o seu desenvolvimento intelectual?

A diferença de idade entre .Mário e mim era de apenas um ano — eu era um ano mais velho. N ós éram os muito am igos, e ele me ensinava inglês. Ele era um tipo exuberante que falava muito bem e m uito, mas não era um falastrão. N ós tínha­mos uma intimidade muito grande. Ele também foi cronista de cinem a, tinha crô ­nicas muito boas. Na época, passou no cinema daqui o Hainlet de Lawrance Olivier, e ele escreveu cinco ou seis crônicas sobre esse filme. Depois, foi aos Estados Uni­dos e com eçou a 1er os poetas em inglês.

Q uando voltou dessa viagem, R obert Stock já estava por aqui. Stock foi o primeiro beatnik. Era um misto dc ingenuidade com inteligência, e só pensava em literatura. Era um sujeito muito generoso, que certa vez fez a seguinte proposta, que revela bem o seu grau de ingenuidade e de argúcia; “N ós podemos fazer alguma coisa, podemos ir para os EUA, nossas mulheres trabalham , e nós ficam os o dia

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inteiro lendo” [risos]. E ele fazia isso realm ente. .Morava num bairro muito pobre— o bairro da M atinha — , num casebre de chão de terra, e era conhecido com o o “ homem da m atinha” . Ele era filho do dono de uma grande cadeia de frigoríficos, mas repudiou essa vida. Veio para cá atrás de um amigo que ia fundar uma co lô ­nia anarquista — eles eram “anarquistas espiritualistas” — na Ilha do Bananal. D aí ele chegou ao Brasil e o cam arada não veio. Ele, a mulher e a filha pegaram não um ita no N orte, mas um ita no Sul, e foram subindo pela costa. Chegaram ao M a­ranhão, onde estava acontecendo uma eleição muito disputada, e ele foi baleado, tendo de ficar hospitalizado por algum tempo.

Naquela época, eu tinha uma revista literária chamada Norte. Ele se mteressou por essa revista e foi me procurar. C^hegou aqui em 1950 . Tod o sábado ele ia me visitar, só não me visitava quando sua mulher lavava a sua única calça [risos]. Vias tinha um dos mais gigantescos Webster’s que já vi, e uma arca com todos os poe­mas de Drum m ond traduzidos para o inglês. Ele fez das traduções a sua obra, pois considerava a tradução com o um trabalho de recriação. Eu ainda tenho muitas notas do Bob. Ele se empenhava em dar à gente conhecim ento de coisas com o sonetos de Shakespeare. Ele traduzia um por um, palavra por palavra, explicando as acepções de cada palavra. Algo notável. Ele era um grande filólogo e se mantinha dando aulas de inglês. Anos depois, eu o revi em N ova Y ork. Já falava muito mal o português, mas m antinha as mesmas posições anarquistas de antes: era contra o governo am e­ricano, adotava um enorm e sím bolo da paz e fazia questão de m orar num bairro negro, em Long Island. Ele trabalhava com o free-lancer em publicidade.

Q uanto a Viário Faustino, posso dizer que era muito crítico , e isso me sacudia muito. Ele me deu uma dica que até hoje aceito e acato: a necessidade de escrever com clareza. Q uando eu m andava os artigos para o Jornal do Brasil, ele dizia: “Ó tim o, ninguém escreve coisas tão im portantes. M as é muito tortuoso, é preciso tornar as idéias claras” . Ele se elogiava, rindo de si mesmo, em tom de ridículo. É difícil conciliar nele tantos ângulos contrários e opostos. Ele criticava muito tam ­bém. Um dia, pediu para o meu sogro, que era desem bargador aqui, uma carta de recomendação para ir aos Estados Unidos. Víeu sogro pediu para ele escrever a carta. Ele fez a carta dizendo que tinha tais predicados, que conhecia isso e aquilo, e que “sabe inglês com o a sua própria língua” [risos].

Nesse ponto, M ário com eçou a e.scapar das influências do professor M endes, que tinha uma influência muito boa, mas francesa. M ário trouxe esses poetas de língua inglesa e deu sua contribuição para o grupo, porque, a partir disso, o pro­fessor VIendes passou a se interessar tam bém por esses poetas.

M ário era m uito esfuziante, muito risonho, sabia dar gargalhadas. Certa vez. uns estudantes procuraram -m e porque queriam fazer um recital dos poem as de Viário. M as o estilo que eles encontraram era o de um hom em tortuoso, ensim es­mado, e eu disse: “ mas o .Mário não é nada disso, vocês não podem recitar dessa m aneira” .

Eu fiquei com os livros dele, que vieram do R io . A mãe dele pediu que eu os dividisse com nossos am igos. C]hamei os amigos para escolherem o que quisessem. O que sobrou ficou com igo, inclusive a obra com pleta de Pound. É engraçado, pois •Viário não era poundiano do ponto de vista poético, era poundiano com o crítico.

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o senhor colaborou com o Suplemento D om inical do Jo rn al do Brasil na década de 1950, que era então um ponto de referência nevrálgico para o debate cultural brasileiro. Como o senhor avalia essa experiên­cia? Que diferença o senhor vê entre o Suplemento D om inical e o Su­plem ento Literário de O Estado de S. Paulo, que seria, por assim dizer, o seu “correspondente paulista” naquele período, e que era animado principalmente por autores ligados à revista C lim a?

Foi a partir de 19 5 9 que com ecei a publicar em ü Estado de S. Paulo, a convite de D écio de Almeida Prado. Por sinal, foi por aí que surgiu a iniciativa de um dos meus primeiros livros. Nessa época, ,Antonio Cândido estava orientando a C ole­ção Buriti. Foi por eu colaborar com o Estado que ele me encom endou livros para essa coleção.

M ais do que ver diferenças entre eles, eu tendo a ver diferenças entre esses dois suplementos e os suplementos atuais, mesmo em relação àqueles que surgi­ram logo depois. A distância é muito grande, hoje em dia obriga-se a escrever tan­tas páginas e tantas linhas sobre “ fu lano de ta l” . É quase uma resenha, uma recensão — com o dizem os portugueses. Enquanto que, naquela época, o Jornal do Brasil, por exem plo, publicava artigos enorm es, de dez, doze, até quinze pági­nas. O Estado de S. Paulo tam bém , mas era muito mais norteado pelo D écio, que gostava de fazer edições tem áticas. Certa vez, fez uma edição sobre K afka, e pe­diu para cada qual escrever sobre um aspecto da obra desse autor — foi muito interessante.

Havia uma liberalidade na imprensa, que aceitava até mesmo matérias que não eram encom endadas. Se eu tinha um escrito na gaveta, podia m andar para um desses jornais. O Jornal do Brasil publicava “Poesia e experiência”, e outras seções, em páginas inteiras. Havia tam bém uma seção cham ada “ Livro de ensaio” , que era uma página grande subdividida em pequenas seções, com o se fossem páginas de um livro. A intenção do jornal era que seus leitores recortassem essa página e fizessem um caderno. Uma vez escrevi um trabalho que foi publicado em cinco páginas in­teiras, sobre um assunto que hoje é inabsorvível: o pensamento de Sócrates.

Como o senhor se posicionou em relação à disputa entre cariocas e paulistas em tom o do concretismo, que teve como um dos seus fómns mais importantes exatamente o Suplem ento D om inical do JB ? Seria possível entendê-la como uma reedição das disputas entre cariocas e paulistas no primeiro modemismo brasileiro?

Isso nunca me passou pela cabeça. Eu me dava com todos eles: com os Cam pos e com Ferreira G ullar, que freqüentava a redação do JB, onde trabalhava também esse rapaz que publica muitos rom ances hoje cham ado Assis Brasil. O s paulistas estavam aliados com Gullar. A polêmica já foi a posteriori. Depois, esses movimentos deram a volta por cim a: hoje, a gente vê os concretistas escrevendo versos e Gullar escrevendo uma ótim a poesia, com o nesse seu último livro, Muitas vozes. São as m etam orfoses dos autores e dos movimentos. M as cessou o vanguardismo no país, cessou tam bém o revolucionarism o, cessou a utopia, de tal form a que nós estam os muito desfalcados. Ainda não conseguiram substitutos.

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Na década de 1960, três paradigmas teóricos marcaram o ambiente intelectual: o estruturalismo, o existencialismo e o marxismo. Como o senhor avalia a evolução desses paradigmas até os dias de hoje, e que balanço o senhor faria da sua relação com eles?

A minha relação mais profunda e constante foi com a filosofia da existência, e isso se localizou sobretudo em Heidegger. N o entanto , escrevi sobre Lcvi-Strauss, A margem do estruturalismo, quando estava ainda na França. Nesse m om ento, I.évi- Strauss ocupava o mesmo lugar que M erleau-Ponty ocupara antes na França. Na verdade, foi pelo estruturalism o, confirm ado pela obra de Foucault, que entram os na questão da linguagem. O estruturalism o teve essa grande virtude: cham ar a aten­ção para a linguagem. Les mots et tes choses é um livro fundam ental, em bora Fou­cault tendesse a desvalorizá-lo, achando que era circunstancial.

Certa vez, ele passou por Belém a cam inho da Ilha de M ara jó . Estava na casa de um am igo. M achado Coelho, e mandou me cham ar. N aquela época, eu gostava muito de promover conferências, e perguntei a Foucault: “O senhor faria uma con ­ferência aq u i?” . Ele disse que faria e, na volta de M ara jó , fez a conferência. Ficou uma sem ana, mas a Universidade não pagou um tostão a ele.

Aquilo foi em 19 7 0 , era um tempo duro. Para garantir a presença das pessoas aqui eu fazia listas — quem quisesse se inscrevia. D epois consegui uma boa quan­tidade de pessoas representativas, professores etc. Um dia, fui cham ado pelo dire­tor dizendo que havia recebido um pedido do serviço de segurança para enviar a minha lista. Eu disse para ele não enviar. N aquele tem po, havia o serviço de segu­rança na Universidade que tinha conexão com o serviço secreto do Exército. Até Foucault foi investigado.

Beneficiei-me muito da obra de Lefèvre, da sua interpretação do m arxism o. N ão só da flexibilidade com que o lê, mas por um tópico a que ninguém ainda prestou atenção: a m etafilosofia, que é a retórica da filosofia. Essa minha preocupação de relacionar filosofia e poesia se aproveitou muito dessas idéias de Lefèvre, não da parte da poética, mas da parte da retórica. Há uma diferença entre a poética e a retórica: na poética é preciso entrar nas m etáforas, nas figuras de linguagem; já na parte da retórica é preciso reparar nos meios de persuasão. Uma é atinente ao dis­curso, e a outra é atinente às imagens faladas.

Em determ inada época, devido à atividade na Escola de T eatro , por acharem que eu não era “veado” , achavam que eu podia ser com unista. Houve doze inqué­ritos aqui. .A própria Universidade era obrigada a ter uma com issão de inquérito. E houve um outro inquérito que chegou à Segunda Seção. Eles usavam o seguinte ardil: eles cham avam as pessoas para ser testem unhas em processos já abertos.

No ensaio “Cultura e política: 1964-69”, Roberto Schwarz defende a idéia de que, no período mencionado no título do artigo, a direita de­tinha o poder, mas a esquerda conseguiu a hegemonia cultural. O se­nhor considera correto esse diagnóstico? Como o senhor avalia esse período da história brasileira?

Eu tenho uma idéia diferente. Acho que de 1964 a 1969 a esquerda foi desbarata­da. Detinha a hegemonia intelectual, mas sua atuação foi anulada. Pelo menos o

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grupo do Café Central acabou. As obras que solicitavam mais atenção, as de M en­des talvez, eram obras de esquerda, obras de caráter insurrecional, literariam ente falando. Nessa época, até houve uma m elhora na prosa. M uitos rom ances foram escritos. xVlas a hegemonia era da direita, em bora as coisas fossem muito m istura­das no Brasil. Sartre dizia que todos os brasileiros pareciam ser de esquerda. Na verdade, brasileiro é bom dc papo.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como o senhor vê as relações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Se pensarmos em uma filosofia com características brasileiras, com o uma concep­ção do mundo que só o Brasil proporciona por ser o Brasil, a minha resposta é não. A menos que visemos filosofia no sentido lato: pensamento social, histórico e polí­tico. Nesse sentido. Oliveira Vianna e seu livro A evolução do povo brasileiro tem filosofia, Casa grande e senzala, de G ilberto Freyre, tam bém . Admito o termo “ fi­losofia brasileira” com o filosofia feita no Brasil, mas a partir de uma reapropriação da tradição filosófica, da história da filosofia e das obras-fonte. Ou continuam os o diálogo com Platão, Aristóteles, D escartes, Kant e Flegel, ou não há filosofia.

As condições da cultura brasileira, até certo m om ento, não foram propícias ã filosofia nesse sentido. Quer dizer, os autodidatas que nos precederam eram um tanto desavisados. C ito o mais ilustre deles: Farias Brito, o qual li muito. Há um peque­no livro meu, da Editora .Agir, sobre ele. Farias Brito estudou muito Com te, mas sempre do ponto de vista da degenerescência da época, das idéias que estimulavam o censo de ordem, que estava sendo prejudicado. Nes.se caso, o autodidatismo é infil­trado com o uma espécie de ideologia conservadora. Então, acho que o esquerdismo me salvou.

Como o senhor avalia o ensino de filosofia no Brasil hoje?O ensino dc filosofia no Brasil, com o acontece em geral com todo ensino universi­tário, está muito prejudicado no sentido quantitativo que ele assume. É uma espé­cie dc grande armazém de horas-aula. Com isso, devido a essa carga horária, falta muitas vezes ao professor uma disponibilidade para enfrentar os textos com o alu­no. Lê-se pouco. As vezes, aos estudantes falta o conhecim ento de línguas estran­geiras, e temos de traduzir. Ou então recorrer a uma tradução. .A coleção Os Pen­sadores prestou, desse ponto de vista, uma grande ajuda, e são bons os tradutores, gente qualificada. O Husserl traduzido por |ZeljkoJ Loparic é muito bom. .Aliás, é engraçado: Loparic com eçou com filosofia analítica e hoje está heideggeriano — faz um trabalho muito rico sobre a ética heideggeriana. Tod os os anos nós temos um colóquio, que com eça na Unicamp e termina na PUC de São Paulo. Na PUC é patrocinado pelo D epartam ento de Psicologia Clínica.

Salvo melhor juízo, a estética sempre foi entre nós um ramo da filoso­fia bem menos explorado do que, por exemplo, a epistemologia, a moral ou a política. Essa situação mudou?

-Mudou por portas transversas, porque a estética no Brasil sempre foi praticada por vias transversas, por intermédio da crítica. F, a crítica literária e a crítica de arte que

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vêm conduzindo a estética. Diretam ente são poucas as tentativas consistentes. U lti­mamente nós temos visto coisas interessantes, com o essa série de Evaido Coutinho— um autor interessantíssimo. Ele faz uma interpretação meio fenom enológica, meio existencial, de tipo husserliana, mas escreve com grande clareza e precisão.

N ão é só em estética, mas em outros dom ínios, filósofos que não tinham ne­nhuma aproxim ação conosco passam agora a interessar. O trabalho de M arilena Chaui sobre Espinosa, os trabalhos de (îiannotti sobre W ittgenstein...

O senhor vê um cruzamento desses trabalhos com suas preocupações?Sim, principalm ente a questão da linguagem em W ittgenstein. Prim eiro, aquele tra­tam ento rígido da linguagem, a linguagem com o limite do mundo em form ato de proposições que podem ser verdadeiras ou falsas. Indaga-se o que é linguagem, pode- se separar a linguagem de formas de vida. O que é a linguagem? A cultura, a pro­núncia, a palavra.

Ainda não tive tempo de 1er o livro de M arilena Chaui, que é uma enormidade.

Em A filosofia c o milênio, o senhor estabeleceu uma diferença de na­tureza entre filósofo e professor de filosofia, afirmando que “nem todo professor de filosofia foi filósofo, e, inversamente, nem todo filósofo foi professor de filosofia”. Tal afirm ação valeria para caracterizar a dis­tinção corrente entre fazer filosofia e fazer história da filosofia?

Sim, fazer história da filosofia e um cam inho fácil, pois é só continuar o que em grande parte já está feito. Fazer filosofia é igual a fazer boa filosofia, é preciso es­tar em uma perspectiva diferente, em uma perspectiva própria, cm uma perspecti­va inédita. Enfim , fazer filosofia é descobrir um novo ângulo não só para analisar as doutrinas passadas, a própria história da filosofia, mas para colocar sob nova angulação o concreto, o real, a história, a sociedade etc. Quer dizer: fazer filosofia é pensar de novo aquilo que é com um . Costum o dizer que filosofia, de certo modo, corresponde a uma trivialidade. Porque se trata da mesma linguagem, a linguagem com um , com um distanciamento que a gente exige na arte, isto é, um distanciamento feito não para ficar a cavaleiro das coisas, mas que as coloca sob uma perspectiva diferente.

Há aquele dito de Heidegger: “O pensador diz o ser. O poeta nomeia o sagrado”, que surge em diversos momentos da sua obra. Seria esse dito a senha para a distinção entre filosofia e arte?

É preciso pensar, porque Heidegger recua ao mais “prim itivo”, quer dizer, recua ao sagrado e não fala em religioso. O sagrado seria o extraordinário , o supra-indi- vidual, aquilo que eu não posso dom inar, ou seja, nenhuma técnica e nenhuma ciên­cia são capazes de conhecê-lo. Ele está sempre fora de mim, está sempre fora dos outros, e, com isso, chegam os ã idéia de terror e estrem ecim ento. Justam ente esse estrem ecim ento, na poesia, é subm etido ao ritm o e à form a. Pode haver o pensa­m ento do sagrado. Heidegger fala no sagrado, que não é o religioso, e, ao mesmo tem po, admite o dito nietzscheano da m orte de Deus. O sagrado é algo que se afas­ta de Deus e dos deuses. Em com pensação. Heidegger tem uma noção muito enig­

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m ática (e no meu livro Crivo de papel há dois trabalhos a respeito) do último Deus. Ele diz que se nós podemos alcançar uma última concepção do ser, e se essa con ­cepção é um modo de vida, então nós alcançarem os também uma nova noção de Deus. Entretanto, Heidegger diz também que toda a filosofia é atéia. Heidegger não escrevia com o pensador, escrevia com o poeta. Ele pensa o ser c escreve o sagrado [risos].

Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que nos con­tasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o senhor o(s) vê hoje.

O tema mais constante e mais presente em minha reflexão filosófica é o da relação entre poesia e filosofia. Surgiu quando escrevi um artigo sobre Fernando Pessoa: “ Fernando Pessoa: poeta m etafísico” . Nesse texto , eu dizia que ele “tom ava liber­dades” com a m etafísica, que ele devia mudar de metafísica com o quem muda de gravata. Essa liberdade lúdica em relação ã filosofia teve muita im portância para a com preensão desse nexo entre a filosofia e a poesia, quer dizer, o fundo poético da filosofia. Esse nexo não pode sempre ser pensado da mesma m aneira, porque nem sempre a filosofia e a poesia se relacionam da mesma forma. Isso quer dizer que a famosa passagem de A República de Platão, da expulsão dos poetas, não pode ser tom ada com o uma imagem exem plar. Platão afeiçoava-se pelos poetas que eram possuídos, os poetas possessos. Então a relação entre filosofia e poesia não é even­tual, ela é uma relação historicam ente forte, no sentido próprio da palavra. Porque m uito da filosofia se configurou a partir de uma reação contra a poesia, com o, m odernam ente, muito da poesia se configurou filosoficam ente. A poesia moderna em grande parte é alim entada pela reflexão filosófica. Então essa é a principal tri­lha que venho seguindo, com os estudos sobre Jo ã o Cabral de M elo N eto, da feno­m enologia, da forma das coisas e do misticismo de Clarice Lispector. E tenho pro­curado tratar isso de uma maneira mais geral, em tese, com o no “ Ensaio sobre o pensam ento p oético” que está em Crivo de papel.

Escrevendo sobre a relação entre filosofia e literatura, o senhor alerta que “o primeiro risco a evitar é a busca de conceitos instrumentais na Filosofia para o exercício de uma pretensa Crítica Filosófica, que ten­taria estudar a obra como a ilustração de verdades gerais. No primei­ro estudo que escrevi sobre Clarice Lispector, ca í na sedutora arm adi­lha dessa Crítica redutora”. E que redundou “em apresentar a ficção da romancista jem A paixão segundo GHj como ilustração do pensa­mento sartreano". O senhor poderia nos fa lar um pouco sobre essa evolução na leitura de Clarice Lispector?

Entre o primeiro livro. Leitura de Clarice Lispector, e o segundo, O drama da lin­guagem, Clarice soube que o segundo livro estava sendo escrito e perguntou a al­guém (que depois me contou): “ Será que ele ainda vai me considerar uma escritora existencialista?” . Então tive cuidado de tom ar com o limiar de toda reflexão a nar­rativa de Clarice, a sua form a, o seu desenvolvim ento, o emprego de certas figuras

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dc retórica — com o a repetição, por exem plo — , enfim: estudar em primeiro lugar a linguagem, isto é, a configuração da narrativa. F. estudando essa configuração, poderia chegar a uma apreciação da filosofia, a uma concepção de mundo. Então foi graças a essa m ediação da form a que eu consegui ultrapassar o ponto de vista m uito sim plificado do meu primeiro livro. Ela tinha razão cm desconfiar. Depois de constatar que não era mais considerada uma existencialista, ela olhou para mim e disse, elogiando-m e: “V ocê não é um crítico , você é uma outra coisa que não consigo definir” .

Como evitar esse risco no caso de poetas em que a “musa filosófica” é particularmente presente, como é o caso de Fernando Pessoa, referên­cia constante de seu trabalho?

D o ponto de vista do problem a que estam os tratando, esse é um aspecto mais par­ticular a Fernando Pessoa. A sua atitude em relação à filosofia é a de um poeta no período da crise da m etafísica. Na verdade, o que Fernando Pessoa pensa é que a metafísica pode se erigir em várias formas, que podem passar de umas para as outras, com o mudamos de cam isa e de gravata. Com o a gente sabe que ele conviveu muito com filósofos, leu muitos filósofos com o D escartes, Kant c até mesmo Nietzsche, aquilo traduz o peso que a filosofia teve. Então a metafísica era encarada com o uma im possibilidade, do ponto de vista do conhecim ento, mas, ao mesmo tem po, com o um pendor ã poesia. Então, é impossível desvencilhar isso de Fernando Pessoa.

Isso é fácil em L)«ão) C abral, sem que, entretanto , um fundo fenom cnológico desapareça, pois esse fundo é sempre m uito patente. A sua poesia é toda descritiva no sentido de descrever essências, fica no âm bito da fenom enologia. N o caso de Clarice Lispector, eu tinha tomado somente a figura da náusea, a história da verdade, da moral etc. A própria Clarice Lispector devia achar isso tudo muito estranho.

A noção de “niilismo”, surgida na linhagem de Nietzsche e Heidegger, é central na sua reflexão, o que pode ser atestado pelo título de seu li­vro N o tempo do niilismo e outros ensaios. O que é o “niilismo” que caracteriza o nosso tempo?

A noção mais expedita é a de Nietzsche: “transvalorização de todos os valores e tc .” . Falta o topos. O individualismo moderno prescindiu dc Deus. O niilismo é para­d oxal, pois nessa época em que não há o ser, mas apenas o ente, ele projeta a poe­sia com o uma exigência e uma necessidade. E, por outro lado, a arte ganha mais volume em contraste com esse pessimismo. É um dos paradoxos do nosso tempo. M as também podemos perguntar: Hegel não declarou a morte da arte? É quase um bruto contraste, não fosse Hegel o filósofo das contradições. A mesma doutrina que defende a idéia da arte com o produto do espírito, defende a sua e.xtinção, o seu fim, o seu Ende. Isso se deve à própria função da filosofia, quer dizer, a filosofia que forja a idéia da arte e que vai desintegrar essa mesma idéia, absorvendo-a. Isso é da econom ia do sistema hegeliano: estabelece uma classificação das artes com o tam ­bém uma classificação que é ainda mais im portante, a das concepções do mundo: a concepção sim bólica, a concepção clássica e a concepção rom ântica. O rom an­tismo caracteriza-se pelo primado da subjetividade — o eu. Com esse primado dá-

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se a conceitualização que, através da poesia, causa a migração da arte para o seio da filosofia. É muito bem engendrado. E isso não acontece apenas com a pintura e a escultura, que operam essa transição, mas com a poesia, no sentido que se dava ã poesia na época. É curioso que o Ende da arte, o Verfallen, a sua decadência, não impede Hegel de traçar cam inhos para a arte na época em que vivia — uma época de decadência que, no entanto, oferecia uma obra diante da qual Hegel se cala, que é o Fausto de Goethe. Então o romance é uma forma degenerescente, mas o romance é filosofia. O humor contribui para essa passagem , no entanto, o hum or dá um Sterne. Para Hegel é essencial a morte da arte, no próprio relacionam ento entre a filosofia e a arte.

Habitualmente, ao reunir ensaios em livro, o senhor não os faz prece­der de uma introdução ou apresentação. A que se deve isso? Qual é o sentido do titulo Crivo dc papel, de 1998, que enfeixa os seus escritos mais recentes?

Crivo de papel não traz uma introdução por uma razão curial: porque perderam |risos|. Q uando vi o livro, perguntei ao editor: “ E a in trodução?”. Ele disse que o rapaz que organizou o livro havia esquecido de incluí-la.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber cientifico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

Esse nexo não pode ser pensado sempre da mesma m aneira, porque as ciências e a filosofia têm mudado desde a .Antiguidade. A teologia de que fala Aristóteles não é a mesma teologia de Santo Anselmo e de Santo Tom ás de Aquino. Para D escartes, a física que se originou da metafísica não é a mesma física de Aristóteles — a física cartesiana é matem atizada. Entre as próprias ciências da época moderna varia o re­lacionam ento, dependendo das diferenças de perspectiva: m atem atização e evolu­ção. A soberania das ciências no século X IX firmou-se por intermédio do positivismo. Ela se torna problem ática com o aparecim ento das ciências humanas, que introdu­zem o ponto de vista da com preensão em face da explicação causalista.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate?

A morte da arte, a sua dissolução {Auflösen), a sua decadência {Verfallen) ou o seu fim {F.nde), é tematizada na Estética de Hegel com o a doutrina do caráter passado da arte e a sua suprema destinação. E isso entra em conflito com a noção aí expos­ta de arte com o produto da atividade do espírito. .Ao relacionar a arte com o absoluto, Hegel preparou-lhe a dissolução. A pergunta de Heidegger, "se arte é ainda um modo essencial e necessário de nossa atual existência” , resolve-se no momento do Rom an­tism o, com a predominância da poesia. As obras de arte exprimem visões do m un­do {Darstellung). O pensamento e a reflexão ultrapassam as belas-artes.

Havia também em Hegel a posição relativa ao juízo estético, um prolonga­mento de sua crítica a Kant. Admitindo que não havia arte sem visão do mundo,

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Hegel aceitava que havia sempre um nexo de participação, diferentemente do que ocorre com o juízo estético, em que se aprecia por meio de um julgam ento, ou seja, passa-se a julgar uma coisa que se recebe entre o conhecim ento e o não-conheci- m ento. Em Kant existe o prático, o teórico e o estético. Hegel não aceitava essa divisão, e, se não houvesse uma envolvência, não haveria a recepção da arte. E essa envolvência corresponde ã capacidade da visão do m undo, produto do espírito com um.

Isso evoca, de certa m aneira, Gadam er, em Verdade e método, quer dizer, se não se retom a a história da obra, a obra cai no terreno da abstração. Então, pode- se falar aqui, com o em W alter Benjam in, em uma verdade da obra, na sua form a­ção , na sua função de engendrar uma sociedade. Isso tudo o juízo estético perde.

Tenho a im pressão de que o problem a não m orre com o fato de Hegel ter decretado a m orte da arte, com o a parte do espírito absoluto que tem de soçobrar. Afinal, quem m ata é a filosofia. Esse problem a se aguça quando percebem os as li­m itações da arte atualm ente, e pela pergunta do que fundamenta a arte hoje. A arte não se apóia mais numa concepção de m undo, hoje é apenas uma atividade da in­timidade dos museus — as pessoas já produzem para museus. Nesse sentido, o ponto de vista hegeliano é muito rico. E há ainda a associação que sobressai entre a arte e a tecnologia: a instalação, por exem plo, é algo tecnológico na arte. A técnica co r­responde justam ente a esse poder de instalação do conjunto. Só sobrou uma forma de representar, em bora Hegel não usasse essa palavra, mas Darstellung. M orreu uma espécie de arte, uma form a que não existe mais, que é a cena do mundo. A arte não se faz mais para o mundo, mas a partir do mundo, lim itada ao horizonte do museu.

No seu ensaio “Música, filosofia e literatura”, o senhor esboça uma imagem da arte futura nos seguintes termos: “Se, na época presente, pintura e escultura tendem a desaparecer em proveito do objeto plásti­co, e a poesia propende a estabelecer um tipo de apreensão plástica, sonora e visual ao mesmo tempo (a unidade verbo-voco-visual dos con­cretistas): p orqu e não se poderia legitimar uma música dramática ou um drama musical?”. Esta imagem da arte que se desenha seria então submetida cada vez mais a imperativos da técnica em vez de ser lugar de “eclosão da verdade”?

Isso seria adm itir que a verdade não pode eclodir em uma ópera. Nessa citação eu me refiro a com o poder pensar uma associação entre música e drama fora dos pa­drões operísticos do século X IX . O próprio Schönberg tentou fazer esse drama musical em M oses und Aaron. N ão se pode suprimir essa possibilidade do drama m usical, ou da música que não está am arrada à tradição do século X IX , o drama realista, verista etc. Por que não eclode a verdade num tipo de drama com o aquele de Schön berg e em Penderecki?

Qual é, na sua opinião, a diferença entre “crítica de arte” e “estética”?De acordo com muitos, a crítica de arte deveria ser uma estética aplicada, mas

acho que não é assim. A crítica dc arte pode ser mais do que a estética, no sentido

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de que envolve: a relação de quem recebe a obra com a obra; a relação de quem faz a primeira leitura com a obra; e toda a história, que acode a crítica de arte. \ esté­tica tende a eternizar os valores, enquanto a crítica de arte segue o fluxo do dia-a- dia, do que está sendo produzido. £ , dadas as condições da arte atual, ela tem sido exercida com muita dificuldade. A não ser que se faça aquilo que certas pessoas aconselham , ou seja, que a crítica de arte crie os conceitos da própria arte que está sendo estudada. E isso é o que vem acontecendo: cria-se às vezes adequadam ente, às vezes arbitrariam ente. Esse dom ínio é difícil de estabelecer, e isso me angustia muito. Com o se legitima a opinião sobre as obras de artes plásticas hoje? O s pa­drões não mudaram tanto. É que a linguagem é um instrumento, e a linguagem verbal tem suas m etáforas, suas pantom im as, e pode entrar no elem ento plástico de con ­figuração num recorte diferente do tradicional. M as a poesia, no sentido am plo, que tem mudado mais em sua concepção, é aquela que continua sendo acessível.

O senhor acredita que a noção de “catarse” é hoje ainda válida para apreender a experiência estética?

É difícil pensar nisso depois de Brecht. M as um autor pode, com o distanciam ento, criar o im pacto. Se há im pacto, pode haver catarse. Uma orquestra sinfônica gera catarse, e pode, de certo m odo, ser catártica . Eu assisti a uma apresentação da O rquestra de Viena na Estação Jú lio Prestes de São Paulo, e era, sem dúvida ne­nhuma, um espetáculo catártico. M as não me lembro de nenhum espetáculo de teatro em que isso tenha acontecido. N o cinem a, sim: os filmes de Kurosavva, Bresson, Eellini.

Como o senhor vê o atual panorama da literatura no Brasil?Sem entusiasm o. E. correta, há bons glosadores, mas não se encontram mais aque­les que causavam estrem ecim ento e adesão. Antigam ente, nós ficávam os esperan­do os livros de D rum m ond, pensando no que ele ia dizer, no que ele ia fazer.

£ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

A política era um fenóm eno nacional. Pode-se aceitá-la porque era, antes de tudo, um fenóm eno dependente do conhecim ento histórico e das leis da história. Em pri­meiro plano, a revolução ou o progresso, robustecidos pelas transform ações histó­ricas, afetavam ou configuravam os povos constituídos cm nação. Só as nações ingressariam no ciclo histórico da revolução ou do progresso. O aperfeiçoam ento indefinido no futuro e o rom pim ento com o passado na conquista do novo. Estare­mos sob o tirânico im pério da mudança. Admite-se uma razão universal uniforme atuando do mesmo modo em toda parte.

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É certo que K ant, em Idéú de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, postula um propósito da natureza para o desenvolvimento das dis­posições humanas. E procura contirm á-lo recorrendo à experiência, que não lhe oferece senão certos sinais com o aceitação das liberdades civis e as vantagens do esclarecim ento. N ada, pois, de superfície para elaborar uma história universal, e sim para considerá-la com o possível. O ra, essa possibilidade, para Kant, é mais uma exigência da razão do que um atestado de que a razão governa o m undo. Uma exigência prática dem andando o com prom isso da vontade autônom a para instituir os imperativos m orais, visando com isso a forma de universalidade ética. O homem é o sujeito dessa universalidade, que só pode vingar quando, ao agirm os, tom ar­mos cada indivíduo e nós mesmos sempre com o um fim, e jam ais com o um meio. Esse fim de um ser racional, capaz de instituir imperativos m orais, é a sua dignida­de. Reconhecer essa dignidade, e agir em conform idade com tal reconhecim ento, é estendê-la a cada homem em sua humanidade. O m aior problem a para a espécie hum ana, cuja solução a natureza obriga, é alcançar uma sociedade civil que adm i­nistre universalmente o direito. Conseqüentem ente, a questão da unidade da espé­cie é prática, ética e política, e, não obstante, teórica.

Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé f A religião implica em participação social ou coletiva, independentemente do indi­víduo. A fé implica no convencim ento e na crença. Então a religião precede o indi­víduo, já está feita quando se nasce, entra-se nela. justam ente a fc é uma postura de adesão, uma crença: crer naquilo que se apresenta. O ra, a possibilidade oposta ã crença é a descrença. Ao mesmo tem po, ela é a afirm ação do indivíduo, da sua possibilidade. Então a substância das coisas que esperam os é a esperança, a e.xpec- tativa em relação ao futuro. Por isso, acho interessante a opinião de M arcelo Cíauchet acerca da opinião weberiana do desencantam ento do mundo. Ele aplica essa no­ção à religião. M ostra que, prim eiram ente, essa religião é de adesão, de inerência etc. Q uando o cristianism o traz a noção de fé, a firme convicção das coisas que não se vêem, nós estam os diante de uma religião que, ao mesmo tem po, m ostra a saída da religião. O cristianism o é a religião com o saída da religião, ele possui todas as possibilidades de ceticism o, de heresia.

Eu sou de família católica e tentei ser cató lico . Com ecei a me afastar quando, por volta dos anos 19.50, o papa concedeu a G rã-O rdem de C risto ao Franco. Isso foi de arrepiar. Passei também pela fase ilum inista, em que via a religião com o o engano ao qual as pessoas se submetem — ou seja, a religião é sempre produto de um logro que é provocado por alguém. Isso me ocorre revendo o passado, quando me lembro da minha tese sobre Papai N oel, que dizia o seguinte: assim com o me enganaram durante muito tempo dizendo que havia Papai N oel, do mesmo modo a religião pode ser um grande engano — a noção de salvação etc. Eu ultrapassei essa tese iluminista. I loje, o cristianismo ainda é prolífico, goza de uma força inercial e continua produzindo essas pequenas religiões que vão surgindo — as religiões do cristianism o rentável, onde as pessoas aprendem a ganhar dinheiro. Estão se insur­gindo na França contra a igreja de Edir M acedo. Ciostaria de ouvir o que essas igrejas dizem, mas devem ser muito chatas. Seria interessante fazer um estudo de psicolo­

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gia a respeito do cristianism o hoje. Tem um Hvro muito interessante, publicado no C anadá, sobre as razões do pentecostalism o no Brasil. Esse assunto me interessa m uito: a religião de modo geral, o princípio do cristianism o etc. Até com ecei a es­crever uns trabalhos novos a respeito disso.

Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica" calcada na linguagem?F. preciso buscar esse decalque, porque a filosofia já está calcada na linguagem.

E, com o dem onstração desse decalque, nós tivemos a reviravolta que se verificou acentuadam ente em Heidegger, na segunda fase de seu pensamento. E também nos dois W ittgensteins, o do Tractatus logico-philosophicits e o das Investigações filo­sóficas. Por outro lado, N ietzsche diz que o pensam ento, a filosofia, está à mercê de um bando de m etáforas, de m etoním ias, de palavras sem elhantes e de repetições. Talvez daí venha o meu grande interesse pela relação entre filosofia e poesia. Em Platão isso é evidente, pois ele é um poeta antes de tudo. Apenas condenou os poetas com o imitadores. .Vlesmo Kant, que parece o mais estranho a isso, foi considerado com o um “pensador de pena” (Federdenker), que pensava escrevendo. Em Heideg­ger, mais acintosamente no Ser e tempo, é grande o uso de paronom ásias, de palavras semelhantes usadas repetidamente. E na segunda fase, a linguagem, o di/er, está em ligação direta com o ser. Há uma diferença entre a concepção dc Ser e tempo e a concepção posterior. Isso quer dizer então que a linguagem não é um simples instru­mento, mas já é uma camada constitutiva do próprio pensamento. Essa função instru­mental é criticada por Heidegger, que, por outro lado, critica também a lingüística com o meio de aproxim ação da linguagem. Ele critica a diferença entre significante e significado, e introduz a noção de escuta: o escutar os textos etc. F. há ainda o veio herm enêutico, a condição imanente da linguagem. Portanto, essa reviravolta para a linguagem não foi um acidente contem porâneo, é um fato essencial e consum ado.

Segundo o senhor, em seu livro N o tempo do niilismo, Nietzsche anteviu a ascensão da linguagem “ao primeiro plano da reflexão filosófica".Mas o “significado dessa transição não se esgota na ‘guinada lingüís­tica’ de que fala Habertnas, da fdosofia da consciência, originariamente fenomenológica, para a filosofia da linguagem. (...) Terá havido, sim, uma guinada, mas como reviravolta irônica da destituição platônica da poesia: a literatura considerada como filosofia e, inversamente, a filosofia tratada como literatura". A chamada “guinada lingüística” seria, a seu ver, uma restauração da metafísica?

N ão seria uma restauração, porque essa guinada lingüística acentua o que cham a­mos de finitude do homem. N ão é só a lim itação do conhecim ento, não é só a morte, mas a contingência de um pensam ento que nunca está acim a da condição humana. Este pensamento que está ligado ao que se escreve, ao que se fala e, portanto, ã lin­guagem. O ra , é essencial para a m etafísica o sentido da infinitude do pensam ento, não com o uma lim itação, mas com o a capacidade do pensamento de sobrevoar por meio de conceitos.

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Como o senhor avalia a obra de Jacques Derrida?G osto de certos estudos de D errida, mais especificam ente do primeiro D errida, o autor de Diferença e repetição. Existe um pensamento muito denso nesse livro so­bre a diferença, mas, depois, sofre uma espécie dc diluição, ele se autodilui. De modo que não é um dos meus pensadores prediletos, mas isso não quer dizer que eu não o ache importante. Um amigo muito engraçado que tenho em Brasília, de tanto ouvir falar de D errida nos colégios, resolveu mudar a palavra: ele diz em português o “ D errida” [risos].

O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

Eu procuro reform ular a idéia de uma unidade da história, de ter um desenvolvi­m ento histórico que não seja uma utopia. Para mim é muito interessante o princí­pio de responsabilidade, que faz justam ente a crítica ã utopia. Porque essa é a era da abundância, obtida às custas da destruição da natureza. Então eu pego a idéia de Kant, em Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita, em que o problem a da história se torna um problem a m aior.

N ão usaria o conceito de utopia porque essa noção implica em uma expan­são ilimitada do homem, em que o futuro sempre traria a possibilidade de um aper­feiçoam ento indefinido. N ão só um aperfeiçoam ento, mas, se nós acrescentarm os esse ponto de vista, a utopia seria a pletora de bens, a pletora de consum o. Ao in­vés de utopia, coloco no futuro a afirm ação ética da qual fala Kant em Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Kant não tem a pretensão de fundar a história. .Vias o ponto de vista kantiano, que critica a m etafísica, é o pon­to de vista da finitude, ou seja, a com unidade do direito, o fato de não tom ar o homem com o meio, mas sempre com o fim. Então, aceitaria para o futuro não a uto­pia, mas a melhor vida feliz possível — a eudemonia. Tem os de ter uma conversão da humanidade pela história. N ós podemos revolucionar a concepção que o homem tem de si mesmo, não podemos revolucionar a sua vida, de tal modo que pudesse haver uma conversão.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais pro­blemas?

Esses problem as podem ser focalizados por intermédio da grande hybris do homem m oderno, que é a dom inação da natureza. Heidegger é o primeiro pensador que favorece uma filosofia com acento ecológico, justam ente na sua postulaçâo da téc­nica. N ão é um antim aquinism o à sem elhança daqueles ingleses do século X V III, que destruíam as máquinas. É um absurdo deixar a técnica de fora, pois é por meio dela que pode vir a nossa salvação (Rettung). M as, além da técnica, existem outros aspectos correlatos. Eu os enumerei uma vez: a devastação da terra, a m assificação, a perda de vínculos dos homens e a cham ada fuga dos deuses, uma outra fórmula para a morte de Deus.

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Principais publicações:

1966 Introdução j Filosofia da Arte (São Paulo: Ática, 1989);1968 O dorso do tigre (São Paulo: Perspectiva);1971 João Cabral de Melo Neto (esg.);1979 Oswald Canibal (São Paulo: Perspectiva);1986 Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger {São Paulo: Ática);1988 O tempo na narrativa (São Paulo: Ática);1989 O drama da linguagem; uma leitura de Clarice Lispector (São Paulo: Ática); 1993 N o tempo do niilismo e outros ensaios (São Paulo: Ática);1998 Crivo de papel (São Paulo: Ática);1999 Hermenêutica e poesia: o pensamento poético (Belo H orizonte: Editora

U FM G ).

Bibliografia de referência da entrevista:

D errida, j . Diferença e repetição. Perspectiva.Foucault, M . A5 palavras e as coisas, M artins Fontes.Gadam er, H. G. Verdade e método. Vozes.H artm ann, N. Principes d'une métaphysique de la connaissance, Paris: Aubier. Hegel, G . W . F. Estética, Lisboa: Guimarães.____________. Fenomenologia do espirito, Vozes.Heidegger, M . Ser e tempo. Vozes.____________. Chemins qui mènent nulle part, Paris: Gallim ard.____________. Coleção Os Pensadores, Abril (Cultural.Husserl, E. Investigações lógicas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural. ____________. Meditações cartesianas. Porto: Res.Kant, 1. Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Brasiliense. Nietzsche, F. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Platão. A República, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.____________. Diálogos, coleção Os Pensadores. Abril Cultural.W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp.____________. Investigações filosóficas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.

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José Arthur Ciiannotti: “A idéia de construir visões imaginárias do que poderia ser nosso futuro me rcpugna. O que me interessa, acima de tudo, é verificar, dentro do espaço em que se trabalha, quais os vetores que ultrapassam o cotidiano” .

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JO S É A R TH U R G IA N N O T T I (1 9 3 0 )

Jo sé Arrhur G iannotti nasceu em 1930 , em São Carlos (SP). Graduou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo, onde obteve tam bém os títulos dc dou­tor e livre-docente em Filosofia. Professor cassado em 1 9 6 9 , foi um dos fundado­res e é presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejam ento (Cebrap) e pro­fessor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É professor emérito da USP. Esta entrevista foi realizada em abril de 2 0 0 0 .

Goethe dividiu a vida do seu personagem Wilhelm Meister em dois romances. O s anos de aprendizado e O s anos dc peregrinação. N o pri­meiro, o foco está posto na fonnação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o você nos falasse de sua form ação intelectual?

Com o sou meio disléxico, inverti essa relação: fiz primeiro a peregrinação, e só agora estou me form ando [risos]. Peregrinei de São Carlos para São Paulo; em São Paulo peregrinei da Biblioteca Infantil para a Biblioteca .Viário de Andrade, e dela para a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hum anas, ainda na Praça da República e depois na M aria Antônia — no início com o aluno ouvinte em Letras Clássicas, de­pois com o aluno regular de Filosofia. M eu primeiro interesse era estética, mas aca­bei me encantando pela lógica; depois da lógica, me encantei pela história da filo­sofia, no início, graças a Guéroult. Enfim , ao longo de vários anos eu fiz tudo que podia fazer explorando o universo de São Paulo. Aos poucos, porém , as coisas fo­ram se sedim entando, e com eçou minha form ação. Em bora com eçasse pela lógica e pela epistem ologia, creio que acabei me form ando em m etafísica — do ser social, evidentemente.

No discurso de saudação à entrega do seu título de Professor Emérito da USP, Ricardo Terra fez a seguinte afirm ação a respeito de sua for­m ação: "Não podemos nos esquecer de que o adolescente José Arthur Giannotti freqüentava os círculos de Oswald de Andrade e discutia filosofia no gnipo de Vicente Ferreira da Silva. Ao tomar-se aluno de Gilles-Gaston Granger no curso de filosofia, volta-se contra a anterior ausência de rigor na leitura dos textos, mas sem nunca abandonar seja os impulsos estéticos recebidos, seja o compromisso com a realidade brasileira”. Isso procede? Como você vê essas influências do círculo de Oswald de Andrade, por um lado, e de Vicente Ferreira da Silva, por outro, sobre sua fonnação?

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Conheci Rudá de Andrade, filho de O sw ald, quando tinha 17 anos. N ós estáva- mos preparando o segundo Congresso Infanto-Juvenil de Escritores — uma inven­ção de Sérgio M illiet, que, dois anos antes, em 1945 , incentivara o primeiro congres­so. Esta foi uma experiência im portante porque nos levava a refletir e discutir so­bre o que estávam os lendo. Certo dia, Rudá me convidou para ir à casa de seu pai e, lá chegando, deparei com uma cena que me m arcou bastante: Antonio Cândido sentado numa poltrona em baixo de um quadro de Picasso e rodeado por boa parte da intelectualidade paulista. Para mim uma forma de convivência a que não estava habituado. Convivência que significou, adem ais, uma ruptura gradativa com a form ação pequeno-burguesa recebida em casa. Lembro-me de que minha mãe ficava muito preocupada com o fato de freqüentar alguém que já tinha tido sete mulheres!

Foi nesse contexto que Oswald de Andrade me apresentou ao M odernism o, am pliando meus horizontes. Com ecei a freqüentar sistem aticam ente a Biblioteca M unicipal, com o intuito de explorar seu acervo de livros de arte. N ós íam os à Biblioteca, fuçávamos tudo o que podíam os, depois nos reuníam os nas proxim ida­des do Paribar, encontrávam os a turma e acabávam os todos indo ao cinem a — foi isso que me deu uma boa form ação nessa arte. N o final da noite corria para pegar o último ônibus para a Aclimação. Certo dia, Oswald me avisou que Vicente Ferreira da Silva estava organizando, numa garagem que ele e seu irm ão tinham na rua General Jard im , sem inários sobre Platão. Eu passei a freqüentar essas reuniões e, portanto, a ler Platão. Foi então que me deparei, por volta dos 18 anos, com o li­vro Paidéia, de Jaeger. Por conta própria, passei a ler a llíada, a Odisséia etc., sem ­pre confrontando em seguida com o capítulo correspondente desse livro. Foi uma aventura extraordinária, que durou mais de um ano. Ao mesmo tem po, com ecei, por recom endação de uma bibliotecária da Biblioteca Infantil, a freqüentar com o ouvinte o curso de Letras Clássicas na Faculdade de Filosofia, ainda na Praça da República — lem bro-m e de um curso m aravilhoso que Fidelino de Figueiredo deu sobre [Alexandrej Herculano. E, além disso, eu estudava um latim nada instrumental, abandonando o grego, do que me arrependo até hoje.

Nos anos 50 , finalm ente, prestei vestibular para entrar regularmente na Fa­culdade de Filosofia. Q uando fui ver o resultado, porém , percebi que tinha sido reprovado — tinha tirado zero em português. A princípio não cheguei a me espan­tar, pois minha nota em português costum ava ser dez ou zero. M as colegas meus já tinham percebido que havia erro de transcrição da nota: na verdade eu tinha ti­rado oito. Consegui então que mudassem a nota e entrei na Faculdade pela porta da com plicação. O início prefigurou o tipo de carreira que teria.

Com o já disse, meu interesse inicial era pela estética, m as, quando deparei com aquele baixinho falando francês, tudo mudou — a com eçar por ter de apren­der francês e lógica sim ultaneam ente. O curso de lógica de [G illes-G aston] Gran- ger fascinou nossa turm a — eu sempre estudo em turma — c lhe pedimos mais dois anos de cursos com plem entares. Além disso, cheguei até a fazer, com o m até­ria optativa — naquele tem po as m atérias eram de fato optativas, e não “optató- rias” — , um curso de “ Análise I II” no curso de M atem ática . O que foi muito engraçado, porque ninguém nesse curso conseguia entender o que eu estava fa­zendo lá, ainda mais para cursar “ .'\nálise IH” sem ter feito “ Análise I ” e “11” . M as

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terminei o curso sobre teoria dos con juntos, e, graças a Farah, nosso professor, consegui acom panhá-lo, já que ele procurava me dar exem plos e exercícios que eu pudesse com preender.

Depois disso, me formei. Na época eu não pensava muito em com o iria ga­nhar dinheiro. Q uando Granger foi para a França, recomendou meu nome para substituí-lo, e assim entrei para o Departamento com o professor assistente, chegando a ter Bento [Prado Jr .] com o aluno, o que hoje muito me honra. .Mas nessa função não era rem unerado, obrigando-m e a fazer bicos, quer dando aulas particulares, quer prestando serviços a um tio deputado, Vicente B otta , então eleito. Certo dia passou por minha casa R odolfo Azzi com a idéia de prestarm os concurso para as vagas de sociologia da educação, que estavam disponíveis nas escolas norm ais. Prestei, passei e escolhi uma vaga na cidade de Ibitinga, onde tive portanto meu pri­meiro emprego fixo. [João] Cruz Costa apoiava a idéia, imaginando nos com issionar para a Faculdade o mais depressa possível. N o entanto, o novo governador, Jân io Q uadros, proibiu qualquer tipo de com issionam ento, o que me obrigou a optar por perm anecer em Ibitinga. De outro m odo, continuaria gloriosam ente com o profes­sor da Faculdade de Filosofia, sem rem uneração e me virando para sobreviver. É interessante lem brar que, em 1958 , quando devia voltar para o Brasil, depois da estadia na França, escrevi a Cruz C osta, perguntando-lhe se então teria emprego, pois me era possível perm anecer na França. Por carta, recebi um sabão enorm e, já que era de praxe tom ar a prestação de serviços na Universidade com o uma honra. Term inei voltando, no lugar de Gilda de M ello e Souza, que tirara licença.

M as voltem os a Ibitinga, onde tive meu prim eiro em bate com a burocracia. Fizemos uma coleta pelos fazendeiros da região e arm am os um núcleo de bibliote­ca. M e lem bro, até com bons livros de arte. M as o diretor da escola se assustou porque naturalmente eu tinha com prado um e.xemplar do Manifesto comunista. Não foi por isso que ele foi substituído, só sei que pensaram em me colocar no lugar dele, desde que prestasse homenagem ao político local. Enfim , depois de um ano e meio saí de Ibitinga vexado com a política local, com muitos alunos reprovados pela aplicação de um padrão que lhes era incompreensível e até com os funcionários da escola, que não entendiam meu modo de operar. M as também fiz ótim os amigos, tive alunos e.xcelentes, e passei o resto do tem po estudando K ant e alem ão com um fabricante de queijos, mas obrigando-o a seguir os manuais do Instituto Goethe.

Em 1955 , houve um concurso para professor de filosofia, e por meio dele consegui voltar para São Paulo — para dar aulas no Colégio Brasílio M achado — e assim voltar também para a Faculdade de Filosofia. Logo em seguida, porém — em 1956 — , consegui uma bolsa da Capes para ir ã França, onde fui estudar com Granger, em Rennes. Lá passei o primeiro ano escolar, tive o imenso privilégio de conhecer [Victor] Gold.schmidt, e comecei a praticar, na linha de [M artial] Guéroult, uma história da filosofia que me distinguia claram ente do núcleo dom inante da fi­losofia francesa da época, mergulhada no existencialism o. M as isso não me impe­diu de, graças a Lefort, participar também do grupo Socialisme et Barbarie — o que me imunizou contra qualquer espécie de stalinism o. Foi nesse grupo que co ­nheci Castoriadis e outros. Ao mesmo tem po, continuei a seguir, na École N orm ale de Saint-C loud, os cursos de Guéroult, e, na École N orm ale da rue D 'U lm , segui

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cursos de Vuillemin. Em Rennes e em Paris fiz um círculo de amigos, dos quais ainda conservo Claude Im bert. Tam bém ia, sistem aticam ente, assistir aos cursos de M er- ieau-Ponty no Collège de France — depois dos quais muitas vezes íam os todos, inclusive M erleau-Ponty, para o apartam ento de Lefort, onde continuávam os as discussões. M e foram dadas, portanto , grandes oportunidades. Creio que vivi na França uma situação única, pois não fui sim plesmente, com o a m aioria dos bolsis­tas, jogado sem rumo na massa de estudantes da Sorbonne.

Nessa época você pensava em trabalhar Husserl?Já em São Paulo, antes de ir para a França, estava muito interessado em Fíusserl, pois era uma forma de com binar as minhas inquietações com a lógica form al, as questões metafísicas e a história da filo.sofia. Quem me deu a tradução das Investi­gações lógicas — meu alem ão na época era péssimo — foi Cruz C osta, apesar de achar que eu estava traindo a linha de investigação positivista da história da filo­sofia brasileira que ele tinha iniciado, e de dizer abertam ente que o seu verdadeiro discípulo era Ruy Fausto. M as cabe lem brar que Cruz Costa exerceu sobre mim uma influência profunda, me ensinando a desconfiar das elucubrações metafísicas e a colocar o pé na realidade brasileira. Durante vários anos freqüentei sistem ati­cam ente sua casa e sua biblioteca.

De qualquer m odo, quando fui para a França, imaginava escrever uma tese de doutorado sobre a noção de conceito na lógica form al. Num a discussão com Goldschm idt e Granger, no entanto, eles me disseram que eu estava querendo refa­zer a obra de Platão na modernidade e foi assim que mergulhei profundam ente em Husserl. N o entanto, logo que saiu o livro de Suzanne Bachelard sobre a lógica de Husserl, descobri que meu problem a era bem mais com plicado do que imaginava. Era preciso lidar com a toda a lógica contem porânea, o que escapava de minha com petência. Por esse m otivo resolvi circunscrever mais ainda o meu tema e pre­parar um doutoram ento sobre Stuart .Vlill.

Como você avalia hoje esse seu doutoramento, Jo h n Stuart M ill: o psi-cologism o e a fundam entação da lógica?

Com o um ensaio canhestro do que veio a ser Apresentação do mundo. Afinal, qual era o meu problem a naquele m om ento? Girava em torno da idéia de significação: entender por que ela não podia seguir o esquema empirista de Locke, verificar com o ela funcionava no esquema husserliano da intencionalidade — em bora eu já sou­besse que este esquema ia encontrar seus limites em M erleau-Ponty e assim por diante. Ou seja, estava tentando desenhar o primeiro esboço de com o a idéia de significação precisava ser posta em cheque. E o Tractatus [logico-philosophicus] é uma contrapartida que não aparece nesse meu prim eiro texto . Sob a influência de G ranger, não tinha uma visão clara do que era a revolução wittgensteiniana a par­tir dos anos 3 0 , e acabei limitado a Husserl. Imaginem vocês que chegara a propor a Círanger o projeto de fazer uma tradução e uma análise da Lógica de Port R oyal, e ele me desencorajou por considerá-lo de pouco interesse. M as meu problem a era esse: com o a idéia de significação estava sendo questionada e o que isso acarretava numa revisão da história da filosofia.

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Quando vocé voltou da França, começou a participar do célebre “Se­minário Marx”. Em artigo sobre ele, publicado na revista Novos Estu­dos, « “5 0 , você salienta “a vocação cientifica do grupo, pois todos nós, sociólogos, economistas, historiadores e até mesmo filósofos, todos lia­mos Marx com o objetivo explicito de entender o estágio em que se encontravam as relações sociais de produção capitalistas, para situar nelas as dificuldades do desenvolvimento econômico e social brasilei­ro, com o intuito muito preciso de poder avaliar as políticas em cur­so". Tendo em vista esta perspectiva, como você avalia a experiência do seminário?

Esse sem inário se tornou um mito e, em função disso, foram esquecidas suas lim i­tações e suas imprecisões. O ra, tratava-se simplesmente de um grupo de estudos. Quando voltei da França, a gente costum ava ir aos sábados à casa do Fernando Flenrique (Cardoso| e, com o eu mesmo já estava muito interessado em ter uma vi­são crítica do m arxism o — sem deixar de ao mesmo tempo absorvê-lo — , propus que armássemos uma análise geral dos textos m arxistas contem porâneos. Ao que Fernando Novais replicou, lembrando que até agora nenhum de nós tinha lido M arx direito. Cabia ler o próprio M arx e foi o que fizemos. Comecei com a análise do primeiro capítulo d’0 capital e me lembro que ela já foi m otivo de uma polêmica com Bento, pois ele. com o bom sartreano, queria encontrar ali uma antropologia fundante. Eu criticava essa antropologia e puxava a interpretação para o plano da lógica. O sem inário era variado, som ando pontos de vista diferentes, cada um tra­zendo sua própria experiência. Depois do sem inário, jantávam os e discutíamos po­lítica brasileira.

Em artigo recente sobre Lebrun, por ocasião de seu falecimento, você narra o seguinte episódio: “Se o golpe de 64 espalhou a droga pela universidade, 68 afetou as relações amorosas. Preocupado, na direção do Departamento de Filosofia, alertei meus colegas sobre o perigo de sermos acusados de corrupção de costumes, o que agravaria a pecha de subversivos. Lebrun se calou. (...) Naquela época, era comum assis­tir às aulas uns dos outros tão logo corresse o boato de que um de nós iria desenvolver tema interessante e novo, e assim fomos a uma esplên­dida aula de Lebrun, para ouvi-lo comentar um texto de Nietzsche sobre a necessidade de esgotar a transgressão até a última gota. Aprendi a lição”. Como era o seu diálogo com Lebrun, e qual a importância dele para sua trajetória intelectual?

Lebrun veio para o D epartam ento com o professor de lógica. E logo descobri que eu sabia muito mais lógica do que ele [risos]. M as descobri tam bém que ele conhe­cia a história da filosofia melhor do que ninguém. Continuei com ele discutindo a especificidade dos sistemas filosóficos, mantendo o interesse despertado na França pela influência de Goldschm idt e Vuillem in. N o fundo, queria pensar nossa posi­ção de esquerda incorporando um diálogo com uma filosofia cu jos meandros eram muito mais com plicados do que se imaginava. N ão era possível aceitar a vulgata m arxista ainda em voga nem as novas interpretações do m arxism o, em particular

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o althusserianism o, cu jo form alism o recusava. M as tam bém devo lem brar a pre­sença crítica de Lebrun, que, no fundo, escreveu La patietice du am cept também para nos espicaçar. E hoje ainda preciso considerar um diálogo, que com eçara mas foi cortado com meu afastam ento da universidade, com o jovem Rubens Rodrigues Torres Filho, meu primeiro orientando. Ele percebera que havia m uito mais coisa im portante no idealismo alem ão além de Flegel, e resolvera estudar Fichte. Com isso punha em xeque certos pressupostos hegelianos com os quais eu trabalhava e que podiam ser pensados de outra maneira.

M as todo esse diálogo foi por água ab aix o . A cassação teve, no D ep ar­tam ento de Filosofia, conseqüências muito mais profundas do que se imagina. Ela não se resumiu sim plesmente a botar dois ou três professores para fora; interrom ­peu um processo de ajustam ento de idéias incrivelm ente im portante. Na época, ainda envolvido com as minhas obsessões pela lógica, estava estudando e tradu­zindo o Tractatus, adem ais com a doce ilusão de que traduzir dava dinheiro, na esperança de fazer econom ia e preparar-m e para a perda de emprego que já esta­va no horizonte.

Ainda com relação a Lebrun: que papel ele desempenhou nesse diálogo? Lebrun sempre foi aquele que, ao tom ar conhecim ento de um tema que algum de nós estivesse trabalhando, o retom ava, ia até o limite e nos dizia “ não está dando” . Ele nos obrigava a repensar sem fim e a recom eçar do zero. E claro que cada um seguia seu próprio cam inho. Bento dava seus primeiros passos em direção a Bergson, recriando a forma do ensaio, da qual eu desconfiava; Porchat com eçava de novo, abandonando Aristóteles para mergulhar na lógica formal — variação dos com e­ços que o levou ao ceticism o; os jovens, Rubens [Rodrigues Torres Filho], M arilena ]Chaui] e tantos outros, criaram um novo padrão dos estudos históricos em São Paulo. M as, para mim e para o Bento, todo esse processo foi interrom pido quando veio a cassação. Na época, Granger, muito gentilmente, me convidou para dar aulas em A ix-en-Provence, mas logo Fernando Flenrique me convenceu de que havia condições para criarm os um centro aqui mesmo. E havia a oposição de Lupe [Co- trim ], minha mulher, que não imaginava ficar fora do país por muito tempo e es­crevendo poesia em português. De fato , fomos aposentados cm m arço de 1 9 69 , em maio o Cebrap (C entro Brasileiro de Análise e Planejam ento) foi fundado e em se­tem bro chegou o primeiro grant da Fundação Ford.

£ como você avalia essa experiência do Cebrap?Desde os ensinam entos de G ranger e o conselho a ele dado por Bachelard, eu tinha clara a idéia de que não se pode fazer epistem ologia sem se casar com uma ciência. Se, naquele m om ento, eu estava me casando com a m atem ática e a lógica, agora eu procuraria me valer dos conhecim entos que já tinha de sociologia e aprofundá-los. Além disso, todos nós fizemos um curso de Estatística com Elza Berquó — éram os eu. Paul Singer, Fernando Flenrique, O ctávio lanni e outros tom ando nota e fazen­do exercícios. Uma tentativa de unificar nossa linguagem por meio do aprendiza­do de técnicas. M as, nesse m om ento, a nova e grande experiência era o cham ado “m esão” : não havia texto no Cebrap que não fosse discutido por todos nós, senta-

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dos em torno de uma mesa; discussão franca e freqüentemente violenta, com xinga- mentos e tudo, mas logo depois estávam os todos juntos tom ando chope.

O qtte tomava isso possível?Creio que o principal vínculo era a solidariedade política: tínham os consciência de que, se não aprofundássem os o espírito crítico , estaríam os perdidos. E esse apro­fundam ento tinha dois objetivos: um deles era a desm istificação dos chavões da esquerda; o outro, tom ar consciência do que estava realmente acontecendo no Brasil. Rapidamente percebemos que não estávamos simplesmente diante de um golpe, que o novo regime tinha um alcance muito mais profundo na vida brasileira do que outras quarteladas, e que, portanto, precisávamos compreender o que mais tarde Fernando Henrique cham aria de novo modelo político. N ós com eçam os então a trabalhar dentro dessa perspectiva, cada um com seu estilo próprio.

•Sem dúvida Fernando Henrique era, nesse momento, o grande líder do Cebrap, forjando novas idéias e desenvolvendo-as. Às vezes eu lhe recomendava que apro­fundasse mais um novo conceito, com o aquele de “ anéis burocráticos”, que, em ­bora muito frutífero, me parecia vago. .Vias ele me respondia que o mais im portan­te então era jogar idéias no debate e ver o que acontecia com elas. De meu lado, preferia ficar parafusando com mais calm a meus problem as, minhas obsessões. Na periferia do Cebrap, Fernando Novais buscava resumir todos os seus e os nossos conhecim entos de história para desenhar o “ sistema co lon ia l”, o grande livro que ele acabou publicando, .^lém disso, no Cebrap se reuniam econom istas de São Paulo, da Unicam p, do R io , para discutir numa visão mais geral o que estava ocorrendo na econom ia brasileira. Assim, ficávam os muito antenados com as enorm es trans­form ações que o golpe m ilitar estava produzindo, percebendo ainda quanto o pen­sam ento de esquerda dom inante estava fora da realidade. Para nós estava absolu­tam ente claro , por exem plo, que o movimento guerrilheiro ia “ dar com os burros n’âgua” — recom endávam os a nossos alunos que não entrassem nessa aventura m aluca, em bora nunca lhes faltando nas horas decisivas. Era uma loucura com ple­ta im aginar que a revolução viria do cam po, quando este estava passando por um processo de transform ação capitalista.

Na orelha de seu livro Origens da dialética do trabalho, Lebmtt escre­veu o seguinte: “É pena que o livro de José Arthur Giannotti, pronto há mais de um ano, somente seja entregue ao leitor brasileiro depois da publicação da última obra de Althusser sobre Marx; é pena além do mais que o público francês só venha a conhecê-lo ainda mais tarde. De fato, é uma pena; pois se me pedirem para citar, dentre os livros recen­temente dedicados a Marx, os dois que me parecem ao mesmo tempo mais inovadores e mais rigorosos, responderia: Althusser e Giannotti”. Tendo em vista tal afirmação, como você avalia hoje essa sua obra? Que balanço você faria da polêmica contra Althusser, tom ada célebre em seu artigo “Contra Althusser”?

Em primeiro lugar, há um problem a: o trabalho intelectual brasileiro tende a ser movido pelas “grandes vagas” , com o dizia Cruz C osta, que vinham, e que conti­

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nuavam a vir, de fora. O que a genre tentava fazer, aqui em São Paulo — de m anei­ra talvez um pouco cega, já que sem qualquer contato com o R io de Janeiro ou o R io Grande do Sul, onde havia trabalho intelectual de qualidade — , era realizar uma leitura rigorosa da obra de Mar.x. De repente, porém , veio a vaga althusseriana e todo o mundo com eçou a pensar nos novos term os. E isso nos mostrou com o era difícil o diálogo no Brasil, pois nossos interlocutores eram de certo m odo rouba­dos pelas correntes que vinham de fora. M inha intenção era progredir na investi­gação que, formulada em termos kantianos, seria a seguinte: com o era possível uma dialética m arxista? Acompanhava Fernando Novais funcionando muito bem e com ­pondo seu sistem a, Fernando Flenrique jogando com certos conceitos e tendo su­cesso na com preensão do que estava acontecendo de novo, mas ao mesmo tempo percebia que faltava a todo esse esforço uma épura racional. C om o encontrá-la?

De qualquer m odo, porém , o meu livro não teve, na época, nenhuma pene­tração mais profunda, ele foi engolido pelos eventos. Antes de 6 8 , até que se estava conseguindo deitar algum as raízes na Am érica Latina — lem bro-m e de m anter contato regular com uin grupo de Buenos Aires e outro do M éxico , com os quais dialogava. M as tudo isso foi por água abaixo depois de 68. Recentemente, na França, uma exilada argentina que por lá ficou me disse: “N os anos 60 você era um autor que precisava ser lid o” . Lem brei-m e de que, nessa época, saíra um número da re­vista Pasado y Presente, do grupo da Universidade de C órdoba, envolta numa fita em que se lia: “ M arx , Sartre e G iannotti” [risos]. Imaginem minha surpresa, achei engraçado, pois sempre tive consciência de meu tam anho, mas isso indica que o debate estava em curso. M as esse diálogo se quebrou. Meu livro chegou a ser pu­blicado na Espanha e na França, às vezes até hoje encontro pessoas que se lembram dele, nada mais. D escobri que não adianta publicar livro na Europa se não se par­ticipa intensam ente do debate que está havendo por lá. Se você vem de um país periférico, ou você se muda para lá e entra no debate deles, ou precisa escrever um livro tão m onum ental que não possa passar despercebido. M inha opção, ao co n ­trário, foi concentrar todo meu esforço no sentido de form ar um público brasileiro no qual se possa ouvir os ecos daquilo que se faz.

£ você sente hoje a form ação desse público? O que mudou da décadade 1960 para cá?

N ão mudou nada. Sempre que vem uma grande vaga da Europa ou dos Estados Unidos, som os levados a desconhecer o trabalho de formiga que está sendo feito por aqui. Basta acom panhar as evoluções da última moda, a escuderia habermasiana, que trabalha com o se isso aqui fosse terra arrasada.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­lações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Justam ente pelo que acabei de falar, não é possível. A filosofia brasileira significa­ria esse debate sendo feito: lanço um livro, o outro o lê, o digere e rebate, e assim por diante. Com o nós continuam os na situação de ser interrom pidos pelas ondas culturais, a filosofia continua sendo m ero epifenôm eno do pensamento brasileiro. É bem verdade que se form ou hoje uma massa razoável de gente trabalhando com

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ílloso íla , mas não percebo a realização desse debate. Percebo, ao contrário , o en- quistam ento do grupo do R io de Jan eiro , o enquistam ento do grupo de Porto Ale­gre, o definham ento do grupo de M inas Gerais e o ensimesmamento do grupo USP- Unicam p. O que fazemos é treinar, além de professores, alguns intelectuais que, treinados em filosofia, passarão a ocupar um lugar no espaço público. O u seja, não é a própria filosofia que ocupa o espaço público, mas pessoas que, ao discutir as­suntos diversos, os temperam no m olho da filosofia e, assim , conseguem ter uma determ inada audiência.

Pessoas como...Com o M arilena Chaui, Paulo Arantes, Bento Prado Jr . Eles são intelectuais que têm im portância não pela filosofia que fazem, mas por participar de um certo debate cultural e político. O curioso é que, quando a gente ocupa um lugar no espaço público, acaba atingindo outros públicos mais restritos. O fato, por exem plo, de Trabalho e reflexão ter tido duas edições e uma venda de seis mil exem plares é algo extraordinário . E tenho certeza de que ele não teve esse sucesso por causa de suas teses filosóficas, mas pelo fato de eu ser uma figura pública, aparecer no jornal. Pessoas que vêem no jornal com pram o livro, dão uma olhada nele e o guardam na estante. Isso não sedimenta nada, apenas fustiga curiosos.

Qual a avaliação que você faz do livro Um departam ento francês de ultram ar, de Paulo Eduardo Arantes, particularmente no que diz res­peito à caracterização dos seus escritos?

Creio que Paulo, inegavelmente um grande intelectual, possui uma concepção fo r­mal e dedutivista do processo capitalista, e a sua intenção é me encaixar dentro desse esquema. M inha função é gritar e dizer: “N ão caibo no seu esquem a” . De um modo geral, o livro é muito inteligente, muito bem escrito, mas não é, nem pretende ser, um livro sobre história da filosofia no Brasil, já que não fala nada sobre os outros centros filosóficos. N o entanto, na tentativa de nos transform ar em reflexos do movim ento do capital, retira de nossos textos suas ambigüidades, o esforço de ca ­minhar nessa ou naquela direção, dialogando com a fenom enologia, com o existen­cialism o, com a filosofia analítica, enfim a própria estruturação de um pensam en­to que se quer obra. N isso, a despeito de não haver diálogo, tam bém é preciso co n ­siderar o inimigo oculto, a produção do ISEB, ou os filósofos do existencialism o teuto-gaúcho etc.

Ao falar desse diálogo surdo, você está pensando também no IBF (Ins­tituto Brasileiro de Filosofia)? Como você vê as diferenças entre a Fa- ciddade de Filosofia da USP e o IBF?

N ão, não estou pensando no IBF. Em bora a oposição entre direita e esquerda fosse muito polarizada, havia muita conivência (de mem bros da classe dom inante.') en­tre os grupos mais jovens; os ressentim entos ainda não estavam solidificados. D a­das as nossas raízes francesas, nós desenvolvemos a tática de não nos envolver di­retam ente em debates com as coisas brasileiras: seríamos diferentes, faríam os ou­tro tipo de filosofia, e esse outro tipo iria se espalhando com o m ancha de óleo.

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Portanto, passamos simplesmente a ignorar publicam ente o que eles faziam — não tanto por desprezo, mas por essa diferença de estilo, precisam ente para m arcar e consolidar nosso modo de ser. De vez em quando chegávamos a “ trocar uns tapas” , mas isso não produzia maiores conseqüências em nenhum dos lados.

Aliás, falando de tapas, me lembro de um episódio curioso. Q uando ainda era estudante, uma vez, ao assistir a uma conferência de H aroldo Barbuy, na B ibliote­ca M unicipal, sobre Hegel, na qual o tema do soberano (Fiirst) era tratado com o se esse fosse o Fiihrer; a certa altura, gritei lá do balcão: “ E m entira!” . Ao sair um policial me pegou pelo braço e me levou até a saída, mas meus colegas, que esta­vam na platéia, foram bloqueados por uma turma da Faculdade de D ireito e alguns socos foram trocados. N o dia seguinte saía em m anchete: “Tapas por causa de H egel” [risos]. O pobre do Ennes [Silveira M ello], ainda estudante secundário, teve seu primeiro contato com a filosofia m unicipal, com o dizia Cruz Costa. A gente tinha o gosto de demolir alguns mitos. Além do Barbuy, me confrontei com Euríolo Canabrava. Participei do III Congresso Brasileiro de Filosofia, do IBF. Q uando dei com o texto do C anabrava, uma tentativa de contrapor form alm ente ã noção de conseqüência uma outra, aquela dc seqüência, percebi que era uma loucura total. ( ) texto falava num processo de “tarsk ização”. Consultei o livro de Tarski e logo matei a charada: seu sistema de axiom as duplicava a definição axiom ática de co n ­seqüência, empregando variáveis diferentes. Achei tão inverossímil que consultei Granger, que estava por aqui. Na manhã do dia seguinte, fom os os dois para as “ .-Arcadas” . Depois da conferência, pedi um quadro negro a Miguel R eale, que di­rigia o congresso e a sessão, e com ecei a escrever o sistema de Tarski e o sistema correspondente de C anabrava, indicando a duplicação e apenas me contentando em dizer em voz alta o que escrevia. Canabrava não se agüentou e exclam ou: “Está me acusando dc p lágio?” — “ E stou” — e fui me sentar, pedindo que o sistema de Tarski fosse reproduzido nos anais. M ario C asanova, que era professor na Facul­dade e trabalhava no Estadão, interessou-se pelo assunto; fom os para a redação e publicam os, no dia seguinte, os dois “sistem as” . Foi a única vez, creio eu, que um sistema axiom ático foi publicado num jornal. Só sei que Canabrava abandonou a lógica para se dedicar ã estética.

Tendo em vista a conhecida polêmica existente entre vocês, o que vocêteria a dizer sobre a obra e a trajetória intelectual de Ruy Fausto?

Em primeiro lugar, quero desde logo salientar que Ruy Fausto foi meu aluno. Por­tanto, se um de nós teve mais oportunidades de beber da água do outro , foi ele e não eu. Em segundo lugar, lem braria que, dispondo nós dois de instrum entos inte­lectuais semelhantes e interesses próxim os, era natural que houvesse certa confluência em nossos resultados. M as exam inando de perto os textos de Ruy Fausto, consta­to um abism o entre nós. Tudo se passaria com o se enquanto ele pretende exam i­nar a questão da identidade no plano da lógica funcional de primeiro grau, eu pre­ciso co locar a questão no segundo grau. N o caso da contradição, ele tom a a con ­tradição real com o algo existente, porque isso é admissível para a lógica dialética, enquanto não vejo com o possam existir duas lógicas, a dialética e aquela da iden­tidade. M as em outra ocasião vou acertar as contas com ele.

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Em seu livro A universidade em ritm o de barbárie, você afirma: “Ape­sar de todas as tendências que a emperram, a universidade ainda é o local do novo conhecimento, ou simplesmente do conhecimento, pois o garimpo do saber antigo não valeria uma hora de pena se não apon­tasse para o diagnóstico das vicissitudes do presente e para os lances do futuro. Isto posto, ela é o espaço do diálogo intelectual, do debate, da reflexão, da troca de idéias e de experiências, da divulgação e da conquista de um público interessado tanto no saber como saber, quanto naquele que resulte em tecnologias capazes de melhorar as condições de vida de cada ser humano". Para você, a realização dessas tarefas depende de dois fatores: o respeito às normas de bom funcionamento desses processos e indivíduos engajados. Com isso, você define a idéia de um poder acadêm ico que parece central na articulação de sua críti­ca à universidade. Pensando nisso, como você avalia a universidade hoje e qual é, a seu ver, o futuro dessa instituição?

Prim eiro, gostaria de me referir a um mal-entendido com relação à crítica que fiz à universidade. Eu sempre disse que ela estava burocratizada, sindicalizada, o que, portanto, estava em perrando o diálogo académ ico. Eu nunca disse que a ciência e a tecnologia deixariam de ser feitas na universidade — tanto é que 8 0 % da pesqui­sa científica brasileira atual é feita nela. Segundo, não acredito ser possível fazer pesquisa sem um corpo de intelectuais que controle internam ente o fluxo de idéias e o debater universitário. Portanto, em bora eu ache que a universidade privada seja essencial para o desenvolvimento do ensino e da pesquisa no Brasil atualm ente, não creio que ela possa ser inteiram ente livre na sua investigação, pela simples razão de que não há dono de universidade ou fundação que vá delegar a esse corpo de inte­lectuais o controle dos trabalhos. T iro o chapéu para todo o trabalho que a univer­sidade privada está fazendo hoje, mas é necessário privilegiar a pesquisa na univer­sidade pública, desde que, obviam ente, esta tam bém se renove. M as para isso é preciso deixar de lado certas bobagens, com o achar que a universidade pública não pode e nem deve, em nenhuma hipótese, colaborar com o capital. Ela tem de estar aberta às necessidades do país, dialogar com a demanda que vem de todos os luga­res e, ao mesmo tem po, desenvolver uma crítica desse modelo de sociedade em que estam os em barcando. Assumindo essa posição, eu me indisponho com a universi­dade privada na medida em que afirm o que ela dificilm ente vai fazer pesquisa no sentido am plo da palavra, me indisponho com a universidade confessional na me­dida em que não acredito numa universidade em que um cardeal possa interferir diretam ente no curso de filosofia, e me indisponho ainda com o M inistério da Edu­cação, quando não dá a devida atenção a esse potencial inventivo da universidade pública. A gora, com os novos fundos vindo das grandes empresas, tudo indica que haverá muito mais recursos para a pesquisa, em bora não saiba ainda qual será o apoio à pesquisa básica, fonte de idéias e form adora de pesquisadores.

V ejo , portanto , uma situação m arcada pela transição, na qual o capitalism o selvagem impera nas universidades privadas, e a luta burocrática, nas universida­des públicas. Com o desatar esse nó, sinceram ente não o sei, pois só uma prática política republicana, isto é, dc incentivo a instituições públicas e doce controle das

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privadas, poderá ir descobrindo novas soluções. Até agora fiz o que pude, mas a tarefa é da nova geração. N o momento de minha velhice, prefiro me recolher e cuidar de meu jardim , finalizar o que tenho para escrever.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como mais represen- tativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

N ão prego nenhuma posição filosófica. Sou apenas um reator: eu reajo às minhas paixões. Eu me apaixonei pela fenom enologia e tentei, por meio do estudo de inten- cionalidades noem áticas, entender melhor o que era a Lebenswelt (o mundo da vida) de Husserl. Isso me predispôs a atentar para os nexos do capital na vida cotidiana. Depois me apaixonei por M arx e quis ver com o essas intencionalidades podem ser contraditórias e ocultar ao mesmo tem po as atividades visadas individualmente. Term inei me apaixonando por W ittgenstein na medida em que ele estoura a noção de proposição e amplia a própria idéia de expressão. E assim por diante. Afirmar que possuo posição filosófica seria falsear a perspectiva correta , pois o filósofo brasileiro é simplesmente alguém que luta contra vagas, é um “ antivaga” ou um “ antivoga” . Nesse sentido, o traçado da minha vida é aquele de um professor, que vê na boa form ação de seus alunos uma forma de incentivar a resistência a pensa­m entos que não têm raízes em nossa experiência cotidiana. D aí essa mistura de investigação própria e de polêm ica. Estou sempre pensando por meio de alguém contra alguém.

Você abre o livro Apresentação do mundo: considerações sobre o pen­sam ento de W ittgenstein, de 19 95 , com o seguinte pensamento: “Seria mal compreendido se não indicasse como este novo texto se vincula a outros anteriores, notadamente T rab alh o e reflexão. Por certo tenta ser uma monografia sobre as aventuras filosóficas de Wittgenstein, mas a escolha dos temas e o próprio movimento do trabalho somente se justi­ficam se o leitor tiver em mente que essa escavação de uma obra alheia dá continuidade à minha própria investigação, por mais modesta que pretenda ser”. Quais as rupturas e continuidades entre T rab alh o e re­flexão, de 1983, e o livro de 1995?

Um a vez. Bento me disse que sou um obsessivo que só pensa nas mesmas coisas. Isso é verdade. Cada vez mais me convenço de que tenho um ou dois problem as em torno dos quais venho girando ao longo de minha trajetória. A .sensação que tive ao term inar, recentem ente, meu novo livro sobre M arx , cam inhou muito nes­sa direção: cada capítulo é um livro no qual tento fechar uma idéia, mas acabo ten­do de estourar novamente a idéia e recom eçar no capítulo seguinte; e, quando fui escrever a conclusão, percebi que a conclusão precisava ser o livro todo, e me vi sem solução. Tenho ganas dc com eçar tudo de novo.

.Mas o que me interessava no m arxism o? Sempre me interessei mais por M arx do que pelo marxism o. Andei atrás da idéia de com o é possível encontrar parâmetros de conduta que sejam ao mesmo tempo identitários e contraditórios. Isso implica pensar, de uma maneira muito cuidadosa, a distinção feita por M arx , en passant,

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entre a história contem porânea das categorias, seu desdobram ento form al, e a his­tória do vir-a-ser: dc um sistema. De um lado, com o as categorias se repõem através de com portam entos, particularm ente o processo de trabalho, cu jos parâm etros são reafirmados e adaptados no fim do ciclo produtivo; de outro, com o a história vai cons­truindo situações e instituições determ inadas — o dinheiro, o trabalho livre etc. — que passam a ter novo sentido quando se integram num novo sistema. Existe nessa passagem uma invenção, uma liberdade, que não está configurada no mero decor­rer do tem po. M as isto abre uma cesura entre a regra e o processo efetivo de segui- la, pois só assim a repetição da regra pode desenvolver sentidos que, se são roubados para que ela possa ser reposta, deixam rastro cu jo significado vai ser aproveitado num novo sistema norm ativo. Isto não era possível com preender nem com os ins­trum entos hegelianos, nem com os instrum entos m eramente form ais. N ão foi à toa que passei quase dois anos estudando Skinner na tentativa de exam inar com o os com portam entos se generalizam pela m ediação de estím ulos especiais, até chegar ã conclusão de que a solução por ele proposta simplesmente é uma petição de princípio.

Mas aqui está a fonte que me permitiu entender o dinheiro com o um hieróglifo, no sentido que M arx lhe em presta. Na mesma linha, precisava com preender com o as expressões das trocas se generalizam, estabelecem um cam po em que certas ações se tornam corretas e outras falsas do ponto de vista do sistema econôm ico, deixan­do sempre ã margem elementos que fogem dele. C^ontradiriam tais elementos as iden­tificações gerais do sistema, isto é, suas leis, ou se poriam apenas com o seus m o­mentos antagônicos? N o primeiro caso, haveria no próprio sistema uma força in­terna que o levaria ã implosão e ã sua superação; no segundo caso, o futuro não estaria inscrito no passado, pois os elementos antagônicos não estariam vincula­dos a uma força interna única responsável pela superação. N o esforço de enfrentar esses desafios, W ittgenstein foi de toda valia. N ão vi.sei simplesmente colocar M arx na nova moda. Visto que minha questão é sem ikantiana — com o é possível enten­der, do ponto de vista das ações concretas, sem o espírito absoluto, sentidos que são contraditórios e que levam à reposição de certas identidades, em bora pondo outras que fogem desse processo de totalização — , eu precisava am pliar a noção de expressão. O ra, se, em Trabalho e reflexão, eu já tinha elaborado a noção de esquemas operatórios, W'ittgenstein me permitiu jogar essa noção para o plano da linguagem, da expressão, e entender a relação dc troca com o uma form a de pensa­mento, um juízo prático se exprim indo no interm ediário dinheiro.

Você poderia então >tos falar um pouco sobre o que era o conceito de“esquema operatório” tto quadro de T rab alh o c reflexão?

O que me interessava no esquema operatório era m ostrar que a reiteração de um com portam ento implica uma relação de transform ação dos ob jetos que estão sen­do manipulados e uma transform ação da relação de alteridade. Se você com eça a jogar uma bola na parede, o fato de jogar a bola na parede implica não pensar mais a bola e a parede com o dois entes, e sim com o um processo no qual certas determ i­nações da bola e da parede se integram num esquema de operação. N o caso da relação de trabalho, o ente se põe com o um produto, cuja reintrodução no sistema— já que o ob jeto se transform a em meio de produção — implica neutralização da

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interferência no outro. Se, quando o camponês produz o trigo, uma parte desse trigo não for preservada para a próxim a colheita, acabou a produção de trigo. É preciso co locar no nível da própria relação de operação tanto as alterações nas determ ina­ções dos ob jetos m obilizados com o as alterações do outro , o qual precisa reconhe­cer uma certa regra de propriedade — seja ela de parentesco ou, com o no capitalis­mo, a regra de propriedade vigente no m ercado. A reiteração de um processo social, portanto, faz com que ele não seja tão-só processo simplesmente orientado para um fim — conform e a tradição aristotélica e weberiana — , mas um processo em cujo interior se integra a finalidade de toda uma forma de sociabilidade. F. a refle.xão, nesse sentido, se torna, ela mesma, interna a esse processo — conclusão que não implica cair na ilusão hegeliana dc que esse movim ento de construção e destruição das entidades pudesse chegar a uma espiritualização de todas elas. E por isso a idéia da ilusão necessária se tornou central na investigação em que estou metido atual­mente, pois uma identidade com o a de valor só se fecha na base de uma totaliza­ção im aginária, a despeito de constituir-se num êm bolo social.

O ra, é nesse contexto que se torna fundamental entender com o se podem se­guir regras contraditórias, e com o, no ato de segui-las, os sentidos visados são tritu­rados. N ão me interessa apenas saber com o a ação tem conseqüências involuntárias, mas com o essas conseqüências são de certo modo reintegradas num sistema sincrô- nico de m anutenção de relações sociais de produção, que nega a maneira pela qual as pessoas se colocam nelas. Desse ponto de vista, há um ganho muito grande quando se passa de uma análise meram ente lógica das relações de com portam ento para as relações efetivas do seguir a regra, levando-se cm conta tanto o que se faz com o a maneira pela qual se criam , ao lado, processos de ordenação e de guarda das regras. Podemos encontrar ao mesmo tem po, no processo mais elem entar do m etabolism o do homem com a natureza, relações de transform ação e relações de dever-ser: o que é e o que deve ser se amalgam am em bora sejas aspectos diferentes do mesmo m o­vimento. \ relação social, portanto , deve ser pensada não com o uma relação entre “eu” e “tu ” , mas com o uma relação entre, de um lado, “eu” , “ tu ”, e, de outro, in­term ediário sim bólico, o vigilante da norm a. Isto é algo que sempre me fascinou.

Em T rab alh o e reflexão, você escreve: “as propriedades de uma coisa não nascem propriamente de sua relação com outra, mas, como elucida Marx, nela apenas se exercem ("sich betãtigenj. De nossa parte, procu­ramos mostrar que esse exercido é mais radical do que parece à pri­meira vista, sendo responsável pelo mapeamento das coisas, por um logos prático em que as coisas encontram os princípios de suas indivi­duações”. O que é o conceito de ‘lo g o s prático” e como se vincula ele ao novo quadro teórico de Apresentação do m undo?

A história dessa noção de logos prático já foi indicada. Ela com eçou quando me encantei pela noção de referências noem áticas no último FlusserI — com o, numa mesa posta, a faca se reporta ao garfo, o garfo se reporta ã colher, e assim por diante, para form ar um sistema cham ado couvert. Se você vai a um restaurante, não pensa especificam ente no garfo ou na colher, mas no sistema do couvert — e, claro, na conta que vai pagar depois pelo couvert [risos]. O que me interessava era m ostrar

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com o essas relações são mantidas no sistema de produção, com o o seu equilíbrio é reposto. N o caso do restaurante, tudo bem: o sistema é form ado, você vai lá, paga por ele e, quando voltar, encontra-o novam ente da mesma form a. M as e no caso do sistema de produção? Quem paga a conta? O ra, essa conta tem de ser paga pe­las próprias pessoas que colocam o garfo , a colher e a faca. Eu precisava, então — e por isso W ittgenstein foi tão im portante — , descobrir com o se podem articular as forças produtivas num sistema de expressão. Se alguém produz arcos e flechas, por e.xemplo, e tem muito mais arcos do que flechas, haverá arcos que não irão fun­cionar, pois é preciso haver uma proporção entre um arco e tantas flechas para que am bos possam cum prir suas funções — flechar um pássaro, flechar uma pessoa...

N o caso do capitalism o, essa articulação é feita graças ao fato de que cada um desses ob jetos se exprim e sob a form a de valor; a articulação do valor é uma expressão dessa articulação das forças produtivas. Isso é algo que eu não conseguia entender antes de com preender com o determ inados ob jetos são transform ados em signos — com o se pode pegar uma flecha e colocá-la numa encruzilhada, escreven­do São Paulo na sua ponta, de tal modo que eu possa com portar-m e de agora em diante de maneira correta ou incorreta conform e eu queira ir ou não para São Pau­lo. Enfim , construo uma bipolaridade, um pensamento a partir do ato de exposi­ção da flecha. M as é preciso notar que transferi para o nível da expressão um co ­nhecim ento muito mais elem entar; o conhecim ento de que o sentido da flecha vai das plumas para a ponta da seta, e não o contrário . O ra, a noção m arxiana da com posição orgânica do capital, que diz que as forças produtivas são expressas em termos de valor, refere-se, a meu ver, a esse processo pelo qual os ob jetos passam a ser significativos, uns em relação aos outros. N o nível da expressão capitalista: eles são avaliados com o m om entos do trabalho geral da sociedade para continuar a produzir. E essa é uma que.stão que a lógica hegeliana não consegue explicar, pois parte do pressuposto de que a expressividade se dá no nível do conceito, da rela­ção silogística da regra com seu caso. Desse m odo, é a atividade inscrita no silogis­mo, com o expressão do A bsoluto, que resolve a articulação da flecha e do arco. O ra, para poder pensar uma dialética materialista é preciso inverter esse movimento de constitu ição, exam inar com o a proporção tecnológica se expressa em term os de valor, desde que cada fator de produção seja pensado com o m om ento da produ­ção cm geral. Esta foi a primeira tarefa que deveria enfrentar.

A segunda, explicar com o o desenvolvimento tecnológico altera esse proces­so de medida e expressão das articulações das forças produtivas em term os de va­lor. Sem uma am pliação do conceito de expressão, acabaria caindo na besteira de im aginar que existe, de um lado, uma lógica formal e, de outro , uma lógica da con ­tradição, e de achar que esta última consiste em ver os objetos com o ao mesmo tempo iguais e contraditórios. O ra, isso é uma piada, a piada intrínseca ao m arxism o vul­gar, que confundiu o problem a com sua solução. Esta, para quem pensa nos seus term os, consiste em antepor ã lógica form al uma lógica da contrad ição e dizer; “pronto, com o há duas lógicas, nós, os dialéticos, pensamos diferentem ente” . Acon­tece que é preciso legitimar essa duplicidade. .Vias para mim existem sistemas for­mais e lógica, o estudo de várias gram áticas. A despeito de todas as conquistas so­ciais que pôde trazer, o com unism o não foi apenas uma ilusão que se entranhou

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no século X X , foi tam bém uma maneira de as pessoas se em burrecerem , ópio dos intelectuais, com o dizia Raym ond Aron, a perda da capacidade de distinguir pro­blemas por meio de um discurso esclerosado. Afirm ar a existência da contradição real não equivale a afirm ar a existência da luta e dos antagonism os, implica ainda transform ar o real num logos, numa form a de expressão. Enquanto isso não for explicado de um ponto de vista distante da especulação hegeliana sobre o Absolu­to , a crítica de M arx ã econom ia política e ao capital deixa de ter sentido, pois toda ela se ancora na idéia de que capital e trabalho se contradizem .

Em Apresentação do mundo, você atribui grande importância à distin­ção wittgensteiniana entre “modos de representação” e “meios de apre­sentação”. No que consiste esse par conceituai e qual a importância dele para a sua reflexão?

C om o disse, quando os ob jetos se transform am em signos, o nível mais elem entar das relações de vigilância da regra já está presente, necessitando apenas mudar o aspecto, para expor seu caráter de dever ser. Considero uma bobagem essa idéia de que existe todo um sistema de com portam entos e, depois, um déficit norm ativo. D éficit norm ativo em relação a quê? Se A se relaciona socialm ente com B, há uma regra e um terceiro cuidando dessa regra. O déficit norm ativo aparece já aí, na própria relação. Nesse ponto M arx é genial, pois ele diz que, se tivermos uma rela­ção de troca entre A e B e as pessoas passarem a operar efetivam ente por meio do dinheiro, elas se reconhecem com o proprietários de algo que deve circular. Se vem um desgraçado, pega o dinheiro e o leva para casa, pronto: acabou-se esse tipo de relação de troca. O nde está o déficit norm ativo? Está aí mesmo. Ou seja, não exis­te diferença essencial entre a relação e o controle da norm a. N ão se precisa apelar para Estado, Deus ou Absoluto para que os homens regulem suas norm as, as ou­tras instituições vêm depois. Tod a norma pública, pela sua simples reiteração, im­plica instituições que são guardiãs da norm a, de sorte que é no nível da própria sociedade civil que se dá esse entranham ento entre efetividade e guarda da norm a. Com preender isso é fundamental para com preender as outras instituições norm a­tivas, que se vão m ultiplicando a partir — vou ser bem m arxista aqui — da infra- estrutura. Basta 1er o segundo capítulo d’0 capital: as pessoas que trocam não são apenas trocadoras, atuam com o agentes que respeitam a relação de propriedade e assim por diante. A normatividade está no nível mais elementar das relações sociais. Portanto, é preciso parar com essa brincadeira de Faktizität und Geltung*, cu ja oposição se baseia numa análise muito estreita do que significa a proposição.

Mas qual a relação disso com a distinção entre “modos de representa­ção” e “meios de apresentação”?

Para fazer com que este isqueiro chegue até um cigarro deste m aço, tenho que se­guir certas regras: vou pelo cam inho mais curto, não vou jogar o isqueiro lá do outro

* “ Facticidade e validade” , título do livro de Jürgen Habermas, de 1992, traduzido no Bra­sil com o título Direito e democracia: entre facticidade e validade [N. dos Orgs.j.

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lado para depois pegá-lo e trazê-lo ao cigarro. Isto é, há uma relação entre o isqueiro e o cigarro que pressupõe uma série de coisas: por exem plo, que o isqueiro tenha uma certa identidade, que não seja feito de sorvete, que funcione etc. Se ele fosse de cera e derretesse quando aceso, não poderia sequer operar dentro daquela rela­ção , seria impossível levá-lo ao cigarro pelo cam inho mais curto. Em outras pala­vras: há aí dois tipos de necessidade diferentes entre si. Ao afigurar-m e o cam inho mais curto entre o isqueiro e o cigarro articulo um modo de representação que diz respeito a uma faticidade possível. .Mas esta só vem a ser segundo suas regras, se forem pressupostas outras existências fixas, outras necessidades para a efetuação desse jogo de linguagem, cuja expressão diz respeito aos meios pelos quais os o b je ­tos e os fatos se apresentam com o objetos representados pelas regras do jogo. É genial esse duplo sistema de necessidade, que retom a a distinção m arxista entre história catcgorial e história do vir-a-ser. Desse m odo, há uma inter-relação entre Faktizität e Geltung operando no nível das próprias regras conform e sua mudança de aspecto.

Apesar da inspiração wittgensteiniana de Apresentação do mundo, você afirma neste livro que “é preciso tomar enormes distâncias do traba­lho realizado por Wittgenstein, e tentar mostrar que os erros dos meta­físicos, em que necessariamente cai o pensamento ao longo de seu per­curso, podem servir de base para formas alienadas de sociabilidade”. Como é possível se servir de Wittgenstein ao mesmo tempo em que o problema que você se põe exige uma tomada de distância em relação a ele num ponto tão decisivo?

W ittgenstein tem uma teoria muito particular da contradição. De acordo com ela, se digo “ isto é belo” c você diz “isto é fe io” , nós estam os entrando em contradição— o que, para a lógica form al, não é o caso. Cabe então tentar entender o que esse filósofo está querendo dizer com “contrad ição” , e o mesmo acontece com M arx. M as quando o cálculo das proposições form aliza a contradição, os problem as es­senciais de seu sentido foram expurgados, pois as proposições foram tom adas uni­cam ente sob o aspecto de com o podem se vincular por seus valores de verdade. Isso não explica com o a contradição é usada. A questão é saber com o é possível operar com conceitos, ou com representações, que aparecem com o identidades, e, no ope­rar, os objetivos vão sendo inteiramente subvertidos — subvertidos não por um Deus que vem de fora, mas por um processo pelo qual ocorre uma espécie de alteração dos próprios ob jetos. E todos nós som os enredados pelo mesmo processo. Ou seja, o problem a da validade da regra implica a institucionalização do guardar a regra, o que por sua vez pode subverter o sentido da regra tal com o é apenas visada.

Em um artigo de 1990, “A sociabilidade travada”, você afirma: “Creio que diante da encruzilhada entre socialismo e barbárie, os homens es­colheram a barbárie, pois até mesmo aqueles que lutaram bravamente pelo socialismo e por um novo homem viram seus esforços se perderem pela desmedida da sociedade civil que tenninaram criando. E se hoje os novos líderes tratam de introduzir relações mercantis em suas eco­nomias, convém ficar à espera da forma de mercado que terminarão

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por implementar. No entanto, se a contradição entre capital e traba­lho se esfuma precisamente para permitir tremendos desequilíbrios da distribuição da riqueza social, ela deixa todos nós, assalariados ou não, diante da questão crucial de saber o que fazer com o próprio trabalho”.Esse travamento da sociabilidade persiste? Em que sentido podemos falar de uma “escolha” da barbárie pelos homens?

Nós não escolhemos a barbárie; nós estamos metidos nela. O problema é saber com o sair desse buraco. O que tento descrever é o fato de estarm os num mundo em que a construção dos signos pelos quais pautam os nossa sociabilidade rouba os senti­dos elem entares pelos quais com eçam os a agir. C om o, além disso, esses sentidos estão sendo com pletam ente subvertidos por um capitalism o que, além de estabele­cer as regras, aprendeu a guardá-las, e guardá-las ad hoc conform e seus próprios interesses, também estam os metidos na barbárie no sentido bom da palavra — isto é, não no sentido de um estado primitivo sem regras, mas no de uma utilização da regra de acordo com determ inados interesses. Esses interesses não são apenas indi­viduais ou empresariais; são interesses que dizem respeito ao sistema com o um todo, que afetam nossas próprias individualidades sociais. M eu problem a não é, pois, imaginar com o sair desse mundo fetichizado, cu jo fetiche não é apenas aquele da m ercadoria, mas sobretudo do capital com o finalidade em si mesmo. Cabe-m e, em prim eiro lugar, apontar com o se articula um sistema produtivo cuja racionalidade é a irrazão de um crescim ento .sem fim, sem eira nem beira. Em segundo lugar, minha tarefa é denunciar essa irracionalidade que se entranha do próprio processo de ra­cionalização do processo produtivo e perguntar quais as instituições políticas que vão ser capazes de pôr em xeque esse mesmo processo de racionalizar pela irracio­nalidade vigente no plano do com portam ento dos próprios atores. (Considerem o m ito do progresso: progresso para quem , para quê? De que vale o progresso sem fim do crescim ento econôm ico se abre o abism o entre os ricos e os pobres? M as que tipo de instituições políticas vão ser capazes de detectar esse fenôm eno e pro­por remédios para saná-lo? Isso sem querer ã força suprimir a contradição, já que é por ela que a produção da riqueza não se esclerosa.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

Diria que não fiz filosofia nem fiz ciência. Logo, não sou bom filósofo nem bom cientista. Sou apenas uma espécie de interruptor de luz que, ao ver as ciências hu­manas cam inhando autom aticam ente numa certa direção, vem e diz: "O lh a , cui­dado! Levem-se em consideração os constrangim entos e os com prom issos que es­tão sendo assumidos tacitam ente com o uso de tais conceitos” . Na filosofia, não assumo esta ou aquela posição. Se estam os pensando de determinada m aneira, pro­curo calcular o preço que estam os pagando por pensar assim. O cam inho que te­nho perseguido é o cam inho do cam aleão e do chato .

Certa vez você afirmou; “para mim, ler Marx, e ao mesmo tempo apro­fundar minha familiaridade com as ciências sociais, eqüivalia a obe-

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decerao conselho que G. Bachelard tinha dado a G.-G. Granger e este a mim: se pretende estudar epistemologia, case-se com uma ciência. Mas desde logo manifestei minhas tendências poligamas, pois eram todas as ciências sociais que pretendia abranger”. Pensando nessa afirmação, como você vê as ciências sociais no Brasil hoje?

N ão sou um profissional da sociologia, leio a esmo o que me cai nas m ãos. Diante da avalanche das publicações, sempre me pergunto: “ Será que vale a pena 1er tudo isso?” — e fico angustiado com medo de perder coisas essenciais. Procuro não se­guir modas e deixar que os textos se assentem. E.xceção feita à produção dos am i­gos — pois tendo cada vez mais a seguir a frase de M olière: Nul a de l’esprit hors nous et nos amis (Ninguém é dotado de espírito, à parte nós e nossos amigos). Parece- me que o que está sendo feito por aí im ita, de m odo em pobrecido, o debate mun­dial, que tam bém não me entusiasma. Provavelmente por desconhecim ento. M as estam os sendo capazes de traduzir as nossas experiências, de traduzir a experiência de uma sociedade periférica tentando situar-se no contexto do capitalism o mundial?

Como você avalia a Teoria da Dependência, e como você pensaria essa teoria no contexto da inserção atual do Brasil no mundo globalizado?

Creio que a Teoria da Dependência, a despeito das múltiplas form ulações que lhe foram dadas, representou um passo im portante no pensamento da esquerda lati- no-am ericana. Pois viu-se que não se trata apenas de pensar a invasão imperialista, mas igualmente de exam inar com o as estruturas sociais internas nacionais reagem a ela, isto é, se com prom etem e se repõem por meio de políticas próprias. M as de­pois que se instala sem contestação a paz am ericana, o problem a do imperialism o desaparece da discussão, substituído pela questão da dem ocracia. O fato de um im portante teórico da dependência chegar à presidência da república não ajuda a marginalizar o tema da dependência? O que restou foi a concepção formal do sr. [Robert] Kurz, que deixa pouca margem para a política. O ra, me parece que, se o próprio capital não se repõe a não ser por m eio da intensificação das políticas em presariais — o que é uma empresa m ultinacional senão uma fonte de políticas?— o âm bito das políticas públicas se amplia em vez de diminuir. O capital de hoje está de olho nas taxas de juro determ inadas pelo Federal Reserve. Estam os mergu­lhados na política, que também se globaliza. M as política para quem?

O seu livro T rab alh o e reflexão, de 1983, teve uma vendagem e uma repercussão bem maiores do que Apresentação do mundo, de 1995. A que você atribui tal diferença de repercussão, e como se posiciona em relação a isso?

Se foram vendidos por volta de seis mil exem plares de Trabalho e reflexão, creio que isso se deve ao fato de eu estar, na época, muito exposto pela mídia. Nos últi­mos tempos eu venho me tornando um professor acantoado — aqui em minha casa e numa instituição, o Cebrap, que perdeu muito a sua visibilidade. E eu creio que no Brasil os livros se expandem muito menos por sua qualidade do que pela exp o­sição pública de seu autor.

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Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como você se posiciona em relação a esse debate?

N ão sou m uito bom para falar de arte, que para mim tem muito da experiência íntima. M as a arte que, desde muito cedo, mais me faz refletir é a pintura — não à toa o meu filho virou pintor. Tenho a impressão de que o que se faz hoje em arte tem muito pouco a ver com o que se fazia até o meio do século. A diferença essen­cial está em que, até esse m om ento, os ob jetos de arte tentavam construir um código que pudesse ser percebido não num único ob jeto , mas numa justaposição de vários deles. Pensemos, por exem plo, em R othko: se vários quadros são observados, acaba- se por perceber um código que os alinhava. Depois de Ducham p e Beuys, o código saiu da obra e se refugia na etiqueta ou na indicação do crítico. A idéia de que se possa interagir com a obra de arte talvez nunca tenha sido tão verdadeira com o hoje, mas não se pode mais ficar sozinho no museu: vê-se o quadro por meio de uma nova inform ação que não vem mais por ele. Na última exposição que vi no museu W hit- ney, sobre a arte am ericana — uma retrospectiva muito boa, por sinal — , era im ­possível acom panhar a parte mais contem porânea sem as instruções de um m o­nitor. Este inform ava que tal fotografia apanha a janela de um trem a toda veloci­dade, revelando então uma cena íntima que se passava no seu interior, outra era um depósito de arm as atôm icas sendo tratadas com o se fossem objetos cotidianos, e assim por diante. Só assim as fotos faziam sentido. Isto significa que foram reti­radas, da factura da obra de arte, a reflexão e a idéia de que sua repetição pudesse construir seu próprio sentido. Agora este vem da mera justaposição. D aí a dificul­dade de o autor ser identificado. Antigamente se dizia: “isto é um Van G ogh”, “ isto é um Cézanne”, “ isto é um Stravinsky” . M as às vezes já era difícil distinguir Braque de Picasso. Tudo indica, porém , que ocorre de fato aquela m orte das artes preconi­zada por Hegel, sua substituição pela filosofia. M as tam bém a filosofia não virou plástica, isto é, de plástico?

£ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des­frutaras questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

Estou sublinhando que a regra social se exerce junto de processos de sua vigilân­cia, o que implica no nível do fato uma dim ensão norm ativa. A guarda da regra é uma atividade política que passou a encontrar seu fulcro no Estado N acional e agora o extravasa. Lem bro ainda que a vigilância da regra implica atentar para as distân­cias entre o padrão pressuposto pela regra, a medida do que é feito por meio dela, e o que de fato resulta desse m ovim ento. M as essa vigilância mensurante só ganha legitimidade se for exercida em nome da m anutenção do todo , da nação na qual os grupos se reconhecem com o integrantes ou parcialm ente incluídos. D aí o m ono­

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pólio da violência, que nada mais é senão o outro aspecto da necessidade de se in­tegrar numa identidade de que todos querem fazer parte, mesmo quando parecem ser indiferentes a ela. M as essa medida do Estado não sobrevive sem o exercício da medida da riqueza social, que ele pode con tro lar de fora, com m aior ou menor sucesso, mas que extravasa seu dom ínio e seu território, em bora não se exerça fora de qualquer dom ínio e de qualquer território. O fluxo do capital financeiro pode circular adoidado pelo mundo afora, mas sempre está entrando e saindo das fron­teiras fiscais postas pelos Estados nacionais. E cada Estado ou parte do Estado luta a partir de suas vantagens e desvantagens estratégicas.

Parece-m e que o que mudou foi a natureza da guerra e da paz existente entre os Estados, as empresas e assim por diante. É evidente porém que uma medida posta pelo Estado, que nunca fala na linguagem das classes, só pode ser exercida se co lo ­car a problem ática da justiça social, da validade da diferença dentro do todo, para encobri-la ou para exercê-la, reforçando a medida antiga ou propondo novas. Em sum a, desde o início se tem um critério para distinguir entre defensores do status quo e defensores da mudança. Se desde o início o processo de negociação da medi­da da riqueza social tam bém se coloca no plano de uma política, é preciso levar em consideração com o os agentes vão se reportar a essa distinção entre m anter a regra e mudar a regra.

Isso distingue para você direita e esquerda?É evidente. O critério é claro. Se o governo Fernando Henrique Cardoso, por exem ­plo, term inar restaurando as regras tradicionais da exclusão social no Brasil, será um governo de direita — seja lá com o vem pintado, de verde e am arelo, verme­lho, e assim por diante. Se, ao con trário , for um governo que, ao longo dos seus dez anos de hegemonia no processo político brasileiro, consiga alterar essa medida, será um governo de esquerda. Este é um fato que se está construindo. N ão se tra­ta de algo que pode ser verificado neste ou naquele lance, nesta ou naquela estraté­gia, mas no circuito de seu todo. De certo m odo, a história é o tribunal de uma política, em bora o julgam ento feito esteja sempre sendo refeito a partir da sombra que ele cria.

Q uanto ao lugar da política, cabe lembrar o seguinte: se, já nas estruturas mais elementares do com portam ento hum ano e do m etabolism o do hom em com a natu­reza, podemos descobrir ao mesmo tempo aspectos de ser e aspectos de dever-ser, não é preciso cingir-se à idéia de que somente o Estado pode ser a Zusammenfassung, a compreheusio, a totalização do dever-ser de tudo o que acontece nas sociedades contem porâneas. Se o processo de produzir a riqueza social se exerce a partir de focos políticos em luta, a política também passa a ser exercida em vários níveis. É bem verdade que um deles depende da intervenção de acionistas, ou tro , do baixo clero , outro ainda de cidadãos, e assim por diante. M as me parece que a política de hoje nasce do cruzam ento de instituições e práticas de soberania relativa, de sorte que o grande desafio é assegurar um terreno de negociação dessas instituições em luta. Daí a enorme importância do Estado regulador que coloca seu capital em função dessa regulação social. Por isso estam os assistindo a uma refundação do exercício da soberania, ao mesmo tempo mais com partilhada e mais insidiosa.

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Q uanto, por fim, ao revival das questões éticas, há nele, creio eu, um lado que me preocupa. Gesta-se uma nova form a de política que não logra, todavia, enfren­tar efetivam ente o problem a da exclusão. N ada mais natural que as boas consciên­cias apelem para a indignação m oral. iMas a que isso serve? Ao vir a ser pública converte-se em arm a política, tão manipulável e manipulada com o qualquer outra. M ais ainda, a pregação moral tende a negar a política, em particular aquela zona cinzenta em que opera, suponham os, meu representante. Eu o encarrego de acuar meu inim igo, em purro-o a agir contra sua vontade mais profunda. Espero também que, quando se distribuem bens escassos, ele trate de privilegiar nossos amigos em prejuízo de meus adversários. Se essa distribuição fosse meramente técnica não se­ria política. Suponham os um médico que deva distribuir pacotes de remédio co n ­tra a Aids, que haja mais pacientes do que doses, e que, portanto, ele deva selecio­nar aqueles que têm mais chances de m orrer e aqueles outros que têm mais chan­ces de viver. Até agora sua escolha foi técnica. M as, digamos, quando se defronta com dez pacientes com as mesmas chances de sobrevida e lhe restam apenas cinco doses, com o deve proceder? D aí em diante age politicam ente, não há com o evitar. Transferir a questão para o plano das boas intenções, im aginar que se deve agir levando em conta tão-só os estados de coisas considerados possíveis e deixar na som­bra os meios pelos quais m ontam os os quadros dessas possibilidades, no fundo, significa esquecer com o os sentidos são roubados, isso é extrem am ente conserva­dor, pois reforça a ilusão de que a mera reform ulação ou refundação da ética pos­sa dar solução a uma questão que é prática, uma questão que diz respeito a com o se opera a fim de que um sistema de regras seja reposto. Isso é uma form a de ocul­tar conflitos irresistíveis. Cada vez mais sou antidedutivista e antifundacionista, porque não me interessa legitimar esta ou aquela regra m oral, mas exam inar com o devo ser e todos nós devemos ser para que sejam os dignos de uma regra moral que se apresente com o um im perativo, seja lá qual for seu conteúdo.

Você enxerga isso na discussão atual sobre os direitos humanos?Sim, desde que se m arque a diferença entre form ular uma regra e segui-la. N ão vão pensar que eu não seja defensor intransigente dos direitos hum anos, mas ape­nas essa defesa significa muito pouco diante da tarefa de m odificar certas estrutu­ras sociais que os tornem efetivos. O desafio é saber que tipo de regra precisa ser mudada. A simples aspiração por um mundo m elhor não distingue a esquerda da d ireita, pois isso não coloca um lim ite no caráter relativo dessa oposição. Bill C linton está à esquerda do espectro político norte-am ericano. E daí? Tam bém G oebbels não estava mais ã esquerda do que Gõring? Por isso seria este m erece­dor de algum aplauso?

Falando sobre a relação entre moral e política numa entrevista para a revista República, você afirmou; “parto do pressuposto de que existem regras morais se apresentando como imperativos categóricos. Elas se dão como tais, vale dizer, no seu significado está incluído que constituem o lugar onde a procura do fundamento estanca. Isso me basta, pois agimos de acordo com as regras tais como aparecem para nós, não como

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são para todos. Pergunto então o que as pessoas devem fazer para es­tar preparadas para seguir regras morais. Ora, nesse quadro, ou quero a pessoa antes da regra ou a regra antes da pessoa. No primeiro caso, se tece uma moral da intimidade, onde as regras vão se formando e reflexionando conforme o respeito entre nós se firma. No segundo caso, a regra desde logo é fonna de sociabilidade, colocando-se o problema de como pode valer para uma dada comunidade e a humanidade em geral. Isso significa que a moralidade moderna está travejada por três pontos de fuga: a intimidade, a eticidade e a amizade, já que esta últi­ma configura um colchão de conivência entre as duas”. Como pensar esta moral da perspectiva antifundacionista de que você nos falava f

Esse meu aparente kantism o de pensar o juízo prático é, no fundo, muito aristoté- lico, pois recorre à idéia de um ethos. Estou subiiniiando que qualquer relação so­cial tem a contrapartida do guardião da regra. T ra to então de perguntar: com o funciona essa relação de guarda e de representação da regra para os indivíduos nas várias esferas da sociabilidade? C onstato então, com o já fez M cintyre, que vive­mos num mundo de poucas virtudes, ou m elhor, de virtudes contraditórias: em bo­ra isso não nos impeça de agir m oralm ente. N ão são mais as virtudes tradicionais que ao fim e ao cabo organizam nossas sociedades. É preciso, portanto, encontrar, no nível mais elem entar dos com portam entos hum anos, os pontos de fuga a partir dos quais as norm as se organizam , pois essas regras não deixam de existir ainda que para dom ínios restritos. Percebe-se então que numa relação de intim idade se quer menos as regras, porque a existência do outro é o alvo m aior da vontade. M as esse outro não se dá com o um personagem , mas com o angústia, com o fissura no mundo. Nesse plano, a regra parte do respeito pelo outro posto com o uma não- essência. Na esfera pública, entretanto, queremos, antes de tudo, que as pessoas ajam de acordo com certas regras — pouco im portando se são estas ou aquelas regras. A fundam entação não im porta, as pessoas simplesmente querem essas regras, e isto basta para instalar aí o dom ínio de uma moralidade pública. M as há, por fim , o terceiro pólo, o acocham bram ento da amizade, um colchão importantíssimo na vida contem porânea, pois cria uma zona cinzenta que atenua os rigores da intimidade e da moral pública. Amizade, por conseguinte, muito diferente da philia grega, pois esta e.xclui a relação com alguém não-virtuoso. Imaginem se fôssemos hoje em dia peneirar os nossos amigos somente segundo o critério da virtude... Certam ente te­ríam os pouquíssimos amigos [risos].

N o entanto, essa reflexão sobre a moralidade pública ficou bloqueada, por­que eu precisava entender com o as pessoas podem querer regras algumas delas con ­traditórias, isto é, cu jos efeitos negam certos parâm etros no início pressupostos — e não tinha ainda os instrumentos necessários para pensar essa situação. Agora creio que os tenho. Quando nós elegemos políticos, não estamos mesmo pressupondo que eles devam, para poder nos representar satisfatoriam ente, suspender certos parâ­metros morais? Há um jogo entre a moralidade e a política no qual a moral desenha um espaço em que os juízos políticos serão morais ou imorais de acordo não tanto com sua eficácia em vista de um objetivo determ inado, mas sobretudo porque co r­roboram para desenhar um tipo político a quem se perdoam certos pecadilhos.

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Enquanto era vivo, Tancredo Neves era considerado um grande m anipulador; de­pois de sua m orte, do sacrifício de sua vida para assegurar a transição dem ocráti­ca , converteu-se num grande estadista, e a m anipulação, na marca de sua astúcia. Segundo o nosso juízo de hoje, ele era um grande astucioso da política que conse­guia organizar um espaço de negociação graças ã sua habilidade e à sua caracterís­tica de estadista. N apoleão era um grande canalha, mas depois de tudo o que fez para a Europa, palmas para ele.

\ocê menciona três esferas; intimidade, m oralidade pública e am iza­de. E há, entre elas, uma tendência de invasão de umas nas outras. É o caso, por exemplo, de toda essa legislação que pretende regular a inti­midade. Como você pensa, então, a relação entre intimidade e mora­lidade pública, se uma tem o direito de invadira outra?

D ireito ela não tem; ela simplesmente invade. M as eu não diria que se trata de uma invasão ilegítim a. Por exem plo: a partir do m om ento em que alguém resolve tor­nar-se homem público, ele se coloca num lugar em que suas ações íntim as devem ser visíveis e permeáveis. Espero de meus representantes que, obviam ente, ajam de acordo com suas inclinações e interesses pessoais, mas que se conservem no plano da publicidade. Esta é uma contradição inevitável na vida do político, que cada um vive a seu m odo. O representante tratando de deixar na som bra suas inclinações, o eleitor fazendo de conta que o eleito só age no interesse público e o adversário e x ­plorando ao m áxim o essa contradição e com isso colaborando para que se firme a fronteira entre o público e o privado. Se não quero vivê-la, não vou fazer política, se não desejo a invasão da minha intim idade, fico em casa. Se alguém resolve ser presidente da República, é com o se ele declarasse: “Estou abdicando da minha in­tim idade” . E toda sua fam ília entra nessa dança, cada um tratando de se defender com o pode. N ote-se que essa fronteira do público e do privado resulta de uma luta e se fixa nos costum es. V eja-se com o dona Ruth C ardoso, por exem plo, tem con ­seguido resguardar a sua intimidade a despeito da exposição do marido.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?Até os 17 anos aproxim adam ente, eu fui cristão. E me preocupava muito com a questão da existência de Deus. Até quando me perguntei: “ Em que a existência de Deus vai mudar o meu com portam ento? Em nada” . E deixei de pensar no assunto. O que nunca me impediu de ter crises místicas — lem bro-m e de certa vez quando, viajando pela Bourgogne com alguns colegas, passei por uma crise mística atéia muito profunda, sentindo nos poros e nos vinhos a atração da transcendência. Será que sou um sujeito religioso? Talvez. M as diria que a minha religiosidade é m uito mais uma religiosidade da philia, da relação com o ou tro , da solidariedade com a ale­gria dele... Se um dia estiver no juízo final, sei o que responderei quando Deus me perguntar se eu tive fé: “N ão importa se tive fé ou não; o que importa é que segui Teus m andam entos mais estritam ente do que se tivesse tido fé, pois desse modo nenhum padrão moral me foi im posto de fora, nenhum padrão que não tenha sido querido por mim m esm o” .

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Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metaftsica” calcada na linguagem?

N ão acredito nisso. O ra, não me venham com essa! Linguistic turtt'; Isso mais pa­rece uma tournure sofistica! Estou passando por uma experiência fascinante: vol­tei a dar aulas no primeiro ano da Faculdade de Filosofia. Isto me leva a reler di­versos textos clássicos por sem ana. Na diversidade das filosofias, há uma tal per­manência de questões, de questões que mudam de aspecto, que se transform am ... Vocês acreditam realmente que a metafísica terminou com Kant? M as cada vez mais estou convencido de que as form as de fazer filosofia mudam muito menos porque o ser é dito de outra maneira e muito mais porque se desenvolve uma técnica de se pensar esse dizer.

Coloquemos então a pergunta de outra fortna. Você afirtnou que, a partir da década de 60, verifica-se uma ausência de grandes pensado­res na filosofia. Você vincularia isso a esse linguistic turn?

N ão. A filosofia nos Estados Unidos não possui a im portância que possui na Fran­ça ou na Alem anha. Autores com o Q uine, Ravvls etc. interferem menos, por exem ­plo, do que o cinem a, que é uma máquina de crítica poderosa do “am erican vvay o f life” . Creio que a decadência, ou m elhor, o enervam ento do pensamento filosó­fico nos últimos tempos se deve sobretudo ao m odo de produção dos textos filosó­ficos, que se disseminou nas universidades e nos institutos de pesquisa: para cada paper uma idéia, uma idéia em cada paper, já que im porta publicar, ocupar a sua posição no m ercado de trabalho e na burocracia. Ser filósofo virou profissão assa­lariada, com tabela de preço no m ercado, o que é muito esquisito.

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu­turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

N ão há palavra de que desconfie mais do que a palavra “ utopia” . Se o pensamento é sempre situado, dizer que se vai para um “não-tóp ico” é falso. A idéia de cons­truir visões im aginárias do que poderia ser nosso futuro me repugna. O que me interessa, acim a de tudo, é verificar, dentro do espaço em que se trabalha, quais os vetores que ultrapassam o cotidiano. Espero ser m oderno, não pretendo reeditar a epopéia de V asco da G am a, que, ao term inar o périplo da África, foi levado a um lugar do qual divisou o universo em funcionam ento. Tam bém não pretendo ser m ineiro, pois, se a máquina do mundo se desvelasse para mim, não seria capaz de passar ao largo. Se isso acontecesse gostaria de ser triturado por suas engrenagens.

Nós podemos, todavia, pensar em alguns conceitos de filosofia da his­tória como o de progresso. Em que sentido, a seu ver, nós poderíamos falar em progresso?

Nessa m alhação da idéia de progresso tam bém há um lado sacana. H oje entende­mos muito mais a respeito do desenvolvimento do universo do que há cinqüenta anos. N ão me parece possível negar todo progresso. Que hoje nós sejam os capazes de transform ar uma ciência meramente observante, a astronom ia, em ciência ex ­

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perim ental, isto implica progresso extraordinário . Que possam os hoje cam inhar muito rapidamente para ter o desenho do genom a humano e, portanto, descobrir mistérios da vida; que cada vez mais prevaleça nas relações humanas a idéia de que a tolerância é um instrum ento sem o qual não se tem relação com o ou tro ; que se possa ter acesso a um museu im aginário, por meio do qual as obras de arte estejam expostas em sua casa; que se possa recuperar, por meio dos C D s, uma história da música que dorm ia em partituras esquecidas; que se tenha uma arte com o o cine­ma, que realiza o pro jeto da “arte to ta l” de forma muito mais ampla do que a ópe­ra podia im aginar; que — para pescar em outras águas — os meios de com unica­ção coloquem os excluídos na nossa convivência cotidiana, tudo isso representa para mim um progresso extraordinário . N o fundo sou um tremendo entusiasta do pro­gresso m oderno e agradeço ao capitalism o por nos ter dado essa amplitude de ho­rizonte que leva, além do mais, a discernir a profundidade da miséria que ele mes­mo produz.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais pro­blemas?

V ejo exatamente com o uma série de conseqüências indesejáveis desse processo de rou­bo do sentido das ações humanas, e com o algo que nos coloca a questão do senti­do de nosso futuro. Agora, o fato de nós sermos hoje capazes de pensar isso de uma maneira global, que inclui a humanidade com o um todo, me parece um ganho ex­traordinário. Pela primeira vez se tem uma idéia prática, e não utópica, da huma­nidade — o que é muito estim ulante. H oje, quando com eça o declínio efetivo de minha vida, vocês, novos filósofos, se defrontam com o desafio de conviver com a humanidade com o um todo, o desafio de construí-la por meio de instituições globais.

Em que projetos você está trabalhando atualmente? Que idéias você tem para projetos futuros?

Um velhinho de 7 0 anos não tem projetos para o futuro... Pensando bem, estou mentindo para vocês! Se estou trabalhando em três livros ao mesmo tem po, não cabe lam entar pela falta de pro jetos. Uma amiga m inha, Dulce Aquino, professora de dança — por isso respeito seu diagnóstico — , uma vez me disse que tenho um esquema corporal e tem poral de um m enino de 8 anos. N o ginásio, quando preci­sava fazer “ordem unida” , devia apertar um dedo da mão para estar pronto para distinguir esquerda e direita. Ou seja, viver no tem po e no espaço não foi propria­mente a minha especialidade. A relação privilegiada que m antenho com o espaço é com a minha casa. Sempre sonhei possuir um ninho de que me apropriasse inteira­mente, um lugar no qual me reconhecesse em cada canto . A data de minha m orte, portanto, não me preocupa, em bora conviva cotidianam ente com a idéia e a sensa­ção de finitude, de eu mesmo constituir uma ruga passageira no universo. M as não vivo em função disso.

C ontinuo, pois, a trabalhar em meus projetos. Recentem ente, entreguei para a publicação os dois livros sobre M arx , e agora só me falta concluir o livro sobre a

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moral e, mais tarde, voltar a Hegel, mas então pensado em sua relação com Schelling. Estou sempre vivendo um projeto. Depois de um texto pronto eu o largo, tenho dificuldade até mesmo de corrigir uma prova tipográfica. Por isso, a homenagem em vista das coisas feitas me constrange. É com o se me dissessem: “Agora, com 70 anos, elevado a Professor Em érito da Faculdade de Filosofia, você está pronto” . Isso não me faz sentido. Estou dando aula no primeiro ano com a mesma disposição e com o mesmo prazer com que dei minhas primeiras aulas na Universidade de São Paulo. A única diferença é que, se correr um pouco, me vem angina.

Como você imagina que Jo sé Arthur Giannotti será visto, digamos, em2040?

Em primeiro lugar, não sei se serei “visto” em 2 0 4 0 . Vou ser franco: reconheço que o trabalho que fiz tem certo peso. M as tam bém constato que a especificidade de meu trabalho é diluída pela antropofagia da cultura que predomina no Brasil. T o ­dos ficam iguais para que todos sejam medianos. Provavelmente a sensação de minha diferença é apenas subjetiva. Nessas condições, com a diluição de um parâm etro que tentam os dem arcar mas não conseguimos m anter, é provável que, em 2 0 4 0 , meu nome não seja nem lem brado.

Além do mais, estou carregando o peso da tradição, da boa tradição, creio eu. Sempre me identifiquei e fui identificado com o homem da esquerda, mas que não pode acom panhá-la quando continua a negar a política, quando a pratica com o um mal necessário para preparar o advento de uma era em que fosse substituída pela adm inistração racional das coisas. M as, enfim , vamos ver o que vai acontecer quando saírem esses meus dois pró.ximos livros sobre M arx. Para mim não seria surpreendente se boa parte da esquerda simplesmente recorresse ao velho esquema de ignorar o que a im portuna. Em bora alguns de meus amigos prezem meu traba­lho, não é raro ouvir que sou um charlatão que ocupa um espaço público porque sabe se virar na imprensa, porque tem am igo presidente, porque sabe manipular instituições de apoio à pesquisa, porque enfim tem poder; em suma, uma espécie de O restes Q uércia da cultura brasileira [risos].

O problem a todo está cm que nós, intelectuais brasileiros, ou m antem os com a mídia uma relação am bígua, ou nos encastelam os em trabalhos técnicos. O desa­fio reside, creio eu, na necessidade de inventar um novo modo de produção das idéias. M as passar pela mídia implica correr um grande perigo: substituir o conceito pelo deslize, nos últimos tem pos, pelo gracejo. Os jornais foram invadidos pela graça sem graça, pela exibição da finura do articulista, mais interessado em escrever um belo texto do que expor as ambigüidades de uma situação. Isso som ado à identifi­cação da ética com a política, o que ninguém pratica mas os outros devem prati­car, leva a uma situação com o se estivéssemos voltando aos tempos da Inquisição. O bviam ente com o farsa. Farsa, porém , que possui um conteúdo antidem ocrático, pois tende a negar precisam ente aquela zona cinzenta das ações humanas onde a política se faz necessária.

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Principais publicações:

1966 Origens da dialética do trabalho (Porto Alegre: L & P M , 198 5 );1 9 7 5 Exercícios de Filosofia (Petrópolis/São Paulo: Vozes/CEBRAP);1983 Trabalho e reflexão: ensaios para uma dialética da sociabilidade (São Pau­

lo: Brasiliense);1985 Filosofia miúda e demais aventuras (São Paulo: Brasiliense);1986 Universidade em ritmo de barbárie (São Paulo: Brasiliense)1 9 9 5 Apresentação do mundo: considerações sobre o pensamento de Ludwig

Wittgenstein (São Paulo: Com panhia das Letras);2 0 0 0 Marx: vida e obra (Porto Alegre: LScPM );2 0 0 0 Certa herança marxista (São Paulo: Com panhia das Letras).

Bibliografia de referência da entrevista:

Althusser, L. A favor de Marx, Jorge Z ahar Editores.Aristóteles. Metafísica, M adri: Editorial Credos.____________. Ètica a Nicômaco, coleção O s Pensadores, Abril Cultural.____________. Organon, Lisboa: Guimarães.Granger, G. G. Por um conhecimento filosófico, Papirus.H aberm as, J . Direito e democracia. Tem po Brasileiro.Hegel, G. W . F. Ciência de la Lógica, Buenos Aires: Solar.Husserl, E. Investigações lógicas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Jaeger, W . Paidéia, M artins Fontes.Kant, I. Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores, Abril Cultural.____________. Crítica da razão prática, L isboa: Edições 70.____________. Crítica da faculdade do juízo, Forense Universitária.M arx, K. O capital, coleção Os Econom istas, Abril Cultural.____________. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política: bor­

rador 18S7/1858, M éxico: Sigio Veintiuno.W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp.____________. Investigações filosóficas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.

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O SW A LD O P O R C H A T (1 9 3 3 )

O sw aldo Porchat Pereira nasceu em 1 9 3 3 , em Santos (SP). Graduou-se am Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo e em Filosofia pela Universidade de Renncs (França), tendo obtido o título de doutor em Filosofia pela USP. Criou o Centro de Lógica, Epistemologia e H istória da Ciência (C LE) da Universidade E s­tadual de Cam pinas e as revistas Manuscrito, Cadernos de Filosofia e História da Ciência e Journal o f Nori-Classical Logic. É professor aposentado da USP. Esta entrevista foi realizada em dezembro de 1999.

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri­meiro, o foco está posto na form ação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua form ação intelectual?

Q uando eu estava no fim da minha adolescência, no fim do colegial, minha am bi­ção era ser professor secundário de latim. Eu adorava a língua latina, tinha tido bons professores, e queria fazer isso para o resto da vida. Então entrei na Faculdade de Letras e fiz o curso de Letras Clássicas, onde aprendi também o grego. Estudei lite­ratura grega e latina, filologia grega e latina, e assim por diante. A paixão pelas lín­guas clássicas era muito forte, mas aconteceu que no último ano do curso de Le­tras, com o eu podia fazer m atérias optativas fora do curso, fiz um curso que o pro­fessor Lívio Teixeira, do D epartam ento de Filosofia, ofereceu sobre Platão. N o mes­mo ano, por coincidência, no curso de literatura grega eu tinha aula sobre Platão, e no curso de didática geral tinha um curso sobre a educação em Platão. Portanto, foi um ano platônico: fiz o quarto ano de Letras estudando três disciplinas que versavam sobre Platão.

Eu já gostava de filosofia desde há m uito, mas os meus conhecim entos eram mais de filosofia tom ista e neotom ista: São Tom ás de Aquino e M aritain. O p ro­fessor Lívio Teixeira me incentivou para que eu me dedicasse à filosofia grega, e fiquei então realm ente desejoso de trabalhar em filosofia, mas eu já tinha ganhado uma bolsa de pós-graduação para a França, onde ia estudar filologia grega. E com isso eu tinha resolvido dei.xar a filosofia para mais tarde. Acontece que o G iannotti, que era meu am igo desde o colegial, estava em Paris, e em nossas correspondências eu o informei que ia para Paris estudar filologia grega. Ele me respondeu sugerin­do que eu não fosse para Paris, mas sim para Rennes, onde ele tinha estado um ano, porque em Rennes havia um curso de filosofia grega dado por V ictor Goldschm idt, e G illes-G aston Granger estava lá também.

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Q uando cheguei a Paris, o Goldschm idt, que era amigo do G iannotti, nos convidou imediatamente para jan tar em sua casa. Eu disse então ao Goldschm idt que ia fazer o m estrado em filologia grega, mas que pretendia fazer um curso de filosofia quando voltasse ao Brasil. E ele me propôs a alteração de minha bolsa, de bolsa de mestrado em filologia grega para bolsa de graduação em filosofia. Acei­tei, e em quinze dias ele conseguiu a mudança. Eu tive então uma bolsa para fazer filosofia cm Rennes. Fiz o curso inteiro com o G ranger e o Goldschm idt e, depois de term inar o curso, recebi uma carta do Jean Hyppolite — a qual me surpreendeu bastante, já que ele era o diretor da École N orm ale — , dizendo que eu havia sido aceito com o aluno estrangeiro da École N orm ale, com direito a m orar na escola e utilizar os recursos da escola. É claro que aceitei, e descobri em seguida que tinha sido uma travessura do Granger e do Goldschm idt. Eiquei então dois anos em Pa­ris, segui cursos de G oldschm idt e G ranger, que estavam dando aulas na École N orm ale nessa época, segui os cursos de H yppolite, conheci Althusser — todos os meus colegas de filosofia estavam no grupo do Pour Marx — , e no refeitório com ía­mos na mesma mesa. Ao mesmo tem po, nesses dois anos em Paris com ecei a mi­nha tese de doutoram ento, cu jo título inicial, A dialética em Artistóteles, era su­gestão do Goldschm idt. M as foi só no Brasil, anos mais tarde, que vim a terminá- la, sendo que a dialética cm Aristóteles cedeu lugar à ciência em Aristóteles. Em bo­ra o meu intuito inicial tivesse sido escrever um primeiro capítulo sobre a ciência e o resto da tese sobre a dialética, esse capítulo cresceu demais, ficou com mais de 2 0 0 páginas, o que me levou a mudar de idéia e fazer uma tese sobre a ciência com um último capítulo sobre a dialética.

Como foi 0 seu contato com Jean Hyppolite?O contato com Hyppolite foi um contato formal. Ele era o diretor da escola, extre­mamente amável e sim pático, e estava dando um curso sobre a interpretação heideg­geriana de Hegel. Em bora nem Heidegger nem Hegel fossem ob jeto do meu inte­resse m aior, eu segui esse curso e acho que aprendi bastante coisa. Lem bro-m e do Hyppolite dizendo em aula que os textos heideggerianos sobre Hegel eram bastan­te difíceis, sobretudo porque era muito difícil saber quem estava falando: se Hegel, se Heidegger, ou se Hegel na interpretação de Heidegger. N ós, alunos, costum áva­mos brincar dizendo que as aulas de Hyppolite eram muito difíceis porque nunca sabíam os se era Hegel quem estava falando, se era Heidegger quem estava falan­do, se era Hyppolite quem estava falando, e, assim por diante, todas as com bina­ções que se pode fazer! [risos] De qualquer m aneira, foi um curso extrem am ente proveitoso.

Você poderia periodizar um pouco melhor essa fase de sua formação?Eu com ecei a graduação em filosofia em 1957. Fui dispensado das matérias não filosóficas do curso, porque era form ado em letras no Brasil, e isso me permitiu term inar o curso rapidam ente: em 1 9 6 0 já o tinha term inado e com ecei, ainda na França, a trabalhar na minha tese de doutoram ento. Voltei para o Brasil em 1961 e nesse mesmo ano com ecei a dar aulas no D epartam ento de Filosofia da USP.

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Oswaldo Porchat: “Essa perspectiva de adesão ao coridiano, de valorização do huitiano em contraposição ao filosófico, foi talvez o mote central de todas as minhas incursões no domínio filosófico. O ceticismo é para mim a valorização, contra os dogmas, do saber dos atos comuns” .

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No ano seguinte à defesa do doutoramento, em março de 1968, você profere a aula inaugural do Departamento de Filosofia da USP, em que se afasta das posições estruturalistas de Guéroult e Goldschmidt, que são facilmente reconhecíveis na redação de seu doutoramento, então recém-defendido. Essa virada foi vivamente descrita em seu texto “Pre­fácio a uma Filosofia”, de 1975, nos seguintes termos: “Desesperando da filosofia e de seus problemas, renunciei a buscar-lhes soluções. Aba­tido por um profundo desencanto, o temor me possuiu de que os dis­cursos da filosofia não mais fossem que prodigiosos e sublimes jogos de palavras. Um brinquedo dos filósofos com as palavras, do Logos com os filósofos. O feitiço que me prendera se quebrava, desfazia-se uma antiga servidão. E tomei, então, o partido do silêncio”. A impressão que se tem é a de que essa guinada existencial e teórica ocorreu num perío­do muito curto. Foi mesmo assim?

N ão creio que tenha sido tão curto. Q uando com ecei a lecionar na Filosofia, em 1 961 , eu era um estruturalista de carteirinha, e assim fiquei até 1 9 6 7 ,1 9 6 8 . Eu nunca quis ser historiador da filosofia, mas, porque pesava sobre mim a herança estrutu­ralista, eu entendia que a única m aneira de fazer filosofia corretam ente era fazer história da filosofia. Portanto, eu pretendia estar fazendo filosofia, e não história da filosofia. Na perspectiva estruturalista de Guéroult e Goldschmidt, não cabia mais o enveredar por um cam inho filosófico original; o im portante era conhecer as es­truturas do pensamento filosófico, e o conhecim ento das estruturas não pode ser conseguido senão pelo estudo das obras dos filósofos e pela descoberta das lógicas internas que as estruturam . É fácil ver que essa visão da filosofia pode conduzir a um ceticism o. Porque você deixa de acreditar na possibilidade de construir uma filosofia original e fica preocupado unicam ente com o conhecim ento das estrutu­ras do pensamento filosófico, isto é, com fazer história da filosofia — com o se não houvesse mais condição de pensar filosoficam ente. N ão sei se Goldschm idt tirava essas conseqüências da sua postura h istórico-filosófica, mas foram as que eu tirei.

Num sentido m uito particular, sou estruturalista até hoje: penso que o m éto­do estruturalista é o melhor m étodo para uma primeira leitura de um pensador, para se descobrir a lógica interna das razões, a estrutura da obra. Trata-se tão somente de um instrum ento de trabalho, um instrum ento para pensar. Enquanto naquela época isso para mim era tudo, hoje é apenas uma etapa, porque depois disso vem o diálogo pessoal com o filósofo : tendo-se aprendido (supostamente) a sua filosofia, interage-se com ela, tom a-se posição em relação a ela, endossando-a — total ou parcialm ente — ou não a endossando. Enfim , não se está obrigado a ser um histo­riador. Pode-se ser um filósofo por conta própria, ainda que, é claro , buscando na história da filosofia um alim ento precioso, com o parte do desenvolvimento e da exposição de seu próprio pensamento.

Com relação à idéia de que não valia a pena tentar uma solução pessoal para os problem as filosóficos, de que essa solução, além de não ser desejável do ponto de vista de uma sólida posição estruturalista, seria apenas uma solução a mais sem qualquer im portância m aior, eu com ecei a tirar essas primeiras conclusões céticas quando travei conhecim ento com os textos dos céticos gregos, sobre os quais dei

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um curso na USP em 1968, no qual por sinal o Paulo Arantes foi meu aluno. A partir das minhas posições anteriores e do meu con ta to com o ceticismo grego — de uma in te rp re tação do ceticismo grego que mais ta rde eu reconheceria com o incorreta — , eu não via mais com o filosofar, com o poder filosofar. Julguei que o partido do silêncio filosófico era a única solução que me era permitida, deixei de acreditar na validade de qualquer projeto filosófico e passei a es tudar lógica desesperadamente. Fui fazer curso de lógica nos Estados Unidos, onde passei dois anos, 1969 e 1970, e estudei lógica, fundam entos da matem ática, álgebra, teoria dos conjuntos etc. Eu julgava ter descoberto então que a lógica nos brindava com todas as qualidades que eu esperava, e que muitos esperam, do discurso filosófico: a lógica é r igorosa, jus­tifica plenamente cada proposição que avança, nos dá verdades. Em bora, é claro, essas verdades não sejam verdades sobre o m undo , mas sim verdades puram ente formais, o fato é que a lógica me dava o que eu queria da filosofia — ainda que me fazendo pagar o preço altíssimo de me alienar do m undo , pelo fato justamente de não ter nada a ver com ele.

Foi a partir daí que um estudo mais ap ro fundado do ceticismo grego me le­vou a descobrir que a minha primeira visão sobre ele era historicamente errônea, que na verdade o ceticismo abria perspectivas filosóficas, ao mesmo tem po m a n ­tendo aquela minha renúncia a todo pensam ento especulativo. C om o passar dos anos, eu fui então , progressivamente, descobrindo melhor o ceticismo, descobrin­do melhor um a in terpretação que não é a com um ente vigente nos meios acadêm i­cos, e me tornei um cético. M as isso só veio a acontecer uns quinze anos atrás.

.Mas antes disso há o “Prefácio a uma filosofia”, em que você defendeuma promoção filosófica da visão comum do mundo...

É verdade, eu estava me esquecendo disso. Depois dessa minha passagem pela ló­gica e desse meu primeiro ceticismo, fui levado a refletir sobre a vida com um , o senso com um , o discurso com um , e julguei que aquela alienação em relação ao m undo , a que eu parecia condenado , não cabia. Julguei que era preciso viver plenamente a vida, e a filosofia não podia ser uma rejeição da vida; o divórcio esquizofrênico entre o filósofo e o homem não tinha cabimento. Rejeitar o m u n d o com um , rejeitar as vicissitudes e as contingências do m undo com um , rejeitar as paixões hum anas em nom e do pensam ento , era uma postura inaceitável, e eu, algo qu ixotescam ente, julguei que era preciso defender a vida con tra a filosofia, entendida esta com o uma gigantesca empresa de alienação do hom em em relação à vida com um . Eu queria recuperar a vida com um , e achei en tão que uma prom oção , não cética, mas filosó­fica, até mesmo metafísica, dessa vida com um , era a maneira de enfren tar os p ro ­blemas filosóficos.

O que vim a descobrir mais tarde é que o ceticismo fazia essa mesma defesa da vida com um , essa mesma defesa do hom em cotidiano, dessa perspectiva da vida e do m u ndo que os filósofos disseram ingênua. P o rtan to , não era preciso fazer metafísica, não era preciso en trar em conflito com o ceticismo. Ao contrário: des­cobri no ceticismo a defesa da vida com um contra o pensam ento especulativo. Fi­quei m uito impressionado com uma passagem de Sexto Empírico em que ele diz que, se nós condenam os os dogmas, em nenhum m om ento en tre tan to en tram os em

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conflito com a vida com um . Ao contrário: nós somos os seus defensores; nós esta­mos ao lado dela con tra o pensamento dogmático.

Por que você decidiu se transferir da USP para a Unicamp em 1975? Naquele m om ento eu n ão tinha ainda ado tado um a posição cética. Eu tinha sem­pre gostado muito de filosofia da ciência, de epistemologia, de lógica, com o já dis­se, e na USP eu formei um projeto de criar um centro dedicado aos estudos de teo­ria do conhecimento, epistemologia, lógica e filosofia da ciência. A burocracia da USP, no en tan to , fez com que esse projeto ficasse ex trem am ente atrasado: ele foi ap rovado no D epartam ento , mas depois se passaram anos de trâmites burocráti­cos até ele chegar ao Conselho Universitário. O correu , nesse meio tem po, que um amigo meu, o Rogério Cerqueira Leite, que era algo com o pró-reitor da Unicamp, e que várias vezes me tinha convidado para ir trabalhar lá, disse que havia boas chan­ces de o projeto ser ap rovado pela Unicamp, onde não havia um Conselho Univer­sitário totalmente estruturado, onde quem m andava realmente era o reitor, Zeferino Vaz. Então ele marcou uma entrevista p ara mim com o Zeferino, pedindo que eu levasse um pequeno tex to sobre o meu projeto.

Bem, a entrevista ocorreu, se não me engano, no dia 9 ou 10 de setembro de 197.5, e nesse projeto eu me propunha a criar um Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência na Unicamp, criar cursos de pós-graduação nessa área, fazer seminários interdisciplinares, fazer colóquios e congressos, nacionais e internacio­nais, e criar três revistas — uma de filosofia p ropriam ente dita, uma de filosofia e história da ciência e uma de lógica. Para minha surpresa, o Zeferino Vaz se entusias­m ou pelo projeto e me perguntou, nessa primeira entrevista, quantos professores eu pretendia levar para a Unicamp, para que a gente começasse no mês seguinte — o que obviamente eu não esperava. Eu citei en tão alguns nomes de professores da USP— Luiz Henrique Lopes dos Santos, Carlos Alberto Ribeiro de M oura, Andrea Loparic, todos jovens dou to randos — , e citei o nom e de alguns professores argentinos, cujos currículos estavam comigo porque eu tinha sido chefe de departam ento na USP e eles almejavam ter um a vaga na universidade brasileira. Depois que eu dei os nomes, o Zeferino disse: “Então, vamos nom eá-los” . Ao que respondi: “ M as os argentinos nem sabem que a Unicamp existe!” . E ele disse: “ Então você vai à Argentina e fala com eles, porque nós temos pressa” . Acontece que eu não podia ir à Argentina ime­diatamente, e ocorreu uma coisa interessante de que pouca gente sabe: como o Zeferino t inha problemas dc datas com relação ao o rçam ento e precisava nom ear os profes­sores até o fim de setembro, ele me disse o seguinte: “ O lha, é muito mais fácil para mim demitir do que nomear. Para demitir, basta a minha vontade. Para nomear, preciso ter verbas, ter orçam ento , respeitar datas. Então vou nom ear todo m undo e, se eles não puderem vir, dem ito” [risos]. Assim ele fez, e quinze dias depois eu estava na .Argentina convidando os professores, que eram Carlos Alberto Lungarzo e o Ezequiel de Olaso. Eles pediram três dias para pensar, ao final dos três dias disseram que aceitavam, e eu disse que eles já estavam nomeados.

O fato é que dias depois nós desembarcávamos com o pára-quedistas na Uni­camp. Fomos nom eados para o Instituto de Filosofia e Ciências H um anas , para o D epartam ento de Ciências Sociais, pois não havia ainda um departam ento de filoso­

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fia — eu é que viria a criá-lo alguns anos mais tarde. E o pessoal das ciências sociais, que não estava in form ado a respeito, assistiu es tupefato ao desem barque de vários filósofos brasileiros e dois argentinos no D epartam ento! Isso era o Zeferino! M as eu consegui fazer o que tinha p rom etido a ele, meu projeto se realizou plenamente: nós fizemos trinta e cinco colóquios e congressos em sete anos, criamos as três re­vistas — das quais duas, a Manuscrito e os Cadernos, continuam a existir — , e cria­mos o curso de pós-graduação. Fiquei na Unicamp duran te dez anos, e ao final d e ­les voltei para a USP.

,Vo final de “Prefácio a uma Filosofia”, há uma caracterização do que deveria ser o filósofo para você então: “Buscando o diálogo, o filóso­fo construirá seu discurso com simplicidade. Não recorrerá a termos esdrúxulos nem a um jargão complicado. Ele tem uma enorme descon­fiança dos que falam difícil em filosofia”. Chama a atenção, no en­tanto, o fato de que, no mesmo ano da publicação desse texto (1975), você se transfere para a Unicamp e funda o Centro de Lógica e Epis- temologia (CLE), que tinha um ambicioso programa nessas áreas, do qual você acaba de nos falar. O espírito de “Prefácio a uma Filoso­fia ” é plenamente compatível com a aridez própria das questões ló­gicas e epistemológicas?

É claro que as questões lógicas envolvem um vocabulário técnico. Nesse texto eu estava pensando não em lógica, propriam ente, mas em filosofia. N o que se refere à lógica, seria en tão o caso de falar em filosofia da lógica. Acho que na filosofia da ciência, na filosofia da lógica, na teoria do conhecimento em geral, em todo e q ua l­quer ram o da filosofia — filosofia moral, estética, metafísica — , é realmente ne­cessário não escrever em “ filosofês” , mas conseguir ser claro u sando os meios da língua vernácula e escrever de tal m odo que um hom em de relativa inform ação e, é claro, com uma certa base cultural possa com preender. C ontinuo desconfiado até hoje dos que falam difícil em filosofia. Exprimir-se de m odo difícil é na verda­de deixar transparecer uma certa falta de rigor intelectual. Conforme a frase de Witt- genstein, o que não se pode dizer, não deve ser dito. Eu acho que o que não se pode dizer com clareza não deve ser dito.

Como você avalia hoje a experiência do CLE?Eu tenho impressão que o CLE teve um papel bastante im portante, graças aos co ­lóquios e congressos que organizou. Várias vezes eu tenho sido gratificado, ao p a r ­ticipar de reuniões de filosofia em diversos pontos do Brasil, pela lembrança, que publicam ente colegas de ou tras universidades trazem à tona , do significado que o CLE teve no congraçam ento entre os profissionais de filosofia das diferentes uni­versidades brasileiras. Antes dele não havia colóquios de filosofia. Os professores do Rio não conheciam os de São Paulo; os de São Paulo não conheciam os do Rio G rande do Sul; os do Rio G rande do Sul não conheciam os de M inas Gerais; e as­sim por diante. C om o o CLE organizou, em alguns anos, tr inta e cinco colóquios e congressos, nós tivemos a possibilidade de convidar professores do país inteiro, fora uns setenta do exterior. Com isso, ele tornou-se um lugar de reunião, de encontro.

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Por ou tro lado, as revistas do CLE, que estão vivas até hoje, tam bém m arcaram pontos importantes no cenário brasileiro. Eu fiz questão, depois de ab a n d o n a r a direção do CLE, de não me imiscuir de m odo algum na sua vida. Eu aceitei, e acei­tarei sempre convites para participar deste ou daquele evento, mas achei que não cabia meter-me na vida interna do Centro. A com panho de longe, com atenção, as suas atividades, e espero que ele prossiga por m uito tem po e continue realizando o nosso projeto, mas de fato estou d istanciado dele atualmente.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­lações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Eu discordo do Paulo Arantes. Acho que ele é dem asiadam ente generoso para com os filósofos brasileiros. A mim me parece que, apesar de certamente haver muitos filósofos de excelente qualidade no Brasil, eles não tiveram ainda condições pessoais e culturais para e laborar uma filosofia própria . H á alguns nomes, aqui e ali, dos quais se pode dizer que têm uma contribuição filosófica própria , pessoal, e que p ro ­duziram alguma coisa que é um a filosofia brasileira em gestação. E eu acredito no porvir da filosofia brasileira. T enho a impressão de que os estudos filosóficos no Brasil neste m om ento são surpreendentem ente promissores, as gerações novas, que estão aparecendo cada vez mais, em diferentes lugares do país, estão p roduzindo traba lhos filosóficos sérios. Agora, o que é preciso, e essa é uma tecla em que te­nho batido ultimamente, é libertar o ensino brasileiro de certa ênfase exagerada na história da filosofia, de certa orientação estruturalista radical. É irônico que eu diga isso, porque fui certamente um dos maiores defensores dessa postura, mas há um m om ento em que a gente envelhece, passa a ter mais juízo, e adquire um a perspec­tiva mais lúcida sobre os erros da juventude, sobre os próprios erros e pecados.

Q u an to à segunda parte da pergunta, os filósofos — vam os usar esse term o para designar todas as pessoas que am am a filosofia, que se dedicam a ela, que t r a ­balham sobre assuntos filosóficos, e que, eventualmente, p ropõem idéias filosófi­cas originais — , os filósofos brasileiros têm desem penhado certamente um papel im portante. É claro que não precisamos exagerar, mas eles têm tido algum papel im portante, aqui e ali, na vida cultural do país.

Como você avalia as críticas que Paulo Arantes dirigiu a você no livroUm departamento francês de Ultramar?

O Paulo Arantes se dedica a uma es tranha tarefa. Ele foi um dos melhores alunos que tivemos no D epartam ento , é um sujeito brilhante, tem conhecimentos filosófi­cos enormes, é de uma inteligência profunda . Enfim, ele tem tudo que se pode elo­giar num intelectual. M as tem um a relação m uito es tranha com a filosofia, porque pretende, insistente e sinceramente, não estar fazendo filosofia nos seus trabalhos. Eu concordo com ele, acredito tam bém que ele não está fazendo filosofia. O que ele faz é um a ex trem am ente inteligente interpretação não-filosófica das filosofias. M as é difícil situar essa interpretação. Afinal, que tipo de interpretação é ela? N ão é uma interpretação sociológica; não é um a interpretação antropológica. Talvez se pudesse dizer que e um a forma muito particular de sociologia do conhecimento, mas não creio que essa descrição caiba ao Paulo. O que ele procura é explicar cada

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manifestação do pensam ento filosófico den tro do universo cultural, dentro da si­tuação histórica e econômica de cada época. Eu não tenho nada contra essas ten ta ­tivas de se explicar a obra filosófica a partir de um ponto de vista não-filosófico, de um p on to de vista científico. N ã o tenho realmente nada contra : é um a coisa que se pode fazer, e se for bem-feita é algo valioso. Em bora eu nunca tenha conversado com o Paulo sobre essa questão, o problem a é que isso parece substituir a filosofia, que passa a ser apenas um objeto, e jamais o pon to central, jamais o m oto r da ela­boração de seu pensamento. Neste sentido, o Paulo Arantes não avança um pensa­mento filosófico original, apesar de ter tudo para fazê-lo, e fazê-lo bem.

N o caso particular do capítulo que ele me dedica em seu livro, que eu aliás tive opor tun idade de com entar no MASP, tenho a impressão — e eu diria isso, é claro, com alguma m aldade — de que o Paulo não sabe m uito bem com o explicar por que eu digo o que estou dizendo. Ele acha que minhas idéias estão fora do lu­gar. Justam ente porque não vê, naquilo que digo, uma resposta a alguma necessi­dade ditada pelo en to rno cultural a partir do qual ele quer explicar as filosofias, isso o obriga a ver em tudo o que digo algo estranho , que surge onde não tinha que ter surgido. O Paulo não acredita na filosofia com o uma proposta que um pensa­dor, crítico e culto, possa ainda alimentar, ten tando resolver problemas. Ele vê na filosofia uma manifestação, uma manifestação que ele procura estudar, com preen­der, conhecer e explicar. Posso estar muito enganado , mas não creio que o Paulo .Arantes esteja disposto a se engajar num diálogo filosófico com alguém, isto é, a tom ar uma posição diante de alguém que tom e uma posição contrária , discutir etc. Ele não tom a posições em filosofia; ele é o crítico, o intérprete, o conhecedor, mas não o praticante da filosofia. Enfim, não creio que Paulo queira comprometer-se com um diálogo filosófico. Ele quer explicar o que você diz.

As propostas que você apresentou nos últimos anos no sentido de uma reformulação do padrão pedagógico do Departamento de Filosofia da USP tiveram grande repercussão e provocaram ásperas polêmicas na imprensa. Qual foi o saldo, a seu ver, dessa discussão?

Eu não sei se podem os dizer que já haja um saldo a ser avaliado. Vários estudantes que encontrei recentemente, aqui e ali, falaram-me do seu interesse pelas coisas que eu disse, e me disseram tam bém que é uma preocupação de muitos deles o querer encontrar um lugar para ter opiniões pessoais, para com eçar a exprimir-se filosofi­camente desde os anos escolares. Agora, a minha posição não deve ser mal inter­pretada. Eu sei perfeitamente que, qu an d o os estudantes com eçarem a expor suas idéias, eles vão ser ingênuos, vão ser às vezes inadequados, vão às vezes dizer toli­ces, vão exibir ignorância da problemática filosófica, e assim por diante. M as aí me parece que, quando eles entregarem seus textos e form ularem suas posições, cabe ao professor responder-lhes dizendo, por e.xemplo: “ O lha, esta objeção que você está fazendo ao filósofo já foi feita, foi feita ainda em vida dele. Fulano de Tal fez essa objeção, que é a mesma que você fez, porém melhor form ulada e bem mais desenvolvida. Portanto , você deve ler esse autor, e ler também a resposta que aquele filósofo fo rm u lo u ” . C om isto, o a luno adqu ir i rá mais elementos pa ra pensar o mesmo assunto e, independentem ente de em seguida a b a n d o n a r ou reform ular a

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objeção que havia feito, estará aprendendo a pensar. N ão vejo mal nenhum no fato de o a luno expressar suas próprias opiniões em sala de aula. N ós devemos permi- tir-lhe que o faça, e que faça um traba lho em que afirme, por exemplo, “Platão disse uma bobagem qu an d o disse que as formas ex is tem ” . Neste caso, caberia dizer-lhe que muita gente já disse a mesma coisa, e recomendar-lhe que leia tal texto, bem com o a resposta dada por um filósofo p latônico posterior. C om isto o a luno tom a consciência de que pode com eçar a participar de um debate milenar e se sente in­centivado a pensar. Do contrário , acontece o que tem acontecido: um d epa r tam en­to com o o de filosofia da USP, que é de altíssimo nível — faço questão de enfatizar isto, porque houve quem achasse o contrário — , produz excelentes historiadores da filosofia, mas não estimula a p rodução de um pensamento original. Produzir um pensam ento original significa estimular os alunos a ter coragem de assumir posi­ções, ao mesmo tem po m ostrando-lhes o q uan to essas posições teriam que ser m e­lhoradas para adquirir o status de opiniões filosóficas sérias.

Em 1991, você publicou um artigo, “Sobre o que aparece”, em que se afastava da posição de uma “promoção filosófica da visão comum do m undo” que tinha caracterizado sua produção de 1975 até então, e passava a uma posição cética que você definiu como “neopirrônica”.Em “Sobre o que aparece”, você descreve esta nova guinada teórica nos seguintes temtos: “É como se, na vã tentativa de opor um dique ao perigo cético, que vai levando de roldão todos os dogmatismos, se recorresse a uma forma extremada e confessadamente injustificável de dogma­tismo, na pia esperança de brandir contra o ceticismo uma artna su­prema e derradeira”. Seria esta nova guinada uma confirmação da previsão de Bento Prado Jr., feita em 1978 no artigo “Por que rir da filosofia?", de que você acabaria voltando necessariamente a uma po­sição cética?

O Bento foi realmente um bom profeta naquele m om ento! Talvez ele me tenha com preendido melhor do que eu a mim mesmo! [risos] Nessa mesma passagem, porém, ele dizia que esse movim ento pendular do meu pensam ento me faria voltar a uma posição especulativa. E isso não aconteceu, nem creio que vá acontecer.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como mais represen- tativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s} surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

C om o eu disse no prefácio a Vida comum e ceticismo, o meu problem a sempre foi o do reconhecimento da vida cotidiana, quer dizer, o estar junto à vida cotidiana, valorizar essa vida cotidiana, valorizar as questões mais banais e triviais. Q u an d o eu “desisti” da filosofia, foi por achar, pr imeiramente, que não conseguia resolver den tro dela os problem as que ela se p ropunha , e, po r ou tro lado, tam bém por ver nela um em preendim ento de alienação. Q u an d o fiz o que chamei de “ prom oção filosófica da vida c o m u m ” , era um a tentativa de salvar a vida com um dentro a in­da de certos parâm etros definidos pela filosofia tradicional. Eu ia contra a filosofia tradicional, mas julgava que podia m an ter um certo q u ad ro conceituai dessa mes­

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ma filosofia para fazer con tra ela um a p rom oção filosófica da vida com um . Já quando fui para o ceticismo, descobri que não era preciso manter quadros conceituais próprios à filosofia tradicional. Era possível rom per de um a vez com todos eles e ficar ao lado da vida com um. Portan to essa perspectiva de adesão ao cotidiano, de valorização do hu m an o em contraposição ao filosófico, foi talvez o mote central de todas as minhas incursões no domínio filosófico. O ceticismo é para mim a va­lorização, contra os dogmas, do saber dos atos comuns.

O que é o neopirronismo?O neopirronism o é uma expressão, talvez pedante, que inventei para designar m i­nha posição. É claro que o ceticismo grego pirrônico e uma postura filosófica d a ­tada, situada num certo con tex to — o helenístico — , tendo inclusive m uito em com um com o estoicismo, o epicurismo e as demais expressões do pensam ento de então. C om o toda filosofia, o ceticismo surge num a certa época, respondendo a problemas culturais dessa época, os quais podem ser estudados e explicados — como eu disse há pouco, não tenho nenhum a objeção a esse tipo de estudo. M as é verda­de, tam bém , que certas tram as fundamentais do pensamento, das várias filosofias, podem ser preservadas ou reatualizadas. N ós temos hoje um neo-aristotelismo, um neop la ton ism o, um neo-estoic imo, um neo-hegelianism o, um neokan tism o etc. Em bora muito do que Kant, Hegel, Platão e Aristóteles disseram esteja da tado , corresponda às perspectivas da época, muito tam bém pode ser utilizado a tua lm en­te, e utilizado de m aneira bastante profícua. O ra , o mesmo se pode dizer do ceti­cismo: muito do p irronismo recende a helenismo, mas muito pode, mantendo-se uma certa coerência e mantendo-se uma certa fidelidade, ser repensado, rearticulado e reutilizado. O que me tenho p roposto a fazer com o pirronismo é o que, mutatis iniitaiidis, os pensadores neo-hegelianos, neom arxistas ou neokantianos fizeram: trata-se de aggiornare um a filosofia no m undo m oderno , uma vez que todas as grandes filosofias do passado têm ainda m uito a nos dizer. O ser capaz de extrair delas isso que elas podem nos dizer hoje é o que im porta fazer. Ao me cham ar de neopirrônico, quero simplesmente realçar o fato de que o que p roponho é m ostrar com o certos traços im portan tes do p irron ism o grego podem ser utilizados para pensar adequadam ente os problem as filosóficos do m undo contem porâneo.

Quais as diferenças e semelhanças entre o seu conceito de “o que apa­rece” e o conceito kantiano de “fenômeno”? Penso particularmente naafirmação de Kant: “Pois seria um disparate pensar em fenômeno semque algo apareça nele”.

Eu entendo que K ant deu uma contribuição ex trem am ente im portan te para uma postura cética. E claro que K ant quereria tudo, menos isso! M as de fato ele a deu, porque pôs em xeque a metafísica clássica, pôs em xeque os dogmatismos ontológicos tradicionais e a epistemologia dogmática tradicional. Kant mostrou que é possível falar em verdade correspondencial, falar em realismo, falar em coisas no espaço e no tempo, sem que se esteja pretendendo lidar com as coisas em si mesmas. A idéia kan tiana de fenômeno, que está, é claro, associada a toda uma teoria da represen­tação, permitiu-nos com preender que se pode pensar em conhecim ento científico,

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que se pode pensar em verdades empíricas, que se pode pensar em matéria , tempo, espaço, substância, sem que essas noções estejam contam inadas por um a especula­ção metafísica à maneira tradicional. É evidente que em Kant essas noções todas se associam, todos o sabem, ao idealismo tran.scendental, à perspectiva de um sujeito transcendental. E é evidente que eu, com o cético, suspendo o juízo sobre essa base transcendental. .Vias o fato é que Kant abriu um cam inho decisivo, aba lando p ro ­fundam ente os alicerces do pensam ento especulativo clássico.

N um texto que escrevi, intitulado “Verdade, ceticismo e realismo” , utilizo a noção kantiana de realismo empírico, no sentido em que Kant diz que o idealismo transcendental é um realismo empírico: é claro que as coisas, que são reais no tempo e no espaço, não são as coisas em si; é claro que lidamos com o m undo da represen­tação, mas isso não nos impede de falar da realidade das coisas, de cham ar verda­deiras às proposições que descrevem essas coisas. Segundo meu argumento nesse texto, há, de um lado, um realismo clássico, de tipo aristotélico-tomista, que fala das coisas, das verdades, da empiria, num registro realista, e há, de ou tro lado, o realismo de Kant, que fala das mesmas coisas num registro idealista transcendental. Ambas as visões descrevem o mesmo m undo , que dizem real, mas a palavra “ rea l” tem um sentido com pletamente diferente num a e noutra . O importante, a meu ver, é que o p irronismo pode en tão perguntar-se: será que nós não podemos, deixando de lado a interpretação filosófica última que Kant deu do fenômeno ou que Aristóteles deu do fenômeno, ficar apenas com o fenômeno.^ Isto é, vamos falar em realidade das coisas, vamos falar em verdade das coisas — o cético não tem razões para abandonar o vocabulário da verdade ou da realidade — , mas vamos ab andonar as interpreta­ções derradeiras que se possam oferecer desses conceitos. Neste sentido, o cético suspende o juízo sobre o idealismo transcendental, suspende o juízo sobre a metafísica clássica. Mas ele saúda Kant com o aquele que foi capaz de m ostrar que se podia falar do m undo da experiência, que se podia falar de conhecimento, que se podia falar de ciência, que se podia falar do espaço e do tem po, que se podia, enfim, salvar a lógi­ca, a ciência, a epistemologia, sem por isso ter o filósofo de comprometer-se com o pensamento metafísico tradicional. Desse ponto de vista, creio que Kant é certamente um dos filósofos que o neocético mais tem que adm irar , respeitar e reverenciar.

Da sua noção de “o que aparece” segue-se a idéia de que há “um uso descritivo, próprio ao discurso fenomênico, e um uso interpretativo, próprio ao discurso dogmático, por exemplo ao discurso dogmático dos filósofos”. Há descrição que não seja já uma interpretação?

Essa pergunta é bastante interessante. Talvez eu só possa a ela responder da seguinte maneira. O cético descreve o que lhe aparece, e não tem por que recusar que essa sua descrição, espontânea, na tu ra l , im ediata , esteja p ro fundam ente perm eada e influenciada por posturas e pon tos de vista tradicionais, que nos fazem usar aq u e­la linguagem, falar daquela maneira e ver as coisas daquela maneira. N a d a disso precisa ser recusado ou negado por ele. Eu digo o que me aparece com espontanei­dade e natura lidade: eu descrevo. M as posso perfeitam ente acrescentar que me aparece tam bém que essa m inha descrição está influenciada por características idiossincráticas da minha época, da m inha form ação, da minha cultura, da civili­

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zação a que pertenço, da língua de que me sirvo etc. O que me aparece hoje não necessariamente me aparecerá am anhã . Suponham os que eu descreva algo que me aparece hoje, e que am anhã você me apon te que essa minha descrição, que o con ­ceito de que me servia era na verdade um resquício de minha form ação filosófica, era um conceito que surgiu na história do pensam ento de tal e tal maneira , em tal e tal época, e que po r tan to , pelo simples fato de servir-me “espon taneam ente” des­se conceito, eu estava de algum m odo com prom etido com uma forma especulativa de pensam ento por mim condenada . O ra , se você me m ostrar isso de maneira ade­quada, não tenho razões para recusá-lo, e posso reconhecer que havia na minha des­crição das coisas um dogmatism o oculto que me escapava. Deverei então reformular minha descrição, de tal m odo a reconhecer que o que me aparecia daquela forma agora me aparece desta ou tra forma. A linguagem descritiva do fenômeno é uma linguagem em perm anente evolução. A autocrítica permanente é uma necessidade para o cético; ele tem a todo o tem po, com o o Bbde Rimner, que descobrir onde estão os andróides, isto é, os dogmas, e muitas vezes ele se percebe gostando de um dogm a sem se aperceber de que é um dogma. E quando ele se dá conta disso a rup ­tura se faz necessária e ele tem de reform ular o seu m odo de ver as coisas. É claro, por tan to , que toda descrição, nesse sentido, é interpretativa. N a medida, porém, em que a descrição do cético não quer ser solidária de dogm atism os, em que não quer estar com prom etida com dogm atism os, sempre que ele se perceber com pro ­metido terá de reform ular o seu discurso.

Se, porem, q u an d o você fala em interpretação, você está dizendo algo mais simples, se está apenas, com o muitos filósofos da ciência — entre os quais Popper — , dizendo que não há term os puram ente observacionais, que a teoria está sempre im pregnando a nossa linguagem, inclusive a descrição das coisas empíricas e co ti­dianas, então o cético pode concordar com isso e reconhecer que o que aparece está perm eado pelo discurso. Usando-se a palavra “ te o r ia” nesse sentido, de que o dis­curso está im pregnando tudo de teoria e não podem os despir-nos do discurso para fazer uma descrição, é evidente que não há como discordar, pois “descrição empírica sem discurso” é uma contrad ição lógica. Seria uma tarefa absolutam ente impensá­vel, na verdade absurda , separar o que é discurso do que não é discurso em nossa relação com o m undo. Portan to , desde que distinguidos os dois sentidos cm que uma descrição pode estar “com prom etida” , o cético deve reconhecer tranqüilamente o cará te r interpretativo da descrição.

Os seus trabalhos têm como interlocutores importantes, entre outros,D. Hume, R. Rorty e E. Gellner, autores nos quais você encontra afini­dades e diferenças para com a sua posição. Você diria que as intenções últimas desses filósofos seriam mais bem expressas por uma posição neopirrônica como a que você defende?

Com ecemos por H um e. H um e pretendia-se cético, se disse um cético, e defendeu uma forma de ceticismo muito particular, um ceticismo mentalista. Ele tinha certa­mente um conhecimento histórico imperfeito sobre o pirronismo, a descrição que ele faz do pirronism o é caricatural. Por ou tro lado, a posição que ele atribui, ou m u i­tas das posições que ele atribui ao ceticismo mitigado ou acadêmico são de fato po ­

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sições próxim as ao pirronismo. Diferentemente de Rorty e Gellner, ele é sem dúvi­da um filósofo cético, e é válido e im portante estudar sua relação com o pirronismo.

Q u an to a Gellner, ele certamente não era um filósofo cético, mas teve uma visão do pensam ento m oderno e con tem porâneo que em par te concorda com a minha. Devo adm itir que essa visão me influenciou, no sentido de que explorei di­reções que ele desbravou — sobretudo q uan to a enxergar uma influência difusa do ceticismo no pensam ento m oderno e contem porâneo . Desde a “ Primeira m edita­ç ã o ” de Descartes, e desde H um e, os motivos céticos se to rnaram ex trem am ente im portan tes para a filosofia contem porânea . Basta dizer que todos os primeiros filósofos m odernos, que tinham sofrido a influência da crise p irrônica e da Renas­cença, puseram-se com o tarefa responder ao ceticismo, fazendo da epistemologia o dom ínio fundam ental do pensam ento filosófico. Ao mesmo tem po, porém , eles puseram sob suspensão de juízo a vida com um . C ertam ente não são muitos, na fi­losofia m oderna e con tem porânea , aqueles que valorizam filosoficamente a vida com um . O s filósofos dela se afastaram , com o se o m u n d o com um tivesse sido pos­to entre parênteses: faz-se filosofia num espaço ex tram undano . O m undo perdeu o seu encantam ento , o seu feitiço; não se pode mais falar na realidade do m undo. N a visão de Gellner, se eu a interpretei corretam ente, esse pôr o m undo entre parên te­ses, essa épokhé sobre o m undo , expressa uma influência difusa do ceticismo no pensam ento m oderno ocidental. Afinal, ele entendia, com o eu na época tam bém entendia, que o ceticismo era um desafio filosófico ao saber da vida com um.

N o en tan to , eu mudei de opinião. Alguns anos mais ta rde eu vim a descobrir que, muito ao contrário do que eu pensava, o ceticismo é um a defesa da vida co ­m um contra o “ pseudo-saber” filosófico. Se eu tinha estado de acordo com Gellner, deixei de estar. C oncordo que o ceticismo tem uma enorm e influência no pensa­m ento filosófico con tem porâneo , mas não pelos motivos enxergados por ele. Pois o cético não põe o m undo entre parênteses. N a verdade o ceticismo tem essa influên­cia porque, com o conseqüência d u radou ra da “ Primeira m ed itação” cartesiana, e com o conseqüência da influência de H um e. o pensam ento m oderno , e sobretudo o con tem porâneo , deixou de crer no Absoluto, deixou de querer fundam entar , dei­xou de acreditar num a razão soberana capaz de justificar todo o discurso hum ano. As filosofias contem porâneas , nos seus mais variados representantes, não são mais filosofias fundamentacionis tas, não são filosofias que persigam o velho ideal clás­sico da verdade com o correspondência . T u d o isso são coisas do passado para o pensam ento contem porâneo . Ele busca novos rumos, rum os que não dependem da aceitação de realidades absolutas, de valores absolutos, de conhecimentos abso lu ­tos. O ra , nesse sentido eu acho que, em bora não se tenha talvez muita consciência disso, nós somos céticos. O ceticismo foi pela primeira vez na história da hum an i­dade uma escola filosófica que pôs o Absoluto em xeque. Afinal, qual é o sentido fundamental da crítica filosófica do ceticismo ao dogmatism o? É que nós não te­mos com o justificar verdades absolutas, não temos com o ter certezas absolutas, não temos com o dizer das coisas, no nosso discurso, com o elas são. O discurso se to r ­na um instrumento, de um lado, para a denúncia do dogm atism o, e, de ou tro lado, para a defesa da vida com um. Nesse sentido, muito particular, podem os dizer que o m undo contem porâneo é cético. As propostas filosóficas do nosso século, na sua

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grande maioria, são propostas que desbravam os cam inhos do cotidiano, da vida, do m undo , e que n ão mais com ungam de uma crença no poder divino, num a razão absoluta , com o foi talvez o sonho do racionalismo clássico. Portan to , o sentido em que o m undo con tem porâneo é cético, para mim, é com pletam ente diferente do sentido em que o é para Gellner.

Passemos a Rorty, finalmente. Ele me parece dem asiado radical na sua pers­pectiva para poder dizer-se um cético. Se o ceticismo abandona o pensamento dog­mático e o critica, em nenhum m om ento ele pretende ter podido dem onstrar a fal­sidade do dogmatism o. O cético, na posição que tom a, é obrigado a considerar es­sas questões com o questões em aberto: justamente porque não acredita que possa­mos, pelo nosso discurso, estabelecer verdades decisivas, ele entende que não pode­mos dem onstrar a falsidade do discurso especulativo. Rorty tam bém acha que não podem os fazê-lo, mas valoriza de tal maneira a contingência e a precariedade que ele vê, nas diferentes manifestações filosóficas, instaurações de discursos novos, vo­cabulários novos que se propõem. Tem-se a substituição de um vocabulário pelo outro, de uma manifestação do pensam ento por ou tra , no devir histórico. N ó s estamos mergulhados nessa contingência, e nós podem os, aqui e agora, submetidos que es­tam os ã influência de nossa época, ado tar uma certa visão das coisas, ainda que a sabendo precária e contingente com o qualquer outra . Por um lado, Rorty se a p ro ­xima assim do ceticismo, já que este, reconhecendo o p r im ado da vida com um , ten­de obviamente a reconhecer a precariedade e a contingência de seu próprio discur­so. Por ou tro lado, o ceticismo não se pretende capaz de explicar as transformações do pensamento hum ano, não se pretende capaz de fornecer uma matriz que permita entender esse devir ou essa precariedade, sendo por isso bem mais cauteloso que Rorty.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber cientifico. Tal relação permanece até hoje? Como ela sedá na atualidade?

Essa relação, de fato bastante estreita ao longo do tempo, tom ou diferentes d ire­ções. É inegável que a ciência exerceu p rofundo impacto sobre a filosofia, e vice- versa — a filosofia exerceu um a enorm e influência no desenvolvimento das teorias científicas. Em concepções mais tradicionais, a filosofia é soberana, é primeira, e cabe a ela dizer o lugar das ciências no m undo , cabe a ela julgar o pensam ento científico. N um extrem o oposto , há as tentativas cientificistas de fazer filosofia: a ciência, sobretudo a ciência da natureza, é tom ada com o pad rão ou modelo, e os problemas da filosofia são pensados num a linguagem científica, a partir de conceitos científicos, recusando-se valor e importância a tudo aquilo que não possa ser tra tado com m étodos suficientemente p róxim os ao m étodo da ciência. São duas posições extremas: a da filosofia, que julga e avalia a ciência, dando-lhe fundam en tos e parâm etros , e a da ciência, que se to rna uma espécie dc matriz à qual o pensamento filosófico terá de reduzir-se. Essas duas posições extremas me parecem inaceitáveis.

Em bora nenhum de nós possa querer dar uma definição de filosofia, eu ten­do m uito a concordar com Quine, au to r que estimo bastante, e com Popper, que estimo menos, mas que sob esse aspecto diz algo parecido. N ã o se deve, mesmo porque não há razões para isso, tentar introduzir uma solução de continuidade entre

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filosofia, ciência, senso com um etc. Essas divisões rígidas são m uito pouco rigorosas e ex trem am ente sujeitas a desconfiança. O que há e um discurso dos hom ens sobre o m undo, e esse discurso pode num certo m om ento dizer-se discurso do senso co ­m um , num certo m om ento dizer-se discurso psicológico, científico, filosófico. M as são os homens que estão p ropondo idéias, que estão al inhando hipóteses, que estão descrevendo coisas. N ão há por que achar que distinções rígidas devam e possam ser m antidas; não há sequer por que procurá-las. Se eu ten tar pensar no que distin­gue a filosofia da ciência, eu diria que, q u an d o o pensam ento hu m an o lida com questões que ele consegue delimitar de uma maneira adequada, tratando-as até certo pon to dentro de uma esfera limitada, sem precisar a cada m om ento recorrer a ques­tões externas, trata-se aí do que cos tum am os cham ar de ciência — é o caso da a n ­tropologia , da econom ia, da história, da física etc. Q uer dizer, o discurso hum ano às vezes particulariza mais o seu objeto e traba lha de um a maneira mais concen­trada. O u tras vezes ele se aventura a t ra ta r dos assuntos sob um prisma mais geral, sob um prisma mais am plo , e aí nós diríamos que ele é mais filosófico. Q u an d o estudam os as relações entre linguagem e pensamento, entre pensam ento e m undo, nos vemos diante de questões tão am plas que não podem ser reduzidas a um capí­tulo da psicologia ou da lingüística, po r exemplo. Enfim, filosofia e ciência são n o ­mes, nomes que podem ser aplicados, e de que eu tam bém me sirvo, qu an d o es ta­mos apenas querendo lem brar o m odo e a área de a tuação do nosso pensamento. N ão se tra ta , a meu ver, de distinções entre com partim entos estanques.

Conhecemos pelo menos uma conseqüência importante da agenda de investigação do texto “Sobre o que aparece”. Tal conseqüência é enun­ciada nesse texto como: “O pirronismo parece-nos inteiramente com­patível com a prática científica moderna e contemporânea”. Em res­posta a uma crítica a esse artigo, você citou essa passagem, mas deci­diu acrescentar a ela um itálico, um grifo, à expressão “prática”. Você poderia nos explicar como se dá essa compatibilidade do pirronismo com a ciência moderna e qual a importância da ênfase na “prática” científica?

Realmente essa passagem do texto, que é aliás muito curta , foi objeto de alguma controvérsia. M as o que eu quis dizer é na verdade algo simples. \ idéia de que a ciência conhece a realidade das coisas é uma idéia que foi deixada de lado por grande parte das filosofias da ciência contem porâneas . H á propostas falibilistas, há p ro ­postas pragmáticas, há p ropostas convencionalistas, mas m uito poucos pensado­res — entre as exceções m enciono por exemplo William Boyd — fazem hoje aque­la conexão tradicional entre ciência e metafísica. A atitude da maioria dos filóso­fos da ciência contem porâneos, e de muitos cientistas que filosofam sobre as suas ciências particulares, é uma atitude de alguém que abandonou completamente a con ­cepção tradicional e clássica de ciência. O ra , com o lida o pirronism o com a ciên­cia? Sexto Empírico condenou a epistemé clássica e valorizou a tékhne, isto é, ele valorizou o m odo hum ano de lidar com as coisas, tan to prática com o teoricam en­te, enquan to um lidar com as coisas que não pretende ser dom ínio delas pela ra ­zão, descoberta da estru tura e da essência íntima das coisas pelo pensamento , mas

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simplesmente interagir com o m undo que está em to rno de nós, interagir de m anei­ra a dom inar esse m u n d o para os fins hum anos, e a pôr a natureza, den tro do pos­sível, a serviço da vida e da sociedade hum ana. Eu tenho a impressão de que assu­mir hoje uma perspectiva, em relação à ciência, que a veja com o um a atividade hum ana que lida instrumentalmente com as coisas, que procura fazer com que o homem possa assenhorear-se do m undo , é uma atitude pirrônica. E ela me parece m uito próx im a da atitude de boa parte dos que lidam com ciência hoje.

É claro que há aí problem as complexos, com o, por exemplo, o do realismo científico: o êxito maravilhoso das ciências, em fazer previsões precisas, em conseguir dom ina r o m undo , não seria exa tam ente uma prova de sua verdade, de que ela conhece as coisas com o elas são? Um cético, obviamente, não tem com o concordar com essa posição. M as até que ponto não se poderia dizer, num sentido não-dog- mático, que as ciências não se limitam a construir hipóteses úteis ou um discurso capaz de ser instrumentalmente eficaz; que elas de algum m odo estão conhecendo o m undo? Q u an d o eu digo, por exemplo, num a proposição empírica banal, “ meus óculos estão em cima da m esa” , estou descrevendo, em linguagem vulgar, com o as coisas são neste m undo. Seria então possível dizer, neste sentido não-dogm ático , que uma teoria científica é conhecimento do mundo? Para um pirrônico, esta questão só pode ser t ra tada com o uma questão interna ao dom ínio dos fenômenos. Isto é, até que ponto esse m undo que nos aparece está sendo descrito de maneira ad e q u a ­da por teorias científicas que funcionam bem? C om o explicar o sucesso da ciên­cia? Esse é um problem a importantíss im o para a filosofia da ciência con tem porâ­nea. M as eu, pessoalmente, não me vejo capaz ainda de tom ar uma posição mais firme sobre a questão. Eu diria apenas que, se o cético quiser p ropo r uma solução, ela tem de dar-se num registro não-especulativo, não-dogm ático , não-metafísico.

Desde Hegel, no século XDÍ, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobreum possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como você se posiciona em relação a esse debate?

Eu devo confessar a minha enorm e ignorância dos problem as estéticos em geral e dos problem as de teoria da arte. Esta é um a das maiores lacunas em m inha fo rm a­ção. M as, em bora me sinta incapaz de responder a essa pergunta , eu diria que não acredito no fim da arte, e ousaria afirmar que uma postura cética diante do m undo parece favorecer a at itude estética. Afinal, a arte foi muitas vezes menosprezada na epistemologia tradicional, p o rque não seria um instrum ento adequado de conheci­m ento das coisas. N a medida, porém, em que a noção de conhecim ento das coisas se revela uma noção problemática, com plexa, ex trem am ente discutível; na medida em que se deve valorizar o que aparece, e a tentativa de lidar bem com ele, eu vejo aí um espaço aberto para uma valorização da atividade artística e da manifestação artística. Pois ela não é, enquan to manifestação do homem, inferior à ciência, à fi­losofia ou a qualquer ou tra coisa. Aos olhos de um pirrônico, po r tan to , preconcei­tos epistemológicos contra a arte se to rnam ridículos.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar.Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe-

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nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des­frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

Q u a n to aos Estados Nacionais, em primeiro lugar, num a época de in ternac iona­lização ou, com o se diz, de g lobalização, é claro que os Estados N ac ionais são postos em xeque. Agora, um a coisa é o nacionalismo tradicional, freqüentemente dogm ático , muitas vezes fascista, pelo qual tenho p ro funda an tipatia , e ou tra coi­sa é o reconhecim ento da vida e da im portânc ia das nações e das etnias, que é fundam ental . Assim com o o fato de vivermos num a sociedade não precisa levar- nos ao desprezo das instituições familiares — as quais perderam muito de sua im ­portânc ia — , não vejo por que o fenômeno da internacionalização, que é inevitá­vel, deva levar à recusa das etnias ou ao desprezo pelas nações. Por o u tro lado, os p rob lem as dessa in te rnacionalização são ex trem am en te com plexos e difíceis, e algumas vezes parecem representar perigos sérios para o bem-estar de co m u n id a ­des menores, de nações pequenas, de grupos particulares. Existe o perigo, que é bas tante grande, de que certas nações desenvolvidas e poderosas façam da g loba­lização um instrum ento de af irm ação de si próprias, de dom ínio sobre nações m e­nos desenvolvidas.

Agora, é claro que essas opiniões que estou dan d o não são opiniões filosófi­cas, c sim opiniões de um ser hum ano com um que está sendo interrogado sobre esses assuntos. E digo isso porque não acredito que o filósofo tenha uma capacidade maior do que outros seres hum anos para falar de política. Alguém pode até m ostrar que estou errado, que eu deveria reform ular este pon to de vista, e talvez algum dia eu o reformule. M as sinceramente não acredito que um filósofo seja mais capaz de falar de política do que um antropólogo , um economista, um matemático, ou mesmo um ser hu m an o qualquer , desde que possuidor de uma certa cultura e de uma certa informação. Por este motivo, faço questão de realçar que isso que acabo de dizer não é uma posição filosófica, mas um a posição minha, enquan to ser hum ano , so­bre um assunto que julgo fundamental.

Q u an to ã segunda parte da questão, eu tam bém enxergo uma revivescência das questões morais, bastante perceptível na juventude, que me parece hoje, mais do que em décadas passadas, ex trem am ente preocupada com elas. Inclusive é m ui­to triste que alguns departam entos de filosofia não dêem cursos sobre m oral , sobre problem as morais. E essa juventude é levada obviamente a estender suas preocu­pações morais tam bém para os grandes problem as da transform ação econômica e social de nossa época, o que me parece aliás perfeitamente legítimo. M esm o nós, e não apenas a juventude, ao refletir sobre esses grandes problem as da globalização e da internacionalização, não podem os, ainda que reconhecendo sua origem nas transform ações econômicas, deixar de lado as questões morais; não podem os sim­plesmente ado tar a fria perspectiva de um economista. Em bora o cético se posicione sempre con tra os dogm atism os morais, ele em nenhum m om ento renuncia a uma perspectiva m oral sobre as coisas.

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Entre os aspectos que fazem parte da prática cotidiana do cético pir- rônico, regulada pelos fenômenos, você aponta a conformação à tradi­ção das instituições e aos costumes (“Sobre o que aparece”). Isso não implica um risco de favorecer o conservadorismo moral e, sobretudo, político?

Em primeiro lugar, devo esclarecer que ao mencionar a conform ação aos costumes, nesse texto, estou me referindo a um texto de Sexto Empírico, ao cético tal com o descrito por Sexto Empírico. M as Sexto Empírico, infelizmente, deixou muito pouca coisa, ou quase nada , sobre política e moral. .A.liás, ele não é um grande filósofo. Ele é apenas um pensador m enor, mas um pensador m enor que se to rnou repre­sentante, para nós, do que penso ser um a grande filosofia. Q u an d o ele diz que se­guir o fenômeno é seguir as instituições, é porque entende que seguir o fenômeno é seguir a natureza, deixar-se levar por ela, reconhecer o papel das paixões, seguir os ensinam entos da cultura vigente, seguir as tradições e costumes. Esse assunto, do possível conservadorismo do cético pirrônico segundo Sexto Empírico, foi várias vezes levantado, po r muitos estudos. C om o Sexto Empírico não deixou quase nada sobre isto, é difícil saber o que pensava exa tam ente a respeito.

M as eu sou levado a pensar na figura de Pirro, que era um grande sacerdote em sua cidade, Elis. A religião grega não era, com o o cristianismo, um a religião de consciência, mas sim uma religião de cultos, uma religião externa. Portan to , par t i­cipar do culto e fazer os sacrifícios devidos era o que im portava para os gregos, e não a consciência da pessoa. Se a pessoa estava ou não acreditando, isto não tinha muita importância. Neste sentido, seguir as instituições e os costumes devia signi­ficar, para Pirro, simplesmente aceitar que há uma tradição na cidade, que há um culto, que se for necessário ele p róprio pode fazer o culto, e assim por diante. Ao mesmo tem po ele diz tudo o que pensa, a todo tem po, e todo o m undo sabe o que ele pensa. Esta me parece ser uma forma de interpretar a questão, mas não há com o ter certeza de que era isso que Sexto Empírico tinha em vista. Por outro lado, quando ele fala em seguir as instituições, tam bém podem os pensar no fato de que todos nós seguimos as instituições. Os nossos a r roubos de infração das normas vigentes, pen­sando bem — com exceção talvez de alguns revolucionários — , têm m uito pouco a ver com um a oposição às instituições e aos costumes em geral. N a vida prática, as instituições e norm as a que nos o pom os são poucas se com paradas às instituições e costumes a que dam os nossa plena adesão.

Agora, independentem ente de a posição de Sexto Empírico ser ou não co n ­servadora, o que im porta é que não vejo razões para o cético pirrônico ser conser­vador. Ele simplesmente suspende o juízo sobre as cham adas verdades dogmáticas, e, assim com o não tem um dogm a metafísico, nem epistemológico, não terá um dogm a m oral ou um dogm a político. Portan to ele não terá crenças absolutas em política. M as isso significa que ele não participará da vida política? Eu não vejo uma relação necessária entre uma coisa e outra. Ele pode, por exemplo, a partir dos valores que tem, entender que a situação social do Brasil é aberran te e trágica, e entender que há um certo partido que mal ou bem representa melhor a denúncia disso, e a tentativa de m elhorar isso. E pode en tra r para esse partido , dar a sua adesão a ele, ou até mesmo criar um novo partido. O que não significa que ele tenha um dogma,

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que tenha certas verdades absolutas. Ele é simplesmente alguém que quer participar da vida de seu país, juntando-se àqueles que têm valores em com um com ele. Se eu íosse, p o r tan to , reform ular a idéia de viver segundo o fenômeno, eu não usaria fórmulas aparen tem ente conservadoras — com o as de Sexto Empírico de fato são, independentemente da sua intenção. Eu falaria simplesmente em integrar-se na vida social e em suas instituições, o que é um a fórmula neutra , que deixa espaço para uma intervenção política, até mesmo para uma intervenção política apa ixonada.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?C om o quem leu meus textos sabe, eu tive um a form ação religiosa. N a verdade, fui religioso, no sentido tradicional da expressão, até os quinze anos. Depois, receben­do a influência de um amigo de meu pai, eu me disse comunista, e, em bora sem saber nada de comunismo, fui comunista durante dois anos, sobretudo porque os argumen­tos morais que me eram apresentados por esse amigo de meu pai eram para mim muito im portantes , e eu não sabia reagir a eles. Depois eu tive uma conversão, em que me converti novam ente ao catolicismo, dessa vez por meio de uma opção cons­ciente e não por influência da família. Acho que muito pouca gente pode dizer que foi católico até os quinze, com unista até os dezessete, e se converteu ao catolicismo aos dezessete, mas esse foi meu itinerário! 1 risos| Eu me converti, e en tão me tornei católico praticante, estudioso da filosofia tomista , freqijentador assíduo dos cultos religiosos, m em bro da Juventude Universitária Católica IJUC]. G uardo uma lem­brança gostosa de muitas dessas coisas, mas tam bém uma lembrança menos gosto­sa, mais dolorosa, de ou tras , com o os imperativos morais cristãos. Eu levava m ui­to a sério a moral cristã, e essa moral, obviamente, entra em violento conflito com os instintos mais natura is do jovem. E eu vivi isso dolorosam ente . De qualquer maneira, o fato é que tive uma experiência religiosa muito intensa, que durou mais ou menos até os vinte e q ua tro anos, q u an d o eu já tinha, com o se diz, perdido a fé.

Eu não tenho, com relação às religiões, aquela posição m arcada de alguns intelectuais de esquerda, que vêem nela apenas um ópio do povo. Sem dúvida elas o são muitas vezes, mas ao mesmo tempo, num a sociedade tão aterrorizadora com o a nossa, elas representam, para milhões de indivíduos, um fator de equilíbrio, de sossego. Já que a sociedade não tem sido capaz, até agora , de dar nenhum a solu­ção aos trágicos problem as que afetam milhões e milhões de miseráveis no m undo, nós temos de reconhecer que a religião representa um arr im o, um pon to de apoio. Vlesmo aqueles que não crêem em nada , com o é o meu caso, e que percebem que essa influência religiosa é contam inada por atitudes irracionais, autoritárias, aliena- doras, têm de reconhecer que, se eles perdessem de repente esse pon to de apoio, seriam profundam ente infelizes. Neste sentido, é com o se a religião fosse uma faca de dois gumes: salvo exceções, com o a Teologia da Libertação brasileira, ela de um lado ajuda a m anter o status qtio, funciona com o um obstáculo para as m udanças sociais; de ou tro lado, representa um a solução imediata, um fator de amenização, para a tragédia de milhões de pessoas.

Em “Prefácio a uma filosofia”, você escreveu: “Tantos anos passadosapós a perda da fé, percebo que aqueles valores ainda se me impõem

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com força tenaz e que a eles não renunciei. Continuo a ansiar pela Verdade, tenho a paixão da Humanidade, acredito finnemente na Rea­lidade das coisas e nos eventos da experiência cotidiana e tenho uma consciência brutal da finitude de nossa razão. Reconhecendo a gênese dessa minha postura, nem por isso me sinto obrigado a abandoná-la. Nenhum argumento jamais encontrei que me persuadisse a fazê-lo”.Esses valores nascidos primariamente com a fé são importantes para você até hoje?

São. M as farei uma pequena ressalva q u an to à expressão “ rea lidade” : é claro que acredito na realidade das coisas, mas não no sentido metafísico de que talvez eu me servisse então. De qualquer maneira, a m inha iniciação à vivência de certos valores se fez através da religião. Esse foi um aspecto posit ivo: sobretudo na época em que eu fazia parte da juven tude Universitária Católica, havia uma insistência bastante grande na Justiça, e no reconhecimento da situação absurdamente injusta da maioria das pessoas de nossa sociedade; havia uma insistência bastante grande no am or ao próxim o, entendido não com o uma atitude contemplativa, mas com o querer t r a ­balhar para m udar o status quo, para que a situação deles melhorasse. T udo isso são coisas im portantes , que eram valorizadas na experiência religiosa que tive.

E o tema m oral é um tema que hoje me interessa especialmente. Eu acredito que, ao suspender o juízo sobre os dogmatismos morais, o cético continua no mundo, e não tem nenhum a razão para a b a n d o n ar valores que antes cultuava. Ele pode se perguntar, uma vez percebido o fato de que, em sua experiência moral dogmática, foi inculcado nele, por exemplo, o não se confo rm ar com a miséria, se há alguma razão, a partir do m om ento em que ele não é mais um crente, para a b a n d o n a r isso, para m udar o seu íntimo, a sua personalidade. Essa preocupação com os outros é obviam ente uma das manifestações naturais do estar hu m an o no m undo , quer d i­zer, aqui e ali as p róprias situações objetivas desenvolvem em alguns o desejo de t ransform ação , de m udar, de arreben tar com o status quo. Por que eu precisaria dc valores absolutos, de verdades atemporais , de conhecim ento da realidade em si, para preservar aquela preocupação? Se ela está em mim, se fui form ado assim, se não a associo mais a crenças dogmáticas, não há qualquer motivo para eu querer livrar-me dela, querer despir-me dela.

Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem?

Realmente, essa é um a m udança que se efetivou no m undo contem porâneo . C om o muitos autores já disseram, a preocupação com o sujeito deu lugar a um a preocu­pação com a linguagem. Sob certo aspecto, parece-me saudável essa transfo rm a­ção, no sentido de abandonarm os certos dogm as — os dogm as do sujeito — e de privilegiarmos algo que ocupa um lugar decisivo na própria constituição da espé­cie hum ana, que é o fato de nos servirmos de uma linguagem. P ortan to esse inte­resse pela linguagem me parece algo bastante salutar. De ou tro lado, há, com o em todas as transform ações desse tipo, o perigo de se h ipostasiar aquilo que se está traba lhando , o perigo, em outras palavras, de fazer da linguagem um mito, de achar

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que os problem as filosóficos são problem as lingüísticos. Alguns filósofos con tem ­porâneos, infelizmente, enveredaram por essa trilha: eles fazem uma filosofia “ lin- güisticista” e traba lham , ou pretendem traba lhar , os problem as filosóficos com o se fossem meros problem as de linguagem. E isso é evidentemente um dogm atism o, e um dogm atism o extrem am ente perigoso, porque leva a filosofia a a b a n d o n a r o m undo , as questões reais, os homens, as pessoas. Enfim, essa idolatria da lingua­gem me parece ex trem am ente castradora em relação aos problem as filosóficos t r a ­dicionais. Se há algo de saudável na virada lingüística, que devemos saudar, deve­mos ao m esm o tem po ser cautelosos, e ser radicais na denúncia do radicalismo dogmático da filosofia lingüística. Infelizmente, um a parte razoável da cham ada filosofia analítica — palavra por sinal ex trem am ente vaga — deu à linguagem uma tal dimensão, uma tal im portância , que foi levada a ab a n d o n a r todas as p reocupa­ções tradicionais da filosofia.

M as, vo ltando à postura cética, o ceticismo em nenhum m om ento representa um ab a ndono da problem ática filosófica. N u m tex to que escrevi recentemente, “ O ceticismo pirrônico e os problem as filosóficos” , p rocuro afastar um a idéia errônea a respeito dos céticos: a idéia de que, se alguém assume uma posição cética, deve considerar toda a filosofia um a perda de tem po, e achar que os problem as filosófi­cos não têm mais significado. O ra , isto é um a aberração. Em primeiro lugar, p o r ­que os problem as filosóficos, na sua m aioria , são problem as do ser hum ano , p ro ­blemas da vida, e o fato de muitas vezes os filósofos terem dado soluções dogmáticas a eles não implica que não lhes tenham dado um tra tam en to p rofundo , em muitos pontos reutilizável. Os grandes filósofos contr ibu íram decisivamente para o es tu­do da problem ática do ser h um ano , e re traduzir a sua linguagem — para um regis­tro fenomênico, diria eu — é de fundam ental importância . M as re traduzir sua lin­guagem não significa, de m o d o algum, to m a r a a t itude quixotesca e ridícula de afirmar que o que eles disseram não tem im portância — tal com o tenderíam os, se conduzidos por uma excessiva valorização da linguagem.

Como você vê o panorama filosófico atual? Penso, de início, numa passagem de “Prefácio a uma filosofia” em que você afirma que “ra- cionalismo e irracionalismo são apenas as duas faces de uma mesma moeda”.

Eu creio que o racionalismo a que eu me referia aí perdeu a vez, no sentido p u ra ­mente empírico da expressão: não se faz mais racionalismo hoje, pouca gente se aventura a querer ser racionalista no sentido tradicional e clássico da expressão — o que é bom. T enho a impressão, porém, de que não é preciso, nem desejável, que se renuncie à razão. O irracionalismo é um a tragédia filosófica e cultural que tem, com grande freqüência, lamentáveis conseqüências no p lano prático, no p lano da vida das nações, dos povos c das pessoas. Por o u tro lado, o endeusam ento da ra ­zão não tem mais sentido no m undo contem porâneo . O ceticismo, a meu ver, não representa em nenhum m om ento uma investida con tra a razão; ele representa, e o é, uma investida con tra o endeusam ento da razão. M as o cético nasceu da filosofia ocidental, dela se alimenta, e sempre se alimentou. Eu diria até que ele se pretende, algo imodestamente, o herdeiro dessa filosofia, pois ele tem uma qualidade que é

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sem dúvida uma qualidade da filosofia ocidental: a qualidade de ter sempre o dese­jo de pensar com rigor e espírito crítico, de t ra ta r os seus problem as com espírito crítico. O ra , isto é algo que o ceticismo leva às últimas conseqüências quando de­nuncia justamente a inadequação dos em preendim entos filosóficos a esse projeto multissecular de pensam ento crítico. O ceticismo seria, neste sentido, um a espécie de legatário da in tenção primordial da filosofia, um filho e herdeiro da filosofia — jamais um a recusa desta. N ã o há nada mais contrário ao ceticismo do que uma perspectiva irracionalista.

Como você avalia a obra de Wittgenstein?Eu li Wittgenstein com o todo filósofo lê, isto é, com atenção, interesse, adm iração e respeito. O W'ittgenstein que mais me interessa, evidentemente, do ponto de vista das posições filosóficas, é aquele que vê nas filosofias um desvio da linguagem em relação a suas funções primordiais, que vê os problemas filosóficos não com o p ro ­blemas a serem resolvidos, mas com o problemas a serem desfeitos. Esse VC'ittgenstein das Investigações filosóficas me é particularmente simpático. Em bora haja bons co­nhecedores de W'ittgenstein que têm salientado a continuidade de certos temas fun­dam entais no Tractatus logico-philosophicus e nas Investigações, as soluções p ro ­postas no Tractatus me parecem absolutamente especulativas, enquanto o Wittgens­tein das Investigações me parece, sob certos aspectos, bastante aproximável de uma postura cética. Apesar de ele ser muito mais radical do que os céticos foram , e as­sumir direções que um cético não teria razões para assumir, creio que ele represen­ta uma das vozes im portantes , na filosofia do século XX, que fazem a denúncia do dogm atism o filosófico.

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever a sua visão dofuturo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

Eu nunca senti nenhum a atração pelo pensam ento utópico, e não saberia descre­ver o que seria uma sociedade ideal, uma sociedade desejável. M as me parece que todas as construções propostas por pensadores, qualquer que seja a sua orientação, para descrever o que seria a realização dos fins da hum anidade , são sempre ex tre ­m am ente especulativas, criticáveis e problemáticas. A riqueza do ser hum ano e a imprevisibilidade da história nos fazem to ta lm ente incapazes de dizer o que seria “ a ” boa situação, o que seria a melhor situação, o que seria a situação ideal. Eu considero inútil, e até mesmo perigoso, ten tar transform ar a sociedade a partir de uma idéia pré-fixada do que seja o fim desejado. É evidente que os seres hum anos, ou pelo menos os seres hum anos críticos e conscientes, têm uma consciência bas­tante grande das coisas que são ruins, perversas, inaceitáveis, na sociedade de hoje, e nós querem os na tura lm ente m udar essas coisas, queremos transformá-las, quere­mos fazer as pessoas se encam inharem para o melhor. Acontece que esse melhor vai sendo definido, po r nós mesmos, aqui e ali, conform e as circunstâncias, con ­forme as épocas. N ão acredito que se possa delinear a sociedade ideal, e esse mito, a meu ver, de\'e ser abandonado .

Há progresso na história?

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É difícil dizer, mas me parece que uma sociedade, po r exemplo, em que mulheres e homens têm igualdade de direitos, é muito melhor do que um a sociedade em que não a têm. Uma sociedade em que o povo, de algum m odo, participa das coisas do governo me parece, de m odo geral, muito melhor do que um a sociedade em que o povo não participa. É verdade que essa participação muitas vezes é adulterada; é verdade que certos meios de com unicação influem de tal maneira sobre a popu la ­ção, que somos levados a perguntar se realmente é o povo que está escolhendo os candida tos ou se são as empresas de televisão. De qualquer m odo , porém , a par t i­cipação das pessoas na fo rm ação de seu governo é algo positivo. Assim com o a extensão das preocupações com o semelhante, que é talvez um dos poucos aspec­tos da globalização que podem ser ditos de notável importância: o que acontece hoje na Bósnia, no Vietnã, no Daguestão, é im portan te para m uita gente, e não apenas para alguns intelectuais. T udo isso é um a vantagem em relação a épocas em que as coisas n ão eram assim, e p o r tan to poderíam os falar em progresso.

É claro que estou definindo esse progresso a par t i r de certos valores morais, e é claro que esses valores morais são nossos, são valores em que fomos form ados e que endossamos. M as não vejo mal nenhum em assum irm os a nossa particu larida­de, a nossa contingência, e, a inda que reconhecendo que esses valores, com o o da m aior igualdade, da m aior justiça, da m enor miséria, da m enor desgraça, são valo­res em que fomos form ados, dar-lhes a nossa adesão. Eu diria po r tan to , desse p o n ­to de vista, que houve, sim, algum progresso. Inclusive tenho muita simpatia pela posição do Rorty com relação a esse pon to , pois ele tenta m ostrar justamente que a consciência de nossa precariedade e de nossa contingência não nos impede, em nenhum m om ento , de lutar po r aquilo em que acreditamos.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar­ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas?

Eu os vejo com o trágicos, obviamente, e com o conseqüências nefastas dessas trans­formações globais por que passa a sociedade. A globalização é um fato inevitável, mas a nenhum m om ento precisa ser tom ada com o um valor a ser cultuado. Tra ta- se de um fato que não podem os evitar, mas ele traz no seu bojo problem as terríveis e seriíssimos. O que se coloca para nós, com o desafio, é tentar lidar com eles, ten­tar minimizá-los, se possível eliminá-los, conscientes da dificuldade que há nisso. N ão se t ra ta de aceitar a globalização com o um bem, nem de condená-la com o um mal, mas de aceitar que ela está aí, que as transform ações tecnológicas e econôm i­cas nos põem diante de um fato consum ado. T u d o que podem os é ten tar transfo r­m ar as coisas para que as suas conseqüências ruins sejam fortemente diminuídas.

Paulo Arantes emprega, em U m departam ento francês de Ultramar, o adjetivo “pré-modemo ” para caracterizar a sua atitude filosófica, tendo em vista tanto a fase da promoção filosófica da visão comum do m un­do como a fase neopirrônica, em que você estaria navegando “a contra- corrente do miolo cético do modemismo”. No entanto, a recusa da tradi­ção filosófica moderna é algo que você expressamente assume, por consi-

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derá-la fundada na “concepção mentalista do conhecimento” que ten­de a afastar o pensamento reflexivo da vida real — tendência à qual mesmo os céticos modernos, como Hume, não escapariam. Como, então, você se posicionaria em relação a essa caracterização de “pré-modemo”?

Se pré-moderiio quer dizer grego antigo, não tenho nada contra! |risos] O m undo grego, e tam bém o m undo medieval, que sob certos aspectos copiou o grego, t inham um a postura diante dos problem as do conhecim ento — não estou d izendo senão um a tr ivialidade histórica — tota lm ente diferente da postura m oderna. A postura m oderna , em Descartes, começa com a valorização do sujeito, com a valorização do pensam ento sobre a experiência do m undo , com a idolatria da razão. Eu acho que os gregos, mesmo Platão, eram muito mais afeitos ao cotidiano, às coisas que se passavam im ediatam ente, es tando num a sintonia muito m aior com o m undo do que o pensam ento m oderno. Pois este último, mesmo qu an d o se debruça sobre o m undo para pensá-lo, em geral o faz a parti r de uma razão idola trada, a partir de um a razão hipostasiada, a partir de um culto do sujeito. O ra , eu acho que deve­mos ter, nesse sentido, a coragem de dizer “ n ã o ” ao moderno. Isto é, não há por que colocar o sujeito em primeiro lugar, não há por que aceitar uma filosofia que está enraizada em última análise no cogito. Uma das coisas mais importantes, a meu ver, na consideração do cogito cartesiano, é que o sujeito se pergunta: “ C om o pos­so saber que este m undo existe?” ; “ C om o posso saber que isso é uma verdade?” ; “ Eu não poderia estar enganado por esta ou por aquela razão?” . E eu tenho v o n ta ­de de perguntar: “ Eu quem , cara pálida?!” [risos]. É claro que, se você admite que pode haver pensamento sem m undo, a pergunta tem todo sentido. Vias, se você não tem razões para acreditar que haja pensam ento sem m undo , a pergunta não quer dizer nada. O ra , essa hipóstase do sujeito, do pensam ento , da razão, é a contribu i­ção genial de Descartes para a filosofia. M as é ao mesmo tempo, a meu ver, a ra ­zão para que um cético com o eu desconfie de toda filosofia que daí se nutriu, que se nutriu da hipótese de uma separação entre pensam ento e m undo.

O sujeito, para o cético, é alguém cham ado José, que tem carne, osso, dente, que briga com a nam orada etc. O sujeito é o ser hum ano qu an d o nós centram os a atenção sobre ele. O que são as filosofias? As filosofias são simplesmente exercícios de pensam ento de seres hum anos no m undo . É preciso com eçar sem pre p o r aí, com eçar sempre por essa remissão ao hum ano vivido de cada dia. Enquan to a filo­sofia ocidental se orgulha justamente de ter-se constituído sobre a não-aceitação disso com o ponto de partida para pensar, o cético grego é aquele que só tem isso para pensar, e não acredita que se tenha ou tra coisa além disso. Neste sentido, a minha postura é to ta lm ente “a n t im o d e rn a” .

Para terminar, uma pergunta um pouco mais jocosa. Será que há tan­ta diferença assim entre Tales caindo no poço porque olhava os astros e Pirro caindo no buraco e sendo abandonado lá por seus discípulos imperturbáveis?

Isso sobre Pirro é intriga da oposição! [risos| É claro que se sabe m uito pouco so­bre a vida de Pirro, há apenas umas historietas sobre ele, de Diógenes Laércio. M as já na antiguidade alguns pensadores céticos se queixavam dessas historietas, diziam

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que tinham sido inventadas por opositores e que não eram verdadeiras. H á até quem sustente que Pirro se permitia algumas vezes certas extravagâncias para cham ar a atenção para seus pontos de vista. Existe, po r exemplo, a seguinte história. Q u a n ­do o amigo de Pirro, A naxágoras , estava se afogando, diante de toda um a com iti­va, e com muita gente querendo salvá-lo, Pirro teria afe tado indiferença, no senti­do de que não podem os estar tota lmente seguros de nossas impressões sensíveis, ou algo assim. Se ele de fato o fez, pode ter sido um a brincadeira, e um a brincadei­ra sem conseqüências, porque os amigos correram para salvar A naxágoras. O filó­sofo é levado às vezes a dizer certas coisas que podem parecer muito ex travagan­tes. Lembro-me, por exemplo, de quando eu estava num colóquio em Curitiba e, na saída do colóquio, toquei n u m assunto que se tinha discutido — eu tinha ten ta­do m ostrar, em minha com unicação, que é tota lm ente ridícula a caricatura do cé­tico com o aquele que não sabe, por exemplo, se essa mesa está aqui. Eu estava diante de um a árvore, na rua, e num determ inado m om ento fui levado, nesse contex to , a dizer, apon tando : “H á uma árvore aqui! Eu não posso recusar isto!” . E um casal que passava ficou o lhando de maneira m uito espantada! [risos] Enfim, o fato é que aos olhos do senso com um uma afirm ação filosófica pode parecer uma coisa abso ­lutamente extravagante.

Principais publicações:

1981 A Filosofia e a Visão Com um do M undo (co-autor) (São Paulo: Brasiliense); 1993 Vida C om um e Ceticismo (São Paulo; Brasiliense);1995 “ Verdade, ceticismo e rea lism o” , Discurso, n° 25;1999 “Discurso aos es tudantes de filosofia da USP sobre pesquisa em filosofia” ,

Dissenso, n" 2.2001 A noção aristotélica de ciência (dou to rado defendido em 1967; no prelo).

Bibliografia de referência da entrevista:

Descartes, R. Meditações, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Gellner, E. Relativism and the social sciences, Cambridge University Press.H um e, D. Tratado de la naturaleza humana, Madri: Tecnos._________. coleção Os Pensadores, Abril C^ultural.Kant, 1. Critica da razão pura, coleção Os Pensadores. Abril Cultural.Popkin, R. A história do ceticismo de Erasmo a Spinoza, Francisco Alves.Popper, K. A lógica da pesquisa científica, Edusp.Quine, W. V. Relatividade ontológica e outros ensaios, coleção Os Pensadores, Abril

Cultural.Rorty , R. A Filosofia e v espelho da natureza, Relume-D umará.Sexto Empírico. Pirronean hypotyposes. H arvard University Press (Loeb). Wittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp.______________ . Investigações filosóficas, coleção O s Pensadores, Abril Cultural.

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RUY FAUSTO (1935)

Ruy Fausto nasceu em 1935, em São Paulo (SP). Formou-se em Filosofia e em Direito pela Universidade de São Paulo e obteve o título de d ou to r em Filosofia pela Universidade de Paris 1. Foi um dos fundadores da revista Teoria e Prática. Foi p ro ­fessor do D epartam en to de Filosofia da USP até inícios de 1969, quando se e.xilou. É professor da Universidade de Paris VIII e professor emérito da USP. Esta en tre­vista foi realizada em setembro de 1999.

Goethe dividiu a vida do seu personagem Wilhehtt Meister em dois ro­mances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No primeiro, o foco está posto na fonnação do indivíduo Wilhehn Meister, enquan­to o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua for­mação intelectual?

M inha form ação intelectual é muito com plicada, muito suigeneris, em função, di­gamos, de circunstâncias pessoais e de razões históricas: uma confusão, se ouso dizer, de vida pessoal com história universal. Havia um problem a ligado ao fato de que a filosofia no Brasil estava m uito pouco desenvolvida, e foi preciso reaprender na Europa o que eu não tinha aprendido aqui. A m inha form ação é tard ia , sou um sujeito que se formou m uito tarde, que tem uma longa história e uma longa fo rm a­ção, inclusive por conta de alguns fatores pessoais; a vida familiar um pouco co m ­plicada, mãe m orta m uito cedo etc. Q u a n d o começava a levantar a cabeça, fiquei doente na Europa. O fato é que houve um longo período de caos no p lano intelec­tual, ligado a uma atividade política, tam bém caótica ã sua maneira. .Vlas de certo m odo eu funcionava nessa área. De uma forma muito im atura, mas funcionava, escrevia com mais facilidade... .Vlas, no p lano propriam ente teórico, o caos foi, d i­gamos, até os 38 anos mais ou menos.

Você consegue datar, então? O ano é 1973?Sim, em 1973 eu comecei a escrever textos que tinham pé e cabeça. Em bora a p a r ­tir daí eu possa ter m udado em algumas coisas, especialmente em algumas coisas políticas, há uma certa continuidade. É a partir daí que eu me reconheço. E, q u a n ­do o sujeito se encontra por volta dos 40 anos, começa um a longa corrida atrás do tempo: tem que ler isso, tem que ler aquilo , tem que term inar a obra de juventude com cinqüenta anos .. . Bem, essa é a minha história.

A graduação você fez quando? graduação em Filosofia eu fiz cedo, terminei em 1956. M as foi um a g raduação

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m uito ruim, porque os franceses já tinham ido em bora e não havia gente para subs- tituí-los, de m odo que eu peguei o “olho do ciclone” .

E você fez Direito ao mesmo tempo?Fiz Direito por razões familiares: a filosofia era desvalorizada e as famílias queri­am que a gente tivesse uma profissão decente. Então fiz Direito, por pressão do meu pai, mas só levei a sério duran te um ano — o resto do curso fui fazendo sem muito interesse, prestava alguns exames de segunda época, os únicos acessíveis a quem não freqüentava o curso, e terminei em seis anos. O meu irmão mais velho, que sofreu um impacto mais antigo, fez apenas Direito, e só foi fazer Flistória mais tarde. Eu fui da geração de transição, que, em bora es tudando Filosofia, t inha uma profissão “ decente” . Já nas gerações mais novas, muitos topa ram fazer só Filosofia. E era interessante a com paração: eu gostava muito da faculdade de Filosofia, mas a de direito era ou tra história, m uito pior, m uito tradicional. N a Filosofia, apesar da ausência dos franceses, as coisas funcionavam: havia o Lívio Teixeira, que prepa­rava cuidadosamente as aulas; o Cruz Costa, com as suas qualidades, e alguns mais (em parte de outros departamentos). Vocês querem um exemplo do contraste en ­tre as duas faculdades? Vou contar uma anedota: o Lívio Teixeira chega à sala de aula e diz: “Floje eu não posso dar aula porque on tem tive que ir ao dentista e não preparei nada. E se eu não p reparo a aula, não tem a u la ” [risos]. Já na Faculdade de Direito, o professor que tivesse ido ao dentista e não tivesse p reparado a aula, iria fazer um discurso sobre o direito, os alunos aplaudir iam no final, e coisas des­se tipo. Era de um lado a falta de jeito do Lívio Teixeira, e de ou tro a eloqüência brasileira do século XIX. N a Faculdade de Direito, a gente só consultava apostilas, excepcionalmente lia um livro — do professor — , e quando apareciam alguns p ro ­fessores que faziam a coisa mais seriamente, eles eram considerados terríveis!

O que o levou a querer estudar filosofia?Eu fiz o secundário no Mackenzie, que era muito ruim. M as nos últimos anos a p a ­receram alguns professores form ados pela Faculdade de Filosofia, que com eçaram a m udar tudo. Fui a luno do D ante M oreira Leite, que não era filósofo, mas psicó­logo, e ele me contou muitas coisas. Ele nos falava um pouco da pré-socrática, de filosofia grega e cristianismo, de filosofia da ilustração. M as falava muito mais e m elhor de uma ciência hum ana pré-estruturalista: .Margaret M ead , Lévy-Brühl, tam bém Freud e Jung. Acho que era o melhor a luno dele. T am bém fui a luno do M assaud .Vloisés, que era um muito bom professor de português, esforçadíssimo, que nos fazia escrever. Ele lia para a classe os meus trabalhos de literatura brasilei­ra. Mas eu não tinha intenção de fazer letras. Depois apareceu a Emília Viotti, fa­lando de Revolução Francesa, N apoleão , Zollverein [união aduaneira alemã] etc. Bem, muito cedo entra a política pelo meio: família judia, a gente acom panhou a guerra desde o começo. Apesar de eu ter nascido em 1935 e de só ter qua t ro anos em 39, lembro-me da declaração de guerra, também da entrada dos alemães em Paris (meu pai não disse uma palavra duran te o almoço inteiro), eu acom panhava tudo, discutia política. A certa altura, já t ínham os virado udenistas [partidários da União Democrática N acional], depois socialistas, e no final do colégio eu já tinha, como

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Riiy Fausto : "M a s d igam os q u e o m eu o b je to filosófico é a d ia lé tica , e dela eu tiro a idéia de crítica . Está no c en tro da m inha reflexão a n o ção de in terversão , a d o m ov im en to de um a coisa que passa no seu co n trá rio ; é um a categoria crítica essencial, inclusive na p o lítica” .

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dizia o poeta Luis A ranha, “o hvro bolchevique em espanhol debaixo do travessei­r o ” . () meu irmão Boris, qua tro anos mais velho, exercia m uita influência. Teve um peso excessivo, que foi negativo, em bora , por ou tro lado, tenha a judado a abrir caminhos. M eu ou tro irmão, o que virou (grande) cientista, era a vítima: segundo a ideologia familiar, ele tinha “cabeça d u r a ” ...

Bom, o fato é que, me interessando por política e marxism o, eu hesitava en ­tre filosofia e história, e acabei o p ta n d o por filosofia. M as na faculdade foi meio com plicado, porque o curso não era bom , a gente não recebia um a boa formação, e ainda havia uma certa ambigüidade nos meus interesses, que me fazia ser meio marginal: diferentemente de alguns dos meus colegas, com o o Bento Prado, eu não era filósofo desde os dezesseis; t inha um interesse específico pela dialética, ia ler o Anti-Dühring, ia em busca do fundamento da política.. .. Digamos que de certo modo fiquei m aduro — m aduro muito ã minha maneira — para a política muito cedo, tinha a mania de escrever artigos gauchistas, e bem ou mal adquirira uma certa o r ­ganização nesse terreno. Já o universo da filosofia era um a espécie de caos, uma salada enorme: eu não sabia bem para onde ir, havia, com o disse, uma série de razões pessoais; segundo filho, mãe m orta quando eu ainda não tinha 4 anos, pai imigrante, fomos todos viver junto com meus tios num a casa m uito grande, tudo um pouco agitado demais, e assim por diante.

E quais as influências que o marcaram na Faculdade de Filosofia?Bem, o Lívio Teixeira era um bom professor de história da filosofia, mas era meio pesado. E eu não gostava demais da história da filosofia. Nessa época eu tendia para um certo positivismo, e era m arxista. Gostava de ler história da ciência. Já o Cruz C'osta — me tra tava muito bem, eu simpatizava com ele— era um personagem in ­teressante, mas não se aprendia m uito com ele. Agora, os dois facilitavam m uito as coisas para a gente, eram um a espécie de an tim andar ins cujo único defeito era dar- nos responsabilidade demais. Fora eles, fui aluno do A ntonio Cândido, du ran te seis meses, num curso de sociologia, que era interessante, mas in trodutório . T am bém fui a luno da Gilda de Mello e Souza, que fazia o que se cham ava en tão de estética sociológica, e foi algo que estudei com interesse, mas tam bém só foram seis meses. Encontrei de novo o Dante, que era um sujeito simpático, mas a cham ada psicolo­gia diferencial não só t inha pouco a ver com filosofia (o que não era grave), mas não me interessava muito.

£ colegas?Ah, não havia quase nada: as classes eram m uito amorfas. Elas t inham sempre um ou dois “geniozinhos” que prom etiam um grande futuro, e o resto era um a massa am orfa. .Mas, voltando aos professores, aí vieram os franceses: eu já não era a lu ­no, mas assistia às aulas deles. Q u an d o ainda era aluno, apareceu o [Ciaudej Lefort, dando aula no terceiro ano de sociologia, e, com o ele era ex-trotskista, houve dis­cussões m uito interessantes. O Lefort não me converteu — isto é, não me “ des- conve r teu” — nem me convenceu, mas foi um con ta to bom . Depois apareceu o [Gilles-Gaston] Granger. M as a verdade é que a minha ligação com a filosofia es­tava muito verde, eu não sabia muito bem para onde ir, e levei muito tem po para

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encon trar um certo estilo, um caminho. AHás, tenho a impressão de que continuo procurando! | risos]

M as nessa época da faculdade nós viramos militantes trotskistas. Nos anos 50, Tro tsky era considerado um policial a serviço da Gestapo, e ser trotskista sig­nificava — de fato — en tra r para uma seita. Então eu andei pelo movim ento t ro ­tskista alguns anos. Fui “en tr is ta” na Juventude C om unista (não porque me tives­se infiltrado, mas porque me convidaram a entrar) e isso quase me enlouqueceu. Para um m enino de 19 anos, frágil, com problem as familiares, aqueles coisas m a­lucas não eram fáceis. H ouve até alguém de fora do meio universitário que morreu num acidente de automóvel suspeito, o que significa que eu corria riscos.

Mas aí veio a bolsa e eu fui para a França, onde, quando começava a o rgani­zar a minha vida, fiquei doente.

Em que ano?Fui para a França em novem bro de 1960. Antes disso, ensinara no interior, na re- cém -inaugurada Faculdade de Rio C laro (futuro campus da Unesp). T inha com e­çado a t raba lhar na USP com o ajudante do Cruz Costa (sem ganhar nada), e de­pois, indicado pelo D ante M oreira Leite, dei aula no Mackenzie, na escola em que eu tinha estudado. Isso foi difícil: ia dar aula com um medo louco, organizava as aulas com dificuldade, mas fui fazendo. Depois me convidaram para ensinar em Rio Claro, e eu passava de menino que terminou os estudos a professor titular, ganhando um muito bom salário. Aliás, qu an d o meu pai viu o que estava dando aquela p ro ­fissão m aldita (na realidade ele nunca foi contra , m uito pelo contrá rio , mas tinha medo que eu passasse fome), ficou encantado, usando uma de suas expressões p re­feridas (que, não sabia, devia ser corrente nos anos 20, porque a encontrei no M ário de Andrade): “ Isso é um a m in a !” . Imaginem o velho: um pequeno com erciante sempre preocupado , t raba lhando com o um burro , viajando — ele era comerciante de café — , enfim um pequeno capitalista. De repente o filho, que escolhera uma profissão de pobre, e de quem se dizia: “ Ele vai ser professor, mas depois de ser professor vai ser o q uê?” , conseguia esse bom emprego!

Bem, depois disso, eu fui para a França, e lá, em Rennes, encontrei o [Victor] Goldschmidt, o G ranger (estava lá tam bém o meu colega |O sw ald o | Porchat). Fi­quei m uito anim ado. M as o clima — no sentido geográfico — era m uito ruim, eu tinha saído daqui no verão para encontrar o inverno úmido da Bretanha, comia sem­pre no restaurante universitário, bara to , mas péssimo — em bora tivesse um dinhei- rinho, queria guardá-lo para viajar, com o todo estudante no exterior. Só que tive azar: fui para r no hospital com uma infecção pu lm onar , e os médicos considera­ram a hipótese de que fosse câncer. Tive que fazer muita radioscopia, e acabei pas­sando quaren ta dias no hospital (muito bem tra tado , com as despesas pagas pela cidade de Rennes). Resisti com muita força, até passar o perigo (quando ficou cla­ro que t inha uma infecção, aliás não m uito bem identificada). M as depois que pas­sou o perigo, baqueei, e levei anos para me refazer. O golpe fora muito forte para quem ainda era muito frágil. Depois que tive alta, ninguém sabia dizer exatam ente que doença eu tivera. De minha parte , fiquei entre a pleurice (no primeiro inverno tive até que voltar ao hospital porque ocorrera um derram e na pleura), o medo do

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câncer, e tam bém o medo da leucemia (no m om en to mesmo em que saí do hospital com eçou a cam panha contra as radioscopias, cuja periculosidade se descobriu).

Depois disso, fui para r na Alem anha, para es tudar alemão. Fiz um curso no Instituto Goethe, fui f icando mais an im ado, e depois voltei para o Brasil: vim para o D epartam en to [de Filosofia da USP], e aí não foi fácil: havia com petição, eu ti­nha um problem a muito grande com o Giannotti . N ão sei se devo en tra r aqui em detalhes sobre essas histórias, mas foi um m om en to muito difícil. Acho que ele tem um estilo muito violento, ele praticava o que hoje se chama na França de harcèlement moral, a perseguição aos mais frágeis (como assinala um livro recente sobre o as­sunto , as vítimas são frágeis sob certos aspectos, mas em geral superiores moral ou intelectualmente, ou as duas coisas, aos seus algozes). N a época nem o nom e da coisa existia, as vítimas eram sem mais culpabilizadas e taxadas de loucos, ressen­tidos ou masoquistas. Fíavia o mito terrível — e falso — da simetria entre o per­verso e a sua vítima (mito que tam bém a psicanálise alimentou). Eu acabei me sa­fando, mas poderia ter sido destru ído nessa brincadeira. — Aí veio o primeiro gol­pe [em 1964], e fui me m etendo de novo em política, mas desta vez com m aior dis­tância (porém os riscos, agora , eram m uito maiores). Em 1968, atuei m uito no ní­vel da Faculdade, mas não me liguei a nenhum grupo oficialmente. Assim mesmo corri m uito risco, mas poderia ter corr ido mais. E ntão aquela doença me teria sal­vo a vida, porque, apesar de tudo , passei a ser um pouco mais prudente depois dela.

£ a experiência da revista T eoria e Prática?É verdade, houve essa experiência, que inventamos, o Roberto [Schwarz], a Lourdes [Sola] — m inha ex-mulher — , o Sérgio Ferro, o João Q uartim [de Moraes[ e mais alguns. Foi interessante: a gente participou daquela coisa toda , mas era um univer­so m uito louco, que foi l iquidado pelas brigas da esquerda, ã direita bas tando de­pois dar o golpe de misericórdia. N a Teoria e Prática, acho que o único que não estava ligado a nenhum grupo a rm ad o era eu, que tinha m edo e disse que não ia me ligar. Já eles, desviavam dinheiro da revista para a luta arm ada , o que era um a besteira total. Com eçaram a se digladiar lá dentro , e com isto praticam ente liqui­d aram a revista. Q u a n d o a direita veio com o Ato Institucional, ela deu apenas o tiro de misericórdia (parece que houve até discurso con tra a revista na C âm ara Federal). M as a experiência foi, apesar de tudo , interessante, em bora m uito cansa­tiva. Lá eu pude escrever algumas coisas polêmicas, e um primeiro texto teórico sobre M a rx (texto que ficou nas provas do q u a r to núm ero ab o r ta d o da revista).

Como você avalia a interpretação que o Paulo Arantes fez do seu tra­balho na década de 1960?

Eu não me lembro muito bem, mas acho que não estava errado. Basicamente, o que aconteceu foi o seguinte: no meu fio de reflexões sobre o m arx ism o, eu me p reo­cupei sempre, desde os 18 anos, com problem as de fundam entação. Era a coisa da relação entre m oral e política, do fundam ento da ação (porque participar?) etc. Eu tinha chegado a um esquema em que o socialismo, e tam bém todos os valores, es­tavam lá, mas não eram o fundam ento , ficavam no horizonte — resposta expressa em estilo meio husserliano. Era um bom esquema, mais ou menos corre to (banal

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se mal e laborado, mas contendo virtualmente coisa interessante). M as, ao mesmo tem po, eu tinha um a temática errada , ou form ulada de m aneira muito tosca, cm que o mar.xismo aparecia com o sendo antifilosófico. (Ele o é de fato, mas num sen­tido muito mais complicado.) M as a partir daí fui a b a n d o n an d o essa preocupação estéril de saber se o m arxism o é ou não filosofia, e fui desenvolvendo ou tro esque­ma. Lendo Hegel, descobri que aquela história de horizonte poderia ser desenvol­vida com mais rigor.

Você consegue datar?Acho que o primeiro texto em que o novo esquema aparece é um texto de 1973 que escrevi na Europa. Com a repressão fora obrigado a sair do país, indo primeiro para o Uruguai, depois para o Chile. N o Chile, eu já tinha esse novo esquema, pois lembro- me de um a conferência de 1971 em que ele aparecia. Havia diferenças em relação ao artigo de 1968, que sairia no quar to núm ero da Teoria e Prática. Em bora haja tam bém uma certa continuidade entre os dois m om entos, nesse artigo a m ontagem era mais a antiga, a do horizonte. T inha alguma dialética, mas pouca. N o Chile, eu me lembro, o esquema dialético era bom. Aliás, freqüentemente, meu discurso falado era melhor do que o escrito. Porém a dialética apareceu na época em que dei um curso sobre a Fenomenologia \do Espirito]-, de repente me dei conta de onde a d ia ­lética se encaixava, e comecei a traduzir a antiga forma num a linguagem dialética.

D o pon to de vista político, continuava , nessa época, trotskista simpatizante, mas tinha me afastado um pouco da política, desde qu an d o fôra para Rio Claro. N o fim dos anos 60 sofrêramos o impacto cubano; em bora Tro tsky continuasse sendo uma referência, o nosso m arx ism o ganhou outras características. E depois, já nos anos 70, tomei mais distância ainda do tro tskism o, que cada vez mais eu achava sectário, mas comecei a me ap rox im ar do leninismo! — pior a em enda do que o soneto — acreditava que neste havia mais jogo de c in tura (o que dentro da política m arxista era verdade). Se eu pegasse hoje os meus artigos políticos da épo ­ca, não sei se ainda fariam sentido, mas os artigos teóricos, mais técnicos, já com e­çavam a apresentar uma posição coerente — mutatis mutandis — com o que pen­so até hoje. P ortan to posso dizer que comecei a fazer coisas válidas do pon to de vista teórico no final dos anos 60, já com mais de 35 anos. Antes disso, eu tinha uma imensa dificuldade para escrever: não saia nada bom, a não ser excepcional­mente um a resenha.

Portanto a descoberta do Flegel foi um marco?-Ah, sim! C om o desde cedo o meu negócio era a filosofia marxista , e o meu interes­se era o fundam ento ou o não-fundam ento , Hegel era a referência necessária. En­tão peguei a Lógica, naquela tradução horrível do Jankélévitch pai — com o todo m undo, eu era obrigado a saber ler francês — , e me punha a lê-la nos sofás da bi­blioteca da Faculdade de Direito. N ã o entendia nada , mas fiquei encantado! Lera um livro do Caio Prado Jr., A dialética do conhecimento, que é uma coisa muito, muito ruim, mas com o me faltava toda base, fiquei im pressionado com aquela his­tória absurda de que a lógica de Hegel era um a lógica psicológica! Enfim, o fato é que eu tinha uma verdadeira fascinação por Hegel aos 18 anos. Depois, q u an d o eu

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voltei da França, comecei a fazer leituras da Fenomenologia com os a lunos e, ap e ­sar de não saber bem para onde ir, as coisas foram se juntando. Por um lado, isso foi ótimo, porque adquiri uma problemática própria, mas ao mesmo tempo era meio esterilizante, porque ficava grudado naquilo e me tornava presa fácil na com peti­ção universitária.

M as aí veio o A to Institucional de fins de 1968, e tive de ir em bora . Fui para o Uruguai, do Uruguai queria ir para a França, mas fui para o Chile, onde virei professor da Universidade Católica — em prego que o Ernani Fiori, pai da Otília Fiori Arantes, me arran jou . A faculdade não era boa, mas foi uma experiência in­teressante.

Você ficou quanto tempo láf Fiquei de 1969 a 1971, dois anos e meio — saí um ano antes do golpe. Lá tentei fazer um traba lho bom , repetindo o nosso traba lho daqui, de trazer os franceses. E consegui: foram ao Chile o Alain Grosrichard, a Claude Imbert, o [Gerard] Lebrun. Aí, ahás por insistência do Lebrun, resolvi voltar à França, e cont inuar a tese que eu tinha com eçado no início dos anos 60. Fui de navio, porque tinha muito medo de avião (ainda tenho, mas menos; esse medo me levou aliás a conhecer muitos lu­gares na América espanhola). N a França, não tinha em prego nem bolsa, mas com o d ispunha de algumas reservas, fui ficando. M as tinha de voltar ao Chile, onde era professor. Consegui p ro longar um pouco a estada, graças a algumas centenas de dólares que tomei em prestado de meu irm ão biólogo que vive nos Estados Unidos. Aí veio o golpe no Chile. M uito felizmente, a minha volta ao Chile só estava p ro ­g ram ada para uns cinco meses depois. Fiquei na França sem emprego, sem bolsa, sem nada. Acabei a r ran jando um a coisinha em Paris VIIL que então era Vincennes, e fui fazendo carreira lá: comecei a escrever e publicar, passei minha primeira tese (em Paris 1). A viagem ã Europa acelerou o final de um casam ento que já estava te rm inando; aos poucos, as coisas en tra ram nos eixos. Havia ainda alguns proble­mas, um resto de problem as de com petição com alguns personagens que aparece­ram por lá, mas não vou en trar aqui nesses detalhes.

£ como você se inseriu no panorama do debate francês da década de 1970í Bem, o debate nosso com os franceses se inicia com a história do Althusser, que no começo dos anos 60 começara a publicar os seus artigos — épi)ca em que, com o disse, estava na França, onde estava tam bém o Michael Lòwy (um dia ele o rgani­zou até uma conversa de nós dois com Althusser). E o althusserismo me serviu muito bem com o objeto da crítica: de um certo m odo, avancei em matéria de dialética, com o muitos de nós, fazendo críticas ao Althusser, cujo pensam ento , em bora n o ­toriam ente errado , era bem articulado. E, com o as críticas que se faziam no rm al­mente eram muito ruins, aparecia com o um desafio criticar direito. Essa foi a nos­sa formação: o discurso do entendim ento , contra o qual escrevíamos, nos prestou um serviço. O que sobrou do althusserismo foi muito pouco; o fato é que, a meu ver, a melhor crítica do althusserismo foi a nossa, aqui no Brasil. Até onde eu co ­nheço, não há país nenhum que tenha feito melhor — algo de que os franceses não têm consciência.

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o “nosso” a i se refere a você e a quem mais?Bem, teve muita gente boa que contribuiu: filósofos, economistas etc. N ão existe um a unidade, mas houve todo um m ovim ento com um. E, sem falsa modéstia, acho que acertamos. M as ao mesmo tem po é preciso reiativizar a im portância disso: c um negócio lógico, não sei se vai muito longe. É muito bom a gente ter um cam po limitado de problemas, enfrentá-los e dar soluções, mas não adianta achar que com abstrações objetivas etc. vai-se resolver problem as substantivos. Ao topa r com o althusserismo, que tem Espinosa e Lacan no meio, nós en fren tam os uma forma complicada de estruturalismo, o que foi importante. O Paulo Arantes até fala, talvez exagerando um pouco, que foi no m om ento da discussão com o Rancière que se inverteu a nossa relação com os franceses, a partir daí teríamos com eçado a discu­tir com eles, em vez de apenas dizer amém. E, de fato, nisso a gente era mais forte.

Mas, voltando à França em 1972, quando cheguei lá, não tinha uma tese p ron­ta. Fiquei jun tando papéis, tinha papéis por todos os lados, não fechava nada, não sabia com o ia fechar, a m inha vida intelectual era um caos, mas já existia. De certo m odo, nunca fiz tese: fiz trabalhos, um m onte de trabalhos. Nessa época, conde­nado a ficar na França por causa do golpe no Chile, me d ispunha a t raba lhar num hotel, onde estava hospedado — em férias — o meu irmão “am ericano” , e ele dis­se: “ Se você vai arran ja r em prego aqui, deixa eu ir e m b o ra ” . M as nesse m om ento o meu amigo Michael Lõwy, que estava em Paris VIIL me informou que estavam oferecendo um dinheiro filantrópico aos exilados chilenos, por um ano, em socio­logia. “ Você quer que eu ponha teu nom e aí no m eio?” Eu disse: “Põe a í” . E entrei num esquema desse tipo. Depois, consegui passar para a filosofia, os ou tros foram cada um para um lado. Mais tarde defendi minha tese em Paris I.

M as só em 1988 eu passaria a tese grande, tam bém com o Desanti, e de novo em Paris L .Vlais tarde fui qualificado e nom eado maître de conférences, em Paris VIII*. Recentemente consegui ser qualificado para um cargo de professor “A ” , coisa m uito difícil, principalmente para quem nasceu no estrangeiro. Só que eu tenho de prestar concurso, e sou malvisto no meu D epartam ento de Paris VIII, porque, de­pois de com eçar a ser aceito pelo establishment, topei uma briga com o gauchismo, com o carreirismo da direção do D epartam ento , e fui dizendo o que pensava d a ­quilo. M e indispus com um monte de gente (detalhe, essa gente é em geral cooptada pela direção). Bem, o fato é que agora devo prestar concurso, em junho de 2000, e provavelmente eles vão me co r ta r a cabeça, em bora eu seja o candida to natural.

Desde o princípio, eu fui refratário ao gauchismo francês universitário, a essa coisa do Nietzsche ícone, a essa história de filosofia antinormalizadora . T udo isso é um a ilusão. É claro que há muitos nietzscheanos inteligentes, que o Nietzsche não foi nazista .. . , mas nunca tive afinidade com essa gente. Fiquei fazendo meu tra b a ­lho: dando minhas aulas, es tudando M arx e Hegel, fazendo história da filosofia com os alunos, e ao mesmo tem po pensando os meus problemas. Isso tam bém me dei­xou queim ado no D epartam ento , porque eu fiquei conhecido com o historiador da filosofia — coisa que por sinal não sou — , e alguns deles consideram fazer história da filosofia uma coisa mais ou menos suspeita .. . Eles são “gente para a frente” , não fazem história da filosofia. A minha situação se to rnou quase insustentável lá den­tro, quando comecei a dizer o que pensava daquilo. Lá há um pessoal de 68 que entrou

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só porque era maoísta, gente que não tem nenhum a competência em filosofia. E existe a demagogia de que isso é “ livre” , “específico” , “não normalizado” . Entendem? Estou até p reparando um livrinho sobre isso tudo , que só na pior das hipóteses será mero acerto de contas, na melhor, microssociologia crítica. Vamos ver no que vai dar.

H ouve manifestos contra mim por parte do secretário, cartões de semi-amea- ça na saída das aulas, acabei sendo candida to (kamikaze) a diretor, e me envolvi cada vez mais nessa guerra, que é uma guerra m uito mais con tra o carreirismo do que contra qualquer outra coisa, mas muitos trotskistas boicotaram as minhas aulas por eu não ser considerado “politicamente seguro” ... Enfim, aprendi um pouquinho! Aprendi principalmente o grau agudo de decomposição de uma certa extrem a es­querda. Aliás, diga-se de passagem que a gente, aqui no Brasil, com eteu muitos e r­ros em 1968, mas nunca fizemos o que eles fizeram lá, com o, por exemplo, colocar ativistas na universidade, achando que isso é positivo. Apesar de ter havido gente boa por lá (gente de quem discordo, e que é objetivamente responsável pelo que aconteceu — mas não subjetivamente — [François] Chãtelet, |Gilles| Deleuze, [Jean- François] Lyotard), o fato é que eles en tra ram nessa de criticar cegamente a idéia de competência, de ir sem mais con tra toda sorte de establishment, deixando en ­tra r lá den tro todo tipo de gente. Eu digo a vocês: aqui eu tive de enfrentar muita com petição, a barra era m uito pesada, muito pesada mesmo, mas havia um fio que ligava a certas exigências de nível. E nquan to lá, no melhor dos casos, o nível é in­diferente para eles, e m uitas vezes quem tem bom nível é suspeito, é acusado de “produ tiv ism o” ... São m ovim entos de m icroburocracias locais apoiadas em gau ­chistas ou ex-gauchistas — com pro longam entos internacionais — , mas que não têm nada ou têm pouco a ver com o capital, nem com a social-democracia, nem estritamente com o “ sta lin ism o” (digo isso porque uma certa esquerda só conhece esses três fantasmas, a partir do que todos os “e r ro s” podem ser explicados, e fora do que tudo na esquerda seria um a maravilha); são m ovim entos de defesa de inte­resses burocrático-populistas, em nom e de uma pseudo-luta contra a “ norm aliza­ç ã o ” . Um ou tro erro com um e perigoso é supor que essas coisas não têm im por­tância. Elas são muito mais importantes do que se supõe. Espero desmistificar tudo isso em detalhe, em ou tro lugar.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­lações entre a filosofia e a cultura brasileira?

É complicado! Eu acho que ela praticam ente não existia até os anos 60: t ínhamos as velhas gerações com alguns sujeitos inteligentes, mas era m uito pouco. Depois houve um formidável crescimento: um país em que quase não havia filósofos, tem hoje não sei quantos filósofos capazes, no sentido de profissionais da filosofia. Deve ter uns duzentos, trezentos, o que é um salto incrível. É m uito menos do que tem um país com o a França, onde deve haver alguns milhares de professores de filoso­fia competentes, mas os melhores daqui não são piores do que os de lá, e isso é for­midável. Agora, resta saber o que tal coisa significa pa ra o país, o que é um pouco difícil de julgar para quem está fora. Isso já representou algum papel, e poderá re­presentar mais no futuro. M as há uma distância entre a seriedade universitária e a participação na vida do país; a partic ipação não se faz facilmente.

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Acho que deveria haver uma dupla formação. A gente tem esse D epa r tam en­to, excelente, e eu espero que ele dure, mesmo não tendo recursos e es tando num a situação terrível — não sei há quantos anos não con tra ta ninguém. Q uer dizer, a primeira coisa a exigir desse governo é que garan ta a universidade, que as univer­sidades sérias existam; isso é um mínimo. E não é pouca coisa: uma universidade cujos depar tam en tos não são piores do que um bom depar tam en to europeu. M as a meu ver deveria ser garantida uma dupla form ação, porque os filósofos ap ren ­dem a pensar, ier etc. etc., mas não têm um objeto. Eles podem fazer história da filosofia, mas deveriam ter um objeto. Ainda que queiram ser filósofos, precisam de uma ou tra formação. O ideal seria filosofia e mais qualquer coisa: pode ser filo­sofia e arte, filosofia e física etc. E, no entanto , atualmente é impossível a gente fazer dois cursos na USP: você é obrigado a fazer um curso fora. Os filósofos pensam muito melhor do que os outros, mas sabem pouco; eles têm dificuldade para se mover em matéria de história, por exemplo. E isso vale para o professor, tam bém . Vem o pessoal de fora do D epartam en to de Filosofia, m uito mais inform ado, e fica visí­vel, conversando com eles, que é preciso cruzar as duas coisas. Sem isso, torna-se difícil partic ipar da vida do país, da cultura do país; eles serão apenas especialistas.

Cruzar também com a ecommtia?O u com a economia, ou com a história, ou com a arte. Dá para cruzar com pra t i ­camente tudo; não tem coisa que você não cruze com filosofia. Parece que há hoje alguns projetos de duplo currículo; isto seria essencial, para a gente evitar o tipo de form ação francesa, em que o sujeito é m uito bom técnico em filosofia, mas, q u a n ­do se mete a falar de ou tras coisas, em geral o resultado não é bom , pois não se formou bem — salvo alguns casos isolados. Creio que o modelo alemão, em que você tem de fazer duas formações, é melhor. É claro que aí depende m uito dos a lu ­nos: num a turm a fraca, não se chega a lugar algum, porque não se sabe nem filo­sofia nem coisa alguma; já para os bons é ex traord inário . Isto é uma espécie de condição para os filósofos não virarem meros técnicos do pensamento , gente que pensa com o ninguém, que sabe ler com o ninguém, mas que só faz isso. Eu franca­mente não tenho um entusiasmo excessivo com a história da filosofia; tem que entrar e sair dela. Mas, enfim, trata-se de uma opção.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como mais represett-tativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contassecomo ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

Bom, o meu objeto é a dialética. Trabalhei M a rx , Hegel, [Theodor W.] A dorno, e atualm ente , se tivesse tem po, traba lharia mais a fundo a filosofia antiga — fiz um esforço para aprender um pouco de grego. M as digamos que o meu objeto filosó­fico é a dialética, e dela eu tiro a idéia de crítica. Está no centro da minha reflexão a noção de interversão, a do movim ento de um a coisa que passa no seu contrário: é uma categoria crítica essencial, inclusive na política. U ltim amente estou m uito dom inado pela idéia das extremas esquerdas que se intervertem em extremas direi­tas. .Adorno sabe disso. N o século XX, eu não vejo quem saiba além do .Adorno; fWalterI Benjamin não sabia, [Georg] I.ukács tam bém não sabia direito.

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Enfim, o meu objeto é sobretudo a dialética, e isto implica um interesse grande por lógica, no sentido da herança do idealismo alemão. Tenho inclusive projetos para fazer coisas em lógica, porém estão sempre dependendo de traba lhar muito mais a lógica formal. Aliás, para desenvolver os meus projetos vou ter que limitar os cursos, e neste sentido me aposentar é uma boa coisa^. Talvez a minha degola na universidade tenha o papel de liberar tempo. Porque não dá para trabalhar dando aula o ano inteiro.

Por ou tro lado eu tenho interesse tam bém por política — política no sentido mais amplo, que abrange filosofia da história, filosofia política, ética etc. O subtí tu ­lo da minha primeira série de livros — lógica e politica — , em bora só corresponda em parte ao que apresentei até aqui, dá conta do meu projeto, no sentido de que eu funciono da lógica para a política, nesse cam inho encon trando a história da filoso­fia, ou a filosofia geral. A estética ficou um pouco para trás, mas acho que ela é muito importante. Eu tenho bastante interesse por arte, mas esse é um aspecto que de certo m odo pus entre parênteses e tento ver o que dá para fazer. M esm o porque, na m e­dida em que estudei muito a tradição do marxismo, preciso levar em conta a estéti­ca, pois o m arxism o que deu certo no século XX é o m arxism o dos estetas, por ra ­zões que a gente teria de estudar. Deu certo onde menos se poderia imaginar: enquanto os fundadores não entendiam nada disso, ou muito pouco, de repente sai um Ben­jamin, um Adorno, um Lukács.

A sua obra está inextrincavelmente ligada ao pensamento de Marx. É nesse contexto que você muitas vezes define o seu projeto teórico como um projeto de “reconstituição do sentido da dialética”. O que você entende por essa expressão e como ela se ligaria à idéia de uma lógica dialética, que está presente no subtítulo do seu livro Sobre o conceito de capital: idéia de um a lógica dialética?

Primeiro observo: você falou em obra. N ão tenho obra (feita). Só “o b ra ” , em devir.Bom, eu diria hoje que a lógica dialética é apenas uma parte do que eu estava

fazendo, um pedaço. Essa reconstituição da dialética é apenas um aspecto do p ro ­jeto que vai dar nos tais quatro tomos. O terceiro já está praticam ente p ronto , mas vou ter que costurar um pouco, porque tem tam bém a série que eu comecei sobre a dialética marxista e a dialética hegeliana, que é a mesma coisa de um ou tro jeito; no final serão umas duas mil páginas distribuídas nuns seis livros. Porém o meu projeto não é só esse. Estou muito interessado (ou apenas agora os assumi de uma maneira direta) pelos problemas de filosofia política e de filosofia da história. Quero saber o que aconteceu do século XVIII até hoje, estou lendo tudo o que posso ler da Revolução Francesa para cá, mas com um interesse essencialmente político, e não filosófico. O meu objeto principal aí é a teoria social, é a história — saber o que quer dizer essa história. Vou levar adiante os dois projetos. O lado político estava m uito pequeno e eu preciso desenvolvê-lo melhor. Fiz esse livrinho de lógica e teo ­ria da dialética, mas para dar um salto tem muito t raba lho a fazer. Sc eu viver uns bons anos, quem sabe faço tudo isso! -Mas agora estou mais concentrado no ou tro projeto, estou tom ando um banho de história. Acabei de fazer uma conferência sobre totalitarismo, e vai sair tam bém um texto, que para um filósofo que não sabia nada de história talvez não seja muito mau.

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E o Brasil no seu trabalho?O Brasil está longe, m uito longe! Para chegar até o Brasil há muita coisa pelo meio. T enho a impressão de que não vou chegar lá. £u estou muito voltado para a histó­ria geral con tem porânea para os m onstros do século XX, estou muito interessado nessa coisa do com unism o, que sempre me interessou, e agora no nazismo. De um m odo geral, quero pensar o sentido das formas sociais do século. Acho que a es­querda vive num a confusão total, num a verdadeira salada. U ma parte dela em b ar­ca na canoa da direita, sendo o caso [Fernando Henrique] C ardoso bem típico: é um a coisa errada fazer as alianças que fez. Espero que uma parte desses que en tra­ram nessa canoa se tenha dado conta do que é isso. Eu, felizmente, não entrei nes­sa canoa de jeito nenhum , m esm o porque conheço o hom em e sabia mais ou m e­nos aonde ia dar essa sua Realpolitik. O ou tro risco é da extrema esquerda, risco real de cair num regime totalitário. Enfim, pensar as referências da esquerda é u r ­gente, e essencial para todo m undo , para que se possa fazer um a crítica consistente do neoliberalismo. .Alguns fazem essa crítica, mas as referências de leitura — aqu i­lo a partir de que se julga — m esm o entre os melhores, não são a meu ver, suficien­temente criticadas. Eu penso nos meus amigos: o meu amigo [Roberto) Schvvarz, o meu amigo Paulo Arantes. São amigos que fazem coisas muito boas, mas em geral eles pensam a partir do M arx , de maneira crítica sem dúvida, mas não suficiente­mente crítica.

H á dois perigos: a direita ganhar e a esquerda (atual) ganhar. São dois peri­gos reais: se a esquerda ganhar tal com o ela se encontra , não sei o que pode ocor­rer. Q uer dizer, eu acho que tem que haver uma grande reflexão sobre o que é a esquerda, senão a gente não sai dessa massa confusa de marxismo, bolchevismo e alguns elementos de stalinismo que serve com o evidência para a esquerda. Amigos meus, com o pude perceber num a conversa com o Arantes ou tro dia, tendem a d i­zer (ecleticamente) que a gente tira de uns e de ou tros (digo, em geral) as coisas que interessam para o Brasil. O ra , esta não é a solução. Tem que se pensar claro e sa­ber bem o que a gente quer, senão isso acaba dan d o num a espécie de lógica de ativista, q u an d o a nossa função, a função do intelectual, seria exa tam ente repen­sar. Então estou ten tando repensar a história do socialismo, repensar criticamente essa história, tom ar posição diante de problem as do início do século para refletir sobre o que se tem hoje. O que a gente vai fazer? Vai apoiar o alto com ando ale­mão? Vai ser derrotista? Resolver todas essas questões é essencial.

Está falando da primeira guerra?Sim, da primeira guerra. É essencial saber o que é tudo isso. O “ renegado [Karl] K au tsky” era renegado mesmo? O que era exa tam ente o bolchevismo? E assim por diante. Eu fiz conferências no Rio de Janeiro e em Curitiba e fiquei um pouco as­sustado com o público: o do Paraná, por exemplo, parecia muito influenciado pe­las coisas do Robert Kurz, que eu acho horríveis, desastrosas. T udo bem; vamos traduzir e publicar o Kurz. M as é uma confusão que se junta ã confusão geral, e o resultado é péssimo. A esquerda tem grandes possibilidades neste país, tem gente muito boa, mas é preciso levar a sério (isto é, sentir um frio na espinha) quando entre os m em bros da coligação de esquerda tem gente que fala bem da China e diz

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que o Tibet é p rovocação imperialista . C om relação aos problem as da Europa, não se sabe nada; há um esquematism o total em relação a eles, inclusive por falta de informação. Este, aliás, é tam bém um fator: o que se lê nos jornais brasileiros não basta. Se o sujeito 1er só a Folha, o Estado e o Jornal do Brasil, ele não tem elemen­tos suficientes. Enfim, acho que se teria de enfrentar esses problem as todos e não tom ar — com o até os melhores tom am — esses livros clássicos com o livros sagra­dos, com o hvros que não se tocam.

Como você articula as duas vertentes do seu trabalho?São duas coisas um pouco diferentes, e vastas demais. Evidentemente qu an d o eu me ponho a 1er o nazismo e o stalinismo, ou o que for, não fico pensando em dialética, mas a dialética aparece de repente. Tenho um m odelo de pensam ento para a polí­tica, que é muito calcado na dialética. Mas é curioso com o ela foi tra tada na t r ad i­ção política: freqüentemente se ataca a dialética, todo o m undo a critica. H annah Arendt, [Edouard] Bernstein tam bém . A dialética é a culpada de tudo. H á um m al­en tendido total.

Acho que vou acabar fazendo, se puder, um a espécie de filosofia da história, uma teoria da história. N ã o sou historiador, e nem vou ser, mas estou tom ando um banho de história. N ã o sei t raba lhar com arquivos, e acho que não é isso que gos­taria de fazer. T am bém não sou e.xatamente sociólogo. De forma que o resultado vai acabar sendo filosofia, apesar de a lógica não estar presente imediatamente.

O traba lho de e laboração da dialética exigiria uma ou tra vertente, um g ra n ­de traba lho sobre lógicos, sobre as diferentes correntes etc. Vamos ver o que dá para fazer. Eu estou com 64 anos mas em plena atividade,. Tentei até aprender russo, mas tive que parar, porque é muito. Pelo menos tenho mais ou menos claros os objetivos, e estou contente em ter dado essa virada, porque, em bora a elaboração lógica seja boa, estava sacrificando muito um aspecto pelo qual eu tenho um g ran ­de interesse, e sobre o qual só ia 1er na hora de folga. A dificuldade em enfrentar esses problemas de crítica política me a trapalhava um pouco as leituras: se você não se dispuser a fazer a crítica, se não tiver algumas idéias críticas, você não vai reler M arx , e menos ainda Lênin (que é outra coisa). M as é preciso 1er. Ler um livro como o Renegado Kautsky, por exemplo, que mostra — sem querer — a ideologia de uma sociedade totalitária nascente, a sociedade burocrática. É o que tenho feito: estou relendo o Lefort, que conheço há muito tempo; relendo [Cornélius] Castoriadis. A H annah Arendt estou em parte lendo, em parte relendo — já que esses livros que falam de to talitarismo, em geral a gente não tocava; e estou lendo historiadores, uma gente interessantíssima que se conhece pouco, e cuja leitura é urgente. É claro que em relação a todos eles eu m an tenho um a postura crítica, mas uso-a com m ui­ta prudência, porque conheço pouco o terreno.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela sedá na atualidade?

Para mim tal relação é estreita: eu en tro e saio da filosofia, nunca sei se estou den ­tro ou se estou fora, e acho que isto é essencial, pois se tivesse virado historiador,

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teria perdido muita coisa. Ao mesmo tem po o que faço não é nunca, d igamos, filo­sofia “ p u r a ” . Em bora passe por aí, com o num a espécie de dialética negativa, estou sempre no limite, no limite da teoria social, no limite da história, no limite da p ró ­pria filosofia. Agora, um a ou tra coisa, na qual estou a trasado mas que é essencial, mais essencial até que a estética, é a psicanálise. É algo em que investi pouco e que me faz falta, pois para pensar essas coisas todas, para enfrentar os problem as do indivíduo, que são inevitáveis, é necessário traba lhar com um certo núm ero de ca­tegorias psicológicas ou psicanalíticas, senão o esquema fica frouxo demais. É algo que ainda vou fazer, se tiver t e m p o \

Você enunciou o ideal pedagógico do filósofo ligado a pelo menos umaciência, em particular uma ciência humana. Agora a impressão que setem é a de que você quer mais do que uma ciência humana, ou de queé necessário mais do que uma ciência...

N ão , aí a ques tão é mais de ver quais as mais próximas. E certamente não é a eco­nomia. Eu me pus a fazer teoria do Capital, mas isso tem pouco a ver com econo­mia. Em economia inclusive eu estou a trasado , até porque cansei um pouco de ten­ta r es tudar econom ia, com o se fosse abso lu tam ente fundam ental . Sem dúvida é importante saber economia, mas hoje eu acho que há um pouco de mitificação dela. Afinal, tem muita coisa além — ou aquém — da economia que os filósofos poderiam aprender facilmente e que não aprendem, o que faz com que a economia acabe sendo uma barreira. Em geral a alternativa é filosofia ou economia: ou se pensa os direi­tos do hom em , a ética, a moral etc. etc., o que não deixa de ser útil, ou se pensa o capital, o movimento do capital etc. Já a política, a despeito de haver os politólogos, os cientistas políticos, fica em geral um pouco abandonada . Q u an d o o essencial, a meu ver, está justamente na política: se quisermos ob ter respostas para questões políticas, não é a filosofia que vai dar, nem a economia, mas a própria política. É preciso repensar criticamente a história política do século XX.

Você considera que de fato o século XX foi breve?Li o livro do Hobsbavvn e gostei. Agora, se foi breve? Começa em 1914 e termina na queda do muro? Acho que aí o breve é mais uma questão das referências to ­m adas pelo au tor. O im portan te , no século XX, são as novidades. H á pelo me­nos duas formas novas, monstruosas, que exigem uma teoria da história diferen­te, e que ao mesmo tempo, se não for cinismo dizê-lo, são “ boas para pensar” , na medida em que com preendê-las é um desafio que não pode ser resolvido com as teorias clássicas. C-omo pensar, por exem plo, nazismo e, na falta de um term o melhor, a sociedade burocrática? N ão dá para fazê-lo a partir do M arx , com o se quer fazer. É claro que .Marx e o m arx ism o são referências fundam entais para pensar o capitalismo, e mesmo o capitalismo de hoje, mas não é possível dizer que o marxismo é agora mais verdadeiro do que era, com o quer o meu amigo Schwarz. Ainda que de fato o capitalismo tenha adquir ido mais unidade do que tinha a n ­tes, e que, neste sentido, o esquema do M a rx apareça com o m uito rico, é igual­mente certo que apareceram coisas que o M arx não conhecia (pior que isto, que ele conhecia com o idéia, mas cuja possibilidade excluía). Eu penso até que seria

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im portan te reler a parte política do M a rx , coisa que nós aqui não fizemos, con ­cen trados que estávam os na leitura d ’0 capital: o m arxism o uspiano foi muito pouco político, e isto é algo que tem de ser corr ig ido . D os nossos am igos, o Michael Lòwy foi alguém que se dedicou a isso, mas ainda há m uito p o r fazer, e eu estou ten tando avançar nesta direção, a despeito da massa de textos: se a leitu­ra da parte lógica é intensiva, a da parte política é extensiva. M as acho que seria o caso de pegar três ou q u a t ro meses de férias e ten tar com ple tar a leitura dos quaren ta volumes do M a rx em alemão. E uma coisa que fica mais ou menos evi­dente q u an d o se faz essa leitura e o q uan to m uda a política do m arx ism o dos anos 1850 para o m arx ism o dos anos 1880 e 90 — o velho Engels tem coisas m uito boas. Apesar de haver uma ou ou tra derrapagem , o fato é que eles com eçam a pensar de um ou tro jeito, e se esboça um novo esquema em que aparece a idéia de uma passagem pacífica para o caso de um núm ero m aior de países. H á ta m ­bém a idéia de uma guerra em que as forças revolucionárias vão acabar virando a mesa, e p o r tan to uma idéia ainda voltada contra a legalidade, mas de qualquer m aneira já se percebe um novo estilo de pensam ento; um esquema que revaloriza o sufrágio universal, e no qual a famosa d itadura do p ro le tar iado é definida (por Engels) não apenas com o nascendo na república dem ocrática , mas tam bém com o tendo nesta sua forma política. (Lembre-se entre parênteses que o Lênin não con ­seguiu ler esse texto de Engels; o texto aparece escam oteado e v iolentado no Esta­do e a Revolução.) Enfim, em bora o m arx ism o possa ter todos os defeitos que a gente pode imaginar, ele é notável enquan to m om ento da história do pensam ento e da teoria social, e é certam ente uma teoria m uito menos au tori tár ia do que os esquemas socialistas mais antigos; — algo que fica claro na série de livros de D ra ­per cham ada Karl Marx's theory o f revolution, que pouca gente lê mas é funda­mental. Enquanto a tradição socialista era muito ditatorial e violenta, o m arxism o é melhor: o p róprio Manifesto já tem a au todete rm inação do pro le tariado , e o úl­t im o M arx é bem razoável. Infelizmente, porém , m esm o as m udanças no pensa­m ento m arxista não conseguiram evitar que os bolchevistas pegassem a parte pior.

M as, enfim, o fato é que passam a haver dois abismos diante do marxismo: cair no totalitarismo, que é o cam inho da extrema esquerda, ou cair na política con ­servadora, que é o cam inho de uma certa social-democracia — posições represen­tadas respectivamente pelo bolchevismo e pelo pacto de agosto de 1914 (em que são votados os créditos de guerra), duas catástrofes que passam a constituir com o que os dois pecados originais do socialismo do século XX. A partir de então, es ta­mos carregando um fardo nas costas, e enquan to não tirarm os esse peso da cabeça não conseguiremos avançar. P ortan to é preciso es tudar muito bem o bolchevismo e o stalinismo, por um lado, e a social-democracia, por ou tro . E preciso saber que não foram todos que aderiram ao pacto; saber que houve um a revolução alemã em 1918, quase desconhecida, e que foi a única revolução num país capitalista avan­çado; saber que havia um par t ido social-democrata independente — um partido imenso — nos anos 20, incluindo Kautsky, Bernstein, Rosa Luxem burgo. Enfim, há aí duas feridas, e acho que tem de se pôr o dedo nelas: a ferida de uma certa social-democracia que derrapa ã direita, da qual o caso C ardoso é ã sua maneira representativo; e a ferida da extrem a esquerda que vira extrem a direita — nos dois

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casos, po r tan to , a esquerda indo para r na direita. Além desses dois caminhos, há o do socialismo dem ocrático, que tem de ser definido, pensado.

Nesse contexto, como você avalia a idéia de uma democracia radicalno interior do Estado democrático de direito?

Eu acho que é por aí. Mas a longo prazo nós temos de pensar em enfrentar o capi­tal. \ ã o creio que se tenha de enfrentar a mercadoria ou o fato de haver mercado, incorrendo nessa espécie de “ fetichismo do fetichismo da mercadoria” em que muitos caem por falta de com preensão do que e preciso fazer (e do que significa o tema do fetichismo).

Você está pensando a í nos “seus amigos”?Sim, em parte os meus amigos. Há tam bém outros, que separo dos meus amigos. Por outro lado, não sou indulgente em relação à escorregada na canoa do cardosismo, que para mim é uma coisa lamentável, um engano terrível. O m ínimo que um su­jeito de esquerda tem de saber é que você não pode acreditar num a aliança com o .ACM. não pode aceitar esquemas de corrupção , não pode aceitar que se tolere a com pra de deputados para poder se reeleger etc. Senão está tudo perdido!

•Mas. voltando à questão da democracia radical, eu acho que a gente tem que fazer um acerto de contas com o capital, algum tipo de acerto de contas com esse mcmstro que é o capital. Apenas não sabemos ao certo, ainda, com o fazê-lo. N ão é estat izando tudo, pode haver algum sistema de cooperativas; e tam bém não é algo para am anhã . Mas, ainda que o projeto de parar o carro do capital seja um pouco utópico, é essencial pensar num a sociedade muito mais dem ocrática , com formas econômicas variadas. É preciso acabar com a idéia de fim do Estado; é preciso aca­bar com a idéia de fim da propriedade privada; mas não com a de que os meios de produção devem ser de algum m odo socializados, contro lados. Agora, realmente não podem os fazer nenhum a concessão em matéria de democracia, porque se abr ir ­mos m ão da democracia não dá para saber onde vamos parar. Afinal, qual é a li­ção do século? A lição do século é a seguinte: tentaram -se basicamente duas for­mas ditas socialistas — a chinesa e a russa — , e o resultado, em ambas, foram duas coisas: genocídio e capitalismo de volta. Se quiserem ten tar de novo algo assim, tentem: espero m orre r antes! Ainda que se alegue que eram países a trasados, nada nos leva a crer que a coisa aconteceu só porque eram países atrasados.

Por ou tro lado, é preciso sobretudo acabar com a idéia de que a história vai criar a solução. N ós não vamos fazer com o o senhor Kurz, que vai ficar esperando sentado o fim do capitalismo! M e con taram até que ele andou dizendo que o fim10 capitalismo ia acontecer no Brasil, e que então ele viria para cá acom panhar a

(. )isa de perto. E uma coisa maluca! Ele pensa que é o rei persa que vai ver a bata-11 a de Salamina! [risos) Eu não discuto a possibilidade de acontecerem catástrofes, c<_ no, por e.xemplo, uma catástrofe al im entar (aliás, não critico nesse senhor o caiástrofismo, mas a escatologia)“*. Se não houver nenhum planejamento político, nenhum a idéia política, as coisas não vão cam inhar bem. Se não houver uma es­querda capaz de responder a isso tudo , o capitalismo estoura na nossa mão; nós vamos sofrer feito cachorros, e pode vir algo ainda pior. Q uer dizer, esse provi-

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dencialismo histórico, que se reflete nos discípulos de um a maneira terrível — há muitos m eninos excelentes influenciados pelo Kurz — , simplesmente não leva a lu­gar nenhum . Aliás, tam bém não creio que as soluções do [Walter] Benjamin sejam boas, mas isto já é uma outra história.

Algumas das linhas que você apresentou pensando na possibilidade de enfrentar o capital me lembram muito o Castoriadis e A instituição im aginária da sociedade. Como você vê essas propostas hoje?

D ’i4 instituição mesma eu não gosto muito, pois acho que o Castoriadis fica pior qu an d o filosofa. M as em geral eu gosto demais do que ele faz, tenho um a dívida grande para com essa gente. A análise que ele faz da sociedade russa no famoso artigo “As relações de produção na URSS” , publicado em torno de 1948, é uma coisa genial para a época, e genial para um rapaz de vinte e poucos anos. E o mesmo vale para Lefort, de quem me ocupei recentemente num tex to para o Jornal de Resenhas. Enfim, a minha dívida para com o Castoriadis e o Lefort é m uito grande. Com es­ses dois e mais o A dorno — a política crítica dos franceses mais a teoria crítica dos alemães — pode-se ir muito longe.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como você se posiciona em relação a esse debate?

Eu pensei pouco a estética. T enho mais uma relação direta — de am ad o r ou co n ­sum idor — com a arte , principalmente com a poesia e com a música, e, num se­gundo plano, com cinema e depois com prosa de ficção. (Permito-me con tar o se­guinte, em bora seja um am ador: comecei a aprender p iano aos cinco anos, sobre­tudo improviso, e em bora não toque nada demais, pergunto se teria sobrevivido sem o piano. Q u an to à poesia, logo deve sair meu livrinho de poem as e historietas, dos quais até aqui só publiquei dois. G aran to que não é grande l i tera tura .. . N o capítulo das minhas leituras, esqueci de dizer: na adolescência, com o muitos m eni­nos da m inha geração, li a literatura infantil de M on te iro Lobato , alguns dos me­lhores romances de M a chado de Assis, e poemas, muitos poemas, principalmente D rum m ond. D rum m ond foi de certo m odo o nosso educador, o “H o m e ro ” da nossa geração.)

A idéia da desaparição da arte é uma idéia forte, mas a verdade e que deve ter havido um a m udança de registro, que se define mais negativamente. Acho que há um vazio e um esgotam ento de formas. M as o fim da arte é um a idéia-limite, ta l­vez um pouco com o o fim da história. C om relação à leitura das obras de arte, há um debate que envolve meus amigos aqui no Brasil. Desconfio um pouco da posi­ção deles, mas não porque tenha um matiz sociológico. É claro que e preciso pen­sar a arte dentro de uma história social e global, mas eu me pergunto se a mane ra pela qual se faz isto é satisfatória. Parece-me que a leitura que alguns dos melhores teóricos brasileiros da literatura ou da arte fazem da história é um pouco unilate­ral. Eles vêem a história do século XX apenas com o história do capitalismo. E eu duvido, em bora não tenha traba lhado direito o assunto, que se possa pensar a his­tória da arte ou da literatura no século X X, tendo apenas o capital com o referên­

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cia social, pois há ou tros elementos — inclusive im ediatam ente políticos e à sua maneira econômicos — envolvidos. Em geral, qu an d o se critica esse tipo de teoria literária ou artística m arxista , que no Brasil é de excelente qualidade, levantam-se aquelas banalidades de sempre: que a poesia é poesia, que sua essência não está nos elementos “ ex te rnos’" etc. Eu faria a crítica de o u tro jeito: pensando no tipo de história, inclusive história econômica e política, que eles praticam. A história do século X X teria de ser pensada de um ou tro m odo, além do que, de fato, as rela­ções entre o m acrocosm o e o microcosmo devem ser m uito mais comple.xas do que aparecem a eles. O que constitui um problem a não é que o social esteja no centro, pois quem gosta de ler .Adorno sabe que o social não é mesmo “ex te rn o ” ; o p ro ­blema está na insuficiência de uma certa m aneira de pensar o social, que se reflete no que se pensa sobre a literatura e a arte. O pon to crucial é que não é só o capital que está por trás das manifestações artísticas ou literárias do século XX, que não é só o m ovim ento do capital que as explica. N ão digo a banalidade de que há “o u ­tros fatores” , digo que o capitalismo não é a única “ in fra-estru tura” dom inante no século XX. H ouve ou tras coisas no p lano social mais profundo , que aliás tem uma relação m uito complicada com o destino do que era na origem força de luta contra o capital. A teoria literária e artística marxista brasileira, mesmo a melhor, está longe de ter desatado esse nó, que continua a es tar presente. A melodia dela insiste de­mais num a nota só; capital, capital, capital.

E hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a prímazia de que parecem des­frutar as questões morais no debate ptiblico atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

Embora haja sem dúvida um a integração econômica e política (regional ou m u n ­dial) m uito maior do que no passado, o Estado Nacional subsiste. De resto, o fim eventual do Estado Nacional não é o fim dos Estados — haveria pelo menos Esta­dos plurinacionais com o seria o caso da Europa. N a Europa, com o se sabe, há além disso um duplo m ovim ento, centrípeto e centrífugo.

.A integração no p lano mundial é econômica e política. Do ponto de vista eco­nômico, a globalização tem uma formidável força coercitiva, mas ela deixa certa margem de m anobras desde que haja vontade política. Seria preciso saber jogar de maneira ao mesmo tem po firme e flexível contra a m áquina g lobalizadora, coisa que poderia ter sido feita no Brasil, com o o reconhecem mesmo os partidários um pLuco he terodoxos do regime. Do pon to de vista político, há coisas novas, cuja imoortãncia não se poderia subestimar. Surge gradativam ente uma legalidade in­ternacional. Inútil vê-la com o simples ideologia a serviço destas ou daquelas for­ças. Houve uma primeira tentativa de organização mundial com a Sociedade das Nações, que foi praticam ente inexistente, e depois uma segunda, com a O N U , que é tam bém frágil — a O N U já teve com o secretário geral um criminoso de guerra,

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por ou tro lado, ela é utilizada p o r tais ou quais interesses etc. M as de qualquer maneira, vem ocorrendo uma constituição progressiva de um a legalidade in terna­cional, que, a despeito da sua fragilidade, é um elemento essencial de um progresso ético-político (e de uma reflexão ético-política. que o acom panha). Tem os de reco­nhecer que, em bora coexistindo com coisas terríveis e regressivas, há um a linha de progresso m oral que pode ser percebida, num balanço do século, e ela não é visível apenas no que foi indicado, mas tam bém em realidades com o a m udança do es ta­tu to das mulheres, ou dos homossexuais. Eu não pensaria, enfim, num a história de simples decadência, ou coisas dessa ordem.

Desde muito cedo você pensou a relação entre humanismo e anti-hu-manismo. Nesse contexto, como você vê a “vitória” do paradigma dosdireitos humanos?

Bom, isso é complicado! A m inha análise da questão se dava no interior do m ar­xismo, da filosofia m arxista clássica: eu tentei d a r a fórmula disso, num a estra té­gia que consistia basicamente em re tornar a Hegel e à dialética hegeliana. M as isso já não é uma resposta suficientemente satisfatória, porque a gente tem a impressão de que o hum anism o realmente se valoriza, por exemplo, na recusa da violência, recusa que costuma ser associada ao humanismo. M as não sei se o termo humanismo é o melhor. Ele contém um certo tipo de ilusão em relação ao que seja a natureza do homem, e aceitar uma filosofia humanista significa até certo ponto en tra r nessa ilusão. Sem dúvida é válido reivindicar o hum anism o, ou certos valores que a ele cos tum am estar associados, mas do pon to de vista filosófico parece-me que seria im portan te encontrar um ou tro conceito, um conceito de ou tra ordem. De q u a l­quer m odo, em geral ele vale num plano prático. Acho que o traba lho das O N G s, por exemplo, e coisas desse tipo, é freqüentemente uma coisa positiva — insuficiente do pon to de vista mais geral e teórico, mas positiva.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?Bem, eu sou de família judia. O meu pai era um judeu ateu; na família da minha mãe eles eram, com o se costuma dizer, judeus de dois dias de sinagoga por ano; e eu, quan d o pequeno, ia tam bém à sinagoga de vez em quando . Vias não cheguei sequer a fazer o bar mitzvah. Por ou tro lado, fui educado no Mackenzie, um colé­gio de protestantes que tinha um pouco de religião, e a ética do protestantism o me impressionou muito. Uma coisa que me m arcou bastante foi a exigência ética: "‘N ão pode mentir, não pode fazer o que está e rrado !” . Eu tenho um certo tipo de ex i­gência m oral que talvez tenha alguma coisa a ver com o m undo do protestantismo Em bora, com o menino judeu, eu “ soubesse” que Deus era verdadeiro, mas que Je­sus era mentira, aquelas coisas do protestantismo me interessavam e me marcavam. M as no final eu abandonei tudo isso — menos a ética — e nunca voltei.

Agora, eu tenho m uito interesse por história religiosa. U m a das grandes iniu- ficiências da nossa formação, po r sinal, é não aprenderm os história religiosa, que é algo muito ligado à história da filosofia. E uma barbaridade não conhecer isso di­reito, não conhecer bem a história do cristianismo, por exemplo. Pensando nisso, comprei uma História da religião, da Pléiade, que foi uma das últimas leituras f ran­

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cesas antes de vir para o Brasil. M as aí não se tra ta de interesse religioso, e sim his­tórico: não há com o entender o m undo sem entender história da religião. Só isso. .Mesmo agora , mais velho, q u an d o a gente começa a pensar m uito na m orte — um assunto que na verdade sempre me obsecou — , não consigo ter qualquer interesse religioso. Da mesma forma com o também não tenho interesse puram ente nacional: tenho tan to horror ao nacionalismo quan to ao fanatismo religioso. Até porque esse negócio de país começou a ficar m isturado muito cedo para mim: a família da minha mãe é originariamente de judeus da Turqu ia , vindos da Espanha no século XV ou XVI, e escolarizados em francês; o meu pai era da Europa central e emigrou para a Argentina; eu mesmo morei no Chile, depois na França; com o eu, m inha filha tem dupla nacionalidade, mas é mais francesa que brasileira; um dos meus irmãos foi p a ­ra os Estados Unidos, onde é cientista, e tem dupla nacionalidade. Q uer dizer, fica difícil falar em nação! M as reconheço que certas raízes — penso no Brasil — ficam.

Você pensa em envelhecer lá ou aqui?Bom, aqui eu tenho uma porção de amigos, e lá não tenho quase nada: em vinte e sete anos de França não tenho raízes, não tenho coisa nenhum a. Talvez isto se deva ao p róprio m undo francês, que é frio, e ã universidade em que entrei, que é difícil, ou então ao simples fato de que velhos amigos são velhos amigos, e aqui eu tenho muitos. M as, ao mesmo tem po, gosto de m orar lá, e uma das principais razões é a m inha filha, que tem treze anos e com quem tenho uma relação muito boa. E m bo­ra eu esteja de novo descasado, vivi na mesma casa com a minha (segunda) ex-mulher e a nossa filha até recentemente, e coexistimos mais ou menos bem. Além disso, a França tem as suas vantagens: bibliotecas, jornais, pouca violência, é muito mais fácil criar filhos etc. O meu projeto é continuar m orando lá e vir sempre para cá dar umas dez aulas de quatro horas por ano (se me convidarem, claro!) — isso é o que eu gostaria de fazer. Só não sei com o vou reagir se ficar muito doente e tiver um “aviso de morte a prazo fixo” : não sei se preferiria morrer lá ou aqui. Mas, enfim, esses são meus planos.

Você tem discípulos por lá?N ão, não tenho nenhum . Eu tenho alunos, dirijo muitos trabalhos, muitos alunos me procuram , alguns deles são chegados a mim. M as não são discípulos. Agora, eu consegui penetrar um pouco no meio dos filósofos do establishment, adquiri essa coisa da qualificação para professor “A ” , e penetrei tam bém no meio dos es tudio­sos de M arx . Fíá por exemplo a roda do Actuei Marx, que me con ta tou através do meu primeiro livro, com quem tenho boas relações, mas distantes: sou convidado para os colóquios. Além disso, eu consegui tam bém , com um pouco de sorte e a l­gum sacrifício, publicar três livros, e vou ver se continuo publicando. Mas na ver­dade eu sou muito marginal lá, e tenho a impressão de que não vou mesmo ter muito sucesso fora daqueles círculos especializados. Q ueira ou não, aquilo é um universo muito fechado, e alguns deles ainda têm uma mentalidade um pouco colonialista . Enfim, já é alguma coisa publicar em língua internacional. E me sinto contente com a minha situação no Brasil: aqui tenho muitos contatos , e bem ou mal o pessoal lê meus livros. O que não quer dizer que eu tenha muita ilusão com isto; tem gente

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que lê meus livros para justificar a política de um PC qualquer; quando cai o m uro ninguém mais com pra meus livros, quando aí é que deveriam com prar mais. Po­rém gostaria de sair um pouco dessa faixa, de fazer coisas que gerassem menos mal­entendidos. Acho que essas coisas que eu fiz têm alguma im portância , e, com o já disse, o m arx ism o brasileiro, que é de excelente nível, resolveu problem as que mais ninguém resolveu, em bora nada disso seja reconhecido lá fora. Afinal, com o dizia o O lavo Bilac — devo a lembrança à M aria Isaura de Queiroz — , a gente escreve num a língua que é uma tumba.

A sua resposta sobre a religião e a f é o levou à morte. A morte é pensável?Bom, tem aquela famosa frase do La Rochefoucauld, que diz que a m orte e o sol a gente não olha de frente. Ela é pensável, sim, ainda que den tro de certos limites. Pois sem dúvida existe uma distância entre o fenômeno mesmo e o pensar o fenô­meno: quando você pensa no m or to e lê os escritos do m orto sobre a morte , tem a impressão de que há um abismo. Por exemplo o M anuel Bandeira, com aqueles poemas, “ Preparação para a M o r te ” : depois que ele m orreu , tem-se a impressão de que aquela m orte de que falava não era a mesma coisa que a m orte mesma. Ou en tão o M a chado de Assis das Memórias póstumas. Q uer dizer, pensar na m orte é uma coisa; morrer , é outra. A m orte é uma coisa brutal, uma rup tu ra diante dessa coisa toda de envelhecimento, “com o estou velho” , o D rum m ond na Amendoeira dizendo que envelheceu etc. N ão adianta; nesses m om entos todos nós ainda esta­mos vivos. A morte é uma coisa com pletam ente diferente, e se você pensa nisso fica um pouco assustado. Eu gostei m uito do Schopenhauer falando sobre a morte, algo que andei lendo mais ou menos recentemente, e são textos m uito bonitos, muito bons — cheguei até a com entar com a especialista, a M aria Lúcia Cacciola. Ele fala do m om ento da morte, que seria uma espécie de desmaio, de uma m aneira interes­sante. M as realmente é uma questão complicada. O C ondorce t, por exemplo, não aceita a morte; o Marcuse tam bém retoma essa idéia quando morre a mulher dele, fala que é preciso lutar “c o n t ra ” . Penso que é um pouco isso mesmo; é algo intole­rável. M as há mortes e mortes; o que existe de com pletam ente intolerável é morte de filho, uma experiência pela qual espero nunca passar. Depois que a gente tem filho, descobre que essa é uma coisa que não pode acontecer em nenhum a h ipó te­se. Já m orte de velho, em bora seja tam bém meio chata , não tem a mesma dimen­são, não é terrível. Descartes t inha razão q u an d o dizia que as duas coisas mais im portan tes são a moral (na qual se deve incluir a política) e a medicina. É funda­mental t raba lhar para melhorar a condição do corpo, salvar vidas etc. Por isso são m uito positivos esses progressos da medicina, que permitem prolongar uma vida com saúde ou garantir uma m orte melhor. Isso é banal mas verdadeiro; às vezes se perde de vista a importância dessas coisas.

Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança deparadigma" da filosofia, de uma filosofia “pós-metaftsica” calcada nalinguagem?

O lha , isso não me afeta demais. T enho muito interesse pelos problem as de lógica, pelos problem as da linguagem, por lingüística, mas nada disso é central para mim.

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o central é pensar a história, o que m udou foi o m undo: estou mais interessado no m undo. Eu sofri bastante o impacto desse negócio de uma filosofia centrada na lin­guagem, pois o es truturalism o nos serviu muito: em história da filosofia a gente se formou num tipo de leitura que tem a ver com o estruturalism o. T am bém me inte­ressei bastante pelo I.évi-Strauss, gosto muito da análise estrutural, incorporei muito isso tudo. .Vlas não é uma filosofia geral; não acredito num a filosofia que tenha por centro a linguagem. Sem dúvida é algo que tem que ser incorporado à filosofia, incorporado com o conquista , mas a dimensão é mais a de um traba lho científico. Depois da lingüística, do Lévi-Strauss, você não faz história com o fazia antes, não analisa nenhum objeto do mesmo jeito. M as é só isso: para mim não há uma nova filosofia, não há um paradigm a da linguagem. Acho que é ilusório querer pensar o m undo tendo a linguagem com o centro.

O que você achou do livro de Giannotti Apresentação do m undo: con­siderações sobre o pensam ento de Ludwig Wittgenstein?

Eu li m uito rapidamente, mas a minha impressão é dc que não é muito bom. Eu não conheço bem o Wittgenstein, mas tive a impressão de que o que há ali é um certo verniz dialético, uma espécie de semicrítica do Wittgenstein que não vai m ui­to longe. Creio que Giannotti teve alguma importância num certo momento, quando com eçou a pensar O capital em term os semidialéticos, mas não sei se ele avançou muito a partir daí. Ele chegou até um certo pon to , fazendo uma leitura de M arx que era ao mesmo tem po hegeliana e husserliana, ap roveitando o que Husserl teria em com um com a dialética, mas não sei se foi m uito além. Isso foi o começo, mas só o começo, do que poderia ter sido uma contribuição importante: porém muito cedo ele aproveitou o que havia no a r (e mais do que no ar), acostum ou-se com o negócio de ser um figurão, criou o hábito de escrever coisas que não aparecem com o claras (porque, não nos iludamos, são em si mesmas vazias) — não tudo o que ele diz, evidentemente — , o que significa: passou a usar do blefe teórico em am pla es­cala, vendendo obscuridade artificial com o se fosse uma qualidade.

Em geral, creio que hoje Giannotti tem pouco a ver com a dialética (embora ãs vezes seja difícil dizer onde ele está). Ele costuma re tom ar a fórmula que utilizei a partir de um texto de M a rx — ver a referência em Marx, lógica e política (t. II, p. 168) — , a dos “ limites” da dialética (fórmula que lhe foi transm itida por um de seus “auxiliares” ). .Vlas no caso de muitos dos textos de Giannotti não é questão de limite. Q u an d o ele não blefa pura e simplesmente, trata-se em geral de aprisionar a dialética num discurso do entendim ento , onde a referência principal era ou tro ra Husserl e hoje é W'ittgenstein. O que ele diz nesses textos é mais ou menos o que diz a filosofia dom inante , anglo-saxã e européia, que têm em com um o anti-he- gelianismo e o ho rro r à dialética. Esta é uma direção, a meu ver, e r rada , mas não seria grave, se ao contrário dessa gente, Giannotti não se apresentasse com o conhe- C'îdor da dialética (na realidade até aqui ele sabe pouco da Lógica de Hegel) e se não exibisse um tom arrogante , que é o do m andar im que gosta de dar lições sobre o que sabe maP'. Por ou tro lado, devo dizer que com o seu estilo, ele p ropagou um modelo au tori tár io nas relações, que é m uito negativo. Tenho medo de que as n o ­vas gerações de professores retom em esse modelo perverso no t ra tam en to dos alu-

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nos, dos m estrandos, dos douto randos . Enfim, em bora eu reconheça que de algum m odo ele conta (entre outros), que tem um lugar (junto com outros) — principal­mente pensando nos seus começos: talvez o seu texto mais sério seja a sua tese so­bre Stuart Mill — nesse nosso pano ram a (felizmente) diversificado, creio que o seu modelo de sociabilidade (para usar uma palavra que ele utiliza muito, mas não é de sua invenção) é um modelo m uito ruim. Politicamente, tam bém não gosto da posição que assume: a leitura de M arx que propôs era — e de certo m odo ainda é— no fundo, uma leitura tj«í/-humanista: nesse sentido, lendo os velhos textos, já se podia prever o que ia acontecer com Cardoso e Cia. Trata-se de uma crítica uni­lateral do hum anism o cujas implicações políticas nefastas são visíveis. O que não quer dizer que as leituras da extrem a esquerda sejam melhores.

Você utilizaria o conceito de “utopia" para descrever sua visão do fu ­turo da sociedade ímmana? Em que consistiria tal utopia?

Utopia." H ouve vários usos do nome, creio que apenas com .Vlannheim se começou a entender por utopia um projeto a longo prazo, ou algo assim. M as preferia não usar esse term o; é um term o m uito carregado. Prefiro utilizar a nossa referência mesmo. Primeiro é preciso acabar com essa história de fim do Estado; aceitar a p ropriedade privada com o um a coisa adquirida historicamente — algo que não é natural, com o a individualidade não é natural, mas que foi adquirida pela história e se to rnou irreversível. O que im porta é “ sim plesm ente” ten tar para r a máquina. Porém há vários problemas. Se a gente considerar o m undo globalmente, há por exemplo os fenômenos de fanatismo religioso, que são enormes. Seria preciso que surgisse um Islã m oderado , assim com o surgiu um cristianismo dom inan te que não é o cristianismo mais fanático. E o mesmo vale para as demais religiões. Porque esses fundamentalismos religiosos representam um perigo m uito grande, podem levar a catástrofes em matéria de terrorismo, guerra atômica, guerra bacteriológica. Che­ga a ser es tranho que ainda não tenha es tourado um a bom ba atômica por aí.

Agora, particularm ente em matéria de política internacional um a coisa a se pensar é a China: c um a enorm e potência que, em certo sentido, p rom ove a ar t i­culação de capitalismo com totalitarismo, articulação perigosa. Eles tra tam T aiw an com o uma província, mas há cinqüenta anos Taiw an é um país independente: é uma situação de risco m uito séria, que para mim pode explodir a qualquer momento . Se eles resolvem atacar Formosa, o que é que vai ser? Os Estados Unidos não vão querer reagir, mas vão ser obrigados a reagir. Enfim, há aí um furo que é um p ro ­blema enorme. Diz-se que a China é progressista em relação ao capitalismo dem o­crático, mas isto é um a bobagem: ela é uma regressão política e ética. A Rússia ta m ­bém é um problem a, mas m enor, porque, apesar de haver casos com o a Chechênic e o Daguestão, lá não há uma Formosa, onde o risco de uma guerra global é sério.

Com relação ao caso da Iugoslávia, eu gostaria de dizer uma palavra também, já que aqui é m ania todo m undo condenar sem mais a intervenção americana. Eu acho que ela foi um mal menor, porque, em bora não seja p ropriam ente um Hitler, o Milosevic é um fascista, e um fascista — digamos — pior que o Mussolini. Ele fez uma limpeza étnica na Bósnia, con tra a qual não houve in tervenção porque a O N U não aprovou , e o resultado foi um massacre terrível. Se tivesse havido inter­

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venção na Bósnia, a coisa não teria ido mais longe. E no Kosovo o que ele fez foi com eçar a destruir uma aldeia por dia, querendo forçar uma d iáspora de todos os albaneses. É claro que o ideal seria uma intervenção da O N U , com tropas terrestres tam bém , mas a O N U não iria intervir, por causa do veto da China. O que a Europa deveria fazer, então? Uma alternativa seria deixar o Milosevic lá, m andando algu­mas tropas para países limítrofes, mas eles resolveram o p ta r pela O T A N — o que sem dúvida era uma coisa perigosa, porque, primeiro, abria um precedente de inter­venção da O T A N , e, segundo, tem sempre um am ericano maluco querendo t rans­form ar aquilo em Dresden. M as eu acho que eles fizeram bem em intervir, em bora a forma da operação seja discutível porque não impediu (e naquele momento até agravou) o massacre. Foi uma coisa inventada pelos europeus, não pelos am erica­nos. Nos EUA houve inclusive muita divergência sobre o problema, eles não tinham m uito interesse em intervir, a extrema direita estava contra . A intervenção foi em ­purrada — em bora não pudesse ter sido realizada — essencialmente pelos europeus.

Aqui é difícil falar nesse assunto porque há essa espécie de unanim idade con ­tra a intervenção, mas a verdade é que todo m undo discute sem conhecer bem to ­dos os elementos que estavam em jogo. Com o, por exemplo, o fato de que com isso se estava evitando que o Milosevic começasse uma outra limpeza na província de Voïvodine, que ele ia acabar fazendo. M as aqui não se olha nada disso; para eles a operação toda aparece com o uma forma de imperialismo americano. O ra , é claro que os americanos não são santos, é claro que a existência de um poder hegemônico é perigosa, mas a verdade é que aquilo foi uma guerra de governos social-demo- cratas e de centro-direita contra um fascistão. E ele vai acabar caindo.

£ o caso de Cuba? O que você pensa da sobrevivência do regime cubano?Eu acho o regime cubano uma droga. Lá não houve um genocídio, mas é mais um modelo de socialismo au tori tár io , que é uma coisa que não dá certo. E que lá não deu em nada. E verdade que eles aplicaram políticas sociais, algumas bem-feitas, mas num contex to au tori tár io isso não dá certo. Deveria pensar-se num a transição democrática, que preservasse as conquistas sociais, se é que ainda resta alguma coisa, mas o Castro não pensa em nada disso. E vai acabar sendo um desastre, porque no final quem vai levantar a cabeça são os m onstros de xMiami. Enfim, o fato é que o cam inho de Cuba é um cam inho a não seguir. E eu acho que a gente deveria ter uma atitude m uito firme no caso dos prisioneiros políticos — talvez fazer um m a ­nifesto que todo o pessoal de esquerda assinasse, ou algo assim. M as isto é uma proposta maluca, porque no Brasil quase nenhum sujeito de esquerda teria co ra ­gem de assinar um negócio desses! Eu sim.

Acho lamentáveis as viagens a Cuba de intelectuais latino-americanos que são recebidos por Fidel Castro. (Claro que em si mesmas as viagens não são condená­veis, nem mesmo é condenável conversar com caudilhos, mas — e a fortiori se o eíeito for multiplicado pelo financiam ento ou semifinanciamento da viagem — é difícil escapar ao fascínio de um déspota populista.) Os viajantes deveriam se dar conta de que as entrevistas (e em am pla m edida as p róprias viagens) são, à sua maneira, tão planejadas e tão mistificantes como qualquer programa político de uma grande emissora de televisão capitalista. M as se para desmistificar a grande mídia.

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o m arx ism o fornece instrumentos poderosos, ele é com pletam ente impotente d ian­te dessas novas formas de ideologia, de engano e de mistificação. Em bora Castro não seja Stalin (mas os dois têm em com um , pelo menos, o hábito de fuzilar gente depois de p rom eter a vida salva em troca de falsas auto-acusações), parece que não se refletiu o suficiente sobre a experiência das viagens de intelectuais de esquerda ã URSS, dos anos 30 aos 50.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais pro­blemas?

N o que se refere aos riscos ambientais, eu vejo, com o já falei, a possibilidade de catástrofes, de coisas ex trem am ente sérias. N o caso da França, po r exemplo, que é um país extremamente nuclearizado, a possibilidade de ocorrer um acidente é muito grande. Às vezes imagino as pessoas fugindo de Paris por causa de um acidente desse tipo. E há tam bém uma série de outros riscos, com o os alimentares, que se eviden­ciam por exemplo no caso da “vaca louca” .

C om relação ã desintegração social, se pensarmos na Europa temos o proble­ma do desemprego, que é sério (embora a situação tenha m elhorado a partir de 1999). A Europa de hoje é muito diferente daquela que conheci há vinte, trinta anos atrás. M as não tem nada a ver com o Brasil. N o Brasil há uma catástrofe absoluta, um a violência impressionante na rua, e eu não sei onde isso vai dar.

Q u an to ã alienação, de vez em quando eu olho a televisão no domingo, e vejo, por exemplo, o Domiugão do Faustão, que é algo que precisa ser visto: aquele bando de gente inteiramente enlouquecida, repetindo coisas imbecis! E não é o pior; há coisas bem piores. M as é realmente um a barbárie . Agora, o que se pode fazer? A primeira impressão é de que não dá para fazer muita coisa, porque a estupidez é enorme. Ao mesmo tem po é urgente, no caso do Brasil, m elhorar a educação, lutar con tra a desigualdade etc., porque sem isso não dá para fazer nada. Q u an d o Hegel falava do Estado, pensando nas vantagens do Estado, ele se referia a coisas com o a possibilidade de você sair ã noite. C om o já se disse, não há mais Estado no Brasil: você já não sai mais sozinho à noite. A impressão que se tem, no caso do Brasil, é a de uma sociedade prestes a explodir. E a mesma coisa vale para a ques tão das alienações: há uma imbecilização geral, a qualidade da imprensa é muito ruim, não se tem inform ação etc. Agora, provavelmente uma parte da hum anidade talvez seja mesmo estúpida. N ão tenho muitas ilusões com relação a isso, não sou humanista . O que se tem é a possibilidade de um desenvolvimento que ponha barreiras ao em- burrecim ento dos indivíduos. C on tan to que essa gente não faça mal, ela tem todo o direito de expor suas besteiras — mais ou menos com o o Engels falava em rela­ção às religiões. N ão que eu esteja falando das religiões, que são uma coisa mais séria e importante, e que dem andam um m ínimo de respeito, mas diante da imb< - cilidade da mídia talvez fosse o caso de a gente conseguir neutralizá-la de alguma forma, sem pretender erradicá-la, pois pa ra isto teríam os de recorrer a m étodos d itatoriais. Creio que isso tudo — dentro de limites a estabelecer — é um pouco (mas só um pouco) natura l, e nunca vai deixar de existir, N ã o ad ianta imaginar.

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com o na utopia do Trotsky, que quando o socialismo chegar todo o m u n d o vai ter o nível médio do Goethe ou do Shakespeare! [risos] Enfim, é só deixar eles ficarem lá fazendo as suas besteiras, desde que isso não tenha maiores conseqüências.

Pena é que isso aí vá invadindo, vá invadindo tudo. Veja-se por exemplo o esporte, que chegou a um nível de mercantilização intolerável: é uma atividade que, com o outras, vai sendo praticam ente destruída. Felizmente, existem resistências: as O X G s; a ecologia, que eclodiu a partir de fins dos anos 70; o desenvolvimento dos movimentos de defesa dos minoritários, com o os homossexuais; o movim ento fe­minista etc. Existe uma série de movimentos de resistência que precisam ser reconhe­cidos. Se a gente considerar a situação da Europa, eu diria, para usar uma terminolo­gia do Merleau-Ponty, que lá circulam hoje bem mais verdades do que circulavam há uns trin ta anos atrás: não se acredita mais que Stalin seria o pai dos povos; não se acredita mais em .Vlao-Tsé-Tung. N o Brasil já é um pouco mais complicado: a gente vê coisas com o o PC do B criticando o Ciorbachev na televisão, tem essa história de querer tirar o Cardoso através de itnpeachnient, que é absurda ; e por aí vai. A esquerda brasileira ainda não am adureceu o suficiente: apesar de haver um lado crítico que é positivo, ela faz uma salada teórica horro rosa — idealização da Chi­na, elogio do Chavez da Venezuela etc. Enfim, de um m odo geral a idéia de d em o ­cracia ainda não está consolidada entre os brasileiros com o está entre os europeus.

Uma última pergunta: no seu último livro, Dialética m arxista , dialética hcgeliana: a p rodução capitalista com o circulação simples, você afirma que “o estruturalismo ocupou, no século XX, um lugar que é compará­vel ao da economia clássica nos séculos XVIII e X IX ”. Em que sentido esses dois momentos teóricos são comparáveis? Desse ponto de vista, fazer a crítica do estruturalismo no século XX significaria ocupar um lugar comparável ao de Marx?

Pelo que me lembro, o argum ento tentava m ostra r que, apesar de tudo, o es tru tu ­ralismo tem uma riqueza que precisa ser incorporada. Assim com o diante da eco­nomia clássica uma posição mais radical consistiria em recusá-la por completo, em nome da ética, e uma posição mais inteligente consistiria em recusar apenas os seus elementos negativos, incorporando os positivos, tam bém diante do estruturalism o uma primeira reação poderia ser a de recusa total, enquan to que a posição mais inteligente seria justamente a de incorporar as suas conquistas num novo con tex ­to. Acho que é mais ou menos por aí. Q uer dizer, a posição crítica diante da eco­nomia política tem de ser a de incorporá-la e de dar-lhe um ou tro sentido: desco­brir as contradições no interior da análise da sociedade capitalista, e, ao mesmo tempo, descobrir a interversão das relações no interior do esquema que Ricardo e Smith tinham construído. E com o estru tura lism o deve ser feito algo semelhante: eles dão contribuições muito grandes para se pensar a estru tura , as quais devem ser l ívadas em conta, mas com o dizia, não sem verdade, o velho jargão, é preciso des­cobrir as contradições no interior da estrutura. Este é mais ou menos o sentido do argumento: essa idéia de que o es truturalism o é um a grande teoria científica, mas uma grande teoria não-crítica, com o a economia clássica. E o negócio não é recusar a ciência, mas sim in troduzir a crítica dentro dela.

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Aliás, eu acho que há muito o que fazer em matéria cie história do pensam en­to, de história ideológica. H á um livro que, em bora envelhecido, é muito bom nes­se terreno, com relação aos séculos XVIII e XIX, o livro do Eli Halevi A formação do radicalismo filosófico. E um a espécie de história das ideologias, da economia política, das ideologias burguesas, da filosofia do século XVIIl e suas diferentes manifestações. E a ques tão aí é justamente não fazer história da filosofia, e sim misturar com história da economia, com história da política, e assim por diante. Creio que há muita coisa a fazer em matéria de história do pensamento; burguês e da crítica do pensam ento burguês. M as não se pode, é claro, ficar nisto.

Alguma coisa a mais?Falei muito sobre a m inha vida, mas finalmente, no texto que sobrou, desapareceu tudo o que se refere à vida pessoal e sentimental. Talvez tenha sido melhor assim, porque não é bem aqui o melhor lugar para “confissões” . De qualquer m odo , para que não fique m uito incompleto, duas palavras na conclusão. A família professava uma moral muito repressiva (muito sutil tam bém , porque aparen tem ente fazíamos o que queríamos, a repressão vinha de dentro). Em bora no meu caso as primeiras experiências não tenham sido m uito tardias, só comecei a me entender com freqüên­cia com o sexo oposto passados os .35 anos, época em que, com o disse, tam bém comecei a me entender de fato com a escrita. De lá para cá as duas coisas não me a b a n d o n a ram mais, e espero que me acom panhem ainda um bom pedaço. Isto não é a infra-estrutura da minha história (aqui tam bém a idéia de infra-estrutura é ex- ce.ssiva), mas é um lado im portan te , sem o qual o relato tom a um ar idealista e enganoso.

N O I AS IX ) ENTRKVISTADO

* Para ser n o m ead o p a ra um carg o u n iversitário na F rança , há sem pre dois m o m en tos. E preciso p rim e iro “ q u a lifica r-se“' p a ra o nível a lm ejad o {maître de conférences e depo is p rofessor “ ran g .A” ), p e ran te um a com issão nacional. Em segu ida, é preciso ser n o m ead o p o r um a co m is­são de um a facu ldade, on d e h ouver um p o sto co rre sp o n d en te a preencher. A o rdem e o m ecan is­m o dos dois m om en to s se m odifica com a sucessão de g overnos, m as há sem pre essas du as in s tân ­cias, n acional e local.

Ju n h o de 200 0 : foi o que acon teceu . Em o u tro lugar, analisare i essa farsa de um ra ro c i­n ism o , e seus p rinc ipais a to res.

’ Ju n h o de 2000: em fins de 1999 , com ecei, com am igos, um a le itu ra sistem ática de Freud. O s tex to s são notáveis.

■' Isto é, n ão d igo que n ão haverá ca tás tro fes , só d uv ido que elas nos c o n d u /a m à redenção .' G ian n o tti pub licou recen tem ente um tex to de crítica de d iferentes trab a lh o s , en tre os quai?

o s m eus (ver N ovos Estudos, n° 57, ju lh o de 2000). A m eu ver, a sua crítica n ão tem m u ita força, m as ap ro v e ito a o casião para pôr a lguns p ingos nos is. Ele m e acusa de ca ir na teoria len in ista do reflexo e no D iam at (!) p o rq u e desenvolvo a tem ática d a re -p ro d u ção d o o b je to pela a p re se n ta ç io dele pelo su je ito . G ian n o tti põe-se a esb rave ja r, m as o que faz é a p o n ta r p a ra o p ensam en to dos agentes (ver p. 72) cu jo m ov im en to , de fato , n ão é p ara le lo às ca teg o rias , m as de algum m odo co nstitu tivo (ou re-constitu tivo) delas. O co rre que em M a rx e, me perm ito dizer, tam bém nos m eus tex to s (com pare-se, p o r exem plo , Marx: lógica e política, x. 1, pp. 105-7 e 155) en con tra-se a a n á ­lise de um a e o u tra co isa, sem que se co n fu n d a um a e o u tra : o pensar co m o teoria ou saber, e o

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pensar dos agentes, nos p rocessos sociais ob jetivos. É a p ro p ó sito d o p rim eiro que .\ ia r .\ fala em re -p ro d u ção d o real. C ritica r essa idéia fazendo in terv ir a im anência dos ju ízos dos agen tes ao d o m ín io da co n s titu ição de certas ca tegorias, e g ritan d o : d iam a t, reflexo , len in ism o!, n ão é sério . F.le poderia tam bém acusar Hegel das m esm as coisas, pois com o se sabe — ou não sabe.- — a Lógica, diferen tem en te da p rim eira Crítica k an tian a , faz o elogio da " a d e q u a ç ã o ” . E se m e referi, fav o ra­velm ente, a um texto dc (iian n o tti a respeito disso, é prim eiro porque tenho regras estritas em m atéria de referências, e segundo p o rq u e se tra ta de um dos poucos textos rigorosc>s que ele escreveu, e ap aren tem en te a p a r tir de seus p ró p rio s recursos, sem ap e la r — cito seu ensin am en to o ra l — para “os (seus] agentes que [lhe| con tam tu d o " . Q u a n to à relação entre a crítica d o argum ento onto lógico em Hegel. e o m ov im en to da posição , ela é m ais ou m enos exp lícita em Hegel: tra ta -se de p ô r em xeque a separação k a n tia n a en tre posição e de te rm in ação . (Seria longo dem ais desenvolver aqu i, de novo, a sua leg itim idade filosófica, que é co m plicada m as real.) E q u a n d o , no Capital, .Marx escreve co n tra a idéia de que o valo r existe na ilha de R ob inson e diz que “e n tre ta n to , to d a s as d e term inações d o valo r es tão a í p resen tes” , ele refaz o m esm o percurso . Pois qu er dizer; to d as as de term in açõ es estão lá, m enos a p osição (a qua l, co n tra a tra d iç ã o d o en ten d im en to , é, p a ra a d ia lé tica , essencial à defin ição do ob jeto ). N o m ais são confusões dc le itu ra e reafirm ação da “ li­nha d u ra ” d o en ten d im en to . D uas p alav ras sobre a re lação H egel/A ristóteles: a teo ria da po tência e do a to n ão im plica ev iden tem ente em ace ita r a c o n trad ição , e foi m esm o e lab o rad a para re sp o n ­d e r ao desafio que ela rep re sen tava . .Vlas por isso m esm o tal teoria m antém um a relação com a co n trad ição . F. se esta ú ltim a reaparece , de um a forma sui generis, em H egel, é a trav és de um in­vestim ento da metafísica (dc .Aristóteles) — inclusive, prec isam ente , do p a r potência/ato — sohre a lógica. Em A ristó teles rem -se só p arc ia lm en te esse investim ento da m etafísica. (N um a o u tra ver­ten te — ver a u n iversa lidade co n cre ta e n q u a n to u n iversa lidade singu lar — há sem dúvida ru p tu ra com a m etafísica de .Aristóteles, m as tam bém a serviço da co n trad ição .) É isso que está p o r trás dos tex to s em que H egel reconhece o p aren tesco en tre as dualid ad es em si/para si, e p o tência /a to . V er referência em m eu ú ltim o livro em portu g u ês (Brasiliense, Paz e T e rra , 1997, p. 109, n. 1 18).— Fiz um a reco n stru ção da lógica d o Capital, cu jos m éritos fo ram reconhecidos p o r m uita gente séria. C re io , en tre o u tra s coisas, ter reso lv ido de fo rm a rig o ro sa o p rob lem a do e s ta tu to da seção 1. G ian n o tti n ão en ten d eu , ou n ão quis en tender: ap esar das aparên c ias , a sua análise do Capital escam oteia ou om ite os m om en tos m ais difíceis. P or causa desse tra b a lh o e desses re su ltad o s (que ele subestim a ou desconhece de fo rm a g rita n te ), ele m e acusa de su p o r um a “ linguagem co m u n is­t a ” (p. 77) (!) e o u tra s co isas que tais. Ele tam bém poderia acu sar .Adorno — o u tro que desconfia do p en sam en to do “com um dos m o rta is” (idem ) — de p ro p o r lógica especial co m u n ista ou de ser funcionário a serviço do D iam at. .Adorno praticava com o ninguém essa lógica do pensamento crítico que é a d ialética. N o que m e concerne , tra ta-se de av an ça r na co m preensão em a to e em teoria das figuras d o p ensam en to d ia lé tico , figuras que em geral os lógicos n ão conhecem ou n ão reco n h e ­cem . Q ue esse tra b a lh o seja difícil, incerto , que os resu ltad o s sejam a d iscu tir e red iscu tir, seria o p rim eiro a adm itir. T am b ém o estilo hegeliano — com o M a rx indicava — pode ser m ais ou m e­nos ca lib rad o . .Mas d a í a tro c a r a d ialética p o r W ittgenste in , é sim plesm ente um equívoco . C reio que ap esar de tu d o o que resta a fazer, apenas com os re su ltad o s o b tid o s (em a to : ver, p o r ex em ­p lo , a m inha crítica d ia lé tica do hu m an ism o , ou em teoria : ver m inhas ten ta tiv as n o p lan o da te o ­ria d o juízo) já se pode d izer que o m eu p ro je to (que está longe de ser só m eu) se justifica. G ianno tti nun ca ten to u nem foi cap az de te n ta r nad a d isso . Em te rm o s de d ialética p ro p riam en te , ele não avançou um passo nesse tra b a lh o . O seu d iscu rso , que p ro cu ra se a p o ia r no tem a p o r m im ind ica­d o dos “ lim ites” da d ia lé tica , é na rea lidade um a d ia trib e m u ito trad ic io n a l e a té certo p o n to ba- .lal, do en ten d im en to , c o n tra ela. (Ele se detém sem pre an tes do real m ov im en to de inversão con- f a d i tó r ia d as categorias; ver, p o r e.xemplo jp. 79 do artigo ], a té ond e vai — e a te ond e n ã o vai — sua análise da relação fo rm a/m atéria [e con teúdo] n o Capital.) .Se é para isso — refiro-m e especial­m ente ao a rtig o de N ovos Estudos — p refiro um am erican o o u um p ó s-m o d ern o rigo roso escre­vendo co n tra a d ialética . H á neles m ais coerência e m enos con fusão . E p ara a p rese n ta r o p en sa­m en to d ia lé tico , ap esar de tu d o , e a té segunda o rdem , p refiro G uilherm e F rederico a José .Arthur. P ara te rm in a r, observo que G ian n o tti põe co m p le tam en te en tre p arên teses o faro de que desde há uns vinte an o s pelo m enos ten h o posições críticas em re lação a .Marx. .Mas p a ra c ritic a r este últi-

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m o é preciso p rim eiro en ten d er bem o que ele qu is dizer. N a m inha le itu ra de M a rx , ach o que vou a té as ú ltim as co nseqüências, no p la n o do co n teú d o co m o no da fo rm a. Se desde há du as décadas desconfio da tese de que o ad v en to de algo co m o o co m un ism o (que de resto nun ca con fu n d i com o “c o m u n ism o ” russo ou chinês) m arcaria o com e(,o da H istó ria da h u m an id ad e , nem p o r isso passo a d izer que essa tese n ão pode ser en c o n tra d a nos tex to s de M a rx . Ela se en co n tra , é a p re ­sen tada em form a logicam ente in teressante , e — co n tu d o — é m ais do que discutível (ver o posfácio do m eu ú ltim o livro francês, L’H a rm a n a n , 1997). Q uem n ão distingue esses m om entos e em baralha reco n stitu ição rigo rosa do pen sam en to de um a u to r e ad esão a ele, n ão p ro d u z m ais d o que sa la ­das de go sto d uv idoso . L endo G ian n o tti. tem -se a im pressão de um a certa intransigência, e a m is­tificação consiste em induzir o le ito r a p en sar que se tra ta de intransigência da verdade. A m tran - sigência existe m as é intransigência de poder e da m á po lêm ica. O que deveria ser su p o rte da b u s­ca da verdade, to rn o u -se substân c ia ; e a substância v irou su p o rte . A v o n tad e de p o d er acab o u li­q u id a n d o em g rau con sid eráv e l a v o n tad e de verd ad e . E sta é a nêm esis dos c u lto re s da c o m ­p e titiv idade e da p ro d u tiv id ad e . — A ddendum . N o p refác io à segunda ed ição das suas Origens da dialética do trabalho, C iiannotti m e acusa de co m eter um grave e rro de lógica, a sab er, a co n ­fusão en tre p red icação e id en tidade . C o m o exp u s n um a de m inhas au las já há alguns a n o s (aula a que es tavam presen tes aliás fu tu ro s cup in ch as de G ian n o tti) essa crítica , vinda da boca de quem pelo m enos nessa época reiv indicava a d ia lé tica , é eng raçada e tem m u ito sal. Isto p o rq u e , com o ind iquei nessa au la , e co m o escrevi na p rim eira versão de um tex to que pertence à segunda parte a in d a inéd ita de Dialética marxista, dialética hegeliana (ver Paz e T erra , 19 9 7 e I la rm a tta n , 1997, p a ra a p rim eira e a te rce ira partes), a “ co n fu sã o ” n ão só se en co n tra nos clássicos da d ialética , m as é de ce rto m o d o co n stitu tiv a de la , ou de um de seus m ov im entos. N a rea lid ad e , a fam osa p ro ­posição especu lativa de H egel, em que o su je ito passa n o p red icad o , se exp lic ita num m ovim ento que articu la p red icação e iden tidade: há um a p red icação reflexiva d o su je ito n o p red icad o , que leva à iden tid ad e en tre os do is , id en tid ad e q u e é p o r sua vez o p o n to de p a rtid a p a ra um a nova p red icação . A p ro p o sição especu lativa é assim o m o v im en to q u e vai d a p red icação à id en tid ad e e da id en tidade à p red icação . O a ta q u e p oderia p o r ta n to ser d irig ido a H egel, e — em certa m edida— tam bém a M a rx . Sem d ú v id a , esses do is p o dem se en g an ar, m as p a ra criticá-lo s é p reciso p r i­m eiro en ten d er bem o q u e eles fizeram — e de q u a lq u e r m o d o n ão fo ram eles e sim eu q u e o lóg i­co , a inda defen so r da d ia lé tica , pensou te r pego n o pu lo . Porém o essencial é m o stra r a in g en u id a­de de quem n ão se dá co n ta de q u e a d ialética consiste p rec isam en te num co n ju n to de m otivos e m o v im en tos que co n stitu em “ co n fu sõ es” para os lógicos d o en ten d im en to .

Principais publicações;

1983 Marx: lógica & política, tomo I (São Paulo; Brasiliense);1987 Marx: lógica & política, tomo II (São Paulo: Brasiliense);1996 Sur le concept de capital: idée d ’une logique dialectique (Paris: L’H arm attan );1997 Dialética marxista, dialética hegeliana: a produção capitalista como circula­

ção simples (Rio de Janeiro: Paz e Terra);1998 “Acertos e dificuldades do Manifesto comunista", revista Estudos Avan­

çados, n" 34.

Bibliografia de referência da entrevista;

Adorno , Th. Dialética negativa, M adri: Taurus. Althusser, L. A favor de Marx, Jorge Z a h a r Editores.

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Arendt, H. As origens do totalitarismo, C om panhia das Letras.Benjamin, W. Ohras escolhidas, Brasihense.Bernstein, E. Socialismo evolucionário, Jorge Z a h a r Editores.Castoriadis, C. A instituição imaginária da sociedade. Paz e Terra.Draper. Karl Marx’s theory o f revolution. M onth ly Review Press.Hegel, G. W. E. tenomenologia do espírito. Vozes.___________ . Ciência de la Lógica, Buenos Aires: Solar.Horkheim er, M . e A dorno , Th. Dialética do Esclarecimento, ]orge Z a h a r Editores. Lefort, C. Eléments d'une critique de la hurocratie. Genebra: Droz.Lenin, V. L Obras escolhidas, Edições Avante!.Lukács, G. História e consciência de classe, Elfos.■Vlannheim, K. Ideologia e utopia, Jorge Z a h a r Editores.M arx , K. O capital, coleção Os Economistas, Abril Cultural.___________ . Elementos fundamentales para la crítica de la economia política: bor­

rador 18.S7/18S8, México: Siglo Veintiuno.___________ . Manuscritos econômicos-políticos, Lisboa: Edições 70.

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L eandro K onder: “ E stou q u e ren d o apen as d izer que n ão es tam os defin itivam en te d e r ro ta ­dos. Sofrem os várias d e rro ta s , m as a g u erra n ão acabou ; seguram en te a g u erra vai c o n tin u a r e a nossa tro p a vai ressurg ir assim , m eio que m iracu losam en te . Q uem sabe a té a trav és de um m ilagre cris tão , nossos co m p an h e iro s c ristãos p ro m o v erão um m ilagre e a gente vai vo ltar a b rigar, já es­tam o s b r ig a n d o ...”

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LEA N D R O K O N D E R (1936)

I.eandro K onder nasceu em 1936, em Petrópolis (RJ). Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e foi advogado trabalhista até 1964. Exilou-se na Europa entre 1972 e 1978. Em 1984, obteve o título de d o u to r em Filosofia pela UFRJ. É professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de J a ­neiro. Esta entrevista foi realizada em ou tub ro de 1999.

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois ro­mances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No primeiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquan­to o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua formação intelectual?

N a minha vida, na m inha experiência, não dá para separar as duas coisas, porque fui muito “ fabr icado” , pois meu pai era comunista . O desafio de com preender o com unism o estava colocado desde muito cedo. E o com unism o foi uma coisa im­portantíssim a na minha vida, foi assim com o um sentido para meu m odo de agir, de me relacionar com os outros, de sempre me sentir devedor com relação à socie­dade. A sociedade me deu, eu devo a ela — isso vinha do com unism o do meu pai, aquela coisa meio rom ântica , meio religiosa. Ao mesmo tem po, eu achava que meu pai e os amigos dele com unistas eram seres bizarros. Então eu me sentia meio divi­dido. Por um lado, pensava: “ Essa religião é nobre, essa seita é generosa” , por ou tro lado achava as pessoas muito esquisitas, meio desequilibradas. Então procurei pre­servar um a certa au tonom ia , um a certa independência pessoal, mas sem contrariar o com prom isso definido previamente. Q uer dizer, eu não tive essa experiência de dois m om entos, aprendizado e peregrinação, sempre me senti m uito envolvido. Fui cultivando a au tonom ia , com certa discrição, dentro de um código de ética m arca­do por essa idéia de débito e prestação de serviços à sociedade.

Você poderia nos falar então das etapas da sua fonnação intelectual? Inicialmente, participei da cam panha presidencial de 1950, que foi um a experiên­cia muito animada. Eu fazia cartazes, faixas, comícios relâmpagos. Eu tinha 14 anos, entrei para a União da Juventude Com unista no ano seguinte, em 19 5 1. Eu era um com unis ta convicto e tarefeiro, cu m p rid o r de tarefas, materia lista-mecanicista , determinista. M aterialis ta vulgar até, mas com alguns m om entos de dúvida. Me lembro que nós tivemos na União da Juventude Com unista uma aula de formação de quadros, fo rm ação que passava pela teoria. M as a teoria era instrumental. N o s ­so assistente explicou a diferença entre vanguarda e massa, e nós nos sentimos muito

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orgulhosos. M inha célula — naquele tem po ainda se cham ava célula — se sentiu muito orgulhosa porque “ nós éramos vanguarda” . E aí depois fomos fazer uma série de comícios. Dois am ericanos vieram ao Rio de Janeiro e nós tivemos com o tarefa fazer comícios relâmpagos no centro da cidade contra esses dois americanos, Kennan e Vliller. A gente foi para lá, levando um banquinho , o o rado r subia no banquinho , nós nos infiltrávamos na massa, dizendo “ Isso mesmo! Isso m esm o!” , para envol­ver a massa. .Vias tinha muita polícia, e nós tínham os instrução de não correr ris­cos graves. Então nós acabam os fazendo só minicomícios onde não tinha pratica­mente massa nenhum a. Q u an d o acabou essa “ jornada m em orável” , fizemos uma reunião de balanço e o assistente, o mesmo que tinha nos dado aula, disse: “ Eu acho que foi positivo, porque tivemos hoje uma boa ‘m assinha’” ... Aí eu, meio ingênuo, disse: “Bom, eu acho que nós tivemos um a boa ‘vangua rd inha’, porque era nós e n ó s” [risos]. Aí levei um a bronca trem enda, um sermão, o sujeito disse que eu esta­va com um espírito pequeno-burguês corrosivo. E eu fiquei dividido, porque, por um lado, ficava meio encabulado de estar levando bronca, po r ou tro lado, eu dizia “ não, não é espírito pequeno-burguês corrosivo, estou me baseando no que me ens inaram ” . Eu não era um rebelde, um revoltado contra o m étodo stalinista. Eu achava que era o m étodo normal, que a revolução era assim mesmo, que o partido tinha que ser assim, de cima para baixo, au tori tár io , m andonista . M ais tarde en ­contrei este meu assistente, depois do 20° Congresso, aí por volta de 19.59...

Depois do 20° Congresso do PCUS, em 1956, quando Kruschev denun­ciou os “crimes de Stalin”...

É, depois de 1956, por volta de 1 9 5 8 ,1 9 5 9 . Encontrei com ele no Flamengo, num bar, de m anhã , bebendo cachaça. E ele foi muito simpático, me abraçou m uito , foi m uito afetuoso, disse que eu era uma vítima do stalinismo [risos], que eu tinha me revoltado, que ele me colocava com o um pioneiro na luta con tra os nossos m éto ­dos, “que coisa abominável, com o nós éramos abom ináveis” ... E eu capitulei, ver­gonhosam ente aceitei esse pioneirismo. Fiquei com vergonha de dizer para ele que eu não era p ioneiro de coisa nenhum a, que, na verdade, eu me sentia incômodo, mas por razões absolutamente não fundamentadas. Então eu saí e depois nunca mais o vi. Se me encon trar com ele vou ter que retificar e dizer: “ O lha, eu achava aquilo normal, achava esquisito mas n o rm a l” ...

Eu peguei m uito pouco do stalinismo mesmo, porque a minha militância de 1951 até 1956 foi uma militância meio truncada. Fui suspenso, não por revolta con ­tra o m étodo stalinista, mas po rque faltava ã nossa tarefa mais im portante, que era a de subir o m orro dom ingo de m anhã cedo. D om ingo de m anhã cedo a gente su­bia o m orro para distribuir o material do partido na favela. E a coisa mais im por­tante da minha vida era a festinha de sábado à noite. Naquele tem po, os costume*^ eram duros, entâo a gente não tinha muita perspectiva de, com o se diz agora, “ama» - rar uma n in fa” . Então eu ficava na esperança, passei muitas e muitas festinhas de sábado “ na esperança” , ficava até o fim da festa. Saía às quatro , cinco horas da m anhã , para acordar às seis e meia, e, claro, não acordava. Eu estava longe de ser um modelo de militante, sabia disso, me sentia dividido, porque, por um lado, eu lamentava esse fato sinceramente, e, por ou tro lado, dizia: “ Bom, mas não tem outro

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jeito, porque cu sou o que sou, vivo aqui, tenho meus am igos” . Eu tinha um cír­culo de amizades, de pessoas que não tinham nada a ver com o partido , e eu par t i­cipava desse grupo, ia para as festas e tal, en tão não fui um bom militante. Fui sal­vo pelo Kruschev. Aí passei a militar mais, com uma atividade maior. M as aí o ambiente já era ou tro , a era kruscheviana, a gente não tinha mais essa situação meio ridícula que tinha antes, e eu fui me entusiasm ando com a possibilidade de partici­par dessa renovação, dessa m udança no partido , trazendo umas idéias novas, uma atitude mais civilizada, mais polida, mais sofisticada tam bém intelectualmente. Os meus com panheiros passaram a acolher melhor algumas idéias e eu buscava essas idéias, ficava ávido por elas. Sou muito marcado pela descoberta do IGeorg] l.ukács. Meu pai viajava m uito com o movim ento Partidários da Paz, que era um biombo do partido, da pax soviética. Papai era o secretário desse movim ento no Brasil e viajava muito. Ele perguntava aos com panheiros: “ O que há de novo aí em m até­ria de crítica de arte, de crítica literária?” . Ele sabia que o meu negócio era cultura. Então ele t rouxe do Lukács O significado presente do realismo crítico, e, em segui­da, eu comprei A destruição da razão. E aí fiquei deslumbrado; “ah, en tão é possí­vel ser culto, sofisticado e ser um verdadeiro m arxista” [risos]. Passei, então, a querer ser igual ao Lukács.

Você falava alemão em casa?N ão. Meu bisavô era alemão, meu avô era nascido no Brasil, mas ainda era muito ligado à cultura alemã. Mas meu pai não. Q uando virou comunista , em 1934, a b a n ­donou completamente essa linha familiar, essa tradição da família, então já não sabia alemão. Eu tive que aprender o alemão do começo.

No começo então você lia Lukács em tradução...Em tradução francesa e italiana. O José Guilherme M erquior tam bém se entusias­m ou por Lukács num certo m om ento . Eu o conheci mais ou menos nesse período, e aí a gente lia Lukács em italiano, muitas vezes em francês, pouca coisa em inglês, em por tuguês q u an d o calhava de ter, mas era raro . O Lukács passou a ser um modelo. Aí vem o Carlos Nelson [Coutinho] com [Antonio] Gramsci. O Carlos Nelson escreve da Bahia, me m a n dando um artigo sobre Sartre, para a revista Es­tudos Sociais, fundada em 19.58 pelo Armênio Guedes e outros. T inha uma luta interna na revista e o Armênio teve a idéia de dar um golpe, hábil, dizendo: “ Preci­samos trazer gente de sangue novo para o Conselho de Redação da revista” . Então botou lá Fausto C^upertino, Jorge Miglioli e eu. E realmente passei anos participando das discussões sem perceber que havia duas tendências. . \s vezes eu estava de um lado, às vezes do outro, exercendo o meu direito de ser independente, mas sem avaliar bem o que estava acontecendo, as conseqüências das posições que se contrastavam. Eu participava da revista, sim, dava idéias e tal. e recebi esse artigo do Carlos N el­son, achei muito interessante, mas um com panheiro ficou meio preocupado e “ sen­to u ” no artigo duran te vários meses. O Carlito escrevia da Bahia ansioso: “com o é que é, não tem solução para o meu tex to?” . Eu não conhecia o Carlito pessoalmente, só o conheci depois. Escrevia para ele, “olha, estamos ten tando e ta l” . Q u a n d o o com panheiro relutante resolveu aprovar, ele propôs que se criasse uma seção na

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revista com o título “ Problemas em deba te” , ou “Tem as em deba te” . M as o artigo saiu e foi com entado por Álvaro Vieira Pinto, do ISEB, que o elogiou e teve a im­pressão de que o au to r devia ser jovem. De fato, o velho Vieira Pinto levou um susto quando soube da idade que o Carlito tinha então: 17 anos. “ Um rapaz de 17 anos escrever um artigo com o aquele! ” Através do Carlito entrei em contato com (íramsci. E o Gramsci dava para a gente uma coisa que o Lukács não dava. O Lukács dava parâm etros para a política cultural e dava fundam entos filosóficos. M as a política do Lukács era enfeudada no leninismo, integrada na tradição leninista, pu ra e sim­plesmente. E o Gramsci tinha um a coisa meio nova que me fascinou um pouco, no meu período gramsciano. Depois descobri [Walter] Benjamin.

Quando foi?Foi gradual. Eu li em 1964 “A obra de arte na época de sua reprodutibil idade téc­n ica” . Peguei um Benjamin que era mais fácil de ar ticular com a doutr ina do mar- xismo-leninismo, que continuava a ser a referência essencial para mim. Depois fui descobrindo ou tro Benjamin, fui re lu tando em adm itir que aquele o u tro Benjamin era m uito esquisito. Eu dizia: “T enho que en tender” . Foi um processo de sedução, eu fui me sentindo seduzido cada vez mais pelas heresias benjaminianas.

Sabemos que quando Carlos Nelson Coutinho escreveu um artigo na revista da Faculdade de Direito da Bahia, você teve acesso a esse arti­go e escreveu uma carta para ele. Era uma atitude comum essa sua, a de tentar buscar intelectuais onde você os achasse, ou foi um caso es­pecífico com o Carlos Nelson?

N ão , em geral não é muito fácil achar um pensam ento articulado, rigoroso, vee­mente. M as em princípio sou m uito curioso. Eu me sinto profissionalmente muito bem encam inhado com o professor. Adoro dar aula, acho que é a gratificação maior para o meu narcisismo. M eus amigos me escutam com pouca paciência, em casa é um a loucura. Em casa, quando começo a falar, m inha mulher, que é jornalista, logo diz: “V am os Leandro, dá o lead da m a tér ia” [risos]. Eu digo: “ A matéria não tem lead". “ Então deixa para depois.” Lá na Faculdade, não; lá eu dou aulas, tem aquelas criaturas que me aturam , escutam o que eu falo assim meio hipnotizadas. Aí dá uma sensação de prazer físico, um calor assim que sobe [risos], ad o ro dar aulas. E sem­pre aparecem alunos m uito inteligentes, a í eu fico meio fascinado, eu gosto de con ­versar, convido para tom ar café, bato papo em bar. Bar é fundam ental , o bar é um ambiente m uito especial. Acho que tenho o que Bakhtin cham a de um a vocação dialógica. Eu gosto de diálogo, uma pessoa inteligente me fascina um pouco por isso, pela possibilidade de ap render algo de novo, mesmo que seja um a coisa e rra­da, depois a gente corrige.

O Carlito, eu me lembro, me entusiasmou muito. Esse artigo dele, “ A proble­mática atual da dia lét ica” , é um artigo que ele escreveu bem jovem, acho que ele t inha 16 anos, é an ter io r ao artigo sobre Sartre. É um artigo fantástico, porque é um q u ad ro de referências de um a riqueza espantosa , um a audácia, formulações teóricas audaciosíssimas, e ele mais ta rde disse assim para mim: “Eu botei lá tudo o que eu sab ia” .

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Por que você foi fazer direito?Fiz direito porque gostava daquela encenação do júri, gostava de júri, cheguei a fazer algum júri. M as depois descobri que para você ser eficiente com o advogado, advo ­gado criminal, você tem que pegar o processo já na fase inicial, na polícia. E eu tenho um problem a de saúde, eu tenho “alergia a polícia” |risos|. Então não podia ser advogado criminalista, virei advogado trabalhista e aí, através do partido , entrei em con ta to com sindicatos nos quais a direção do partido tinha hegemonia. Então comecei a traba lhar com o advogado sindical, até o golpe de 64. C om o golpe de 64, fui demitido de todos os sindicatos, muito polidamente. .Muitos dos interventores diziam: “Tem os boas referências profissionais a seu respeito, mas o senhor é um no tório com unista , en tão não podem os mantê-lo a q u i” . E eu dizia: “ Claro , claro, com preendo perfeitamente” . Pagaram as indenizações todas, en tão passei um ano “ vivendo de vagabundagem ” , es tudando , lendo, fazendo revisões para a Civiliza­ção Brasileira, e mudei de vida, abandonei a advocacia. Desde 1964 não advogo. Eu tinha p lanejado escrever um ensaio inovador sobre Kafka. Pois aí tinha um p ro ­blema; eu era lukacsiano, mas adorava o Kafka. Então, resolvi escrever um ensaio resgatando o Kafka. Fichei a obra toda do Kafka...

Já influenciado pela leitura do Benjamin?N ão , ainda não tinha lido Benjamin sobre Kafka. Foi um a coisa meio empírica mesmo, fui descobrindo Kafka lendo o Kafka, e construí uma estru tura de um en­saio e a es tru tura não resistiu ao acúm ulo do material empírico. Q u an d o fui reler as minhas fichas, as m inhas fichas não confirm avam a minha “ hipótese brilhan te” . E ntão fiquei com aquele material na mão, e me p rocuraram para participar de uma coleção Vida e O bra . A José Álvaro Editora tinha sido assum ida por Jo ã o Rui Medeiros. Ele me conhecia e me perguntou: "Você quer fazer que personagem ?” . Eu disse: “eu quero fazer o M a rx ” , mas o .Marx ele havia dado para o Carlos Estevam Martins, que tinha escrito sobre Freud e t inha sido um sucesso danado . O João Rui .Medeiros disse: “Você propõe alguma coisa, você não quer fazer sobre o Mao-Tsé- T u n g ?” . Eu disse que não. Aí eu propus Kafka. Ele aceitou e em dois meses fiz o Kafka. E ele não sabia que eu já tinha lido, fichado o Kafka todo [risos]... Foi fácil fazer o livrinho, o livrinho resultou de um fracasso. D o fracasso de um projeto de ensaio, saiu o livrinho de divulgação. Então ele ficou muito impressionado com a rapidez com que eu fiz o Kafka e ficou m uito mal im pressionado com o fato de o Carlos Estevam estar d em orando muito para fazer o .Marx. Ele descobriu que o Carlos Estevam não tinha com eçado e deu o M a rx para mim. Então eu fiz o Marx: vida e obra e fiz Os marxistas e a arte. Isso tudo antes do exílio: fiz quatro livros jíntes do exílio.

Pensando no Carlos Estevam Martins e no Vieira Pinto, qual era a suarelação com o ISEB?

Fui a luno do ISEB e dei um curso a convite da Associação dos E.x-Alunos do ISEB, que era dirigida por Alberto Latorre de Faria. .Mberto Latorre de Faria me convi­dou para participar de um curso, primeiro junto com o .Merquior, sobre estética, e nós fizemos um curso juntos. E a mim me convidaram para fazer a estética de M arx.

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Depois disso, dei um curso sozinho, de qua t ro aulas, de In trodução à Filosofia de M arx. Esse curso gerou um a apostila que foi achada depois do golpe de 64, e eu fui cham ado. Fui pensando que ia ser acusado, mas o coronel que era responsável pelo inquérito me disse; “ O senhor vai depor com o testem unha, ainda não é acu­sado. N ós acham os essa apostila sua e eu queria que o senhor confirm asse” . “ C o n ­firm o” , eu disse. “ Realmente está boa a apostila, li, não é p ro p ag a n d a .” Eu fiquei animado. Bom, aí ele perguntava: “ O senhor foi a luno do curso do professor Vieira P into?” . “Fu i” , disse eu. “E ntão o senhor não pode se recusar a dar uma opinião sobre o curso. T endo participado do curso do professor Vieira Pinto, pode confir­m ar que o curso contribuía para a agitação das m assas?” “ Respondeu que. . .” — aí passou a palavra para mim, e eu, d itando — “ Primeiro, as massas jamais com pare ­ceram às aulas do professor Vieira Pinto, que, se não me falha a mem ória, tinha oito alunos. Segundo; se as massas comparecessem, não entenderiam o professor Vieira Pinto, que tem uma linguagem m uito abs tra ta , muito hegeliana” . Naquela época eu não tinha condições de dizer o que diria hoje: “ meio ad o rn ia n a ” . M inha ligação foi essa. N a época a gente simpatizava um pouco com aquele espírito do ISEB. O Armênio achava que essa idéia da tese da revolução nacional tinha um efeito colateral perverso, que era o de colocar o inimigo lá fora e a tenuar a dram atic idade da contrad ição interna, isso a gente enxerga hoje, naquela época as pessoas não enxergavam. O Armênio dizia, justificando a linha do partido que convinha ã União Soviética obviamente, que a gente poderia modernizar o partido através dessa li­nha. Essa linha para nós internamente era boa, em bora trouxesse esse efeito colateral que era, primeiro, o de prender o partido a uma linha conveniente à U nião Soviéti­ca, antiimperialismo, antiam ericanismo, e, em segundo lugar, a tenuava um pouco a radicalidade da nossa política na crítica à burguesia brasileira, . '\rgumentava-se que por aí a gente conseguiria arejar o partido. “ Privilegiando o nacional, temos a opor tun idade de causar are jam ento cultural no partido , o que obriga os com unis­tas a conhecerem o Brasil. O s com unistas vêm com esquemas doutr inários , soviéti­cos, e desprezam a realidade brasileira. A realidade brasileira é encaixada dentro dos esquemas dou tr inários . Agora, a gente os obriga a m ergulharem na cu ltu ra brasileira, na diversidade da cultura brasileira” . Isso na época me pareceu convin­cente. Aí a gente simpatizava com o ISEB, ia lá e tal.

£ dat até o exílio, conto é que você vê esse período?Esse foi um período interessante, o período de 1967, 1968. N ós t ínham os um a en­tidade, uma organização cham ada Comitê Cultural do Partido. Eu era membro dessí ■ Comitê Cultural, e esse Com itê Cultura l não traçava política cultural, não tinha a pretensão de traçar um a política cultural para os intelectuais e artistas cariocas. .Vias ele tinha a preocupação de ten tar facilitar uma certa coordenação entre m ov im en­tos já existentes e jamais recebeu ordens da direção. Fizemos algumas bobagens? Eu acho que fizemos, mas foi por con ta própria , não foi por culpa da direção. O pessoal imagina que o Com itê Cultural era “o braço de M oscou chegando ao Bra­sil” , que o braço da direção do partido m anipulava o Com itê Cultural. O Comitê C ultural era um negócio que tinha Ferreira Ciullar, tinha o Vianinha, uma porção de gente. Uma vez o Gullar, que era o assistente do g rupo das bases do teatro, ti­

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nha uma reunião im portan te — o g rupo estava em crise. M as o Gullar estava com um a febre de 39 graus, en tão me telefonou e pediu para passar na casa dele. “Vou te pedir uma coisa, você vai dar assistência à reunião do pessoal do teatro, reunião am p liada .” Então eu disse: “ Qual é a l inha?” . “N ão , não tem linha, você tem que evitar que eles se devorem, só isso, porque não há contrad ição política ali que não esteja ligada intimam ente a contradições pessoais. Então, tudo é pessoal e você vai com a sua au toridade de dirigente, representando a direção do Com itê Cultural, e vai evitar que eles pa r tam para a guerra total, uns com os o u tro s .” E realmente foi uma experiência inesquecível, foi em 1967, no final do segundo semestre de 1967. Tinha pessoas que eram muito simpáticas, tipo Cecil Thiré, que perguntava: “ Q uantos minutos eu tenho?” . Se você dissesse três minutos, ele falava mais devagar; se dis­sesse dois minutos ele falava mais depressa; ele regulava o r itm o da fala pelo tem ­po que tinha. Um cara m uito simpático. T inha José Wilker e tinha o nosso querido Vianinha, que era uma pessoa admirável, mas que tinha uma vida am orosa muito complicada. Um amigo dele uma vez disse que ele passava pelas mulheres com o um tra to r , que deixava mágoas, ressentimentos. E toda vez que o Vianinha falava o Wilker falava em seguida e o esculhambava. Depois da quinta ou sexta vez que o Vianinha falou e o W ilker se esquentou em seguida, já estava todo m undo rindo e o Wilker disse: “ Do que vocês estão rindo? Vocês estão pensando que eu tenho um problem a pessoal com o com panheiro Vianinha? Pois eu tenho mesmo, entendeu, eu tenho mesmo. N unca vou perdoar o que você fez com a Fulana, seu canalha . . .” [risosj. Aí eu fui obrigado a dizer: “ Calma, com panheiro , quero lembrar que es ta­mos num a reunião política, as coisas têm que ser discutidas politicamente, p roble­mas pessoais não devem ser discutidos aqui d en tro . . .” . Me lembrei da recom enda­ção do Gullar, sábia recomendação.

Como você recebeu a teoria da dependência?Eu acho que um a das coisas que me deu m uito o que pensar foi o risco de a gente subestimar a luta de classes aqui dentro e o inimigo, as classes dom inantes brasilei­ras. Isso me deu muito o que pensar, inclusive o Fernando Henrique. Hoje ele é muito irritante, demais, uma coisa horrorosa. M as eu me lembro da leitura dos livros dele no passado com o uma coisa que foi significativa para mim. Estive ou tro dia discu­tindo com o César Benjamin. O Cesinha queria instituir um prêm io para quem conseguisse provar que o Fernando H enrique alguma vez na vida teve um a idéia inteligente, e eu disse: “ Cesinha, não faz isso, que eu me can d id a to ” [risos].

£ como você via a diferença entre o ambiente cultural carioca e o am ­biente cultural paulista, quer dizer, inclusive as diferenças de leiturado Lukács, a que era feita em São Paulo, e as que vocês faziam aqui?

Eu nunca analisei isso mais refletidamente, mas tenho a impressão de que, em São Paulo, o funcionam ento da universidade com o instituição teve efeitos mais sensí­veis« do que no Rio de Janeiro. N o Rio, nos ambientes intelectuais prevaleceu d u ­rante m uito tem po, não sei se ainda prevalece hoje, mas prevaleceu duran te muito tem po um individualismo mais acentuado. Então as pessoas se organizavam muito em to rno de indivíduos. E em São Paulo a prática do traba lho universitário criou

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condições para uma autodisciplina um pouco menos precária do que aqui. Eu acho que a inteiectuahdade pauhsta trabalha mais disciplinadamente no p lano da cons­trução teórica. O Werneck Vianna, que é ou tra pessoa muito curiosa tam bém , um teórico m arxista do PMDB, tem umas coisas muito engraçadas, interessantes. Ele diz que o Rio de Janeiro é um cemitério dos marxistas. O m arxism o se caracteriza por p rocurar sempre pensar a centralidade do traba lho , da produção . E o carioca, dizia ele, vive em to rno do imaginário, o carioca joga muito. A p roporção do jogo na população carioca é incrível, jogam no bicho, jogam nos cavalos, jogam na loto, jogam na quina , jogam no bingo, furiosa, freneticamente. O centro da vida do ca­rioca é mais o imaginário do que o trabalho. O marxista , aqui, está ferrado.

Você tomou a decisão de ir para a Alemanha logo depois do A IS ?N ão , não, eu fui preso em 1970, e aí o advogado, na época, me disse o seguinte: “ Você deu azar porque o seu processo está bem feito. N orm alm ente os processos estão sendo muito malfeitos, havendo a possibilidade de num tribunal a gente vir a anular tudo , mas o seu processo está bem feito” . E aconselhou-me a sair do país. N a época havia dois casais de alemães que eu conhecia e que estavam aqui no Rio de Janeiro, um deles social-democrata, o ou tro dem ocrata cristão, e foram muito solidários. Estavam contra a d itadura totalmente; em bora meio conservadores, me a judaram a sair daqui e facilitaram m uito a m inha chegada ã A lemanha. Depois eu consegui uma bolsa, uma bolsa pequena, ordinária . Posteriormente consegui um emprego na universidade, bem pago, em Bonn.

Já dominava o alemão at?N ão. Eu tinha com eçado a estudar em 69, antes da prisão. Leon H irzm an, Carlos Nelson C ou tinho , eu e duas amigas nos m atr iculam os no Instituto ( ioethe para estudar e todos foram ab a n donando aos poucos, largando, mas eu fiquei lá, neu­rótico obsessivo, até o fim. Isso foi ó tim o porque me deu uma base. Eu devo dizer o seguinte: fui para a Alemanha, em 1972, com a convicção de que sabia alemão, por causa do curso do Instituto Goethe, mas quan d o cheguei lá, as pessoas não fa­lavam as coisas que estavam no meu livro [risos]. Tive um a dificuldade enorme, fi­quei uns seis meses zanzando , ouvindo palestras na universidade e alegre quando percebia que se m udava dc tema, “ ih, m udou de assunto, m udou dc assunto . . .” . Até que um dia deu um estalo e comecei a ler, descobri que estava dando para ler. Então li, passei lá cinco anos, em cinco anos deu para desenvolver um conhecimento passivo bastante bom , o conhecimento ativo é mais restrito. Eu falo alemão, mas falo com pouca desenvoltura, sem sutileza nenhum a, não dá para falar coisas ele ­gantes e sutis. M as leio, em geral, sem dificuldade.

Como você pcusa as etapas do seu desenvolvimento intelectual? Já vi­mos que o marxismo e o leninismo foram marcantes até meados dadécada de 60...

E verdade, acho que sim. Agora, acho que o período na Alem anha foi importante. É claro que a gente filtra sempre lembranças divertidas e tende a cancelar lem bran­ças m uito desagradáveis. M as o período da Alem anha, que foi m uito desagradável

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em alguns aspectos, foi m uito gratificante em ou tros. D esagradável era a angústia de não saber se um dia cu voltaria ou não. De vez em quando vinha aquela idéia: “ F. SC a d itadura der certo? Se ela se p rolongar por várias gerações, eu vou ficar aqui, vou m orrer aqui na A lem anha?” . T an to que virei meio h ipocondríaco lá. Lem bro que ficava me observando , observando o meu organism o, e um dia senti um a dor e disse: “ Eu vou m orrer, vou ter um in farto , m orrer sozinho a q u i” . Cheguei a ab rir a po rta , destranquei a porta para não precisarem arrom bá-la q u an d o eu com eças­se a feder, deitei-m e na cam a para m orrer e aí arro tei e “passou o in fa rto ” . Fiquei meio desm oralizado a meus próprios o lhos, foi m uito desagradável. Eu ia m uito a sebo na A lem anha, lia m uito. De repente encontrei A interpretação dos sonhos, e resolvi que ia ler; Freud é in teressante, Freud escreve m uito bem , m uito claro. Foi um a descoberta im portan tíssim a, até en tão eu pensava que sendo m arx ista eu sa­bia mais coisas do que o Freud, que as coisas essenciais eu sabia e ele não sabia porque não era m arx ista . N a m inha cabeça, desde jovem, tinha ficado essa idéia, e na Ale­m anha descobri que ele sabia mais que eu [risos]. Sobre as coisas essenciais ele sa­bia mais do que eu...

D epois eu li o M arx todo , naquela coleção da A lem anha O rien ta l, a Marx- Eiigels Werke. G anhei de presente do Sinval Bam birra. Ele, co itado , estava m oran ­do em Berlim O rien ta l, e ficou tão com ovido com um a m inha visita que disse: “ Eu vou te m andar isso a í” . Era a coleção, m andou pelo correio a coleção inteira. Eu ia lendo — lendo e fichando. Foi ó tim o para m im , foi um a coisa que aproveitei m ui­to bem no plano do pensam ento , da reflexão. Acho que foi só no exílio eu conse­gui “a rru m ar a ca sa” , tirando aquela m obília terrível da dou trina do m arxism o- leninism o. E para isso ajudou m uito tam bém a m ilitância, a retom ada da m ilitân­cia em Paris. Os com unistas brasileiros gostam de Paris, en tão se organizavam em Paris. A gente tinha reuniões a que eu ia sem pre, a m ilitância foi fundam ental. P or­que tam bém no p lano político eu estava com algum as idéias m eio delirantes, e des­cobri que elas eram delirantes na m ilitância.

Quem participava das reuniões nessa época?A rm ênio, ( 'a rio s N elson, M au ro M alin , A ntonio C arlos Peixoto, entre ou tros. E Aloysio N unes Ferreira, que era m uito engraçado . O com panheiro Aloysio tinha um as coisas m uito divertidas...

Você faz uma comparação entre o Lukács e o Benjamin, com respeito às interpretações que eles mesmos faziam das fases dos pensamentos deles. No caso do Lukács, as autocríticas mais se assemelhavam a au- tos-de-fé; e no caso do Benjamin, parece que ele setnpre encontrava meios de achar pontos de contato, de conciliar o seu novo ponto de vista com a sua produção precedente. Com qual dos dois você se identificaria mais neste aspecto?

Acho que com nenhum dos dois. Acho que Lukács tem um certo com prom isso com a con tinu idade que acho forte dem ais. D aí a necessidade dele de reconstru ir o pen­sam ento sem pre em função da preservação da con tinu idade na rup tu ra . H á um a ru p tu ra , m as no fundo , no fundo essa ru p tu ra não im pede que a herança seja re to ­

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m ada, desde que a gente faça um a lim peza de te rreno , que é o auto-de-fé. Limpeza de terreno: “eu errei, tenho que prevenir os o u tro s para não com eterem o m esm o erro que eu com eti” ; en tão há um acerto de contas “consigo m esm o” , e aí ele tem essa ilusão de preservar a con tinu idade, através das au tocríticas.

O Benjam in, ao con trário , dá por suposto que a vida hum ana é rup tu ra , e não se preocupa em perder tem po, explicando as m udanças. P orque ele dá po r suposto que as m udanças vêm m esm o e acredita num a espécie de con tinu idade subterrânea na m udança, e o m odo de ele scr ele é m udando m esm o. Existe um a continu idade, p o rtan to , nessa identidade, m as ela não depende da form a da continu idade. E eu não sei... eu não me sinto nem tão con tínuo , nem tão m arcado pelas rup tu ras, devo me en co n trar em algum terreno in term ediário aí.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­lações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Eu acho que, até m uito recentem ente, rea lm ente prevalecia aquela idéia de que o brasileiro não dá para a filosofia. A filosofia é um a coisa á rida , m uito ab s tra ta , o conceito é cansativo , en tão não era o nosso estilo. N ós som os um povo da im a­gem , nós som os da in tu ição , da sensibilidade, aqu i a coisa que mais ouço dizer é que Fulano “é m uito sensível” |r iso s |. E n tão é com plicado lida r com essa concep­ção... A gora, eu acho que um a base de com petência filosófica é constru ída ao lon­go de várias gerações, de m odo que não sei se vai d a r p a ra superar esse p recon ­ceito m uito rap idam ente , m as acho que já está sendo feito um trab a lh o interes­sante nesse cam po.

\ a sua opinião, quem seriam os filósofos brasileiros mais importantes?Ih, caram ba! É aquela pergunta que é difícil de responder porque você cita uns nomes, esquece ou tro s e faz m uitos inim igos... M as acho sim páticas as iniciativas das pes­soas. Confesso que me sinto m uito desencorajado de ler o traba lho da M arilena sobre Espinosa, A nervura do real, po rque é im enso... M as a M arilena é um a pessoa que seguram ente tom a iniciativas que eu acho m uito positivas. Tem os o G ianno tti, que é um a pessoa difícil. T am bém escreve coisas pedregosas e não estou aco m p an h an ­do o trab a lh o dele. M as vejo nele um a disposição que me é sim pática, me agrada. G osto m uito da interlocução, do papo com o R obeno Schwarz, com o Paulo Arantes, que pensam m uito parecido, acho que o pon to de vista deles é interessante e é tr a ­balhado de um a form a m uito instigante. As vezes não concordo com algum as coi­sas que eles fazem , m as isso não é decisivo. Decisiva é a co laboração que eles dão a esse trab a lh o de m apeam ento de conceitos, de prelúd ios à filosofia. Se não é filoso­fia, é um prelúdio a ela. G osto m uito do G erd B ornhein, que é um a pessoa a quem devo inclusive o m eu d o u to rad o . Ele foi o meu o rien tado r. E é um a pessoa que dá um as aulas estupendas. As aulas dele deviam ser gravadas, são obras-prim as. O Gerd é m uito ap a ix o n ad o pela filosofia e eu acho tam bém m uito positivo esse m ergulho dele na filosofia. A cho in teressantes tam bém os trab a lh o s do Em annoel C arneiro Leão, que é um cara erud ito em filosofia, que tam bém vai fundo na Cirécia. Q uem mais? F altou m uita gente...

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Que conceito (s) de sua reflexão você destacaria como mais represen- tativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

Eu, a rigor, me considero m uito pouco orig inal, acho que o tipo de trab a lh o que faço é m uito m ais um trab a lh o de crítica cu ltu ral, com um a dim ensão política. P ro­curo to rnar acessíveis algum as idéias, algum as construções teóricas, e eventualm ente trago algum a co labo ração que não considero m uito im portan te . D as coisas que escrevi, acho que a coisa m ais curiosa , m ais m inha, é a idéia do curriculum mortis. É um a espécie de revisão, um a re tom ada da velha au tocrítica que conheci de um a form a m uito ab asta rd ad a na m inha m ilitância de partido . Ficava m uito im pressio­nado , as pessoas faziam au tocríticas, com o eu fiz au tocríticas, abso lu tam ente in­sinceras ou sem i-insinceras às vezes; enfim , opo rtun istas. E ntão a au tocrítica virou um jogo den tro do partido . Era um a m aneira de você evitar um a punição , de cria r um a condição para poder co n tin u ar a fazer parte po liticam ente do partid o , não se queim ar, não se deixar excluir. Então a au tocrítica deixou de ser au tocrítica, p o r­que não era um m ovim ento pessoal, era um m ovim ento im posto pelas c ircunstân ­cias externas. N o en tan to , existe a necessidade da au tocrítica no p lano do m ovi­m ento pessoal, e aí, pensando nisso, eu me dei conta de que o curriculum vitae é um a peça ideológica. M as não só na universidade. Q ualquer cand ida to a em prego é obrigado a com eter esta infâm ia que é e labo rar o seu curriculum vitae, que é no m ínim o um a peça om issa, em geral m entirosa m esm o. Você apresen ta as coisas de m aneira a tran sfo rm ar pequenos êxitos em grandes êxitos e sob re tudo ocu ltar d er­ro tas. .^í percebi que um a das m aneiras de com bater esse triunfalism o da ideologia dom inan te , que com o diz o velho M arx é sem pre a ideologia da classe dom inan te , um a das m aneiras de com bater esse triunfalism o advindo da classe dom inan te se­ria privilegiar o curriculum mortis: fazer as pessoas — não no plano do cand ida to a em prego, em que se julga o curriculum vitae, m as no p lano da relação pessoal, da am izade, do am or — se expressarem e dizerem quais foram as besteiras que elas fizeram na vida, quais foram as trapa lhadas, quais os erros, as calhordices. Pois isso m olda o ca ráte r, form a a personalidade da pessoa. Enfim , essa idéia do curriculum mortis é um a idéia que me agrada.

No livro um da É tica a N icôm aco, Aristóteles coloca a dificuldade de avaliar quando um homem é ou foi feliz, apontando também para a importância de um autoconhecimento consistente, capaz de fazer a pes­soa enfrentar melhor os reveses da vida. Como você responderia hoje a essa questão de Aristóteles? Quando se pode dizer que uma pessoa é ou foi feliz?

N ã o tenho um a resposta para essa pergunta . Acho que a gente busca a felicidade, m as com o a felicidade é buscada por cam inhos sem pre pessoais, é m uito difícil fo r­m u la r um critério que valha para todos. A cho im portan te a gente querer ser feliz, m as a felicidade com o m eta me parece um a coisa m uito obscura . O conceito de felicidade tam bém não está claro . A Agnes Fleller, a últim a vez que veio aqui, fa­lou sobre esse assun to , dizendo coisas interessantes.

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Você sempre teve, nas suas obras, a preocupação de utilizar uma lin­guagem menos técnica do que aquela adotada pelos intelectuais aca­dêmicos, de modo a atingir um público mais amplo que o dos freqüen­tadores assíduos do “bordel filosófico”, para usar suas palavras no prefácio a O m arxism o na b a ta lh a das idéias. Como você avalia hoje os resultados dessa iniciativa e a contraposição freqüente entre o rigor do especialista e a teoria que atinge um público mais amplo? Aliás, o Antonio Cândido destaca essa sua característica na orelha do seu li­vro sobre o Benjamin...

É, o A ntonio C ând ido me deu força ah , sou m uito g rato a ele. Eu acho o seguinte: não há porque excluir a sim plicidade para a legitim ação de um tex to ... N ão há razão para con testar a legitim idade de um tex to científico se ele não está baseado no uso de um a linguagem difícil. Acho que às vezes a term inologia é com plicada porque não há o u tra m aneira de se tra ta r rigorosam ente um determ inado assunto , quer dizer, um a determ inada questão. M as não me vejo com o um inim igo da linguagem difícil. Ao m esm o tem po em que respeito a legitim idade desse uso de um a linguagem difí­cil, percebo que às vezes as pessoas se expressam , na academ ia, num a linguagem forçadam ente d ificultosa, quer dizer, num certo jogo, num jargão universitário que se desenvolve na exibição do traba lho de um professor para ou tro . Os meus pares vão me julgar; falarei a linguagem que eles respeitam . Acho que, em bora essa dificul­dade de linguagem possa ser com preendida, quando a gente aborda tem as que têm a ver com um a preocupação dem ocrática, a gente tem que ten tar ser coerente até com o p róprio princípio da dem ocracia, que é o princípio da am pliação. Eu não posso discutir questões que envolvem conceitos de dem ocracia me situando num plano que é inacessível à m aioria das pessoas que têm interesse na dem ocratização da sociedade. T enho que ten tar chegar a elas, dar um passo que seja na direção delas, ou tro s d a ­rão ou tro s passos. Realm ente tenho essa p reocupação em exercer algum a influência no sentido de encam inhar as discussões da m aneira m ais acessível para um público m ais am plo . G osto de fazer isso, gosto de sim plificar. Às vezes a gente sim plifica, se im pede de ap ro fundar, po rque faz essa opção , m as é um a opção. A gente paga um preço por ela; no meu caso, ela me sensibiliza. G osto desse tipo de traba lho que faço, nunca pretendi que ele seja um trab a lh o pad rão , que todo o m undo tenha que tra ­balhar com o eu. M as insisto em dizer que ele tam bém é um traba lho legítim o, válido.

Você se considera um iluminista?V'ocê me pegou num a má hora para d iscutir isso. Eu li a sem ana passada a q u e lf livro do Koselleck, Crítica e crise. O Koselleck é um h isto riador, um sujeito qu<> desconfio que é m eio conservador, m as que diz o seguinte: o ilum inism o foi o b r i­gado a en fren tar o Estado abso lu tista , e o E stado abso lu tista criou regras do jogo que o ilum inism o acabou aceitando p ara poder contestar o Estado absolutista. Então os ilum inistas se basearam na am pliação da esfera da m oral — Locke, por exem ­plo — para fazer política, m as sem dizê-lo. Independentem ente do fascínio pelas luzes da razão , deveríam os reconhecer que o ilum inism o nasceu m entindo , e isso criou um a certa hipocrisia es tru tu ra l. Fiquei m eio im pressionado com essa crítica, porque acho que talvez ela esteja form ulada de um a m aneira global contestável, po-

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lêniica, m uito discutível, mas não é absu rda , não. Eu não me identifico m uito com a perspectiva do R ouanet, que é um a pessoa de quem gosto m uito tam bém , com quem tenho um a relação m uito boa — a gente conversa m uito q u an d o ele está no Brasil — , m as acho que talvez ele tenha um a visão m uito positiva — dem ais! — do ilum inism o. Acho que sou m ais desconfiado do que ele em relação ao legado do ilum inism o. N ão sei se me considero um ilum inista, se bem que acho que todos nós devem os algum a coisa ao ilum inism o.

Pergunto isso porque acho que nos seus textos você parece fazer um gran­de esforço para formar o leitor, o mesmo leitor que você tem que dar por existente para poder escrever os seus livros. Não haveria uma afi­nidade desse movimento com o iluminismo do século XVIII? Será que a esfera pública brasileira não exige esse movimento de formar um lei­tor que a gente tem que dar por existente, para poder escrever os livros?

Vide Formação da literatura brasileira, do A ntonio C ândido . É possível, eu nunca tinha pensado nisso, é possível. Eu atuo nesse aspecto m uito in tu itivam ente, não é um program a que eu tenha. G osto de fazer assim e dou por suposto que quero me com unicar com um tipo de le itor que não precisou ter passado por aquela dura autod iscip lina que a universidade exige da gente. Q uero falar com o sujeito que foi m ilitante. idéia de m ilitante do partido que recom eça a viver, já depois da des­graça. Tem um , po r exem plo, que é meu vizinho. Ele é m uito engraçado , ele me lê aten tam en te, coisa que não fazia há alguns anos atrás. E ntão me agrada um pouco saber que estou levando algum as idéias para essas pessoas que viveram aquela his­tó ria e que ficaram m eio náufragas.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação pennanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

O lha, m eus conhecim entos científicos são p recários, não sou um a pessoa m uito escolarizada cientificam ente, não. Convivo mais com a arte , com a litera tu ra . N o próprio plano da teoria do conhecim ento, em vez de discutir questões epistemológicas e relativas à ciência, eu freqüentem ente me vejo d iscu tindo questões relativas à ex­periência da sensibilidade. C om o apreender a h istoric idade dos órgãos dos senti­dos, que o velho M arx colocou desde sua crítica a Hegel, qu an d o diz que os ó r­gãos dos sentidos apreendem e se m odificam . Os sentidos apreendem historicam ente as coisas e trazem subsídios para o conhecim ento . Esses subsídios devem ser confe­ridos pela razão , m as isso não pressupõe a possibilidade de que a razão substitua o s ó rgãos do sentido , eles não são passíveis de serem substitu ídos pela razão. En­tã o , é preciso refletir sobre a experiência estética, no plano da teoria do conheci­m en to m esm o. Fiquei freqüen tando esse cam po m uito m ais do que o cam po da epistem ologia científica.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como você se posiciona em relação a esse debate?

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Estou com M arx e não ab ro . C oncordo com a idéia de Mar.x, que está nos Manus­critos de 1844, de que os órgãos dos sentidos tam bém são históricos, tam bém se m odificam , se transfo rm am , vão desenvolvendo capacidades novas. A cho que a p a rtir daí é im possível pensar com o Hegel que a razão , o conceito , o espírito , subs­tituem a experiência estética, a experiência sensória! estética, que é tam bém p ro ­d u to ra de conhecim ento . Acho que os conhecim entos científicos e os conhecim en­tos artísticos são com plem entares e dão con ta de um a realidade inesgotável. O real é irredutível ao saber. E ntão , nós precisam os apreender o real de todas as m aneiras e nos m ais diversos níveis. Se subo rd inarm os a experiência de um desses níveis à experiência do ou tro , em pobrecem os, que é o que eu acho que Hegel fez. E m po­brecemos o cam po das possibilidades, da experiência cognoscitiva dos homens. Acho que a arte é um a fonte de conhecim ento m uito rica.

No seu livro sobre Walter Benjamin, O m arxism o da melancolia, há uma passagem em que você diz o seguinte: “Benjamin quer ser livre como escritor, como artista. Dispunha-se a escrever boa literatura e prosa, e como seu próprio livro nos ensina, a obra de arte literária não pode ser abordada como se fosse um mero documento. Na obra de arte, conteú­do e fortna se fundem num todo complexo, no qual a lei da forma é central”. Seria esse o ponto de partida para entender como você com­preende a relação entre a obra de arte e a sociedade?

A cho que sim. É um a idéia que está no jovem Lukács. Ele diz que a form a não é algo que você acrescenta ao conteúdo , não é um a doação de form a posterio r à fo r­m ulação do conteúdo . A form a é um elem ento es tru tu ran te do p róp rio conteúdo . O ensaio é um a form a que nos p ropo rc iona a possibilidade de d iscorrer sobre um cam po em relação ao qual a gente tem algum conhecim ento im portan te , mas que a gente não pretende dom inar. Essa form a do ensaio, p o rtan to , é adequada ao tipo de experiência que me d isponho a ap ro fu n d ar, a desenvolver. A cho que sem pre es­crevi cm form a de ensaio , a não ser em tex to com in tenção propagand ística, na m i­litância política. Aí é preciso transm itir um a coisa m ais d ireta. M as q u an d o escre­vo desligado da m ilitância, tendo a escrever em form a de ensaio.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo tal diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nómeno essencialmente nacional, e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des­frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

C om eçando pelo fim, eu acho que tem. A cho que hoje há um a consciência que se generalizou m uito m ais que no passado, m uito m ais que num passado recente, dc que as questões éticas têm um a significação política m aior que se supunha. Isso tem a ver com essa m undia lização que a gente verifica que está acontecendo. A cho, con tudo , que nesse processo da m undialização (que ao se acelerar é cham ado de

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globalização), en tra mais um a vez a ideologia, distorcendo algum as coisas e p rocla­m ando o fim do Estado N acional. É um a coisa bastante discutível. Acho que o Estado N acional está sofrendo m odificações, sem dúvida, algum as das suas prerrogativas estão sum indo ou estão d im inuindo. M as eu não endossaria um diagnóstico do tipo “ agora a política nacional a c a b o u ” . A cho que a política tam bém é um territó rio com plexo e diversificado. A cho que a dim ensão política está presente sob form as diferentes, nos diferentes tem pos da h istória . Existe a política que está presente na p reocupação do ecologista com o esgotam ento de alguns recursos na tu ra is , com o fim de algum as espécies. Existe a política da circunstância local — com a eleição do U ruguai, por exem plo, que aliás é hoje. Existe a política no âm bito da vida dom és­tica, den tro de casa. T u d o é m anifestação dessa dim ensão da política, m as a form a de lidar com a política varia. A cho que não se pode ap licar a m esm a postu ra polí­tica, a m esm a atitude política em todos os lugares, em todos esses m om entos. En­tão , eu não ignoraria a dim ensão nacional. Acho que a d im ensão nacional tem que ser repensada, assum ir características diferentes, mas não deve ser declarada extinta.

No seu ensaio sobre o Antonio Cândido, no livro Intelectuais brasilei­ros e o m arxism o, você cita uma frase em que Antonio Cândido afir­ma: “Não tenho vocação política, para mim a participação foi sempre um dever moral”. Essa frase também vale para você?

T enho certeza de que vale m ais para m im do que para ele. Acho até que ele tem algum a vocação política. Q uem não tem nenhum a sou eu.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?Eu fui m aterialista vulgar e achava que a religião era uma form a de alienação. T inha um a certa com iseração pelos religiosos, co itados. E depois, evidentem ente, mudei m uito. A h istória dessa m udança é m uito longa, m uito sinuosa. M as hoje em dia me sinto m uito à vontade em meio a alguns bravos com panheiros revolucionários religiosos, e me sinto m uito constrangido com alguns ex-com panheiros, ateus e cíni­cos, que às vezes são m ais m aterialistas até do que eu, m as que extraem do m ateria­lismo, o que acho m uito problem ático , um a postu ra de um a certa indiferença, de um certo desligam ento d iante das coisas. Acho que aquele belo texto de M arx , aliás um tex to que era c itado sem pre truncado , “a religião é o óp io do p o v o ” , m ostra que ele tinha razão , m as em relação às form as de conceitos religiosos que ele co ­nheceu. R ecentem ente fui convidado para falar num culto da Igreja P ro testan te de Ipanem a pelo pastor M ozart — que tem umas barbas grisalhas enorm es, gosta m uito de mim — e pelo V aldo Cézar, que era d ire to r da edito ra Paz e T erra no passado, luando a edito ra pertencia a ele e ao Silveira. V aldo Cézar e o pas to r M ozart orga- izaram um culto , e eu fui falar no cu lto , dei as m ãos, cantei os hinos, essas coisas das, e eles sabem que eu não tenho religião. M as fui para depois falar sobre valores cos, e foi um a coisa ó tim a porque senti um a cum plicidade enorm e do público, pessoas tendiam a conco rdar com igo. Antes m esm o de eu falar, já estavam co n ­

co rd an d o [risosj. M as o esp írito é esse: nós precisam os traduz ir essa nossa opção p o r um com prom isso com esses valores, traduzir em ação, fazer algum a coisa, isso é fundam ental.

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No seu breve ensaio “É possível fazer o Socialismo com fé em Deus?” você fala na importância de o marxismo estar aberto a todo tipo de adesão, sem qualquer discriminação. No entanto, você não chega a entrar no mérito da questão teórica, de uma conciliação do pensamento marxista com a crença religiosa. O que você teria a dizer sobre essa questão?

Acho que hoje nós tem os que pensar nessa d iversidade de form as da consciência rehgiosa e a tualiza r a perspectiva que herdam os do M arx . Q u an d o o M arx diz em O capital que o hom em constru irá a sociedade na qual as relações en tre seres h u ­m anos e dos seres hum anos com a natureza serão relações m ais racionais e tran s­parentes... A trad u ção do term o está atenuada: não é “c la ras” , é “ tran sp a ren te s” ...

Ou translúcidas...T ranslúcidas... Acho que nunca vão ser translúcidas. Aí com eça a m inha idéia de que não se pode postu lar a perspectiva de com bate à religião. M arx dizia que a religião é um reflexo necessário dessa sociedade, na sociedade com unista ela vai desaparecer po r si m esm a. A cho que isso é insustentável. Pode até ser que desapa­reça, m as não tenho o d ireito de afirm ar isso previam ente. Acho que a base em que M arx fez esta afirm ação é m uito frágil, não sei qual vai ser o fu tu ro . T enho que me ab rir para a possibilidade de refletir sobre o seguinte: e se a condição hum ana for tal que algum as pessoas, plenam ente, con tinuem a ter necessidades religiosas? Isso vai a trap a lh a r algum a coisa? Isso vai dificultar algum a coisa no essencial? N ão , não vai. Então nós tem os que pensar isso, d iscutir as form as da consciência religiosa, verificar que form as são alienadas e que form as não são, po rque eu consta to que existem form as que não são. Tem pessoas que se po litizaram através da religião. Eu vou cria r dificuldades? Eu, nunca.

Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma”, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem?

Estou pagando para ver, estou pagando para ver. G osto m uito de linguagem , m as sou m uito mal in form ado a respeito do assunto . O s meus dic ionários etim ológicos estão ali naquela prateleira [aponta]. São vários dicionários. Eu me d iv irto m uito lendo, mas não tenho base, não tive curso de lingüística, não tive curso de sem ân­tica. Até li depois, com prei um livro de sem ântica e li, mas acho meio chato. O barato é ficar pescando etim ologias...

Como você se posiciona em relação ao pós-modemismo?O lha, reagi m al. T enho um a má vontade ex trem a e agora um grupo de alunos c o r seguiu essa coisa ex trao rd in ária que é me convencer a, no m eu grupo de pesquis- 1er o Jam eson. Os m eus pesquisadores todos sofrem da revolta con tra o pai [riso Então resolveram , “ vam os 1er o Jam eso n ” : “ se você é um m arx ista , não pode recusar a 1er o Jam eso n ” . E ntão vam os 1er Jam eson para discutir o pós-m odern ideologia na pós-m odern idade. E ntão , estou fazendo leituras coletivas do Jame^ p ara pôr em discussão. Estou ten tan d o vencer essa m inha repugnância , tent p enetrar um pouco naquele universo pós-m oderno , que vejo com um a m á \( enorm e. Q uero ver se tem algum a coisa a ap render aí.

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Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu ­turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

O lha, é possível que eu seja meio u tópico , sim, mas sem ter m uita consciência dis­so. Porque acho que a u topia desem penha um papel im portan te na história cu ltu ­ral, m uito m ais com o indicação do que com o resposta a alguns problem as que dão origem a ela. Acho que ela é e.vpressão desses prob lem as, ela é um a etapa , ela é um m om ento de reflexão, mas não é encam inham ento de solução prática, porque acho que u topia traduzida em política se to rna pragm ática. Isso não é um argum ento con tra a u topia. Acho que a u top ia no seu âm bito p róp rio é estim ulante. F.ia am ­plia o cam po dos possíveis, am plia o cam po do pensável, que é um a coisa preciosa. .Mas, se ela se transform a em program a político, ela exerce um a certa violência sobre os que não partilham da convicção u tóp ica, ela tende a se to rn a r m eio p rob lem áti­ca. Ela subestim a a força da resistência ã m udança. Ela desencadeia paixões meio tum ultuadas no plano da tradução em program a político. .Sou con tra , p o rtan to , tra ­duzir u topia em problem a político. M as pensar a utopia com o am pliação do cam ­po do pensar, ou do cam po do possível, acho que é base im portan te. A cho que os u topistas ensinam coisas para a gente. N ão a fazer política, m as ensinam a pensar, a encarar o u tro s problem as e a pensar em direções a serem experim entadas... Às vezes, até p o r um a certa incom petência política, tendo a me anco rar em aspirações utópicas. .Mas consciente de que não convém fo rm ular essas aspirações com o um program a de ação. O program a de ação é ou tra coisa. O program a dc ação depen­de da análise da cham ada correlação de forças, e eu não sou bom nisso.

Herbert Marcuse dizia que a utopia sempre teve uma função importante no desenvolvimento do pensamento, porque, quando a realidade se trava para a emancipação, o pensamento utópico se tom a um pensamento progressista. Será que não vivemos num período semelhante?

A cho que sim , acho que nós estam os vivendo num m om ento em que a u top ia dei­xou de ser um risco temível, passou a ser algo que falta. Eu daria um a imagem : H um phrey Bogart dizia que todo ser hum ano está duas doses de uísque aba ixo do seu norm al. Segundo C arlito , há duas interpretações possíveis para essa frase. Uma delas deve ser a in te rp re tação reform ista: você tom a duas doses de uísque e chegou ao seu norm al. A o u tra é que. por mais que você beba, você está sem pre duas doses de uísque aba ixo do seu norm al. .Mas deixando de lado essa questão interessante ap resen tada pelo C arlito , eu diria que nós estam os num m om ento , nessa época de neoliberalism o e pós-m odern idade, em que estam os duas doses de u top ia abaixo do nosso norm al. A gora, na linha reform ista , quer dizer, tom ando as duas doses, é bom para r, porque senão a terceira já dá um grande porre , um porre grandioso.

Seu mais recente livro publicado versa sobre a obra de Fourier, um fi­lósofo que vê no prazer um elemento fundamental da vida humana, um elemento que tem que ser levado em conta na imaginação teórica de uma sociedade mais justa ou, para usar um termo do autor, mais har­mônica. Como você vê os vínculos entre prazer e política, entre prazer e reflexão teórica?

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Acho que o cam po do prazer é um cam po cuja im portância o m arx ism o em geral subestim ou. C om exceção do M arcuse, que bate nesta tecla. Para a m inha alegria, descobri que o Lukács tra ta Fourier com m uito respeito . O que é um a coisa engra­çada, pois não é bem o estilo dele. M as o Fourier tem , do cam po do p razer — que ele resgata, cuja im portância ele salienta — , um a visão que nós hoje só podem os considerar meio sim plista. Ele m itifica um pouco o prazer e confia um pouco de­m ais em todas as form as de prazer. E ele diz que, q u an d o há um a form a perversa— ele sabe que existem form as perversas de prazer — , é porque é o p razer dos ci­vilizados, conseqüência da deform ação causada pela civilização. M as não é só isso, acho que é m ais com plicado. A cho que hoje, depois de Freud, está criada a possi­bilidade de a gente exam inar com espírito m ais crítico essa d iversidade no cam po do prazer, as necessidades in ternas do cam po do prazer. O que não quer dizer que a gente não esteja a tra sad o em relação a esse problem a e que não seja um a tarefa im portan te , até po liticam ente, tra b a lh a r esse tem a. Acho que hoje a indústria cu l­tu ra l, p o r um lado, populariza um a grande d iversidade de form as de prazer; por ou tro lado frustra as pessoas. O sujeito vê form as de prazer na televisão e está excluí­do delas, de m odo que a questão do prazer se to rnou um a questão dem ocrática m uito im portan te. O que se pode fazer para supera r esse fator, essa o rganização g erado ­ra de frustrações e de infelicidade? Eu acho que esse tem a fourieriano está reapare­cendo com força, e a gente tem que encará-lo .

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais pro­blemas?

Eu estou, com o todos nós, “ num m ato sem c a ch o rro ” . Se alguém não estiver nessa situação, por favor me diga, que me interessa m uito conversar. A inda há pouco falava do m eu vizinho, d izendo que ele era um náufrago ... eu me dei conta de que ele não é o único, eu tam bém estou agarrado a um a tabu inha que sob rou do barco em que eu estava. Acho que essa “ situação de n áu frag o ” to rna m uito dram ática a percep­ção desse p an o ram a. Esse q u ad ro é m uito preocupan te , e m ais p reocupan te ainda pelo fato de nós não term os sequer a perspectiva de um a m obilização de forças, de organizações, de coletividades capazes de influir na transfo rm ação da situação , da realidade. Lem bro Sartre, que um a vez falou desse negócio de nós fazerm os a nos­sa h istória . De nós passarm os a fazer a nossa h istó ria em lugar da h istória que tem sido feita po r eles. Eu até gosto dessa fórm ula. O problem a é saber quem som os nós agora , no caso. É saber qual é a nossa p roposta para nos organ izarm os, nos m obilizarm os e “ fazerm os a nossa h is tó ria” . Esses riscos am bientais globais são um p ro d u to da h istória deles. É o resu ltado da história que con tinua sendo feita por eles, e nós no caso estam os num a situação d ram aticam ente difícil para nos co n tra ­porm os a isso que eles estão fazendo, a esse m undo que eles criaram . A cho, porém , que não tem os que desanim ar. Joel B irm an, num dos seus últim os livros, se não me engano A modernidade e o mal-estar da atualidade, fala sobre a condição hum ana de desam paro. D esam paro, sim: ele escreve sobre isso várias páginas brilhantes, mas depois nos adverte, para não deixar que o desam paro se transfo rm e em desalento.

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Acho que é p o r aí: desalento , não; se for preciso, a gente ingere até um a terceira dose de u top ia para sair da fossa.

Como você vê o marxismo hoje?O lha , não sei se o term o m arx ism o é um term o que tem m uito fu turo . M as sei que alguns autores, a partir do próprio M arx , têm futuro. C om eçando por M arx: quanto mais vo lto a ele, mais me convenço de que “esse rapaz tem fu tu ro ” [risos]. E a l­guns au to res que, no desdobram ento das idéias de xVIarx, no esforço p ara traduzir essas idéias em ação, se destacam com o au tores que têm um a vitalidade grande. N ão sei se o m ovim ento , se o con jun to vo lta rá a assum ir a form a de um a concepção teórica, e s tru tu rad a , articu lada. .Mas há um m ovim ento p rático , h istórico , político e tam bém teórico no sentido de que tem repercussão, tem conseqüência, tem anco ­ragem na teo ria — é um m ovim ento que me parece co rresponder a um a necessida­de m uito p ro funda no m undo de hoje. Presum ivelm ente existirá no início do século XXI tam bém . Q uer dizer, o pensam ento do M arx e o pensam ento daqueles que des­d o b ra ram as idéias do M arx se desenvolveram em função dos problem as que a so­ciedade cap ita lista tinha criado , e eles es tão todos de pé, todos perm anecem irre- solvidos. E n tão , na m edida em que eles não resolveram os problem as e esses p ro ­blem as são p roblem as reais, sou o tim ista , acho que vai ressurgir um a força. Pode eventualm ente até não se cham ar m arxism o. N ão brigo pelo nom e, não ; eu brigo pelo espírito , o espírito que vem do velho M arx e que nos an im a, que evita o m er­gulho no desalento. Esse espírito vai ressurgir, acho que já está ressurgindo...

E esse espírito nos ronda também, ou só ronda a Europa?Acho que ele nos ronda, talvez até mais a nós do que à Europa. Se bem que o xMichael Lòwy está otim ista. O M ichael, cada vez que vem aqui, diz que as coisas lá na França estão indo bem , estão cam inhando . M as eu não sei, a m inha visão do q u ad ro eu ro ­peu não é m uito an im adora a tualm ente . A gora, acho que aqui é um a coisa engra­çada: você vê que, no meio de velhos m arx istas, que ten tam relançar um a velha re­tó rica desgastada, de vez em q u an d o b ro ta um a “ florzinha n o v a” , um a coisa que a gente o lha assim e diz: “ Q uem diria , quem d iria?” . Isso eu acho an im ador, acho um a coisa legal. M esm o num nível a inda m uito deficiente. N ão estou querendo d o u ra r a p ílu la, não estou querendo d im inuir a grav idade da situação de frag ilida­de em que a gente se encon tra . Estou querendo apenas dizer que não estam os defi­n itivam ente derro tados. Sofrem os várias d erro tas , m as a guerra não acabou: segu­ram ente a guerra vai continuar e a nossa tropa vai ressurgir assim, meio que m iraculo­sam ente. Q uem sabe até através de um m ilagre cristão , nossos com panheiros cris­tãos p rom overão um m ilagre e a gente vai vo lta r a b rigar, já estam os brigando ...

Já que você falou em derrota, o seu livro A d erro ta da d ialética poderiaser lido como um exercício de história a contrapelo, no sentido de WalterBenjamin?

A cho que sim , acho que há aquela idéia de que, se eu reconstitu ir um a h istória de­sagradável m as necessária, estou de algum a form a advertindo as pessoas para o risco de que ela se repita e para a conveniência de elas tom arem certas iniciativas que

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evitem a repetição. A m inha idéia era ev itar um a nova derro ta da d ialética, porque a d ialética já sofreu bastante. Q uem sabe a gente a revigora! Aliás, a m inha co n ­cepção de dialética não é exatam ente igual à do C arlito . O C arlito já me confessou que, se ele não fosse um lukacsiano-gram sciano, seria ado rn iano . A dorno seria a alternativa p ara ele. Já eu, se não existisse nem Lukács nem G ram sci, ficaria com o Benjam in, seria benjam iniano.

Na década de 60, três paradigmas teóricos marcaram o ambiente cul­tural: o estruturalismo, o existencialismo e o marxismo. Como você avalia a evolução desses paradigmas até os dias de hoje, e que balanço você faria da sua relação com eles?

O lha, eu acho que o existencialism o passou, não é? Acho que hoje a gente relê Sartre com aquela sensação de um certo d istanciam ento , o que não quer dizer que não vale a pena relê-lo. Acho que ele é um a das cabeças mais in justam ente esquecidas. O es tru tu ra lism o deixou alguns descendentes vivos, m as o p an o ram a m udou , o q u ad ro da nossa discussão se transfo rm ou bastan te. P rim eiro, porque os sobrevi­ventes do estru tu ra lism o tam bém já não são tão o rto d o x o s, não são tão d o u tr in á ­rios qu an to os estru tu ra listas dos anos 60. Eles vão se to rn an d o mais ecléticos ta m ­bém , m ais sensíveis. N ós tam bém m udam os, nós não estam os m ais vendo no es­tru tu ra lism o o adversário político que nos parecia ser nos anos 60, com a universi­dade reprim ida, e as faixas m arxistas deixando espaço para ser ocupado pelos es­tru tu ralistas . Acho que hoje os estru tu ra listas, os sobreviventes do estru turalism o, estão convivendo com ou tras correntes, sem m aiores dificuldades. Eu não conco r­do com eles, m as tam bém não me sinto an im ado a brigar com eles.

Deixa eu introduzir um assunto que, ainda que indiretamente, foi tra­tado no seu texto “Curriculum mortis”. Queria que você falasse um pouco sobre a velhice...

Simone de Beauvoir tem um livro a respeito. O B obbio, tam bém . O Hegel, na Feno- menologia do espírito, tam bém , na passagem da figura da consciência de si para a figura da razão. Essa passagem tem duas d ificuldades, dois obstáculos: um , perce­ber a im portância positiva do trab a lh o , que é difícil na dialética do senhor e do escravo. O escravo só conhece o trab a lh o com o um a ativ idade im posta a ele, d e­g rad ad a , e o senhor só conhece o trab a lh o com o coisa de escravo. Perceber a im ­portância do traba lho é fundam ental. E o ou tro obstáculo a vencer é o pânico diante da m orte. Hegel diz que a m orte é a única certeza racional que tem os, e, no en tan ­to , com o a gente tra ta de evitar pensar nela, tra ta de fugir dela, ele diz que isso d i­ficulta m u ito , p o rq u e a m orte é a fo rm a concreta da ques tão que se ap resen ta , que é a questão da universalidade do negativo. E a velhice é a ap rox im ação inevi­tável da m orte ...

A velhice, já que falamos da Simone de Beauvoir, é a “cerimônia do adeus”...

A velhice é um a coisa com plicada. A gora m esm o telefonou um a am iga m inha, que era m uito ligada ao pad rasto , e o pad rasto está m uito velho. G ozado que o enve­

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lhecim ento não é um processo linear, tem um período em que você envelhece de­pressa e tem períodos em que você resiste bem ... E isso é inju.sto, po rque eu, por exem plo, supo rto com um certo estoicism o o envelhecim ento se enxergo os meus am igos envelhecendo com igo. M as tem uns desgraçados que com eçam a dem orar a envelhecer, e aí eu fico irritad o , com eço a achar que é injustiça [risos]. M as sei que preciso enfren tar o envelhecim ento. Velhice é um a coisa que não se im provisa...

É obra de anos, obra de anos...M as a nossa p reparação para a m orte é algo que tem sido im provisado. Devia h a ­ver um a p reparação para a m orte. Eis um tem a filosófico pouco abo rdado .

Para usar uma frase bíblica que está no Eclesiastes, “a mocidade deve se preparar para a velhice e para a morte”. Vocè podia abordar isso, numa extensão do seu ensaio “Curriculum mortis”...

Você está me induzindo a escrever um novo livro, não é?

Principais publicações:

1965 Marxismo e alienação: contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação (Rio de Janeiro : C ivilização Brasileira);

1966 Kafka: vida e obra (R io de Janeiro : Paz e Terra);1967 Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico de algumas tendências

da estética marxista (Rio de Janeiro : C ivilização Brasileira);1968 Marx: vida e obra (R io de jan e iro : Paz e Terra);1980 A democracia e os comunistas no Brasil (R io de Janeiro : G raal);1981 O que é dialética? (São Paulo: Brasiliense);1984 O marxismo na batalha das idéias (Rio de jan e iro : N ova Fronteira);1987 A derrota da dialética (R io de jan e iro : C am pus);1988 Walter Benjamin: o marxismo da melancolia (Rio de Janeiro : C am pus);1989 Hegel: a razão quase enlouquecida (Rio de Janeiro : C am pus);1992 O futuro da filosofia da práxis: o pensamento de Marx no século X X I (Rio

de jan e iro : Paz e T erra);1996 /4s idéias socialistas no Brasil (São Paulo: M oderna);1998 Fourier; o socialismo do prazer (Rio de Janeiro : C ivilização Brasileira).

Bibliografia de referência da entrevista:

Bakhtin. Marxismo e filos ofia da linguagem, Flucitec.Benjam in, W . Obras escolhidas, Brasiliense.B irm an, j . Mal estar na atualidade. C ivilização Brasileira.Freud, S. A interpretação dos sonhos. Im ago.___________ . Para além do princípio do prazer, Im ago.G ram sci, A. Cadernos do cárcere. C ivilização Brasileira.

Leandro Konder 197

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C oncepção dialética da história, C ivilização Brasileira.Lukács, G. Realismo critico hoje. C oordenada.___________ . La destruction de b raison. Paris; L ’Arche.___________ . Ensaios sobre literatura. C ivilização Brasileira.___________ . Marxismo e teoria da literatura. C ivilização Brasileira.___________ . Introdução a uma estética marxista. C ivilização Brasileira.H egel, Ci. W . F. Fenomenologia do espírito. Vozes.Jam eson , F. Pós-modernismo, Ática.Koselleck, R. Crítica e crise. C o n trap o n to Editora.■Marx, K. e Engels, F. Ohras escolhidas. Alfa O m ega.

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BEN TO PRADO JR . (1937)

Bento Prado Jr. nasceu em 1937, em Jaú (SP). G raduou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo, onde obteve tam bém o títu lo de livre-docente em Filo­sofia. Professor cassado em 1969, lecionou na Pontifícia U niversidade C atólica de São Paulo e na U niversidade Estadual de C am pinas e foi presidente da Associação N acional de Pós-G raduação em Filosofia. É professor titu la r da U niversidade Fe­deral de São C arlos e professor em érito da USP. Esta entrevista foi realizada em janeiro de 2000.

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances. O s anos de aprend izado e Os anos de peregrinação. N o pri­meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua formação intelectual?

Em bora a com paração com G oethe seja inadequada — por desm edida e hiperbólica — , esse é mais ou m enos o m odo com o pontuei meu itinerário no m eu m em orial, em que m arco dois períodos: o período de form ação, quer dizer, da form ação no sentido universitário da palavra, da ad ap tação à escola, da licenciatura e dos p ri­m eiros anos de jovem professor da faculdade. E o segundo período, que é aquele que se inicia com m inha cassação, com m inha estadia relativam ente longa no ex te­rior. Aliás, coisa que não digo no meu m em orial é com o essa viagem longa me trouxe um a m udança de perspectiva.

Entrei no D epartam en to de Filosofia em 1956 e me form ei em 1959. Senti um pouco essa en trada no m odelo de form ação en tão p roposto , que o Paulo A rantes descreveu bem a p a rtir do pro jeto de Jean M augüé. E senti essa en trad a na m edida cm que vinha de um a form ação an terio r, de um esboço de form ação que tinha duas fontes: em prim eiro lugar a m inha própria casa, já que meu pai era professor, filólogo, trad u to r de litera tu ra , cuidava de teoria literária , cuidava tam bém de filosofia da m atem ática (foi aluno de Q uine), era um grande leitor de Pascal, era cató lico etc... E, em segundo lugar, a m ilitância na Juventude C om unista . E ntão , q u an d o entrei, já havia deixado de ser m ilitan te da Juven tude C om unista , já tinha com eçado a m ilitar na Juventude Socialista junto com o M aurício Tragtem berg, com o Paul Singer e com o R oberto Schw arz. Isso tu d o no tem po do secundário . T inha , assim , p reo­cupações po líticas e literárias, sendo que algum as en travam freqüentem ente em conflito com ou tras, porque gostar de certos au to res não era m uito adequado n a ­quele m om ento . M as, enfim , sei que ao fim do m eu secundário descobri a feno­m enologia, essencialm ente através de Sartre. E Sartre fornecia justam ente um a saí­

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da para essa situação, porque se tra tava de um a filosofia em que o cu idado po líti­co não era incom patível com o lado, d igam os, especulativo e literário . H avia ta m ­bém um m undo arm ado com C arlos D rum m ond de .Andrade que me fornecia a lin­guagem , um m odelo para a poesia que não se chocava com Sartre e com a obses­são filosófica — aliás os dois escreveram coisas m uito parecidas na década de 40. O m odelo de filosofia p ra ticad o pelo D epartam en to era, no en tan to , um pouco diferente disso, na m edida em que a ênfase tan to na epistem ologia q u an to na h is­tó ria da filosofia era m uito forte. H avia , sobretudo , um a atm osfera de desconfian­ça geral em relação à fenom enologia ' po rque, na situação brasileira da ocasião , a fenom enologia e o e.xistencialismo tinham sido assim ilados pela direita local. H a ­via um a suspeição e eu, para p rovocar, dizia que era heideggeriano de esquerda [ri­sos]. Em to d o o caso, o m odelo era m uito bom . Eu negociava um pouco: “O lha, eu aceito ler to d o o V oitaire se vocês me deixarem ler um pouco de Pascal” . M as, rap idam ente, im pregnei-m e daquela atm osfera, para a qual tam bém estava p repa­rado , po rque já estava m arcado pela filosofia e pela litera tu ra francesas. C om o a atm osfera era francam ente fn»icih francesa, en tão tam bém foi m uito fácil essa as­sim ilação. (Comecei a me tre inar na explicação de tex to e na d issertação, que são os dois “gêneros filosóficos” fundam entais, testando-m e nestas técnicas retóricas c, de um a certa m aneira, fiquei vo ltado única e exclusivam ente para a filosofia fran­cesa. (^ que, no fundo , m arcava um a espécie de d istância en tre as coisas que me preocupavam e o m undo social im ediatam ente em volta. De tal form a que fazer filosofia para m im , na ocasião , significava ser capaz de um dia , eventualm ente, escrever um tex to , publicá-lo na França para o leitor francês.

Justam en te com o meu período na F rança, período de seis anos da segunda vez (de 1969 a 1974), o que ocorreu foi o seguinte: foi um período m uito bom , m uito p rodu tivo , porque tive a sorte de ficar no CN RS [Centre N ational de Recherche Scientifique] e não ter nenhum a p reocupação com a docência — eu pensava que não gostava dc dar aula. De fato eu tinha liberdade to ta l para escrever duran te todos os anos em que fiquei lá. M as não havia m uito co n ta to com os franceses (com ex­ceção dc H élène e Pierre C lastres), havia som ente o co n ta to com os brasileiros que estavam exilados ou com bolsas de estudo na França. A certa altu ra, comecei a sentir falta de d a r aula, com ecei a descobrir que isso era essencial para m im , com o se a sala de aula fosse um a espécie de labo ra tó rio onde se ensaiam idéias das quais a escrita depois vai se alim entar. Com ecei a sentir um pouco de saudades do Brasil em geral e da situação de docente. Eu me lem bro, nessa época, de estar passeando com Paulo .Arantes cm Paris e de term os os dois, sim ultaneam ente , a alucinação de ouvir um jogo de futebol n arrad o pelo rádio . .Mas não era. P rovavelm ente era um a narra tiva de h ipism o, de corrida de cavalos, com aquela voz apressada. Lem bro- me tam bém , qu an d o voltei de navio, da felicidade quando pela prim eira vez o rá ­dio cap tou um a narra tiva de futebol.

N a volta ao Brasil, notei que o país estava m uito diferente de antes, ou talvez eu o visse com ou tro s olhos. M as, sobretudo , notei que havia um público leitor de filosofia de tal m aneira que fui ressocializado. Ao con trário dos tem pos da juventu­de, ao invés de me dirigir para um público distan te , que não era o meu, descobri que havia um público que me interessava e que deveria me dirigir d iretam ente a ele. N a

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B ento P rado Jr.: “ A filosofia , ten h o a im pressão , sem pre renasce, é um a doença incurável, e o m ais in teressan te é que o rem édio é da m esm a natu reza da doença. Isto segu ram en te n ão é um a filosofia d o senso co m u m ".

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França, consagrei todos esses anos a escrever um livro sobre Rousseau — ainda inédito com o um to d o — em que gostava de polem izar com D errida, além de ten tar ap re ­sentar um in terpretação original de R ousseau. V oltando ao Brasil, as circunstâncias me levaram a polem izar com [OswaldoJ P orchat e com (José A rthur] G ianno tti, o que era infinitam ente mais divertido [risos] e m uito mais realista, porque entre o crítico e o criticado existia um a proxim idade m uito grande, além de am izade, sim patia etc... Essa form a de ativ idade crítica é m uito mais rendosa. Então, paradoxalm ente , tudo se passa com o se a longa estadia no ex terio r e no exílio tivesse levado a descobrir- me com o um au to r que escreve em português para leitores brasileiros.

Em duas ocasiões diferentes, em 1968 e 1982, você externou avaliações diversas a respeito do professor João Cruz Costa, patrono do Departa­mento de Filosofia da USP. Como você avalia hoje a figura de Cruz Costa?

O m eu discurso sobre C ruz C osta é exatam ente sim étrico ao d iscurso de G iannotti sobre Lívio Teixeira, G ianno tti diz que, p ara sua tu rm a , Lívio T eixeira não tinha tido im portância , que quem tinha tido im portância era o C ruz C osta, e só a m inha tu rm a veio a descobrir a im portância do estru turalism o de G uéroult através do Lívio T eixeira. Sem pre considerei C ruz C osta um excelente professor, mas só m uito ta r ­d iam ente fui descobrir a sua im portância para a filosofia brasileira. N ão éram os feitos de m aneira a nos en tenderm os im ediatam ente, já que as m inhas predileções filosóficas eram m uito diferentes das dele. A nossa relação foi sem pre m uito cordial, em bora ele dissesse em sala de au la “O senhor Bento acha que não sou m uito in te­ligente” . Ao m esm o tem po dizia que eu era m uito enfunado .

Conheci m elhor C ruz C osta q u an d o viajei para a França pela p rim eira vez e tivem os de nos co rresponder po r m otivos contingentes. D escobri, por m eio dessa correspondência , a graça do grande escritor que ele era e passei a escrever-lhe mais vezes para provocar m ais cartas e respostas. M ais ta rde , propuseram -m e escrever sobre a filosofia no Brasil, e en tão li a Contribuição à história das idéias no Brasil de m aneira m uito respeitosa, m as sem perceber em toda a ex tensão o interesse que C ruz C osta ap resen ta d en tro da filosofia brasileira. T enho a im pressão que só o li­vro do Paulo A rantes me m ostrou que a desconfiança de C ruz C osta, em relação ao d iscurso filosófico, era v ital, em bora me incom odasse en q u a n to o “ fenom e- n ó logo” que acreditava ser. N o tex to sobre as filosofias da M aria A ntônia , q u an ­do eu me refiro m uito brevem ente a Lebrun — pois estava cobrindo apenas o período em que eu era aluno — , dizia que ele reunia várias características positivas dos vários professores do D epartam en to , inclusive essa desconfiança que O u z C osta tinha em relação ao establishment filosófico. M as essas características não eram m uito a tra ­entes para o jovem filosofante que eu era naquele tem po, porque era o m eu univer­so que, de um a certa m aneira , estava sendo desqualificado e desvalorizado. É pre­ciso estar um pouco mais m aduro para com preender a verdade e a força dessa ironia.

Você encerra o seu artigo “As filosofias da Maria Antonia na memória de um ex-aluno” com as seguintes palavras: “As filosofias da Maria Antonia começaram a passar, em í 960, por um novo filtro. Com Gerard

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Lebrun iniciava-se uma nova era na filosofia de São Paulo”. PorqueLebrun se constitui para você num marco inaugural tão decisivo?

Em prim eiro lugar, respondo na prim eira pessoa do singular para depois falar de m aneira mais objetiva. Os meus prim eiros q u a tro anos com o estudante de filoso­fia foram anos de “ vacas m agras” no nosso D epartam en to . Por um a série de co in­cidências, o meu curso foi provavelm ente o m enos privilegiado. Foi justam ente um período de vazio da presença de professores visitantes. Q u an d o entrei, em 1956, o Lefort tinha vo ltado para a França e L ebrun só veio para o Brasil em 1960. Nesses q u a tro anos o G ranger fez algum as visitas, um a série de conferências, mas é d ife­rente de ter um professor full time. Além disso, dos jovens professores, o G iannotti viajou para a França pela prim eira vez em 1958 e ficou dois anos fora e o Ruy Fausto deu apenas um sem estre de aula. O velho C ruz C osta, por sua vez, teve um a briga com o en tão governador Jân io Q uadros, foi pun ido e, po r um certo período , não deu aula. Q uer dizer, o corpo docente se reduziu consideravelm ente. O que restou, de realm ente forte, graças a D eus, foi a H istória da Filosofia com Lívio Teixeira e Estética com dona G ilda [de .Mello e Souza). C om Lebrun, foi a prim eira vez que estive na presença de um professor estrangeiro em situação perm anente . Em bora não tivesse sido aluno dele p ropriam ente — quando ele veio em I960 eu já lecio­nava — , o fato é que todos nós, todos os colegas de departam en to , assistíam os aos cursos de Lebrun. E o que havia de notável no Lebrun era um certo estilo de p rá ti­ca da filosofia e da história da filosofia com o ativ idades indissociáveis um a da o u ­tra . Ele não era exa tam en te um h isto riado r à m aneira de G uérou lt, ou de G o ld ­schm idt, m esm o p o rque ele cu idava de au to res com o H egel, que, de um a certa m aneira, tornam impossível uma leitura do tipo estrutural. .Mas ele dava cursos sobre Hegel, sobre N ietzsche, sobre au to res que lhe eram caros, em que a d im ensão p ro ­priam ente histórica era essencial. C om o já insisti várias vezes, a história da filoso­fia para Lebrun desem penhava um papel crítico na estratégia geral do pensam en­to. Um exercício de h istoriografia filosófica ou m esm o de filologia que, no en tan ­to , engrenava im ediatam ente um tipo de in terrogação filosófica cm que a in te rp re­tação da filosofia acabava sendo um a espécie de crítica da filosofia, ou de an ti- filosofia. Ele reunia várias qualidades, quer dizer, reunia a erudição , o rigor ana lí­tico, a ironia, a capacidade d idática, a capacidade d ram atú rg ica . Era um excelente escritor, era m uito vivo, quer dizer, ao co n trá rio do m odelo guérou ltiano , a leitura dos textos filosóficos era sem pre rep o rtad a ao m undo vivido con tem porâneo . N ão havia essa espécie de suspensão, de colocação entre parênteses do m undo vivido em nom e da econom ia in terna de um a ob ra (Paulo falaria do “ vácuo” criado artific i­alm ente em to rn o da obra). O hum or e a ironia passavam aí. É impossível in tro d u ­zir a ironia e o hum or em um a análise estritam ente in terna de um a obra em que só tem sin taxe e não tem assunto de p iada. A piada só se to rna possível quando você reporta o pensam ento àquilo que de fato é, que está à sua volta.

O fato é que não só eu, com o todos os colegas, fom os m uitos sensíveis à p rá ­tica lebruniana da filosofia. Além disso, com o excelente professor que era , obv ia­m ente im an tou as jovens gerações. Ele passou a servir de m odelo a lternativo para os seus p róprios colegas e, p rincipalm ente, para as novas gerações de estudantes. N ota-se isso em toda a geração posterio r à m inha, da qual fui professor: Paulo

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A rantes, M arilena C haui, R ubens R odrigues T orres Filho. O Rubens é, d igam os, o filho m ais direto . E n tão q u an d o digo: “As filosofias da M aria A ntonia com eçaram a passar p o r um novo filtro ” , não me refiro ta n to ou som ente a mim m esm o, mas tam bém a essas novas gerações que passaram po r esse m agistério.

Você tinha, por essa época, um contato mais estreito com a geração darevista C lim a?

Só através da dona G ilda, que foi tam bém um a professora m uito m arcan te , a cujo estilo eu fui m uito sensível, um estilo que liga a reflexão crítica com o concreto. Com o digo num tex to sobre ela: “ O que eu im aginava que era o estilo de G ilda, que me fascinou e que passei espontaneam ente a im itar, não era apenas seu estilo, era o estilo da geração Clima”. Eu me lem bro do m eu pai, assistindo a um a conferência do A n­ton io C ând ido , quando eu era estudante secundário , chegar em casa e dizer: “O lha, o A ntonio C ând ido é o m elhor den tre nós to d o s” . M as eu só vim a ler A ntonio C ând ido depois. M esm o G ilda só vim a ler depois: a bela tese sobre a M oda. C o ­nhecia o estilo da Clima a través das aulas dela, que era um a professora notável. Esse m esm o traço , ap o n tad o a p ropósito de Lebrun, estava presente nas aulas de Estética. Podíam os, en tão , “ resp irar o m undo p resen te”-.

Diferentemente da maioria dos uspianos da época, você não reservou,em suas obras, um espaço muito significativo para o marxismo. Comovocê se posiciona em relação ao marxismo?

Fui m arx ista de carteirinha até antes de en tra r na U niversidade — até m eados de 1954. Eu me lem bro que, em 1956, depois do vestibular, estávam os tom ando um a cerveja no Cirêmio, conversando sobre a invasão da H ungria , q u an d o chegou o G iannotti e disse: “ O que os m arxistas franceses vão dizer disso?” . Pedante, eu falei: “ M as ainda existem m arxistas na F rança?” . E o G iannotti perguntou: “Você não é m arx is ta?” . E eu, que não tinha 18 anos, respondi: “N ão , eu fui no p assad o ” [ri­sos]. M as, quando entrei na Faculdade, houve um a espécie de retorno ao m arxism o. Im pregnado de fenom enologia, de Sartre etc..., com ecei a escrever um ensaio sobre a noção de tem po em M arx que infelizm ente (ou felizmente?) perdi. O bviam ente impublicável — mas que teria, hoje, curiosidade de ver, para descobrir com o escrevia na época. Escrevi um as dez páginas em que tentava dem onstrar que a noção m ar­xista de tem po não era in tra tem poral, mas tem poralizante, im aginação transcenden­tal etc. Q uer dizer, se eu tivesse conhecido, nessa época, a tese que H erbert M arcuse fez sob a o rien tação de H eidegger, eu me teria to rn ad o m arcuseano de im ediato.

H á dez anos, depois da queda de Berlim, um jornal aqui de .São C arlos entrevis- tou-m e e fez aquela clássica pergunta sobre a m orte do m arxism o. R espondi que o que afetava desastrosam ente o m arx ism o era o fato de estar associado a um su p o r­te real, a um poder estatal que o transfo rm ava necessariam ente em ideologia. Com o fim do cham ado socialism o real, to rna-se possível, pensável pelo m enos, que o m arxism o possa ser novam ente um a form a viva de pensam ento . M as, para isso, era indispensável que o bolchevism o acabasse. Eu me lem bro de um a conversa que tive com o velho C aio P rado em Paris, às vésperas da eleição em que G iscard d ’Estaing foi eleito — o ou tro cand ida to era o M itte rran d , em aliança com o p artid o com u­

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nista. C aio Prado disse: “Acho que M itte rran d ganhou . N ós ganham os essa elei­ç ã o ” . Aí eu retruquei: “ O lha, é m uito difícil, m esm o porque, en q u an to existir a URSS, enquan to se supuser, en q u an to se ligar a idéia de socialism o à U nião Sovié­tica, o europeu n u n ca ...” . Ele disse: “Com o? A U nião Soviética não é um país socia­lista?". Percebendo que o irritara , calei-m e e tirei o m eu tim e de cam po.

Como você avalia a experiência do Seminário do C ap ita l?Foi um a experiência notável. A m inha partic ipação , no en tan to , foi m uito restrita , participei p rincipalm ente no prim eiro ano. R apidam ente ficou impossível partici­par, porque casei-m e ainda estudan te e tinha de trab a lh ar para gan h ar dinheiro. E ntão deixei de freqüentá-lo sistem aticam ente. .Mas foi m uito interessante e m uito divertido. As conversas eram m uito vivas, o conteúdo era fortem ente técnico — aliás eu acom panhava os sem inários com algum a dificuldade. N a verdade, quem circu­lava com facilidade era só o Fernando N ovais, não porque fosse econom ista, mas por entender de h istória econôm ica — aliás, ele e o Paul Singer. Eu e o G iannotti desem penhávam os o papel de fornecer as m etafísicas necessárias, que, p o r acaso, eram opostas — hoje em dia acho que, grosso modo, ele tinha razão naquele deba­te. M as havia uma espécie de distância entre o que a gente dizia do Capital e o Capital prop riam en te d ito . De qualquer m odo, o que foi seguram ente im portan te é que m uitas das grandes o b ras das ciências hum anas, das ciências sociais do Brasil, são resu ltado desse Sem inário. D epois ele houve vários clones, sucessivas gerações co ­m eçaram a fazer sem inários do Capital.

Foi um a iniciativa, um a idéia do G ianno tti, que era nova, um tipo de prática que não existia, que estava fora do con tex to da época. F lavia, m esm o assim , um a atm osfera propícia a isso. Q u an d o entrei na U niversidade, lem bro-m e do G abriel Bolaffi (em bora a Faculdade fosse pequena, ainda era aluno de prim eiro ou segun­do ano e não tinha m uito con ta to com os professores de ou tros departam entos) que me disse: “Você se interessa por m arxism o, não quer conversar com o Fernando F íenrique, um jovem professor que a gente tem a í? ” . Foi um p rim eiro co n ta to , qu an d o se falou dos limites do m arx ism o e co n tra o m arx ism o vulgar. .Mas, na verdade, foi o G ianno tti que propôs o Sem inário institucionalm ente e fora da Uni­versidade, ferindo algum as susceptibilidades. Inclusive a de F lorestan [Fernandes).

£ como era Fernando Flenrique?Eu me lem bro do Fernando Flenrique fazendo um a m ediação en tre in terpretações opostas. Para se ter um a idéia do Fernando do Sem inário basta 1er a in trodução que ele fez à sua tese de dou to ram en to , em que há um a espécie de ten tativa de reconci­liar (se não me falha a m em ória) l.évi-Strauss e Sartre, — ou seja, de com patib ilizar a leitura mais ou m enos althusseriana^ de G iannotti com a Crítica da razão dialética que eu defendia. O Fernando fez um a espécie de pon te en tre essas duas leituras.

Aliás, um ensaio que Lebrun escreveu sobre esse prefácio se perdeu. Q uando ele foi em bora pela prim eira vez, por volta de 1967, tinha um a coleção m uito grande de conferências que havia feito no Brasil. Q uando vi o m aterial, disse: “Lebrun, deixa isso com igo que vou ver se providencio um a tradução e a gente publica seus ensaios aqui no Brasil” . M as, logo em seguida, fui cassado, tinha de sair do Brasil, e passei

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essa coleção de textos para o Salinas, que acabou perdendo boa parte dela. Este texto fazia um retrato das produções do Fernando H enrique e, se não me engano, esboçava um a crítica . L em bro-m e m u ito vagam ente do tex to . N ele, L ebrun dava g rande im portância ao prefácio de Fernando H enrique, em bora não concordasse com a sua natu reza e tentasse levantar alguns problem as. Infelizm ente esse tex to se perdeu.

Como você descreveria a sua experiência no período de í 964 até 1969, isto é, do golpe militar à sua cassação da USP?

Nesse m om ento não tinha nenhum vínculo político-institucional, apenas participava das m anifestações de professores e estudantes. N a verdade, a m inha cassação im ­pediu que me associasse à oposição o rgan izada à d ita d u ra , pois, q u an d o estava p raticam ente aderindo à resistência, veio a cassação. N o período de 1968, depois do nosso junho de 1968, fui to le rado pelos alunos, que achavam que eu tinha a ca ­beça à d ireita , mas o co ração à esquerda e que, p o rtan to , era perdoável. H elena H ira ta , um a das porta-vozes da R evolução ISocialista], chegou a dizer que o m éto ­do estru tu ra i era indispensável para a filosofia, para o m arxism o, que era preciso fazer análise de P latão , mas que um an o in teiro de Bergson era um exagero [risos].

A experiência mais delicada nesse período dever ter sido a paritária, quando você era Chefe de Departamento.

Sim, foi duríssim o. N ão porque houvesse conflito entre as partes paritárias, pois a com posição estudantil do program a era diversificada e havia pouco sectarism o. () D epartam en to não se dividiu en tre professores e alunos, m as dividiu-se segundo ou tras linhas, no que na época eram consideradas a “d ire ita” e a “esq u erd a” do D epartam en to . H ouve conflitos m uito du ros e eu era, provavelm ente, o único que tinha co n ta to com as duas ex trem idades. Então pessoalm ente era do lo roso , pois os conflitos objetivos passavam pela m inha alm a, que nunca foi m uito v igorosa. Foi um período m uito cha to , havia brigas feias que, pensando retrospectivam ente, ti­nham a substância do im aginário , não envolviam , na verdade, nenhum conflito o b ­jetivo, pertenciam m ais ao universo paranó ico que é a regra da universidade. N um a palav ra, talvez Sartre não tenha razão no abso lu to de sua an tropo log ia fundam en­tal, q u an d o diz que o inferno é o ou tro ; talvez essa p roposição não tenha validade universal, m as que na universidade vale, vale mesmo!

Até o final da década de 1960, a impressão que se tem é de que a inte­lectualidade paulistana vivia numa ilha, separada do resto do Brasil, comunicando-se apenas com a Europa. Essa impressão procede? Quais seriam as razões para isso?

Procede. M as antes de p e rgun ta r pelas razões, vam os descrever o fato . Uma coisa que me surpreendeu m uito , q u an d o voltei da E uropa pela segunda vez, foi ver na U nicam p, por iniciativa do P orchat, a presença m aciça de professores estrangeiros e de professores de ou tro s estados. H ouve na U nicam p um a espécie de abertu ra do leque de contatos. O D epartam en to de Filosofia da USP sem pre teve um a relação privilegiada, quase que exclusiva, com a França. C om P orchat, m anteve-se o co n ­ta to com os franceses, mas houve tam bém ab e rtu ra para am ericanos, ingleses, au s­

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tra lianos, neozelandeses, argentinos etc. Nes.se sentido , a U nicam p serviu com o um cen tro de unificação, de m ultiplicação da relação com o ex terio r, mas sobretudo de m ultip licação dos con tato s in terestaduais, algo que até en tão não existia.

Aliás, é preciso lem brar — e agora vou ten ta r explicar m esm o — que, q u a n ­do fui aluno do D epartam ento de Filosofia, deveria haver seis ou sete professores no to ta l. N a m inha tu rm a de 1956 eram onze alunos, quer dizer, a to ta lidade do D epartam en to de Filosofia — considerando professores e alunos — era um pouco superio r ao atual co rp o docente. Em con traposição , havia o Institu to Brasileiro de Filosofia que contava com um a espécie de hegem onia nacional. Em 1958, o C ruz C osta decidiu que o D epartam en to deveria sair de den tro do ,seu casulo e partic i­par dos congressos prom ovidos fora da U niversidade. E ntão fom os convidados a partic ipar, com o represen tan tes do D epartam en to : G ranger, que estava dc passa­gem pelo Brasil, G ianno tti e eu, que apresentei o resum o de um trab a lh o de a p ro ­veitam ento feito para o curso sobre Hegel de Lívio Teixeira.

D epois, o D epartam en to cresceu m uito ; para espraiar-se sobre o m undo ex ­te rno com o ele se espraiou, em m últip las direções, foi necessário esse tem po de his­tó ria , da constitu ição de um a m assa crítica que, até en tão , era inexistente. Em 1963, quando voltei da F rança pela prim eira vez, fiquei pasm o ao ver que tinha tu rm as de cem alunos, ou seja, num período de pouquíssim os anos, houve um a espécie de explosão dem ográfica. Se não me engano, na década de 50 houve um aum ento das escolas secundárias, do volume de toda a rede escolar, que veio, no com eço da década de 60, aum en tar m uito o volum e da U niversidade, to rn an d o -a um a U niversidade de m assa. Por o u tro lado, criou-se tam bém essa m assa crítica sem a qual o D eparta ­m ento não poderia irrad ia r p ara fora, pois não se irrad ia com seis ou sete pessoas.

Em entrevista de Í987, Giannotti afirmou que a geração dele tinha o objetivo claro de transformar a faculdade em produtora de seus pró­prios quadros. Em contraste com isso, Giannotti disse também que “a geração de 68 repetiu, praticamente, nosso projeto, sem conseguir uma integração em redor de certos temas básicos. O estruturalismo meto­dológico acabou se convertendo na fragmentação pós-m odem a”. E Giannotti incluiu você nessa geração quando disse: “A geração fonnada pela FFCL em 68 não estabeleceu um projeto intelectual próprio. Veja, por exemplo, a geração composta por Bento Prado, Marilena Chaui,Paulo Arantes e Rubens Rodrigues Torres Filho”. Como você vê esse diagnóstico do Giannotti?

Sim plesm ente é errado . A h istória posterio r m ostra o engajam ento institucional, p rático , dessas pessoas citadas, no sentido de rem odelar a U niversidade. N ão vejo, tam pouco , qual possa ser a ligação entre o m étodo estru tu ra l e o pós-m odernism o. T enho a im pressão que essas proposições do G ianno tti significam , m ais ou m enos, a expressão de um a decepção: havia um pro je to que era considerado bom e esse projeto não foi para frente"*. É preciso ver tam bém qual é o con tex to , e talvez a frase cu rta e enigm ática não exprim a o que eventualm ente ele poderia dizer de m aneira m ais es tru tu rada . N ão estou d izendo que G ianno tti vê mal as coisas, m as que essa p roposição dá essa im pressão...

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Chama a atenção na sua produção a oscilação entre extremos, entre pensadores habitualmente qualificados como antipodas. Exemplo disso parece ser a sua opção por estudar — sob o patrocínio do último Mer- leau-Ponty — o pensamento de Henri Bergson na primeira metade da década de 1960, momento em que você se definia como sartreano. Como você se decidiu por estudar Bergson e como você vê essa sua atração pelos extremos?

ts s a é um a h istória m uito curiosa. N um certo m om ento — ainda na França, pela prim eira vez — , quando o sartrism o era um a espécie de segundo senso com um para mim , eu pensava espontaneam ente no vocabulário do Sartre — a Lúcia [PradoJ e o R oberto Schvvarz m orriam de rir quando , assistindo a um a de m inhas aulas, n o ta ­vam que estava involuntariam ente im itando todos os tiques do Sartre. Nessa ép o ­ca, tive a op o rtu n id ad e de ouv ir sartreanos falarem , e me lem bro de um cidadão que, em um concurso de agregação, explicou com o tinha analisado o tem a que lhe haviam proposto , o tem a da probab ilidade e do acaso. Disse ter dem onstrado que era só através do pour soi que o acaso vinha ao m undo. M as isso não explica nada a respeito da p robabilidade e do acaso [risos]! Nesse caso. o uso do jargão faz as vezes de explicação, a retórica de em préstim o dá a ilusão de pensam ento. Então senti a necessidade de ser sartreano até o fim, e Sartre dizia que m edia a evidência de uma idéia pelo coeficiente de h o rro r que ela lhe causava; qu an to m ais desagradável um a idéia, mais chances tem de ser verdadeira — penser contre soi. Penser contre soi era, no caso, penser contre Sartre. E quem era m ais diferente do que ele? Bergson. Então fiz um esforço de dégagement de Sartre através do Bergson e. seguram ente, m ais ta rde séria auxiliado pelo segundo .M erleau-Ponty, que estava redescobrindo Bergson. O curioso é que descobri mais tarde que Sartre se converteu à filosofia lendo Os dados imediatos da consciência. Isso quer dizer que o salto que fiz não era tão grande, a oposição não era tão grande. Sartre dizia que, nos tem pos do Liceu, era- Ihe m uito difícil en tender o que era filosofia (“ po r que ser filósofo .'” ), até que um de seus professores, do qual não gostava, deu para ele 1er O s dados imediatos da consciência, e Sartre diz que ficou entusiasm ado e lim itou-se a resum ir o livro: “ Esse hom em faz cair verdades do céu, acho que tam bém vou fazer cair algum as verda­des” [risos). D escrevendo seu trab a lh o escolar sobre o livro de Bergson, diz: “ Li­m itei-m e a resum ir, estava tu d o certo , tu d o verdadeiro” . E recebeu um a péssim a no ta de seu professor... Tive de fazer um esforço, en tão , para m udar os m eus háb i­tos de pensam ento que, na verdade, foi mais um a m udança de superfície do que de p ro fu n d id ad e . E m bora no m eu livro p rocu re m o stra r com o as críticas fenom e- nológicas a Bergson, ao seu “ n a tu ra lism o ” , são perfeitam ente injustificáveis. Isso fez com que eu constantem ente fizesse o paralelo entre Sartre e Bergson, seja na form a de oposição, seja na form a de suas coincidências parciais.

Depois de sua livre-docência sobre o pensamento de Henri Bergson, você passou a se dedicar ao estudo da obra de Rousseau, estudo que você teve a oportunidade de aprofundar no período de exílio em Paris. Se­gundo Paulo Arantes, não é fácil dizer o que teria levado você a passar de Bergson a Rousseau. Você poderia afastar essa dificuldade para nós?

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Para com eçar, é preciso d istinguir vários níveis, várias causas ocasionais e causas eficientes — pelo m enos na m inha u ite rp re tação retrospectiva. Em prim eiro lugar foi a sim patia pelo au to r, pela personagem e pela escrita. Q u an d o escolhi Bergson, precisava scr não-sarrreano , m as precisava escrever bem — senão, eu não agüento . N o caso de R ousseau, tem -se um grande escrito r e, ao m esm o tem po, um crítico da filosofia, um sujeito que ocupa um lugar privilegiado den tro dos (ou con tra os) lim ites da Aufklärung.

Eu escolhi tam bém , com o disse, po r causas ocasionais ou po r efeitos ex ter­nos de m oda. Porque esse m om ento era o período da m oda estru tu ra l, m oda lévi- straussiana, e o Lévi-Strauss apon tava p ara um a o u tra espécie de redescoberta de Rousseau. C) Ensaio sobre íi origem das línguas, por exem plo, publicado com m i­nha apresen tação pela E ditora da U nicam p, foi redescoberto praticam ente nos anos 50-60. N inguém lhe a tribu ía im portância algum a. Foi o Lévi-Strauss que, em p ri­m eiro lugar, encon trou nesse livro, com o ou tros, um a espécie de an tecipação das C iências H um anas em geral e da sua p rópria obra em particu lar.

R ousseau, na verdade, foi redescoberto duas vezes após a Segunda G uerra •Mundial; foi redescoberto . com o filósofo, na vaga da filosofia da existência — há, nessa época, o surgim ento de livros adm iráveis, com o o de S tarobinski, que faz um a exp lo ração fenom enológica dos tem as e das im agens privilegiadas do im aginário rousseauísta . Depois há um a segunda redescoberta , que é a descoberta es tru tu ra ­lista — o R ousseau teórico e fundador das ciências hum anas. A m inha p ro p o sta , en tão . era. sem perder as riquezas de cada um a dessas redescobertas, fazer um a in te rp re tação u n itá ria de R ousseau, res titu in d o a un idade de seu pensam en to e p ro cu ran d o m ostrá-la onde é m ais difícil de ser m ostrada. O meu livro sobre R ous­seau (ainda inédito) deveria ter um a últim a parte sobre o d iscurso político. Nesse sentido , pensava em m ostrar, a partir da m inha teoria da concepção retórica da linguagem de R ousseau, a consistência en tre o Contrato social de um lado e os es­critos políticos concretos de o u tro — A constituição da Córsega e o Projeto para a Polônia, onde a m aioria dos com entadores só consegue d ivisar contrad ições. M as, q u an d o voltei ao Brasil, estive na banca de Salinas que fazia exa tam ente isso. En­tão desisti dessa últim a parte.

Pensando bem , tam bém cheguei a R ousseau, à decisão de lê-lo, não de tran s­form á-lo em objeto , seguram ente em aula do Lebrun. Lem bro-m e dele com en tan ­do um a bela frase de Rousseau: II n'y a de beau que ce qui n ’est pas (só é belo aq u i­lo que não existe). Provavelm ente a teoria do im aginário rousseauísta deve ter ecoado sartreanam ente na m inha cabeça, tan to é que a prim eira versão do meu livro — nessa época, im itando o Lebrun, eu escrevia in tegralm ente as m inhas aulas — era ex a ta ­m ente um curso sobre o conceito de im aginário em R ousseau (a prim eira aula des­se curso foi publicada na revista Dissenso, n° 1), Esse curso se transfo rm ou num livro sobre a teoria da linguagem com o retórica.

A partir de meados de 1970, você passa a se interessar também por te­mas de psicologia e de psicanálise. O que o trouxe a essas disciplinas?

Eu fui da últim a tu rm a da Faculdade que precedeu a criação do curso de psicolo­gia. Até 1960 não havia um curso de psicologia: o curso de psicologia fazia parte

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do de filosofia. T ínham os a m esm a m assa de carga horária em psicologia e filoso­fia, e boa parte das m inha colegas foi fazer pós-g raduação em psicanálise. Lúcia, m inha m ulher, que fez filosofia, com eçou fazendo pós-g raduação em psicologia clínica e só depois passou para eto logia, psicologia anim al etc.

De qualquer form a, a psicanálise sem pre me pareceu um tem a sedu to r para a filosofia. Lem bro-m e, ainda na década de 60, quando V uillem in esteve aqui, pela prim eira vez, e perguntou o que eu pensava em fazer no fu turo . Disse a ele: “ Penso em fazer algo com o a lógica da psicanálise” , en tendendo por lógica da psicanálise um a espécie de epistem ologia. Essa resposta p rovocou indignação em V uillem in, que disse: “ E ntão você im agina que tudo é lógica no m u n d o ?” . O bviam ente , com o bom positivista que era , Vuillem in era dualista , quer dizer, tinha o dom ínio da ló­gica de um lado, e o dom ínio da irrazão de ou tro , que é igualmente respeitável. Para ele, a filosofia não fala do m undo, fala da es tru tu ra da linguagem , e o m undo se revela através da poesia, da p in tu ra , do inconsciente — um a espécie de dualism o. N ão que o assun to fosse indigno da filosofia, mas provavelm ente cie achava que a psicanálise era o ou tro da filosofia: im aginem os a análise lógica e a psicoanálise com o os dois pólos de um d ilaceram ento incontornável...

£ também com Bergson você não se afastava muito da psicologia...N ão. C om Sartre tam bém não, pois ele com eçou com a psicologia fenom enológica. M as, na verdade, depois, nos anos 70, tam bém houve uma escolha estratégica da psicologia com o tema. Q uando vim para São Carlos, o núm ero de filósofos era m uito restrito e senti a necessidade de in stau rar traba lhos em con jun to ã m aneira de se­m inários. D aí pensei: “ M as, meu Deus do céu, com quem vou fazer sem inário aqui?” . H avia um g ru p o de psicólogos, gente de excelente form ação , todos behavioristas. E ntão me lem brei de um livro, The concept o f mind, ex trem am ente bem escrito e adm irável porque propõe um a in terpretação behaviorista en tre aspas, behaviorista- lingüística, dos conceitos básicos da psicologia e, na m esm a ocasião, senti a neces­sidade de vo lta r ao W ittgenstein , que tinha es tudado um pouqu inho na prim eira vez em que fui para a França, com Granger. Convidei então o Baltazar Barboza Filho e o Luiz H enrique Lopes dos Santos, que vieram aqui reiteradas vezes dar cursos sobre W ittgenstein e, de um certa m aneira , a psicanáli.se ficou no passado. N a ver­dade, tudo depende m uito dessas circunstâncias externas.

T am bém na U nicam p, nessa época, foi criado um grupo de filosofia da psica­nálise. Participei sim ultaneam ente dos dois grupos, e, por isso, viajava sem analm ente para C am pinas.

Nos anos 1960, você se dedicava a escrever diretamente sobre temas li­terários, publicando artigos como “O destino decifrado” e “A sereia des- mistificada”, em que toma Roberto Schwarz como principal interlocutor. Desde essa época, porém, sua produção nesse terreno se resumiu a um curto artigo em homenagem a Drummond, quando do seu octagésimo aniversário. A que se deve essa mudança?

A circunstâncias ex ternas (aliás, haverá ou tras?). De um a certa m aneira retornei a este tem a, pois nestes dois úhim os anos escrevi sobre a poesia do Rubens R odrigues

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Torres Filho e do Jo ão C abral de M elo N eto . E stou re to rn an d o a este tem a e p re­tendo consagrá-lo a um fu tu ro livro, com posto de três partes: um a prim eira parte , m ais crítico-reflexiva, teria com o obje to a idéia de ipseidade, de ser si m esm o — a questão da subjetividade — , num a linha parecida com a de R icoeur''. A segunda parte seria sobre ética e rom ance, tra ta ria de alguns rom ances escolhidos. E um a terceira parte seria sobre poesia e m etafísica através da análise das poesias de João C abral de M elo N eto , de C arlos D rum m ond de A ndrade, Fernando Pessoa, Valéry, Francis Ponge e dos poetas m etafísicos espanhóis. Penso d a r a esse livro o títu lo Ipseidade, formas e expressão: as diferentes formas da subjetividade.

C erta vez, conversando com .Antonio C ând ido , nos anos 60 , disse: “O meu m estre G ranger diz que a filosofia não pode ter um a form ação puram ente filosófi­ca. A filosofia é essencialm ente parasitá ria , não tem um assun to p róprio . E ntão é indispensável que, além da form ação filosófica, tenha-se um a form ação científica, dom ine-se um a ciência. O bedeci a esse im perativo e, no caso, a m inha ciência é a poesia ...” ; a filosofia de um lado e a poesia do o u tro , para d a r con teúdo ou vida à reflexão filosófica.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­lações entre a filosofia e a cultura brasileira?

A idéia de um a filosofia nacional é obviam ente um a idéia p rob lem ática. Acho que aquele meu tex to '’ sobre a questão da filosofia no Brasil tem inúm eros defeitos, não o reescreveria da m esm a m aneira , mas con tinuo achando que é m uito difícil falar num a filosofia nacional, po rque isso parece im plicar um a espécie de psicologism o, um a espécie de alm a nacional, de um gênio nacional. Talvez C ruz C osta fosse víti­m a dessa idéia, na m edida em que achava que a filosofia brasileira iria nascer com as características da boa herança portuguesa.

Pode-se falar de tradições filosóficas que se instauram . N aquele meu texto dizia que no Brasil faz-se fenom enologia, faz-se positivismo, com o em qualquer outra parte do m undo, esvaziando com pletam ente a questão da filosofia nacional e insistindo no ca ráte r necessariam ente universal da filosofia. É nesse sentido que se pode falar em tradições que se constituem po r m eio de dispositivos institucionais, sem voltar a idéias com o gênio da língua, com o esp írito de um povo.

T enho a im pressão de que, ao co n trá rio do m eu diagnóstico de 1968, já é possível ver um a trad ição universitária de filosofia que, se não define um estilo fi­losófico, define, pelo m enos, um certo estilo de trab a lh o acadêm ico. Fíouve, nas últim as décadas, um a espécie de generalização de um certo p ad rão un iversitário de trab a lh o em filosofia. N ão é que considere que esse pad rão seja o m esm o por toda a parte , m as acho que ele é indispensável, senão bom po r si m esm o — o pad rão in ternacional, no m om ento , não é lá essas coisas. .Vias são condições m ínim as para o advento de um estilo original em filosofia. Desse m odo, acho im portan te duas coisas: que haja a constituição de um público leitor de filosofia e que haja um volume considerável de p rodução de tex tos filosóficos. Q u an d o era aluno , por exem plo, quan tos livros de filosofia eram traduzidos? Praticam ente nada, havia pouquíssim a coisa traduzida. Já hoje em dia, qualquer livro é im ediatam ente traduzido . Além disso, na USP, o exem plo que conheço mais — m as isso ocorre em ou tro s d ep a rta ­

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m entos — , há gerações sucessivas de pessoas que re traba iham o m esm o problem a e, nesse caso, é possível dizer que existe um a trad ição na leitura de tal au to r.

Em artigo de dezembro de 1999 para o suplemento Mais! da F olha de S. Paulo, você escreveu: “Confessemos, nós professores de filosofia, que nossa arte é bem pouco refletida no presente. Toda a minha simpatia vai para gente como Nietzsche e Wittgenstein, que consideravam nos­sa profissão um terrível perigo e nossa situação institucional um con­vite à falsificação. O que tem a ver o ensino da filosofia, hoje, com o esforço de to rn ar-se d igno de viver? Haveria de comum, entre nosso discurso e o dos antigos, mais do que mera hom oním iaf”. Em que sen­tido a homonímia não é apenas farsa? Há alternativa além daquela entre o “avoado filosofante” e o “idiota especializado”?

A frase que está po r trás desse artigo é de W ittgenstein: “N ão é possível ser hones­to e professor de filosofia ao m esm o te m p o ” . H á tam bém um o u tro tex to de N ie t­zsche, que me com oveu m uito, sobre institucionalização da filosofia, que diz: “ O E stado determ ina quan tas horas de filosofia são necessárias para a fo rm ação do c idadão . D eterm ina q uan tos filósofos deve haver no país, quais são esses filósofos e quais são os bons filósofos” , ou seja, a institucionalização da filosofia faz com que ela seja necessariam ente co n tro lad a de fora . E ele acrescenta: “ São fixados horários em que você deve filosofar. E se algum dia, por acaso , nada me ocorrer que valha a pena? Se não tiver nenhum a idéia no dia tal às o ito horas da m anhã? O que vou ter de fazer? Vou ter de fingir que penso. E fazem isso diante de jovens!" De fato , a institucionalização da filosofia tem aspectos no to riam en te positivos — no m eu caso, se não houvesse a profissão de filósofo, com o é que eu faria? N ão sou co n tra a profissão de filósofo, que nos perm ite sobreviver. N o en tan to , essa institucionalização acaba por fixar previam ente o que é filosofia, acaba estabele­cendo um curriculum, um a roupa pré-fabricada que cristaliza, de algum a m aneira, a filosofia. Veja-se, por exem plo, os debates entre as filosofias contem porâneas: são debates en tre instituições. As universidades am ericanas funcionam , po r exem plo, com um a certa concepção de prática de filosofia na base da solidez de seu sistema institucional, que é im perm eável. Isso não é só um defeito da universidade am eri­cana, é de toda a filosofia em situação institucional. M as, po r o u tro lado — é esse o problem a — não se pode co n trap o r ao m au m odelo de filosofia institucionalizada o bom m odelo de filosofia “em estado livre” . Isso não quer dizer nada , a não ser o voto piedoso, ou, no caso de W ittgenstein, a possibilidade de ele não dar aula na universidade — foi ser p rofessor p rim ário , foi ser a judan te de jardineiro . M as isso é um a saída pessoal. Nesse sentido é impossível pensar num a política da filosofia que não passe, de algum a m aneira, pela institu ição. T enho a im pressão que é ne­cessário que haja um a política da filosofia, um a política que pelo m enos neutralize os efeitos m ais im ediatam ente nefastos da institucionalização , que são, po r exem ­plo, a restrição do cânone: a determ inação do que é filosofo e do que não é filóso­fo, quais são os filósofos bons, quais são os filósofos m aus. Q ue in tro d u za um m ínim o de negatividade ou de (que me perdoem os deleuzeanos) reatividade. Stanley Cavell, po r exem plo, con ta que, q u an d o estudan te , um típico professor am ericano

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lhe disse: “ Existem três m aneiras honestas de se ganhar d inheiro com filosofia: a prim eira delas é estudar lógica e m atem ática; a segunda é estudar línguas, línguas antigas e ensinar história da filosofia; e em terceiro lugar fazer psicologia lite rária” . O Cavell diz que sentiu isso com o um a espécie de agressão pessoal, pois era ex a ta ­m ente o que estava pensando em fazer. O que é psicologia literária? É “ perfum a­r ia ” . O sujeito adm ite ainda que é um a m aneira honesta de ganhar d inheiro , m as é psicologia literária , quer dizer luda, nem psicologia, nem filosofia, pu ra lite ra tu ­ra... que deve ser, no m áxim o, tolerada com o ativ idade inócua. Sendo que o cu rio ­so é que a expressão “ psicologia lite rá ria” foi inventada pelo filósofo h ispano- am ericano [George] Santayana para caracterizar aquilo que seria um a espécie de fenom enologia do espírito: de um lado, tem as ciências na tu ra is , a h istória natural d izendo qual é o funcionam ento da hum anidade sobre o p laneta com o espécie an i­mal; dc o u tro lado, um a ativ idade que não é científico-explicativa, mas que é her­m enêutica, que ele cham a de psicologia literária , isto é, que traz a possibilidade de descobrir figuras do espírito através das suas m anifestações literárias.

O grande perigo, p o rtan to é, no fundo, o fanatism o, o sectarism o c o cânone— o fio de quaren tena que se estabelece em to rn o de certas tradições que se to rnam sacrossantas. Então, pensar em um a política positiva da filosofia é m uito difícil; mas podem os, digam os, tom ar um a atitude reativa, com bater as form as de fecham ento e de m itificação do discurso filosófico. É por isso que vejo com bons o lhos, sem ne­nhum ecletism o, quando tradições se cruzam . Por que eu escrevo sobre Deleuze e W ittgenstein? N ão é para dizer que é a m esm a filosofia — se eu dissesse isso seria simples bobagem — , mas para acentuar fortemente as semelhanças, para poder desven­d ar as diferenças mais finas que não aparecem no debate polêm ico. N a polêm ica antianalítica e na polêm ica antifenom enológica, por exem plo, norm alm ente os argu ­m entos são grossíssim os. Eu me lem bro de um filósofo fino com o Ryle que, ao fazer a crítica ã fenom enologia, fazia um a carica tu ra da fenom enologia. V lerleau-Ponty, respondendo a ele, dizia: “É curioso, porque onde você vê diferenças, vejo m uito mais sem elhanças, m ais sem elhanças entre o que você faz e o que eu faço do que você vê. Você só vê diferenças, eu vejo algum as sem elhanças” . É claro que, en tão , quando você ten ta suavizar ou to rn a r m enos precisos os lim ites que delim itam o p róprio cânone, o que é canônico, não se tra ta de prom over algum a coisa com o a filosofia perene, quer dizer, a identidade perene da filosofia consigo m esm a, mas m ostrar que as diferenças en tre as filosofias são m uito m enos evidentes do que parecem .

Messe sentido. Bento, os seus textos nos transmitem a impressão de que você trata os pensadores e escritores como se os estivesse recebendo em um salon do século XVIII. E, na posição de anfitrião, cabe a você a ta­refa de encontrar afinidades eletivas insuspeitadas entre convidados que não se conhecem, cabe não deixar ninguém isolado, sem uma boa con­versa. Seria isto para você a filosofia, muito mais um ambiente, um ele­mento, do que uma doutrina?

Seguramente. N ão sei se essa definição é fiel ã m inha prática^, mas gostaria que fosse, porque faria da história da filosofia um a espécie de pro longam ento de um diálogo do P latão — desde que aporético . E, na verdade, ao dizer isso, é preciso vo ltar a

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L ebrun, à m aneira com o ele p raticava a h istó ria da filosofia. Falou-se da m inha prática, m as acho que o que está na pergunta descreve m ais fielm ente a prática de Lebrun. N a historiografia de L ebrun, nos diálogos que ele estabelece, não existe nenhum personagem que desem penhe o papel de Sócrates. N o fundo ele assum e um a atitude perspectivista.

Mas o Lebrun julga...D epende do tex to , e o ju lgam ento varia com a variação da perspectiva escolhida. Hegel, po r exem plo, não é o m esm o na Paciência do conceito e no Avesso da dia­lética. O H egel do Avesso da dialética é caracterizado com um a im agem trivial e equivocada, po rque Lebrun está falando de N ietzsche, quem está com a palavra é N ietzsche. M as, se se pegar o ú ltim o tex to dele. Le devenir de la philosophie, Hegel volta a ser ob je to principal. É m ais ou m enos o que digo no m eu artigo \ FoIha de S. Paulo, 30/01 /2000] sobre Lebrun: o H um e, o Pascal, o Hegel e o N ietzsche dele são todos antifilósofos. O que pro íbe, p o rtan to , que o d iálogo se conclua em um a tese positiva. É nesse sentido que ele é w ittgenste in iano , em bora nunca tenha escri­to sobre W ittgenstein. C uriosam ente, ele ap rox im a W ittgenstein de H egel, ou seja, o fluxo do discurso nunca culm ina em um saber positivo (determ inado ou finito), m as to rna possível um ver do m undo , um resu ltado que é ao m esm o tem po nulo , se se en tende po r um resu ltado positivo um a tese, um a definição. É um a m aneira nova de ver que nasce da destru ição de teses ou de representações, um a m aneira que descreve perfeitam ente o estilo w ittgenste in iano da p rática da filosofia.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como mais represen- tativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

C om o disse, o que estou p rocu rando fazer agora — mas, pensando bem , nunca tra ­balhei com o u tro assun to — é circunscrever a idéia de subjetividade pela perspecti­va da idéia de ipseidade. Foi o que fiz na tese sobre Bergson, ao m ostrar a constituição da idéia de subjetividade na sua articu lação com a idéia de negação. Foi o que fiz tam bém no livro sobre o R ousseau, ao m ostrar o lugar da subjetividade na lingua­gem e, mais do que na linguagem , no discurso. E é o que eu tenho retom ado, u ltim a­m ente, nos meus cursos e em alguns textos, um a tentativa de fazer um a arqueologia do Ich denke, do cogito, em D escartes, K ant, e W ittgenstein , cm que p rocuro m os­tra r as m etam orfoses da idéia de sujeito ao longo da filosofia m oderna, que se carac­teriza por um a progressiva despsicologização e dessubstancialização da idéia do eu.

N ão há m uito com o esconder isso, quer dizer, o meu pon to de partida é H ei­degger, a idéia de ipseidade tal com o ela é tra tad a no Ser e o tempo. De um a certa m aneira, p o r m enos heideggeriano que eu seja — e estou longe de sê-lo — , as m i­nhas m anias, as m inhas obsessões têm , provavelm ente, um a origem heideggeriana. N ão há com o usar a expressão “ ipseidade” sem se rem eter, pelo m enos esse é o meu caso , a Heidegger.

Como você avalia as caracterizações que o Paulo Arantes apresentou de você em U m departam ento francês de Ultramar?

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Infelizm ente aciio co rretas [risosj. E m bora, no que se refere à concepção da litera­tu ra , ele force um pouco a m ão quando aprox im a os m eus escritos dos de Foucault (que Deus me perdoe a hyhrisl). De um a certa m aneira esses escritos foram fo rte ­m ente m arcados por ele, mas jam ais me aproxim ei daquela concepção m allarm aica da litera tu ra que F oucault subscreve. Em um a de suas aulas do Colégio de França, p o r exem plo, ele chegou a d izer que a sofística co rresponderia àqu ilo que, no sécu­lo XX , é cham ado de litera tu ra . Isso me parece um a falácia porque, no caso, tra ta ­va-se de defin ir sofística através de A ristóteles, um a m aneira pouco estratégica de definir o sofista, pois o define através da ótica de seu inim igo — aqui, o definiens elim ina, dá fim ao definteudum. E p ior, o discurso sofístico não é, no fundo , e- nunciação, po rque não tem referência, não tem significação, quer dizer, ap rox im ar o sofism a da poesia abso lu ta me parece estranho .

O meu tex to é, sem dúvida, fo rtem ente m arcado por Foucault — con tra R o­b erto Schvvarz — e te rm ino p o r ca rac te riza r a lite ra tu ra assim com o diz P aulo A rantes: “ A penas um arabesco no ar, m as que pesa e, no en tan to , ilum ina” . N ão é nada , m as, de um a certa m aneira , ilum ina a nossa experiência do m undo, quer d i­zer, a literatura tem um valor cognitivo. Pode-se dizer, assim, que um a teoria absolu­tista da literatura provavelm ente roubaria essa dim ensão cognitiva da literatura. M as, o que me interessa é que é possível falar perfeitam ente em conhecim ento literário do m undo. Aliás, fa lando sobre A ntonio C ândido , eu disse, no prefácio de um li­vro dedicado a ele, que, ao con trá rio daqueles que falam de sociologism o da parte dele — ou aquela a titude que ilum ina o fenôm eno literário a p a rtir de um conheci­m ento prévio, de um conhecim ento científico da sociedade — , o caso do A ntonio C ând ido é justam ente o oposto , ou seja, é a descoberta de que, no conhecim ento literário do m undo , podem os en co n trar p istas que ajudam a constitu ição de um a sociologia e de um a história do Brasil. E ntão , nem absolutism o, nem reducionism o.

Alguns leitores interpretaram o fato de o Patdo ter te chamado de “musado Departamento” como uma ironia.

É um elogio irônico [risosl**. Reconheço a parte crítica do tex to de Paulo e vejo, em grande parte , com o corre ta , m as tenho algum as restrições. C om o tam bém não co n ­co rd o com algum as in terpretações que se fazem da ob ra dele, ou com algum as in­terpretações que o Paulo faz de sua p róp ria obra . D iscordo, po r exem plo, da m a­neira com o ele escreve sobre si mesmo.

No Fio da m eada, por exemplo?N ão necessariam ente no Fio da meada. Um pouco por toda parte . Aliás, já no p re­fácio ao livro dele sobre Hegel, digo isso literalm ente: “ Paulo A rantes faz filosofia com o se estivesse fazendo o u tra co isa” . N a verdade, po r m ais que se converse com um a pessoa po r m ais de trin ta anos, para se com preender exa tam en te o que o o u ­tro diz, não é fácil. M al com parando , lem bro novam ente Sartre. N o tex to que co n ­sagra a M erleau-P on ty , depois de sua m orte , diz: “U ltim am ente M erleau-P onty andava falando sobre a filosofia da natureza com o algo diferente de um objeto das ciências n a tu ra is” . C^heguei a com entar esse tex to , dizendo: “ Dois com panheiros de pensam ento , de ta len to e lucidez incom paráveis, que fizeram as suas filosofias

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m uito p róx im as um a da o u tra , com os m esm os instrum entos — com a fenom e­nologia, com o m arx ism o, com a psicanálise, com a Gestalt etc. e, no en tan to , o Sartre disse: ‘Eu não en tendia d ire ito ’” . Eu tenho a im pressão que o Paulo tam bém não entendeu m uito d ireito as coisas que ele escreveu [risos].

O que me enquizila um pouco é o discurso antifilosófico de Paulo. M as, por que me aborrece o seu discurso antifilosófico e não me aborrece o estilo antifilosófico do Lebrun? Por que em alguns casos a antifilosofia me aparece com o um cam inho e às vezes eu sou mais reticente? Talvez porque me sin ta mais p róx im o do Paulo. Talvez para chateá-lo por isso mesmo. Talvez, ainda, porque a retórica antifilosófica (diferente da m inha) do Paulo me pareça co n trad itó ria com o con teúdo filosófico de seu d iscurso, que eu gostaria de ver mais sub linhado do que ocu ltado pelo espí­rito de con trad ição o rganizado . Enfim , isso dem ora um tem po para se entender: verem os no fu turo .

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação pertnanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

N unca tive um a form ação científica em um a área específica, a única ciência [s / í -]

que pratiquei foi a poesia. Posso ter sido sensível a um bom positivismo metodológico que aprendi na escola e do qual não me afasto m uito . Aliás, depois que escrevi o m eu tex to sobre D eleuze e W ittgenstein, o Arley [R. M oreno], que é estritam ente vvittgensteiniano, escreveu um longo com entário em que diz: “ Você verá que sou um rude positivista” . M ais adiante, diz ainda: “Talvez você seja um rude positivista” . Talvez seja dc fato. É m uito provável que na m inha im aginação, nos meus escritos, a m inha form ação apareça im pregnada po r au to res com o G ranger e ou tros, m as que jam ais se traduziria num trab a lh o positivo na área de filosofia da ciência. Para mim , psicanálise é tão “ciência” quan to literatura .

Em seus textos sobre psicologia e psicanálise, você parece adotar, em geral, uma postura de séria desconfiança em relação a toda empreita­da que pretenda cientifizar o discurso sobre o ser humano, mostrando que sempre haverá pressupostos filosóficos dogmáticos por trás dela.Qual deve ser o papel da filosofia na reflexão sobre a ciência?

Deve ser de delim itação do objetivável e do determ inável que funciona, ao mesm o tem po, com o um a delim itação do seu avesso. N ão necessariam ente na form a dualista e rom ântica de Vuillem in, pois, pela h istó ria que contei a respeito dele, é possível ver com o a mais ex trem a linha dura da filosofia analítica pode ser hostil a toda e qualquer tentativa de determ inação da subjetividade. De algum a m aneira diria: “ Só ser dualista em caso ex trem o ” , quer dizer, não p a rtir do princíp io de que aqui co ­meça o subjetivo e ali te rm ina o objetivo, e desconfiar, sobretudo , de oposições tais com o in terio r e ex terio r. N o caso da psicologia, há uma belíssim a frase que é ex ­trem am ente sin tom ática , de um epistem ólogo e psicólogo francês cujo nom e não me lem bro no m om ento , que diz de m aneira lapidar: “O problem a da psicologia é que, quando começa a ser científica, perde a certeza de continuar psicologia; e quando com eça a ser psicologia, tem certeza de não ser mais ciência” , ou seja, o que se ganha

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em cientificidade, perde-se em psicologia. W ittgenstein disse que, no lim ite, um a disciplina com o a psicologia é conceitualm ente im pensável. Assim, a idéia de um a “psicologia literária” me parece uma idéia sim pática: não é ciência, mas através dela se com preendem figuras do espírito ou da vida m ental.

Com relação à economia, você tem aquele trabalho interessante junto com o Mark Julian Cass sobre a retórica, publicado no livro A retórica na econom ia. N o lançamento do livro na Folha de S. Paulo, você desta­cou que o ponto de vista do Pérsio Arida está ancorado em Gilles-Gaston Granger, diferentemente daquele de [Donaldj McCloskey, que está an­corado em Richard Rorty.

N o debate da Polha, o Pérsio confirm ou ser leitor do prim eiro livro de G ranger, La métodologie économique. Ele insiste na d im ensão retórica da econom ia sem identificar explicação econôm ica com narrativa. Já o .VlcCloskey tem a perspecti­va do anything goes, ou seja, um a perspectiva parecida com a de Protágoras. O que me pareceu interessante na posição do Pérsio A rida é que ele se situa num a espécie de pon to in term ediário . N aquela ocasião , conversando com o Ju lian Cass a respei­to disso, falei: “ É com o se a epistem ologia cam inhasse entre C aribdes e C ila” , pois, por ou tro lado (contra o “ vale tu d o "), há tam bém um a definição m uito estreita da ciência que é, no fundo , a definição analítica , crítica de Popper, que tem um a co n ­cepção estritam ente aristo télica da explicação científica: a dedução de fatos a tra ­vés de princípios, de leis gerais. N o caso de P opper — ou de gente m ais linha dura do que ele — , por exem plo, você tem definições tais da ciência que são m uito d u ­ras e m uito rigorosas, que têm a desvantagem de excluir, para fora do cam po cien­tífico, noventa por cento daqu ilo que se entende po r ciência. C onform e sua esco­lha epistem ológica, pedaços da m atem ática vão em bora , todas as ciências hum a­nas “ d an çam ”^. E ntão não me parece razoável ter um a determ inação puram ente lógica do que é ciência. Sobra pouco, quer dizer, é um m au alfaiate aquele que faz um a roupa que veste só o braço do sujeito.

N o caso de M cCloskey, anything goes, não há nenhum a diferença en tre um rom ance e um tra tad o de econom ia. A liás, lem bro-m e disso em um a discussão do G ianno tti com o [Zeljko] Loparic. O G ianno tti dizia: “ Você dá um a definição tão larga do que é ciência” — no tem po em que Loparic traba lhava com inteligência artificial — “ que As ligações perigosas do L ad o s passam a ter um caráte r de um a teoria cien tífica” . M as a definição de G ianno tti, com estritas condições lógicas e ontológicas, é tão estrita que boa parte da ciência vai para a C ucuia. Então tenho a im pressão de que, com o a do G ranger, a posição de Pérsio é a posição de um Tércio ou Tertium. G ranger é bem pouco dogm ático , a ob ra dele é de epistem ologia com ­parada , quer dizer, há diversos m odelos de abrangências diferentes. Além do que, G ranger in troduz, na sua p róp ria com preensão do que é ciência, a idéia de estilo que rem ete, de algum a m aneira, a um a dim ensão mais retórica do que lógica da ciência. T enho um projeto junto com o Ariey |R. M oreno] de escrever um texto sobre a epistem ologia do G ranger. Ele, pensando na d im ensão pragm ática da sua teoria da ciência, e eu pensando na estilística.

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De qualquer jeito, o Granger não tem um modelito prévio da ciência que ele fica aplicando...

M esm o p o rque ele tem um m odelo parecido com o com teano antigo . Um a espécie de continuum que tem , em um ex trem o, a m atem ática, e, no ou tro ex trem o, a h is­tó ria — estru tu ra pura e acontecim ento puro . Em seu m odelo, as diferentes ciências se o rganizam de m aneira a com binar de form as diferentes o dom ínio do es tru tu ra l, o dom ínio do acontecim ento e o dom ínio do indivíduo. A ta l p o n to que tam bém para ele ser<ão porosos os lim ites en tre a narra tiva histórica de intenção científico- explicativa e a narra tiva rom anesca. M as, seguram ente, não há ap rox im ação entre econom ia e rom ance, são níveis diferentes. N ão se opõe b ru talm en te o científico ao não-científico, m as se estabelece um a tábua de g radação de cientificidade cres­cente e decrescente, con tínua.

Bento, queria que você falasse um pouco sobre o livro de Alan Sokal e de Jean Bricmont, já que eles criticam duramente tanto Deleuze quan­to Bergson.

Isso aí é bobagem. C om o eu já disse: Sokal e Bricmont têm um a epistemologia redneck e um a onto log ia country. A liás, ao 1er o livro deles no ta-se que eles têm a seguinte estratégia: “ V am os discu tir aí alguns equívocos, m as não vam os vo lta r ao debate do positivism o, que é um a coisa m uito esp inhosa” . Fazem isso, porque d iscutir o C írculo de V iena seria chegar às d ificuldades das teses do objetiv ism o de senso com um ou do grosseiro cientificism o que eles partilham . O Luiz H enrique tem um a bela imagem por meio da qual descreve o caráter p rogram ático da filosofia neoposi- tivista. Ele diz, mais ou m enos'^ : “ Era um a filosofia que se resum iu a problem as: a unificação da ciência, a ax iom atização, à form alização, tudo rem etido a enunciados atôm ico-protocolares etc. M as, com o num filme dos irm ãos M arx , todos eles entram cheios de bagagem num vagão de trem e sobram duas m alas para fora. Eles saem , pegam essas duas m alas e ten tam recolocá-las, m as nunca conseguem colocar den tro do vagão. N um tal m om ento , acham que é preciso dem olir o vagão” [risos]. O que aconteceu com o pro jeto positivista é exatam ente isso, ou seja, não coube nada. O u seja, exatam ente porque havia pensadores rigorosos que, justam ente p o r esse rigor, levando às últim as conseqüências os seus raciocínios, eram obrigados a reform ular indefin idam ente o projeto inicial, rom pendo finalm ente com os dogm as originais.

O caso de Bergson (tam bém incrim inado pela dup la caip ira), po r exem plo, é de um a insensatez to ta l. Ele quis co n trap o r, quis dem onstrar, m ostrar o erro , não da teoria científica de Einstein, m as da in te rp re tação filosófica que E instein deu às noções de espaço e tem po. Bergson quis d em onstrar isso tecnicam ente, n^o sugerir através de m etáforas, e, finalm ente, chegou à conclusão de que m alograra, de tal m aneira que proibiu a reedição de seu livro. Então ele não era um enganador, pelo con trário . M erleau-Ponty , sobre isso, dizia o seguinte: “ Bergson não estava e rra ­do, se tecnicam ente ele não estava certo , conceitualm ente ele estava ce rto ” . Um a coisa é a teoria física einsteiniana, outra coisa é a interpretação filosófica que Einstein lhe dá. E ele era m uito m ais sofisticado do que Sokal e B ricm ont, que são , sim ples­m ente, realistas ingênuos. O Einstein tem aquela belíssim a frase: “ O incom preen­sível é que o m undo seja com preensível” . C om o é que os nossos m odelos teóricos

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(livrem ente constru ídos, sem qualquer referência ao m undo dado) acabam b aten ­do com a es tru tu ra da realidade? Isso é m uito m isterioso. M as é tam bém um tipo de proposição , para Sokal e Bricm ont, abso lu tam en te sem sentido.

A ciência p rogred iu m uito com o uso de m etáforas e com a transposição de m odelos, com ou sem deform ação. É certo que Lacan abusa, de m odo barroco , de m etáforas de utilidade duvidosa, m as não posso criticá-lo ignorando o eventual co n ­teúdo da sua teoria. E n tretan to , os dois au to res confessam que não entendem nada desse conteúdo . Q ue estão criticando? Estão fazendo análise estilística? Eles dizem: “ N ão querem os avançar nenhum a tese de filosofia, m as os filósofos fazem m au uso das m etáfo ras” . E fazem m esm o. Aliás, eu dizia que poderia d a r exem plos m uito m elhores do que eles encon traram com a ajuda de tr in ta e cinco assistentes — trin ta e cinco dedos-duros! O p ior é o seguinte: isso é apenas briga institucional de poder. A luta mortal pelo prestígio. O Sokal deve estar b rigando con tra os Culture studies (não para gan h ar mais d inheiro , pois os físicos são im batíveis nessa m atéria): é o negócio do capital sim bólico e do prestígio na media, que os m andarins mais fo rte­m ente encastelados na Institu ição não desprezam com o seria desejável.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobreum possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como você se posiciona em relação a esse debate?

Eu não teria nenhum a resposta precisa a d a r a essa questão .

Então, aproveitando o gancho, qual a diferença entre filosofia e lite­ratura?

Em algum as circunstâncias, em debates com P orchat, cheguei ao ex trem o de dizer que não havia, rigorosam ente, nenhum a diferença en tre um tra tad o de m etafísica e um poem a. O bviam ente essa afirm ação é rigorosam ente insustentável, pois um poem a e um tra tad o de m etafísica hab itam registros m uito diferentes. O que há de com um a am bos é que são form as de linguagem , são jogos sim bólicos sem determ i­nação do ob je to , sem chegar a um a form a de objetivação e que, no en tan to , perm i­tem ilum inar a experiência. M as fazem isso de m aneiras diferentes: um a o faz pela sua capacidade expressiva, a o u tra o faz pela sua capacidade de analisar os limites de significação da linguagem . Nesse caso é im portan te a m etáfora de Heidegger: “ A rte e filosofia com o duas m o n tanhas separadas pelo m esm o vale, m as essencial­m ente diferentes, que, de um a certa m aneira, se co n ectam ” . A filosofia e a litera tu ­ra não me aparecem com o form as incom patíveis qui hurlent de se trouver ensemble. Lem brem os o que diz W ittgenstein: “ Q uem quer filosofar, só pode fazê-lo ã m aneira da poesia” . C laro que W 'ittgenstein, q u an d o está d izendo isso, não está con fund in ­do a poesia com a filosofia, m as talvez esteja defin indo am bas po r oposição ao d is­curso científico. É difícil chegar a um a teoria positiva dos diferentes registros, m as há ten tativas in teressantes. Um filósofo analítico , particu larm ente in teressante, é o N elson G o o d m an , que, m an ten d o da m aneira m ais estrita a sua obed iência ao m odelo ca rn ap ian o da filosofia, chega a resu ltados — não sei se ele concordaria com isso — m uito p róx im os aos da filosofia crítica de K ant. O s seus últim os tex ­tos são todos consagrados à linguagem artística, a linguagens não-verbais, à p in tu ­

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ra, à música etc. N a verdade, m antendo-se analítico, ele chega a uma espécie de teoria da idéia de correção , um a idéia mais geral do que a idéia de verdade. Ao lado da idéia de verdade, digam os, de projeção de proposições de estados de coisa, ele fala de correctness, idéia que, ao m esm o tem po , subsum e e u ltrapassa a idéia de tm th. C om o se a idéia de correção englobasse a idéia de verdade, um a idéia não veritativa da co rreção , ou seja, um uso de sím bolos não-verbais que corresponderia mais ou m enos a um a teoria da im aginação transcenden ta l, sem nenhum con teúdo psicoló­gico. Um a espécie de Crítica da faculdade de julgar in teiram ente despsicologizada.

Como diz Lebrtin, “uma imaginação sem imagens”...Um a im aginação sem imagens. Sem imagens no sentido de não ser representacional. R ecentem ente eu estive em um a mesa redonda no Rio de Jan e iro , com o Jean- François N o rd m an n , e term inam os nessa questão . R ealm ente m uito pouco resu l­tado se ob tém , a não ser o negativo. É m uito mais fácil dizer que a filosofia e a li­te ra tu ra não coincidem e, m uito mais difícil, é, sem perigo, ap o n ta r positivam ente para um a sim ilaridade. É bem verdade tam bém que seria preciso pensar h isto rica­m ente essa relação, porque não é possível pensar em abso lu to na oposição en tre literatura e filosofia. Essa relação é um a no século XVII eu ropeu , é o u tra no século V! antes de C risto e é o u tra , seguram ente, no século XX. E ntão é m elhor pensar em um a h istória dos lim ites móveis en tre litera tu ra e filosofia. Basta im aginar au ­tores com o K ierkegaard em que a ficção e a narra tiva são um a peça essencial da sua construção nocional. O Sartre tem aquele belíssim o ensaio , O que é literatu­ra?, e, no entanto , quando define o que é a poesia, em princípio fenom enologicam ente— o determ inado e o invariável de um a essência da poesia — , ele descreve a poesia m oderna dizendo que o que vale para a poesia m oderna , não vale p ara a poesia clássica, não vale para a epopéia, não vale para a Divina comédia. E n tão é difícil pensar essas questões de m aneira etern itá ria e essencialista sem um a h istó ria dos gêneros literários. Tem um a boa p iada do Benedetto C roce que, po r ser hegeliano, era inim igo da noção de gênero literário . C erta vez, alguns jo rnalistas o en trev ista­vam e fizeram um a pergun ta biográfica: “ E as suas filhas, po r que ainda são soltei­ras?” . Ele respondeu: “ Perché non mi p iasccono i generi” [risos]. Porque genro e gênero é a m esm a palavra em italiano. N o meu tex to sobre o Rousseau, tam bém procu ro m ostra r com o a sua teoria do rom ance é, p o r assim dizer, histórico-cultu- ral, em que a idéia de gêneros literários fixos é bom bardeada d iretam ente.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garantia do Direi­to e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que pare­cem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

Seguram ente tem , m as acrescentaria o seguinte: fala-se, tam bém , de um a espécie de esgotam ento da política. O [José Luís] Fiori fala de um a espécie de vingança do

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capita l financeiro sobre a política, invertendo a situação do século XVII. H á um esgo tam ento da po lítica, um a restrição duríssim a da esfera de ação possível dos p ró p rio s sujeitos po líticos, dos governos nac ionais, das classes sociais. T enho a im pressão, e há m uito tem po a trás dizia — não sei se isso é m uita novidade — , que a única In ternacional que conheço é a do C apital (ou a da polícia, que é a mesma coisa). O in ternacionalism o do C apital é cada vez m ais evidente. M as não sei se isso esgota a esfera do político , porque você pode pensar num a sobrevivência tópica da negativ idade não necessariam ente a rticu lada universalm ente. H á esferas de resis­tência local com o, po r exem plo, o g rupo ATTA C , articu lado p o r aquele d ire to r do Le Monde Diplomatique. Penso tam bém nas O N G s, com todas as lim itações que têm . Sem dúvida, isso não pode ser pensado em term os de política to ta l, g lobal, mas pode ser pensado em conexões locais. É necessário pensar a política com o resistência.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?Fui form ado em um a atm osfera cató lica e guardo um a sensibilidade para as d ife­rentes form as de expressão religiosas. Sou perfeitam ente agnóstico. M as interessa- me m uito a fenom enologia da experiência religiosa. Basta pensar num a figura com o W ittgenstein , que guarda o uso da linguagem da m ística, m esm o o uso da palavra “ D eus” , sendo que o conceito de Deus, com o classicam ente defin ido, está com ple­tam ente ausente de seu pensam ento .

Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem?

Parece-m e que essa é um a das vertentes e não , necessariam ente, a única vertente da filosofia con tem porânea. C oncordo , nesse sentido, com o diagnóstico de C laude Im bert, que tem aquele livro Phénoménologies et langues formulaires. O d iagnós­tico que ela faz da filosofia con tem porânea é, m ais ou m enos, o seguinte: as suas duas principais tendências são um resu ltado de um a espécie de desarticu lação da unidade da Crítica da razão pura. A unidade assegurada pela Crítica da razão pura, ou seja, a unidade com o in tegração en tre a “ A nalítica tran scen d en ta l” e a “ Estéti­ca tran scen d en ta l” seria im possível na au ro ra do século X X , em que a filosofia to rnou-se ou pura analítica, isto é, análise lógica da linguagem , ou pu ra estética, isto é, fenom enologia. M as o fato é que a filosofia da linguagem term ina por tro ­peçar em p rob lem as fenom enológicos e a fenom enologia te rm ina p o r en fren ta r d ificuldades sem ânticas. E n tão , tenho a im pressão de que definir o fu tu ro da filo­sofia com o a substitu ição das ilusões da m etafísica pela sim ples análise da lingua­gem parece ser um a m aneira insuficiente de definir esse cenário.

Você escreveu um artigo sobre Richard Rorty. Gostaria de te provocar usando uma citação desse autor: “Para a tradição antifilosófica do pensamento contemporâneo francês e alemão que tem seu ponto de partida na crítica de Nietzsche de ambas as correntes filosóficas do século XDC, tanto positivista quanto transcendental, os pragmatistas americanos são pensadores que nunca romperam realmente com o posi­

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tivismo, portanto, nunca romperam realmente com a filosofia. Não penso que nenhuma dessas atitudes de rejeição sejam justificáveis. Na descrição da filosofia analítica recente que fiz em Filosofia c o espelho da natureza, a história desse movimento foi marcada por uma gradual pragmatização dos princípios originais do positivismo lógico. Na des­crição da filosofia continental recente que espero fazer num livro so­bre Heidegger que estou a escrever, James e Nietzsche fazem críticas paralelas ao pensamento do século XIX. Mais ainda, a versão de James é preferível porque evita os elementos metafísicos de Nietzsche que Hei­degger critica, e, ao que a ele diz respeito, os elementos metafísicos de Heidegger que Derrida critica. Na minha maneira de ver, James e Dewey não só estavam à espera no fim da estrada que a filosofia percorria, mas estão à espera no fim da estrada que, por exemplo. Foucault e Deleuze estão atualmente a percorrer”.

Acho m uito sim pática a em presa de R orty na m edida em que faz trem er um pouqu i­nho as quaren tenas e faz variar um pouco o cânone. .Mas tenho a im pressão que, a despeito desse esforço de com preensão, de pensar com o o o u tro , ele acaba por assi­m ilar m uito rap idam ente todas as diferentes form as de pensam ento não-m etafísico no m odelo de p ragm atism o am ericano. N ão que eu seja inim igo do pragm atism o, m as tenho a im pressão que é possível recolher todos os efeitos positivos, ou críticos, do pragm atism o sem chegar a um a teoria p ragm atista. Lem bro-m e de W ittgenstein, que em certo m om ento diz: “ M as seria eu pragm atista? N ão , po rque não digo que algo é verdadeiro porque é útil. D igo que ele é útil porque é verdadeiro” . C onsidero com m uita sim patia a o b ra de R orty , m as tenho a im pressão que ele é pouco p reo ­cupado com as diferenças, quer dizer, no fundo se aproxim a dem ais de um tipo de mo- nism o. R orty diz: “ C oncordo em noventa e nove po r cento com H aberm as” . De fato há dois pragm atism os, um pragm atism o de estilo transcendental e um pragm atism o de estilo naturalístico . F ele diz: “N ão estam os de aco rdo apenas em um por cento, m as isso não é im portan te porque é filosofia” . M as é um sujeito m uito sim pático ...

Em 1994, você esteve com Rorty num evento em que apresentou um texto em que, num certo sentido, você dissolveu o conceito de relativismo. Houve algum debate?

N ão , conversei com R orty antes da conferência, m as não conversei depois. Eu o reencontrei, posteriorm ente , em M inas G erais e, após a conferência, nós conversa­m os longam ente. Sendo que é curioso: R orty é m uito diferente na situação pública e na situação face a face. N a conversa em situação pública leva o seu p ragm atism o a um tal extrem o que se to rna m uito difícil (quase impossível) discutir com ele. Fazem um a objeção e ele assim ila, dizendo: “T u d o bem , podem os redefinir assim ” . C om ele, há sem pre a possibilidade de se redefinir, de se redescrever. Já num a conversa particu la r ele é mais “pescoço d u ro ” , não é tão pragm ático assim.

No texto “Erro, ilusão e loucura”, você faz críticas à interpretação de Giannotti sobre Wittgenstein. Qual é, ao seu ver, o erro básico da in­terpretação do Giannotti?

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“ E rro” talvez não seja a m elhor expressão. M as, grosso modo, pode-se dizer o seguin­te: G iannotti parece não distinguir, jam ais, as idéias de necessidade e de un iversa­lidade. X o caso de W ittgenstein, tenho a im pressão que é preciso reconhecer algo com o um a necessidade que não coincide sem pre com a universalidade. É um a idéia com plicada, po rque tenho de com bater o universalism o de G iannotti sem aderir ao relativism o de R orty. T enho a im pressão que é fácil criticar o universalism o e é fácil criticar o relativism o, com o faço, porque encontram -se em W ittgenstein elem entos para se fazer essas duas operações. Agora, um a outra conversa é poder m ostrar com o esses dois com bates se articulam . G osto m uito de um a célebre frase de Luiz Henrique: “ Perspectivism o sem relativ ism o” . O perspectivism o se opõe, de algum a m aneira, ao universalism o, e, de fato, já no Tractatus, nos textos relativos à m ecânica new to- n iana: ela é um sistem a figurativo, indeterm inado , que poderia ser substitu ído por ou tro s sistem as, ou tras form as de projeção. De um a certa m aneira , ao bom estilo do convencionalism o da física da época, que insiste na d im ensão “ m odelar” da teo ­ria. W 'ittgenstein ainda acrescenta: “ M as o fato é que esse m odelo descreve o m un­do, diz algum a coisa a respeito do m undo” . Portanto , se me parecem óbvias as razões de me afastar de G ianno tti, de um lado, e de R orty , de o u tro , se algum as indica­ções de Luiz H enrique parecem cam inhar nessa m esm a direção, isso não quer d i­zer que a coisa está resolvida, m esm o porque, para W ittgenstein, nada jam ais está resolvido. As características dos tex tos de W ittgenstein são as seguintes: trata-se de um d iálogo perm anente e sem pre aporético . Jam ais a dialética se esgota em um resultado positivo, em um repouso, em um a posse positiva da verdade, na calm a con tem plação de um a essência. A filosofia, tenho a im pressão, sem pre renasce, é um a doença incurável, e o m ais interessante é que o rem édio é da m esm a natureza da doença**. Isto seguram ente não é um a filosofia do senso com um .

Nesse mesmo texto, “Erro, ilusão, loucura”, também parece que você diverge de Giannotti quanto à novidade, à originalidade de Wittgen­stein, ou seja, quanto à magnitude da ruptura de Wittgenstein, que ele estaria mais próximo da tradição filosófica do que dá a impressão. E correta essa impressão?

C reio que não. Provavelm ente ap rox im o W ittgenstein de um a ou tra trad ição de fi­losofia, diferente da reivindicada pelo G iannotti. O bviam ente W ittgenstein é herdei­ro de Frege, de Russell e, no lim ite, de Leibniz e de A ristóteles. M as é herdeiro de o u tras tradições: de S chopenhauer, de N ietzsche, de K ierkegaard. N ão se tra ta de m inim izar ou m axim izar o co rte em relação à trad ição , m as de pensar essa tra d i­ção. Às vezes brinco, perguntando: será que o verdadeiro Frege de W ittgenstein não seria K ierkegaard? M as isso, evidentem ente, não passa de p iada e de provocação ...

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu ­turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

N ão m uito d iferente do ideal u tóp ico do socialism o científico |risosJ. T enho a im ­pressão de que não se tra ta ta n to de descrever a boa sociedade fu tu ra , m as, antes, de asp irar a que as contrad ições do m undo presente dim inuam .

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Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar­ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas?

N ão ignoro toda a literatu ra que descreve esse processo, com o aqueles que falam de um a barbárie em ergente. Ao m esm o tem po, sou sensível àquilo que é perfeita­m ente visível na degradação da qualidade da vida e da p rodução cultural. M as, por ou tro lado, tem o endossar um a perspectiva puram ente catastrofista . É verdade que a cam inhar com o cam inham os (com o diz o G eorge Soros que não é inim igo m orta l do Ciapital e é insuspeito nesse capítu lo) vam os qu eb ra r a cara na parede. M as sin­to algum a coisa de conservador nesse tipo de discurso, que, aliás, é reiterado há m uito tem po (desde o alvor do rom antism o). O discurso de W ittgenstein , p o r exem plo, é desde início ca tastro fis ta e, por ou tro lado, exclui toda e qualquer possibilidade de an tec ipação do fu turo . Em algum lugar ele diz m ais ou m enos: “ N ós visam os o fu tu ro , m as o ignoram os, pois, à m edida em que dele nos ap rox im am os, sua curva se deform a, escapa à nossa an tec ip ação ” . Com essa frase ele não deixa de ser berg- son iano, pois ela im plica um a essencial im previsibilidade do fu turo . O seu d iagnós­tico era hiperbolicam ente catastrofista, pois, em certo m om ento, ao falar “dessa água de lavagem im unda que é a cic-ncia e a tecnologia co n tem p o rân eas” , ele chega a criticar os inim igos da bom ba atôm ica. Ele os critica, d izendo que se a bom ba a tô ­mica destruísse a vida sobre a Terra, destruiria tam bém “essa porcaria que é a ciência e a tecno log ia” . É, digam os, um catastrofism o para ninguém bo tar defeito.

E n tre tan to , q u an to a este assun to , com o cidadão , só tenho sen tim entos (e con trad itó rios). N ão sou capaz de organ izar nenhum a teo ria , e sei que posso per­feitam ente estar sendo cego para eventuais transfo rm ações que poderiam levar na d ireção con trá ria à da catástrofe . Aqui o não-saber é o único abrigo da esperança.

Em entrevista à Folha de S. Paulo, sobre Deleuze, você afirma que esse pensador, valendo-se de idéias de Bergson e de Hume, reabilita de ma­neira radical o devir, contra grande parte da tradição filosófica. Nas suas palavras: “O devir, para Deleuze, não é antecipável, domesticável na recognição do conceito, e passa a ser o verdadeiro signo do Ser. Só a idéia de devir pode devolver, com sua rebeldia, ã representação a es­pessura do Ser ou do cosmos, sobre fundo de caos”. Como você se po­siciona em relação a essa idéia de devir?

Essa é um a pergunta em baraçosíssim a, m as vou ten tar responder. R etom ando o que conversávam os há pouco , existe um a significação m ínim a da idéia de devir que não se com prom ete com nenhum a cosm ologia — pois os tem pos pré-socráticos estão m uito d istan tes e m inha “cu ltu ra c ien tífica” é bem aqu ilo que vocês im aginam . Pensando ainda no diagnóstico de nossa experiência presente, é necessário reconhecer que nossas antecipações do fu turo não envolvem , freqüentem ente, êxito algum; pelo contrário , a história de nosso raciocínio político, po r exem plo, é essencialmente uma história de sucessivas decepções. C laro que estou dando um sentido perfeitam ente trivial à idéia de devir, referindo-m e apenas à im previsibilidade do acontecim ento , de cuja consciência podem derivar efeitos terapêuticos. O p róp rio V uillem in, bem pouco metafísico e intuicionista, dizia, nesse sentido restrito, aderir à filosofia bergso-

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niana da H istória . O que ele queria dizer não era, no fundo, diferente da frase de W ittgenstein há pouco citada. Talvez o que ocorre para a d im ensão social de nossa e.xistência, ocorra tam bém em todos seus dem ais níveis. Já no caso de Deleuze, essa idéia assum e de im ediato um a dim ensão especulativa, m etafísico-cosm ológica. N a últim a versão de meu ensaio sobre ele, digo: “ .A despeito de seu ca rá te r transcen­dental, a filosofia de Deleuze tem um a dim ensão n itidam ente pré-socrática” , pois pretende alcançar o nível da biologia, da física, um a teoria da estru tu ra do cére­bro , da T erra e do Cosm os. O bviam ente, q u an to a mim, tenho de ficar no nível do com entário ob líquo , se não do m ero devaneio.

N o en tan to , atribu ir um sentido positivo ã idéia de devir é, pelo m enos, per­der algum as ilusões — praticam ente é quase nada, m as já é algum a coisa. Isso é perfeitam ente banal, com o diriam , cada um à sua m aneira, W 'ittgenstein, Heidegger e H usserl; “ .A filosofia é um a ginástica intelectual terrível, que você faz para conse­guir ver aquilo que desde sem pre estava na ca ra ” . O u seja, quan to m ais p róx im o e trivial, m enos visível. H eidegger tem o bom exem plo dos óculos: você não vê os óculos porque vê através deles, você não tem consciência dos conceitos com que pensa porque pensa através deles. O s óculos, os conceitos, a m etafísica, quando desm anchados, estão na sua cara. E pensar todo o esforço da fenom enologia para m ostrar que a cadeira não é um a imagem m ental!... jrisos].

N o t a s d o e n t r e v i s t a d o

’ k fenom enologia só com eçou a c ircu lar livrem ente no D ep artam en to com a volta de G ian- norti da F rança , em 19.SX, q u an d o re to rn o u com H usserl cm sua bagagem ,

- Cf, m eu artigo sob re o estilo da g eração C lim j, "O novo estilo de p en sam en to " , caderno M ais!, de S. Paulo. 0 7 /0 3 /1 9 9 9 , p. 1.

’ N a verdade, “ althusserian ism o" a n u i t Li lettre (na ocasião a inda não se lia A lthusser), m ais so fisticado , m enos “ ep isrem ológ ico” e m ais " ló g ico -o n to ló g ico ” . N o fundo , o que deba tíam o s era a a lte rn a tiv a en tre a Lógica e a F enom enolog ia co m o p arad ig m a da d ialética da H istó ria .

■* O u , infelizm ente, deu certo dem ais, com o se vê na situação a tu a l da un iversidade b rasile i­ra. É preciso n o ta r que G ian n o tti, ao fa la r de " p ro je to in te lec tu a l" , está o b v iam en te p en san d o em um p ro je to "p o lític o ” p a ra um a m o d ern ização da un iversidade e p a ra o ensino e p ro d u ção da F ilosofia. L em bro-m e com o víam os com o lhos diferentes, no fim da década de 6 0 , a ap licação do m odelo ,Mec/Usaid na un iversidade. Só a idéia de “ c réd ito s" já me dav a a rrep io .

' O m esm o R icoeur cu ja ausência em nosso d e p a rta m e n to era co n s id erad a e s tran h a p o r L ebrun .

“II p ro b lem a delhi filo so fia iii B rasile”. A u t A u t, rivista d i filo so fia e d i cu ltura , n“ 109- 10, 1969, pp. 87-104.

F.m to d o caso seria fiel à idéia de 1 lu m e, que defin ia a filosofia com o “ o tip o de d iscurso que se m an tém , num sa lão , com um a bela m u lh e r” .

* .■\liás, é p reciso esclarecer o títu lo do ensaio de Paulo .Arantes. T ra ta -se de um tro cad ilh o , que p ro longa o tro cad ilh o de F oucau lt inscrito n o títu lo d o livro, que m istu ra nosso D ep a rta m e n ­to da USP com um D ép a rtem en t d 'O u tre -m er . La m u se d u D ép a r tem en t é o títu lo de um ro m a n ­ce de Balzac — o que rem ete, no conte.vto lite rá rio a rm a d o pelos tro cad ilh o s que se enca ix am , a algo com o “ a inspiração literária na p rov íncia” (aliás, o Paulo desencavou, n ão sei onde, um a revista do século X IX , que traz ia o belo títu lo de “ E nsaio filosófico p a u lis ta n o ” , que acrescen ta um p o u ­co de cor local na brincadeira ...). Está na cara que Paulo jam ais pensou em colar-m e o desm oralizante a p o d o de “ m usa do d e p a r ta m e n to ” , v isando an tes a p rá tica m eio so litá ria , na épo ca , do estilo

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ensaístico, sem pre dependente de um a prob lem ática, rara ou raia inspiração. Já nas origens do Ensaio com o gênero literário . Bacon caracterizava essa fo rm a de escrita com o “ apenas um a form a de afinar os in s tru m en to s d a m u sa s” .

Cf. o ú ltim o te x to d as l iw estig a fô es filosó ficas de W ittgenste in , que co rta p a rte da m a te ­m ática e to d a a psicologia.

A im precisão da descrição é de m inha responsab ilidade ." Foi A n ton ia Soule/. que ch am o u m inha a ten ção p a ra essa d im en são “ h o m e o p á tic a ” da

te rap ia w ittgenste in iana . T am bém aq u i sim ilia s im ilibus curantur.

Principais publicações:

1981 A filosofia e a visão comum do mundo (co-autor) (São Paulo: Brasiliense);1982 Filosofia e comportamento (co-autor) (São Paulo: Brasiliense);198.5 Alguns ensaios: filosofia, literatura e psicanálise (Porto Alegre: M ax Li-

m onad);1989 Presença e campo transcendental: consciência e negatividade na filosofia

de Bergson (São Paulo: Edusp);1991 Filosofia da psicanálise (co-autor) (São Paulo: Brasiliense).1994 O relativismo como visão comum do mundo (co-autor) (São Paulo: F ran ­

cisco Alves)

Bibliografia de referência da entrevista:

Bergson, H. Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, L isboa: Edições 70. Deleuze, G. e G uatta ri, F. O que é filosofia?. E d itora 34.D escartes, R. Meditações, coleção Os Pensadores, A bril C ultural.Foucault, M. As palavras e as coisas, M artin s Fontes.H eidegger, M . Ser e tempo. Vozes.K ant, I. Crítica da razão pura, coleção O s Pensadores, Abril C ultural.___________ . Crítica da razão prática, Lisboa: Edições 70.Lebrun, G. La patiente du concept, Paris: G allim ard .___________ . O avesso da dialética, Brasiliense.Lévi-Strauss, C. Estruturas elementares do parentesco. Vozes.M arx , K. O capital, coleção Os Econom istas, Abril C ultural..M erleau-Ponty, M . Fenomenologia da percepção, M artins Fontes.P opper, K. A lógica da pesquisa científica, Edusp.R orty , R. A filosofia e o espelho da natureza, R elum e-D um ará.R ousseau, J.-J. Ensaio sobre a origem das línguas. Editora da U nicam p.___________ . Considerações sobre o governo da Polônia, Brasiliense.___________ . Do Contrato Social, coleção O s Pensadores, A bril C ultural.Sartre, J.-P . O ser e o nada. Vozes.___________ . Crítica de la razón dialéctica, Buenos Aires: L osada.___________ . Que é a literatura, A tica.___________ . C oleção Os Pensadores, A bril C ultural.W ittgenstein , L. Investigações filosóficas, coleção O s Pensadores, A bril C ultural.

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G U ID O A N T O N IO DE ALM EIDA (1930)

G uido A ntônio de Alm eida nasceu em 1939, em Belo H orizon te (M G). G ra­duou-se em Filosofia pela U niversidade Federal de .Vlinas G erais, tendo ob tido o grau de m estre em Filosofia pela Fordham U niversity (EUA) e o títu lo de d o u to r em Filosofia pela U niversidade de Freiburg (A lem anha). É professor titu la r de Fi­losofia da U niversidade Federal do Rio de Janeiro e ed ito r da revista Analytica. Esta entrevista foi realizada em janeiro de 2000 .

Goethe dividiu a vida de seu personagetn Wilhelm Meister em dois romances, O s anos de ap rend izado e O s anos de peregrinação. No pri­meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas­se de sua formação intelectual?

Talvez seja, m as, antes de mais nada, quero observar o seguinte: a criação de um a identidade pessoal está, no meu m odo de ver, inseparavelm ente ligada à iden tida­de coletiva, de tal form a que não vejo um a separação entre as duas coisas.

Q u an to ã m inha form ação , o que foi decisivo para o m eu am adurecim ento , com o pessoa dedicada à cu ltu ra e à filosofia, foi um a tom ada de consciência polí­tica que tive nos anos 60. Com ecei a me com preender com o o que sou atualm ente nos últim os anos de m eus estudos no colégio e no início da universidade, onde o engajam ento político tinha um a enorm e im portância . E ntão a m inha ida para a filosofia, o m ovim ento decisivo p ara a m inha form ação intelectual, fez-se inicial­m ente por m eio da política, quero dizer, do interesse pelas questões políticas. N ão continua assim , mas esse foi o passo inicial e isso não ocorreu som ente com igo, mas com grande parte da m inha geração.

Como o senhor chegou ao curso de filosofia?Cheguei ao curso de filosofia por duas razões: prim eiro porque tive a sorte de ter dois anos de filosofia no Colégio Estadual de M inas G erais, em Belo H orizon te , onde estudei. Segundo, po rque me liguei aí à Juventude Estudantil C atólica (e, depois, já na Universidade, à Juventude Universitária C atólica, em bora por pouco tem po), onde tinha m uita im portância a preocupação com a política e a filosofia (no tadam ente o “ personalism o” do filósofo francês E. M ounier, que inspirava na França e entre nós um pensam ento católico de esquerda, que se exprim ia na revista Esprit). Assim, minha chegada ã filosofia deveu-se a esses fatos contingentes: tive a sorte de encon trar quem me falasse sobre a filosofia no colégio e tam bém tive a sorte de ser despertado para um a form a de engajam ento político e espiritual ligado a um a reflexão filosófica.

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No curso de filosofia quais foram as sua principais influências? Infelizm ente, não foi um bom curso. N aquela época, o curso de filosofia era m uito pouco profissional, os professores eram recru tados entre padres e advogados que tinham às vezes apenas um interesse lateral por filosofia. Então, não houve uma influên­cia decisiva, a não ser a de jovens professores que eram quase colegas e que me orien­ta ram nos prim eiros passos. Entre eles, cito José H enrique Santos, atualm ente p ro ­fessor aposen tado do D epartam en to de Filosofia da U niversidade Federal de .Minas G erais, uns três anos m ais velho do que eu, que foi m uito im portan te para os meus estudos. Foi através dele que vim a conhecer algum a coisa sobre a fenom enologia de Husserl e sobre a filosofia existencial de Heidegger, e isso foi determ inante, porque me levou a fazer um d o u to rad o sobre a fenom enologia de H usserl na A lem anha.

£ como o senhor avalia a figura de Arthur Versiani Velloso?O professor A rthu r V ersiani Velloso foi, antes de m ais nada , um grande an im ador. C ertam en te não foi um grande filósofo, pois, naquele tem po, o Brasil não tinha condições para p roduzir pensadores na área de filosofia. V elloso criou o D ep arta ­m ento de Filosofia para o qual dedicou a sua vida inteira, criou um a ótim a bib lio­teca e estimulou muitas vocações. Ele teve um papel m uito im portante nos prim órdios da filosofia em .Minas G erais, e exerceu um a posição sem elhante àquela que C ruz C osta exerceu em São Paulo, [Ernani] F iori no Rio G rande do Sul e A lvaro V ieira Pinto aqui no IFCS |In stitu to de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ]. Esses nom es tiveram um a im portância m uito grande no Brasil, foram eles que im plan taram os departam en tos de filosofia c que estim ularam as pessoas que tinham interesse por essa área. Por aca.so, Velloso foi tam bém meu professor no colégio estadual, dc m odo que tive um ótim o o rien tado r em m eus prim eiros passos.

Quando se inicia o seu contato com Henrique Cláudio de Lima Vaz? Conheci padre Vaz em 1964, quando ele voltou para .Vlinas Cierais. Se não me en­gano , foi nesse ano que ele ficou pro ib ido de ensinar na Faculdade Eclesiástica e m udou-se para .Minas G erais, onde foi im ediatam ente co n tra tad o com o professor. Assisti aos cursos que ele deu, já conhecia alguns escritos dele e, com o se sabe, ele teve enorm e influência sobre a m inha geração. É para mim até hoje um m odelo e conservo po r ele a am izade e adm iração que tive desde o início.

Como o senhor avalia hoje a experiência na JEC [Juventude Estudan­til Católica], JUC [Juventude Universitária Católica] e na AP [Ação Popular! ?

Foi m uito im portante, porque essa experiência form ou toda um a geração. Se a gente fosse m edir o sucesso desses m ovim entos pela expectativa de seus m em bros, poder- se-ia dizer que foi um fracasso, m esm o porque esse fracasso foi im posto pela d ita ­dura . M as acho que essa experiência criou um m odo de pensar a política e a cu ltu ­ra no Brasil m uito im portan te para essa geração.

Um elemento que chama muito a atenção na sua biografia é o M aste r’s degree que o senhor obteve nos Estados Unidos, em Nova York, quan-

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G u id o A n tôn io de A lm eida: “ M u ito em b o ra a filosofia seja un iversal, ela é o f ru to de um a h istó ria co n tin g en te , do tra b a lh o de ind iv íduos de um a m esm a geração , ou de gerações p ró x im as, q u e se conhecem e se criticam m u tu am en te . É isso que espero estar o c o rre n d o no B rasil" .

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do o mais comum, na época, era ir para a França. Essa decisão de irpara os Estados Unidos veio como? Quais foram os efeitos?

Foi m ais ou m enos po r acaso. Q ueria conhecer os F.stados U nidos, e com o naquela época o C onsu lado A m ericano em Belo H orizon te oferecia bolsas da C om issão Fulhright, resolvi me candidatar. O btive um a bolsa e escolhi um a universidade ca tó ­lica, a F ordham U niversity, pois lá lecionava um especialista conhecido p o r estu ­d ar H usserl, Q uentin L auer, um am ericano que publicara na F rança, na coleção Épiméthée, um livro cham ado La Phénoménologie de Husserl, e que fez m uito su­cesso na época. Acabei não estudando com Lauer porque seus cursos eram destinados ao d o u to rad o . D isseram -m e: “ Você faz o d o u to rad o aqui e faz os cu rso s” . M as eu n ão queria fazer o d o u to rad o nos Estados U nidos e fiquei apenas um ano lá.

E na volta ao Brasil, a militância política continuava?Q u an d o voltei, em 1962, não houve m uita m ilitância. Eu era mais um sim patizan­te, nunca fui um a liderança e nunca tive um papel im portan te , de destaque. P arti­cipava desses m ovim entos m ais p o r obrigação m oral, pois nunca tive o p razer de fazer política.

Em 1964, eu era p rofessor do Colégio de A plicação e cheguei tam bém a dar cursos com o professor assistente. A AP estava desarticu lada em Belo H orizon te e um am igo m eu, A lexandre Bogliolo — que m orreu poucos anos depois — , deu os prim eiros passos para a rearticu lação da AP. Participei das prim eiras reuniões e, en tão , fui p reso jun to com o u tro s e suspenso da U niversidade. Isso foi já em fins de 1964, com eço de 1965, e eu estava p rep aran d o a m inha ida p ara a A lem anha. Em dezem bro de 1965, casei-m e e me m udei para lá, para F reiburg, onde fui fazer o m eu d o u to rad o em filosofia.

Data já dessa época a sua amizade com Raul Landim?N os conhecem os nessa época. Em 1964, R aul Landim tinha se transferido para Belo H orizon te , recom endado por padre Vaz. T ivem os algum co n ta to , m as não havia a inda um a ainizade. Essa am izade surgiu q u an d o term inei o m eu d o u to rad o em Freiburg e fui trab a lh ar em Louvain.

O senhor poderia falar um pouco a respeito de seu doutorado sobreHusserl, defendido em 1970 e publicado em alemão em 1972?

A m inha tese foi publicada p o r um a ed ito ra ho landesa , na coleção Phaenom enolo- gica. Inicialm ente trabalhei o rien tado po r Eugen Fink, m as, de fato, ele me o rien ­to u m uito pouco. Fui buscar, en tão , um a o rien tação mais eficaz com o professor W erner .Marx, o sucessor da cadeira de H eidegger em Freiburg. M arx não era tão bom conhecedor de H usserl q u an to Fink, interessava-se m uito mais po r H eidegger, H egel e .Aristóteles, m as, pelo m enos, era aberto à discussão. De qualquer m anei­ra , os dois foram os relatores do m eu d o u to rad o .

N aquela época, a fenom enologia sofria o seu declínio na A lem anha, em bora a inda fosse m uito influente em Freiburg. A estrela filosófica que surgia naquele m om ento era a filosofia analítica , que com eçava a am pliar o seu horizonte na .Ale­m anha, p rincipalm ente em H eidelberg — que se transfo rm ava no g rande cen tro

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filosófico daquele país. R etrospectivam ente, lam ento não ter ido para H eidelberg, m as eu tinha um pro je to den tro da fenom enologia que era preciso levar a cabo , e o m elhor lugar para isso era, sem dúvida, Freiburg.

Porque o senbornunca traduziu total ou parcialmente o doutoramento para a publicação no Brasil?

N ão há nenhum a razão específica para isso. Q u an d o voltei para o Brasil, em 1972, era m uito difícil pub licar livros. A tualm ente, há várias ed ito ras que se dedicam à filosofia, tem os a coleção de livros de traba lhos de pesquisa, de d o u to rad o , a cole­ção de padre Vaz, a coleção Philosophia ligada à revista Analytica etc. Além disso, as boas ed ito ras têm sem pre a sua estan te filosófica. M as, em 1972, isso não era assim , era difícil pub licar e, sobretudo , o público era m uito pequeno. Aliás, a g ran ­de novidade da filosofia brasileira foi a fo rm ação de um público filosófico no Bra­sil, o início de um a discussão filosófica en tre os brasileiros.

É possível datar isso?Sim. O acontecim ento decisivo para isso se deu em C am pinas, em 1978, quando o p rofessor [O sw aldo] P orchat com eçou a organ izar colóquios e congressos, sob re­tu d o co lóquios, com pesquisadores de vários lugares do Brasil que vinham ap re ­sen tar seus textos para discussão. A p a rtir dessa época com eçaram a ser fundadas revistas, a Manuscrito e tan tas ou tras, que form aram um a espécie de desaguadouro para a produção . E esses colóquios passaram a ser tam bém um estím ulo para a p ro ­dução de tex tos que circulavam entre nós.

Tentando periodizar a sua produção; a fenomenologia é certamente importante até o início dos anos 1970, momento em que, com a leitura que o senhor fez de Tugendhat, a sua produção tem uma guinada para a filosofia analítica...

Sim, essa guinada foi inspirada justam ente po r T ugendhat. Por volta de 1966, ele publicou um excelente livro sobre o conceito de verdade em H usserl e H eidegger. Estudei m inuciosam ente esse livro, enquanto fazia a m inha tese de dou to rado , e fiquei m uito im pressionado com o conhecim ento que T ugendhat tinha de H usserl. Além disso, fiquei ex trem am ente im pressionado tam bém com a gu inada para a filosofia analítica que ele realizou. N essa época, li alguns artigos críticos à fenom enologia, que vieram a ser, posterio rm ente , in tegrados ao seu grande livro, as Lições intro­dutórias à filosofia analítica da linguagem. Inicialm ente essa leitura me causou um a reação negativa, achei que T ugendhat sim plificava excessivam ente o pensam ento de H usserl, pois ele conhecia esse au to r de m aneira m uito deta lhada, m uito p ro d u ­tiva e, de repente, acabou reduzindo tu d o isso a um esquem a em pobrecedor. R e­solvi, en tão , escrever um a refu tação num longo ensaio sobre a fenom enologia e a filosofia da linguagem publicado num livro que organizei jun to com R aul Landim , Lógica e filosofia da linguagem (o resum o desse ensaio saiu na revista Manuscri­to). M as, à m edida que refletia sobre esse con fron to en tre a concepção fenom e­nológica e a concepção línguo-analítica da filosofia, ia me convencendo de que, no final das contas, a posição línguo-analítica era m ais p rodutiva . M uito em bora co n ­

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tinuasse achando que a visão apresen tada por T ugendhat, nesses escritos críticos, cra realm ente sim plificadora, pois, neles, não havia, com o ele pensava, um a oposi­ção radical en tre a concepção analítica e a concepção fenom enológica da filosofia. Por fim, achei que a filosofia tal com o pensada pelos analíticos cra m ais interes­sante, mais produtiva e mais livre de am bigüidades. Dei, po rtan to , razão a T ugendhat nas suas conclusões, em bora não concordasse to ta lm en te com suas prem issas.

No início da década de / 980, o senhor começa a examinar a teoria habennasiana, e, no final da década de 1980, passa a se concentrar mais na filosofia de Kant. O senhor vê isso como uma nova guinada em sua produção?

N ão diria um a guinada, mas um a certa con tinu idade, um a inflexão. A quela m inha desilusão com a fenom enologia com eçou logo depois dc eu ter te rm inado a m inha dissertação, coincidindo com a m inha volta ao Brasil em 1972. Q uando voltei, senti- me to ta lm en te deslocado, não encontrava pessoas interessadas em fenom enologia, quer dizer, acabei en co n tran d o um a meia dúzia, mas a m aioria dos alunos que tive na PUC do Rio não tinha nenhum interesse em fenom enologia e nos tem as clássi­cos da filosofia. N aquela época, a filosofia estava sendo vista de um ângulo exclu­sivam ente político: as grandes influências eram o m arxism o de m odo geral, t r a ta ­do tan to do pon to de vista althusseriano q u an to do pon to de vista g ram sciano , e Foucault, cuja estrela com eçava a brilhar naquele tem po. Tive en tão um choque m uito g rande , não sabia mais para que servia a filosofia que tinha ap rend ido a fa­zer. Ao m esm o tem po, com ecei a es tudar o segundo W ittgenstein , no qual via ta m ­bém um a crítica destru tiva da filosofia, e ainda flertei, du ran te certo tem po , com a idéia de usar a filosofia, o m étodo de análise filosófico, para o estudo de questões não-filosóficas. Cheguei até a escrever um tex to sobre a noção de valor, um a n o ­ção com algum a tin tu ra m arx ista , ten tan d o estudá-la de um pon to de vista línguo- analítico . M as isso foi um beco sem saída e acabei ab an d o n an d o esse tem a.

Com ecei, en tão , a descobrir um novo cam inho den tro da filosofia analítica e, ao invés de ver na análise lingüística apenas um instrum ento para m ostrar os fal­sos prob lem as filosóficos, com ecei a desconfiar que ela poderia ser um instrum en­to im portan te para um a recolocação dos problem as clássicos da filosofia. Isso co ­incidiu com o meu estudo sobre H aberm as. Já havia lido Conhecimento e interesse e Técnica e ciência como ideologia e, no en tan to , não havia en tendido m uito bem do que se tratava, não sabia com o situar aquilo no horizonte filosófico, mas, a partir do m om ento em que com ecei a com preender m elhor o que era um a abordagem analítica e lingüística da filosofia, passei a ter um a certa sim patia pela v irada lin­güística que H aberm as p ropugnava. Sem pre li os estudos de H aberm as, sobretudo a reflexão sobre a sua teoria consensual da verdade e a teoria discussional da ética com grande interesse, mas com um a reserva crítica m uito g rande tam bém — e es­crevi vários artigos exprim indo o que me parecia problem ático .

Isso tudo serviu para despertar de novo o meu interesse pela filosofia de K ant, que sem pre estudei. A liás, o p róp rio padre Vaz, m uito ind ire tam ente , teve um p a ­pel im portan te nisso, po rque foi através dele que vim a descobrir a ob ra de um fi­lósofo tom ista. M aréchal. Este escreveu um a grande obra que, dentre vários assuntos,

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tra tava da filosofia transcendental. O estudo dessa parte de sua ob ra sobre K ant foi im portan te para a m inha form ação filosófica com o estudan te no Brasil. Percebi t^ue, em K ant, havia um a concepção com pleta dos p roblem as da filosofia que é instigante ate hoje. D epois, na A lem anha, tive a op o rtu n id ad e tam bém de seguir um enorm e curso de Fink, dedicado ao com entário , linha po r linha, da Crítica da razão pura. Q uando cheguei à .Alemanha, em 1966, ele estava com entando os “ Prin­cípios do en tend im en to” . Segui até o início da “D ialética tran scen d en ta l” e o cu r­so ainda prosseguiu — se não me engano, o curso pro longou-se por dezessete se­m estres e era bastan te popular. A pesar de ser um estilo de análise de tex to m uito d iferente do que se faz a tualm ente , era m uito estim ulante. Foi graças a esse curso , e a partir desse reexam e da questão da verdade e da questão dos fundam entos da m oral em H aberm as, que voltei a me in teressar de um a m aneira bem mais forte por K ant. Passei a estudá-lo sistem aticam ente, ten tando in terp re tá-lo de um pon to de vista rigorosam ente analítico , que no início achava até que poderia ser lingüístico- analítico . Está aí o meu interesse e estou convencido de que K ant é um pensador a tua l, mais atual do que m uitos contem porâneos.

Seria possível falar de uma ‘filosofia brasileira”? Como o senhor vê asrelações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Podem os falar de um a filosofia brasileira com o um fato cu ltural existente desde a colôn ia, q u an d o foram im plan tados os cursos de filosofia nos sem inários religio­sos. C on tudo , acho que não tem os ainda um a filosofia brasileira no m esm o sen ti­do em que se pode falar da existência de um a “ filosofia francesa” , de um a “ filoso­fia a lem ã” . N ão existe ainda um a trad ição — que espero já estar se constitu indo— de discussão in terna. C laro que a filosofia é universal e falar de um a filosofia nacional é um a bobagem , pois, da m esm a m aneira que não existe um a m atem ática alem ã, não existe um a filosofia alem ã. N o en tan to , pode-se falar de um a filosofia alem ã, francesa, inglesa, no sentido de que há um espaço in terno de discussão do qual a p rodução filosófica se alim enta. E ntão , m uito em bora a filosofia seja uni­versal, ela é o fru to de um a h istó ria contingente, do trab a lh o de indivíduos de um a m esm a geração , ou de gerações p róxim as, que se conhecem e se criticam m u tu a­m ente. É isso que espero estar ocorrendo no Brasil.

A propósito dessa questão, gostaria de falar um pouco sobre a revista Analytica. Foi feita com o in tu ito de fortalecer um público filosófico no Brasil. É um a revista que, em bora prom ova um co n ta to com o ex terio r, não publica artigos em línguas estrangeiras, pois acham os que devemos tra ta r o acesso à filosofia internacional com o um m ero apêndice. É m uito fácil se ligar ao debate filosófico do m undo de expres­são inglesa em curso, que se estende pelo m undo in teiro , m as, com isso, acaba-se por desaguar em um estuário que está fora de nossa cu ltu ra. Sem dúvida é im p o r­tan te m an ter um c o n ta to com esse debate , m as é igualm ente im portan te ter um espaço para a discussão in terna. Devemos buscar esse acesso à filosofia in ternacio­nal a partir de um a identidade filosófica brasileira e não individualm ente.

No livro em homenagem aos seus sessenta anos, V erdade, conhecim en­to e ação, os editores sublinharam, no prefácio, que “mais de uma ge­

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ração de professores e pesquisadores em nossa área, inclusive os orga­nizadores desta justa homenagem, formou-se num ambiente acadêmi­co cuja instauração foi fruto de um lento e laborioso processo, que deve ser conhecido caso se deseje prosseguir nessa direção. Dessa história, Guido Antônio de Almeida e Raul Landim Filho são personagens de­cisivos, e sua contribuição merece ser devidamente divtdgada e celebra­da”. Como o senhor vê o processo de instalação do estudo acadêmico e da pesquisa em filosofia no Brasil?

Essa histó ria com eça an tes da m inha geração. Tem tam bém um a data precisa, que é o an o de 1939, q u an d o são criados os departam en tos de filosofia em todas as universidades federais (em São Paulo já existiam cursos de filosofia desde 1934 e 1935). Isso foi um acontecim ento im portan te , m as lim itado den tro do cenário n a ­cional, porque a filosofia que se im plantou nesses departam entos ainda era um pouco d ile tan te, os professores tinham um a form ação em grande parte au to d id a ta e eram form ados em meios que não cultivavam a filosofia com o um valor em si m esm o — estou pensando nos sem inários religiosos e nas escolas de d ireito . E ntão a filosofia universitária oficial era pouco profissional, não tinha rigor, era m uito verbosa e não tinha um grande valor intrínseco — em bora tivesse um valor h istórico.

A m inha geração era m uito insatisfeita com isso. Por acaso, encontrou não só um estím ulo, m as tam bém um a força externa que a fez buscar um a form ação filosófica séria fora do país — a d itadu ra . Essa geração , en tão , se engajou po litica­m ente e, de repente, não tinha mais espaço para sobreviver no Brasil. .Muitas pes­soas foram forçadas d ireta ou indire tam ente ao exílio. E ntão , de um lado , havia um a insatisfação m uito g rande com a qualidade do ensino filosófico no Brasil e, de o u tro , países com o a A lem anha e a Bélgica com eçaram um a política de bolsas des­tinadas ao país — d ata dessa época tam bém , em 1965, o esforço da CAPES em in ­centivar o estudo da filosofia e das ciências hum anas, em bora houvesse poucos re­cursos. Por isso, m uitos filósofos brasileiros de projeção atualm ente, com o Balthazar [Barbosa Filho] e Raul Landim , foram estudar fora, no caso em Louvain. P o rtan ­to , tivem os a sorte de encon trar um estím ulo ex terno , facilidades fornecidas pelo ex terio r, e, além disso, tivem os a necessidade im periosa de assegurar um espaço, que era m uitas vezes de sobrevivência física. C om tu d o isso, a m inha geração teve a chance de ir buscar um a boa form ação filosófica na E uropa , o que foi decisivo para a im plan tação de um a filosofia não-d ile tan te e não -au to d id a ta em nosso país.

Como foi a fundação da SFAF (Sociedade de Estudos e Atividades Fi­losóficas)?

A SEAF teve um a origem bem independente e era m uito po litizada. N aquela ép o ­ca, vivíam os em plena d itad u ra e o espaço para a d iscussão filosófica era m uito restrito , havia grandes desconfianças e m uitos filósofos estavam sendo cassados e aposen tados — eu m esm o, quando estava na A lem anha em 1969, fui aposen tado à força po r um decreto baseado no AI-5. A SEAF nasceu com o in tu ito de ab rir um espaço de discussão para a filosofia no Brasil, consciente das lim itações políticas e pensando , sem pre, na im portância do papel da filosofia na vida política do país. A prim eira coisa que a SEAF fez foi o rgan izar conferências públicas de filósofos b a ­

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nidos. C onvidam os IJosé A rthur] G ianno tti para essas conferências, convidam os tam bém D arcy R ibeiro que, em bora não fosse filósofo, era um nom e im portan te na cu ltu ra brasileira. Hra necessário que a SF.AF tivesse um perfil político. M as a SEAF acabou desaparecendo devido a um a d iscussão in te rna en tre aqueles que queriam um a filosofia realm ente po litizada, instrum entalizada para a ação po líti­ca, e aqueles que queriam preservar o espaço para um a filosofia politicam ente isenta. C om o a ala m ais po litizada prevaleceu den tro da SEAF, houve um a cisão e a m aio ­ria das pessoas saiu. Fui um dos últim os a sair devido ã m inha am izade com o p ro ­fessor O lin to Pegoraro, que era o fundador, mas acabei sa indo tam bém .

A fundação da SEAJ-' foi, portanto, radicalmente diferente da funda­ção da ANPOF [Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia]?

A fundação da A N PO F é um a con.seqüência do fracasso da SEAF em congregar todos os filósofos do Brasil, no tadam ente os m ais qualificados. H ouve, inicialm ente, uma ten tativa de tom ada da SEAF po r pessoas que representavam um m odo de pensar a filosofia mais d istanc iado da política. Essa ten tativa fracassou, a SEAF acabou se politizando cada vez mais, e as pessoas insatisfeitas com eçaram a pensar num a outra form a de o rganização da vida e da política filosófica brasileira. N asceu, en tão , a AN PO F, pensada não com o um a sociedade filosófica congregando indivíduos, mas congregando instituições (p rogram as de pós-graduação).

Nesses moldes, como o senhor vê a ANPOF hoje?A A N PO F tam bém teve a sua crise. A conteceu com a A N PO F o inverso do que aconteceu com a SEAF, ou seja, aqueles que tinham um a visão politizada, quase que partidária d en tro da filosofia, tom aram , em certa época, a A N PO F, o que aca­bou gerando conflitos. A A ssociação passou a represen tar apenas um grupo de in­teresses. M as, com a eleição de José H enrique Santos, houve um a espécie de conci­liação in terna e esses conflitos foram perdendo a sua força. A tualm ente, a A N PO F representa de fato, em certo sen tido , a vida filosófica no Brasil: tudo o que há de bom e tu d o o que há de m enos bom na filosofia. Ela é represen tativa da filosofia, cum pre nesse sentido um papel im portan te , m as relativam ente m odesto. O que há de mais im portan te na vida filosófica do país não passa por essas sociedades, está em grupos de pesquisa, nos departam entos em que os profes.sores têm um a certa afin idade não dou trina i no m odo de encarar a filosofia.

Como o senhor avalia as atividades da Sociedade Kant Brasileira, daqual é fundador e ativo participante? Como o senhor vê hoje os estu­dos kantianos no Brasil?

N ão sei se sou um ativo participan te, po rque a Sociedade não e tão ativa assim jri­sos], Foi fundada há m uitos anos, teve com o prim eiro presidente o |Z e ljk o | Loparic, que organizou o prim eiro congresso internacional. Esse prim eiro congresso teve uma certa repercussão na época, m as, logo em seguida, a Sociedade K ant en trou num estado de h ibernação que du ro u um a meia dúzia de anos. Foi rean im ada graças aos esforços de V alério R ohden, que o rganizou um segundo congresso , m enor, m as m uito bom tam bém . S obretudo, ele fundou a revista Studia Kantiana, que já tem

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um núm ero publicado e dois ou três núm eros engatilhados. C om a pubUcação da revista e com a con tinu idade de seus colóquios — realizados a cada dois anos — a Sociedade K ant dá um a boa con tribu ição para a filosofia.

Como o senhor vê hoje os estudos kantianos no Brasil?Com m uito otim ism o. H á um núm ero pequeno , mas crescente, de estudiosos, que têm produzido traba lhos de excelente qualidade. É interessante que K ant tenha sido sempre estudado no Brasil, mesm o naquela época que chamei “diletante” , sem querer ser a rrogan te e d im inuir o m érito de ninguém . D esde o século passado , há um cer­to fascínio da intelligentsia brasileira p o r ele. Isso m esm o q u an d o foi um pon to de referência negativo apenas para os nossos filósofos religiosos, que não engoliam o fato de K an t reduzir a religião praticam ente ã m oralidade. Talvez tenha exercido desde cedo esse fascínio, po r rep resen tar um a visão crítica, m as não red u to ra , den­tro da filosofia.

K ant é um clássico da filosofia, talvez o m aior deles. É im possível ser filósofo sem se referir aos clássicos, pois os prob lem as filosóficos são na verdade sem pre os m esm os. As abordagens são diversas e exprim em um a com preensão mais ou m e­nos clara dos problem as colocados. A filosofia não é, em sen tido p róp rio , um a fo r­m a de conhecim ento , mas de reflexão e aclaran ien to conceituai. Por isso, não se pode falar den tro da filosofia em um progresso do saber no m esm o sentido em que se fala em um progresso do conhecim ento científico, onde se descobrem novas áreas, novos dom ínios de objetos se to rnam acessíveis, novos fenôm enos são observados, o que faz com que as teorias dem onstrem sua parcialidade e possam ser considera­das superadas por teorias m ais com pletas. A filosofia, ao co n trá rio , não tem um obje to p ró p rio , não é conhecim ento de fatos, m as um esforço de clarificação de conceitos dados, que supom os fundam entais para os aspectos mais im portan tes de nossa existência, com o o conhecim ento , a ação e a avaliação m oral e estética. Os problem as de que se ocupa a filosofia resultam não da ignorância dos fatos, mas da falta de clareza acerca desses conceitos. Por isso m esm o, a elucidação desses conceitos se faz sem pre por oposição a um a o u tra m aneira de com preender, que supom os a inda obscura ou m enos clara do que o desejável. Com isso, quero dizer que a abordagem dos problem as filosóficos só se pode fazer de um a m aneira dialógica ou polêm ica, p o rtan to de tal m odo que o con fron to das teorias e dos sistem as é inevitável. N ão se pode negar tam bém que algum as inteligências excepcionais tive­ram um a visão m uito mais rica do que a m aioria em relação a todos esses p rob le­m as, po r isso m esm o se to rn aram “clássicos” , pon tos de vista inevitáveis no co n ­fron to das teorias, essenciais para o prosseguim ento e, se quiserem , o “ p rog resso” da pesquisa. Em sum a, o que cu quero dizer é que o conhecim ento dos clássicos é essencial para a reflexão filosófica, e é an im ador que o estudo de alguns deles — antigos, m odernos e con tem porâneos, não apenas K ant — se to rne en tre nós cada vez mais sério e ap ro fundado .

O senhor é editor da revista A nalytica. Como o senhor avalia os qua­tro anos de existência dessa publicação e que lugar ela ocupa, na suaopinião, no cenário filosófico brasileiro?

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É difícil fazer um juízo isento, m as espero que a revista Analytica tenha um papel im portante no cenário atual. A sua am bição é a de fazer um traba lho rigoroso. Nesse sentido , ela se propõe a publicar artigos de pesquisa de boa qualidade e serve não só com o um desaguadouro da p rodução filosófica no Brasil, com o tam bém estabe­lece um p ad rão de qualidade para essa p rodução . É im portan te te r esse p ad rão , porque isso estim ula as pessoas.

É conhecido o seu constante diálogo com Balthazar Barbosa Filho. Como o senhor avalia a atuação de Balthazar no ensino e na produ­ção de filosofia no Brasil?

Decisiva. B althazar é um m odelo para todos nós. É um a pessoa que se im pôs den­tro de sua geração e isso é difícil ocorrer, pois, em geral, a gente p rocura os m ode­los nas gerações anteriores. T enho um a enorm e adm iração por B althazar, ele pos­sui um a inteligência fora do com um . O Raul Landim tam bém . São dois nom es extrem am ente im portantes para a filosofia atual no Brasil, pois criaram um padrão.

A sua trajetória intelectual e acadêmica, como é bem sabido, foi sem­pre bastante entrelaçada com a de Raul Landim Filho, a ponto de ter sido lançado, no ano passado, um livro em homenagem conjunta aos sessenta anos de ambos. Como o senhor avalia a atuação e a produção teórica deste seu companheiro intelectual?

É um a inteligência fora do com um , penetran te , e gosta de um a discussão. É capaz de perseguir um tema filosófico em todos os seus m eandros, em todos os seus detalhes, po rque está sem pre d isposto a não aceitar nada com o evidente, com o claro em si mesmo. Essa exigência de argum entos, de justificação na filosofia, ele soube transm i­tir m uito bem aos seus alunos. Eis aí ou tro m érito de Raul Landim (aliás tam bém de B althazar Barbosa): o de ter fo rm ado um a nova geração de excelentes filósofos.

Como o senhor avalia os escritos de Oswaldo Porchat Pereira?São m uito interessantes porque são desafiantes. C onsidero a defesa que ele faz do ceticism o com o um aguilhão da consciência filosófica, na m edida em que co n fron ­ta o filósofo com a necessidade de se justificar. E ntendo a filosofia não apenas com o um a ten tativa de aclaram ento conceituai, de um a m aneira dada de conhecer e ava­liar as coisas, mas tam bém a en tendo com o um a ten tativa de justificação dos es­quem as conceituais que essa análise põe à luz. Por isso me considero k an tian o , porque em K ant há essa mesma divisão de tarefas da filosofia: de um lado, a expo ­sição de conceitos dados, im portan tes para a com preensão do conhecer, do agir m oral e do avaliar estético, e, de ou tro lado, a necessidade de um a dedução , feita pela crítica, para dar um a justificação a esse sistema conceituai. Isso é, no meu m odo de ver, a essência da filosofia: to rn ar c laro conceitualm ente o que é pressuposto pelo conhecim ento, pela ação, pela avaliação estética e ten tar justificar ou im pugnar esse esquem a conceituai. Por isso dou tan ta im portância ao ceticism o, ele é justam ente a tentativa de m ostrar que esses esquem as conceituais não são necessários. Por isso m esm o tam bém dou tan ta im portância ao traba lho de O sw aldo P orchat, que é o de nos explicar o ceticism o.

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Como o senhor avalia, em seu conjunto, a obra filosófica de padre Vaz?A obra cie padre Vaz me im pressiona, antes de mais nada , p o r sua cu ltu ra filosófi­ca, que é quase universal. Im pressiona-m e tam bém , apesar de grande parte de seus escritos terem um cará te r genérico, a descrição que ele faz dos grandes problem as da filosofia, sem perder um a visão fina e deta lhada deles. Conhece a fundo os p ro ­blem as filosóficos, m uito em bora a g rande parte de seus trab a lh o s sejam visões sinópticas da filosofia. E essa enorm e cu ltu ra filosófica não é superficial, dem ons­tra um conhecim ento p ro fundo das questões clássicas da filosofia. Acho seus livros adm iráveis p o r sua penetração , sem falar na enorm e erudição.

Qual é, na sua opinião, a especificidade do cenário filosófico carioca, em comparação com outros centros brasileiros?

Em bora o Rio de Janeiro tenha um a imagem de cidade balneária, pelo m enos em filo­sofia, trabalha-se m uito por aqui. H á centros de pesquisa no IFCS, na PUC-Rio, na UERJ. Enfim , a filosofia é m uito viva e m uito produtiva no Rio, é um a presença im­portan te no cenário nacional. O Rio é um dos grandes centros de filosofia no Brasil.

Além do Rio de Janeiro, quais são os grandes centros de filosofia no Brasil?

Porto Alegre, São Paulo, C am pinas e Belo H orizon te , que tem um jovem d ep a rta ­m ento bastan te a tuan te . São esses os g randes centros. N ão é bom esquecer tam bém os cen tros m enores que estão surg indo , que são m uito prom issores: F lorianópolis, C uritiba , o in terior do P araná , P araíba e N ata l. A filosofia está se d issem inando pelo Brasil. C laro que há um a certa d isparidade ta n to nos grandes cen tros qu an to nos m enores, isso é inevitável, cm to d o o m undo é assim . N o en tan to , o fato de se pertencer a um grande cen tro , p o r exem plo, não garan te um atestado de bom filó­sofo a ninguém . A inda tem os m uitos resquícios de um a filosofia d iletante. De m odo geral, en tre tan to , a filosofia dos grandes centros tem um a razoável qualidade, p ró ­xim a da m édia in ternacional. Vejo com m uita satisfação que a filosofia está se d is­sem inando pelo in te rio r do Brasil afora.

Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que o senhor nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

Basicam ente são conceitos m etodológicos e a idéia de que a filosofia deve ser en ten ­d ida com o análise conceituai. T oda a g rande filosofia pode ser vista desse pon to de vista, do esforço de análise conceituai. C laro que nem todos os filósofos desen­volveram o seu conceito de filosofia nesses term os, mas se se pensar a filosofia com o análise conceituai, to rna-se possível re tom ar todas as ou tras concepções filosóficas e todos os ou tro s problem as tra tad o s pela trad ição filosófica. O essencial é essa vi­são m etodológica da filosofia com o análise conceituai. Isso é necessário porque o filósofo p roduz conceitos que são distin tivos de seu pensam ento . Os conceitos que ele produz, com o o conceito de ser enquan to ser, o conceito de objeto, ou o conceito de transcendental, são resu ltado do aclaram ento de conceitos dados. N esse sentido.

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o conceito na filosofia tem um esta tu to m uito d iferente do conceito nas ciências, pois esta p roduz conceitos através do conhecim ento de objetos e os reorganiza a p a rtir desse conhecim ento . O filósofo não faz isso, ele tom a algo que é dado , de um a m aneira prévia — pré-filosófica ou não — , e p rocura to rná-los — os concei­tos da verdade, da m oral e do belo por exem plo — mais claros, p rocu rando saber se são im prescindíveis ou não. Vejo a filosofia não com o um sistem a produzido , a p a rtir de definições ou escolhas prévias, m as com o trib u tá ria do pré-filosófico. É a isso que cham o, talvez de um a m aneira ainda m uito fenom enológica, de um a pré- com preensão da vida nas suas dim ensões mais im portan tes: cognitiva e avaliativa.

Parece possível apontar duas noções como centrais em sua produção teórica; a noção de verdade e a noção de ação. O senhor poderia nos falar um pouco sobre tais noções, pensando na evolução de seu pen­samento?

Essas noções são conceitos tem áticos da g rande filosofia, não são conceitos o p era ­tó rios — para utilizar um a distinção feita por Fink. O cerne da m inha p reocupa­ção filosófica é epistem ológico, m esm o q u an d o tra to de questões de fundam en ta­ção em m oral e, mais recentem ente, em estética — e faço isso sem pre de um pon to de vista m etodológico . O meu interesse é saber o que garan te a pretensão de vali­dade para conceitos ou classes de juízos para os quais esses conceitos de verdade e de ação são aplicáveis.

O senhor também é conhecido e respeitado como tradutor de textos de filosofia, clássicos e contemporâneos. Como o senhor vê essa sua ativi­dade de tradutor?

C om o um a ativ idade secundária . N o en tan to , é im portan te que haja boas tra d u ­ções, sob retudo dos clássicos. É necessário que a filosofia fale português, e haven­do boas traduções para a nossa língua, haverá tam bém um a boa discussão dessas traduções. Então , m esm o sendo um a ativ idade secundária e m odesta , a atividade de trad u to r é m uito im portan te , p rincipalm ente para o esforço de se p roduzir um a filosofia brasileira.

Um dos livros que o senhor traduziu parece destoar das suas preocu­pações, a D ialética do esclarecim ento de A dom o e Horkheimer. O que o levou a traduzir esse livro?

D uran te um a certa época da m inha vida, tive algum interesse pelo m arx ism o visto pela ótica da Escola de Frankfurt, pela ótica de H aberm as. Essa tradução da Dialética do esclarecimento foi-me encom endada e aceitei fazer porque queria conhecer m elhor essa visão. N unca tive um a sim patia por esse pon to de vista filosófico, queria ap e­nas entender o que levou H aberm as a se separar desses au to res e, no fim das co n ­tas, acabei me convencendo do bem -fundado de sua posição.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

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A filosofia não tem um a relação privilegiada com a ciência. Relaciona-se do m es­m o m odo com a ciência, assim com o com ou tras áreas do conhecim ento e da cu l­tu ra hum ana. Isso se deve precisam ente ao fato de que a filosofia não é o conheci­m ento de um dom ínio de objetos particu lares, mas é um a ten tativa de to rn a r mais claro um horizonte de com preensão dos diversos dom ínios da nossa vida. É por isso que a filosofia é sem pre filosofia de algum a coisa: é filosofia da ciência, da m oral, do conhecim ento pré-científico ou da religião. E ntão , devido a essa sua natureza, não possui um a relação privilegiada com a ciência. M as é sem pre m uito difícil tra ­çar um lim ite claro en tre a filosofia e o conhecim ento científico, por isso, a filoso­fia sem pre foi um pon to de partida para a ciência. O que é co locado inicialm ente com o uma questão filosófica acaba se transform ando num a questão de conhecim ento de objetos. Essa origem da ciência a partir da filosofia é algo que se observa ao longo da história: a m atem ática, po r exem plo, surgiu en tre filósofos p itagóricos que se interessavam po r questões filosóficas. Nesse sentido, a filosofia é, de um a certa m a­neira, um a nebulosa que vai lançando corpos fora de si que se constituem a u to n o ­m am ente. Vê-se isso até na nossa época: a lógica m atem ática, tão im portan te para a com putação , é o últim o rebento da filosofia que se to rn o u au tônom o . E talvez não seja o ú ltim o, se se pensar na lingüística pragm ática, a últim a invenção dos fi­lósofos que teve sucesso fora da filosofia e chegou a constitu ir uma nova ciência.

Desde Hegel, no século XDL, trava-se um debate sobre o ftm da arte, sobre um possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate f

N ão tenho nenhum a posição a respeito desse debate , pois não tenho conhecim ento de causa. Posso ter opiniões privadas, m as essas não valem. E n tre tan to , no que diz respeito estritam ente ao fenôm eno estético, posso dizer que a idéia de seu desapa­recim ento é equivocada — sobre isso, tenho uma posição refletida. É um equívoco falar em um estreitam ento do horizonte da experiência estética, porque isso faz parte de um dom ínio da vida. O fim do horizonte de com preensão estético significaria a exclusão de toda um a parte da nossa vida, a da experiência e do discurso sobre o que consideram os belo ou feio. N ão há, p o rtan to , o m enor sentido em tal a firm a­ção e isso pode ser dem onstrado, acredito, num espírito kantiano. M as a arte é m uito m aior do que o fenôm eno estético, e, sobre esse assun to , não tenho o que dizer.

O senhor vem se empenhando num trabalho de reconstrução do siste­ma das três “Críticas” de Kant, já tendo examinado elementos impor­tantes da C rítica da razão pu ra e da C rítica da razão prática. Como o senhor pretende aproximar-se da C rítica do juízo.?

Parte desse m eu p ro je to é fazer um a re in terp re tação da “ D edução dos juízos de g o sto ” e da explicação cognitivista que K ant dá à percepção do belo. K ant me fas­cina justam ente por sua visão to ta l dos problem as filosóficos. \^ê a filosofia com o um a reflexão sobre os interesses da razão nos diversos dom ínios da vida hum ana: no conhecim ento , na ação (tan to em busca da felicidade, q u an to na ação por d e ­ver) e na avaliação, no sentim ento de prazer. Talvez esse seja um bom pon to de partida para se poder repensar os conceitos que são fundam entais para a m aneira

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com o nos relacionam os conosco, com a nossa existência. O que significa prazer e, sobretudo , prazer estético? De certa m aneira, o conceito fundam ental para K ant é o da consciência de si, que exerce sem pre o papel de um princíp io fundam entador. N o en tan to , esse conceito represen ta tam bém um m odo de pensar em filosofia que pode parecer an tiq u ad o e que não corresponde m ais à m aneira de se co locar os problem as filosóficos. C on tudo , esse conceito pode ser re traduz ido num a lingua­gem mais contem porânea. Pode-se sempre recolocar os problem as da filosofia a partir da m aneira com o nos com preendem os em nossa vida, e, en tão , tem cab im ento per­g un tar: com o é que nós com preendem os a nossa existência a partir dessa d im en­são da afetividade ou do prazer? Por isso é possível buscar em K ant um a insp ira­ção , um p o n to de partida para um a nova reform ulação dos conceitos dados, a tra ­vés dos quais podem os nos referir ao prazer.

£ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

Sim, há um a relação, m as isso não é tão novo, já faz parte da visão kan tiana . K ant vê a política de um p on to de vista cosm opolita: o estado de d ireito está ligado a um a visão cosm opolita que lhe é essencial. Se se vê o E stado não do pon to de vista da h istória factual, que levou ao seu surgim ento, m as do pon to de vista dos concei­tos com que os hom ens pensam as condições de um a convivência regulada en tre si, vê-se que a idéia de um E stado, quer dizer, de um a legítim a regulam entação ju ríd i­ca, das relações de propriedade e de trab a lh o en tre as pessoas, está sem pre ligada a um a idéia m oral. O Estado não é apenas um a criação histórica com condicionantes em píricos, é tam bém o resu ltado dessa exigência de legitim idade, que é um a parte constitu tiva da m aneira com o nós nos com preendem os e da m aneira com o com ­preendem os os ou tros (a m aneira com o com preendem os a nossa identidade pessoal e a nossa iden tidade coletiva). Sem essa idéia de relações legítim as, nós não tem os um a iden tidade coletiva e, dessa m aneira, não tem os um a iden tidade pessoal. É essencial ter clareza sobre isso: a idéia de um a ordem política é, antes de mais nada, um a idéia eficaz, independentem ente das suas condições de realização.

Aliás, não descreveria isso com o um a u top ia , pois a palavra u top ia designa um a ficção para m ascarar relações existentes e não designa nada de real ou de rea­lizável. Pelo con trá rio , essas idéias ou exigências, que estão na base de um a convi­vência política, são eficazes, e eficazes precisam ente en q u an to idéias. Sem dúvida nenhum a, possuem um esta tu to puram ente regulativo, m as são reais e eficazes, não são utópicas. A nossa vida não pode se realizar sem elas.

Em seu artigo “Algumas considerações sobre a concepção moral cristã e a modernidade filosófica", o senhor afirma; “Não há, se nos situar­

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mos no plano argumentativo da filosofia modema, nenhuma genuína alternativa para a doutrina do Imperativo Categórico enquanto prin­cípio exprimindo uma condição de racionalidade no agir, a saber, en­quanto princípio de universalização ou imparcialidade”. Por que o se­nhor descarta Hegel como alternativa modema ao modelo kantiano da racionalidade da ação?

Hegel ten tou , a partir de um a posição p ré-kan tiana , um a espécie de restau ração fi­losófica da m oral e da filosofia política. T en tou um a reab ilitação dos “d ire ito s” do particu lar em face do universal, d ifam ado com o ab s tra to e puram ente form al. O que me afasta de Hegel é justam ente essa ten ta tiva de reab ilitação do particu la r, e, nesse sentido, não vejo nenhum a alternativa para o im perativo categórico. O que é o im perativo categórico? N ada mais do que a exigência de se levar em conta em nossas ações não apenas os nossos interesses, m as os interesses de todos os dem ais concernidos. O que seria en tão um a alternativa para isso? Precisam ente a negação de que é necessário levar em con ta em nossas ações os interesses de todos os de­mais concernidos. A recusa do im perativo categórico é um a defesa dos pretensos direitos do particu lar na h istó ria da filosofia, e isso é politicam ente reacionário , é, em term os políticos, um a defesa antidem ocrática. M esm o a defesa das m inorias e das diferenças passam tam bém pelo universal, po rque é necessário respeitar cada indivíduo com o particu lar e tam bém com o diferente de todos os ou tros. Pela pers­pectiva do particu lar, não há a lternativa para o im perativo categórico com o p rin ­cípio de m áxim as m orais e de um a legislação jurídica. A não ser a a lternativa de um a regressão, ou seja, as form as de vida passam a não ter m ais a ver com a m o­ral, na m edida em que é a reivindicação do direito de o indivíduo fazer o que quer sem levar em conta os dem ais; ou a reivindicação de form as políticas au to ritá rias baseadas em o ligarquias ou defesas de interesses de grupos. Isso não quer dizer, no en tan to , que a form ulação filosófica que K ant deu em todos os seus detalhes para o im perativo categórico seja a últim a palav ra, m as não vejo alternativa para a sua idéia básica que não signifique um a regressão ta n to do pon to de vista individual qu an to político.

Nesse sentido, como o senhor avalia hoje a questão dos direitos huma­nos? Não há o risco de esses direitos estarem se congelando numa es­pécie de universal fixo e, em certo sentido, arbitrário?

N ão . H averia esse risco se tivéssem os que pensar o catá logo dos direitos hum anos com o derivado de um princípio de universalização das regras ou das m áxim as do agir. Se pensássem os o princíp io com o qual avaliam os as regras m orais e jurídicas com o um princípio de derivação lógica, haveria esse perigo de congelam ento , pois dados tais e tais princípios, pode-se estabelecer quais são as suas conseqüências. Esse princíp io não funciona com o prem issa de um a derivação lógica, m as com o critério de avaliação, e, para usar um a expressão de H aberm as, esse princípio tem um v a­lor p rocedim ental, é apenas um m étodo de avaliação e não um axiom a do qual se derivam teorem as. A relação en tre os d ireitos hum anos e o princípio do qual são derivados não é um a relação igual á que existe en tre , por um lado, ax iom as e defi­nições, e, por ou tro , teorem as dem onstrados a p a rtir dos prim eiros. É apenas uma

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regra de com o devem os proceder sem pre que são colocadas questões voltadas para os interesses de todos. Este princípio diz apenas; “ Pergunte para si m esm o se, ao fazer tal e tal coisa, você estará respeitando ou não o interesse dos dem ais” . O in­teressante é que n ão há um a resposta a priori, po rque há o espaço reflexivo para a faculdade de julgar. Então vejo os d ireitos hum anos não com o derivados de um ax iom a, m as com o estabelecidos num processo de reflexão a p a rtir de um a norm a procedim ental.

Qual seria hoje a implicação moral da idéia de felicidade?Talvez seja o con trário : é a idéia de m oralidade que im plica a de felicidade. Vejo a m oralidade com o um a condição restritiva da felicidade, entendendo felicidade num sentido bem delim itado. H á, en tre tan to , várias definições e pode-se, po r exem plo, fazer da m oralidade um elem ento do conceito de felicidade. Nessa concepção, a priori já se tem p o r estabelecido que não se pode ser feliz se não se agir m oralm ente no que diz respeito às dem ais pessoas, ou seja, só se pode ser feliz se as ou tras pessoas tam bém o forem . Esse é um conceito de felicidade pouco p rodu tivo , porque resol­ve, por definição, todos os problem as. Prefiro pensar a felicidade com o um a espé­cie de som a de todos os desejos de um indivíduo. V endo a felicidade dessa m anei­ra , só posso ver a relação da felicidade com a m oralidade com o restrição , porque nem tudo que querem os e desejam os é com patível com o que os ou tro s tam bém desejam . Se o indivíduo se com preende de tal m aneira que não possa ser ele m es­m o, não possa querer ser ele m esm o, se não respeita o que os ou tro s querem para si, en tão sua idéia de felicidade sem pre será restringida por um a condição m oral. Ser feliz, segundo essa definição, é fazer ou conseguir tudo o que se deseja, m as nem todos os nossos desejos são com patíveis entre si. Em term os kan tianos, a idéia de felicidade pertence ao âm bito da im aginação, não é um a idéia da razão, pois é co n ­trad itó ria em si m esm a. O todo do que desejam os não form a um todo , não é h o ­m ogêneo, há contradições e tensões internas a ele e, com m uito mais razões, há ainda contradições e tensões entre o que desejam os e o que os ou tros desejam para si. Uma harm onização do que desejam os e o que desejam os ou tro s só é possível ao preço de certas condições restritivas. Vejo a m oralidade assim: com o um a restrição ine­vitável do desejo de felicidade, porque ela tem por condição nossa própria autocom - preensào, mas tam bém um a restrição desejável!

A felicidade tem de ser bem com preendida, ou seja, se o sujeito é racional e sensato em suas ações, vê que a m elhor maneira para realizar o m áxim o possível de seus desejos é através daquela harm onização de todos os desejos. Aliás, isso é tam bém um pen­sam ento kan tiano: a idéia de um reino dos fins é precisam ente a idéia de um conví­vio hum ano em que todas as pessoas respeitariam as dem ais e, por isso, assegurariam a realização do m áxim o possível de felicidade para cada um a delas. E ntão é do nosso interesse sermos m orais, restringirm os os nossos desejos, m uito em bora não seja disso que a exigência de m oralidade tira a sua força obrigatória .

Hoje, uma concepção eudemônica da moralidade é necessariamentereacionária?

C ertam ente é. D epois de K ant é impossível pensar a felicidade com o pon to de par-

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tida para a explicação da m oralidade, m as isso não im pede que o conceito de feli­cidade venha in tegrar o conceito de Bem. Isso é precisam ente o que a trad ição ch a­m ou de “ Sumo Bem ” , ou seja, a felicidade sob as condições da m oralidade. N ão há necessariam ente um an tagon ism o en tre o desejo de ser feliz e a exigência da m o ­ralidade. Q ualquer que seja o pon to de partida pelo qual o sujeito racional pensa as duas coisas, chegará sem pre ã mesma conclusão. Se vê do pon to de vista m oral, verá que a felicidade tem de ser pensada a p a rtir da exigência da m oralidade, e, se vê do pon to de vista do seu interesse em ser feliz, verá tam bém que a m oralidade é a condição da felicidade. Essa questão é um dos tem as clássicos da filosofia.

Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?Se se entende por fé um a atitude cognitiva, se fé significa crença e esta, po r sua vez, im plica razões, a fé, com o toda ciência, necessita de razões. P arto do seguinte; se se exam ina o conceito d ado de crença, a m aneira com o pré-filosoficam ente se utiliza o verbo crer, arriscaria dizer que crer supõe ter razões para crer, m esm o que essas não sejam suficientes para se a firm ar algum a coisa, para se dizer que se sabe. N e­nhum a crença é a rb itrá ria , não se crê em algo que seja logicam ente impossível; então a crença está relacionada, de m odo tênue, a razões. A gora, se se entende fé com o crença, crença na existência de Deus e num a vida fu tura , a trad ição crítica da filo­sofia dem onstrou que não há razão para se crer em Deus ou para não se crer em Deus. N ão é impossível que D eus exista , m as as razões para essa suposição são tão fracas q u an to as razões para a suposição con trá ria . O ra , desse pon to de vista, em que fé é um a atitude cognitiva, posso dizer que não tenho fé, m as que tenho espe­rança. A cho insuportável que o mal exista no m undo e adm itir que não tenha re­m édio. É insuportável pensar que tan ta gente ao longo da h istória foi hum ilhada e que isso seja definitivo. Então tenho a esperança que, de algum a m aneira, por as­sim dizer, as coisas acab arão dando certo no final, e isso não é apenas um a atitude afetiva, m as um a atitude prática, na m edida em que, de certa m aneira, vivo e p ro ­curo agir com base nessa esperança.

Quando o senhor deixou de ter fé?Por volta dos m eus 19 anos, q u an d o saí da JU C. Fui colega dc classe de Betinho [Herbert de Souza] no colégio estadual e entrei na JEC por suas mãos. Ele era a pessoa m ais velha da m inha tu rm a po rque, devido a um a doença, tinha ficado uns q u a tro anos sem estudar, e qu an d o vo ltou , além de ser m uito m aduro , era tam bém um a pessoa ex trem am ente inteligente e bem in fo rm ada para a sua idade. Exercia uma grande influência sobre todos, e, a través dele, tive um a fase mística en tre os dezes­sete e dezoito anos. N essa época, voltei a me interessar pela religião cató lica, entrei p ara a JEC e continuei na JU C . Foi um a experiência que du rou três anos.

Q u an d o entrei na AP, já não era m ais cató lico , no sentido de n ão ter mais a certeza na existência de Deus, na div indade de C risto , que tive ingenuam ente até os dezesseis anos e, depois, mais refletidam ente, dos meus 17 aos 19 anos. M as isso con tinua a fazer parte da m inha vida com sinais diferentes: o que vivia com o cren ­ça, passei a viver com o esperança.

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o seu artigo “Algumas considerações sobre a concepção moral cristã e a modernidade filosófica” termina com a seguinte afirmação: “Pare- ce-me que a possibilidade de uma reconstrução filosófica da concep­ção moral cristã está ligada ao modelo kantiano de fundamentação, por mais insuficientes que as tentativas de aplicar esse modelo na elabora­ção de uma teoria resistente a toda crítica tenham sido até o presente”...

Essa frase tem de ser con tex tua lizada . Escrevi esse artigo no con tex to de um a ho ­m enagem a padre Vaz, queria en co n trar um pon to em com um entre a m inha m a­neira de pensar esse tem a filosófico e um a m aneira mais próxim a de seu pensam ento. Tentei m ostrar isso: K ant, apesar de tudo , é um a possibilidade para se repensar o cristianism o. Uma tese, é verdade, que não é m uito sim pática a padre Vaz. M as isso não foi feito com o in tu ito de ironizar, pois tenho um respeito e um a adm iração m uito grande por ele.

Em relação a esse texto, há como salvar uma concepção moral cristã sem uma fortna de vida cristã que a sustente e que seja universalizávelf Pode haver uma concepção moral cristã entre outras concepções de moral?

Sim. Para se afirm ar o co n trá rio , seria preciso m ostrar que a concepção m oral cris­tã é logicam ente im possível, co n trad itó ria em si m esm a. C om o não é, en tão é pos­sível. Acho possível o cristianism o com o um a adesão pessoal por razões p u ram en­te subjetivas. Para o cristão , a fé é um a graça de Deus que não é m erecida. Se a l­guém tem essa crença, essa pessoa sem pre poderá dizer que a tem graças a Deus, pois é um dom g ra tu ito de D eus e é po r isso que não são necessárias razões, provas ou argum entos p ara isso. E isso é um a disposição da m ente e da alm a que se incli­na para essa m aneira cristã de ver a m oral.

Como uma moral que tem conceitos pode ser puramente procedimental?Q ual é o conceito básico do cristianism o.' O conceito de am or ao p róx im o com o a si mesmo. Essa é a perspectiva do universal. E por que o cristianism o se to rn o u o sucesso que veio a ser? Porque representou essa perspectiva para o m undo antigo , onde os particu larism os se d igladiavam por um a perspectiva do universal. Por isso o cristianism o pôde in tegrar elem entos do p la ton ism o e do estoicism o à filosofia. Q uando se entra nessa visão cristã do m undo, assum e-se um a perspectiva do uni­versal, e a perspectiva de D eus, a perspectiva do m onoteísm o, foi a prim eira figura do universal h istoricam ente eficaz. Por isso não vejo o cristian ism o destinado a desaparecer, ao con trá rio de m uitos que acham que ele será substitu ído po r um a visão científica do m undo. A ciência não tem nada a ver com a religião, não tem o que dizer dessa esfera da vida hum ana, pois, nessa esfera, sem pre haverá um espa­ço para a religião em term os de um a adesão subjetiva. É bem verdade que não m ais com o no m undo an tigo , em que ela inform ava to d o o horizonte intelectual de um a sociedade. Isso realm ente não tem volta.

Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metaftsica” calcada na linguagem?

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A tualm ente, dou m enos im portância a esse parad igm a lingüístico, em bora co n ti­nue vendo a filosofia com o análise conceituai — e, em relação a isso, não há mais volta. T enho m uitas dúvidas em relação ao pensam ento pós-m etafísico. Se se tom a, por exem plo, o problem a do liv re-arbítrio , ou da espiritualidade da vida hum ana, a defesa de um pon to de vista pós-m etafísico está sem pre ligada à suposição de que é necessário ter um a visão desses problem as com patível com a visão da ciência, que possa ser in tegrada à ciência. Só que isso tam bém é m etafísico, pois ver a ciência com o a única possibilidade do conhecim ento é a firm ar um a tese m etafísica. N ão tenho nenhum a sim patia po r isso e não vejo nenhum a razão p ara supo r que esteja­m os en tran d o num a idade pós-m etafísica.

Como o senhor vê, hoje, a filosofia analítica?A filosofia analítica é um im pério em expansão que, ao m esm o tem po, está fican­do m ultiform e e m ulticolor. O últim o g rande acontecim ento ligado a ela foi a des­coberta dos problem as clássicos da filosofia. O s filósofos analíticos prim eiro des­cob riram A ristóteles, depois descobriram K ant, D escartes, Leibniz e, com isso, a filosofia analítica garan tiu a sua sobrevivência, in co rpo rando os tem as clássicos da filosofia, da m etafísica e da filosofia m oral a seu registro. É preciso ressaltar que, hoje, a filosofia analítica é apenas um m étodo de ac laram ento conceituai e de a r ­gum entação , que se esforça para to rn a r os conceitos claros e se esforça para dar razões ao que se afirm a. É claro que existe tam bém um a filosofia analítica dura , ligada ao em pirism o, a um a concepção positivista da ciência, mas isso é um m o­m ento transitó rio da história da filosofia. C on tudo , a filosofia analítica pensada por aquele m étodo de ac laram ento conceituai e de a rgum entação se expandiu . Pode-se ab rir a Kant-Studien, p o r exem plo, e co n s ta ta r que a m aioria de seus artigos são escritos num espírito analítico; se se ab rir os livros, as coletâneas publicadas co n ti­nuam ente sobre A ristóteles — sobre a filosofia m oral, a m etafísica etc. — , co n sta ­ta-se tam bém que tu d o é concebido em um espírito analítico . E isso não significa um a redução em pirista .

Esse é também o sentido do título da revista A nalytica?A palavra “analítica” não é propriedade privada da filosofia que reivindica esse nome no século X X , nesse sentido m uito am plo que dei há pouco. Esse títu lo tem um a história que rem onta aos Analíticos de A ristóteles. Passa por K ant, onde designa o p róp rio núcleo da filosofia transcendental. E, em nossos tem pos, até m esm o H ei­degger a utilizou para ca racteriza r a filosofia com o um a “ analítica ex istencia l” . C om o se vê, o term o encontra acolhida nos m ais diversos sistem as filosóficos, e isso é m uito com preensível, po rque designa esse núcleo com um a toda filosofia, que é a análise de conceitos, e foi nesse sentido am plo que a palavra foi escolhida para dar títu lo à revista.

Como o senhor vê o pragmatismo americano?N ão tenho interesse pela visão p ragm atista , que é um reducionism o. A idéia geral dos diferentes p ragm atism os consiste em derivar da esfera da ação os conceitos básicos do conhecim ento e da avaliação. V am os supor que há, p ara cada aspecto

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da existência hum ana, um sistema categorial, mesmo que historicamente maleável. Qual seria a tese pragmatista a esse respeito? Todos esses sistemas categoriais são projeções, em última análise, das estruturas da prática, sobretudo as do fazer. Se nós pensamos o m undo como constituído de objetos, em que algo permanece ou varia ao longo do tempo, por que nós pensamos assim? Porque a nossa ação nos leva a pensar assim. Por isso o pragmatismo é sempre a tentativa de reduzir os con­ceitos básicos do conhecimento, da forma moral e da forma estética, aos conceitos do fazer. N ão tenho nenhuma simpatia por isso. De qualquer maneira, em filoso­fia, deve-se explorar todas as possibilidades do pensar, e o pragmatismo é uma dessas possibilidades. É bom que os filósofos experimentem tentativas de explicação ba­seadas nessa hipótese, mas essa é uma hipótese pouco provável jrisos].

Em 1988, o senhor teve a oportunidade de debater com Jürgen Habermas no Instituto Goethe de São Paulo. Qual foi o saldo desse debate?

Foi muito pequeno. Acho que Haberm as, de certa maneira, me deu razão naquela ocasião. Ele tem uma certa concepção de filosofia que me parece contraditória: por um lado, a filosofia é uma forma de conhecimento a priori, puram ente conceituai, em que é possível fazer demonstrações e provas; por outro lado, a filosofia é ape­nas uma extensão do conhecimento científico, uma visão integradora dos resulta­dos científicos, uma tradução dos resultados esotéricos da ciência para a linguagem do mundo da vida. Entâo, de um lado, a filosofia é apenas um prolongam ento da ciência, as teorias filosóficas (por exemplo, sua teoria da fundamentação moral) são empiricamente falsificáveis; dc outro lado, essas mesmas teorias são sistemas cons­tituídos conceitualmente. Assinalei então uma dificuldade para isso: se a teoria de Haberm as deve ter algum sucesso, não pode ser apresentada como empiricamente falsificável, mas como verdadeira por razões lógicas e semânticas. Ele disse: “Essa posição é possível, aliás c assim que Apel pensa tam bém ” . N ão tenho simpatia por Apel, mas fiquei m uito contente com a concessão [risos]. De qualquer maneira Habermas não respondeu às objeções e apenas dis.se que cra possível pensar desse jeito. Então o saldo não foi tão grande.

O senhor escreveu os artigos “Verdade e consenso” (em 1983) e “Ver­dade e consenso II” (em 1989) dedicados à teoria da verdade como consenso de Habermas. O último deles revê criticamente as conclusões do primeiro, praticamente as invertendo. Como exemplos de conclu­sões feitas em 1983, revistas em 1989, seria possível citar duas; 1) “Ainda que a questão da veracidade e da correção (ou a organização eqüitativa e desinteressada da discussão de pretensões de validade) tenha prio­ridade sobre a questão da verdade (e nisso Habermas tem razão, e tal­vez seja isso apenas o que importa), manifestamente a solução da pri­meira questão não traz por si só a solução da segunda”; 2) “As condi­ções da veracidade e da correção constituem condições de um autêntico consenso, é verdade; mas, do mesmo modo que as condições de verdade, não admitem uma controvérsia sensata; neste sentido estão aquém da possibilidade de consenso e dissenso e, por conseguinte, embora sejam

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condições do consenso, seria um equívoco chamá-las de condições con­sensuais”. O que o fez mudar sua posição em relação a tais conclusões?

Andei retom ando essas questões à luz de leituras que fiz do segundo W ittgenstein e instigado pelo que li de Tugendhat — pensando contra ele. O que está em jogo quando se coloca em questão a verdade de uma proposição? Se é uma proposição elementar, predicativa, o que está em jogo é a regra que possibilita afirm ar que um objeto é o caso de um determ inado conceito, expresso por um predicado. Então, para refutar a teoria consensual, parece que basta dizer isto: o que determina o consenso é a regra e não o contrário, pois o consenso depende da aplicação da re­gra. Agora, se se pensa de uma maneira wittgensteiniana os significados dos pre­dicados, é necessário sempre ligá-los ã aplicação dos predicados. O significado de um predicado não é determinado por uma nota comum que se intui e que se encontra presente em diversos objetos. A significação de um predicado é determinada a par­tir de exemplos do uso correto ou incorreto do predicado. Isso é adm itido por Tu­gendhat. Se se admite isso, se se compreende que é possível dar exemplos de usos corretos e incorretos de um predicado, terá de se adm itir também a seguinte conse­qüência: o que determina o significado é o consenso quanto aos exemplos corre­tos. Então, parece que na base das regras que determinam o uso correto ou incor­reto de um conceito há um consenso inicial. Por isso eu via uma certa razão na teo­ria consensualista e tentei jogar isso contra Tugendhat. Q uando estive na Alema­nha, em 1987, apresentei-lhe esse artigo sobre a teoria consensual e conversamos a respeito dessa questão. Tugendhat adm itiu, ao menos, que é possível discuti-la.

Por falar no segundo Wittgenstein, como o senhor avalia o livro Apre­sentação do mundo, de Giannotti?

Tudo o que Giannotti tem a dizer é sempre original e muito instigante. Esse livro tem uma grande importância para a discussão filosófica no Brasil.

O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

N ão, porque a palavra “ utopia” designa algo que é puram ente imaginário e histo­ricamente ineficaz. .Vlarx e Engels escreveram sobre o socialismo utópico e o socia­lismo científico. Criticaram o primeiro na medida em que m ostraram que a socie­dade utópica é historicamente inviável. A crítica a esse ideal se baseia no fato de seu conceito ser historicamente vazio e por não se compreender as condições de sua realização. Sc utópico tem esse sentido, então tudo que é classificado como utópi­co deve ser descartado. N ão tenho simpatia nenhuma pelo utópico, mas nem por isso acredito que os conceitos tenham de ser científicos. A idéia de uma sociedade justa, por exemplo, não deve ser uma utopia, mas isso não quer dizer que essa idéia tenha de se basear numa ciência da história, como o materialismo dialético. Ela não deve ser um conceito histórico, mas deve ser pensada como historicamente eficaz, c é historicamente eficaz na medida em que é uma exigência reguladora. Como idéia reguladora eficaz, a idéia de uma sociedade justa preside a lógica da razão com uni­cativa, para utilizar uma expressão de Haberm as, que é uma das dimensões da so­ciedade. Então, para fundam entar essa idéia não é preciso m ostrar que ela se pro-

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duz a partir de um estudo das contradições do modo de produção existente. De um ponto de vista m arxista, um projeto social só é legítimo se se pode dem onstrar que ele é resultante de certas condicionantes empíricas, quais sejam: as torças produti­vas, o estágio atingido por elas, as relações de produção e a harm onia ou desarm o­nia entre o estágio de evolução das forças produtivas e as relações de produção vigentes. Se há uma desarm onia, pode-se apresentar um projeto social como uma superação dessa contradição. Isso, no entanto, depende de muitas hipóteses que são questionáveis. É suficiente legitimar a idéia de um projeto social ou político qual­quer, se se derivar esse projeto das exigências morais que são dadas com a nossa linguagem, com a nossa existência.

() marxismo viveu várias crises em diferentes épocas. Viveu uma grande cri­se, depois da Primeira Guerra M undial, quando ficou claro que a hum anidade não caminhava em direção ao socialismo. Isso teve várias repercussões. Uma delas foi uma forma de socialismo ético. E propugnado por quem? Por filósofos kantianos. [Karl] Vorländer, por exemplo, um grande editor de obras kantianas, se identifica­va como um socialista de tradição marxista. A ética deveria fornecer os fundam en­tos do marxismo. Isso é interessante.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais pro­blemas?

N ão tenho uma visão própria sobre isso, mas creio que pode ser tratada adequa­damente no quadro das idéias de Habermas sobre a “ lógica da reprodução da so­ciedade” . Diferentemente de M arx, Haberm as a vê procedendo em dois planos: o plano da razão instrumental e o plano da razão comunicativa. Expondo sua visão dessa “ lógica” em seu livro sobre a reconstrução do materialismo histórico, H aber­mas mostra como a lógica de uma razão instrumental deixada a si mesma é perver­sa, no sentido de que, ao mesmo tempo que provê os meios para a solução de pro­blemas dados, gera inevitavelmente com as soluções encontradas outros problemas. É um tanto desanimador pensar que esses efeitos, por estarem inscritos em uma “ ló­gica” , são inevitáveis. .VIas, por outro lado, isso só ocorre porque o espaço da ra­zão prática é restringido em proveito do espaço da razão técnica. E, por isso mes­mo, é razoável esperar que o desenvolvimento da sociedade no plano da razão prá­tica e comunicativa consiga desarm ar esse mecanismo perverso da lógica da razão instrumental e que encontremos soluções duradouras para esses problemas. A mag­nitude dos problemas mencionados na pergunta tem um efeito desanim ador, nós nos sentimos inermes e indefesos diante de problemas que parecem escapar ao con­trole. M as o grau de consciência desses problemas também aum entou considera­velmente, e isso impede a resignação.

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Principais publicações:

1972 “Hitm” und "Inhalt” in der genetischen Phänomenologie E. Husserls (M. Nijhoff);

1980 Filosofia da linguagem e lógica (co-autor) (São Paulo: Loyola);1986 “Verdade e objetividade. Novas considerações sobre a ‘Teoria Consensual’

de J. H aberm as” , Revista Filosófica Brasileira, vol. Ill, n° 1;1994 “Consciência de si e conhecimento objetivo na Dedução Transcendental de

I. K ant”, Analytica, vol. 1, n° 1;1999 “Crítica, dedução e facto da razão” , Analytica, vol. 4, n" 1.

Bibliografia de referência da entrevista:

Aristóteles. Organon, Lisboa: Guimarães.Engels, F. Do socialismo utópico ao socialismo científico. Perspectiva.H aberm as, J. Conhecimento e Interesse, Jorge Z ahar Editores.__________ . Técnica e ciência como ideologia, Lisboa: Edições 70.__________ . Consciência moral e agir comunicativo. Tempo Brasileiro.__________ . Teoria de la acción comunicativa, M adri: Catedra.Horkheim er, M . e Adorno, Th. Dialética do Esclarecimento, ]orge Z ahar Editores. Husserl, E. Investigações lógicas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.__________ . Meditações cartesianas. Porto: Res.Kant, I. Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.__________ . Crítica da razão prática, Lisboa: Edições 70.__________ . Crítica da faculdade do juízo. Forense Universitária.__________ . Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita,

Brasiliense.M arechal, J. Le point de départ de la métaphysique, Bruxelas: Ed. Universelle. Tugendhat, E. Lições sobre ética, Vozes.__________ . Propedêutica lógico-semântica, Vozes.W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp.__________ . Investigações filosóficas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.

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RAUL LANDLM FILHO (1939)

Raul Landim Filho nasceu no Rio de Janeiro (RJ), cm 1939. Graduou-se em Filosofia pela Faculdade N. S. M edianeira (RJ) e obteve o título de doutor em Filo­sofia pela Universidade Católica de Louvain (Bélgica). É professor titular de Filo­sofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Esta entrevista foi realizada em janeiro de 2000.

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances, Os anos de aprendizagem e Os anos de peregrinação. No primeiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua fonnação intelectual?

Fico um pouco constrangido de falar a respeito da minha formação. Em todo caso, não acho interessante analisar uma concepção filosófica a partir da biografia do seu autor. O método estrutural de análise de texto, por exemplo, elucida uma tese ou uma obra filosófica abstraindo-se das condições externas de produção da obra. Nesse caso, o que importa é a reconstrução imanente da lógica do texto. |M artial) Guéroult escreveu livros magníficos sobre Descartes e Espinosa utilizando esse método. É bem verdade que outros métodos de análise procuram elucidar uma tese filosófica a partir das influências históricas do seu autor. Etienne Gilson fez isso magistralmente nos seus estudos sobre Descartes. Então pergunto: qual o sentido dessa questão que vocês me fazem? Vocês estão interessados na filosofia dos filósofos ou na vida deles? Entendo que vocês devem estar achando, indiretamente, que aquilo que as pessoas pensam depende da form ação que tiveram. T ranspondo essa concepção para a análise de texto, vocês adotariam uma posição em que a tese de um filósofo depen­deria da influência que teve, dos estudos que fez, da sua formação etc.

Uma das questões básicas do projeto é a seguinte: a filosofia no Brasil não é algo óbvio, é algo institucionalmente muito recente, e é preciso contar essa história...

Estou de acordo com o fato de que a filosofia no Brasil é institucionalmente recen­te. Aliás, ela é recente e incipiente. N ão fiz aquelas considerações para me furtar a responder à questão colocada, mas desde logo assinalo que minha simpatia m eto­dológica vai mais em direção ao método guéroultiano do que ao método gilsoniano. Em todo o caso, respondo ã questão de vocês da seguinte maneira: fui formado ba­sicamente pelo padre [Henrique C. de Lima] Vaz. Naquela época o curso de filoso­fia da PUC era bastante medíocre. O curso da Faculdade Nacional de Filosofia (atual

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IFCS [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ|) era dominado seja por [Ál­varo] Vieira Pinto, um professor marxista competente e brilhante, seja por uns pro­fessores tomistas sem grande brilho, que pareciam prezar mais a ortodoxia tomista do que a verdade. Então, para ter uma boa formação, a única saída que tive foi ir para Friburgo, escolasticado dos jesuítas. Fui como estudante leigo. Hoje, com maior distância, valorizo muito mais esse curso do que quando era estudante. Ele era bastante sistemático, sólido e rigoroso, embora talvez fosse um “pouco” dogmático. Era, como todos os cursos destinados prioritariam ente à form ação filosófica de futuros padres, restrito ao m étodo e à doutrina de S. Tomás, modelo, portanto, de uma formação tipicamente escolástico-tomista. Com parado com os cursos atuais, pode ser considerado um excelente curso de filosofia tomista, tão rigoroso quanto o de Louvain. M as, ao contrário do de Louvain, o curso sofria das limitações de um ensino escolástico centrado exclusivamente na filosofia de S. Tomás. As aulas do padre Vaz eram uma exceção, porque, além da filosofia tomista, elas nos ensi­navam filosofia.

O curso era estruturado da seguinte forma: durante três anos eram estudadas cem teses tomistas que versavam sobre questões de ontologia, de teoria do conhe­cimento, de antropologia, de ética e de cosmologia. Essas teses eram ensinadas se­gundo o método medieval de exposição e de dem onstração de teses filosóficas. Os termos das teses eram definidos, em seguida eram citados os seus adversários (diga- se, de uma maneira vaga e simplista), provava-se, então, a tese como conclusão de um ou vários silogismos e, finalmente, eram refutados os adversários da tese. Vaz nos seus cursos incorporava esse método a um método pessoal que continha duas partes: a indução histórica e a redução crítica. Pela indução histórica era estudada a gênese histórica de cada uma das teses analisadas; pela redução crítica eram exa­minadas e criticadas as diversas posições dos diferentes filósofos que tinham abor­dado a questão. O método do padre Vaz de fato adaptava o método medieval às exigências do ensino contemporâneo.

Xessa época, ele foi vítima de muitas incompreensões. Essas incompreensões acabaram por obrigá-lo a sair de Friburgo e a se transferir para a UFMG.

Durante esses anos de estudo sempre me recordo com saudade e alegria das conversas que tive com o padre Vaz. Aproveitei dessa convivência não só do ponto de vista filosófico, mas também do ponto de vista pessoal. Graças à sua orienta­ção, tomei conhecimento da boa literatura neotomista, como também me iniciei nas leituras de Descartes e de Kant, leituras sempre acom panhadas do estudo de intér­pretes do nível de Guéroult.

Como foi a sua decisão de fazer filosofia?É extremamente difícil falar sobre isso. Trata-se de uma motivação pessoal, subje­tiva. Venho de uma família tradicional católica. Por volta dos 16 anos comecei a ler M arx e fiquei, como era de se esperar, muito entusiasmado. O riundo de uma família católica praticante, que não fazia concessões às conveniências do cotidia­no, estudando num bom colégio católico tradicional, senti-me um pouco solitário. N o final do meu curso secundário, Vaz publicou um brilhante artigo, “ M arxismo e Filosofia” , na revista Síntese. M al compreendi esse artigo, não tinha competên-

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R aul L andim F ilho: “ D o m eu p o n to de v ista, a m elho r m aneira de fazer filosofia é an a lisa r as questões filosóficas a trav és de um m éto d o de análise h istó rico -conceitua l. Um a q u es tão filosó­fica, g e ra lm en te tem um ‘en ra izam en to h is tó rico ’, isto é, ela (ou a lgum a o u tra q u es tão conexa a ela) foi tem a tizad a p o r um tex to , c lássico ou c o n te m p o râ n e o ” .

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cia para isso, mas intuí que era de excelente qualidade. Procurei o padre Vaz em Friburgo e comecei a ter conversas filosóficas com ele. Só agora posso avaliar a sua generosidade em conversar repetidam ente com um estudante que tinha todos os defeitos característicos de sua idade, sobretudo a pretensão juvenil aliada a uma enorme ignorância filosófica. Os contatos que tenho hoje com padre Vaz são mais esparsos. Mas a admiração pela sua excepcional qualidade humana e intelectual con­tinua a mesma. Por que fui fazer filosofia? Talvez tenha sido por causa desse con­flito entre a minha formação tradicional católica e o encanto juvenil pelo m arxis­mo. Sentia necessidade de avaliar claramente minhas convicções cristãs e a concepção marxista. Progressivamente, sob a orientação do padre Vaz, fui me dedicando mais sistematicamente ao estudo da filosofia, ao estudo de M arx, de S. Tomás, ã leitura dos neotomistas e de alguns clássicos da filosofia.

Data dessa época a leitura de um livro que me envolveu definitivamente com o estudo da filosofia e que delimitou um horizonte de problemas que me interes­sam até hoje. Trata-se do livro de M aréchal, Le point de départ de la métaphysique. Ele foi uma espécie de fio condutor de meus estudos. M aréchal, em cinco volumes, estuda a questão do conhecimento sob o ponto de vista das relações entre sensibi­lidade e entendimento. O segundo volume dessa obra analisa as teses do racionalismo cartesiano e do empirismo. O terceiro volume é um estudo da Crítica da razão pura de Kant. O quinto volume consiste numa reinterpretação da teoria do conhecimento de S. Tomás ã luz de Kant.

A tese central do quinto volume consiste em m ostrar que S. Tomás e Kant têm posições próximas sob certos aspectos, como, por exemplo, a distinção entre sensi­bilidade e entendimento, sobre a função do conceito como unidade do múltiplo dado na sensibilidade e organizado parcialmente pela imaginação, mas têm também po­sições divergentes no que concerne ã teoria do juízo. Segundo Maréchal, em Kant só pode ser afirm ado, objetivado, o que é representado, enquanto que, em S. Tomás, a afirmação judicativa supõe, mas transcende o ato representativo. .A teoria do juízo de Kant ficou, assim, presa ã noção de representação: só é afirmado o que pode ser representado conceitualmente. Como todo conceito só tem validade objetiva na medida em que organiza o múltiplo empírico, toda afirmação judicativa é um conhecimen­to do múhiplo unificado conceitualmente. Maréchal procura m ostrar que o ato judi- cativo (na perspectiva tomásica) é constituído por dois elementos: a afirmação c a representação do múltiplo organizado conceitualmente. O ra, as condições de possi­bilidade da afirmação não se identificam com as condições da representação. Assim, os limites da representação não são os mesmos que os da afirmação. Portanto, seria correto sustentar a tese de que no juízo pode-se afirm ar mais do que se representa.

Você teve uma participação decisiva na redação do documento base daAção Popular. Como você avalia hoje a experiência da AP?

Participei da elaboração de um longo manife.sto, conhecido como manifesto da PUC- RJ, quando Aldo .Arantes era o presidente do Diretório Central dos Estudantes. Mostrei esse manifesto ao padre Vaz, que sugeriu algumas modificações im ediata­mente incorporadas ao te.xto. Gustavo Corção e alguns membros do Centro Dom Vital, que naquela época repetiam sem originalidade as idéias do filósofo tomista

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Jacques M aritain, criticaram violentamente pelos jornais o manifesto, acusando-o de marxista. Essa acusação teve um grande impacto. Como as idéias do manifesto exprimiam concepções não estritamente tomistas do homem, da história e da socie­dade, o que não era tomista nem conservador, só poderia ser marxista, segundo um raciocínio simplista. Vaz publicamente tomou a defesa do manifesto, justificando- o a partir de um quadro conceituai ignorado pelos tomistas do Centro Dom Vital. Esse manifesto esteve na origem da fundação da AP e serviu de base para um m a­nifesto posterior que marca propriam ente a fundação da AP e que foi elaborado por alguns dos autores do manifesto da PUC.

A AP, na sua fase inicial, foi um movimento politico-cultural com uma forte inspiração cristã. Os impasses da JUC [[uventude Universitária Católica] (movimento universitário católico sob a orientação dos bispos) aliados ao fato de que o “pen­samento social cristão” no Brasil quase sempre assumiu uma forma conservadora tornaram necessária a fundação da AP, movimento inspirado inicialmente no per­sonalismo de E. M ounier e que pretendia ser uma alternativa filosófico-política aos movimentos marxistas.

Betinho devia ser uns quatro anos mais velho que você. Ele tinha umainfluência grande sobre a sua geração?

Como estudante de filosofia, as pessoas que mais me influenciavam eram certamente as pessoas que faziam filosofia. Betinho era um líder carismático e não um inter­locutor filosófico. A liderança do “ teólogo” Luiz Alberto Gomes de Souza talvez fosse mais marcante. Algumas das idéias do Betinho na época da fundação da AP, como as “categorias” inventadas por ele de “pólo dom inante” e “pólo dom inado”, tinham um efeito aglutinador em política, mas certamente não eram m uito convin­centes do ponto de vista da filosofia ou da teologia da história. Com idéias simples e com o seu incontestável carisma, Betinho convencia muitas pessoas que não se interessavam por especulações filosóficas. De fato, a AP sem a liderança de Betinho, de Aldo Arantes e de Luiz .Alberto não teria sido fundada. Os rumos posteriores que a AP tom ou fazem parte de uma outra história da qual não participei, mas que certamente foi uma história de coragem e de idealismo.

A sua saída do Brasil foi por motivos políticos?N ão. Eu deveria ter ido antes para a Europa. Mas com o nascimento do meu filho em 1965 e, posteriormente, da minha filha em 1966, só fui para Louvain no início de 1967. Escolhi Louvain em razão da influência que tivera sobre mim o livro do padre Maréchal e do projeto da “escola” de Louvain, que pretendia estabelecer um diálogo com a filosofia contem porânea a partir do quadro conceituai tomista. Lou­vain, em vez de repetir m onotonam ente teses da “o rtodoxia” tomista, como pare­cia fazer a Universidade Gregoriana de Roma, estimulava a pesquisa sobre temas e autores contemporâneos. Graças aos cursos de J. Ladrière e de J. Dopp, comecei a 1er W ittgenstein, a me interessar pela filosofia analítica e pela lógica matemática. Assistia também com entusiasmo aos cursos de S. .Mansion sobre Aristóteles, que conhecia somente através das interpretações de S. Tomás.

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Como o militante católico de esquerda dos anos 1960 resolveu estudarlógica?

De fato, é difícil traçar um itinerário intelectual. Ele é feito de acasos, determ inado por circunstâncias. O meu interesse pela lógica e pela filosofia analítica não pode ser descrito através de um nexo que liga necessariamente certas premissas a certas conclusões. De fato, os cursos de J. Ladrière sobre lógica e sobre filosofia da lógi­ca, as teses kantianas sobre a natureza e os limites do discurso filosófico, a questão sobre a objetividade do conhecimento e a do conhecimento filosófico despertaram o meu interesse sobre as teses de W ittgenstein e de Carnap. Além disso, a leitura atenta da Crítica da razão pura (ainda no Brasil) tornou plausíveis para mim algu­mas das teses da filosofia analítica (que vim a conhecer em Louvain) sobre a na tu ­reza do conhecimento filosófico. Kant tem uma concepção semelhante à concep­ção analítica da filosofia no sentido de que o conhecimento filosófico não é um conhecimento de objetos (coisas ou eventos), mas é um conhecimento de regras ou de princípios que tornam possível o conhecimento de objetos, isto é, a filosofia é um conhecimento racional por conceitos. E os conceitos (filosóficos) permitem for­mular regras (princípios) de identificação de objetos. Por mais estranho que possa parecer, o Tractatus logico-philosophicus de W ittgenstein, que não tem qualquer vinculação histórica com a Crítica, retoma uma temática análoga à temática kanti­ana ao introduzir a distinção entre mostrar e dizer, entre esclarecimento conceitu­ai, efetuado por uma análise (lógica) da linguagem, e conhecimento de fatos.

Face ao meu interesse por Wittgenstein e pela filosofia analítica, deixei de lado o projeto inicial de fazer uma tese, inspirada em M aréchal, sobre o confronto entre a crítica metafísica e a crítica transcendental na explicação do conhecimento obje­tivo. Fui, então, estudar Lógica para poder me aprofundar na obra de Wittgenstein. Esse estudo da Lógica deveria ser apenas um rito de iniciação, uma mera passagem, pois achava que não compreenderia bem W ittgenstein e a corrente neopositivista se não tivesse uma boa iniciação em Lógica. Acabei escrevendo uma tese de Lógi­ca. N ão sei “ se ganhei ou perdi meu d ia” com essa tese. M as quando me doutorei, desisti de me dedicar à Lógica e retornei ao estudo da filosofia, em especial, da fi­losofia de W ittgenstein e da filosofia analítica.

Por isso você não publicou a sua tese no Brasil?Q uando retornei ao Brasil, como já disse, a Lógica não era mais o tema central dos meus estudos. Uma formação em lógica certamente contribui para o rigor argu- mentativo e conceituai, para dissipar as ilusões retóricas escondidas na linguagem e, sobretudo, para o acesso a certos gêneros de filosofia contemporânea. Mas a lógica não é uma disciplina filosófica. Ela é uma disciplina matemática. E como muitas das disciplinas matemáticas, ela suscita questões filosóficas relevantes. Daí o seu interesse para a filosofia, daí a relevância da filosofia da lógica.

£ a volta para o Brasil?Voltando ao Brasil, fui ser professor de Lógica e de Filosofia da Linguagem na PUC- R J. Dedicava-me essencialmente ao estudo de W ittgenstein e da filosofia analítica. M as houve um fato que m arcou esse meu retorno ao Brasil. Fui convidado pela

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direção da PUC para ser diretor do D epartam ento de Filosofia. Aceitei. Dois anos depois, fui expulso da PUC pelo mesmo reitor que me convidara para aquele cargo sob a alegação de que a minha orientação filosófica não era compatível com os princípios de uma universidade católica. Obviamente, achei injusta e infamante essa alegação. M as a solidariedade pública que recebi dos meus antigos professores que m arcaram a minha formação, padre V'az e J. Ladrière, ofusca a ofensa que recebi da reitoria da PUC. Saindo dessa universidade, fui para o IFCS, graças ao convite de Olinto Pegoraro. Nessa instituição laica e pública, pude com liberdade continuar o meu projeto filosófico; o de subm eter os problemas clássicos da filosofia aos métodos de análise lógico-lingüísticos.

M as ISSO não foi padre Vaz quetn trouxe?Não. Como vocês sabem, o padre Vaz, sem ser hegeliano. dá nos seus trabalhos uma grande relevância à filosofia de Fiegel. Ora, historicamente, graças a B. Russell. que está na origem do movimento analítico, a filosofia concebida com o análise conceituai começou como uma alternativa e como uma oposição ao hegelianismo de Bradley. .Assim, o movimento analítico desde o seu início se situa nas antípodas do hegelianismo, ao menos do hegelianismo de Bradley. .Além disso, o Tractatus e a sua interpretação neopositivista pretendem m ostrar a impossibilidade de um dis­curso metafísico e elucidar questões filosóficas através da análise da linguagem, parecendo reduzir a filosofia a uma teoria geral e formal da linguagem. O e io que o padre Vaz rejeita todas essas teses analíticas e os seus trabalhos parecem não apreciar os esclarecimentos filosóficos oriundos dessa concepção filosófica.

O padre Vaz não foi, portanto, responsável pelo meu interesse pela filosofia analítica.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­lações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Fu não sei o que seria uma “filosofia brasileira” . Classifica-se uma filosofia em razão da nacionalidade do filósofo? .Vias a nacionalidade pode determ inar a filosofia? O que seria a filosofia francesa? Quem a caracterizaria? Descartes ou Pascal? Espinosa caracterizaria a filosofia portuguesa, a espanhola ou a holandesa?

De fato, talvez haja “estilos” diferentes de abordar questões filosóficas; por exemplo, o volume sobre História da filosofia mediei>ai organizado por Kretzmann, Kenny e P inborge publicado por Cambridge, exprime em História da Filosofia um pretenso “estilo” anglo-saxônico. O fio condutor do volume é a lógica medieval. É através dela que são abordadas as questões tradicionais da filosofia medieval. Nes­se sentido, essa abordagem contrasta com os trabalhos tradicionais, com o, por exemplo, os da escola de E. Gilson. É bem verdade que os textos dos historiadores franceses contem porâneos de filosofia medieval como De Libera e Biard se aproxi­mam mais do estilo anglo-saxão do que do estilo tradicional.

Os estudos anglo-saxões sobre Descartes e sobre Kant, muito em voga atual­mente, contrastam também com alguns estudos continentais desses autores. O ob­jetivo da abordagem anglo-saxônica é o de reconstruir a argum entação do texto avaliando a coerência e a validade das teses apresentadas. Raramente esses estudos

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são meramente descritivos ou eruditos. As influências históricas, o contexto dc produção do texto não são considerados como elementos essenciais para a com ­preensão das teses do autor estudado. Além disso, a reconstrução da lógica argu- mentativa do texto não impede que sejam introduzidos instrumentos e categorias externos à teoria do autor estudado. F.ssa reconstrução da lógica permite uma to ­mada de posição do historiador (e do leitor), isto é, permite uma avaliação das te­ses do au tor estudado. Um historiador da filosofia anglo-saxônico pretende ser também um filósofo. Ciuéroult certamente se oporia a essa concepção. Ele distin­guia claramente a função do historiador da filosofia da do filósofo. A pretensão do seu método, que é um método de historiador da filosofia, seria a de reconstruir o sentido do texto pela análise da sua estrutura argumentativa. Tal como os historia­dores anglo-saxões, nem a erudição histórica nem o contexto de produção do tex­to são relevantes para a compreensão da obra do autor estudado. .Vlas em Guéroult, a reconstrução da lógica argumentativa deve ser imanente ao próprio texto. Por­tanto, nenhum instrum ento conceituai estranho ao próprio texto estudado pode contribuir para o seu esclarecimento, pois o método estrutural visa explicitar o sen­tido de uma obra filosófica levando apenas em consideração os conceitos, as teses e a forma da argum entação imanente ã própria obra.

Essas diferenças de abordagem ou de “estilo” são significativas, mas pare­cem depender das concepções sobre a natureza da filosofia, que justificariam, em última análise, a validade desses “estilos” . Uma diferença de “estilo” parece, as­sim, exprim ir uma diferença de concepção filosófica. E a validade de uma con­cepção só pode ser legitimada de uma maneira universal, já que ela tem uma pre­tensão ã universalidade. Donde, não me parece ter sentido falar de filosofias regi­onais (brasileira, francesa etc.) a menos que seja para situar a nacionalidade do autor de um texto.

No livro em homenagem aos seus 60 anos. Verdade conhecimento e ação, os editores sublinharam, no prefácio, que “mais de uma geração de professores e pesquisadores em nossa área, inclusive os organizadores dessa justa homenagem, formou-se num ambiente acadêmico cuja ins­tauração foi fruto de um lento e laborioso processo, que deve ser co­nhecido caso se deseje prosseguir nessa direção. Dessa história, Guido Antônio de Almeida e Raul Landim Filho são personagens decisivos, e sua contribuição merece ser devidamente divulgada e celebrada”. Como você vê o processo de instalação do estudo acadêmico e da pesquisa em filosofia no Brasil?

Foram os meus ex-alunos que escreveram isso e eles têm uma certa simpatia por mim. A maioria dos meus alunos briga comigo e não termina, sob a minha orien­tação, o mestrado ou o doutorado. Os alunos que organizaram esse livro resisti­ram ao meu mau humor e conseguiram chegar até ao fim dos seus estudos. São agora professores dc filosofia. .Vlas sobre a questão da institucionalização eu pergunto: como é que se deve pensar a estrutura de um curso de filosofia? C-omo um profes­sor deve ensinar filosofia? Há uma polêmica, que julgo estéril, entre fazer filosofia e fazer história da filosofia. Ela é uma polêmica estéril, embora seja real. Guéroult

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dizia que, enquanto historiador, não fazia filosofia, mas história da filosofia, como se fosse possível fazer história da filosofia sem fazer filosofia. Um amigo, professor de filosofia na França, contou-m e que Searle na F.cole N ational Supérieure, rue d ’Ulm, Paris, disse: “Aristóteles nunca leu .'Aristóteles. Por que precisamos ler Aris­tóteles?” . Cria-se, assim, uma polêmica, pois quem se dedicasse à história da filosofia, não faria filosofia e quem fizesse filosofia, desconheceria história da filosofia.

Do meu ponto de vista, a melhor maneira de fazer filosofia é analisar as ques­tões filosóficas através de um método de análise histórico-conceitual. Uma ques­tão filosófica, geralmente tem um “enraizamento histórico” , isto é, ela (ou alguma outra questão cone.xa a ela) foi tematizada por um texto, clássico ou contem porâ­neo. Reconstruir a lógica argumentativa do texto, que analisou a questão com o objetivo de clarificar não só a sua estrutura argum entativa, como também a ques­tão abordada, é o primeiro momento da análise que denomino de histórico-con­ceitual. Como o objetivo principal é usar o texto para elucidar a questão, é legíti­mo explicitar, acrescentar, corrigir a lógica do próprio texto. Por isso mesmo, é le­gítimo questionar, tem atizar e avaliar a elucidação que o texto deu ã questão se­gundo a sua estrutura original. .Vias, se isso é legítimo, a reconstrução da lógica argumentativa do texto exige uma nova clarificação da questão que, de um lado deve levar em consideração as limitações da análise original e de outro lado, deve formular um novo quadro conceituai tendo em vista as limitações da análise inicial.

Você vê isso hoje instalado no Brasil?Pelo menos o grupo com o qual tenho afinidade (Balthazar Barbosa, Guido de Almeida, Luiz Henrique [Lopes dos Santos] e outros) com partilha comigo dessa maneira de fazer filosofia.

Para que um grupo como esse possa funcionar é preciso que haja algu­mas condições materiais para a institucionalização da filosofia. Você participou da construção do curso de pós-graduação, da assessoria da CAPES etc. Como você vê esse processo de institucionalização da filo­sofia no Brasil?

Ao retornar ao Brasil em 1977, o primeiro grupo de filosofia do qual participei foi a SEAF [Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas]. N aquela época, os grupos nacionais de filosofia eram o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF), a Sociedade de Filósofos Católicos e finalmente a SEAF, fundada por Olinto Pegoraro. A SEAF era naquele tempo de ditadura um espaço de liberdade para discussão e debate filosó­fico. Daí a sua importância filosófica e política. Term inada a ditadura, pensamos em criar um grupo filosófico que tivesse como único critério de admissão a “quali­dade" filosófica. Desse grupo faziam parte alguns professores do Centro de Lógica e Epistemologia (CLE) da Unicamp e alguns poucos professores do Rio de Janeiro. Não seria relevante para a participação nesse grupo nem a “escola filosófica” nem o “estilo” , mas tão somente a “qualidade” . A SEAF não preenchia nem queria pre­encher esse critério. De fato, é muito difícil formular objetivamente o critério de qualidade; ele pode ser usado para exprimir preconceitos de “escola” , de ideologia etc. Em contrapartida, havia no Brasil um centro de reconhecida qualidade filosó­

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fica: o Centro de Lógica e de Epistemologia (CLE) da Unicamp, fundado e dirigido por O. Porchat. Esse Centro nos servia de modelo. Ele teve uma enorme influência no desenvolvimento da filosofia no Brasil. C ontratando professores competentes (por exemplo, [José Arthur] Giannotti, [Gérard] Lebrun, Balthazar etc.) promovendo colóquios, publicando revistas, criando um clima de debate e de discussão, Porchat com o CLE deu uma contribuição decisiva para o desenvolvimento da qualidade da filosofia no Brasil.

Pensávamos em fundar uma instituição nacional de filosofia segundo o pa­drão de qualidade do CLE. Foi fundada a .ANPOF [Associação Nacional de Pós- Graduação em Filosofia]. .Vias o critério de qualidade apresenta diversas dificulda­des. Como já assinalei, ele exige uma formulação objetiva. E possível encontrar essa formulação? Em segundo lugar, a qualidade por definição é m inoritária. O ra, em toda instituição que pretende ser representativa o sábio e o menos sábio têm o mesmo direito. Uma instituição em que a qualidade é o critério básico, dificilmente poderá ser representativa de uma comunidade nacional.

.As dificuldades para encontrar um critério objetivo de qualidade e a questão da representatividade tornaram impossível criar uma instituição de âm bito nacio­nal que satisfizesse a esses ideais. O ra, a alternativa foi, de um lado, fundar associa­ções temáticas, como a Sociedade Kant ou a Sociedade Filosófica de Estudos sobre o Século XVII, por outro lado, criar pequenos grupos de pesquisa que tivessem uma homogeneidade metodológica, uma unidade temática e uma exigência de qualida­de. Nesse conte.xto, no Rio fundamos há tempos o grupo de pesquisa Seminário Filosofia da Linguagem (coordenado por mim e pelo Guido de Almeida), respon­sável pela publicação da revista Analytica. Esse grupo do Rio se associou a outro grupo de pesquisa da UFRGS, coordenado por Balthazar Barbosa. Cabe, agora, aos “sábios” da comunidade avaliar a qualidade da produção de cada uma dessas as­sociações nacionais e desses grupos de pesquisa.

Você é fundador da Associação Nacional de Estudos do Século XVll.Como você avalia essa Associação?

Essas associações temáticas, ao congregarem os especialistas de uma área, contri­buirão certamente para a melhoria do nível da filosofia no Brasil sem se com pro­meterem com o problemático critério de qualidade. Todos os interessados, em prin­cípio, podem participar de suas reuniões; as boas comunicações serão ouvidas com prazer, as de duvidosa qualidade serão ouvidas com paciência.

Quais são, na sua opinião, os filósofos brasileiros mais importantes?Padre Vaz, Porchat, Marilena [Chaui j, Giannotti, Balthazar, Guido e Luiz Flenrique. Com esses três últimos, tenho grande afinidade metodológica e filosófica.

Vocês estão certamente surpresos pelo fato de não ter incluído padre Vaz na lista dos professores com quem tenho grande afinidade filosófica. Há algum tem­po, nos seus magistrais artigos que abordam as relações entre razão, fé e religião, padre Vaz tem procurado m ostrar que há uma irredutível incompatibilidade entre a razão m oderna, caracterizada pela filosofia cartesiana (e que encontra o seu apo­geu na filosofia de Kant), e a concepção cristã. O Logos cristão seria incompatível

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com o Logos cartesiano. A razão moderna (cartesiana), razão operatória por exce­lência, excluiria qualquer possibilidade de transcendência. As análises do padre Vaz são sempre profundas e qualquer refutação de suas teses exigiria um longo e sutil esforço de argumentação. Mas sou obrigado a dizer de uma maneira simples e abrup­ta que custo a aceitar a correção dessa tese, exposta por mim aqui dc uma maneira bastante simplória.

Por que você discorda dessa tese?Confesso que tenho certas dúvidas sobre essa tese, embora ela seja tão bem argu­mentada que chega a me parecer plausível. Trata-se de fato de analisar, segundo a expressão do padre Vaz, as tensões entre as razões da fé e as razões da razão. Descar­tes teria iniciado um processo, que culminou em Kant, de imanentização lógica da Transcendência. Isso cm virtude da razão cartesiana ser uma razão operatória (lógica) que submete o real às suas exigências. Essa razão, embora seja a de um sujeito finito, pretende ser soberana justamente por submeter o real às suas exigências operató­rias. Em conseqüência, ela prescinde de qualquer relação com a Transcendência.

Essa descrição talvez se aplique ao racionalismo espinosista. Mas acho pro­blemático aplicá-la à razão prática kantiana e a Descartes. Tenho a impressão de que Descartes mostra nas suas obras metafísicas que a razão finita não é capaz de justificar a verdade. Ela necessita da Transcendência para se auto validar. Sem a Veracidade Divina nenhum conhecimento pode ser considerado justificadamente verdadeiro. Donde, a razão finita, voltada para si mesma, é condenada ao ceticis­mo. M esmo o m atem ático ateu não será capaz de justificar a verdade dos seus teoremas sem a Veracidade Divina.

Qual é a sua avaliação do último livro de Marilena Chaui, A nervurado real.'

O livro da .Marilena alia a erudição, que caracteriza a historiografia continental, a uma fmesse argumentativa que a historiografia continental nem sempre tem. Com ­parando-o com os livros recentemente publicados sobre Espinosa como os de Moreau e de .Vlacherey, afirmo, sem hesitação, que o livro de Marilena é certamente um dos melhores livros sobre Espinosa publicados nesse final de século. .Aliás, os estudos espinosistas no Brasil são de excelente qualidade tanto do ponto de vista do conhe­cimento histórico quanto do ponto de vista da análise filosófica. Além do livro da M arilena, o de Lia Levy e o de Marcos Gleizer comprovam essa minha afirmação.

Como caracteriza a sua relação com Espinosa?N enhum a filosofia mais do que a de Espinosa merece o epíteto de sistema. O siste­ma é dem onstrado (e não apenas exposto como a Exposição geométrica de Des­cartes) segundo um método dedutivo. Ele contém uma ontologia, uma teoria do conhecim ento, uma ética, uma filosofia política etc. As questões filosóficas são analisadas de uma maneira prim orosa, segundo um rigor argum entativo e uma precisão conceituai raram ente encontrados em outros textos. Considerado como um cartesiano, Espinosa, no entanto, subverte as intuições que fizeram de Descar­tes o iniciador de uma nova maneira de fazer filosofia. A prioridade da “crítica”

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do conhecimento sobre as outras questões filosóficas, que passam a depender do esclarecimento prévio dessa questão inicial, é rejeitada. Sob esse aspecto, Espinosa é por excelência um anticartesiano ou, talvez, um pré-cartesiano. Obviamente, não por não ter compreendido o alcance e a novidade representada pela filosofia carte­siana, mas talvez por tê-la compreendido perfeitamente. Cada dificuldade da filo­sofia cartesiana é retomada por Espinosa em sua filosofia e é solucionada a seu modo. De fato, Espinosa foi um aluno que nenhum mestre gostaria de ter.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como o(s) mais represen-tativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que você nos contas­se como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o{s) vê hoje.

O conceito de verdade e alguns conceitos a ele conectados como o conceito de re­presentação, de objetividade, de sujeito, de consciência de si, de objeto etc. são os que mais marcaram a minha pesquisa. O conceito de verdade é um caso exemplar. Ele não é um conceito filosófico, isto é, não foi inventado por uma teoria filosófi­ca. Aparece na linguagem ordinária, na comunicação do dia a dia. Cabe ao filóso­fo esclarecer o sentido desse conceito e os pressupostos envolvidos na afirmação cotidiana e banal de que algo é verdadeiro. O esclarecimento pode se iniciar pela constatação de uma trivialidade: dizer que algo é verdadeiro significa dizer que a realidade é assim e assim. Por exemplo, dizer que “a neve é branca” é verdadeiro significa dizer que a neve é branca. Essa trivialidade pode ser explicitada recorren­do-se a uma formulação mais sofisticada: a verdade consiste na adequação ou na correspondência do que é dito (pensado/representado) com a realidade. Assim com ­preendida, a verdade é uma relação entre dois termos distintos: de um lado, algo é pensado, representado ou enunciado; de outro lado, algo é posto como real. O es­clarecimento inicial da noção de verdade remete assim, desde o seu início, à noção de representação (o que é pensado) ou à noção lingüística do que é dito ou enunciado e à noção de realidade visada (por um sujeito), portanto, à noção de objeto. Repre­sentação (enunciado), sujeito e objeto estão, portanto , envolvidos na clarificação inicial do conceito de verdade. É, então, necessário esclarecer o significado desses termos. Se o sentido deles é elucidado, a questão central sobre a verdade, implícita na afirmação banal de que algo é verdadeiro, passa a ter um significado preciso: como e por que é possível exprim ir na linguagem ou no pensamento aquilo que ocorre na realidade? Como é possível saber que algo é verdadeiro?

Essas questões triviais são tão antigas quanto é antigo o discurso filosófico. Mas, a questão da verdade é um modelo de problema filosófico, pois o filósofo não a inventa, mas procura apenas esclarecer o que é espontaneam ente afirmado. O esclarecimento inicial remeterá certamente à elucidação de novos termos. M as os sucessivos esclarecimentos permitem abordar, de uma maneira precisa, a questão sobre a pretensão ingênua e espontânea de que somos capazes de representar ou de descrever corretam ente o real, isto é, de que somos capazes de dizer a verdade. O que devemos supor ou aceitar como correto para justificar essa nossa pretensão ã verdade?

N ão é necessário repetir que, se a questão da verdade foi o objeto de tantos anos de estudo, S. Tomás, Descartes, Espinosa, Kant e Wittgenstein, para citar apenas

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os clássicos, foram os autores que mais freqi.ientei. Como já assinalei, segundo o método que denominei de histórico-conceitual, o estudo da lógica argumentativa de um texto é o primeiro momento da elucidação de uma questão filosófica. Cada um desses autores pretendeu responder à questão: qual é o significado do termo verdade? Por que é legítima a nossa pretensão de conhecimento? A teoria de cada um deles pretende ser, ao mesmo tempo, um esclarecimento e uma justificação da crença de que podemos saber que o que pensamos ou dizemos é verdadeiro. É cla­ro que todos esses esclarecimentos e justificações se desenvolvem no âm bito de um sistema conceituai que delimita o campo do próprio esclarecimento. Tematizar es­ses pressupostos, alterando-os ou estendendo-os, evidenciar os seus limites e os problemas que eles engendram é uma das tarefas do método histórico-conceitual. Mas o que está sendo de fato questionado é a legitimidade de nossa crença ingênua de que podemos dizer que algo é verdadeiro.

Vocês me perguntam sobre os meus trabalhos atuais. Dedico-me há alguns anos á crítica de Kant a Descartes. M inha interpretação atual das Meditações tem como fio condutor a célebre metáfora cartesiana da árvore da ciência formulada na “Carta- Prefácio” à edição francesa dos Princípios. A filosofia primeira cartesiana teria como objetivo justificar o saber humano, isto é, procuraria fundar a metafísica, a m ate­mática, a física, a moral e a medicina como ciências. Assim, a questão genérica sobre a verdade se desdobraria em quatro questões distintas: (a) É possível uma metafísi­ca? (b) É possível a matemática? (c) F. possível a física? (d) É possível a moral ou uma ciência do composto de alma e corpo? Essas questões foram respondidas pela filosofia primeira cartesiana. A prova da existência do sujeito pensante e, em se­guida, a da existência de Deus permitem validar a metafísica. A prova da existên­cia de um Deus veraz legitima o valor objetivo das idéias claras e distintas, o que permite validar a matemática. A prova da existência dos corpos funda a possibili­dade da física como uma ciência de objetos extensos de fato existentes. A prova da união da alma com o corpo funda a possibilidade da ciência do com posto de alma e corpo. A dem onstração de certos enunciados existenciais garante a legitimidade à pretensão da verdade, isto é, a possibilidade de um saber objetivo.

■A reflexão sobre a questão da verdade conheceu várias peripécias após as Meditações. Ela atinge o seu apogeu na Crítica de Kant. De Descartes, Kant herda apenas a problemática, mas o método e a filosofia primeira cartesiana são postos em questão. Três aspectos da crítica kantiana a Descartes me interessaram particular­mente. Estes três aspectos têm uma relação mediata com a teoria cartesiana da ver­dade: (a) criticando nos Paralogismos e na Refutação do idealismo a prova cartesiana da existência dos corpos, Kant põe em questão uma das teses centrais de Descartes: a tese da prioridade do conhecimento de si sobre o conhecimento do mundo obje­tivo, o que torna problemático o método e a própria a fundação do conhecimento objetivo nas Meditações; (b) em Descartes, a existência efetiva do sujeito pensante desempenha um papel fundamental na refutação do ceticismo e, portanto, na pro­va de que é possível um conhecimento verdadeiro. Kant refuta essa tese de Descar­tes m ostrando que, se de um lado o eu peuso desempenha um papel determinante na prova da possibilidade do conhecimento objetivo, de outro lado, ele e uma mera função formal de unidade e não exprime nem o conhecimento de si nem o conheci-

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mento de um sujeito verdadeiramente existente; (c) a prova ontológica cartesiana revela a estrutura das provas existenciais nas Meditações. Juízos existenciais são assimilados na sua estrutura formal a juízos atributivos. O juízo “Deus existe” te­ria a mesma forma lógica do juízo “Deus é existente” . .Assim, formalmente a p ro­va da proposição Deus existe deve satisfazer às mesmas condições da prova da pro­posição “Deus é onipotente” . A crítica kantiana ao argum ento ontológico põe jus­tamente em questão essa assimilação dos juízos atributivos aos juízos existenciais.

No quadro geral da análise da questão da verdade, esses são os problemas que me ocupam atualmente.

Qual é para você a relevância, a importância e a contemporaneidade de Descartes?

Acho que Descartes e um filósofo contem porâneo não em razão das soluções a que chegou, mas dos problemas que descobriu. Se do ponto de vista das soluções, a fi­losofia pós-cartesiana é, muitas vezes, anticartesiana; do ponto de vista das ques­tões levantadas por Descartes, ela é cartesiana.

Os seus textos sohre Descartes não abordam diretamente a problemá­tica moral. Como você se posiciona em relação à moral provisória car­tesiana?

Nenhum dos meus textos aborda questões de filosofia moral. Nisso, Descartes é meu mestre, embora ele tenha tido o projeto de escrever no fim de sua vida um tratado de moral. A morte prematura impediu que realizasse o seu projeto. Sobre o tema, dei­xou-nos apenas a sua “moral provisória” e o seu importante “Tratado das Paixões” .

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

F. fato que os filósofos modernos. Descartes, Leibniz, Kant tinham um profundo conhecimento das questões científicas do seu tempo. Pessoalmente, interesso-me pelas relações da lógica contem porânea com a filosofia.

Como e.xemplo dessas relações entre lógica e filosofia, cito a questão da vali­dade do “argumento ontológico” . Atualmente, em razão da crítica de Kant a Des­cartes, tenho me dedicado ao estudo desse argumento. De uma maneira genérica, podemos caracterizá-lo como um argum ento que pretende inferir das notas carac­terísticas de um conceito o fato de que esse conceito tem uma instância, isto é, que ele não pode ser vazio. Há, assim, uma prova a priori de existência. Descartes adap­tou a prova de S. .Anselmo ao quadro conceituai de sua filosofia. A versão cartesiana foi submetida a duas críticas célebres: a crítica tomásica e a crítica kantiana. Ambas se baseiam em última análise na distinção entre juízos de existência e juízos atri­butivos. O argum ento ontológico tem como conclusão um juízo de existência ne­cessário, isto é, um juízo de existência que não pode ser falso. O que já é proble­mático, pois juízos de existência habitualm ente são juízos contingentes, não-neces- sários. A crítica tomásica ao argum ento ontológico baseia-se na distinção entre as noções de ente e de ser (esse) e na distinção entre o ato de apreender uma essência

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através de um conceito e o ato de julgar que algo existe. Essas distinções justificariam a distinção lógica entre juízo atributivo e juízo existencial. A crítica de Kant consiste em m ostrar que juízos existenciais não podem ser juízos necessários. Para justificar essa afirmação, Kant mostra que a forma dos juízos existenciais é diferente da forma dos juízos atributivos. E essa afirmação é justificada pela célebre tese de que existência não é um predicado. Assim, segundo Kant, um ateu deve aceitar como verdadeira a proposição “Deus é onipotente", em bora considere falsa a proposição “ Deus existe’'. “Deus é onipotente” correlaciona o conceito “Deus” com o conceito “onipo­tente” . Se Deus é pensado. Deus e pensado como onipotente. Mas a proposição “Deus existe”, não correlaciona conceitos, mas correlaciona um conceito com um objeto já dado que é suposto satisfazer o conceito. Donde, a análise do argumento ontológico, em última instância, remete à análise da estrutura dos juízos existenciais.

Quais são as suposições que devemos fazer para considerar verdadeiras essas proposições: “a mesa é branca” e “a mesa existe” .' Qual a relação entre essas pro­posições.' Tem sentido afirmar que “a mesa é branca” , se a mesa não existe? As condições de verdade de um juízo atributivo supõem a existência do que é referido pelo termo-sujeito? A lógica medieval deu grande ênfase à teoria da suposição, isto é, ã teoria que determinava as condições da referência de um termo numa proposi­ção atributiva. A lógica contem porânea tem se dedicado longamente a esse proble­ma. A teoria das descrições de Russell, as reformulações dessa teoria por Stravvson são um exemplo disso. Quine escreveu um magistral artigo “Sobre o que há” , que, sem abordar a questão do argum ento ontológico, formula critérios para determi­nar quais são os compromissos ontológicos que uma teoria assume. É bem verda­de que a análise de Quine e de algumas semânticas da lógica moderna parecem estar com prom etidas com duas teses: a tese que afirma que (a) o conceito de existência é expresso pelo quantificador existencial; e a tese que afirma que (b) o operador exis­tencial deve ser interpretado objectualmente (e não substitucionalmente). Assim, afirm ar que “ x existe” significa afirm ar que um objeto a previamente dado no do­mínio é igual a X . Significa, portanto, dem onstrar que há um .v que é a. Assim, pode- se falar sobre a existência de objetos, caso esses objetos sejam previamente dados. Obviamente, essa análise desqualifica a questão colocada pelo argumento ontológico, pois, se o significado do termo “existência” é dado pelo operador existencial, não tem sentido falar de provas a priori ou de provas conceituais de existência. .Vias, a lógica contem porânea não está comprometida com a interpretação objectual do operador existencial. Assim, a questão sobre a validade do argum ento ontológico ainda não encontrou uma solução definitiva.

Na sua análise, então, o argumento ontológico na formulação de S.Anselmo continua de pé?

Continua como um problema aberto. As críticas de S. Tom ás, as de Kant e as de alguns filósofos analíticos mostram as dificuldades dessa prova. M as, todas essas refutações dependem do quadro conceituai em que são formuladas. Se a existência só pode ser conhecida pelo ato judicativo, a apreensão conceituai não pode ser uma razão suficiente para a prova de existência de qualquer objeto. M as, a existência só pode ser conhecida pelo ato judicativo? Se existência não é um predicado, tal­

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vez o argum ento ontológico não seja válido. Mas, existência não é um predicado? N ão sei se é possível m ostrar a inconsistência do argum ento ontológico, mas acho que, se são aceitos certos pressupostos, é possível pôr em questão esse argumento. A dificuldade consistirá, então, em demonstrar a correção desses pressupostos. Creio que a análise do argumento ontológico depende ao menos do esclarecimento de duas questões prévias: (a) o significado do termo “existência” ; (b) a relação entre juízos atributivos e juízos de existência.

Como você caracteriza a sua relação com a religião e a fé?Você está perguntando ao sujeito empírico ou ao professor de filosofia?

Estamos partindo do princípio de que são a mesma pessoa. [Risos]Estas questões deveriam ser dirigidas ao padre Vaz. Ele tem escrito artigos magis­trais sobre essa questão. Isso não quer dizer que concorde com tudo o que ele es­creveu. Já assinalei numa pergunta anterior as minhas discordâncias. Registro agora duas obviedades. Embora não creia que tenha sentido falar dum a “filosofia cristã” no sentido em que Gilson utilizou esse termo, o encontro da cultura grega com o mundo cultural cristão influenciou decisivamente não só a filosofia medieval, como também a filosofia moderna. N ão creio que este ciclo de influência já tenha se en­cerrado, pois a experiência cristã coloca para o homem questões de ordem ontológica e ética que têm que ser esclarecidas. Sem esses esclarecimentos, a experiência hu­mana se tornaria cega e talvez absurda. A outra obviedade que gostaria de regis­trar é que a filosofia é obra da razão, exclusivamente da razão. E se houver uma oposição entre as razões da razão e as razões da fé (não digo oposição entre razão e fé, mas entre razões da razão e razões da fé), as razões da fé devem se reordenar segundo as razões da razão.

Você já teve fé?Eis uma questão que a cultura contem porânea considera como uma questão que concerne à vida privada e não à vida pública. Mas não me furto a responder a sua pergunta. Fui católico praticante e convicto. Não sou mais. Q uando cheguei a Lou­vain, os estudantes me diziam: “aqui todo mundo acredita na Igreja, mas ninguém acredita em Deus” . Eu gostaria de poder afirm ar ao menos a contraposição dessa proposição (irônica) dos estudantes de Louvain. Em todo caso, ao me fazer essa pergunta, recordo-me de uma frase de Dostoiévski: “Se Deus não existe, tudo é perm itido” (cito essa frase de memória, não sei se ela é textual). E se tudo fosse per­mitido, tenho a impressão que a experiência humana seria absurda. Essa afirmação de Dostoiévski é corroborada por uma tese cartesiana: sem Deus não é possível justifi­car o conhecimento da verdade nem justificar a correção de qualquer ação. Essa tese foi criticada e colocada em questão pelos sucessores de Descartes. Não sei se ela é verdadeira. M as a tenho sempre presente, ao menos, como uma hipótese plausível.

Como você se situa em relação aos problemas de “uma mudança deparadigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada nalinguagem?

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Nessa sua pergunta estão envolvidos dois conceitos; o conceito de metafísica e o conceito de filosofia lingüística. O ra, os objetos da metafísica, ao menos os da me­tafísica cartesiana, eram o sujeito pensante (alma), Deus, e o mundo (os corpos ex­tensos realmente existentes). Hsses objetos se transform am em idéias da razão pura que fazem parte da lógica da ilusão da Dialética Transcendental da Crítica da ra­zão pura. É certo que não é mais possível fazer metafísica sem levar em considera­ção as análises de Kant. É certo também que a filosofia lingüística, que tem sua origem nos escritos de B. Russell, Frege e W ittgenstein, sendo pós-kantiana parece ser antimetafísica. As distinções do Tractatus entre m ostrar e dizer, entre esclareci­mento e conhecimento atribuem ao discurso filosófico apenas a função do esclare­cimento lógico da linguagem, o que reforça essa tendência antimetafísica. Sob esse aspecto, as Investigações filosóficas corroboram as teses do Tractatus com outros pressupostos e argumentos.

.A questão que pode ser colocada é se há uma incompatibilidade lógico-filósofica entre análise conceituai e metafísica, se se entender por metafísica o conhecimento de objetos reais não-empíricos. A filosofia crítica de Kant é incompatível com a meta­física racionalista; as teses de Wittgenstein parecem ser incompatíveis com qualquer metafísica. No entanto, os trabalhos de Strawson e Dummett, dois eminentes filó­sofos analíticos, mostram que é possível retomar alguns problemas clássicos da meta­física, como o problema da verdade, da individualidade, da identidade pessoal, da causalidade, da liberdade, e analisá-los e esclarecê-los ã luz do método analítico. .Vluitos outros filósofos considerados analíticos retomaram questões metafísicas para elucidá- las segundo os métodos lógico-lingüísticos. Penso, por exemplo, em Geach e Ans- combe. Mas permanece ainda a questão: a tese de que a filosofia é análise conceituai e a tese de que a metafísica é um conhecimento de objetos não-empíricos serão teses compatíveis? É claro que o discurso filosófico supõe uma análise conceituai. Resta saber se, além da análise conceituai, o discurso filosófico pode legitimamente pretender a um conhecimento de objetos. Uma resposta a e.ssa questão exigiria um estudo minu­cioso dos textos de Strawson, Dummett, Geach etc. e das novas tendências oriundas da própria filosofia analítica, mas que põem em questão os seus principais postulados.

Em seu artigo “Rumos da filosofia analítica: a questão da representa­ção e do objeto”, você procura mostrar que a filosofia analítica pertna­nece inevitavelmente presa a certas noções da filosofia clássica, como as de representação e objeto. A trajetória de Wittgenstein é apresenta­da cotno um itnportante testetnunho de tal situação, no setttido de que o seguttdo Wittgetisteift conseguiria livrar-se de noções cotno essas, ao tttettos indicar o catninho para isso. A tioção de semelhança de fatní- lia, por exemplo, mencionada por você, teria a virtude de pertnitir “ex­plicar a generalidade dos tenttos sem recorrer ã noção de essêttcia co- ttium: na rede, cada eletttento é semelhante a pelo menos um objeto, tttas netthum eletttento é necessariamente setnelhattte a todos”. Cotno você vê as relações do segundo Wittgenstein cotn a filosofia clássica?

Você cita um antigo artigo meu. Nessa época eu tinha o projeto de refletir sobre alguns conceitos da filosofia clássica, como os conceitos de verdade, representação.

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objeto etc. e de analisá-los do ponto de vista da filosofia lingüística. O conceito de representação me serviu de modelo, pois é uma noção central do cartesianismo e também da Critica de Kant. M as é também um conceito central do Tractatus em virtude da sua concepção da proposição como “ figuração” da realidade. Nas Inves­tigações filosóficas, graças ao conceito de Semelhanças de Família, o conceito de representação não é mais utilizado. A crítica das Investigações consiste em mostrar que o conceito de representação, mesmo se não está com prom etido com uma aná­lise mentalista do conhecimento (isto é, com uma análise do conhecimento a partir do conceito de consciência), está com prom etido com uma concepção essencialista, seja ela lingüística (como a concepção do Tractatus] ou não (como a concepção cartesiana). Para dem onstrar a sua tese, W ittgenstein analisa até o parágrafo 130 (se não me falha a memória) a estrutura da proposição elementar: a função referencial dos termos singulares, a função dos termos gerais, isto é, a função dos predicados etc. A teoria clássica da predicação, como aquela exposta por Aristóteles no livro Sobre a interpretação retomada também por S. Tomás no seu comentário sobre esse livro de Aristóteles, explica a função dos termos gerais pela função do conceito, que representaria uma essência, uma qüididade, abstrata. O enunciado “Esta mesa é branca” é, então explicado, de uma maneira simples: há uma composição que atribui a uma coisa visada pelo termo sujeito uma propriedade (nesse caso uma qüididade acidental) significada pelo conceito predicado. Mas se os termos gerais não represen­tam essências, como se engendra e como se produz um termo geral? C.'omo é legíti­mo atribuir um predicado a um objeto, referido pelo conceito-sujeito, sem supor que esse predicado, enquanto termo geral, representa uma essência abstrata? A noção de Semelhanças de Família responde a essa questão, o que permite explicar a pre­dicação sem recorrer a uma concepção tradicional da função dos termos gerais.

As Investigações fazem uma interessante crítica a algumas das teses clássicas da filosofia. Visando a teoria do Tractatus, elas envolvem na sua crítica muitos te­mas e muitas teses da filosofia clássica. As Investigações têm, sem dúvida, uma função terapêutica. Da célebre análise da linguagem privada pode ser extraída uma pode­rosa crítica ã filosofia da consciência cartesiana. Da análise da noção de Regra e de Uso de uma Regra pode também ser extraída uma reavaliação da Analítica dos princípios da Crítica da razão pura. Mas as Investigações parecem confinar o dis­curso filosófico apenas em uma função terapêutica, excluindo de sua natureza a pos­sibilidade de qualquer pretensão construtiva e sistemática. Repensar as Investiga­ções a partir de um ponto de vista transcendental poderia ser uma tarefa interes­sante para a filosofia analítica contem porânea. Alguns já esboçaram esse projeto, mas ele ainda não encontrou uma formulação convincente.

Como você avalia a Interpretação de Giannotti em seu livro Apresenta­ção do mundo: considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein?

Admiro os textos filosóficos de G iannotti pela sua pretensão, às vezes muito bem sucedida, de fazer filosofia e não apenas análise estrutural de texto. N o entanto, Giannotti não é um cartesiano. Os seus textos não são claros. E onde não há clareza, a profundidade real da análise pode ser interpretada como confusão conceituai. Pode- se retorquir que Kant também não era cartesiano. Creio que a filosofia de Kant é o

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fio condutor da interpretação de W ittgenstein apresentada nesse livro. Analisando temas da filosofia de W ittgenstein, Giannotti parece estar dialogando com Kant. Sob esse aspecto, essa interpretação torna Wittgenstein um filósofo bem mais interes­sante do que se ele fosse interpretado como um filósofo que ignora e, por isso mesmo, rompe com a tradição filosófica. O apêndice do livro, sobre a forma do juízo em Kant. que prolonga a apresentação rápida formulada no primeiro capítulo, é de difícil leitura, embora seja original e bastante penetrante pelo que pude compreender.

Em nossa conversa, você nos disse que temos condições hoje de pensar com mais clareza os problemas metafísicos devido, por exemplo, aos novos instrumentos lógicos de que dispomos. Nesse sentido, há progresso na filosofia?

N ão há dúvida que podemos falar de uma história da matemática, de uma história da lógica no sentido de que as teorias (matemáticas ou lógicas) contemporâneas são mais abrangentes do que as teorias anteriores e que problemas abertos ou conside­rados indecidíveis encontram soluções nas teorias contemporâneas. H á, dessa m a­neira, uma história das ciências. .Mas será que podemos falar de história da filosofia.^

A filosofia não é nem uma monótona repetição de um passado sem presente nem e uma constante invenção de um presente sem passado. De um lado, de uma certa maneira, todos os filósofos clássicos são contem porâneos, em bora poucos contem porâneos possam ser considerados clássicos. Filósofos clássicos podem ser considerados contem porâneos pelo fato de podermos utilizar as suas análises para esclarecer uma questão contemporânea. Essa afirmação ainda se justificaria em razão de não podermos ignorar uma análise clássica sobre uma questão, se quisermos esclarecê-la, pois poderemos ser levados a colocar chaves em portas arrom badas. Por outro lado, se devemos levar em consideração as análises clássicas e se pode­mos e, se até mesmo devemos, incorporar novos instrumentos conceituais a essas análises, é claro que nesse caso pode ser formulado um novo esclarecimento para uma (antiga) questão. .Além disso, antigas análises podem não ser mais pertinentes tendo em vista os novos instrumentos conceituais. Em princípio, nenhuma análise clássica deve ser ignorada por ser clássica nem, pela mesma razão, nenhuma análi­se clássica por ser clássica deve ser utilizada.

O que significa então dizer que hoje nós podemos pensar com maior clareza?

Gostaria de responder a essa questão a partir de um exemplo que mostra como e por que julgo que uma análise histórica contribui para o esclarecimento conceituai de um tema.

Tomo como ponto de partida a versão cartesiana do argumento ontológico. Ela tem o mérito de ser uma questão que foi longamente analisada na história da filosofia e que parece não ter encontrado até agora uma elucidação satisfatória. Para analisar o argum ento ontológico cartesiano é legítimo, ao menos inicialmente, se abstrair de suas críticas inspiradas quer na filosofia de S. Tomás quer nas análises de Kant. Nessa etapa inicial, o método estrutural de análise de texto é valioso, pois ele permite a reconstrução imanente da prova segundo os pressupostos, os concei-

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tos e os argumentos do próprio texto. A reconstrução imanente do argum ento não elimina as dificuldades da prova, ao contrário, ela permite tornar explícitas essas dificuldades. Estas talvez pudessem, por hipótese, ser resolvidas no contexto do quadro conceituai cartesiano. Nesse caso, o argum ento seria considerado plausí­vel, sob a condição da aceitação de seus pressupostos. Mas esses pressupostos po­dem ser colocados em questão de um ponto de vista externo ao sistema. Supondo que tenham sido explicitados todos os pressupostos internos necessários ã demons­tração do argum ento, questões externas ao sistema poderiam, entretanto, proble- matizar essa reconstrução imanente. Por exemplo, suponham os que Descartes ti­vesse corretam ente deduzido da idéia clara e distinta de Deus (segundo os pressu­postos do sistema) a sua existência. Nessa prova. Descartes teria aceitado sem tema- tizar (como parece afirm ar nas suas Respostas a Gassendi) que a existência é uma das perfeições de Deus, isto é, é um atributo ou um predicado. Ora, Kant afirma que a existência não é um predicado. Esse problema não é uma questão cartesiana, pois Descartes julgava evidente a tese de que a existência é um predicado. Mas, a afirm ação kantiana de um ponto de vista externo põe uma dificuldade real para o sistema cartesiano. Gomo contornar ou responder a essa dificuldade do ponto de vista cartesiano? Se for possível reconstruir a prova sem essa suposição (o que acho pouco provável), fica contornada a dificuldade. Nesse caso, a prova teria sido refor­mulada de tal maneira que ela responde ã questão kantiana. Mas, se isso não for realmente possível, fica explícito não só que a prova cartesiana depende desse pres­suposto, como também que ela não seria válida caso a existência não fosse um predicado. M as, a existência não é um predicado? Esse problema tem que ser es­clarecido para uma correta avaliação das formulações do argumento ontológico que têm essa pressuposição. Uma resposta a essa questão poderia ser elaborada a p ar­tir, por exemplo, do quadro conceituai kantiano. Quais seriam as razões kantianas que mostrariam que a existência não é um predicado? Quais os pressupostos do argum ento kantiano? O mesmo método de esclarecimento que foi aplicado ao a r­gumento ontológico cartesiano deve agora ser aplicado ao argumento kantiano, que pretende dem onstrar que a existência não é um predicado. Obviamente, a análise não termina com a problem atização da reconstrução kantiana. Um recurso às se­m ânticas das lógicas contem porâneas é evidentemente útil. Em todo caso, uma análise do argumento ontológico nos conduziu a reconstruir o argumento cartesiano, a tematizá-lo a partir de outras perspectivas. Essa análise sobre esse problema de­veria term inar com a formulação de uma nova prova do argumento ontológico que não esbarrasse nas dificuldades encontradas pelas antigas formulações.

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu­turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

Como cidadão tenho uma vaga visão dessa utopia: uma sociedade justa, igualitá­ria, sem discriminação dc raça, credo etc. Como filósofo não tenho me dedicado a essas questões. Portanto, não sei form ular em termos precisos os conteúdos e as condições de realização dessa sociedade utópica.

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Principais publicações:

1980 Filosofia da linguagem e lógica (co-autor) (São Paulo; Loyola);1992 Evidência e verdade no sistema cartesiano (São Paulo: Loyola);1994 “Pode o Cogito ser posto em questão?”, revista Discurso, n“ 24;1997 “Idealismo ou realismo na filosofia primeira de Descartes. Análise da crí­

tica de Kant a Descartes no IV" Paralogismo da CRP fA |” , Analytica, vol.2, n” 2;

1998 “ Do eu penso cartesiano ao eu penso kantiano” , Studia Kantiana, vol. 1,

Bibliografia de referência da entrevista:

Aquino, T. de. Suma teológica. Livraria Sulina.Aristóteles. Metafísica, Madri: Editorial Cîredos.__________ . Categorias, Lisboa: Guimarães.C arnap, R. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Descartes, R. Meditações, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.__________ . Princípios de filosofia, Lisboa: Guimarães.__________ . Tratado das paixões, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.__________ . Regras para a direção do espírito, Lisboa: Edições 70.Espinosa, B. Ética, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.__________ . Tratado da correção do intelecto, coleção Os Pensadores, Abril Cul­

tural.Guéroult, M. Descartes selou l'ordre des raisons. Paris: Aubier.Gilson, E. Études sur le rôle de la pensée médiévale dans la formation du système

cartesien, Paris: Vrin.Kant, I. Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.M aréchal, J. Le point de départ de la métaphysique, Bruxelas: Ed. Universelle. M arx, K. G Capital, coleção Os Economistas, Abril Cultural.Quine, W. V. Relatividade ontológica e outros ensaios, coleção Os Pensadores, Abril

Cultural.Russell, B. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural.W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp.__________ . Investigações filosóficas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.

Raul Landim Filho 271

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T ércio S am paio Ferraz Jr.; “ Para m im , ao c o n trá rio , talvez a m aio r p a rte dos d iscursos h u ­m an o s n ão seja rac ionai. A rac io n ah d ad e é apenas um a fo rm a possível, en tre o u tra s , de en fren ta r a situ ação com u n ica tiv a , de en fre n ta r o jogo en tre em issor e recep to r, en tre o ra d o r e ouv in te — um jogo que é, na verdade, um jogo de p o d e r” .

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TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. (1941)

Tércio Sampaio Ferraz Jr. nasceu em 1941, em São Paulo (SP). Ciraduou-se em Direito e em Filosofia pela Universidade de São Paulo, tendo obtido o título de doutor em Filosofia pela Universidade de Mainz (Alemanha) e o título de doutor e de livre-docente em Direito pela USP. Foi secretário executivo do M inistério da Justiça (1990-1991). É professor de Filosofia e Teoria Geral do Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor titular da Faculdade de Direito da USP. Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2000.

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhebn Meister em dois romances. Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri­meiro, o foco está posto na fonnação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que o senhor nos falas­se de sua fortnação intelectual?

Creio que é um bom mote, sim. Minha formação intelectual tem um aspecto que alcança até a adolescência. Como muitos filósofos pelo mund(5, fui aluno de jesuí­tas — no Colégio São Luís, aqui em São Paulo —, e de certa forma sofri essa in­fluência jesuítica, pelo menos em termos de disciplina, disciplina de estudos etc. Ao mesmo tempo, ocorreu uma coisa bastante peculiar: na minha ciasse, desde os 11 anos mais ou menos, fui colega de um grupo que era o núcleo do que viria a cha­mar-se, anos mais tarde. Tradição, Família e Propriedade. Nunca fui da TFP, mas a presença desse grupo na classe — cerca de quatro alunos em um total de apenas doze — era algo significativo e que me marcou, pois durante quatro, cinco anos nós mantivemos constantes discussões, que envolviam religião, com portam ento perante a sociedade, política, e assim por diante. Tudo isso fazia parte do nosso dia- a-dia de adolescentes, e portanto foi algo im portante nesse começo da minha preo­cupação com temas de filosofia.

Nessa mesma época, pelo menos durante uns quatro anos, tive um colega, Francisco Simões, cujo nome costumo sempre lembrar. Era um rapaz quieto, gostava de estudar e, desde os 12 anos, lia filosofia por conta própria. Para nós era um garoto estranho, que com essa idade aparecia todos os dias com o jornal O Estado de S. Paulo debaixo do braço, e que, não obstante isso, foi assumindo aos poucos uma posição política que dizia ser socialista. Isto começou a incomodar os padres, por­que o pessoal da TFP, evidentemente, reclamava: "Com o é possível um socialista aqui dentro?!” . Mas ele ainda assim m antinha a sua posição. E como eu gostava muito dele, e conversávamos bastante, isso acabou sendo, digamos, o outro lado do meu despertar para os assuntos filosóficos. Ou seja, era de um lado a TFP, e, de

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outro, alguém que se dizia socialista! Uma vez chegamos até a fazer uma discussão sobre compatibilidade entre socialismo e cristianismo, aberta para toda a classe, em que fiquei do lado dele, contra a turm a da TFP (que, aliás, ainda não era conheci­da por esta siglal. Enfim, esses são alguns dados iniciais de minha formação.

Já quando entrei na Faculdade de Direito da USP, em 1960, fiquei muito im­pressionado com o professor Goffredo [da Silva Tellesj, nas suas aulas de “Intro­dução à Ciência do D ireito”, e foi por influência dele que fui prestar vestibular para filosofia — que me pareceu então mais im portante que o direito. Apesar de passar também na PUC, entrei na USP, me beneficiando na época de algo que hoje seria impossível: em bora já fosse proibido, na época, cursar simultaneamente duas fa­culdades na USP, não havia com putador, e portanto o controle era impossível.

N a Faculdade de Filosofia, fui colega de M arilena Chaui, M aria Lúcia M on­tes, Rubens Rodrigues Torres, dentre outros; Porchat, recém-chegado da França, foi meu professor; Bento Prado, que estava de saída para a França, me deu aula tam ­bém; assim como [João] Cruz Costa, Lívio [Teixeira], Lebrun, Debrun, Giannotti e dona Gilda [de Mello e Souza] na área de estética. Enquanto isso, no curso de direito, houve duas influências decisivas no que diz respeito ã filosofia: o próprio professor Goffredo, no princípio do curso, e mais tarde, obviamente, o professor Miguel Reale. Vivi o confronto das duas orientações, e senti essa diferença em ter­mos de formação — uma diferença que posso resumir com a seguinte história. Q uan­do eu e Celso Lafer estávamos no quinto ano da Faculdade de Direito, o professor Miguel Reale, tendo em vista o nosso interesse, convidou-nos para assistir às suas aulas na pós-graduação. Numa certa altura, comentei com o Celso que os seminá­rios que o professor Miguel Reale promovia não tinham nada a ver com o estudo de filosofia, e ele me retrucou que eu estava sendo muito parcial. De fato, o estudo a que eu estava acostumado na Faculdade de Filosofia era aquele orientado pelo ângulo dos estruturalistas franceses, era estudar história da filosofia, estudar os sistemas filosóficos, com todo o rigor possível, enquanto o estilo do professor Miguel Reale era completamente aberto. O curso que ele estava dando na época, por exem­plo, era sobre Vico, mas não havia aquela preocupação de rigor na interpretação do seu sistema filosófico; o que importava era pensar os problemas que Vico levan­tava. A princípio achei isso muito estranho, mas aos poucos fui percebendo que ele simplesmente estava fazendo uma coisa diferente — e por que não? Mas essas ques­tões ficaram mais no inconsciente.

A verdade é que, terminado o curso, surgiu para mim a possibilidade de ir para a Alemanha. Como qualquer bom aluno da Faculdade de Filosofia, o meu sonho era estudar fora. M as a concorrência era dura. Foi quando me ocorreu uma dessas sortes que às vezes a gente tem na vida. Eu tinha uma professora de inglês na Cul­tura Inglesa, a sra. Livonius, com quem eu conversava muito a respeito de meus projetos — estava estudando inglês e francês com o objetivo de conseguir bolsa para estudar filosofia num país de língua inglesa ou francesa — , e que era casada com um médico teuto-brasileiro. E ela me dizia que eu devia desistir de ir para a Ingla­terra, que ela conhecia bem por ser filha de ingleses, e mesmo para a França, por­que o ideal mesmo seria ir para a Alemanha. Ao que eu respondia: “Eu não sei nada de alem ão!” . .Mas ela não me dava ouvidos. Por volta de agosto de 1964 — quan­

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do estava me form ando nas duas faculdades — , ela me disse que estava vindo para o Brasil um professor alemão cujo sobrinho, que era uma espécie de filho para ele, era muito amigo do seu marido. Ele iria ficar hospedado na sua casa e ela queria apresentar-me a ele, que era também, por coincidência, bastante amigo do profes­sor Reale. Então, numa festa, em homenagem ao professor alemão, arranjaram um encontro entre mim, ele e o professor Reale, que, muito cam arada, me fez alguns elogios. No dia seguinte, esse homem, que se chamava Von Rintelen, me encontrou na casa da sra. Livonius e perguntou se eu não queria ir para a Alemanha. “Eu ouvi dizer que você está querendo ir para a França, mas deixe a França para depois. Primeiro vá estudar filosofia na Alem anha.” Eu disse que não sabia nada de ale­mão, ele respondeu: “ O alemão o senhor aprende na Alem anha” ! E pediu que eu o procurasse cm maio na Alemanha. Depois não nos falamos mais, ele foi embora, eu esqueci o assunto, não acreditava que fosse resultar em alguma coisa. Mais ou menos em dezembro, chegou uma carta da Alemanha: “Bolsa de estudos concedi­da pelo Estado da Renânia-Palatinado etc. etc.” .

Bem, aí fiquei desesperado. Tinha que aprender alemão até maio e, quando fui tentar, o desespero aum entou ainda mais, porque vi que era algo absolutam en­te impossível para três meses e meio! [risos] Até que tentei, mas fui para a Alema­nha sem saber praticamente nada. Lembro-me que cheguei lá no dia T de maio, e o professor, que devia ter então uns 68 anos, foi me receber com um doutorando seu, e, embora eu tivesse ensaiado algumas frases para essa hora, conversamos em espanhol. Foi assim que teve início a fase de minha formação alemã, bastante dife­rente daquela que eu tinha tido até então na M aria Antônia, de linha francesa.

Essa ida para a Alemanha interrompeu então uma série de artigos queo senhor vinha publicando em periódicos católicos. Como foi essa mili­tância católica?

Bem, o fato de eu estar cursando a Faculdade de Filosofia da USP não fez com que eu perdesse a ligação que tinha com os jesuítas, a qual perdurou depois que saí do colégio — sobretudo com um padre (Ghislandi) que eles haviam nom eado para cuidar de uma entidade que se chamava Instituto Sabóia de M edeiros — nome de um jesuíta da época — , e que era m uito ligada a questões sociais da Igreja. Esse padre, já na época do colégio, tinha criado uma espécie de ação social, ã moda do Abbé Pierre, numa favela de São Paulo, seguindo o princípio de que os favelados deveriam tom ar consciência de sua situação e passar a fazer reivindicações por si mesmos, criar associações etc. E por meio disso foi que eu tive um primeiro conta­to com as ações sociais da Igreja. Q uando já estava então na faculdade, ele me cha­mou para trabalhar com ele naquela instituição, na qual havia uma revista cham a­da Carta aos Padres. Como eu gostava muito de escrever, ele quis que eu fosse o redator-chefe da revista, coisa que aceitei. Lá escrevia sem nenhuma preocupação acadêmica: como um jornalista, simplesmente “chupava” idéias alheias, daqui e dali, e ia jogando nos meus artigos. D urante uns quatro anos fiquei fazendo isso.

E havia alguma relação dessa revista, ou desse instituto, com outrosmovimentos católicos?

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N ão, não havia. Era uma atividade dos jesuítas que não se vinculava a outras or­ganizações ou movimentos. Agora, é claro que, dada também a minha inserção na Faculdade de Filosofia, nas discussões da época (1961, 1962, 1963) eu acabava ab­sorvendo as idéias da chamada esquerda católica, sobretudo de Tristão de Athayde, e as trazia para a Carta aos Padres. O que acabou fazendo com que, em 1963, eu levasse uma enorme reprimenda jornalística, de alguém que na época era editorialista do Estadão para assuntos religiosos, e que era extremamente conservador: saiu um editorial, e depois um artigo assinado por ele próprio, em que a revista Carta aos Padres era acusada de fomentar idéias perigosas junto ao clero — o que me deixou muito contente. Mas, enfim, essa era toda a ligação que existia entre a revista e outros movimentos católicos.

O senhor já conhecia na época os escritos do padre Henrique Vaz?Eu conheci o padre Vaz quando estava no segundo ano da Faculdade de Filosofia. Ele era um jesuíta já bastante conhecido. Eu havia sido aluno do seu irmão, que hoje é bispo. Em 1962, eu e dois colegas, sabendo que ele estava em Nova Friburgo, pedimos que nos recebesse. Ele aceitou. Fomos então para lá, onde fizemos com ele algo de parecido com esta nossa conversa. E eu, apenas aluno de segundo ano, fiquei impressionadíssimo ao ver as suas opiniões sobre marxismo, revolução, o papel da violência na história etc. Depois desse dia, deixei de ter contato com ele, mas passei a ler assiduamente os seus escritos.

Com relação à Alemanha, sabe-se que o senhor esteve lá para três es­tágios de pesquisa: 196S-68; 1970-71; 1972-73. Como o senhor ava­lia esses diferentes momentos, e qual a relação que estabeleceria entreeles?

O primeiro foi de doutoram ento. Saí do Brasil com o objetivo de me fixar na filo­sofia do direito, porque acreditava — e isso viria a revelar-se correto mais tarde — que a minha perspectiva de carreira acadêmica era na faculdade de direito, e não na de filosofia. Mas o fato é que fui para a Alemanha carregando comigo aquela dupla influência: de um lado, da filosofia do direito à Miguel Reale; de outro, da formação estruturalista na Faculdade de Filosofia da USP. Basta ver que a minha tese, escrita na Alemanha, conjugava as duas coisas: na escolha do tema — Emil Lask —, a influência do professor Reale, que sempre reconheceu esse autor como um de seus precursores; na elaboração do trabalho, o método rigoroso da Maria Antônia — cheguei até a introduzir a tese com uma menção a Goldschmidt (o tex­to “Tempo lógico e tempo histórico na interpretação dos sistemas filosóficos” ). E isso acabou dando bons resultados, porque um dos motivos pelos quais os alemães gostaram da tese foi o fato de ela ser bem estruturada. Diria portanto que esse pri­meiro período na Alemanha foi um período de elaboração de tese, durante o qual conservei fortemente meus “pré-conceitos” .

Não obstante, me aconteceu também uma coisa nova de considerável im por­tância. Enquanto estava lá, comecei a freqüentar as aulas de filosofia do direito na Universidade de M ainz, e o professor era alguém que iria m arcar toda a mi­nha trajetória posterior: Theodor Viehweg. Antes da Alemanha, só tinha ouvido

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falar dele numa ocasião, pouco antes de partir. Celso Lafer havia encontrado um livro dele. Tópica e jurisprudência, e me havia dito: “Olhe, parece um livro inte­ressante! E o autor está nessa universidade para onde você está indo. Por que você não tenta entrar em contato com ele?” . Essa era toda a referência que eu tinha de Viehweg antes de partir. E meu contato com ele, de fato, acabou se tornando bem mais im portante do que aquele que tinha com Von Rintelen, pois ele me apresen­tou um outro mundo — um m undo que não cheguei a aproveitar na tese, mas que ficou na minha cabeça dali em diante: foi dele que veio todo o universo da retóri­ca, da comunicação etc.

E a conseqüência disso foi que, quando voltei ao Brasil, me esqueci rapida­mente de Emil Lask. Cheguei a me valer da tese feita lá para fazer aqui uma segun­da tese, para o doutoram ento em direito — que me permitiu entrar para a Facul­dade de Direito como assistente do professor Reale — , mas o período de dois anos em que fiquei aqui, antes de voltar para a Alemanha, fez com que percebesse que a influência do Viehweg tinha sido muito maior do que imaginara a princípio. H ou­ve uma ocasião, em especial, que deixou isso bastante claro. Eu e o professor Reale vínhamos cam inhando juntos pelo Largo São Francisco e, na entrada da Faculda­de, encontram os um outro professor. O professor Reale o apresentou a mim — era o professor Lourival Vilanova —, e, perguntando se eu não queria assistir à aula do seu curso de pós, que nesse dia ia ser dada por esse professor, comentou com ele: “Esse aqui é meu assistente. Ele andou estudando lá na Alemanha, e voltou meio influenciado por esse negócio de retórica, Viehweg...” . Fu fiquei meio constrangi­do, disse que não era bem assim, e ele encerrou o assunto dizendo: “Um grande mestre! Um grande m estre!” (referindo-se a Viehweg).

Em 1970, quando voltei para a Alemanha, fui direto a Viehweg, com propó­sitos bastante diversos daqueles de minha primeira ida, pois toda a minha relação com o neokantism o, culturalism o jurídico, tridimensionalismo, encontrava-se já bastante esmaecida. E tanto essa segunda estada como a terceira caracterizaram-se pelo estudo aprofundado dos temas da retórica, semiótica, filosofia da linguagem etc. .\Las foi na terceira que aconteceu uma coisa bastante im portante em minha vida. Entre essas duas estadas eu já tinha escrito, ainda que sem maiores preten­sões, o artigo "A filosofia como discurso aporético” , no diálogo com [Oswaldo] Porchat. E quando cheguei à Alemanha, nessa terceira vez, lembro-me de ter con­versado com meus colegas de lá, dizendo a eles: “Acho que vou fazer uma coisa ousada. Vou tentar escrever sobre, e discutir, um problema filosófico. N ão quero mais interpretar filósofos” . “ E daí?” , responderam eles, que não viam nada de anormal no que eu estava dizendo. Acontece que, ao aprender filosofia com rigor estrutural, eu tinha sofrido também aquela verdadeira castração na Faculdade de Filosofia (nada além da história da filosofia), e isso era algo que eles não compreen­diam. Eu dizia: “Tenho uma enorme vergonha de fazer isso, mas ao mesmo tempo tenho uma enorme vontade!” |risos]. E eles respondiam: “Pois então faça! O má­ximo que pode acontecer é ficar ruim !” . De fato, eu arrisquei, e foi dessa aventura que saíram dois livros: Direito, retórica e comunicação e Teoria da norma jurídica.

E Niklas Luhmamt? Como o senhor chegou a ele?

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Foi também nessa terceira vez, por indicação de um professor cham ado Ballweg, que era na época assistente de Viehweg. Ele havia lido Luhmann e, conhecendo os meus interesses, me disse: “Olhe, esse autor aqui é muito interessante. É meio difí­cil, tem muita psicanálise, mas acho que você vai gostar” |risos|. O Luhmann esta­va apenas surgindo nesse momento, quase ninguém o conhecia, mas comecei a lê- lo. E aí surgiu um grande confronto, porque o Viehw'eg era contra as idéias do l.uhm ann; ele era o homem do problema, enquanto este era o homem do sistema! .Mas ambos para mim eram geniais, e comecei a fazer um esforço, talvez não muito consciente a princípio, de juntá-los — que foi o que acabei fazendo em meus trab a­lhos. Se ficou bom, não sei, mas o fato é que juntei, de um lado, Viehweg, um filó­sofo problemático, e, de outro, Luhmann, um filósofo sistemático.

Como o senhor avalia os seus momentos de volta ao Brasil? Que dife­renças o senhor percebia entre os ambientes intelectuais da Alemanha e do Brasil? Houve mudanças significativas no panorama cultural bra­sileiro entre as suas idas e voltas?

Comecemos pela primeira ida, em 1965. A grande diferença que senti na Alema­nha, depois de ter sido aluno, aqui, tanto da Faculdade de Direito como da de Filo­sofia, foi a existência física de uma com unidade universitária: especialmente por m orar no campus, conheci um mundo que então não havia aqui. Ainda que hou­vesse uma comunidade acadêmica na Faculdade de Direito, era muito mais uma com unidade de farra, de sair à noite, de fazer política, do que uma com unidade de estudo. .Mesmo na Filosofia, a gente se reunia mais para discutir política, questões do Brasil etc. Enquanto na Alemanha as discussões giravam em torno da própria filosofia, dos assuntos que estudávamos. Por outro lado, se a princípio tinha um certo medo do que seria estudar filosofia na Alemanha, percebi que a minha for­mação na M aria Antônia era excelente, e nada do que encontrei por lá me assustou.

Agora, a volta para o Brasil foi sempre um terror, sobretudo na primeira vez. Depois de ter concluído minha tese, Viehweg me convidou para ficar lá como seu assistente, e, embora lisonjeado, recusei o convite, explicando-lhe que acreditava ter uma certa missão a cumprir no Brasil. Enquanto lá eu não passaria de um assisten­te entre tantos outros, ou mesmo de um professor entre tantos outros, num mundo em que a filosofia acadêmica era algo perfeitamente consolidado, no Brasil poderia exercer um papel talvez mais im portante. N o entanto, o que encontrei aqui foi algo terrível. Se, antes de ir, já havia conhecido a revolução de 64, tratava-se de uma revolução branda, enquanto na volta o que encontrei foi o Al-5. Flouve um episódio, inclusive, bastante marcante. Eu tinha ido ã Faculdade de Filosofia rever os conheci­dos, encontrando alguns, conversando um pouco, e, quando estava saindo, na esqui­na da rua M aria Antônia com a Dr. Vilanova, encontrei o professor Antonio Cândi­do, com mais algumas pessoas, e começamos a conversar. De repente, passou uma tropa que entrou na Faculdade e começou a arrebentar tudo o que podia. O professor Antonio Cândido fez menção de ir atrás, e eu fui um dos que o impediram, dizendo: “Professor, a gente precisa do senhor vivo!” — algo de que ele se lembra até hoje. Enfim, esse episódio ilustra bem o que encontrei aqui do ponto de vista político.

Do ponto de vista intelectual, por outro lado, o trabalho que passei a desen-

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volver aqui, comparado à comunidade acadêmica de lá, foi absolutamente frustrante. Embora satisfeito com as aulas que dava como assistente do professor Reale, às vezes até o substituindo, percebi que aquela comunidade acadêmica me fazia falta. Co­meçava a esboçar-se então aquilo que anos mais tarde, quando por razões de so­brevivência cheguei a lecionar em nove faculdades ao mesmo tempo, viria tornar- se mais nítido: aqui a tendência era eu tornar-m e “ mestre-escola universitário”, isto é, simplesmente dar aula. O contato acadêmico propriam ente dito era paupérrimo. E, com o correr do tempo, isso tudo me desgastou a tal ponto que num certo dia cheguei ao professor Reale e disse que queria voltar para a Alemanha. Consegui a bolsa da H um boldt e, apesar de ter apenas dois anos de magistério na Faculdade, o professor Reale me concedeu a licença.

Q uando cheguei de volta à Alemanha, no entanto, em fins de 1970, o ambiente de lá havia m udado também. No meu primeiro período, de 1965 a 1968, tinha vi­vido aquilo que chamo de a última fase idílica do ensino universitário alemão. Em­bora tenha tido a experiência de M aio de 1968 lá, foi apenas na segunda ida que pude perceber as mudanças profundas por que a universidade havia passado: Uni­versidade Livre de Berlim, participação dos universitários na direção, professores acuados etc. E quando voltei para o Brasil, depois dessa segunda vez, aconteceu algo parecido, porque 1968 também tinha repercutido aqui, e as conseqüências também tinham sido sentidas um pouco depois. Mesmo numa faculdade tradicional como a do Largo de São Francisco, estava havendo uma reestruturação radical da vida acadêmica: os velhos catedráticos desaparecendo, livre-docentes e assistentes po­dendo dar aula, os alunos tendo outra atitude, e assim por diante.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira ”? Como o senhor vê asrelações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Comecei a conhecer esse tema com o professor Reale, de quem sempre ouvi que não apenas era possível uma filosofia brasileira, como era necessário falar sobre isso, porque seria um sinal da m aturidade de um povo. De outro lado, durante todo o meu curso na M aria Antônia ouvi o inverso do professor Cruz Costa, que dava ri­sada dessa história de filosofia brasileira, de filosofia do direito brasileira. Ele até admitia que pudesse haver uma filosofia na literatura brasileira, mas não uma filo­sofia como tal. O fato é que vivi essa polêmica, conhecendo os dois lados, durante a minha época de faculdade.

E evidente que, do ponto de vista do que aprendi na M aria Antônia, falar em filosofia no Brasil é um tanto atrevido, ao menos pensando naquela filosofia que nós estudávamos fazendo leitura estrutural. Há cerca de dez anos, fui convidado para um simpósio, na Universidade La Sapienza, em Roma, sobre a obra de Pontes de .Miranda. Havia professores de direito civil, outros de direito rom ano, e eu esta­va lá como representante da filosofia do direito, devendo analisar os aspectos filo­sóficos dessa obra. Q uando estava me preparando para esse simpósio, fui rastrear os textos do Pontes de M iranda, com os olhos de um estruturalista, procurando analisar o seu conceito de responsabilidade. E percebi que não batia nada com nada! Evidentemente, eu não ia dizer isso com todas as letras, pois era um simpósio em homenagem a ele. .Mas procurei fazê-lo de forma suavizada.

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Esse episódio foi im portante porque me mostrou que, de fato, se nós formos pensar a questão do ponto de vista rigoroso da M aria Antônia, que examinava a ordem das razões, falar em filosofia brasileira é algo que não pode ser levado a sério. Por outro lado, no entanto, se encararm os o problema com outros olhos, com os olhos do professor Reale por exemplo, deixando de lado aquele rigor estrutural, podemos ler Tobias Barreto sem pretender encontrar nele um Kant, ou ler Pontes de M iranda sem pretender encontrar nele um Augusto Comte. A ordem das razões, neste caso, é uma outra ordem, em que há uma espontaneidade com que, bem ou mal, as pessoas reagem. Podem não estar reagindo ao que acontece no Brasil, e sim ao que está acontecendo lá fora, mas é de qualquer forma uma reação.

Portanto, não iria nem ao extremo de desconsiderar por inteiro essas obras e dizer ‘Msso não presta” , nem ao extremo de dizer “existe aí uma filosofia brasilei­ra” . Eu diria que existe uma produção filosófica no Brasil que é boa, mas que não teve talvez a qualidade de produzir pensadores de repercussão mundial. Eu me lem­bro de ter lido certa vez um artigo, na Alemanha, que comentava a produção filo­sófica ao redor do mundo neste século. O articulista reconhecia haver uma filoso­fia oriental, com uma série de características peculiares, falava da impressionante produção européia, mecionava a filosofia americana como uma filosofia que en­controu uma forma própria de pensar, e, ao falar da América Latina, dizia que, embora havendo uma produção acadêmica consistente, não se havia formado ali uma forma própria de pensar. E essa posição me parece mesmo a mais correta. Desenvolvemos uma espécie de “ filosofia reflexa” .

Eram bastante tensas as relações entre o Instituto Brasileiro de Filoso­fia, fundado e presidido por Miguel Reale, e o Departamento de Filo­sofia da USP, dirigido por João Cruz Costa. Como o senhor vê essas diferençasf

Creio que em ambos os lados há um distanciamento de fenômenos concretos como, por exemplo, o próprio fenômeno jurídico. N o caso do professor .Vliguel Reale, em­bora ele seja evidentemente um pensador integrado, na sua vida acadêmica e na sua vida política, o forte de sua obra é uma especulação que é muito mais um diálogo com a filosofia do direito européia. N o caso da M aria Antônia, por outro lado, também não se desenvolveu uma reflexão cuja raiz estivesse na nossa cultura. Aquela interdição do filosofar fez com que ficassem estudando os sistemas dos outros, sem sequer dialogar com eles — justamente o que Porchat, num enorme atrevimento, tentava quebrar naquele nosso livro {A Filosofia e a visão comum do mundo). Na verdade, o que a gente começava a perceber é que havia problemas que mereciam ser discutidos a partir de uma experiência nossa. Agora, a questão é saber se alguém conseguiu fazer isso, se alguém conseguiu produzir, nesse sentido, uma filosofia brasileira. E a minha impressão é que isso ainda não chegou a acontecer.

Tenho um amigo alemão, Wolf Paul, que sempre me faz essa pergunta. Ele vem com alguma freqüência ao Brasil e fica intrigado com o fato de que nos con­gressos brasileiros só se discute Hegel, Kant etc. e de que nunca haja uma discus­são sobre a filosofia brasileira. Q uando escrevi o meu livro Introdução ao estudo do Direito, mostrei a ele, e o seu com entário foi: “Perfeito para uma universidade

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alemã! Mas você quer que os alunos aprendam isso no Brasil?!” . Aí fiquei bravo e respondi: “ Quero, sim!” . F., embora consciente das dificuldades, acho realmente que é um livro para ser lido pelos alunos de primeiro ano, porque esses ainda não têm os vícios da tradição, ainda são como uma página em branco. Agora, de qualquer maneira, é um livro que emergiu do meu diálogo com as tendências que estudei na Furopa, e não de uma problemática genuinamente brasileira.

Ainda que feitas todas essas ressalvas, o senhor diria que há filósofos brasileiros? Quais seriam os mais importantes?

Nesse sentido, do diálogo com o Primeiro .VIundo, eu diria que há. N o sentido das raízes em uma problemática brasileira genuína, não. A não ser, talvez, por Vicente Ferreira da Silva, que me parece o único a fazer algo que se apro.ximaria disso, pro­curando ir pelo lado do carnavalesco existencial. Mas mesmo ele não chegou a con- segui-lo. Agora, do ponto de vista do diálogo, da filosofia como reflexo dialogante, dentre os que conheço, mencionaria inicialmente, pensando na filosofia do direito, o professor Miguel Reale, que é a figura mais significativa nessa área.

Na área da filosofia em geral, creio que essa questão adquiriu destaque para o pessoal da M aria .Antônia a partir do atrevimento de Porchat, que me parece uma figura muito importante. Creio que outro que também sempre teve uma contribui­ção significativa é Bento [Prado J r.|, figurando como uma espécie de rebelde, den­tro daquele grupo dos anos 60, desde o princípio — diferentemente do Porchat, que teve de passar por um processo de ruptura. G iannotti, por outro lado, merece sem dúvida menção. Ele me parece ser alguém que conseguiu aliar a disciplina estrutu­ral com o diálogo, pois o atrevimento, no caso dele, é extremamente controlado. De um outro ângulo, sem a disciplina do Giannotti, há Marilena [Chaui|, que, mais à Bento Prado, rompeu com os compromissos estruturalistas e começou a produ­zir alguma coisa relevante em termos da filosofia como reflexo dialogante. Embo­ra sem criar uma filosofia propriam ente brasileira, naquele sentido de um enrai­zamento da reflexão em nossa experiência, ela conseguiu pensar os problemas bra­sileiros dentro do conte.xto desse diálogo.

Se a gente pensar em outro registro, creio que Newton da Costa, fazendo um diálogo com a matemática, é um nome importante, com considerável reconhecimento fora do Brasil. E claro que ele não produz uma lógica brasileira, mas pensa os pro­blemas com grande originalidade.

Fora de São Paulo, por outro lado, mencionaria Ernildo Stein, que, influenciado mais pelos alemães que pelos franceses, dialoga com bastante seriedade. Cîosto tam ­bém das coisas escritas por Benedito Nunes, outro dialogador sério. Vamireh Cha- con, no campo da filosofia do direito, é uma espécie de devorador que, juntando muitas coisas ao mesmo tempo, acaba produzindo algo de importância.

O artigo do senhor “A filosofia como discurso aporético”, de 1975, é também um debate com Porchat. Qual foi, a seu ver, o saldo dessa dis­cussão?

Porchat me disse certa vez que o saldo da discussão, para ele, foi conseguir fazer algo que vinha pensando havia muito tem po — o que me dá muita satisfação, pois

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ele sempre foi, e continua a ser, meu professor. A relação professor-aluno é um pouco como a relação pai-filho: por mais que se cresça e se vire amigo, nunca se perde a condição de aluno! Para mim, diria que o saldo desse trabalho, de ter colocado no papel certas idéias, foi passar a ter um apoio para fazer as coisas que vim a fazer depois, um apoio no qual eu dizia a mim mesmo que vale a pena pensar os proble­mas, porque eles não se reduzem ao que outros filósofos já disseram. A tese básica do meu artigo é a de que é impossível, mesmo num diálogo com os filósofos, você não estar pensando por si mesmo. Por um lado, não há escapatória, e, por outro, é algo que vale a pena, que é gostoso — desde que feito com seriedade.

Esse artigo foi publicado pela primeira vez na Argentina, para a Reuista Lati- no-americana de Filosofia, como uma homenagem ao Porchat. Q uando ele me li­gou para agradecer, e disse que ia responder — coisa que de fato fez — , isto me deixou extremamente lisonjeado. Embora o nosso diálogo, infelizmente, não tenha prosperado depois disso — talvez por termos caminhado cada um, inclusive o Bento, para uma área de interesse distinta —, houve de fato um saldo positivo.

Que conceito(s) de sua reflexão o senhor destacaria como o(s) mais representativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que o senhor nos contasse como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

Do ponto de vista da filosofia, o conceito mais im portante é o de aporia, justam en­te o conceito central desse artigo de que acabamos de falar. Pensar a filosofia como discurso aporético é um modo de enfrentar as questões filosóficas que serviu sem­pre para me “ segurar” quando eu tivesse de enfrentar os grandes temas de filosofia do direito, funcionando como uma espécie de guarda-chuva a evitar um com pro­metimento total. Diante de uma pergunta, por exemplo, como “ü que é a justiça?”, mantive sempre um grande pudor com relação ã possibilidade de aventurar-me em respondê-la. E, se eventualmente me aventurasse, seria dizendo: “ Isso é muito mais uma aporia do que um tema sobre o qual eu possa dar uma palavra definitiva” . Eu não me meteria nunca a escrever um sistema, e, nesse ponto, a influência do Viehweg foi sempre também muito grande, pois ele, como “homem do problem a” , criticava os que tentassem fazê-lo. Vista a filosofia como discurso aporético, os problemas filosóficos aparecem como becos sem saída que, não obstante, fazem pensar.

Por outro lado, essa posição me faz sentir uma tremenda angústia. Afinal, te­nho vontade de tentar essa outra aventura, essa que seria talvez a aventura final. Será que não posso me atrever? Será que não posso finalmente enfrentar o tema? O que é a justiça, afinal de contas? Faz já uns quatro, cinco anos que estou rum i­nando isso na cabeça.

E três artigos!Sim, tenho escrito também. Nestas férias, por exemplo, reescrevi um discurso que proferi na Academia Paulista de Letras, por ocasião de minha posse como acadê­mico, e que falava sobre as relações entre o senso de justiça e o senso da beleza. Utilizei LLninah Arendt, que escreve sobre o senso do gosto, Kant etc., e procurei fazer um paralelo com o problema jurídico do senso de justiça. Mas fiz isso sem

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consultar, de propósito, diretamente qualquer livro, valendo-me apenas de impres­sões que me tinham ficado. E, no correr do texto, acabei desembocando, um pou­co à maneira dela, no problema mesmo da justiça: como fica a questão do rela- tivismo? Há ou não há, afinal de contas, algum critério da justiça universal? Nas últimas páginas do trabalho, creio que pela primeira vez avancei um pouco. Em­bora já tivesse feito algo assim, numa certa inspiração heideggeriana, com o pro­blema da liberdade, outro desses temas cruciais da filosofia do direito, desta vez creio ter ido um pouco mais longe. Basta dizer que, depois de escrever o texto, passei- o ao meu assistente, Ari Sólon, pedindo-lhe que lesse, e o seu comentário foi: “Acho que o senhor ainda é muito jovem para escrever essas coisas” ! [risos]

O artigo do senhor “A filosofia como discurso aporético” encerra-se com considerações que traduziríamos do seguinte modo. O discurso filosó­fico tem um momento necessariamente aporético, dado pelo seu início mesmo, injustificável do ponto de vista teóríco e resultado de uma de­cisão. .VIíZ5 nem por isso o discurso filosófico deixa de ter um momento necessariamente construtivista ou sistematizador. Para dar conta des­se momento sistematizador, o senhor lança mão da pragmática da co­municação. Como distinguir, no entanto, essa posição do senhor de uma posição simplesmente hermenêutica?

De fato, embora a inspiração seja diferente, isso lembra uma posição hermenêutica. Vejamos então a diferença. Apesar de eu reconhecer que a construção de um siste­ma é possível, no começo de tudo há esse momento de decisão, e esse momento de decisão tem a ver com vontade, não com pensamento. Em filósofos como Gadamer, e mesmo na fenomenologia em geral, ocorre uma tentativa, se não de superar, ao menos de dar uma resposta mais positiva com relação a esse primeiro momento. Os autores que acabei estudando, como Viehweg e os retóricos, têm uma atitude, perante a filosofia, compatível com o seu instrumental. Quem trabalha dentro da perspectiva retórica sabe que não pode, e nem quer, ultrapassar os limites da pró­pria retórica: há aí uma certa sofística que não existe na linha hermenêutica.

Por isso o diálogo com Porchat foi tão im portante naquele momento: existe aí, no começo de tudo, algo de lúdico. Embora eu tenha me arriscado, recentemen­te, a escrever as tais páginas sobre a justiça, continuo tendo a sensação de estar dentro de um jogo, de estar fazendo um trabalho lúdico — um trabalho que não é, por­tanto, hermenêutico. Agora, é claro que isso gera uma angústia que, no limite, é uma sensação de niilismo, e também uma sensação de frustração com a impossibi­lidade de dar respostas num sentido mais acabado. Foi esse o ponto central da dis­cussão com Porchat: na sua resposta, ele disse que não podia ser bem assim, que o tipo de decisão de que eu falava não servia propriam ente como decisão. M as eu continuei achando, e lhe disse numa conversa que tivemos logo depois, que a deci­são de filosofar, de pensar filosoficamente, é mesmo algo voluntário.

£ central na obra do senhor a preocupação em circunscrever, antes de mais nada, um conceito situacional de racionalidade. Em Direito, re­tórica e comunicação (1973), o senhor o apresenta nos seguintes termos:

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“Uma concepção situacional da racionalidade significa que ela é cap­tada dentro da situação comunicativa. O discurso racional é, assim, aquele cujos agentes, em princípio, não se distanciam do mundo cir­cundante, mas se reconhecem nele”. No que essa concepção de racio­nalidade se distingue da proposta por J. Habermas?

Esse conceito de racionalidade situacional, em termos de comunicação, é construído para cham ar a atenção para o tipo de jogo que a interação provoca. Uma primeira diferença em relação a Haberm as está no fato de que ele, buscando ou investigan do algo de parecido, na comunicação, procura alguns pressupostos que possa univer salizar, aparecendo então, nestes pressupostos, uma racionalidade inerente ã comu nicação. E não é isso que estou dizendo. Estou dizendo que o discurso racional < um tipo de discurso, mas nem todo discurso hum ano é racional. Isso já é mais difí cil de dizer com relação a Haberm as, pois para ele e.xiste um pressuposto que é inerente a qualquer discurso e que tem esse “gosto” de racionalidade. Para mim. ao contrário , talvez a m aior parte dos discursos hum anos não seja racional. A racionalidade é apenas uma forma possível, entre outras, de enfrentar a situação comunicativa, de enfrentar o jogo entre emissor e receptor, entre orador e ouvinte— um jogo que é, na verdade, um jogo de poder. Se existe aqui algum universal, seria essa relação de poder, que está longe de ser algo racional. Nesse jogo, o con­ceito não aponta para nenhum fechamento, e não existe um princípio de razão su­ficiente capaz de explicá-lo. Trata-se de um jogo de argumentações em que as ra­zões são oferecidas na medida em que um dos interlocutores é acossado pela ne­cessidade de responder, e o acabam ento racional do discurso é form ado apenas no momento em que o outro interlocutor desiste de contra-argum entar — seja porque se satisfez provisoriamente com um dado argum ento, seja porque o outro conse­guiu fazer com que ele ficasse quieto. É nesses termos, portanto, que entendo a racio­nalidade. Claro que é um conceito de racionalidade meio m aroto frisos], porque não é bem a racionalidade no sentido que a cultura ocidental lhe dá — um sentido mais nobre — , e sim algo que lembra mais a sofistica.

Mas, se examinarmos bem, isso é algo que acaba aparecendo até mesmo em filósofos como Aristóteles quando eles escrevem sobre retórica. Por mais que se costume dim inuir a im portância do livro no contexto de sua obra, na Retórica Aristóteles chega a esse ponto: embora adm itindo a presença de um problema éti­co terrível, ele reconhece que a retórica funciona assim.

A retórica é uma espécie de adultério dos filósofos?!Sim, eu diria que sim. Um adultério gostoso! |risos| Foi o que percebi e assumi, reconhecendo que não há escapatória. E Aristóteles, no fundo, também percebeu, também colocou o dedo na ferida. Já Platão não escreveu nada; ele simplesmente fez. E como fez! Lembro-me de quando reli os quatro capítulos iniciais d ’A Repú­blica, já depois de possuir essa consciência, e pensei comigo mesmo: “Que coisa terrível! Sócrates trucidou Trasímaco! Isso não é razão! É poder puro!” .

Uma das distinções fundamentais da reflexão do senhor é aquela entre “relato” e “cometimento”. Como devemos entender esses termos?

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Essa distinção, evidentemente, não foi criada por mim. Eu a tirei da Pragmática da comunicação humana, livro dos psicólogos Watziavvick, Beavin e Jackson, que por sua vez se baseiam no trabalho de outros psicólogos e psicanalistas. Creio que são dois conceitos de difícil explicação, pois percebo que em geral os alunos têm muita dificuldade de assimilá-los e de lidar com eles. Mas a idéia básica para compreendê- los está na distinção, feita por esses psicólogos, entre dois modos de comunicação: o modo verbal ou digital e o modo não-verbal ou analógico. Embora tanto o que chamo de cometimento como o que chamo de relato possam ser expressos nesses dois modos, num projeto inicial, no começo da comunicação, o relato tende a apa­recer numa forma verbal e o cometimento, numa forma não-verbal ou analógica. Neste sentido, o cometimento aparece, inicialmente, como uma comunicação que emana do indivíduo hum ano no quadro de uma certa passividade, sem que haja propriamente uma ação. Q uando alguém usa ou não usa bigode, por exemplo, ainda que com certas intenções claramente determinadas (ficar mais bonito, trocar uma característica etc.), isso implica comunicar-se de uma forma passiva. O que chamo de relato, por outro lado, é uma forma de comunicação que já no início se dá ver­balmente. Por exemplo: quem diz “ saia!” , além de com unicar a ordem para um movimento (relato), comunica também, pelo olhar, pelo tom de voz: este é o modo como vejo você perante mim e a mim perante você (cometimento).

Dada então essa distinção, no uso que faço dos conceitos, saindo já da chave dos três psicólogos e entrando um pouco na de Luhmann, o relato se reporta aos conteúdos comunicativos, àquilo que está sendo dito. Já o cometimento, indepen­dentemente do que está sendo dito, é um momento de definição de quem é quem na comunicação. Tendo por base o mesmo pressuposto da questão da racionalidade do conhecimento, aqui reaparece toda a problemática da disputa, do argumento, do poder etc., com outra roupagem. Q uando nos comunicamos, nós fazemos duas coisas: de um lado, simplesmente falamos, dizemos alguma coisa, e de outro, simul­taneam ente, definimos posições. A distinção entre relato e cometimento é portan­to uma distinção que me parece im portante, que se coaduna bem com o que eu já dizia antes de conhecê-la, e que, além disso, me permitiu fazer algo fundamental: discutir a norma de um ângulo novo, de um ângulo que ninguém havia adotado. Os juristas quebravam a cabeça sobre o que é a norm a, onde está a prescritividade, será que é na sanção? etc., e essa distinção me pareceu uma ótima chave para resolver essa discussão toda: o sentido prescritivo da norma enquanto comunicação está no cometimento, a norm a é uma forma de definição de quem é quem na relação.

Seguindo T. Viehweg, o senhor distingue entre uma abordagem “ze- tética” e outra “dogmática”. Em Direito, retórica e comunicação, o se­nhor escreveu que “a distinção estabelecida, por necessidade de análi­se, entre questões ‘zetéticas’ e ‘dogmáticas’ mostra, na práxis do dis­curso judicial, uma transição, poderíamos dizer, entre o ser e o dever ser”. Como se dá essa transição? O que separa e quais são os possíveis pontos de contato entre os dois tipos de abordagem?

A distinção entre zetética e dogmática, entre zetein e dokein, foi proposta por Vieh- v 'eg, num artigo publicado em inglês que ele não retomou posteriormente, e, desde

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que a conheci, juiguei-a uma forma de abordagem bastante interessante e que valia a pena ampliar. Para tal, usei Luhmann, fazendo aquela mistura atrevida, já men­cionada, entre um problemático e um sistemático. Eu tinha então, de um lado, o universo óbvio daquilo a que chamamos doutrina, ou também dogmática jurídica, e que se define como um tipo de discurso que se vale de três elementos básicos: a lei, em sentido lato; as decisões de tribunais — a jurisprudência; e os comentários— a hermenêutica jurídica para criar condições de decidibilidade de conflitos. E, de outro lado, tinha aquilo que na Faculdade de Direito sempre se chamou de “per­fum aria” jurídica: a filosofia do direito, primeira das perfumarias, a sociologia ju­rídica, a antropologia jurídica, a história do direito, enfim, todas as ciências que não lidam com aqueles três elementos com o mesmo objetivo, mas visam antes a especular, perguntar. E o meu problema era, antes de mais nada, explicar a dife­rença entre os dois campos, explicá-la não assim vagamente, mas caracterizando dois modos distintos de pensar — algo que os textos de Luhmann me ajudaram a fazer, m ostrando as peculiaridades próprias a cada um deles. Uma das peculiarida­des da dogmática, por exemplo, seria a inegabilidade dos pontos de partida como condição do poder de decidir, e a melhor definição para isso estava no Viehweg (mais um exemplo de como fui casando os dois pensamentos): no pensar dogmático, só se pode questionar numa direção, e não na outra; há pontos que não podem ser discutidos. N o zetético, pontos de partida sempre são discutíveis, reflexivamente.

Agora, é preciso ter em conta as conseqüências disso: esse ponto não discuti­do, como premissa do pensar dogmático, tem de ter algum caráter diferente, e isto me levou novamente ao problema da decisão, do voluntarismo. Por que ele não pode ser discutido? Por que é um postulado sobre o qual não se cogita reflexivamente? Por que há um consenso geral em torno dele que lhe garante a inegabilidade como ponto de partida? Estes seriam motivos racionais para não discuti-lo. M as a verda­de é que na dogmática a inegabilidade dos pontos de partida é algo muito mais forte do que um simples motivo racional; a verdade é que não se permite a discussão a respeito deles, até porque eles não estão referidos nem a uma evidência, nem a um acordo, nem a uma postulação. O que há é uma aporia, uma dúvida radical, e portan­to esses argumentos tradicionais do discurso racional simplesmente não funcionam. Como, porém, do ponto de vista prático, é preciso discorrer sobre isso, simplesmente se diz: “está proibido discutir sobre esses pontos” . Isto é a dogmática jurídica: cria- se um tipo de pensar que trabalha dentro de uma bitola estreita e que, para decidir os problemas — pois todos os problemas são decidíveis no direito — , tem de en­contrar formulas tangentes como a hermenêutica, que permite tangenciar o senti­do das palavras, inventar outro sentido, dar importância a um sentido que na ver­dade não tem a mínima importância, e assim por diante. Como não se pode m udar o ponto de partida, essas são saídas que esse tipo de pensamento acaba criando para solucionar os problemas, tendo em vista a necessidade de decidir.

Um advogado não pode chegar para o seu cliente e dizer: “Olhe, talvez isso, talvez aquilo” . Ele tem de dar respostas e objetivar resultados — isso é tudo o que im porta. No próprio processo decisório, fica claro o caráter ambíguo da verdade. Houve ou não houve cartel, num determ inado caso? Houve acusação com base em indícios. Por que indícios? Porque não há provas. Nunca ninguém vai conseguir

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provar de fato que as partes se encontraram — a não ser talvez num cartel de por­tugueses! [risosj Onde está a verdade, então? Processualistas mais atirados dizem logo que esta verdade é processual, e não a verdade dos fatos. Isto é, enfim, o pen­samento dogmático.

No caso da “perfum aria” (pensar zetético), o pensamento funciona de manei­ra completamente diferente, pois não há qualquer compromisso com pontos de partida nem de chegada, não existe o interdito de questioná-los. Às vezes tenho juizes ou promotores em meus cursos de pós-graduação e, antes de mais nada, já vou logo fazen­do a advertência: “Vocês não me levem a mal, mas vou destruir tudo aquilo que vocês têm como ponto de partida” ! No começo eles acham engraçado, dão risada, mas já aconteceu, algumas vezes, de um deles chegar até mim e dizer; “Professor, não estou mais conseguindo julgar! Você destruiu todo o meu universo de garantia, de sosse­go, de tranqüilidade” ! F. tudo que eu havia feito fôra retirar o ponto de partida inegável, dizer que em geral é impossível decidir com certeza absoluta. Fste é o outro ângulo, o ângulo da zetética. Pode-se questionar, pode-se perguntar o que se quiser pergun­tar, e não existe a necessidade de tom ar decisões definitivas, não existe o com pro­misso com resultados. Trata-se de um modo de pensar bem diferente daquele outro.

Agora, uma vez estabelecidas as diferenças, coloca-se o problema de como eles se encontram . Eu diria que eles se encontram , na práxis, de uma maneira que é perversa para o pensar zetético. Uma vez, num congresso na PUC-RJ cujo tema era o pensamento crítico no direito, e em que se discutia a idéia de uma dogmática crí­tica, desenvolvi meu pensamento sobre a dogmática e cheguei à conclusão de que não existe dogmática crítica, porque qualquer pensamento crítico, no direito, aca­ba absorvido pela dogmática enquanto tal. Anos depois desse congresso, fui dizer a mesma coisa ao pessoal do Rio Grande do Sul que fala em direito alternativo: isto é outra coisa que também não existe. O que eles pretendem fazer é dogmática do mesmo jeito, m udados apenas os pontos de partida.

Existe portanto um contato entre as duas formas de pensar, já que na prática da decisão jurídica a zetética pode aparecer para am pliar um pouco a reflexão, tra ­zer novos argumentos, mas ela acaba sendo dogmatizada em função dos pontos de partida. Do outro lado da moeda, porém, a zetética também acaba se enriquecen­do quando é capaz de entender o pensamento dogmático — o que diz respeito ã questão da inserção da filosofia do direito na vida. Uma vez, há cerca de dez anos, cheguei a cobrar isso do professor Reale, perguntando-lhe por que ele não escrevia uma teoria geral do direito, e ele me respondeu que estava mais interessado nos pro­blemas filosóficos. Mas o que eu queria dizer-lhe é que há certos problemas da dog­mática jurídica que valeria a pena tentar absorver dentro da zetética, talvez até mesmo para enriquecer a discussão. O professor Reale faz isso, mas o faz em pare­ceres e artigos. Ele nunca escreveu um livro de teoria geral do direito, ressalvadas as incursões introdutórias de seu Lições prelimimires de Direito.

Algumas pessoas que leram o meu livro Introdução jo estudo do Direito acham que fiz ali uma teoria geral do direito, ainda que com toda uma base filosófica, zetética. Certamente não o escrevi com essa intenção, mas com a intenção de es­crever uma introdução ao estudo do direito que não fosse uma mera repetição das introduções que eu conhecia. Creio que de fato fiz algo diferente, pois não conhe-

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ço outro trabalho de introdução, com esse título e voltado para o estudante que se inicia no direito, que tenha a mesma estrutura. M as penso que, para que ele pudes­se ser considerado uma teoria geral, muitos conceitos teriam de ser mais bem tra ­balhados, ou trabalhados dentro de uma visão mais conjugada.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

A minha formação filosófica começou com um diálogo fecundo com a ciência do direito, e mesmo com outras ciências, como a sociologia, a antropologia e a histó­ria, mas sempre focalizando prioritariam ente o direito. Tal situação perdurou en­quanto perdurou a minha atividade acadêmica pura. ou seja, até o começo dos anos 80, quando fui ser chefe do Departam ento Jurídico da FIESP sem entender nada de advocacia.

A partir dessa época, começou uma lenta transformação da minha relação com o direito, que se completaria no início dos anos 90. Embora eu continuasse ligado à ciência do direito e à filosofia, a vivência do direito como advogado, como pro­curador da Fazenda, como secretário executivo de ministério, tendo de lidar com os problemas concretos do direito, me fez m udar bastante todo o meu estilo didá­tico. Sempre gostei de começar as aulas propondo um problema a ser discutido, mas antes dessa mudança os problemas que eu propunha eram problemas estritamente acadêmicos, enquanto depois dela passaram a ser problemas mais concretos. Se antes eu começava uma aula propondo, por exemplo, a questão “o que é a justiça?” , hoje entro com um problema do tipo: “Ontem o Supremo Tribunal Federal decidiu que a participação dos empregados nos lucros tem de ser m udada de tal e tal m aneira” , e a partir dele começo uma discussão, digamos, sobre os direitos subjetivos. Perce­bo hoje, portanto , que a minha maior motivação é a própria experiência profissio­nal, a partir da qual vou para a reflexão teórica e filosófica.

O que devemos entender pela caracterização feita pelo senhor do “es­tatuto tecnológico” do direito atual?

Esse é um conceito que eu próprio desenvolvi. Ainda que me tenha valido, ao pre­enchê-lo, de uma série de im portantes influências, não o retirei de nenhum autor. A idéia que me levou à noção de tecnologia foi a de explicar melhor um tema anti­go na teoria e na filosofia do direito — o tema do estatuto da ciência jurídica, que na tradição sempre foi vista como ciência prática. Ao construir o conceito, joguei com a distinção entre zetética e dogmática. Se existe, de um lado, um pensar epis- têmico que especula tudo que se queira especular, há também uma atividade hu­mana que, relacionada com isso, constrói no concreto soluções que são exigidas pela vida. E. nesse meio term o, há o problema da passagem, que me levou ao conceito de tecnologia enquanto justamente esse conceito intermediário, que não é técnica mas também não é epistéme. A dogmática se encaixa nisso, e também outros sabe­res se encaixam, como a economia e a medicina.

Lembro-me que, quando comecei a usar essa idéia. Franco M ontoro me disse que a tinha achado interessante, mas me perguntou por que eu não usava simples­

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mente, como meu mestre Viehweg, o termo prudência, jurisprudência. Respondi que não era disso que estava falando, mas de tecnologia mesmo: estava dizendo que a ciência do direito, no passado uma forma de prudência, hoje virou uma tecnologia— o que não quer dizer que ela sempre o tenha sido. Seguramente os romanos, por exemplo, não faziam tecnologia nos seus julgamentos, e talvez no caso deles o con­ceito de prudência seja o adequado. .Aquele saber do qual falava Platão, sobre as normas, era também um saber de passagem — como o filósofo passa das verdades para a “verdade” aos ouvidos do povo— . mas estava longe de ser uma tecnologia. As chamadas ciências práticas são uma criação moderna, respondem a um proble­ma moderno. .Vias M ontoro insistiu, dizendo que eu estava com isso degradando a ciência do direito. F. eu disse que estava mesmo, que a idéia era justamente essa! |risos| Se se toma como padrão um certo ideal de nobreza do direito, é evidente que uma tal idéia o degrada. Podemos até, se for esse o caso, lamentar que isso tenha ocorrido, mas não podemos negá-lo. A ciência do direito se tornou de fato uma tec­nologia, nesse sentido de que é um logos que operacionaliza as elucubrações teóri­cas, criando condições de a técnica possibilitar decisões, obter resultados na dis­cussão de conflitos etc.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobreum possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate?

Embora esse assunto fuja das minhas preocupações, e eu não tenha com ele grande afinidade, tenho alguns pensamentos sobre a questão. Lembro-me de que, quando estava no colégio, a história da literatura era apresentada de uma maneira um tan ­to peculiar, segundo a qual a partir pelo menos do século XIX um elemento im­portante para se caracterizar a passagem de um período para outro era o escânda­lo, que resultava da agressão operada pelo novo estilo em relação ao antigo — como, por exemplo, na representação do Ernani ou no aparecimento dos quadros cubistas. De algum tempo para cá, no entanto, tenho a impressão de que isso desapareceu. C^omo tudo passou a valer na arte, nunca vai haver escândalo com o novo. Ou se entende ou se está por fora — isto é tudo. Diante disso, eu me pergunto: será que o fim do escândalo significa o fim da arte?

■Afinal, se não existe mais escândalo, tudo aquilo que costumamos atribuir à arte ou ao trabalho artístico, como a espontaneidade, o ato criador, o mundo pró­prio etc., se perde. É como se a própria idéia da criação tivesse m orrido, porque não existe o novo. Se tudo vale, nada vale. Essa situação me parece perigosa, mas ao mesmo tempo desafiadora para a nossa cultura: será que há saída? Evidentemente, não dá para voltar atrás, recriar um ambiente em que pudesse haver escândalo. Que fazer, então? Se pensamos nas experiências do mundo da música posteriores a Schõn- berg, por exemplo, como o dodecafonismo, temos a sensação de que a partir daí tudo passou a valer. O máximo que parece poder haver, em termos de agressão, é a agressão ao ouvido, porque se joga com sons que não têm nada que ver sequer com harmonias físicas. O utro dia estava ouvindo uma música em que se m istura­vam coisas como apito, barulho de automóvel, e assim por diante. Claro que há sempre um choque, mas é diferente daquele sentido de escândalo de que eu falava.

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No ano retrasado, em Nova York, fui à apresentação de uma orquestra no M etropolitan. Eles começaram o programa com Stravinsky, passaram por um moder­no da década de sessenta, e na última peça, cujo autor não me lembro, o maestro, entre outras coisas, colocou a percussão no alto e atrás da platéia, de tal modo que às vezes ele se virava e lá do alto vinha o som do instrumento. Lembro-me que muitas pessoas abandonaram o espetáculo no meio, mas não senti de m odo algum que isso fosse um escândalo — simplesmente não haviam gostado. Parece-me portanto que, sem a pimenta do escândalo, fica muito difícil decidir. Se a arte morreu ou não, não posso responder. Só posso dizer que está numa situação bastante complicada. Mas ao mesmo tempo está posto, para o ser hum ano, o desafio de voltar a ser criativo.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutaras questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

Vou começar enfocando o problema a partir de um outro ângulo. A grande m u­dança por que passa a política não diz respeito a um contraste do tipo globalização versus Estado Nacional. Creio que seria mais fecundo, tendo em vista aspectos éti­cos e jurídicos da política, pensar a questão da virtualização das relações, que é um fenômeno cada vez mais presente na vida moderna. Desse ponto de vista, proble­mas como o do Estado Nacional ou da globalização surgem quando a vida e as relações hum anas se tornam virtuais. N o plano do direito isso vem colocando de­safios enormes aos quais não se têm ainda respostas. Em tese, existe por exemplo a possibilidade de, por meio do com putador que se tem em casa, entrar num jogo de pôquer de um cassino no Caribe. No entanto, o jogo no Brasil é proibido. Como disciplinar essa questão? Há como proibir que se jogue aqui desta maneira? Pois na verdade você não está jogando propriam ente aqui, e sim no Caribe. Problemas assim são colocados pela realidade virtual.

Um outro exemplo, talvez o mais expressivo, é o do e-money, que é uma exas­peração brutal da economia m onetária, levada a um ponto que nunca se tinha ima­ginado. Trata-se de uma enorme transform ação. N o prefácio ao livro de um cole­ga, Fábio Nusdeo, escrevi um ensaio irônico em que brinco que, se Goethe fosse vivo nos dias de hoje, diria que Mefisto é responsável por esse dinheiro (o e-money), que é incomparavelmente pior do que o que ele descrevia (papel-moeda). Agora, no contexto dessa transform ação, devemos pensar não no desaparecim ento do Estado Nacional, pois não creio que ele esteja desaparecendo, e sim na virtualização desse Estado, que faz com que todas as suas propriedades tradicionais, como o m o­nopólio da violência, o exercício de coação, a adm inistração, o controle, se tornem fenômenos virtuais.

Nós podemos perfeitamente imaginar uma situação em que o sujeito está di­rigindo seu carro, atravessa um sinal vermelho, é fotografado e m ultado, e, quan­

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do chcga a sua casa, liga o com putador e verifica que o valor da multa já foi debi­tado de sua conta bancária. Isso ainda não existe, mas seria factível hoje. E o único ato real que acontece aí é o sujeito guiando seu carro pelas ruas da cidade. Fora isso, todo o resto, que diz respeito a uma operação do Estado, está em hytes: o Estado passa a ser constituído mais de hytes que de átomos. Em termos de ação política, isso tem um impacto gigantesco, sobretudo no sentido de que aquilo que concebía­mos como política, e que se constituía de relações hum anas reais, passa a consti­tuir-se de um relacionamento humano totalm ente reduzido a bytes, em que os in­divíduos viram números e inscrições de maneira muito mais radical do que na ve­lha burocracia. O fazer político começa a depender muito mais disso do que do parlam entar que profere um discurso no Congresso, e isso faz com que o Estado esteja m udando radicalmente de perfil — uma mudança cuja dimensão talvez só possamos sentir em uns dez, quinze anos. O ra, essa virtualização da política tem por conseqüência não propriam ente a primazia das questões morais, mas a prim a­zia da notícia, enquanto uma “com m odity” , no debate público.

O senhor escreveu um artigo de título “A trivialização dos direitos humanos”, em 1990 (T>Iovos Estudos Cebrap, 28), em que podemos ler: “Trivialização significa que os direitos do homem, ao manterem sua condição de núcleo básico da ordem jurídica, nem por isso deixam de ser objetos descartáveis de consumo, cuja permanência, não podendo mais assentar-se na natureza, no costume, na razão, na moral, passa a basear-se apenas na uniformidade da própria vida social, da vida so­cial moderna, com sua imensa capacidade para a indiferença”. De 1990 para cá, o senhor considera que esse estado de coisas permanece? Quais são, na visão do senhor, as tendências atuais do debate sobre os direi­tos humanos?

Esse trabalho, de 1990, na verdade se reporta a um trabalho anterior, da década de 70, em que pela primeira vez escrevi sobre o tema. O seu contexto inicial, por­tanto , era o contexto do regime militar, que já não havia nessa segunda ocasião. Apesar disso, decidi reescrever o trabalho para uma série de conferências que eu e Celso Lafer havíamos organizado em homenagem a Goffredo da Silva Telles e cujo tema eram os direitos humanos. Um dos conferencistas que convidamos foi o |Gé- rardj Lebrun, e a sua conferência me instigou muito, pois ele abordou o tema de uma maneira que eu já vinha cogitando, e que me pareceu bastante razoável. Se nós pensarmos, por exemplo, no tratam ento que vem sendo dado aos direitos hum a­nos nas últimas décadas, falando-se em segunda geração, terceira, quarta — e logo deve vir a quinta! — , tem-se a sensação — e foi esse o ponto abordado por ele — de que há uma proliferação excessiva de direitos humanos. O que acaba tendo uma repercussão que é, a meu ver, uma espécie de trivialização, num sentido semelhan­te àquele em que discutimos há pouco a questão da arte: corre-se um enorme risco de tudo virar direito hum ano fundamental e, ocorrendo isto, nada mais ser direito hum ano fundamental.

Agora, de 1990 para cá nós temos assistido, ao menos no Brasil, a uma cres­cente conscientização em torno dos direitos hum anos e da necessidade de defendê-

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los. Tenho a sensação de ver hoje no Brasil algo similar ao que havia visto anos antes nos Estados Unidos, onde, fazendo um périplo por várias universidades, conheci algumas sociedades de defesa dos direitos humanos e fiquei encantado com o que vi. Q uando fui secretário executivo do M inistério da Justiça, o que mais me per­turbou foi a situação do Conselho de Defesa dos Direitos Hum anos, cuja presidên­cia o ministro, por falta de tempo, acabava delegando a mim. Chegavam diaria­mente à minha mesa, vindas do Brasil inteiro, denúncias e mais denúncias, em re­lação às quais eu me sentia im potente, e ao mesmo tempo apareciam entidades americanas protestando contra a situação. Eu quis fazer alguma coisa, encaminhei diversas propostas ao ministro, que era o Bernardo Cabral, mas logo ele acabou saindo, e também eu acabei saindo. De qualquer maneira, tive aí uma experiência que me permite afirm ar, com relação aos direitos humanos no Brasil, que a situa­ção melhorou bastante nesses últimos dez anos.

Tendo em vista a questão proposta, portanto, eu diria que houve, no caso do Brasil, mudanças positivas desde quando escrevi o artigo. Com relação à trivialização, no entanto, diria que o problema continua: o risco de que tudo seja direito hum a­no, e de que portanto nada seja direito hum ano, é muito grande. E o que acaba ocorrendo é que vêm à tona argumentos comt) a defesa da pena de m orte, coisas como: “Vocês ficam falando nos direitos humanos dos presos. M as e os direitos humanos da vítima?” . Se tudo vira direito humano, cai-se numa retórica que é pura balela, e o que conta é a luta pela sobrevivência, cada um se virando como pode.

Assistimos hoje a uma tensa concorrência entre dois fundamentos delegitimação última da ordem jurídica: os “direitos humanos" e a “so­berania popular”. Como o senhor vê essa concorrência?

O conceito de soberania popular é um conceito complicado, para dizer o mínimo. Bertrand De Jouvenel, ao discutir a questão da soberania, chega a afirm ar que o conceito não expressa nada. Segundo ele tenta m ostrar, o conceito de soberania, para ser levado a sério, tem que ser o conceito de soberania divina. Embora eu não chegue a tanto , a partir dessa sua reflexão pode-se perceber que se trata realmente de um conceito que é muito difícil de trabalhar, sobretudo porque envolve a neces­sidade de determ inar o que se entende por povo. Q uando da sua utilização jurídi­ca, por exemplo, o que se tem é apenas uma noção abstrata que não envolve deta­lhes, pois do contrário perderia a sua operacionalidade. Agora, abstrata ou não abstrata, a idéia da soberania, tal como form ulada nas constituições, no direito constitucional, sempre jogou com a noção de direitos humanos como direitos re­conhecidos, declarados, constituídos — sempre como algo que está fora da sobe­rania, algo a que ela não se submete. Até aí, nada de novo.

Na medida, porém, em que se tem, no plano dos direitos humanos, aquele risco da sua banalização, e, no plano da soberania, essa noção de povo, que do ponto de vista operacional, é completamente vazia, a chance de manipulação é enorme dos dois lados. Tanto se pode absorver direitos humanos na noção de povo, como se pode fazer o inverso, chegando a um uso dos termos em que a regulação ética fica complicada. Agora, esta é uma análise zetética da questão, que levanta problemas sem solucioná-los. Eu apenas percebo que, do jeito que a coisa ficou, nenhum dos

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dois conceitos me dá segurança. A não ser, é claro, que eu faça deles um uso m era­mente retórico — com todo o cinismo possível: se faço isso, tenho consciência de estar fazendo-o. É algo que pode perfeitamente ser feito, ainda que com isto eu caia em toda a angústia humana e em todo o niilismo desse final de século.

Em seu artigo “Legitimidade na Constituição de 1988”, do ano de 1989, o senhor diagnostica algumas dificuldades na compatibilização de exi­gências que seriam próprias de um Estado de Direito e de um Estado Social no Estado Democrático brasileiro, pois “a exigência do compro­misso é um problema político nos seus meios e nos seus fins, enquanto a exigência de um quadro constitucional rigoroso é tipicamente um problema jurídico”. Nesse contexto, como o senhor vê os desenvolvi­mentos ocorridos na década de 1990 do ponto de vista das reformas constitucionais operadas e da nova jurisprudência? Teriam elas pro­duzido a “compatibilização” das duas perspectivas?

O e io que ainda não. O debate que está acontecendo atualmente, sobre a limitação do poder de editar medidas provisórias, me parece ser um sintoma de que a coisa ainda não está bem -arranjada, de que ainda não conseguimos sair dessa situação. Lembro-me que escrevi um artigo, intitulado “Medidas Provisórias Permanentes?” , quando surgiu pela primeira vez, ainda na época do governo Sarney, o problema da reedição. Nesse artigo, eu defendia retoricam ente a posição clássica de que a palavra última deveria ser do Congresso: ou este deveria estabelecer um limite para as reedições, ou, não havendo votação, as medidas provisórias deveriam ser consi­deradas rejeitadas.

Depois disso, porém, eu passei a fazer parte do governo e, na qualidade de secretário executivo do M inistério da Justiça, me vi confrontado com essa mesma situação: Fernando Collor reeditando medidas provisórias, a oposição pressionan­do etc. E um dia fui levado à televisão para um debate virtual com Miguel Reale Junior — eu representando o governo e ele, pelo PSDB, representando a oposição. Ele, do lado de lá, protestava contra o excesso de medidas provisórias e de reedições das mesmas, e eu, do lado de cá, embora um pouco receoso, disse que ele tinha par­ticipado do processo constituinte muito mais de perto do que eu. Cheguei a lem­brar, em plena televisão, que nós dois havíamos lutado juntos, na faculdade, con­tra o decreto-lei, e acusei-o de ajudar a criar algo muito pior — a medida provisó­ria —, pois naquele pelo menos as coisas funcionavam de maneira mais clara, e não havia reedições com alterações. Ele até admitiu que se lembrava, mas insistiu que estava havendo um abuso, ao que eu procurei responder ponderando que não era bem assim. Nessa altura do debate, o jornalista vira para mim e diz: “ .Vlas o se­nhor não escreveu um artigo contra a reedição indiscriminada das medidas provisó­rias?” . Fiquei então numa posição dificílima, e me saí com uma resposta um tanto cínica: eu disse que havia escrito o artigo enquanto jurista, e que havia de fato defen­dido tal posição, mas argumentei que o jurista tem de se render à realidade juris- prudencial, e, como o Supremo havia aceitado, eu tinha m udado minha posição.

Alguns anos depois desse episódio, num congresso cujo tema envolvia medi­das provisórias, lembro-me de ter feito a seguinte observação. Pensando nessa opo­

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sição entre Estado de Direito e Estado Social, o Congresso N acional, enquanto um dos poderes da República, é um poder cuja responsabilidade pública é diferente daquela que tem o Poder Executivo. Ela é uma responsabilidade muito mais difusa: quando se faz uma demanda ao Legislativo, esta demanda é dirigida ao Congresso Nacional como um todo. Q uando se faz uma demanda ao Executivo, ao contrário, trata-se de uma demanda personalizada, seja na figura do presidente da Repúbli­ca, seja na figura deste ou daquele ministro de Estado. É nesse contexto que podemos entender por que ocorre o que se chama de abuso de medidas provisórias por parte do Executivo: ele é acossado pela opinião pública de uma tal maneira que não pode dem orar em dar respostas, não pode ficar esperando pela próxim a legislatura sem fazer nada. Independentemente de ser urgente ou relevante, que são os termos da Constituição, ele acaba recorrendo às medidas provisórias por conta dessa pressão. Em outras palavras, podemos dizer que o Estado Social faz ao Estado de Direito certas demandas e este responde com medidas provisórias. E não vejo saídas para isso no momento. Porque a alternativa inversa, que seria a de limitar essa prática, parece muito complicada. Basta ver como Fernando Henrique Cardoso, que antes era da oposição e defendia esta última alternativa, acabou sentido na pele aquela pressão, a ponto de recorrer muito mais que seus antecessores à medida provisória.

O que esse caso das medidas provisórias m ostra, com relação à questão feita, é que essa oposição entre Estado de Direito e Estado Social continua presente. Pelo menos no Brasil, fica claro que o Estado de Direito tem pressupostos que não se coadunam com o Estado Social.

Ouve-se constantemente que a Constituição Brasileira de 1988 é “le­tra morta” no que diz respeito a vários dos direitos fundamentais nelainscritos. A partir desse caso, como pensar a relação entre a norma esua eficácia?

A meu ver a noção de eficácia tem, do ponto de vista jurídico, dois sentidos: a cha­mada eficácia técnica, que se refere às condições de aplicabilidade das normas do ponto de vista do próprio ordenam ento jurídico, e a cham ada eficácia social, que se refere às condições de aplicabilidade do ponto de vista da condição social à qual a norma se volta. Se se obriga a freqüência da criança à escola até os 14 anos de idade, mas não se dão escolas ou condições mínimas para que a família possa sus- tentá-la, esta norma é letra m orta. Creio que é a este segundo tipo de eficácia que a pergunta se refere. N o rol dos direitos humanos, nós vemos coisas verdadeiram en­te hilárias em termos dessas ineficácias. Um exemplo típico é essa discussão em torno do valor do salário mínimo. Dada a forma como está definido o salário mínimo na Constituição — um valor suficiente para o indivíduo sustentar a si mesmo e a sua família — , é evidente que o salário mínimo atual é uma gargalhada. Mas o argu­mento de que não seria possível um salário mínimo de cem dólares, porque iria arrebentar com a Previdência, muitas prefeituras iriam à falência etc., é um argu­mento sério que diz respeito à eficácia social da norma: não existem condições para que se faça isso.

A partir disso, chegamos a uma interpretação um pouco cínica da eficácia: para a norm a ter condições de sucesso, no atingimento da eficácia social, estas condi­

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ções podem ter de dizer respeito à sua não-apiicação. Em outras palavras, existem normas que se tornam eficazes justamente porque não se realizam, e, caso se reali­zassem, produziriam um caos. Luhmann, que é também um cínico, ilustrava essa situação com o exemplo do trânsito nas cidades grandes, como Paris, Nova York, Berlim. Embora exista uma série de vias em que o estacionamento, ainda que por poucos minutos, é proibido, a verdade é que ninguém respeita essas normas. E por que isso acontece? Por que as pessoas gostam de desobedecer? Isto pode até ser verdade em alguns casos, mas o que realmente ocorre é que, se a polícia fosse colo­cada em todas as partes para fiscalizar o cumprimento dessas normas, o trânsito pararia completamente. Portanto, conclui Luhmann, esta é uma norm a cujo suces­so depende de ela não ser aplicada com rigor.

É assim que eu responderia. Existem normas que não podem ser aplicadas com rigor porque, se o fossem, haveria um caos social. E é este o caso dos direitos hu­manos. Q uando o governo esperneia, e diz que não é possível conceder um aum en­to maior, não é porque o presidente não queira concedê-lo, mas sim porque existe um fundo de verdade na sua posição. Q ualquer governante, demagogicamente ou não, diria que adoraria elevar o salário mínimo para mil dólares, mas que não pode fazê-lo. Ou seja, se se fosse obedecer à risca a Constituição, estouraria tudo, e aí não haveria mínimo nem “ não-m ínim o” . Mas o certo, então, seria tirar essa nor­ma da Constituição? Talvez não. Talvez o melhor seja deixar como está, porque isto tem uma eficácia simbólica im portante — habemus solarium minimum.

Essa resposta pode ser cínica, mas ela tem uma outra repercussão se pensar­mos em todo o rol dos direitos humanos em nossa Constituição: é impossível tra ­balhá-los sem fazer aquilo que os alemães chamam de sopesamento. Um direito fundamental só tem sentido na medida em que é contraposto a outro — por exem­plo liberdade de imprensa e privacidade. Há que se conviver com isto, há que se aceitar que nenhum direito fundamental tem eficácia plena, que todos eles sofrem essas limitações que fazem da sua eficácia, até certo ponto, uma eficácia simbólica— que nem por isto deixa de ser im portante. Nós não vamos retirar a privacidade da Constituição para garantir a liberdade de imprensa, nem vice-versa. Isso é algo de que o intérprete tem que tom ar consciência para poder lidar com o problema e tom ar decisões.

Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?N o passado, na época do colégio jesuíta, essa relação foi muito intensa, no sentido de aceitação. Depois passei por uma ruptura, e nunca mais tive qualquer relação com a religião institucional — a não ser talvez uma relação externa, do tipo sujei- to-objeto: eu olho para as religiões. N o caso da fé, a coisa é diferente. Desde que me distanciei da religião, essa é uma questão que nunca deixei de me colocar. Na forma da crença em alguma coisa, a fé é algo que não se sustenta, pensando até do ponto de vista filosófico. Há muito tempo tenho sentido, talvez paradoxalm ente, que a fé tem a ver com a dúvida: ela subsiste apenas na medida em que nós temos dúvidas. Onde a dúvida desaparece, a fé desaparece junto — daí ela estar sempre ligada a dogmas. Penso portanto que, do ponto de vista pessoal, o que alimenta a fé é a minha postura de dúvida.

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Esses dias eu esrava lendo um livro de V'ilem Flusser, que saiu recentemente, intitulado A dúvida. Ele aborda esse tema de uma maneira que me pareceu muito interessante. Segundo o seu raciocínio, sempre que ocorre uma reflexividade — a arte se tornar objeto da própria arte, por exemplo, ou, no nosso caso, a fc se tornar objeto da própria fé — , ocorre um curto-circuito que elimina o sentido do objeto. Ou seja, a arte sobre a arte elimina a arte; a fé sobre a fé elimina a fé. Eu encaixaria isso no que estava dizendo: ou a fé mantém um sentido de dúvida ou ela é eliminada. E, neste sentido, eu diria que o meu relacionamento com a fé é um relacionamento com a dúvida, o que permite inclusive o aparecimento, em termos de religiosidade, de uma virtude que me parece importante: a humildade, cujo vício correspondente é a soberba. Quem tem dúvida, não tem condição de ser soberbo. Deus existe? N ão sei. .Vlas também não tenho força para dizer que não existe. Isto seria então uma espécie de agnosticismo? Talvez, mas não estou preocupado com o agnosticismo, e sim com a dúvida, que me provoca naturalm ente essa sensação de humildade.

Como o senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem?

Creio que há aí duas coisas diferentes. Q uando pensamos em filosofia “pós-me- tafísica” , estamos pensando na filosofia analítica. Mas, quando pensamos em filo­sofia centrada na linguagem, não estamos necessariamente pensando em filosofia “pós-metafísica” — é o caso de Heidegger, por exemplo. De qualquer modo, a preo­cupação com a linguagem como núcleo do pensar filosófico tem uma consequên­cia similiar a essas que conduzem a formulações niilistas. Eu poderia dizer algo parecido com o que acabei de dizer em relação ã fé: a linguagem tornada objeto de si mesma pode acabar por esgotar-se enquanto linguagem. Esta seria talvez uma forma de entendermos a frase de Wittgenstein: “Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” . Q uando a linguagem se torna objeto de si mesma, não se tem mais do que falar; só se pode ficar mudo.

Isso remete àquela minha discussão com Porchat e ao que ele dizia: se a filo­sofia se tornou sua própria história, não há mais o que dizer; só lhe resta a opção do silêncio. .Agora, a questão é saber se tal situação implica que a metafísica aca­bou. Se pensarmos desse ângulo que chamo de pragm ático, eu diria que não, por­que, como escrevi na resposta a Porchat, se o m utismo, tanto o dele como o de W'ittgenstein, é na verdade uma fala, configura-se então uma fala que não fala, e isto por sua vez nos leva inevitavelmente à questão do nada, de tal m odo que a metafísica, expulsa pela porta, reaparece entrando pela janela. Portanto, salvo tal­vez os positivistas, que são de fato os únicos a fechar a fala dentro dela mesma, eu diria que a filosofia da linguagem, na medida em que se m antenha reflexiva, não acaba com a metafísica.

A partir da década de 1960 e durante pelo menos as três décadas se­guintes, houve enormes investimentos teóricos no sentido de uma refor­mulação do direito nos termos da “virada lingüística”. Quais foram, na visão do senhor, os resultados dessa empreitada?

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Primeiramente, eu apontaria, como um dos frutos disso, o reconhecimento da im­portância da lógica para o direito. .Ainda que não seja um reconhecimento que se dê na linguagem prática do direito, o fato é que a lógica, no seu sentido contem po­râneo, vem ganhando um novo estatuto dentro do direito, tornando-se o seu estu­do algo im portante na formação dos juristas. Uma outra conseqüência é que se começa a perceber, no plano da dogmática, uma preocupação maior com o fenó­meno da própria língua — em autores que não são filósofos do direito e até mes­mo no jargão usual. Neste sentido, portanto, eu diria que muita coisa mudou.

Q uanto à filosofia do direito, por outro lado, a grande conseqüência desse processo, a meu ver, é que não há mais como ficar indiferente à questão da lingua­gem. Ainda que seja para negar ou reduzir importância, qualquer filosofia do di­reito que não tome hoje posição diante dela será desconsiderada.

Uma terceira coisa a m encionar, por fim, com relação a isso, é o que vem ocorrendo no Brasil. C om parando com a Argentina, por exemplo, podemos dizer que aqui, embora esteja ocorrendo, esse desenvolvimento, e toda a preocupação com a lógica e com a linguagem, foi sempre muito mais lento e menos intenso.

O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do futuro da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

Há cerca de oito anos, numa conversa com aquele amigo alemão que já mencionei, o professor W olf Paul, ele me disse, e isto na época me impressionou muito, que na Alemanha se vivia uma espécie de m arasmo em termos de utopias, porque todas elas já tinham sido satisfeitas. Agora, se identificarmos utopia com aspirações, com sonhos que não se concretizam, creio que posso dizer, com relação a esta pergun­ta, algo similar ao que disse com relação ao fim do século, ao problema da arte, à questão da fé. Ou seja, a utopia é algo que faz sentido numa sociedade em que o escândalo funciona. N o caso da imprensa, por exemplo, o escândalo seria algo fundamental. .A partir do momento em que o escândalo se banaliza, a sociedade passa a ressentir-se de uma sensação de marasmo parecida com a que Paul descre­via — não porém no sentido de que as utopias tivessem sido realizadas, mas no de que se perdeu a sensibilidade para o escândalo, nos diversos setores da sociedade. Onde tudo se trivializa, a utopia perde seu sentido funcional. .Assim, prefiro dizer que visualizo o futuro da sociedade humana mais numa perspectiva niilista, de es­peranças vazias, do que utópica. O que, diga-se de passagem, não é um juízo de valor, mas de realidade.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos como riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em larga escala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais pro­blemas?

Permanecendo na mesma temática, creio que essa forma de destruição pode ser vista como uma conseqüência exacerbada do ser humano tornado objeto de si mesmo. A percepção da vida hum ana como realização, como posição, como criação, con­fere ao homem uma sensação de ilimitado — tudo é humano, tudo é realizável. Isto gera, de um lado, um aum ento da potencialidade do homem, mas de outro lado

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gera a possibilidade de sua destruição. O que me parece, portanto, é que essa cir­cunstância, quando levada ao extremo, conduz a uma autodestruição, na medida em que não se consegue mais contrastar isso com outra coisa, isto é, na medida em que há uma trivialização também dessa possibilidade de o homem fazer o que quer. O homem tornado objeto de si mesmo é o homem da técnica, é o homem para o qual, como diz H annah Arendt, tudo é possível — desde a arte e a ciência até a política e a relação com o ambiente. Assim, não havendo limite, o risco de au to­destruição é total: agressão ambiental, agressão à vida em geral etc.

1’rincipais publicações:

1970 Die Zweidimensionalität des Rechts als Voraussetzung für den Methoden­dualismus von Emil Lask (Meisenheim-Glan: Anton Hain Verlag);

1973 Direito, retórica e comunicação (São Paulo: Saraiva, 1997);1976 Conceito de sistema no Direito (São Paulo: Revista dos Tribunais);1977 A ciência do Direito (São Paulo: Atlas);1978 Função social da dogmática jurídica (São Paulo: Revista dos Tribunais);1978 Teoria da norma jurídica (Rio de Janeiro: Forense);1981 A filosofia e a visão comum do mundo (co-autor) (São Paulo: Brasiliense); 1988 Introdução ao Estudo do Direito (São Paulo; Atlas).2000 “O Justo e o Belo; N otas sobre o Direito e a Arte, o Senso de Justiça e o

Gosto Artístico” , Revista da Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP, vol. 2, 2000.

Bibliografia de referência da entrevista:

Arendt, H. Lições sobre a filosofia política de Kant, Relume-Dumará.Aristóteles. Retórica, M adri: Centro de Estúdios Constitucionales.Flusser, V. A dúvida, Relume-Dumará.Gadamer, H. G. Verdade e método. Vozes.Goldschmidt, V. A religião de Platão, Difel.Haberm as, J. Teoria de la acción comunicativa, M adri; Catedra.Heidegger, M. Chemins qui ne mènent nulle part, Paris: Gallimard.Kelsen, H. Teoria pura do Direito, .Martins Fontes.Luhmann, N. Sociologia do Direito, Tempo Brasileiro.__________ . A nova teoria dos sistemas. Editora da UFRGS/Goethe Institut.Platão. A República, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.Viehweg, T. Tópica e jurisprudência. Imprensa Nacional.W atzlawick, P., Beavin, J. H. e Jackson, D. D. Pragmática da comunicação huma­

na, Cultrix.W ittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp.

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MARILENA CHAUI (1941)

M arilena Chaui nasceu em 1941, em São Paulo (SP). Graduou-se em Filoso­fia pela Universidade de .São Paulo, onde obteve o grau de mestre em Filosofia, além dos títulos de doutor e livre-docente em Filosofia. Fundadora do Centro de Estu­dos de Cultura Contem porânea (CEDEC), foi também secretária municipal de cul­tura de São Paulo e presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filo­sofia. É professora titular da USP. Esta entrevista foi realizada em abril de 2000.

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhehn Meister em dois romances. Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri­meiro, o foco está posto na formação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um hom mote para que você nos falasse de sua formação intelectual?

Penso que sim, mas eu ampliaria a formação para além do aprendizado, fazendo-a incluir também a peregrinação. Quero dizer: a própria peregrinação tem sido for­m adora. O aprendizado assinala a dependência e a peregrinação assinala a au to­nomia, porém a formação inclui ambos. Ainda que eu hoje freqiíente os outros de uma maneira muito diversa daquela em que os freqüentava na juventude, quando o fazia para aprender, e não para interpretar, criticar ou me por de acordo, o fato é que se trata de uma formação contínua, que prosseguiu mesmo depois de eu ter teses prontas, trabalhos escritos e assim por diante. Para responder ã pergunta fei­ta, portanto, tenho de levar em conta uma longa formação que abrange também “os anos de peregrinação” .

Eu colocaria o início desse trajeto na minha infância em Pindorama, até os10 anos, período em que, retrospectivamente, percebo algumas coisas que foram muito im portantes para o rum o de minha formação. De um lado, a naturalidade com que minha família encarava a educação pública laica (minha mãe é professora primária), fazendo-me freqüentar o G rupo Escolar, em que fui despertada para o patriotism o, e, de outro, a ausência inicial de uma educação religiosa propriam en­te dita, em bora, de família católica, eu freqüentasse a Igreja. Na época de minha primeira com unhão, por exemplo, uma tia me dissuadiu de fazer o catecismo, e ela própria me deu as aulas preparatórias, de uma maneira que fugia completamente aos cânones mais ortodoxos. Só depois disso, ela me fez ler o Catecismo, pois eu teria que passar por uma prova, dizendo-me para decorá-lo sem me preocupar com o que aquilo queria dizer. E ela tinha razão, pois me lembro que a primeira per­gunta era: “Quem é Deus?” , e a resposta, “Um Ser perfeitíssimo, criador do Céu e da T erra”, o que era perfeitissimamente incompreensível para os meus sete anos!

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(mas, se vocês viram o livro que acabo de escrever, a pergunta ficou, não é mes­mo?). Além da escola pública e do patriotism o, minha formação, nessa época, se deu em grande medida através da leitura de M onteiro Lobato, que fiz de ponta a ponta; do cinema, pelo qual sempre fui fascinada; das histórias em quadrinhos, ou, como se chamavam na época, os gibis; e dos contos maravilhosos que a imagina­ção de minha tia produzia.

A partir dos 10 anos, porém, por problemas familiares, fui enviada para um colégio de freiras, na cidade vizinha, Catanduva, e, aí sim, tive uma form ação reli­giosa intensa. Pois foi somente então que, pela primeira vez, ouvi falar de uma coi­sa terrível chamada pecado. Mas o primeiro resultado curioso da formação religiosa foi a junção impossível que fiz de M onteiro Lobato (agora também o Lobato de “ Urupês" e de “ O escândalo do petróleo e do ferro") e catolicismo! E evidente que na época eu não o percebia, mas duas influências diam etralm ente opostas se reu­niram dentro da minha cabeça, deixando como marca, seja através da via católica, seja através da via Lobato, uma sensibilidade enorme para as situações de injustiça— pessoais ou sociais —, com binada com um componente do maravilhoso (vindo do próprio Lobato, dos romances de cavalaria, das vidas de santos, do cinema e do gibi), fazendo-me ter uma concepção heróica do m undo e da ação humana. Esse heroísmo da ação individual abnegada, que traz a justiça para dentro do mundo, levou-me, numa certa altura, ao desejo de ser freira e tornar-me missionária na África.

Depois desse período no colégio de freiras (que durou quatro anos), nós nos mudamos para São Paulo e eu voltei para a escola pública, indo cursar a quarta série ginasial no Colégio Presidente Roosevelt da Rua São Joaquim , onde eu cursa­ria os três anos do Colegial Clássico. Como passamos a m orar num apartam ento bastante pequeno, a biblioteca de meus pais, que até então preservavam numa sala à parte, ã qual eu não podia ter acesso, ficou espalhada pela casa. E foi então que pude ler três livros que sempre me haviam cham ado a atenção: A psiccuiálise no alcance de Todos; Do socialismo utópico ao socialismo científico; Filologia da lín­gua portuguesa. Num gesto de coragem, me pus então a lê-los, nessa ordem. Com o primeiro, fiquei absolutamente deslumbrada, tive a sensação de que a minha vida passava a fazer sentido: agora eu compreendia por que fazia certas coisas, por que não fazia outras, por que amava ou sentia repulsa por certas pessoas, por que ti­nha medo disso e daquilo, por que sonhava etc. Quem me conhece pode imaginar o que eu, com um livrinho de “psicanálise ao alcance de todos” na mão, produzi em termos de conhecimento psicanalítico! (Risos) Mas o mais im portante é que esse foi um primeiro instante em que me ocorreu o pensamento de que talvez o que me tinham ensinado no colégio das freiras, isto é, o sentido e o peso do pecado e da culpa, eu não precisasse me confessar para um padre, que talvez eu pudesse, em vez de me confessar, ficar sentada e tentar entender a mim mesma. Eu diria que Freud foi um dos principais responsáveis por me conduzir ao deslocamento da culpa; o meu problema não era com Deus, e sim com o superego. E isto já era um avanço enorme.

Foi então que li Do socialismo utópico ao socialismo científico, e tudo ficou ainda mais claro: “ M as é evidente! M as é óbvio! Eu esperava ser missionária, ou ser como um herói dos gibis, sair pelo m undo com batendo a injustiça... tudo isso é

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M arilena C haui: “ O m ito fu n d ad o r, fu n d o teo lóg ico -po iítico que susten ta o im ag inário so ­cial e po lítico , se co n stró i com a figura d o Brasil com o efeito de três o perações d iv inas s im u ltân e ­as: o Brasil e o b ra de D eus — a na tu reza parad isíaca — , é p lan o de D eus — a h istó ria p rov id en c i­al que assegura que este é o país do fu tu ro — e é v o n tad e de Deus — p o r quem é in stitu íd o o Es­ta d o e defin ido o g o v ernan te . Sag ração da n a tu reza , sag ração da h istó ria e sag ração d o p o d e r são os p ilares de nosso m ito fu n d a d o r” .

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socialismo utópico! N ão vai resolver nada! Existe uma ciência que realmente ex­plica como a sociedade é e como é possível, por meio de uma ação cientificamente com provada, tirar a injustiça do m undo!” . A leitura do texto de Engels teve por­tanto, do ponto de vista do meu destino, um impacto igual ao d ’.4 psicanálise ao alcance de todos: se este me ensinava como eu poderia entender-me a mim mesma, aquele me ensinava como eu poderia agir para m udar a sociedade.

Por fim, li o livro de filologia. Embora não tenha tido o mesmo impacto exis­tencial, como no caso de Freud e Engels, foi uma grande descoberta saber de onde as palavras tinham vindo e o que elas queriam dizer e isso despertou um sentimen­to de encontro de mim mesma, já que desde pequena eu tinha tido essa curiosida­de. Lembro-me que, ainda criancinha, eu ficava pronunciando as palavras e me perguntando de onde elas vinham — “noite”, por exemplo, era uma palavra que me assombrava. Ou então, um pouco mais tarde — com 6, 7 anos — , eu me intri­gava com algumas palavras abstratas. Certa vez cheguei a perguntar para minha mãe: “.Vlãe, o que é a nação? Eu não vejo a nação, não seguro a nação, não toco a nação! Cadê a nação?” . Ela me deu uma explicação, dizendo que a nação era o conjunto dos brasileiros, tudo aquilo que havia no Brasil, a terra etc., mas esta explicação não me satisfez — a nação continuou sendo uma abstração incontrolável. Já no livro de filologia, porém, tudo começou a fazer sentido: por que nação é na­ção; por que noite é noite; por que branco é branco etc. Foi um milagre, um desven- dam ento do mundo. O “mundo em si” passou a fazer sentido porque as palavras passaram a fazer sentido. No Colegial Clássico comecei a ter aulas de filosofia com o professor João Vilialobos, que era extraordinário. Ele começou, no primeiro ano (para uma meninada de 15 anos), dando lógica, e, no primeiro dia, sem maiores explicações, fez uma exposição sobre Parmênides! Vocês podem imaginar o que era, para quem tinha apenas 15 anos e não sabia de nada, um curso de filosofia que começa com Parmênides! Depois da sua primeira aula, quando ele saiu da sala, foi aquele alvoroço: “O que é isso? O que ele falou?” . M as a minha reação não foi essa. Eu fiquei num completo silêncio, incapaz de dizer qualquer coisa. Aí houve a se­gunda aula e ele falou sobre Zenão de Eléia. Continuei não entendendo nada, mas algo me pareceu fascinante na idéia de que o movimento talvez fosse diferente da­quilo a que costumamos cham ar movimento, de que talvez a realidade não se m o­vesse. O terceiro autor que ele apresentou foi Górgias, e, no meio da argum enta­ção de Górgias sobre o ser e o não-ser, percebi aonde o Vilialobos e o Górgias es­tavam querendo chegar: estavam querendo fazer-nos pensar sobre o pensamento. E até então eu não sabia que se podia pensar sobre o pensamento, nem que se po­dia pensar e falar sobre a linguagem. Isto me deixou encantada, fiquei rindo à toa— algo que as minhas colegas simplesmente não conseguiam entender. Elas me diziam: "Com o você pode estar contente? Nós vamos tirar zero na prova e você fica dando risada?!” . E cu dizia a mim mesma: “ .Vias elas não estão percebendo o que ele está ensinando para a gente? Ele está ensinando que nós podemos pensar o pensamento, que nós podemos falar sobre o falar, pensar a linguagem!” . No segundo ano, tivemos história da filosofia e, no terceiro, além de história da filosofia, uma iniciação à psicanálise. Além do curso de filosofia, preciso lembrar que foram deci­sivos na minha formação o curso de história do Brasil, em que liamos os livros de

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Caio Prado Jr. (pondo em crise o meu patriotism o), o de português, quando desco­bri Carlos Drum m ond, M achado e Guimarães (fazendo a descoberta da literatu­ra), o dc latim, com a leitura de Cícero e Virgílio (chegando assim ao m undo clás­sico). Escola pública de verdade.

Com esse aprendizado, acabei escolhendo fazer filosofia porque senti que ela, e não mais a religião, me daria uma compreensão racional e totalizada do mundo. D urante o exame vestibular, na prova oral de filosofia, o professor Lívio Teixeira veio me exam inar, perguntando-me, no final, por que eu tinha escolhido fazer filo­sofia. Respondi que era porque eu tinha muitas dúvidas — dúvidas sobre o sentido do mundo, o sentido das coisas, o sentido da minha vida; dúvidas sobre a verdade da religião; dúvidas sobre como a sociedade poderia ser mais justa —, e porque eu gostaria de resolver um problema que me atorm entava desde muito cedo — o pro­blema de uma culpa originária, de uma culpa m aior do que ser culpado disto ou daquilo e o problema de como era possível que um Deus justo e misericordioso me tivesse criado para deixar que eu pecasse para depois me punir. E ele me pergun­tou: "A senhora acha que a filosofia vai resolver todas essas dúvidas?” . Eu respon­di: “Ah, vai! Lógico que vai!” (risos). E ele disse: “A senhora está tão enganada! A senhora vai ver que as suas questões vão aum entar em número e que cada uma delas vai se tornar muito mais complicada do que a senhora imagina! A senhora quer fazer filosofia assim mesmo?” . Resposta imediata: “Quero, professor, porque tenho cer­teza de que a filosofia vai resolver os meus problem as!” . Ele sorriu benevolamente e assim eu entrei para a Faculdade de Filosofia. E o professor Lívio não podia pre­ver que ele, afinal, seria responsável pelas respostas às minhas dúvidas quando ministrou um curso sobre Espinosa...

Q uanto ao período da minha graduação, para entendê-lo é preciso ter em conta que foi feito num Departam ento dc Filosofia anterior à ditadura e à reforma pro­veniente do projeto MEC-USAID, isto é, do projeto de massificação e de mera escolarização a que foi reduzida a universidade pública, destinada, doravante, a servir de trampolim para a ascensão social de uma classe média que serviu de suporte ideo­lógico para os ditadores e para fornecer diplomas para currículos voltados para a competição no mercado de trabalho. O Departam ento que freqüentei era universi­tário no sentido forte do termo: poucas disciplinas, poucas hora-aula, aulas prepa­radas por escrito e ministradas com esmero, muito tempo para leituras e trabalhos, diversidade de perspectivas docentes e de investigação. Embora nele começasse a prevalecer a técnica de leitura estrutural de textos e a inclinação preponderante para a história da filosofia, das ciências e das artes, nele era igualmente im portante a formação trazida pela epistemologia, pela filosofia política, pela estética e pela li­teratura, e também vigorava um debate sobre a técnica de leitura estrutural, que privilegia o com entário contra a interpretação e recusa a presença da história na tram a da própria obra filosófica. Era também um Departam ento com pluralidade de perspectivas políticas, indo da posição liberal à trotskista, mas atento aos riscos da ideologia, ainda que, como iria observar anos depois o Paulo Arantes, estivesse impregnado de espiritualismo francês. N o ano em que terminei a graduação, foi criada a pós-graduação, que era muito simples: um curso magistral com a duração de um ano e a apresentação de uma tese de m estrado, ao cabo de dois anos. O

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doutoram ento não fazia parte da pós-graduação e sim da carreira universitária, in­cluindo, pro-form a, a figura de um orientador, mas sendo, na realidade, já um tra­balho independente e de m aturidade intelectual, sem prazo para a apresentação. O m undo dos créditos, prazos, cursos obrigatórios e optativos, área e domínio conexo (enfim, todo o besteirol que conhecemos), foi fruto da reforma ditatorial. Fazendo um balanço desse período, creio que as marcas mais profundas em minha form a­ção foram: a técnica estrutural de leitura; a fenomenologia e o existencialismo como conteúdo da filosofia; e o marxismo, por mais precário que fosse o meu marxismo, como chave para decifrar a realidade brasileira. Era esse o meu horizonte quando escolhi .Vlerleau-Ponty para meu mestrado.

Que problema teórico a levou a Merleau-Ponty?A relação entre filosofia e marxismo, a partir d ’As aventuras da dialética e de Si­nais, que era o que eu conhecia de .Merleau-Ponty. Bento Prado, meu orientador, me propôs o tema (a crítica do humanismo) e um roteiro de trabalho que começa­va em Sens et Non sens e iria term inar n ’As aventuras da dialética. No entanto, em vez de começar por Sens et Non sens, comecei esse itinerário pel’O visível e o invi­sível, me detive na primeira nota de trabalho das notas colocadas no fim do livro, e acabei m udando meu percurso, concentrando-m e nas questões de fenomenologia e ontologia e As aventuras da dialética sequer entraram na dissertação. Se o trajeto inicialmente planejado era resultado da minha formação na graduação, ainda que ajustado pelo Bento, as leituras novas que tive de fazer — A fenomenologia da percepção, A estrutura do comportamento — acabaram levando-me à crítica mer- leaupontyana das filosofias da reflexão e da representação, do empirismo e do objetivismo cientificista, e determinaram minha relação com a filosofia daí em diante. Tanto assim que foi com essa perspectiva que eu participei do segundo grupo de leitura de O Capital (com Ruy Fausto e Roberto Schwarz) e dei minha contribui­ção ao primeiro número da revista Teoria e Prática escrevendo notas explicativas para um ensaio de Gorz sobre a Crítica da razão dialética, de Sartre.

£ como foi a decisão de estudar Espinosa no doutorado?Depois do mestrado, tornei-me professora do D epartam ento de Filosofia (em ja­neiro de 1967) e, seguindo a tradição do Departam ento, fui enviada à França para concluir meu aprendizado e aprim orar minha formação. Pretendia continuar estu­dando a relação entre a fenomenologia e o existencialismo, sendo a minha idéia trabalhar com Eric Weil em Lille. Mas Giannotti chegou para mim e disse: “Marilena, você tem uma imaginação excessiva e é muito indisciplinada. Você precisa de dis­ciplina, e por isso não pode continuar estudando filosofia contemporânea. Você deve estudar um clássico” . Desde o curso do professor Lívio, eu secretamente desejava estudar Espinosa e não o fizera por achá-lo um filósofo muito acima de minhas for­ças. Mas, agora, concordei: “Então está bem. Vou estudar Espinosa” . E fui para a França estudar Espinosa, com Victor Goldschmidt, em Clermont Ferrand.

A minha idéia era estudar a ausência do negativ'o na filosofia de Espinosa porque eu estava influenciada pela interpretação de Hegel feita por Gérard Lebrun, meu professor na graduação e que dera nosso primeiro curso de pós-graduação com

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uma exposição da negação da negação em Hegel, usando o exemplo de Espinosa como o contraponto perfeito da posição hegeliana. E estava também muito inte­ressada, graças a M erleau-Ponty, na questão da indeterminação e da contingência, que também tinha como contraponto a necessidade absoluta espinosana. Q uando mostrei a Goldschmidt meu projeto, porém, ele ficou um tanto horrorizado, dizen­do-me que aquilo era inviável, pois eu estaria tentando procurar em Espinosa algo que não há, estaria tentando colocar para Espinosa questões que ele exclui de prin­cípio. E eu lhe respondi que queria justamente entender por que ele as exclui. Q ue­ria entender o que leva Espinosa a recusar a negação e a contingência, quais os fundamentos dessa recusa. Evidentemente, Goldschmidt, enquanto um historiador da filosofia que trabalhava com a noção de responsabilidade filosófica, ou seja, de não ir além daquilo que o filósofo disse explicitamente, escreveu e assinou, não gostou da minha teimosia. Ele disse que me deixaria continuar, mas que eu não chegaria a lugar nenhum. Eu fiz então uma análise do primeiro capítulo da primei­ra parte dos Pensamentos metafísicos, e lhe mostrei. Dias depois, me disse que ha­via gostado muito, e reconheceu que, se me deixasse prosseguir na minha teimosia, talvez aparecesse algum resultado interessante.

Depois disso, no entanto, ocorreram os acontecimentos franceses de 1968, a parada total da rotina acadêmica, as barricadas de Paris, o crescimento político da contestação derrubando o PCF jPartido Comunista Francês) e o PS (Partido Socia­lista], a greve geral, a exigência que De Gaulle renunciasse. Iniciava-se meu segun­do ano na França e Goldschmidt enviou-me para Paris (ele me enviou para a Sor- bonne, mas, evidentemente, eu fui para Vincennes, onde tudo que havia de insti­gante na filosofia e na política estava acontecendo), num momento em que, creio, completa-se o meu ciclo de formação-aprendizado propriamente, pois foi então queli Lênin, T rotsky e M ao (e convivi com o grupo trotskista de Rouge), descobri .Marcuse e Reich e, por meio deles, os frankfurtianos. Era em Paris que eu ficava sabendo do que se passava no Brasil, dos acontecimentos da rua M aria Antônia; e foi a Paris que, no início de 1969, começaram a chegar os exilados, os professores cassados pelo AI-5, as notícias do desmantelamento do D epartam ento de Filoso­fia. E resolvi antecipar a minha volta, inicialmente prevista para 1970, e voltar em 1969 para ajudar a preservar o que restara do Departam ento, que havia sido esfa­celado e que, a duras penas, a professora Gilda de Mello e Souza dirigia.

Uma vez aqui, nas circunstâncias terríveis em que a esquerda se encontrava, achei que eu tinha a obrigação política e moral de fazer um trabalho que tivesse algum sentido para quem vive no Brasil. Continuei a preparar o doutorado, mas abandonei o tema da negação e da contingência (ou melhor, da afirmação da cau­sa de si e da necessidade absoluta) e passei a estudar os textos políticos de Espinosa e, neles, a superstição e a violência, trabalhando uma obra de Espinosa que, na época, ninguém trabalhava — o Tratado teológico-poiítico. Q uando eu ainda estava nas anotações de leitura, porém, o professor Miguel Reale, ã época reitor da USP, m an­dou avisar dona Gilda que o nosso D epartam ento corria sério risco de intervenção, pois não preenchíamos o número de titulações estipulado legalmente. Tivemos então de apressar as coisas: a M aria Sylvia )de Carvalho Franco] juntou alguns ensaios em preparação e fez a livre-docência, vários jovens professores, que iniciavam seus

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mestrados, também os apressaram e os defenderam, e eu simplesmente passei a limpo minhas anotações e fiz o doutoram ento. Este o motivo, por sinal, por que nunca publiquei o trabalho: não o considero uma tese. M as com isso, fizemos o D eparta­mento sobreviver com independência. E foi nessa época que Gilda de Mello e Sou­za (auxiliada por Victor Knoll e Arm ando M ora de Oliveira) criou a revista do Departam ento, a Discurso.

A volta ao Brasil, eu diria, marca o começo dos meus “anos de peregrinação” . No início dos anos 70, nós tínham os não apenas que garantir a existência do De­partam ento, como ainda viver sob o terror de Estado e a esperança reduzida de que os grupos revolucionários clandestinos pudessem, pelo menos, sobreviver fisicamen­te, uma vez que sua sobrevida política tinha os dias contados. Saíamos de casa, em direção ã Universidade, sem a mínima certeza de que voltaríamos à noite. Não sa­bíamos se no dia seguinte os alunos estariam lá, se os colegas estariam lá. Havia o Dops [Departam ento de Ordem Política e Social] dentro das salas de aula, apare­lhos de escuta na sala dos professores. De vez em quando, desaparecia um colega, e ninguém sabia se ele tinha se exilado, se estava preso sendo torturado ou se tinha sido morto. Foi a época do medo em estado puro (mais tarde, acabei escrevendo um pequeno ensaio a respeito), e foi também a época em que tentei minha primei­ra crítica da filosofia francesa, na qual fui formada: dei a aula inaugural do Depar­tam ento de Filosofia, em 1971, com uma crítica do estruturalism o e da Arqueolo­gia do saber, de Foucault. Quem vive sob o terror de Estado não pode adm itir que a realidade são enunciados discursivos e que o poder é uma rede de enunciados dis­cursivos, não é mesmo?

Foi na altura de 1971-72 que me pareceu que não bastava (como eu fizera na aula inaugural) uma crítica do que viria a ser conhecido, muito mais tarde, com o nome de linguistic turn, nem bastava estudar a política de Espinosa (como eu canhes- tram ente esboçara no doutoram ento), mas que era preciso dar alguma contribui­ção para compreendermos o fenômeno do autoritarism o no Brasil. Resolvi, então, estudar o Integralismo, motivada por uma entrevista que Miguel Reale tinha dado na época, afirmando “nós chegamos ao poder” . Meus pais haviam sido integralistas e em minha casa sempre ouvi o nome de Miguel Reale. Nessa ocasião, comecei a juntar as coisas e quis entender melhor quem era o “ nós” a que ele se referia. Num primeiro momento, cheguei a perguntar ã minha mãe o que ela achava que o profes­sor Reale tinha querido dizer com aquela frase. E ela respondeu que achava que ele tinha querido dizer que os integralistas agora estavam no governo. Eu fui então em busca de tudo o que estivesse ao meu alcance: consegui com amigos de meus pais quase todos os livros e documentos da Ação Integralista Brasileira, pesquisei do­cumentos do PCB, li historiadores e sociólogos, e assim por diante. A partir do conta­to que tive com autores como Thom pson e Christopher Hill, percebi que, em geral, os historiadores e sociólogos estudavam o Brasil a partir do que falta no país, e não a partir do que ele efetivamente é. E pensei em fazer o inverso: em vez do que nos falta (uma boa classe operária, uma boa burguesia, um bom Estado liberal), buscar o que efetivamente somos. N o fundo, a idéia espinosana da afirmação estava implí­cita nisso, pois eu queria entender a sociedade e a política brasileira não pelas ausên­cias e privações, mas pelo que está realmente presente e posto pela ação histórica.

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Como, no entanto — isso é algo que apenas hoje percebo com clareza — , eu nunca tivesse feito uma pesquisa empírica, e não soubesse fazê-lo, acabei fazendo análise de texto. Lembro-me que o com entário do Bento [Prado Jr.], ao 1er o meu trabalho, foi: “Você analisou Plínio Salgado como se estivesse analisando Aristó­teles!” . E, de fato, há coisas no meu texto que são muito engraçadas. Eu queria, por exemplo, mostrar que a classe operária, no período em questão, estava em ação, se form ando, e que portanto não era uma classe atrasada, rural, alienada, como a esquerda costumava vê-la. Para isso, eu peguei tudo o que o professor Aziz Simão havia escrito sobre o assunto, mais algumas coisas do Carlos Vesentini e do [Ed- gar| De Decca, e também alguns dados de arquivos históricos, e fui escrevendo, certa de que estava fazendo análise concreta dos fatos, sem me dar conta de que todo esse material estava sendo posto por mim a serviço de uma análise de textos, no caso, dos textos integralistas. M inha formação intelectual era tal que o máximo de realidade que eu conseguia alcançar era análise de texto! De todo m odo, acho que consegui dar o meu recado: não se pode compreender o Brasil pela falta, pela au ­sência ou pela privação. Aqui, país de capitalismo periférico, tem economia capi­talista, burguesia, proletariado, classe média, sociedade civil, Estado, ideologias au ­toritárias, luta de classes, história.

Nesse período, participei da criação do CEDEC — Centro de Estudos de Cul­tura Contem porânea —, e comecei a trabalhar sobre a crítica da ideologia (o estu­do sobre o Integralismo se inscreve nessa linha de reflexão). Nessa época, li a Cri­tica da burocracia e o Maquiavel, de Claude Lefort, de quem traduzi, para a revis­ta Estudos, do CEBRAP, o ensaio sobre a gênese das ideologias na sociedade m o­derna. A leitura de Machiavel: Le travail de l ’oeuvre foi decisiva para meu traba­lho em história da filosofia. Desde 1968, eu me debatia entre a leitura estrutural e a exigência marxista de compreender a relação entre obra e história, sem conseguir encontrar um cam inho interpretativo. Dada a ascendência comum — Lefort e eu tivemos como ponto de partida Merleau-Ponty — eu estava propensa a adotar a interpretação de .Vlaquiavel proposta por ele porque me mostrava como era possí­vel fazer uma história da filosofia não-guéroultiana (ou o que M erleau-Ponty cha­mava de história do tácito e do subentendido, que exige mais do que um com entá­rio e pede interpretação), ou seja, um tipo de trabalho em que a separação obra/ gênese, escrita/história, texto/contexto é algo impensável, já que o texto é uma ex­pressão da própria história e um dos constituintes da história. Também nesse perí­odo comecei a 1er Thompson e Hill, portanto, um marxismo que não se ocupa di­retamente com a infra-estrutura, mas com a ação social e política tal como conce­bida e compreendida no seu presente pelos seus sujeitos. É dessa época minha tese de livre-docência — a “ jovem” Nervura do real — , primeira tentativa de fazer uma história da filosofia que não precisa seguir os cânones estruturalistas, mesmo e so­bretudo ao fazer análise de texto. Também data dessa época minha colaboração com A dauto Novaes, na FUNARTE, de onde nasceriam os seminários sobre o na­cional e o popular na cultura brasileira (nossa crítica ao PCB dos anos 60), e, de­pois, os cursos nacionais sobre temas contemporâneos.

No início dos anos 80 participei da fundação do PT, quando, pela primeira vez, tive contato direto com os movimentos sindicais e com os movimentos popu-

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lares. Eu diria que esses são verdadeiramente os meus “anos de formação peregri­n a ” cujo primeiro resultado foi Cultura e democracia, cujos dois primeiros ensaios haviam sido escritos como capítulo final do livrinho dos Primeiros Passos, da Bra­siliense, O que é ideologia?, mas não entraram ali porque Caio Graco julgou que o livro ultrapassaria as páginas requeridas pela coleção. O título original do livro, “O discurso competente e outras falas”, foi m udado pela Editora M oderna, que o jul­gou hermético. O livro foi escrito antes e durante a fundação do PT, isto é, no pe­ríodo em que se discutia se seria necessário ou não criar um partido de esquerda novo. Por isso mesmo, a grande questão do m omento era: "O que é um partido de esquerda que seja dem ocrático?” ou seja, o que é um partido de esquerda que não seja a retom ada dos partidos comunistas nem dos partidos social-democratas? Por isso o carro-chefe da discussão era o problema da democracia tanto como forma interna da organização partidária quanto como objetivo da ação política. Dada a e.xperiéncia do totalitarism o e da social-democracia e dada a apropriação liberal da democracia, reduzida ao regime do Estado de direito, um novo partido de es­querda teria que propor uma nova idéia do socialismo e uma nova prática da de­mocracia. Cultura e democracia se inscreve nessas discussões.

•Apesar do título do li\ ro (título que não é meu e sim do editor) e apesar de minha intensa participação nas discussões da FUNARTE, ao vir para o PT eu não estava interessada na "cu ltu ra” e sim na ação política nova. que punha em xeque a divisão social entre competentes (que sabem) e incompetentes (que executam). C^omo é que eu fui parar nas discussões de cultura do PT? Q uando, em 1982, o Lula ia ser candidato, foi necessário (como em todo partido de esquerda que se preze) redigir o program a de governo (aliás, foi por causa do PT que, daí em diante, todos os partidos se viram obrigados a apresentar program as de governo) e, para isso, as pessoas foram divididas em grupos, conforme as suas áreas de inserção social e de ação política. Antonio Cândido, Lélia Abramo, M aurício Segai, Roberto Schwarz, entre outros, foram encarregados da discussão da cultura, e me convidaram para participar. Nós fizemos várias discussões, mas elas não resultavam num program a. Como eu havia anotado todas as discussões, assumi o compromisso de passar a limpo o que discutíamos para ver se chegávamos a um program a. Depois de uma rodada final de discussões, ficou pronto um texto, que a L&PM publicou como brochura: “Programa de política cultural do PT” , com todos os nossos nomes. Isso nos dei­xou em pânico, porque aquilo eram reflexões em torno da questão cultural, mas não um programa. E nós achamos, então, que era necessário escrever um outro texto para explicar o sentido do primeiro. E isso eu fiz sozinha. Foi a conta. A partir daí, tudo o que se referisse ã questão da cultura no PT vinha para mim (eu que estava interessada realmente no movimento social, no movimento popular, na questão da democracia, da ideologia...), seja para escrever, seja para fazer seminários, seja para debater os temas referentes à cultura erudita e a popular. N ão teve jeito...

Dada minha velha preocupação com a injustiça social, não foi por acaso que a questão central, para mim, foi sempre a questão da violência, sobretudo porque ela aparece tão naturalizada que não a percebemos como relação social instituída e cotidiana. Sempre me pareceu surpreendente que, num país como o Brasil, fale­mos na violência como um acidente (“epidemia de violência”, “crise de violência” ).

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até que me dei conta que isso decorre de três operações ideológicas muito precisas: uma operação de exclusão, que distingue um “ nós” ou a nação não-violenta por essência e um “eles”, os agentes violentos, estranhos ã essência nacional; uma ope­ração sociológica, que define a violência com o anom ia na passagem do arcaico ao m oderno, de sorte que são violentos os sujeitos que pertenceriam a um passado recente e não conseguiram adaptar-se ã modernidade; e uma operação jurídica, que localiza a violência nos crimes contra a propriedade (aí incluída a vida). Essa per­cepção do ocultam ento ideológico da violência real fez com que a violência se to r­nasse uma espécie de lente por meio da qual eu passei a ver o Brasil, orientou m i­nhas tentativas de crítica da ideologia, de propostas no cam po dem ocrático socia­lista, de participação nas reuniões da SBPCl, na fundação do C ED EC e do PT. A experiência na Secretaria .Municipal da Cultura de São Paulo fez com que essa len­te adquirisse um alto grau dc precisão. Pois foi o m om ento em que deixei de ser espectadora da violência e passei a ser alguém que podia e devia intervir, com m e­didas práticas, em situações de violência as mais variadas — contra as crianças, as mulheres, os sem -teto. os negros, os índios, os movimentos populares, o meio am ­biente, etc — captando com m aior clareza as form as e os m ecanism os de exclusão social e política que estruturam internamente a sociedade brasileira. E pude ver (com estes olhos que a terra há de com er) a violência do aparato legal e adm inistrativo, pois um governo de esquerda tem que fazer a descoberta dos limites à sua ação não a partir da expressão manifesta da luta de classes e sim a partir de suas expressões tácitas e secretas, postas nas leis e na burocracia.

Os anos 70 e 80 também foram um período de busca de caminhos para o ensino da filosofia, seja com muitas experiências pedagógicas e de mudanças curriculares com que pudéssemos conservar e transform ar a tradição do D epartam ento de F i­losofia (sobretudo nos anos 7 0 , quando o trabalho se realizava sob o tacão da di­tadura), seja com a luta pela volta do ensino de filosofia ao segundo grau, seja tam ­bém contra a reform a do ensino universitário e seus efeitos sobre o ensino da filo­sofia na graduação e na pós-graduação. A publicação do Convite à filosofia e da Introdução à história da filosofia assim com o alguns pequenos ensaios escritos no final de 70 e no início de 80 . exprimem essas preocupações. Digam os que tenho tido uma “ peregrinação universitária" que, nos 7 0 , lutou contra o projeto M EC - USAID, a licenciatura curta e a m assificação (pom posam ente cham ada de “dem o­cratização” ), nos 8 0 , lutou contra a “ universidade funcional e de resultados” , e, agora, luta contra o projeto BIRD e a “ universidade operacional” .

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­lações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Com relação a essa questão, faço minhas as palavras do professor Lívio Teixeira. Quando a revista Aut Aut fez um número dedicado ao tema “ filosofia no Brasil” , perguntaram-lhe sobre a existência de uma filosofia brasileira. E ele disse que pre­feria falar em “contribuições brasileiras ã filosofia” . Esta dem arcação me parece muito boa, me parece preferível a tentar falar em filosofia brasileira. É claro que, se se tem em vista a produção dos últimos quarenta anos, que constitui uma im­pressionante massa crítica de textos filosóficos, estam os perfeitamente autorizados

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a pensar nisso. M as a expressão me parece ruim, pois a grandeza da filosofia, quando com parada às demais disciplinas, está na universalidade. M esm o quando o univer­sal filosófico é abstrato , é este o cam po da filosofia. Talvez possam os falar em idiossincrasias nacionais — o em pirism o na Inglaterra; o idealismo na Alem anha; o intelectualism o na França — , mas o que se tem , na verdade, é uma pluralidade de respostas, historicam ente determ inadas, e uma pluralidade de argum entos, con ­ceitualm ente determinados, para questões que são universais. E por isso prefiro falar em “contribuições brasileiras à filosofia” .

Você foi uma das fundadoras da SEAF jSociedade de Estudos e Ativi­dades Filosóficas], em fins da década de 1970. O que significou essa experiência e o que, a seu ver, a distingue da ANPOF lAssociação Na­cional de Pós-Graduação em Filosofia], entidade que você preside hoje?

A SEAF foi criada muito menos com o uma associação acadêm ica do que com o um movim ento social de resistência à ditadura. A idéia básica era: o que nós, da filoso­fia, podemos e devemos fazer para dem arcar nossa resistência? N aturalm ente, isso fazia com que os tem as e as publicações tivessem uma natureza em inentem ente prática, de intervenção prática: “ C om o ajudar o pessoal que está sendo perseguido na P U C -R J?” ; “ Com o fazer frente à [Universidade] Gam a F ilh o ?”; “ C om o garan­tir o patrim ônio da U SP?”; “Com o ajudar a form ar um bom departamento no M ato G rosso?” ; “ Com o lutar para que a filosofia seja ensinada no segundo grau?” . A m arca fundamental da SE.AF, portanto, é a sua data: ela correspondeu a uma ne­cessidade política, percebida na época, de resistência à ditadura. O critério de ad­missão dos sócios, por exem plo, era sim plesmente o ser contra a ditadura: quem fosse contra, podia entrar. Assim ficava nitidam ente dem arcado quem nós éramos e quem era o nosso outro , e isto era algo de fundamental im portância se tivermos em vista os vários departam entos de filosofia espalhados pelo país, nos quais havia cúpulas form adas por gente diretam ente ligada à ditadura, a serviço da ditadura. A quantidade de alunos e de jovens professores que queriam fazer algo diferente, mas que não tinham qualquer força institucional, era enorm e, e a SEAF vinha ser­vir-lhes de canal de expressão.

A A N PO F, por outro lado, é algo com pletam ente diferente. À parte a política acadêm ica, ela é uma associação que se preocupa fundamentalmente com a excelên­cia acadêm ica e que está ligada não tanto à questão do ensino, mas à pesquisa em filosofia. E, com parada à A N PO C S [A ssociação N acional de Pós-G raduação em Ciências Sociais] e à ANPUH [Associação N acional de Pós-Graduação em Flistória], ela tem ainda a peculiaridade de restringir-se às coordenações de pós-graduação: não são os alunos e os professores que se tornam sócios da A N PO F, mas as própri­as coordenações — o que lhe dá um perfil bastante nítido. Apesar disso, porém , a AN PO F vive hoje um sério problema. Com o as pós-graduações de filosofia cresceram no Brasil inteiro, e cresceram de maneira muito desigual, essa heterogeneidade, com o se pôde perceber nas últimas reuniões, tem sido cada vez m aior, de tal m aneira que a A N PO F corre o risco de descaracterizar-se por causa disso. Em vez de constituir um fórum capaz de oferecer, de um lado, paradigm as de trabalho, e, de outro, um espaço de intercâm bio, ela corre o risco de se tornar uma feira de variedades.

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Acredito que podemos transform ar a A N PO F para que tenha uma atuação mais efetiva junto às pós-graduações. Penso que valeria a pena considerá-la um fórum de discussão de políticas acadêm icas, definindo com mais clareza a relação entre graduação e pós-graduação, oferecendo critérios e auxílios para a im plantação ou para o desenvolvimento de cursos de pós-graduação, defendendo a autonom ia das pós-graduações no diálogo com as agências financiadoras de pesquisa, de maneira a assegurar que as pós-graduações não se submetam às regras dessas agências no que respeita à produção filosófica propriam ente dita (quero dizer: que as agências tenham suas regras, normas e prazos para financiam entos das pesquisas, é mais do que certo e necessário, mas não podemos transform ar as determ inações extrínsecas à pesquisa, vindas das agências, em critério interno do trabalho acadêm ico). Em sum a, penso que a A N PO F chegou ao m om ento em que pode passar de fórum aca­dêmico a fórum de política acadêm ica.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria conto mais represen-tativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você nos contassecomo ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

Eu m encionaria os seguintes: discurso com petente; contrad iscurso; consciência popular trágica; sociedade autoritária; cidadania cultural; ontologia do necessário; e a idéia de um m ito fundador do Brasil.

Por que pensei numa consciência popular trágica? Quando participei dos movi­mentos sociais, e quando deles fui para os m ovim entos populares, eu me dei conta de uma coisa que na época foi apavorante para mim. Q uando você opera com os conceitos de alienação e de consciência alienada, o poder da ideologia é de tal modo hegem ônico e abrangente que não há brecha para a percepção da realidade, e, para que houvesse alguma percepção, seria necessário um processo de desalienação. Se tom am os, por outro lado, o conceito de consciência possível, trabalham os com o pressuposto de que há uma consciência histórica e m aterialm ente determinada que, não obstante isso, é capaz de perceber as linhas de força da sociedade e da história, e projetar-se para além da situação dada. Ou seja, a idéia de alienação exige a presen­ça de um agente externo que produza a desalienação, enquanto a idéia de consciência possível tem com o horizonte a idéia de um movim ento de superação do presente, graças à consciência social na história. O que a minha experiência nos m ovim en­tos populares me m ostrou, porém , é que não se tem nem uma coisa nem outra. E foi para m arcar a presença de algo determ inado, e não uma ausência ou uma pri­vação de alguma coisa, que formulei a noção de consciência popular trágica.

C^om essa noção pretendi assinalar, no interior da percepção e do saber das classes populares, a divisão realmente existente entre a clara percepção que elas têm da exploração, da dom inação e da exclusão, e tudo aquilo que elas incorporam da ideologia. N ão se trata, portanto, de uma consciência alienada, pois é uma consciên­cia que não apenas apreende claram ente a realidade e com o também age de m a­neira realista a partir dessa apreensão. N o entanto, as classes populares também interpretam sua percepção e sua prática, e é na interpretação que prevalece a ideo­logia dom inante. O resultado apavorante é mais ou menos o seguinte: as classes populares possuem um claro saber de si, que se exprim e em suas ações, e, ao mes-

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mo tem po, ignoram seu próprio saber porque o interpretam com os elementos fo r­necidos pela classe dom inante. Ou seja, há uma percepção, um saber e uma prática que vão além da situação dada e que são a crítica prática dessa mesma situação, e há, sim ultaneam ente, uma interpretação ideológica desse saber e dessa prática que encobre e oculta dos próprios agentes o sentido do seu conhecim ento e da sua prá­tica. Se cham o a isso de consciência trágica, estou constatando uma divisão inter­na constitutiva do saber e da ação populares, divisão entre a apreensão da realida­de e a ação, e a interpretação que a recobre. O ra, se pensarmos na análise que Vernant faz do herói trágico, em especial de Édipo, o que é esse herói trágico? É alguém que sabe quando ignora e que ignora quando sabe. E é nesse dilaceramento interno entre apreensão da realidade e interpretação encobridora, nesse jogo de saber de si e ig­norância de si que se constitui a consciência dos movim entos populares, dos movi­mentos sindicais, e dc diversos outros movimentos sociais. D aí eu ter escolhido a expressão “consciência popular trágica” .

Por que falo em sociedade autoritária? Na tradição de interpretação do Bra­sil, existe, por razões variadas, a tendência de considerar o autoritarism o com o um fenôm eno político referente ao aparelho de Estado. Fala-se em regimes autoritários ou governos autoritários para significar o fato de que, periodicam ente, a classe do­minante brasileira, diante dos impasses econôm icos e dos perigos que vê na socie­dade, introduz a noção de crise e institui pela força nua um regime que dá um per­fil autoritário ao Estado. O que eu com ecei a perceber, no entanto, sobretudo gra­ças à experiência de ter participado de movimentos sociais e, depois, de um gover­no petista, é que, na verdade, a estrutura da própria sociedade brasileira é autori­tária, verticalizada, hierárquica, excludente, fundada em relações de mando e obe­diência distribuídas entre superiores e inferiores. Ou seja, o autoritarism o não é um acidente político e sim a form a de nossa existência social, m arcada pela violência com o prática cotidiana invisível. Vivemos numa sociedade que transform a toda diferença social em desigualdade natural, e toda desigualdade social em diferença natural. Q uero dizer: as diferenças sociais são transform adas em desigualdades naturais e as desigualdades sociais são transform adas em diferenças naturais. A naturalização da desigualdade e da diferença sobredeterm ina a divisão social das classes com a divisão entre privilégio e carência, o privilégio detém o poder social e político, a legalidade e o direito ã repressão, enquanto a carência se perpetua por meio de relações de favor, tutela e clientela. Donde a dificuldade imensa para fazer aparecer o cam po dem ocrático dos direitos. A sobredeterm inação da divisão social das classes pela polarização entre o privilégio e a carência se torna obstáculo ã dem ocracia se esta não for reduzida ao regime político, mas for tom ada com o fo r­ma da existência social. De fato , tanto o privilégio com o a carência são particula­res e específicos, não há com o generalizá-los na direção do interesse com um sem desfazê-los da particularidade que os define; e com o não há passagem da parti­cularidade ã generalidade do interesse, não pode haver o movimento seguinte, qual seja, o da passagem da generalidade dos interesses ã universalidade dos direitos. Se a dem ocracia for tom ada com o criação e garantia de direitos, ela está bloqueada pela estrutura da sociedade brasileira. O autoritarism o, portanto, não é exceção, e sim a regra.

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F.ssas duas idéias, a da consciência popular trágica e a da sociedade autoritária, me levaram à de cidadania cultural. Eu tinha em mente, quando propus essa expres­são, o alargam ento dos conceitos de cidadania e cultura, tendo em vista que, se eles não fossem alargados, a expressão “cidadania cultural” não teria qualquer sentido.

Para o alargam ento do conceito de cidadania, parti da idéia de que a dem o­cracia não é a forma de um regime político, mas sim uma form ação social, e de que, neste sentido, a cidadania se constitui a partir da auto-organização social contra poderes políticos. Pois é nesta luta, neste conflito contra poderes políticos, que emerge a afirm ação de um direito. A cidadania não é a existência de um cidadão definido pela lei, mas a ação de constituição do cidadão e de instituição contínua de direi­tos. E a cidadania cultural nada mais é, neste sentido, que tom ar o cam po dos di­reitos referido à cultura.

Q uanto ao alargam ento do conceito de cultura, deveu-se tanto às discussões no PT com o à experiência na Secretaria M unicipal de Cultura de São Paulo. Nos dois casos, percebi cada vez mais nitidam ente a identificação sempre feita entre cultura e belas-artes (para não falar da identificação entre cultura e show musical...). ( ) alargam ento do conceito de cultura, proposto pela cidadania cultural, consistiu em apanhá-lo em seu sentido antropológico e filosófico de relação sim bólica (isto é, de relação com o ausente que cria o tem po, a linguagem, os utensílios e instru­mentos, as idéias e os valores, ou seja, institui a relação com o possível e o necessá­rio, o verdadeiro e o falso, o justo e o injusto, o belo e o feio, o bem e o m al), de tal maneira que todos possam reconhecer-se com o sujeitos culturais. A cidadania cul­tural foi pensada e praticada tanto com o a recusa da divisão entre cultos e incul­tos, quanto com o o direito a fruir a criação cultural e de participar dessa criação. Neste sentido, podemos dizer que o conceito de cidadania cultural politizou a no­ção de cultura e culturalizou a de cidadania.

Tomou-se lugar-comum o comentário a respeito do caráter momtmental de A nervura do real: im anência e liberdade em Espinosa, um volume de quase mil páginas, acrescido de mais quase trezentas páginas de notas, bibliografia e índices. E, no entanto, trata-se apenas do primei­ro volume, intitulado Im anência. Pensando na articulação com o pró­ximo volume, lembramos que já em Da realidade sem mistérios ao mis­tério do mundo você escreveu: “Engendrando-se no interior de uma crítica de discursos e de práticas que tomam impossível pensar e agir, a ontologia espinosana desvenda-se como um saber cuja questão é a do poder” (p. 97), pois, se “pensar é agir, pondo-se no movimento ima- nente das idéias verdadeiras, pensar já é prática da liberdade” (p. 88).Com isso, você formulou a noção de “contradiscurso”, que é apresen­tada em A nervura do real nos seguintes temtos: “Se, contemporâneo do seu tempo, Espinosa encontra no conceito de causa de si ou de uma substância tinica absolutamente infinita, complexa e causa livre eficiente do universo o alicerce para a dimensão demonstrativa e positiva de seu discurso, ao mesmo tempo a experiência do presente solicita-lhe que encontre nesse mesmo discurso força argumentativa e polêmica que o

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faça erguer-se como contradiscurso para enfrentar o que, aqui e ago­ra, tomaria impossível pensar e agir livremente” (pp. 93-4). Pergunta­mos então: o que é essa noção de “contradiscurso” e qual será a im­portância dela no próximo volume de A nervura do real, ainda por ser publicado?

A idéia de contradiscurso surgiu da confluência de duas questões que, em bora a r­ticuladas entre si, apareceram para mim em dois contextos diferentes. O primeiro deles foi o da tentativa para entender a posição de Espinosa, portanto, num co n ­texto de história da filosofia propriam ente dita. E o outro foi o da análise e crítica das ideologias, portanto , num contexto diretam ente político.

Na tradição interpretativa, Espinosa aparece ora com o aquele que, m anten­do uma perspectiva renascentista de cunho neoplatônico, teria, segundo alguns, mal compreendido e, segundo outros, radicalizado as posições modernas, particularmente as de Descartes e H ohbes, ora com o aquele que rompeu tanto com a tradição ju- daico-cristã com o com a perspectiva racionalista dos seus contem porâneos, ou ainda, numa terceira interpretação, com o alguém que, absorvendo aqui e ali as idéias con ­tem porâneas necessárias à elaboração de seu pensam ento, deu continuidade às ten­dências da tradição e às da modernidade então em curso. Em resumo, estamos diante de um renascentista anacrônico, de um m ístico panteísta, de um cartesiano judeu- m arrano ou de um precursor do m aterialism o histórico? Um seguidor ou um pre­cursor? Eu sentia, porém , ao ler Espinosa, que não era possível vê-lo sob essas pers­pectivas, que não era possível pensar em sua filosofia nem com o radicalização da tradição, nem com o simples ruptura, e muito menos com o continuidade. Foi então que me dei conta de que ele não continua, nem radicaliza, nem rompe, mas subver­te o instituído sem, no entanto, que ele tivesse de se pôr “de fo ra” , numa relação de exterioridade com o instituído. Eu me perguntava então; “O que é isso? O que é esse discurso que, à medida que se vai construindo, vai dem olindo aquilo que o im possibilitaria?” . E reparei que se tratava de um contradiscurso, ou seja, um dis­curso que realiza, ao mesmo tem po, a tarefa positiva de afirm ação de uma nova filosofia, e a tarefa crítica de dem olição de toda a tradição e do pensamento a ele contem porâneo; um discurso, enfim, que, ao se afirm ar, nega. O contradiscurso não é um ponto de vista externo que avalia e julga outros pensamentos, mas é constitutivo internam ente da construção de um pensamento e de um discurso novos. Donde sua natureza subversiva.

O outro contexto , sim ultâneo a esse, foi o da análise e crítica das ideologias. Durante muito tem po, dispúnhamos de três referenciais para a análise de ideolo­gia: o senso com um , para o qual todo e qualquer conjunto mais ou menos sistem á­tico de idéias se cham a ideologia; Althusser, que propunha a distinção entre ideo­logia (o falso) e ciência (o verdadeiro); e os frankfurtianos, que tom ando a lógica material da sociedade capitalista m ostravam o caráter ideológico da própria ciên­cia (e das demais produções culturais do Esclarecim ento ou da razão instrum ental ou da sociedade adm inistrada ou da sociedade unidim ensional) e contrapunham ideologia e crítica. Seguindo esta última trilha, com ecei a trabalhar sobre a ideolo­gia com o um pensam ento e um discurso lacunares nos quais os silêncios são a co n ­dição da coerência. Ao chegar nesse ponto, li o ensaio de Lefort sobre a gênese das

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ideologias nas sociedades m odernas, e pude com preender que não som ente os si­lêncios e lacunas são constitutivos da ideologia, mas que toda tentativa para fazer falar o silêncio ou preencher a lacuna a destrói porque a força a pensar e dizer o que não pode pensar nem dizer sob pena de autodestruir-se com o ideologia. A idéia de Lefort de que a ideologia é uma lógica da ocultação necessária da divisão social e é a recusa imaginária da divisão por meio de figuras da indivisão social, me levou a com preender que a crítica da ideologia não é passagem do discurso falso ao dis­curso científico verdadeiro e sim desmontagem do edifício im aginário que oculta a divisão social e a luta de classes. O ra, tanto a com preensão de que a ideologia é um pensam ento e um discurso que não pode pensar nem dizer tudo, com o a de que a ideologia é uma prática histórica (portanto, social e política) de encobrim ento im a­ginário da divisão e luta de classes tam bém me fez com preender que os m om entos altos de crítica da ideologia operam com o contradiscurso. E isso era patente na obra de Espinosa, pois ele obriga a teologia, a m etafísica, a ética e a política instituídas a dizer tudo até o fim, autodestruindo-se, mas nesse processo vai sendo engendra­do um pensam ento novo que pede um discurso novo.

Foi a idéia de contradiscurso que me levou ã de discurso com petente. Q uan­do traduzi o ensaio de Lefort sobre as ideologias, observei que ele distingue três m o­mentos e três form as na ideologia m oderna: a ideologia burguesa, tal com o anali­sada por .Vlarx; a ideologia to talitária, cu ja análise é feita pelo próprio Lefort; e a ideologia invisível, ou a ideologia da sociedade contem porânea, em cuja análise Lefort com bina elem entos vindos dos frankfurtianos e suas próprias idéias sobre o trabalho de ocultam ento social realizado pelo discurso ideológico. Seu principal argum ento para diferenciar a ideologia burguesa e a ideologia invisível é: enquan­to na ideologia burguesa havia agentes sociais que eram os portadores históricos das idéias — o pai, a fam ília, o patrão... — , a ideologia invisível está com pletamente difusa na sociedade e não há mais portadores para ela, donde sua invisibilidade. Em bora eu aceitasse a análise da invisibilidade, não podia aceitar a ausência de portadores ideológicos. Parecia-m e abstrata uma análise que não retornasse ã divi­são social para nela encontrar a determinação da própria invisibilidade. Isso me levou a estudar os autores que analisam as form as contem porâneas da divisão social do trabalho. Tom ando com o referência as análises do taylorism o e do fordism o, pri­meiro, do pós-fordism o e da acum ulação flexível do capital, depois, e levando em conta a transform ação da tecnologia e da ciência, que se tornaram , elas próprias, forças produtivas, e, por fim, tendo com o horizonte as discussões brasileiras em torno da autogestão e da autonom ia dos trabalhadores (discussões candentes nos anos 80 ), fui levada a perceber que o que estava acontecendo na aparência do processo social do trabalho era a cisão entre direção e execução, instituída prim eiro pelo taylorism o e pelo fordismo e, depois, pela transform ação tecnológica. O que a apa­rência social indicava, portanto , era o ocultam ento da exploração econôm ica, da dom inação política, da exclusão social e da exclusão cultural sob a ação e sob os efeitos de um só e mesmo critério: o critério “ natu ral” da distinção entre os que sabem e por isso dirigem e os que não sabem e por isso executam . A divisão social aparecia, portanto, com o divisão “ natu ral” entre com petentes, que mandam , e in­com petentes, que obedecem . Para explicitar esse processo ideológico e seus efeitos

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sociais, políticos e culturais, desenvolvi a idéia de discurso com petente, que pode ser resumido assim: “não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância” . Dizer, significando, eviden­tem ente, fazer e pensar, tanto quanto falar. Dessa m aneira, acreditei que a com ­preensão do que se passa na base material do processo de produção (no caso, no processo de trabalho) deixa mais compreensível a dim ensão ideológica daquilo que os frankfurtianos cham am de sociedade adm inistrada e daquilo que Lefort, ao ex ­plicar a ideologia invisível, cham a de saber do especialista.

E, no final das contas, a noção de contradiscurso e de discurso com petente puderam ser reunidas quando estudei um tipo m uito especial de greve operária, conhecida com o “greve do zelo” . Nesse tipo de greve, os operários “esquecem” todo o saber efetivo que possuem e seguem rigorosa e estritam ente as ordens de com an­do determinadas pela direção da fábrica (isto é, vindas dos técnicos, adm inistrado­res e gerentes) e o resultado é um produto defeituoso e imprestável. O que é a gre­ve do zelo? É um contrapoder que se exerce no interior do poder estabelecido: o poder estabelecido diz quem é com petente e quem não é; a greve do zelo, seguindo ã risca a ideologia da com petência, prova que ela só se sustenta pelo que esconde, isto é, a com petência real dos trabalhadores. O pera, na prática, com o o contra­discurso, na teoria.

A propósito disso, gostaríamos de lembrar o seu artigo “O discurso competente”, publicado no livro Cultura e dem ocracia, em que você procura mostrar o entrelaçamento entre poder e conhecimento que tem por resultado a form ação dos discursos competentes em nossa socieda­de, os quais disfarçam a dominação social que lhes dá o caráter de ins­tituídos. Nesse texto, a filosofia aparece, naturalmente, como “primei­ro lugar em matéria de incompetência”, ou seja, como discurso que não se ajusta às regras de competência do discurso instituído, aparecendo ao contrário como instituinte. No entanto, se deslocarmos o foco da questão e pensarmos na filosofia como elemento de legitimação do dis­curso na esfera pública, não haveria a í um problema? Como deve ser, na sua opinião, a relação entre o discurso filosófico e a mídia? Ou sim­plesmente; como fazer com que esse par “discurso competente/contra- discurso” não se funda novamente num novo discurso?

A diferença entre instituinte e instituído é proposta por M erleau-Ponty em dois contextos: na pergunta sobre o que faz grande e clássica uma obra de arte ou uma obra de pensamento, e no enigma do momento imperceptível em que um movimento revolucionário se transform a em regime político. O m om ento instituinte (na arte, no pensamento, na política) é aquele em que, debruçando-se sobre o presente e sobre a experiência, o artista, o pensador, o sujeito político interroga e interpreta o sen­tido desse presente e dessa experiência, decifrando-os numa chave nova que per­mite pensar o que ainda ou nunca foi pensado, dizer o que nunca foi dito e fazer o que nunca foi feito. A obra de arte, de pensam ento, política nasce transform ando a interrogação em pensam ento, arte, discurso ou ação política, e institui um cam po novo de pensam ento, discurso, prática. E a obra é grande quando tem por si mes­

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ma a força para suscitar uma posteridade, para dar origem a um futuro que a afir­ma, nega e supera. Todavia, o m om ento instituinte possui ainda uma outra face necessária: para usarm os um term o husseriiano, a obra e a ação se sedimentam. Tornam -se parte da cultura e da história e, com o tal estão instituídas, correndo agora o risco perm anente de ser apenas repetidas, reiteradas, transform adas em modelos fixos de pensam ento e de ação, perdendo a força que as fez nascer. O instituído é o cristalizado, aquilo que repetimos com o natural porque desconhecemos sua origem e seu sentido criador. A partir desse m om ento, surge o discurso do especialista (que simplesmente repete, sob a form a de norm as, o que antes havia sido descoberta e invenção), do político profissional (que transform a em modelo de ação aquilo que havia sido invenção histórica), do técnico (que instrum entaliza aquilo que nascera com o busca de conhecim ento).

M uitos dos meu trabalhos, desde aqueles sobre Espinosa até os de crítica da ideologia, se inspiraram nessas idéias de M erleau-Ponty. E o que se pode observar é o seguinte. N o universo da "co m p etên cia”, em que a palavra do especialista é lei, qualquer form a de pensamento ou de discurso se arrisca a assumir a fisionom ia do discurso com petente — o que ocorre, muitas vezes, à revelia do próprio autor, já que não se pode controlar a recepção social e política daquilo que se pensou ou se fez. Imperceptivelm ente, aquilo que nasceu com o interrogação, que fôra sugerido com o um cam inho possível que poderia ser percorrido, e que foi um longo trab a­lho do pensam ento, é apropriado com o norm a, regra, receita eficaz e eficiente, so­bretudo numa sociedade com o a capitalista contem porânea em que a inform ação é uma form a de poder e de consum o, precisando ser simples, veloz e facilm ente descartável no mercado da m oda. O s cham ados meios de com unicação de massa não apenas são a ação e o lugar por excelência do discurso com petente — muito mais do que a escola — , com o ainda produzetn a ilusão da dem ocratização dos conhecim entos, da inform ação e da com unicação, dando a impressão de que todos têm acesso ao saber. .Vlais do que qualquer outra esfera da vida social, a mídia é o espaço mais direto e im ediato da passagem do instituinte ao instituído, de cristali­zação e fecham ento do pensam ento, da linguagem e da ação. Estam os no interior de uma engrenagem extrem am ente perversa, porque, ao mesmo tempo em que a mídia é de fato , do ponto de vista da sociedade de massa, o meio para que se am ­plie ao m áxim o o acesso às artes e às idéias, às discussões políticas e sociais — o que é fundamental para a dem ocracia — , sua estrutura técnica (o instrum ental de produção e transm issão dos sons, imagens e textos) é fechada e lim itada, e as re­gras do m ercado e do poder impõem sua lógica à inform ação, reiteram necessaria­mente a divisão social entre os que supostam ente sabem e mandam e os que supos­tam ente não sabem e obedecem.

M as acontece que só tem os uma alternativa: ou a recusa com pleta desse jogo (o que significa ficar em silêncio) ou entrar no jogo para perturbá-lo, com plicá-lo, sugerindo aqui e ali que as coisas não são exatam ente com o aparecem ou com o são apresentadas. Pode-se contornar o risco de uma nova “com petência” se não hou­ver intenção pedagógica e norm ativa, e sim de debate, discussão, crítica , e a inten­ção de suscitar desconfiança sobre aquilo que é infindavelmente repetido, com o se a repetição produzisse verdades.

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Em artigo recente para o Caderno Mais', da Folha de S. Paulo (26/03/ 2000), você conclui que o mito fundador do Brasil “opera com uma contradição insolúvel: o pats-jardim é sem violência e, pela história providencialista, ruma certeiro para seu grande futuro; em contrapar­tida, o país profético está mergulhado na injustiça, na violência e no inferno, à procura de seu próprio porvir, na batalha final em que ven­cerá o Anticristo”. Qual a natureza dessa contradição? Como ela se exprime em esferas como a da política, por exemplo?

Eu cheguei a essa idéia do m ito fundador por cam inhos, com o diria Borges, que se bifurcam . Tudo com eçou quando, estudando Espinosa, eu estava trabalhando o Tratado teológico-político, cu ja tese principal é que a liberdade de pensamento e de expressão, além de não ser perigosa para a segurança e a paz da república, é ainda a condição da segurança e da paz. Para explicitar essa idéia, Espinosa com eça pelo seu oposto, isto é, com a origem do dom ínio político violento, encontrando-a no jogo passional do medo e da esperança diante da contingência dos acontecim entos e das ações hum anas, pois do medo nasce a superstição, desta a religião e desta o poder teológico-político, que aspira, através da instituição eclesiástica e dos gover­nantes por ela instituídos, exercer domínio sobre corpos e espíritos. Tal situação é tanto mais terrível quanto mais a operação teológico-política se realiza sobre um tipo determ inado de religião, a religião revelada, depositada num texto considera­do sagrado e sujeito a interpretações. Porque a fonte da religiosidade é misteriosa e porque o texto abre a disputa das interpretações e a luta para firm ar uma ortod o­xia (da qual dependem a instituição eclesiástica e a política), o pensamento e a e x ­pressão livres se transform am em perigo e sobre eles abate-se a violência teológico- política, de tal m aneira que, ao fim e ao cab o , é a pretensão de dom inar com pleta­mente os corpos (pela moralidade repressiva) e os espíritos (pela ortodoxia) que per­mite disfarçar de religião os conflitos econôm icos, sociais e políticos. Donde a tese que será dem onstrada de que a liberdade de pensam ento e de expressão são neces­sárias ã república. Para dem onstrar sua tese, Espinosa realiza três percursos: busca os elementos que constituem uma religião revelada, propõe um m étodo para inter­pretação do docum ento de uma religião revelada historicam ente determ inada (a Bíblia) e apresenta os fundam entos do poder político, explicando por que a políti­ca judaica foi uma teocracia (portanto, nela a religião e a política eram inseparáveis) e por que a política dos cristãos não pode, senão por violência, ser im itação da teocracia hebraica. O ra, a definição da religião revelada hebraica o leva a uma longa análise da form a assumida pela revelação, isto é, a profecia, e dos que receberam a revelação, os profetas. Compreendida a natureza teocrática da política hebraica, Espinosa pode dem onstrar que o conteúdo das profecias é sempre um só e o mes­m o: a Lei hebraica; e que o profeta é um chefe político. Em suma, o ob jeto da pro­fecia é, inicialm ente, a revelação da lei, que funda sim ultaneamente a religião e o Estado, e, depois de instituídos o Estado e a religião, a rem em oração da necessida­de do cum prim ento dessa lei. A profecia é um acontecim ento político e o profeta, um líder político que funda ou conserva o Estado.

•Mas essa tem ática sempre me deixou muito intrigada. Por que Espinosa dá tanta im portância às profecias e aos profetas? Q ue se passa historicam ente nos

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Seiscentos que o leva a essas análises? Isto me levou a estudar o conjunto dos m o­vimentos proféticos do período, a partir do século X V I. Partindo de Kolakow ski e de seu estudo sobre O s cristãos sem igreja, dos trabalhos de Clhristopher Hill sobre os radicais da revolução inglesa, dos historiadores políticos holandeses, e da obra de Scholem sobre Sabbatai Sevi, o messias judaico do século X V II, concentrei-m e principalm ente naqueles movimentos que tinham vinculação direta com a questão política (isto é, que se inspiravam nos profetas Daniel e Isaias e no Apocalipse de Jo ã o para afirm ar a proxim idade do fim dos tem pos, quando a com unidade dos justos instituiria a quinta monarquia ou o quinto império do mundo, ou o Reino de Mil Anos de felicidade, antes da Segunda Vinda do Cristo para vencer o Anticristo e iniciar o Ju ízo Final). Com isso, acabei desem bocando em estudos sobre o mes­sianism o judaico e sobre o m ilenarism o cristão, descobrindo as relações e os con ­tatos havidos entre o professor de Espinosa, M enasseh bem Israel (que era mes­siânico), e o padre Vieira, cu jo m ilenarism o está exposto na História do futuro: do quinto império de Portugal.

E o fato é que esse estudo, em bora feito para eu com preender o significado da profecia em Espinosa, acabou por servir de base para uma conferência num dos primeiros cursos organizados por Adauto N ovaes na FU N A R TE , sobre “ O s senti­dos das paixões” . Eu pretendia, a princípio, dadas as circunstâncias do Brasil, fa­lar sobre o medo, mas, por estar envolvida com a pesquisa sobre profecia, m essia­nismo e m ilenarism o, resolvi falar também sobre a esperança, fazendo duas confe­rências. Para isso, precisei tam bém estudar a concepção judaico-cristã do tempo e da história, o que me levou de Agostinho a Joaquim de Fiori.

Q uando da publicação das conferências, decidi publicar apenas a que fizera sobre o medo, pois a da esperança estava ainda muito crua e exigia muita pesquisa que eu ainda não pudera fazer. E o texto ficou na gaveta. M as, em 1992, quando decidimos, lá na Secretaria de Cultura, realizar um conjunto de eventos (sobre 1492, 1 7 9 2 , 1 822 , 1922 e 1 9 9 2 ), julguei que, com o Secretária, tinha a obrigação de es­crever alguma coisa sobre a conquista da América. Li os relatos de viagem e as cartas de C olom bo, bem com o seu livro secreto sobre profecias, e qual não foi meu es­panto ao ver o Alm irante do M ar O ceano afirm ar que sua empresa nada devia “ às m atem áticas e aos m apas-m undi” porque tudo devia a D aniel, Isaias e Joaqu im de Fiori! Evidentemente, com o C olom bo julgara haver encontrado o Paraíso Terres­tre, fui ler o clássico de Sérgio Buarque, A Visão do Paraíso, o que me levou ao trabalho de M aria Isaura Pereira de Queiroz sobre o messianismo no Brasil e ao de Douglas M onteiro , sobre o Contestado, e, é claro, à leitura de Os Sertões. Senti que tinha um cam inho para, um dia, pensar sobre o Brasil.

Em 1 9 95 , fui convidada para um sem inário, intitulado “ Brasil 2 0 0 0 ”, orga­nizado por Evelina D agnino, na Unicamp, e resolvi falar, a despeito de ser um tema tão batido, sobre o populismo, procurando contudo tratá-lo com o uma expressão determ inada do poder teológico-poiítico. Decidi, então, retom ar muito do que ha­via estudado e trabalhado, anos antes, quando discutira cultura popular, particular­mente uma idéia que eu desenvolvera desde aquele curso da FU N A R TE , isto é, que a religião m essiânico-m ilenarista é a via de acesso das classe populares brasileiras à política, e algumas idéias que eu desenvolvera num colóquio em Toulouse sobre

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o Brasil e seus fantasm as (particularm ente uma análise da sim bologia da bandeira brasileira, da letra do H ino N acional e do tríptico café-futebol-carnaval). O resul­tado foi a articulação entre o populism o com o form a dom inante da política e o m ilenarism o com o sua expressão dominada.

Som adas então essas primeiras idéias ã explicação m aterial da história brasi­leira — vinda de C aio Prado, Fernando N ovais, Celso Furtado, Francisco de O li­veira, entre outros — , e ao conjunto das inform ações fornecidas pelos antropólo­gos, críticos literários e rom ancistas, bem com o à minha própria experiência polí­tica, eu tinha a impressão de que se conseguisse articular tudo isso e acrescentar as inform ações que colhera sobre a idéia de tempo e de história no judaísm o e no cris­tianism o; sobre a teologia política analisada por Espinosa; sobre os grandes movi­m entos populares cristãos; sobre o período do “ acham ento” do Brasil; sobre o populism o, o autoritarism o e a violência brasileiros, eu poderia, talvez, encontrar uma chave para me aproxim ar do que podemos cham ar o grande im aginário bra­sileiro. Q uero dizer, para me acercar de algo que vai e volta, que é negado cotidia- namente pela experiência social e, no entanto, permanece incólum e, algo que rece­be periodicam ente a crítica dos artistas e da política de esquerda, e apesar disso sempre retorna, algo que parece imune aos mais variados ataques e permanece com o uma espécie de fundo imperecível. Foi então, com o que conseguindo com pletar o quebra-cabeças, que me dei conta de que eu não estava diante de uma ideologia, pois as ideologias acom panham sempre o m ovim ento da form ação histórica, mas sim diante de algo que indefinidam ente, interminavelm ente se repete sob a mudan­ça histórica, política, ideológica: trata-se de uma m itologia. A ela dei o nome de “mito fundador do B rasil", e foi ele o fio condutor para o livrinho publicado neste ano da graça de 2 0 0 0 , Brasil: mito fundador e sociedade autoritária.

O mito fundador, fundo teológico-político que sustenta o im aginário social e político, se constrói com a figura do Brasil com o efeito de três operações divinas sim ultâneas: o Brasil é obra de Deus — a natureza paradisíaca — , é plano de Deus— a história providencial que assegura que este é o país do futuro — e é vontade de Deus — por quem é instituído o Estado e definido o governante. Sagração da natureza, sagração da história e sagração do poder são os pilares de nosso mito fundador.

Em seu livro Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo, de 1981, há um ensaio dedicado a Espinosa, no qual podemos 1er que a filoso­fia espinosana é “a única filosofia na qual a liberdade do corpo, liber­dade do espírito e a liberdade política são inseparáveis” (p. 97). Cor­po, alma e política livres e inseparáveis não seria para você justamente uma súmula da filosofia de Merleau-Ponty? Em que sentido a obra de Merleau-Ponty orientou a sua leitura de Espinosa?

Sem dúvida o “ única filosofia” é efeito de ardor de iniciante!Com o eu disse, Víerleau-Ponty m arcou-m e para sempre e reconheço que m i­

nha interpretação de Espinosa não teria sido possível sem a perspectiva merleu- pontyana, pois foi dela que me veio a com preensão dos problem as e limites das fi­losofias da representação — onde Espinosa não se situa — , a exigência filosófica

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de não fazer da consciência de si reflexiva o berço do mundo — e a filosofia espino­sana não é filosofia do cogito — , a retom ada da dignidade ontológica do corpo — e Espinosa a realiza recusando uma relação hierárquica entre corpo e mente, criti­cando a tradição na qual o primeiro com anda a segunda na paixão e a segunda com anda o primeiro na ação — , a concepção da liberdade não com o livre-arbítrio, mas com o interpretação da situação de fato para ultrapassá-la num sentido novo— o que podemos 1er nas primeiras proposições da parte V da Ética, depois das partes anteriores criticarem o livre-arbítrio e a vontade livre e prepararem o caminho para a definição da liberdade com o interiorização da causalidade do corpo e da mente e com o aptidão de am bos para a pluralidade sim ultânea — , e, sobretudo, a noção de estrutura com o com plexidade dc ações e de ordens de realidade diferenciadas internamente — o que me auxiliou a com preender a substância e seus infinitos atri­butos, em Espinosa. E a insistência de .Vlerleau-Ponty de que a origem não é algo passado e sim aquilo que, aqui e agora, se exprime no originado foi uma pista muita im portante para eu me acercar da idéia espinosana de causalidade imanente.

Essa presença de .Vlerleau-Ponty pode parecer absurda, tanto porque o filó­sofo é um crítico de Espinosa (na primeira nota de trabalho d’0 visível e o invisí­vel— aquela que foi o fio condutor de meu mestrado — ele diz explicitam ente que a filosofia já não pode pensar segundo o recorte D eus-m undo-hom em , que era o de Espinosa), com o ainda porque sua filosofia trabalha com a contingência e a inde- term inação originárias, situando-se no pólo oposto ao da necessidade absoluta espinosana. Se, por e.xemplo, nada me impede de dizer que a liberdade significa para Espinosa, com o para M erleau-Ponty, um transcender-se na imanência, nem por isso posso identificá-los: para M erleau-Ponty , a transcendência repousa na indeter- minação e na contingência e na maneira com o ele pensa o ato criador; para Espinosa, a liberdade com o aptidão para o múltiplo sim ultâneo significa, negativam ente, a dem olição do im aginário da transcendência e da contingência, feita na parte I da Ética, que elabora, positivamente, uma ontologia do necessário com o ação imanente do ser absoluto em cu jo interior se desdobra a causalidade necessária da ação dos modos finitos e a liberdade humana. Da mesma m aneira, por exem plo, a com preen­são crítica da m etafísica, trazida por M erleau-Ponty, auxiliou-m e na com preensão da filosofia espinosana em que a crítica da metafísica é simultânea à elaboração da ontologia. E, ao mesmo tem po, a diferença entre os dois filósofos é profunda: Es­pinosa dem onstra que a metafísica judaico-cristã é inseparável das idéias de possí­vel e de contingência, que ela é elaborada para dar expressão filosófica ao im agi­nário do possível e da contingência, enquanto que M erleau-Ponty critica a m etafí­sica (sobretudo a moderna) por suas pretensões de oferecer as leis necessárias da realidade em si, a partir das representações. Entre eles, intercalam -se as obras de Kant, Hegel e Husserl. Ou seja, o horizonte de Espinosa é o infinito positivo ou atual; o de .Vlerleau-Ponty, a finitude.

M as Espinosa é um clássico e M erleau-Ponty escreveu que um clássico é aquele que não cessa de nos dar a pensar e de nos fazer pensar. Procuro interpretar Espinosa com o aquele cuja obra, ao interrogar a experiência de seu presente, nos oferece pistas e cam inhos para interrogarm os o nosso. Justam ente porque suas indagações e res­postas são diferentes das nossas é que ele nos dá a pensar e a escrever.

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K o primeiro volume de A nervura do real, preocupei-me em determ inar as causas das múltiplas e contraditórias imagens de sua filosofia (ateísm o, fatalism o, panteísm o, m onism o, m isticism o, m aterialism o etc .), exam inando a história da construção dessas imagens (quando, com o e quem construiu as imagens do “espi- nosism o” ?) para indicar o que a própria obra de Espinosa suscita essas imagens para um leitor judaico-cristão; mas tam bém busquei contrapor às construções histori­cam ente determ inadas a história do fazer-se da obra espinosana (quando, com o, por que, para que e para quem , contra que, a favor de que Espinosa escreve?). Esse percurso foi desvendando as operações de constitu ição da m etafísica (antiga e ju ­daico-cristã) com o justificação e afirm ação da contingência, seja, à m aneira aristo­télica, para encontrar uma região que escapa do tem po e do m ovim ento, seja à maneira judaico-cristã, para oferecer os fundam entos para a Teologia da C riação com o ato contingente da vontade divina. Interessou-m e este segundo caso, pois a elaboração da metafísica do possível e da contingência pela escolástica tardia (dos séculos X V I e X V II) a faz constitutiva do pensam ento ocidental m oderno (sem essa referência, não há com o entender D escartes, Leibniz, Kant e Hegel) e é dele que Espinosa parte com seu contradiscurso até a elaboração da ontologia do necessá­rio, na Ética. Essa elaboração na contra-corrente da história levou-me ao estudo do infinito atual, na m atemática moderna, ao lugar e sentido da causalidade eficiente imanente e ao conceito de causa sui com o expressão mais alta e absoluta do prin­cípio de razão e com o nervura do real. O segundo volume tratará das conseqüên­cias da necessidade absoluta para os seres hum anos, portanto, tratará das relações entre corpo e mente, das paixões e ações e da liberdade, pois com o Espinosa escre­ve, “ a necessidade não tira e sim põe a liberdade” . Para nós, que vivemos sob o im pacto da ideologia pós-m oderna da contingência, o fato de Espinosa situar-se na contra-corrente me parece um contraponto instrutivo e instigante.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação pennanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

O lhando para a história da filosofia, tem-se a impressão de que a filosofia sempre tende a eleger uma ciência paradigm ática para a definição da verdade e da certeza, aquela ciência em que a razão parece oferecer-se em sua plenitude (com o a m atem á­tica para Platão e para os modernos, por exem plo; as ciências da natureza para kan­tianos, neokantianos e positivistas; a história, para os hegelianos; as ciências da lin­guagem, para os nossos contem porâneos), de tal maneira que não sabem os se a concepção filosófica da verdade e da razão se exemplifica numa ciência ou, ao contrá­rio, a ciência exem plar leva à concepção filosófica da razão e da verdade. E claro que se poderia argumentar que a crítica kantiana e a hegeliana de uma ciência exem ­plar para a filosofia (particularm ente a crítica da exem plaridade m atem ática) faria supor a quebra dessa relação, mas não creio que foi o que se passou. Digam os que, antes de Kant, a filosofia podia ser escrita more geometrico, e que, depois de Kant, isso já não é possível. Porém, quem pode negar a referência à exemplaridade da física, na Crítica da razão pura, e a presença tácita das ciências da vida com o pressuposto da Crítica da faculdade de julgar} F. verdade, tam bém , que, a partir de Hegel, a fi-

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losofia não pode mais ser escrita more matematico nem com o se fosse ciência da natureza, mas isso não é por que, justam ente, ela passa a ser escrita com o história?

A posição de uma ciência exem plar, seja explicitam ente seja tacitam ente pode, entretanto, acarretar sérios problem as filosóficos, sobretudo quando são levanta­das as questões de fundam entação, seja da ciência, seja da filosofia. São questões com o essas que, afinal, aparecem nas discussões da fenomenologia husserliana contra o psicologism o, o historicism o, o antropologism o e o naturalism o com o obstácu­los à filosofia, com o se a absorção de um paradigma científico pela filosofia, ao desem bocar numa ideologia cientificista, fosse um dos elem entos do que Husserl cham ou de crise da ciência européia, isto é, da incapacidade ou impossibilidade da filosofia fundam entar-se a si mesma, mas tam bém com o obstáculos ã com preen­são dos fundamentos das próprias ciências e sobretudo com o perda do sentido do conhecim ento filosófico e científico, ou a existência de uma filosofia e de uma ciência que não sabem de onde vieram nem para onde vão.

Tam bém e interessante observar que, excluídos o ceticism o absoluto e o niilis­m o, a ciência tem servido quase sempre de argum ento para um ceticism o filosófico mitigado, isto é, a suposição de que a filosofia é incerta, incapaz de verdade, justa­mente por não conseguir continuidade e acum ulação progressiva de conhecim en­tos com o as ciências. É curioso notar que a teoria de Bachelard sobre os cortes epistem ológicos, que se inscrevia numa linha em que a mudança científica pressu­punha e repunha a continuidade, acabou reforçando o ceticism o filosófico m itiga­do e abrindo cam inho para um ceticism o mais profundo que foi, paradoxalm ente reforçado quando os trabalhos de Kuhn e Foucault, por motivos diferentes e com perspectivas diversas, buscaram quebrar a imagem da continuidade científica.

Ou ainda, se pensarm os, por exem plo, na diferença que Granger (na Filoso­fia do estilo) estabelece entre o cam po científico e o filosófico (o primeiro traba­lharia com a determ inação rigorosa do conceito e o segundo com a indeterm inação flutuante da significação), a distinção entre am bos levaria a afirm ar que a filosofia tem seus ob jetos no limiar da cientificidade, isto é, as significações são ou o que ainda não se tornou conceito ou o resíduo não conceitualizado, deixado pela ciên­cia. E isso explicaria com o e por que a filosofia foi tendo seu cam po diminuído à medida que a constitu ição das várias ciências foi transform ando em conceito aqui­lo que era apenas uma significação. Sob esta perspectiva, a relação entre filosofia e ciência seria de rivalidade, tema que foi longamente trabalhado por M erleau-Ponty tanto à luz da cisão sujeito/objeto, idéia/fato (os prim eiros ficando do lado da filo­sofia e os segundos do lado da ciência) com o à luz das questões que Ffusserl en­frentara (isto é, a necessidade de afastar o psicologism o e o historicism o para a ela­boração dos fundamentos da lógica, o naturalism o e o antropologism o para deter­minar os fundamentos da filosofia e das próprias ciências). -Mas essa rivalidade, lembra o filósofo , é obscurantista porque não tem com o horizonte a ciência e sim o cientificism o, operando com a oposição entre intelectualism o (com o imagem da filosofia) e etnpirismo (com o imagem da ciência), ignorando a com unicação inces­sante entre idéia e fato.

Se tom arm os com o referência essa rivalidade, notarem os que ela acabou pro­duzindo uma curiosa solução de com prom isso ou de guerra de fronteiras com uma

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trégua: pouco a pouco, a filosofia aparece com o reflexão sobre a ciência, isto é, com o epistem ologia. A filosofia, neste caso, não seria nem uma ciência entre as outras, nem uma ciência diversa das outras, nem aquela que, imperialmente, totalizaria as demais; ela estaria fora do cam po das ciências e refletiria sobre o fazer científico, seja sobre suas condições de possibilidade, seja sobre seus resultados, seja sobre suas transform ações, continuidades, descontinuidades. A trégua propõe a exterioridade entre a filosofia e a ciência. M as a rivalidade, a guerra e a trégua entre filosofia e ciência não é um puro acontecim ento teórico, não é um capítulo dc uma história abstrata das idéias. Ela tem a ver tanto com a lógica interna do trabalho científico e filosófico quanto com a mudança do lugar da ciência no m odo de produção cap i­talista, isto é, tem a ver com a m aterialidade do saber. Até o com eço do século X X , as ciências eram consideradas “notação da realidade” , distinguiam-se em teóricas ou puras e aplicadas ou práticas e se distinguiam da técnica e mesmo da tecnologia (isto é, a tecnologia é a técnica quando esta pressupõe, de um lado, conhecim ento científico e, de outro, uma ciência que exige a elaboração de instrum entos de in­vestigação). Digam os, de maneira muito grosseira, que a divisão entre teoria e prá­tica ainda fazia sentido nas ciências. O ra, o que o século X X introduz é o apaga- mento dessa distinção, não só porque a ciência deixa de ser notação do real para considerar-se encarnada nas próprias coisas, uma vez que estas são o ob jeto cientí­fico e este é inteiram ente construído pelas operações científicas, mas também por­que ciência e tecnologia já não podem ser diferenciadas, uma vez que o instrum en­to técnico não é um m ero utensílio e sim um elem ento constitutivo da própria ope­ração científica que produz efeitos sobre essa operação. Já não podemos falar em ciência aplicada. A ciência não se aplica às coisas por meio de práticas determ ina­das e por m eio de técnicas: ela constrói as próprias coisas e sua ação de construção já é uma intervenção que não visa apenas dom inar a realidade natural e social, mas produzir essa realidade — os autôm atos, de um lado, e o genom a, de outro , estão aí para ilustrar o que estou dizendo (por favor, não estou falando em term os heid- deggerianos da técnica com o violência e invasão da bela e pacífica m orada do ser!). Se, antes, ela se punha a serviço da produção econôm ica, mas não parecia inteira­mente determ inada por esta, agora essa determ inação é com pleta, e a expressão cunhada por H orkheim er, razão instrumental, ganha pleno sentido, isto é, de uma racionalidade que é, na verdade, racionalização para a regulação contínua do pro­cesso econôm ico. N ão é que simplesmente a ciência/tecnologia se tenha tornado (com o tudo, aliás, no capitalism o) uma m ercadoria a serviço de outras m ercado­rias e um instrum ento de dom inação e violência. Ela se tornou muito mais do que isso: tornou-se, prim eiro, força produtiva e, depois, relação de produção. O u o sentido que M arcuse dá à noção de tecnologia com o forma de organização e per­petuação das relações sociais capitalistas ou da sociedade adm inistrada que opera com a equivalência e hierarquia das funções. É isso que as pessoas percebem (mui­tas vezes sem com preender por que), quando afirm am que tem a riqueza e o poder quem tem o m onopólio da inform ação, isto é, capacidade operatória medida da eficácia dos resultados. E com o a m arca do capitalism o contem porâneo é a frag­m entação operacional de todas esferas da vida e da atividade sociais e sua reuni­ficação extrínseca por meio das organizações adm inistrativas, as ciências se frag­

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mentam , tanto externa com o internam ente, e suscitam , de um lado, a ideologia da com petência do especialista e, de outro , as epistem ologias das descontinuidades e rupturas, com o se estas fossem produzidas por um fenôm eno interno às próprias ciências.

Reunindo então essas vertentes na sua configuração contem porânea — a ciên­cia com o um discurso fragm entado e descontínuo de construção de seus próprios ob jetos, a ciência com o razão instrum ental e com o força produtiva e relação de produção — , dispom os, teoricam ente e m aterialm ente, de algumas pistas para nos acercarm os da concepção pós-moderna de ciência com o “narrativa” autônom a (à maneira do rom ance e do conto), criticando toda tentativa de apreensão do fenô­meno científico/tecnológico em sua totalidade ou aquilo que os pós-m odernos ch a­mam de “ m etanarrativa”, julgada totalitária — de tal m odo que devemos preser­var a narrativa (cada ciência em seu fragm ento específico) e abolir a m etanarrativa, abdicando assim de toda e qualquer reflexão a respeito das ciências com o um cam ­po passível de com preensão racional e h istórica. Uma conseqüência da fragm enta­ção operacional do conhecim ento é a m odificação que introduz no conceito de pes­quisa: esta deixa de ser a investigação a respeito de uma questão cu jo sentido se procura, e passa a identificar-se com aquilo que a publicidade cham a àesurvey, isto é, a localização de um problem a particular que precisa de solução tam bém parti­cular. Neste sentido, as ciências passam a operar com o estratégias locais para a so­lução de problem as locais, com questões de curto prazo e desligadas da uma apreen­são mais geral do próprio cam po científico em que está inserida a própria ciência particular que foi convocada para a solução do problem a. N ão só as pesquisas se tornam cada vez mais miúdas e irrelevantes do ponto de vista do conhecim ento, mas excluem interrogações sobre seu sentido e sua verdade. O pesquisador deixa de ser um investigador para tornar-se um resolvedor de problem as, afastando toda indagação sobre a lógica interna do conhecim ento científico e a lógica de sua de­term inação histórica material.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobreum possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como você se posiciona em relação a esse debate?

Baudelaire afirm ou que a modernidade é a tensão entre o efêm ero e o eterno. Klee disse que a arte é a captura do essencial no acidental. M erleau-Ponty julga que a arte, e não a ciência contem porânea, é a via de acesso ao mundo — é muito instigante, na abertura de O olho e o espírito., a diferença entre a ciência, que constrói o m un­do com o ob jeto dom inável, e a arte com o “ rum inação do m undo”, com o quiasma entre o corpo do artista e o corpo das coisas e a obra com o transcendência na imanência.

M as a sua pergunta parece ter com o pressuposto o debate Benjam in-A dor- no sobre o fim da aura, não é? E tam bém o debate entre vanguarda e conform is­m o, não é mesmo? N ós sabem os que a modernidade afirm a, com a secularizaçâo das artes, a idéia da autonom ia da arte (de que o nascim ento da literatura pode­ria ser considerado o caso exem plar), assim com o afirm a a autonom ia da ciência. N o caso das artes, porém , o desencantam ento do m undo, que as liberou da reli­

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gião e do Estado, não impediu que a sua determ inação pelo m ercado se desse mais rapidamente do que na ciência, de maneira mais direta e im ediata, porque elas não dispunham de uma proteção com o a ciência possuía, isto é, a distinção entre ciên­cia pura e ciência aplicada. Sem dúvida, a idéia de vanguarda pretendeu con tra­por-se ã contínua perda (ou não conquista) da autonom ia das artes — no caso do século X X , isso transpareceu, por exem plo, nas inovações da form a da narrativa, na pintura (seja na reflexão im pressionista sobre a cor e a luz, seja na expres- sionista com o reflexão sim bólica, seja na abstrata com o reflexão sobre a form a e o espaço), na música dodecafônica, na reflexão do teatro e do cinem a, isto é, um teatro e um cinem a que interrogaram seu fazer-se e seu próprio sentido, e em tudo o que se passou na arquitetura — , mas esbarrou sem cessar nas form as da hete­ronom ia, até desaparecer nos dias de hoje. Se Benjam in ainda interrogava o fenô­meno da desaparição da aura, os pós-m odernos com em oram a desaparição do autor e do artista.

Eu gostaria de retom ar a questão da aura por um outro prisma. A aura era a garantia de que a obra de arte é única e rara. Com o tal, corresponde ao que Krys- tophe Pomien cham a de sem ióforo, isto é, algo — um ob jeto , uma pessoa, um lu­gar — que é retirado de seu uso cotidiano na vida, de sua instrum entalidade e cir­culação, e passa a ter um valor sim bólico — o espólio de guerra, o lugar santo, a relíquia religiosa, o anim al sagrado etc. Um sem ióforo não tem “valor” porque tem significação. Para que se dê essa transform ação de algo ou de alguém em sem ióforo é preciso que esse algo ou alguém estabeleça uma ligação entre o visível e o invisí­vel (no espaço e no tem po), tenha sentido social e esteja exposto ã visibilidade para permitir uma celebração coletiva. Poderíam os, naturalm ente, supor que, com o ad­vento do capitalism o, os sem ióforos tendem a desaparecer — pois que sem ióforos poderiam surgir numa sociedade em que tudo é m ercadoria, em que nada pode ser tirado de circulação? O ra, existem três tipos diferentes de sem ióforos, cada qual disputando prestígio e poder numa sociedade: sem ióforos religiosos (com o relíquias, pessoas e lugares santos), sem ióforos políticos (com o o patrim ônio histórico-geo- gráfico nacional, os museus, e a própria nação) e sem ióforos da riqueza ou do po­der econôm ico, que são exatam ente aqueles postos pelo capitalism o e entre os quais estão, em primeiro lugar, as obras de arte. O capitalism o inventa a obra de arte com o sem ióforo (donde a idéia de raridade, o aparecim ento do m ecenato, o surgimento das coleções privadas, o financiam ento de instituições artísticas e a instituição do mercado de arte). Desse ponto de vista, a perda da aura é o preço que a arte paga não para dem ocratizar-se (com o desejava Benjam in), nem para desfazer a barreira entre arte e vida (com o queria a vanguarda dos anos 2 0 -3 0 do século X X ) , mas para tornar-se sem ióforo no mundo capitalista: para que a obra de arte seja considera­da única, rara, bela, sublime, valiosíssim a, precisa ter sido posta assim pelo m erca­do, ainda que o papel da vanguarda tivesse sido o da luta contra essa heterom onia e de afirm ação da arte com o criação do novo, contestação do instituído, crítica e protesto estético e social. Se considerarm os as tensões e contradições da arte m o­derna — o efêm ero e o eterno; o aurático e a reprodução técnica; a vanguarda e o conform ism o; a revolução e a reação; o nacional e o internacional; o global e o etnocêntrico; o particular e o universal — , poderíamos acrescentar a tensão entre a

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própria reprodutibilidade e o sem ióforo, mas este com o uma espécie de aura bas­tarda, determ inada apenas pela lógica do m ercado, pela posse de ob jetos de prestí­gio com enorm e valor de troca.

Se até certo m om ento, porém , essas eram tensões que se punham para as ar­tes sob a forma de questões, e que as artes viviam de fato com o tensões e contrad i­ções, no interior das quais o artista realizava suas obras, o pós-m odernism o vem celebrar apenas um dos term os de cada tensão, desfazendo suas contradições. Ce­lebra-se, hoje, o efêm ero (e não sua tensão com eterno), o acidental (e não sua ten­são com o necessário), o particular (e não sua tensão com o universal), o sem ióforo (e não sua tensão social), o conform ism o (e não a tensão entre vanguarda e instituí­do), a superfície (em lugar de sua tensão com o invisível), a reação (e não a exigên­cia de criação), a ilusão (em vez de sua tensão com a revelação do verdadeiro). Com esses definidores da arte contem porânea, esta passa a ser a pura região do sim ula­cro , em pório de estilos, fashion, de que a fam osa Strada Novíssima dos arquitetos foi o manifesto ou a certidão de nascimento. A meu ver, as formas mais emblemáticas da arte contem porânea são a publicidade e o videoclipe, pois am bos ostentam os elementos fundamentais do fazer artístico de nossos dias: tecnologia em estado puro, determ inação direta pelo mercado com o mercado de imagens, desaparição do tempo (fragm entado em instantes velozes e fugazes), desaparição do espaço (fragm enta­do em imagens efêm eras), repetição interminável e nauseante, culto narcísico, im­possibilidade da transcendência na imanência.

£ hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des­frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

N ão sou saudosista (o saudosismo é uma forma disfarçada de conservadorismo que, envergonhadam ente, é conivente com o m odism o). M as gosto sempre de lem brar a maneira com o M oses Finley nos fala da invenção da política pelos gregos e ro­m anos, distinguindo-a dos despotism os antigos. A política foi inventada quando se fez a distinção entre o poder do despotés ou do paterfamilias, isto é, o poder dom éstico ou privado, articulado à oikoenomia ou ao dominum (isto é, o governo da casa), o poder religioso, o poder m ilitar e o poder público propriamente dito. Ou seja, quando houve aquilo que Lefort costum a cham ar de desincorporação do poder, isto é, quando o poder político não se identifica com o pai, o sacerdote e o capitão, quando é recusada a figura do governante com o figuração e autoria da lei e do saber, para que a divisão social possa exprim ir-se a distância da casa, do tem ­plo e da caserna, para que haja o trabalho social dos conflitos e das contradições no espaço visível da sociedade. É o fim dessa invenção que estam os presenciando, com o retorno gigantesco do poder privado .sobre o público e com a economia política com o substituto das práticas sociais.

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De um modo geral, eu diria que a política deixou de ser percebida com o lógi­ca da ação e expressão (im aginária ou real) das divisões sociais ou da luta de clas­ses, deixou de ser praticada com o cam po do poder e dos contrapoderes sociais, deixando de ser realizada com o cam po das práticas sociais articuladas à noção de governo da sociedade para reduzir-se à gestão ou adm inistração do setor estatal, este entendido com o fisco, alguns serviços públicos e operações sobre a moeda. O ocultam ento das divisões sociais, que sem pre caracterizou o modo de produção capitalista, se m ostra no próprio vocabulário. Fala-se, hoje, em três setores: o setor público, que se define com o um setor de planos m onetários e de serviços estatais, o setor privado, e um terceiro setor que pretende corresponder ao que antigamente se cham ava de sociedade civil. F. a política está confinada ao primeiro setor, subor­dinando-se ao segundo e tem endo o terceiro, tem or que se traduz em práticas ati­vas de despolitização da sociedade. Essa setorialização, típica da idéia de organiza­ção administrativa e gerencial, enfatiza a figura curiosa do político profissional (subs­tituto do antigo representante), misto de lobista e de especialista com petente em questões que deveriam ser de todo mundo ou das classes sociais; e alim enta o en­colhim ento do espaço político e o alargam ento do espaço privado, a partir do m o­m ento em que a política e a esfera estatal se identificaram , e em que, sobretudo com o neoliberalism o, a ação estatal se reduziu à gerência administrativa de um “setor” , desapareceu a res publica, não só no sentido clássico de fixação e disputa pelos fundos públicos, mas tam bém no sentido de articulação entre república e dem ocracia, isto é, uma form ação social (e não um regime governam ental) instituída pelas práticas sociais de criação e garantia de direitos. Essa redução da política ao governo com o gestão adm inistrativa, ao exprim ir a fragm entação social e encolher o espaço pú­blico, am pliando o privado, é inseparável da idéia de m ercado político e de m erca­do de imagem, isto é, da posição narcísica do político profissional cuja imagem com o indivíduo privado é vendida pela publicidade. E é isso tam bém que acaba por co ­locar na ordem do dia as questões morais ou éticas, percebidas do ponto de vista do indivíduo com o átom o na multidão solitária. N o caso do Brasil, essa situação é especialm ente grave, porque o que se passou a propor com o espécie de sucedâneo da política foi a idéia da reform a adm inistrativa do Estado: a política consiste em reform ar adm inistrativam ente o Estado. Logo, não há lugar nenhum para a políti­ca enquanto tal. É claro que ela continua acontecendo, porque não corresponde a essa definição pobre, mas continua acontecendo à margem das decisões, que fica­ram a cargo do “setor” público. E, se temos em vista a idéia da dem ocracia com o o cam po dos contrapoderes criadores e asseguradores de direito, vemos que a pro­posta de reform a do Estado visa excluir toda e qualquer prática dem ocrática — a qual passa a ser vista pelo Estado não com o aquilo a que o Estado responde, aqui­lo com que o Estado dialoga e estabelece os seus com prom issos, mas com o um obstáculo, um perigo e uma crise contínua para esse projeto político — daí o dis­curso oficial propor “ parecerias” com o “terceiro setor” e desqualificar tudo o que, fora de seu controle direto, se passa na cham ada sociedade civil: desqualificam -se as oposições, desqualificam -se os m ovim entos sociais, desqualificam -se todas as práticas sociais e políticas autônom as ou que correspondem a interesses conflitantes das classes sociais. E as falas oficiais não exprimem o que seria uma espécie de má

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vontade com relação à sociedade, nem de incom preensão com relação à ação polí­tica; elas exprim em uma tom ada de posição a respeito do fecham ento da esfera política. Portanto, e isto mostra o quão grave é a situação, o processo de despo- litização se torna ao mesmo tem po um processo de destruição da dem ocracia.

Se, tendo essa situação em vista, pensarmos na questão do Estado N acional, creio que há duas coisas a considerar. Primeiro, devemos notar que a noção de Estado N acional faria sentido na medida em que a esfera da política abarcasse toda a for­m ação social. Reduzido o Estado à gestão do “ setor” público, e concebida a socie­dade com o um bloqueio a essa gestão, é preciso redefinir, no próprio plano inter­no — antes portanto de pensar na questão internacional — , o que se entende por Estado N acional. Pois, a meu ver, o que está ocorrendo hoje, com a pauperização da política e o deslocam ento do seu lugar, não é o desaparecim ento do Estado N acional. .Muito ao contrário: o Estado N acional deixou de ser ob jeto de disputa ou de programa (com o aconteceu entre 1830 e 1 9 70 ), porque as lealdades em rela­ção a ele estão garantidas, a sua representação está perfeitam ente consolidada. O que muda e a função dessa representação, que passa a ser mero critério para aferir governos: se estes melhoram ou pioram a nação, se a elevam ao patam ar de outras nações ou não, e assim por diante. Ou seja, o Estado N acional passa a ser, de um lado, o elemento ideológico de legitim ação de governos, e, de outro, o metron de aferição do desempenho governam ental. Isto explica por que, em toda a discussão atual em torno da soberania nacional, o Estado N acional acaba sendo visto com o um dado cultural, quase à maneira romântica. Pois, com o desfazer-se dos elementos anteriores de identificação — políticos e de classe — , com a fragm entação do espaço (isto é, da idéia de território) e do tempo (isto é, de história), a referência propria­mente política ao Estado N acional perdeu todo e qualquer sentido. E não é para nos surpreendermos: enquanto o capital requereu enclaves territoriais contínuos e soberanos, o Estado N acional fazia sentido e era objeto de disputas. H oje, a acu­mulação e reprodução do capital não precisa dessa referência e a nação, exatam ente quando se consolidou com o institucionalidade reconhecida, torna-se desnecessária.

Desse m odo, não podemos dizer que o encolhim ento do espaço político de­corre do desaparecim ento do Estado N acional, mas sim o contrário, ou seja, que o encolhim ento do espaço político, som ado à internacionalização da econom ia, é que acarretou a perda de sentido na idéia de Estado N acional. O que não quer dizer que ele desapareceu, ou que não possa readquirir sentido, mas apenas que, na con ­juntura atual, ele deixou de ser uma referência política e ideológica e passou a ser apenas uma referência ideológica.

Saiu há pouco tempo uma coletânea de artigos, intitulada Commemoratiom, que eu resolvi ler por causa do título (afinal estam os nos “ 5 0 0 ”, não é.'). O mais interessante nesses artigos é a percepção de que simplesmente desapareceram to­das as referências objetivas da m em ória: o capitalism o as destruiu uma por uma. Restaram as que têm valor de mercado turístico e as que são individuais ou familiares, cada fam ília tendo o seu pequeno museu. Com o não existe mais um tem po coleti­vo, não existe mais uma memória coletiva. O ra, um dos elem entos fundamentais na constitu ição da idéia de Estado N acional era a memória coletiva, que preserva­va uma tradição nacional contínua — o que perm itia não apenas m arcar o per-

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tencim ento dc alguém à nação, com o pensar em term os de progresso, de futuro. H oje não há mais uma dem arcação tem poral, e nem mesmo, com o mundo virtual, uma dem arcação espacial: as referências deixaram de ser o tempo e o espaço e passa­ram a ser esta ou aquela tradição fam iliar ou com unitária, este ou aquele lugar — ou seja, as unidades mínimas que resultaram da fragm entação do tempo e do espaço.

Sendo assim , podem os dizer que restam apenas três referenciais básicos: a fam ília, com o guardiã da tradição, a religião fundam entalista, com o tentativa de­sesperada de recuperar a totalidade perdida, e, situado entre elas, o indivíduo, com o um átom o solitário em busca do seu lugar. E é precisam ente este indivíduo que aparece com o figura a que se dirige o marketing político, pois este opera com e para a redução da política ã condição de imagem e espetáculo da vida privada. O ra, nada mais natural, num tal quadro, que se passe das antigas questões políticas e sociais para as questões morais: esse revival da ética se deve ao fato de terem desaparecido os antigos referenciais da ação e outros precisam ser form ulados, tendo o indiví­duo com o centro.

Agora, o mais interessante é a maneira com o a ética está sendo pensada. De um lado, ela aparece com o retorno do velho mago (senhor de sua arte) que vem corrigir os desastres de seu aprendiz de feiticeiro: o caso da genética e do genoma são exem plares desse súbito afã prudencial. Ou seja, com o fazer para que o conhe­cim ento científico-tecnolügico não caia nas mãos erradas e não tenha um mau uso? M as, talvez, fosse necessário indagar: em que mãos ele está? Quem financiou as pesquisas e por que? De outro lado, abandonam -se as reflexões milenares da filo­sofia quanto à ética e se toma com o referência normativa e reguladora a organiza­ção administrativa, que define uma hierarquia de funções e responsabilidades, e que avalia e julga os seus m em bros conform e o seu lugar nessa hierarquia e conform e eles cumpram adequadamente as suas funções e responsabilidades. É isto o que, hoje, se entende por ética: operacionalidade funcional dos com portam entos, graças ao fornecim ento de um conjunto de norm as e regras que garantam , para cada indiví­duo, dentro do seu “ setor” específico, uma referência hierárquica, uma referência de função e uma referência de responsabilidade. Assim, fala-se em ética médica, ética do dentista, ética da empresa, ética na política, ética das mulheres, ética dos jovens... enfim , quantas se queiram criar. É uma deontologia regional alucinada que perde o sentido da ética propriam ente dita. E, nesse ponto, sejam os aristotélicos: se a política é jogada fora, a ética vai ju nto . O fato de o indivíduo, m ergulhado na m ultidão solitária, precisar agora de norm as de conduta, obtendo-as a partir do modelo organizacional, não indica apenas que, por falta de referência política, se está buscando a referência ética, mas tam bém que a própria referência ética se per­deu. É a idéia de práxis autônom a que desapareceu, substituída pela de com porta­m ento e sistema de com portam entos. A práxis cria a ação e o agente; o com porta­m ento assinala o grau de adaptação e funcionalidade das operações de um indiví­duo em sua relação com o meio ou com o am biente.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé f Ao falar da minha form ação, frisei com alguma ênfase o papel da religião com o explicação do universo, com o fonte de sentido para o mundo e para a minha vida

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individual, palmilhada pela fé e pela culpa. \ o entanto, creio que fui de tal m anei­ra “ vacinada” por Espinosa e por M arx com o vírus da razão que, por mais que eu possa com preender esse papel da religião na vida da alma religiosa, isto não signi­fica que eu tenha uma relação afirm ativa com a religião. Na verdade, tenho com ela, para usar uma expressão de M arcuse, a relação da tolerância passiva, pois não me vejo no direito de investir contra a consolação religiosa. N ão é esta, aliás, que me enfurece e sim o poder teológico-poiítico, a moral burguesa repressiva ou ascética que o protestantism o ofereceu ao capitalism o, o conform ism o e o conservadorism o católicos, o reacionarism o pentecostal, os fundamentalismos de todas as seitas e cores, que legitimam o que se passa na Irlanda, nos Bálcãs, no O riente M édio, a justificação religiosa do sistema social de castas, as religiões afro-brasileiras que operam com o com pensação espiritual para a violência e a discrim inação reais.

De qualquer m odo, eu diria que tenho uma relação bifronte com a religiosi­dade. De um lado — por causa dos estudos que fiz a respeito do m ilenarism o, do m essianism o, do profetism o — , passei a com preender a religião com o via de aces­so ã política por parte das classes populares, com o o lugar onde primeiro se m ani­festa a esperança de justiça. E, neste sentido, concordaria com a afirm ação de M arx segundo a qual “a religião é a enciclopédia e a lógica populares, o espírito de um mundo sem esp írito” . De outro lado, porém , tam bém concordo com sua afirm a­ção de que a religião é “o ópio do povo” , apaziguam ento espiritual das contrad i­ções sociais, da exploração e da dom ir :ão. Fatalismo. No seu fundo mais profundo, é o consolo para o medo profundo nascido da percepção da contingência nas co i­sas humanas e de nossa finitude.

Pascal fala do pavor causado pelo silêncio dos espaços infinitos e que não há medida entre o infinitam ente grande e o infinitam ente pequeno, senão a medida sobrenatural trazida por Jesus Cristo e pela graça. Kierkegaard expôs a essência da fé em Temor e tremor. Parece-m e significativo que tanto Pascal com o Kierkegaard tenham sublinhado o pavor e o tem or que subjazem ao ato de fé, pois explicitam o vínculo profundo entre a religião e o medo. Por mais bela e sublime que seja uma religião, jam ais abandona sua origem essencial no medo; ela pode transfigurá-lo e deslocá-lo, mas não pode suprimi-lo sem deixar de ser religião. E medo, sabem os, é uma paixão triste.

Transform ada em religião, a fé se torna um sistema de crenças que deve ser obedecido. Uma crença obedecida é subm issão a um saber, a um dizer e a um fazer anteriores a cada um de nós, que nos com andam do exterior e que interiorizam os pela obediência. Precisamente por este vínculo com a obediência, a fé se apresenta com o uma disposição do caráter para aceitar o que não pode ser compreendido nem pensado (por isso, no cristianism o, é uma virtude porque esta é definida com o dis­posição adquirida pela vontade guiada pela reta razão, e esta é definida pelos co n ­teúdos da própria fé). Isso é muito interessante quando se leva em consideração o princípio protestante da “liberdade do cristão” , isto é, o direito de cada um de in­terpretar o texto sagrado e de com unicar-se, espírito a espírito, com Deus, pois isso que aparece com o liberdade (porque inscrito na recusa da autoridade eclesiástica externa) não faz senão interiorizar a necessidade da obediência e torná-la desejável e desejada.

.Marilena C haui ,í31

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Conto você se situa em relação aos problemas de uma “mudança de paradigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada na linguagem?

Com ecem os com o que, hoje, se emende por m etafísica: a suposição de que o pen­sam ento pode alcançar as coisas tais com o são si mesmas, que a linguagem pode enunciar as idéias verdadeiras nascidas desse pensamento e que o acordo entre o ser e o pensam ento e deste com a linguagem constitui um sistema de relações uni­versais e necessárias, isto é, aquilo que, no século X V II, se cham ava ordem natu­ral, no final do século X IX e início do X X , se cham ava processo e, nos meados do X X , se cham ou estrutura. Em sum a, a suposição de que a realidade não faz senti­do sim plesmente, mas tem sentido e que este pode ser alcançado pelas operações da razão humana porque ela é parte dessa realidade e tom a parte nessa realidade. A m etafísica busca o fundo invisível do visível e considera que a realidade está pro­metida à inteligibilidade. E seu pressuposto é que a distinção alm a-corpo, sujeito- ob jeto , idéia-coisa, hom em -natureza, natureza-história não é obstáculo ao acesso à realidade mesma porque essas distinções são a realidade, quer com o um dado (a ordem natural), quer com o um feito (o processo), quer com o cruzam ento do dado e do feito (a estrutura). Falar em pós-m etafísica é dizer que essas suposições e pres­suposições não só desapareceram , mas foram invalidadas (em seus fundam entos e em suas pretensões de universalidade), seja pela experiência, seja pela história, seja pela própria razão. E se se tom a a “virada lingüística” com o causa, supõe-se, de um lado, que a linguagem tem uma função terapêutica para o pensam ento, e, de outro, que não há nada de m etafísico na própria linguagem, que esta não pretende dizer as coisas, mas apenas proferir a si mesma e referir-se a si mesma enquanto desempenho ou pragm ática, isto é, com o operação ou operacionalidade regulada por regras convencionadas entre seus usuários.

M as suponho que a pergunta tenha um alvo mais preciso. Com o está form u­lada, pressupõe H aberm as, não é mesmo? Portanto, que a pós-m etafísica é a que­bra do privilégio da teoria sobre a prática (o logocentrism o) e da pretensão da filo ­sofia de decidir sobre a verdade da ciência; que ela é inseparável da passagem do paradigma da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem (a relação en­tre proposições e estados de coisas substitui a relação su jeito-ob jeto ; e a consciên­cia transcendental constituinte se transform a em estruturas gram aticais); que ela se inicia quando não há mais cam inhos para separar o em pírico e o transcendental (seja sob os efeitos da fenom enologia do último Husserl, da antropologia de Lévi- Strauss, dos jogos de linguagem de W ittgenstein, dos m arxistas hegelianos pondo a totalidade social em suas determ inações concretas); e que ela repõe a necessidade de discutir sob outra perspectiva os temas clássicos da filosofia (universalidade e pluralidade da razão; relação entre filosofia e ciência; relação entre saber especi­alizado e Esclarecim ento; relação entre filosofia e literatura; estatuto da teoria e da prática; m éritos e lim itações da virada lingüística).

Nenhum a das questões propostas por H aberm as sob o term o “ pós-m etafísi­c a ” é irrelevante. Pelo contrário, estiveram e estão no cerne mesmo da filosofia. T am ­bém não é irrelevante discutir o primado da teoria sobre a prática nem os impasses da filosofia da consciência, nem o problem a dos duplos em pírico-transcendentais

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(com o dizia Foucault em As palavras e as coisas). M as se eu quisesse caricaturar as respostas ditas pós-m etafísicas, elas apareceriam assim: os metafísicos perguntavam “ por que há o ser em vez do nada?” , os pós-m etafísicos respondem que o ser são narrativas bem feitas; os m etafísicos perguntavam “com o é possível a verdade?” , os pós-m etafísicos respondem que o falso (ou a falsificação, com o preferem, já que pensam operacionalm ente) é a via régia do bom conhecim ento ou que o erro é um equívoco categorial; os m etafísicos queriam saber com o a razão pode estar circun­dada pela irrazão e conviver com ela com o risco, já os pós-m etafísicos cham am a razão de loucura porque faz a pergunta indevida pelo fundam ento; os m etafísicos perguntavam “qual a causa da controvérsia, se a razão é universal?” , e os pós- m etafísicos respondem que é conversando que a gente se entende. Ou seja, assim com o no caso das artes, as tensões e contradições tenderam a ser apagadas pela fi.xação de um dos term os em detrim ento de outro , me parece que o mesmo acon­tece aqui: já que a teoria é logocêntrica, fiquemos somente com a prática e não com a tensão entre elas; já que a ciência é discurso bem -feito, fiquemos somente com a narrativa e não com a tensão entre idéia e fato; já que a verdade é uma convenção lingüística, fiquemos com jogos de linguagem locais ou regionais, deixando de lado os problem as do sentido e da certeza. E assim por diante. .Mas o que isso quer di­zer? Que os term os das questões são m etafísicos e que se imagina estar fora da metafísica simplesmente porque se decidiu contra aqueles term os que a velha m eta­física prezava.

Há algum tem po, ouvi uma palestra em que o orador explicava a feliz desa­parição da subjetividade e da objetividade e, em seu lugar, introduzia a noção de fluxos energéticos errantes que se com binam fugazm ente num jogo de forças e migram em direções variadas, em novos jogos e com binações errantes ou circulantes. Ao ouvir a palestra, em pensava: “engraçado, já ouvi esse tipo de descrição em a l­gum lugar; onde?” . E, de repente, me lembrei: “claro, é assim que os econom istas e banqueiros falam das moedas, do capital financeiro e da tal “ bolha” que migra de país para país!” . Essa caricatura final é só para sugerir que talvez a pós-m etafí­sica não seja um acontecim ento causado pela atividade intelectual na república dos sábios e que, quem sabe?, haja mais entre o céu o a terra do que sonha a vã filosofia.

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu­turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

Bem, vocês viram o efeito de D o socialismo utópico no socialismo científico sobre m im ... |risos|.

Há uma dúvida muito grande com relação à etim ologia da palavra utopia: se ela vem de “eutopos” (o bom lugar) ou “ atopos” (lugar nenhum). M arx e Engels trabalharam com este segundo significado, mas nós poderíam os pensar a partir do prim eiro, desde que diferenciem os “utopia da cidade” e “cidade utópica”, e assim recuperar a dimensão utópica da política. Quero dizer: a “cidade utópica” é a cons­trução minuciosa e detalhada do futuro no presente, um futuro que não é um por­vir e sim um dado do próprio presente, operando com o m odelo, regra e norma de ação. É uma construção imaginária que prepara desastres porque obscurece o pre­sente e o futuro com o ação histórica. É o lugar nenhum. M as a “ utopia da cida­

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de” , ao contrário , é apenas uma idéia reguladora, um horizonte percebido nas li­nhas de força do presente, que suscita a crítica do presente e projeta a ação política no tem po, é uma abertura tem poral. É o bom lugar que construím os à medida que vam os agindo, sem saberm os exatam ente onde ele está nem com o ele é. Pois estará onde o pusermos e será com o o fizermos.

A sociedade capitalista, ou ao menos essa form a da barbárie a que chegam os, estimula e enfatiza a idéia de que o m ercado capitalista é não apenas o fim da his­tória , mas tam bém um destino. Isto produz, a meu ver, duas ilusões: o fatalism o do destino e o voluntarism o da contingência. E a tensão entre essas duas ilusões faz com que se “perca o pé” na prática política. O ra, a perspectiva utópica me parece capaz, enquanto uma espécie de idéia reguladora, de evitar essas ilusões. Ou seja, em vez de julgarm os a esperança utópica ilusória é ela que, aliada à análise da materialidade histórica, nos previne das ilusões fatalistas e voluntaristas. E repõe a im portância da política com o ação histórica (isto é, criadora do tem po), opondo- se à despolitização adm inistrativa.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar­ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas?

N ós sabem os que, de alguma m aneira, o racionalism o moderno apostou todas as suas fichas no papel em ancipador e libertador da ciência. N ão se contava, porém, com a força do modo de produção capitalista, com a sua capacidade de incorporar com o seus, todos os elementos externos, a ponto de não deixar “sobras” . E foi isso que ele fez com a ciência, que se tornou para ele um elem ento decisivo. O ra, tudo isso que resulta em violência, desastre e barbárie não é uma irracionalidade do sis­tem a. É um equívoco im aginar que, periodicam ente, o sistema secreta, ou excreta, restos irracionais. O que está aí é a sua racionalidade, a racionalidade de um pro­cesso avassalador que se apropria de tudo e que devolve, na forma da destruição, aquilo que já perdeu sua função — numa lógica que é portanto constitutiva do próprio sistema.

Q uando eu faço a crítica da “terceira via”, proposta pela social-dem ocracia inglesa, eu o faço porque sua idéia-chave é a de hum anização do capitalism o. Ima- gina-se que, se o capitalism o for humanizado e regulado por meio de norm as, esses desastres todos não acontecerão. Ou seja, imagina-se que há uma certa racionalidade que seria capaz de controlar o sistema em seus aspectos irracionais. A contece que, com o acabei de dizer, a destruição é perfeitam ente racional, faz parte da racio ­nalidade do sistema. E, portanto , o que se tem aí é tão-som ente o estabelecim ento de um conflito entre duas racionalidades antagônicas — um conflito que, eviden­temente, não pode ser resolvido no interior do sistema. Por exemplo: a racionalidade do sistema impõe o desemprego estrutural, a idéia de que, finalm ente, os seres hu­manos não são necessários para a acum ulação do capital e são por isso descartáveis. C om o é que você poderia im aginar uma solução para isso no interior do próprio sistema capitalista?

De qualquer m odo, creio que estam os de fato chegando a patam ares de bar­bárie social e de destruição que com eçam a por em risco todas form as de vida do

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planeta. Impede-se a vida hum ana, porque som os descartáveis; impede-se um sa­ber crítico , porque isso contraria a necessidade do sistem a; por meio dos satéHtes, controla-se toda inform ação e toda ação (e essa gente vem nos falar de totalitaris­m o!); destrói-se a camada de ozônio, destroem-se as florestas, poluem-se os rios e oceanos, invade-se o espaço sideral com lixo astronáutico; anestesia-se a sociedade com a televisão a cabo e a internet... É verdade que o capitalism o é um gato com sete fôlegos e que, se essa situação se tornar irracional para o capital, medidas se­rão tom adas para correção de rota. N ós já estam os vendo isso: as questões sociais e ecológicas estão sendo debatidas e recebendo acertos nos países de capitalism o m etropolitano ou central. M as qual é o procedim ento? Transferir ou deslocar os problem as para os países de capitalism o periférico. Tam bém é verdade que pode­mos chegar a um ponto de saturação em que mesmo essa solução se torne inviável. E, então, não creio que tais problem as, de escala planetária, possam ser resolvidos nos quadros do capitalism o. Se me permitem, farei uma observação de estilo espino- sano: uma causa é um efeito necessário de outra e produz efeitos necessários de­correntes de sua própria natureza ou de sua própria estrutura. Isso significa que não se pode esperar de uma causa que produz efeitos destrutivos e devastadores que ela também produza efeitos construtivos e renovadores — derruba-se facilm ente um tirano porque não se derrubam as causas da tirania, diz Espinosa. A lógica do ca ­pital é destrutiva. Tudo o que, no capitalism o, pôde ser construído, o foi por lutas sociais, por contestação e ação artística e cultural, por ação de contrapoderes polí­ticos e contradiscursos ideológicos, e não pelo desdobram ento interno do próprio capital.

Principais publicações:

1978 Ideologia e mobilização popular (co-autora) (R io de Janeiro : Paz e Terra); 1981 Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas (São Paulo: M o-

derna/Cortez, 1 9 89 );1983 ( ) que é ideologiaf (São Paulo: Brasiliense);1984 Da realidade sem mistérios ao mistério do mundo (São Paulo: Brasiliense)1984 Seminários (São Paulo: Brasiliense);1985 Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida (São Paulo: Brasiliense);1986 Conformismo e resistência (São Paulo: Brasiliense);19 9 4 Introdução à História da Filosofia, voi l: dos pré-socráticos a Aristóteles

(São Paulo: Brasiliense);1995 Espinosa: uma filosofia da liberdade (São Paulo: M oderna);1995 Convite à filosofia (São Paulo: Atica);1999 A nervura do real: imanência e liberdade em Espinosa, vol. I (São Paulo:

Com panhia das Letras);2 0 0 0 O tnito fundador (Fundação Perseu Abram o).

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Bibliografia de referência da entrevista:

Benjam in, W . Ohras escolhidas, Brasiliense.D escartes, R. Meditações, coleção O s Pensadores, Abril Cultural.Engels, F. D o socialismo utópico ao socialismo científico. Perspectiva.Espinosa, B. C oleção O s Pensadores, Abril Cultural.Foucault, M . Arqueologia do saber, Graal.____________. As palavras e as coisas, .VIartins Fontes.H aberm as, J . Pensamento pós-metafísico. Tem po Brasileiro.Horkheim er, .VI. e Adorno, Th. Dialética do Esclarecimento,]or^e Zahar Editores. Husserl, E. Investigações lógicas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Kant, I. Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, .Abril Cultural.____________. Crítica da razão prática, Lisboa: Edições 70.Kierkegaard, S. A. Temor e tremor, coleção Os Pensadores, Abril Cultural. Lefort, C. Maquiavel ou le travail de l’oeuvre, Paris: Gallimard.____________. Eléments d ’une critique de la burocratie. Genebra: Droz.____________. As formas da história, Brasiliense.Leibniz, G. W . Discurso de Metafísica, coleção Os Pensadores, .Abril C;ultural. M arcuse, H. Ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional, Jorge

Zahar Editores.M arx , K. O capital, coleção Os Econom istas, Abril Cultural..Vlerleau-Ponty, .VL Coleção Os Pensadores, .Abril Cultural.____________. Signos, .VIartins Fontes.____________. Sens et non-sens. Paris: Nagel.____________. Visível e invisível. Perspectiva.____________. Fenomenologia da percepção, M artins Fontes.____________. A estrutura do cofnportamento, Interlivros.

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PAULO A R A N TES (1942)

Paulo Eduardo Arantes nasceu em 1942, em São Paulo (SP). Graduou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo e obteve o título de doutor em Filosofia pela Universidade de Paris IV. É professor aposentado da USP e dirige a coleção Z ero à Esquerda (editora Vozes). Esta entrevista foi realizada em abril de 2 0 0 0 .

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances. Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. ;Vo pri­meiro, o foco está posto na fonnação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua fonnação intelectual?

Um bom m ote, sem dúvida. Porém pela razão inversa. Convenham os que se trata de um sim pático despropósito com parar o destino de um filho da Baixada Santista aos desdobram entos da vocação teatral de W ilhelm M eister. Aliás estou me lem­brando agora de um trecho do com entário do Bento [Prado Jr .] ao “ Prefácio a uma filosofia” , do [Oswaldo] Porchat, este sim um eminente filho da Baixada. Em 1967 deu em A Tribuna, de Santos, anunciando o doutoram ento do Porchat: “ Um santista defende A ristóteles” . N o artigo em questão, o Bento a certa altura com parava o dito “P refácio” a um Rom ance de Form ação goetheano, chegando ao requinte de com parar o prosaísm o da reconciliação de W ilhelm M eister com o curso do m un­do, à reconversão do filósofo santista à realidade depois dos seus Anos de Apren­dizado e Viagem , tudo isso sem deixar de ressaltar o paradoxo de uma certa este- tização da vida cotidiana da parte do Hom em Comum, por definição avesso ao lado noturno da existência. T an to faz se o Bento estava pensando tudo isso seriamente ou não, possivelmente as duas coisas, filosofando e se divertindo ao mesmo tem ­po. O fato é que o trecho provoca uma forte sensação de paródia involuntária, e não há nada mais brasileiro do que isso. Em bora vivamos num país tom ado por uma ansiedade crônica com a sua form ação nacional, sempre adiada, interrom pi­da etc., imaginar-se alguém protagonista de um Bildiingsroman no Brasil é uma senhora enorm idade. N o modelo clássico, em G oethe ou Hegel, a rigor só há “ for­m ação” no pressuposto de uma espécie de racionalidade superior governando a m archa das coisas, de sorte que a form ação se com pleta pela conversão de uma espécie de loucura subjetiva a essa m archa ascendente do mundo. O ra, no Brasil tal curva formativa deveria ser descendente. Ou, por outra, segundo o m etro patriar­cal que nos pautava, seria o caso de se falar de uma verdadeira deseducação. N ão por acaso, foi isso o que R oberto [Schvvarz] viu nos anos de iniciação e viagem de um engendro da escravidão com o o nosso Brás Cubas.

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D ito isso, o que eu poderia dizer acerca dessa pergunta? Que a minha form a­ção , no sentido frouxo do term o, aconteceu nos anos 6 0 , na Faculdade de Filoso­fia da USP. A M aria Antônia foi o primeiro contato de fato que tive com vida inte­lectual organizada e funcionando no país.

Como foi a sua militância na juventude Universitária Católica IJUCI?E o seu contato com padre Vaz?

Entrei form alm ente na JU C em 1 962 , quando com ecei meu curso de Física na Fa­culdade de Filosofia da USP. Há alguns anos minha família achava que eu andava meio esquisito. A meu favor só tinha o fato de que eu jogava futebol muito bem, na várzea e na praia. Imaginem alguém em Santos, no fim do curso colegial, que não tinha nam orada, não queria roubar o carro do pai, estudava o dia inteiro, era o primeiro da classe e andava com umas roupas estranhas. Enfim , colocaram -m e em terapia em São Paulo. Isso foi no início de 1 9 5 9 . Eu fui e sim patizei com o terapeuta, Paulo G audêncio, que me cooptou da form a mais sutil, com o, guarda­das as proporções, Alceu Am oroso Lima fez com Oswald de Andrade: bateu-lhe a carteira quando se ajoelhava diante do crucifixo. E ele me levou para a JU C . Eu ia periodicamente a São Paulo para as sessões de terapia e gostava da conversa intelec­tualizada. Gaudêncio estimulava minhas veleidades culturais. Nas férias de julho de 1 9 5 9 , Paulo Gaudêncio perguntou se eu não queria passar uma tem porada em Itanhaém com seu grupo de estudos. Cheguei lá e era um encontro da JU C . Tra- tando-se de um jovem de dezesseis anos, fragilizado, foi conversão im ediata, pois um tipo nessas condições adere a qualquer espírito sagrado que aponte na sua frente. Podia ser o Partido Com unista, ou qualquer outra coisa. N o meu caso foi a JU C e a Igreja, num m om ento em que despontava nela uma ala progressista, forte e não inteiram ente m entecapta, num m om ento especial do país.

Logo depois de entrar na JU C , entrei na Física, politizei-me à esquerda, sem preconceitos contra o m arxism o, conheci o Brasil e entrei no movim ento estudan­til no m om ento mais esplendoroso da história nacional, antes de 1964. Foi nessa época que conheci padre Vaz. Ao mesmo tem po, eu era abastecido literariam ente e encorajado por Antonio Cândido [de M ello e Souza] a seguir por esse cam inho de empenho político. Foi quando descobri que ele não só conhecia com o admirava o padre Lebret, fundador do movimento Econom ia e H um anism o. “V ocê faz muito bem, Paulinho” — costum ava me dizer Antonio Cândido — “ Você sabe de uma coisa? Eu acho religião detestável, mas tenho muita adm iração pela igreja, sobre­tudo por esses padres de vanguarda que você freqüenta” .

Freqüentei o curso de Física durante um ano, larguei-o, e fui para o R io de Jan eiro , onde fiquei dois anos, para fazer m ilitância política. Eu estava lá no dia do incêndio da UN E. Acompanhei de perto a fundação da AP [Ação Popular) (ofi­cializada num congresso em Salvador em janeiro de 1 9 63 ). Eu apenas acom pa­nhei a evolução inicial, já que eu não podia entrar pois era dirigente nacional da JU C . A AP foi um fenôm eno. Em m enor proporção pode ser com parada aos pri­meiros passos do P T , tam bém com forte im pregnação cató lica de esquerda. Ela incorporava algumas coisas do m arxism o, era anti-stalinista mas fazia frente com o PCB. N o prazo de um ano, a AP ganhou todo o movim ento estudantil, inclusi-

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Paulo Arantes;: "E n tã o a idéia de utopia, de uma saída possível, está se tornan d o socialm ente proibitiva. E o socialism o tam bém . A idéia clássica de socialism o tem de ser inteiram ente repensada” .

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ve as uniões estaduais. De 1 9 6 2 a 1 9 6 4 só deu AP, desde a presidência de Aldo Arantes até a de (José] Serra.

Depois que você saiu da direção nacional da JVC, o que você fez?Saí depois do golpe e passei seis meses na Europa. V oltei e abreviei tudo, ou seja, fui direto para a Filosofia. Q uando eu estava na militcância estudantil, vinha sem ­pre a São Paulo e de vez em quando me hospedava na casa de Antonio Cândido. Ele e Gilda [de M ello e Souza] costum avam me contar histórias do D epartam ento: “N osso D epartam ento é muito bom. Se você está decidido a voltar para a filoso­fia, vai ser muito bom para você. Há jovens muito interessantes lá” . D aí falavam de Bento Prado, Ruy Fausto, G iannotti. Eu estava certo de que voltaria para cá. Com a M aria A ntônia, descobri finalm ente a vida cultural brasileira real. N o R io , foi uma festa efêm era, em bora tenha sido im portante enquanto episódio político. Q uando cheguei a São Paulo, foi um revelação. Em poucos meses, eu me distanciei do período no R io , achava aquilo ridículo, vexatório e m aluco. Então a referência passou a ser todo o paideuma da M aria Antônia. Foi a grande revolução intelectual da minha vida. Dou muito valor a isso tam bém porque foi nessa época que conhe­ci o Bento, além do mais meu prim eiro professor. N o prim eiro dia de aula fomos tom ar chope; voltei para casa às seis da m anhã, iniciado numa nova m itologia.

N o R io de Jan eiro , eu visitava com freqüência padre V az em Friburgo, por­que ele era o elaborador teórico da AP, tinha lá a sua dialética do reconhecim ento das consciências. O s jesuítas tinham uma bela biblioteca, e V az sempre me em pres­tava livros: As investigações, de Husserl, livros de lógica, os Manuscritos do jovem .Marx. Ele não tinha preconceito nenhum, dizia: “Leia o jovem M arx, mas leia tam ­bém Husserl, a fenomenologia e, sobretudo, lógica e m atem ática” . Eu levava os livros para o R io e ficava lendo essas coisas m alucas. T an to é que quando fiz o vestibular da M aria Antônia, eu já tinha lido as Meditações cartesianas, e dei uma de pedan­te. Bento estava me exam inando no oral e perguntou o que eu já havia lido. R es­pondi que conhecia a fenom enologia. E ele perguntou o que eu já tinha lido de Husserl. Disse-lhe que havia lido as Meditações cartesianas. Então ele inquiriu: “Você pode fazer um resumo das Meditações^”. “ E muito com plexo”, disse a ele [risos].

Quando estudante de filosofia na rua Maria Antonia, você travou con­tato com o “Seminário Marx”?

N ão. Naquele momento, ninguém falava mais do “ Seminário M arx ”. Giannotti dava as suas aulas e não se referia ao “Sem inário” . E eu não tinha conversa de bar com ele. N ossa conversa era estritam ente de aluno com professor. A conversa de bar, onde tudo acontecia, era com Bento. O Ruy não freqüentava bar, e não falaria do “Sem inário” . Então, o que eu sabia vinha do Bento e um pouco do R ob erto , pois, naquele m om ento, eu me dava mais com o Bento do que com o R oberto . E o Bento só contava o folclore do “ Sem inário” . Eu não tinha por que me interessar, pesqui­sar o “Sem inário M a rx ” , pois, além de tudo, estava fazendo o meu curso direitinho.

Foi em Paris que eu descobri o m undo, o Brasil e a Faculdade. R oberto com e­çou a ordenar esse folclore. Antonio Cândido tinha acabado de publicar a Dialética da malandragem, e para R oberto foi um “abre-te. Sésam o” . Boa parte do M ach a­

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do [de Assis] do R oberto saiu da com preensão daquele ensaio. Ele me explicou en­tão com o é que toda a obra de Antonio Cândido estava organizada. Foi nesse m o­mento que R oberto com eçou a me contar a história do grupo que lia O capital. Eu não fazia a menor idéia, não sabia com o funcionava, que havia um caráter inter- disciplinar, qual era o objetivo etc. Roberto foi o primeiro a assinalar o caráter crucial da intervenção de G iannotti. Só muito mais tarde é que tratei de sistem atizar essa história.

O “ Sem inário M a rx ” era um grupo de amigos de esquerda insatisfeitos com o fato de não haver um curso regular e bem feito sobre M arx. Os sociólogos, his­toriadores, econom istas, que faziam parte do grupo, precisavam de um M arx bem dado para escreverem suas teses. Eles dispunham do program a “econom ia e socie­dade”, delineado por Florestan, para estudar “classes sociais”, “ relações de raça” etc., mas achavam -se desarm ados, e resolveram estudar M arx. M uitos deles já o conheciam , porque tinham sido militantes. M as eles não queriam o M arx da Se­gunda e da Terceira internacional, queriam o dos textos. Eles não tinham a menor noção da existência do Althusser, e, no entanto, estavam fazendo a mesma coisa que Althusser começava a fazer na Europa. Então era para entender bem M arx, fazer direito as suas teses e explicar o Brasil.

Com o se tratava de M arx, com o havia dialética e filosofia, e com o se imaginava que era preciso 1er Hegel para 1er O capital, foi necessário cham ar os filósofos. G iannotti, que era amigo das pessoas desse grupo (de Fernando Henrique [Cardoso], de O ctávio lanni, de Fernando N ovais), chegou dizendo: “para entender a dialéti­ca, vamos com eçar lendo o te x to ” . Essa foi a revolução! O artigo fundam ental, que Giannotti redigiu em nome do grupo, “ N otas m etodológicas sobre O capital" é um dos grandes te.xtos (do grupo e) de G iannotti. Este e o ensaio “ Contra Althusser” . Ele ainda não tinha assimilado inteiram ente História e consciência de classe, de Lu­kács, não conhecia os frankfurtianos, e não sei se ele já conhecia Althusser (na época da sua tese, seguramente já conhecia). Giannotti fez isso sozinho: juntou [M artial] Guéroult com a vigilância dos econom istas e sociólogos para 1er o texto de M arx. E mostrou que ali havia uma coisa cham ada abstração; abstração real, um proces­so diferente de form ação de conceito, ou seja, mostrou a dialética funcionando.

G iannotti saiu dali e o que fez? Ele se considerava ainda com o alguém que estava juntando fenom enologia e lógica, antipsicologism o e dialética. N ão era m ar­xism o. Para fazer uma ontologia do ser social ele escreveu o primeiro livro dele. Origens da dialética do trabalho. Já o Bento era sartreano. O mundo sartreano to r­nara-se senso com um para ele: era socialista, existencialista e gostava de literatura. .\ partir de 1964 , da noite para o dia, Sartre fica na gaveta e ele passa para Rousseau. Q uer dizer: o “Sem inário M a rx ” , para o D epartam ento de Filosofia, não signifi­cou absolutam ente nada. O fato de Ciiannotti ter visto o pessoal discutindo O ca­pital, Fernando Novais elaborar a sua tese sobre a crise do Antigo Regime colonial, Fernando Henrique com eçar a estudar a relação entre capitalism o e escravidão, não adiantou nada. Porque ele era filósofo.

O que eu quero dizer é o seguinte: o “ Sem inário M a rx ” não teve nenhuma repercussão no D epartam ento de Filosofia, tanto é que eu fiz o curso sem saber de nada.

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Como foi a sua volta da França? No capítulo “Ajuste intelectual”, do livro O fio da m eada, você diz o seguinte: “Inexistente nos anos 60, as relações entre a filosofia universitária com a indústria da consciência em nosso país datam da década seguinte". Na sua volta da França, você já teve essa impressão?

N ão, seria incorreto dizer que tive. Na verdade, neste trecho, eu estava pensando principalm ente na coleção Os Pensadores, que com eçou a ser editada quando eu ainda estava na França. O [José Am érico M otta[ Pessanha fez a coleção e arregi­mentou praticam ente todo o D epartam ento de Filosofia da USP para traduzir, com ­pilar e prefaciar os fascículos. Esta foi a primeira m anifestação pública da hegemonia da filosofia uspiana. Curiosam ente, Pessanha era discípulo dileto e grande adm ira­dor de Álvaro Vieira Pinto, que ele considerava um professor extraordinário . Ele veio para São Paulo e recorreu aos uspianos, ou seja, foi o reconhecim ento tácito que tinha se form ado ali algo de im portante. Pessanha recorreu a esses professores para realizar um em preendim ento industrial, porém com o garantia do bom nível dos fascículos, das traduções, das antologias e assim por diante. Imagine o salto que foi dado com essa coleção, principalm ente em relação ao acesso a traduções de qualidade, bem feitas e bem anotadas. O Rubinho [Rubens Rodrigues Torres F i­lho] “inventou” um N ietzsche no Brasil, pela primeira vez ao alcance de um públi­co que não conhecia mais língua estrangeira, e ao alcance da massa de estudantes que os militares estavam colocando nas universidades. E o que se iria fazer com essa massa? Filosofia em grego não dava. Foi preciso colocar Platão e Aristóteles na Abril. E isto foi uma revolução.

N essa época, o D epartam ento estava saindo do gueto através de M arilena [Chaui[ e Giannotti. G iannotti tinha a vantagem de ter ajudado a m ontar o CEBRAP [Centro Brasileiro de Análise e Planejam ento], não era mais professor da USP e es­tava se tornando uma espécie de lider m etodológico da oposição. Já M arilena teve desde o início uma enorm e repercussão pública, bem m aior que a de G iannotti. M arilena por assim dizer desfrutava de um dos handcaps favoráveis da nossa fo r­m ação francesa. Ela acom panhou a transform ação da filosofia francesa na época do estruturalism o. Essa transform ação com eçou com Sartre e M erleau-Ponty, que não eram propriam ente scholars, com o Goldschm idt e com panhia. Eram tam bém intelectuais públicos, dirigiam uma revista. Temps Modernes, e falavam de vários asssuntos. Um filósofo francês depois daquela transform ação era alguém do qual se esperava que falasse de cinem a, de pintura, de psicanálise, e que além do mais havia sido politizado pela resistência à ocupação nazista e discutia com o m arxis­m o. Além disso, Sartre e M erleau-Ponty foram os prim eiros filósofos a largar a referência epistem ológica exclusiva. Com isso, a filosofia francesa, que não era a nossa, aum entou o leque de seus assuntos nos quais ela podia intervir com grande repercussão, dada a característica cultural da França desde o Antigo Regime. Em São Paulo, estávamos de costas para esses assuntos. N ós os considerávamos de baixo nível, achávam os que eram apelação literária e jornalística. Para nós, os filósofos eram os professores de filosofia, eram os epistemólogos, com o [Gilles-Gaston| G ran­ger, e os historiadores, com o [Victor] Goldschmidt e Guéroult. A ponto de Giannotti chegar ao absurdo de dizer: “Goldschmidt é um filósofo mais rigoroso do que Sartre,

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que não passa de um mau jo rnalista” . N o entanto, se o Giannotti não tivesse dito isso, se nós fôssemos sartreanos desde criancinha, não haveria filosofia no Brasil hoje, haveria apenas “ Sartres” razoáveis com o Bento, que tinha talento, e uma m on­tanha de cretinos im itando Sartre, enquanto ele estivesse na berlinda. Q uando ele saísse de m oda, não restaria mais nada. Então as modas na França iam e vinham, mas 0 básico, que era justam ente a filosofia escolar francesa, ficava.

A partir do início dos anos 7 0 , M arilena encerrou sua vida, digam os, escolar com o doutoram ento defendido, e saiu para a vida intelectual adulta. Pois seu bi­lhete de ingresso foi justam ente aquele cardápio de especialidades francesas. Já vi­mos do que se com punha: os dois eixos da filosofia universitária francesa — histó­ria da filosofia e epistem ologia ã francesa, quer dizer, G uéroult, Cîoldschmidt e G ranger — reorientados recentem ente por uma espécie de segunda transform ação da filosofia francesa, o estruturalism o. Com os tópicos deste último — da lingüís­tica às ciências hum anas, passando pela psicanálise e a nova história — , M arilena já se fam iliarizara de vez, desde o seu m estrado sobre M erleau-Ponty, o primeiro dos clássicos a entender a novidade de um Lévi-Strauss para os assuntos filosóficos tradicionais. Pois bem, M arilena não só dominava esse repertório franco-uspiano, com o se impunha pelo talento com que sabia tirar proveito da técnica retórica da dissertação francesa, uma das especialidades da casa. Quando voltou da Europa com o seu Espinosa pronto na m ala, pôs im ediatam ente em circulação essa nova rotina francesa, o resultado foi explosivo. Com a vida política bloqueada pela ditadura, a vida cultural de oposição foi se recom pondo a conta-gotas, primeiro na forma de grupos de sem inários mais ou menos privados e discretíssim os — de profissionais liberais à procura de cultura geral, a universitários interessados em se atualizar, e a boa nova naquele m om ento era o circo francês das ciências humanas — , depois em conferências públicas isoladas, até desaguar nos grandes com ícios da SBPC [Socie­dade Brasileira para o Progresso da C iência). N aturalm ente todo mundo convoca­va M arilena, que, por sua vez, não se sentia no direito de recusar — psicanalistas, sociólogos, historiadores, lingüistas etc. Quisesse ou não, porque, afinal, era assim que as coisas funcionavam na França, e aqui, além do mais, tom avam uma inequí­voca feição oposicionista. M arilena, à medida que sua ascendência e audiência su­biam aos céus, ia, assim , confirm ando o estereótipo imemorial e, depois, mera su­perstição acadêm ica, de que cabia ao “ filó so fo” a última palavra sobre todas as questões relevantes. M as não era isso mesmo o que estava acontecendo? Com muita disposição e coragem , aliás: o que confirm ava outra dim ensão mítica do persona­gem, a filosofia com o resistência à tirania. Com isso o prestígio daquela coisa m or­na e meio cinzenta que era o D epartam ento de Filosofia cresceu exponencialm ente. Seria injusto se não acrescentasse imediatamente que a nossa cotação em bolsa tam ­bém explodira graças ao trabalh o do G iannotti ju nto ao alto clero reunido no C E B R A P , onde tam bém , com o nos tem pos do “ Sem inário M ar.x”, questões de método e fundam entação de Deus e sua época eram com ele mesmo, por ser filóso­fo e estar seguindo a mesma trilha francesa centrada nas ciências humanas e, com o M arilena, igualmente na contram ão, com o exigia o m arxism o transcendental que professávam os, e sua irradiação se intensificava conform e se expandia a influência política do C EBR A P, que a partir das eleições de 1974 passara a assessorar o M D B.

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N ão sei se extrapolo continuando mais um pouco com o fenôm eno M arilena Chaui?

Absolutamente.Pois então, em meados dos anos 7 0 , uma especialista em Espinosa, de form ação uspiana e, portanto, francesa, tornara-se um intelectual público, e, logo, logo, tan ­to um polo de atração para a mídia com o uma referência para a esquerda cultural que estava recom eçando a se pôr em movimento. O u m elhor, artigo de fé para uma das metades em que o Partido Intelectual a partir daquele m om ento se dividiu, para sempre — aliás, muito, muito antes da guinada à direita da tucanagem (o último revestimento daquela outra metade, com a qual, aliás, sempre me identifiquei e nunca reneguei até o ponto de não retorno de 1 9 9 4 ). N o cam po filosófico que nos inte­ressa, na outra metade (aliás, hemisfério superior) brilhava a estrela do Ciiannotti. •Vias com a ajuda providencial da D itadura, continuaríam os todos juntos, com o numa fam ília, primos pobres e primos ricos. É óbvio que com a fundação do PT a coisa com eçou a azedar até desandar de vez. (H oje não sei mais, desgarrei-me faz tem po, mas, pelo que ouço, pelo menos a fam ília filosófica reagrupou-se em torno de seus m aiorais e respectivos clãs.) Seja com o for, acho que não se pode perder de vista aquela bifurcação do nosso cam pinho intelectual paulistano, que, de m etam or­fose em m etam orfose e transfusões de parte a parte, continua vigorando até hoje, alim entando, nos mesmos term os, os anátem as recíprocos, que remontam àquele prim eiro estranham ento mútuo entre “atrasados” e “ m odernos” na inteligência de oposição. H oje nossas classificações totêm icas distinguem entre “ b árbaros” e “c i­vilizados” , “ nacionalistas” e “cosm opolitas” etc. Por exem plo, foi essa divisão que pesou quando mal inaugurada a Nova República principiou a autofagia gerencialista da Universidade, no cam po adverso à suposta inércia corporativa da “ou tra” es­querda, que se autocondenava por não contar em suas fileiras figuras do primeiro time, salvo, é claro, M arilena, que, no entanto , era e não era vista com o tal. Aqui a encrenca, pois ela era inequivocam ente uma scholar (hoje o m aior currículo da Faculdade, com o se diz), porém , com fam a (arduamente conquistada) de “popu­lista”, inclusive quando desancava o fam igerado “nacional-popular” . O utro m ar­co: M arilena presente e atuante na fundação do CEDECJ [C entro de Estudos de Cultura Contem porânea] em meados dos 70 , que entendia se contrapor ao CEBRAP concentrando-se no acom panham ento dos novos movimentos sociais e que por isso mesmo achava que a sua idéia de dem ocracia não era a mesma que o star system do C!!EBRAP brandia contra o autoritarism o. E novamente reencontram os M arilena na linha de frente do debate que afinal reinventou a idéia de dem ocracia no âm bito da esquerda brasileira. Acho que interessa recapitular com o, outra m ostra do fun­cionam ento a um tem po descarrilado e produtivo da cultura filosófica no Brasil. Q uando voltei em 1 9 7 3 , encontrei nossa amiga em plena leitura do M aquiavel de [C]laude[ Lefort, que era um am igo da casa, pois andara pelo D epartam ento pelos idos de cinqüenta em curtíssima tem porada. M as o interesse de M arilena — que, àquela altura, já beirava o entusiasm o — vinha é claro pelo lado M erleau-Ponty, que numa nota de rodapé célebre anunciara a futura obra do discípulo com o uma revolução em matéria de filosofia política. Pois foi esta última que M arilena (outra

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vez no exercício de suas funções filosóficas de fundam entação) com eçou a explicar (e rendeu-lhe uma apostila quilom étrica) aos seus colegas da política e da sociolo­gia — e justam ente os serviços da filosofia franco-uspiana eram de fato requeridos, pois até a distinção lacaniana entre sim bólico e im aginário entrava no esquema de Lefort, que aliás recorria de m odo meio esopiano a M aquiavel para investir contra o sistema soviético. N ão deu outra: nascia ali a moldura filosófica de que carecia a noção de dem ocracia perseguida pelos novos “atores” (Touraine, quem diria...) dos movimentos sociais nascentes — coisa de que sequer suspeitava a obsessão anti­com unista de Lefort. Q uanto a M arilena, descobrira afinal o que fazer com seu Espinosa — possível herança althusseriana da fixação dos m arxistas franceses com Espinosa: entroncá-lo na tradição democrática que remontava a Maquiavel. Enquan­to do outro lado, o dos primos ricos — no qual eu fazia modesta figuração — , de­m ocracia (por enquanto filosofia, Giannotti só chegaria ao tema anos depois) às vezes era apenas sinônimo de antiautoritarism o, às vezes uma dem onstração indire­ta de que o aprofundam ento da m odernização econôm ica, mesmo nos m arcos ine­lutáveis da dependência, podia dispensar a Ditadura — afinal o ramo rico da fam í­lia ainda era francam ente m aterialista, e portanto dem ocracia era firula liberal.

M as não foi apenas nesse front que a nossa ex-rainha do baixo clero saiu na frente. Tam bém foi pioneira na reconversão da curiosidade filosófica profissional para o assunto brasileiro. T óp ico aberto e encerrado pelo próprio Cruz C osta, que gostava muito de depreciar o que ele mesmo fazia, sabendo que para a jovem guar­da uspiana filosofar sobre o Brasil era um com pleto despropósito. Acho que de fato o dossiê foi reaberto pela tese do Caio N avarro de Toledo sobre o ISEB, não sei ao certo, mas não se trata de disputa da primazia. O fato é que naquele mesmo ano de 1973 me deparei com M arilena lendo as obras com pletas de Plínio Salgado, na boa intenção de fazer uma “Crítica da razão autoritária”, nem mais nem menos, na pes­soa do prócer verdeamarelista. A novidade é claro não estava no assunto, a resis­tência à Ditadura desencadeara uma enxurrada de estudos sobre o pensamento au­toritário brasileiro. Tam pouco o que parecia arrevesado no projeto não se devia à falta de nobreza do ob jeto , pois não há nada de tão raso em nossa matéria local de que não se possa desentranhar tema para reflexão de alcance geral, mas à notável discrepância dos gêneros. Ou por outra, a incongruência resultava de uma certa im com preensão do que estaria em jogo — ou então, para ser mais exato , da com ­preensão corrente da experiência cultural brasileira, cu ja distância em relação ao padrão europeu de vida intelectual socialm ente coerente seria mais de grau do que também de naturaza. Com o não é bem assim, um Plínio Salgado literal era promessa de confusão. Aqui a bifurcação do Partido Intelectual muda de sinal, se o term o de com paração for o anterior a propósito da querela em torno da questão dem ocráti­ca, quando dava para pressentir a deriva “construtiva” dos primos ricos e o alto preço intelectual a pagar pela longa m archa através das instituições que se iniciaria em 1 982 , com as prim eiras adm inistrações estaduais conquistadas pela esquerda. É que se deu o seguinte disparate histórico: a esquerda viva que estava tom ando corpo naquele m om ento, e da qual nossa amiga era uma das madrinhas incontes­táveis e que culm inaria nesse acontecim ento notável que foi a criação pela própria classe de um partido socialista dos trabalhadores, essa mesma esquerda, pela sua

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ala intelectual mais atuante e influente, nascia desligada, de caso pensado ou não— quanto a M arilena, por certo de caso pensado — , para não dizer ignorando, o m elhor da tradição crítica brasileira, com o aliás já fora o caso, com a única exce­ção de C aio Prado Jr . , da linhagem com unista, ã qual se contrapunha frontalm en- te aliás a nova esquerda. H oje dita do tem po das cham inés pelos novos ricos que justam ente herdaram e m albarataram aquela mesma herança crítica brasileira de que estou falando. Esse desencontro histórico ainda não foi devidamente avaliado. Dc minha parte acho que o R oberto [Schwarz] já deu um prim eiro e enorm e passo observando no artigo sobre o “Sem inário M a rx ” que até mesmo (ou sobretudo) a ala dos primos ricos acabou entregando a rapadura justam ente por um “ déficit de negatividade” tal que só se explica — inclusive ou antes de mais nada o desastroso m arxism o industrializante deles — por não terem sabido se deixar impregnar pelo ímpeto oposicionista da crítica cultural e ensaística de M achado ao .Modernismo, impulso propriam ente de confronto sem resto com o mundo do capital. Pois de maneira ainda mais dram ática — porque não era para acontecer — foi isso que ocorreu com aquela estréia no esforço secular de reversão da tenuidade da experiên­cia brasileira. N ão adianta lembrar — ou melhor adianta sim, sentimos mais o drama— que Antonio Cândido, Sérgio Buarque de H olanda, M ário Pedrosa etc. assina­ram a ata de fundação do Partido dos Trabalhad ores, por m aior que fossem a co n ­vicção e o empenho m ilitante, eram vida e obra paralelas. D esencontro abençoado por nossa amiga M arilena, na condição inquestionável de m entora filosófica (últi­ma ratio inapelável) da então novíssima esquerda, consagrando o divórcio com o melhor da interpretação do Brasil, não obstante lançado pela mesma época na vala com um da assim cham ada “ ideologia da cultura brasileira” . N ão que esta última não fosse ideológica da cabeça aos pés, o problem a novam ente era o que sempre deu a pensar a crítica digamos imanente desse mesmo material duvidoso. M as vol­tem os às reinações de M arilena, e veja-se se não dá para sentir o dram a: é que por incrível que pareça, ela estava na direção certa, e trabalhando sozinha. O que ain­da é mais notável em todo esse episódio, é que por conta própria — e vindo de onde veio, de um meio impermeável a esse tipo de questão, a filosofia franco-uspiana — ela percorreu toda a ensaística brasileira de interpretação das idiossincrasias naci­

onais, em princípio para entender o surto integralista, e se deu conta de que se tra ­tava de um infindável catálogo de itens faltando no estoque: não tínham os burgue­sia ou a nossa não era com o as outras; m uito menos classes subalternas modernas e autônom as; a classe média era gelatinosa; a sociedade civil, am orfa; a luta dc classes, inoperante; o Estado, hipertrofiado; as ideologias, de segunda m ão; o capitalism o enfim , era ora tardio, ora diferente. Em suma, o que não faltava era desvio, não éram os o que deveríamos ser, e o que éram os era o que nos separava daquilo com o qual não nos conform ávamos. Numa palavra, pensando com seus botões, M arilena atinara com a dialética mesma da experiência social brasileira, a rigor com a m até­ria bruta das incongruências que tal “d ialética” sistem atizaria de mil e uma m anei­ras. Simplesmente avançaria o sinal, concluindo mudando dc m ão: a tradição críti­ca brasileira, nela incluído o diagnóstico a que me referi, nada mais fizera do que engolir o clichê conservador do Brasil errado e portanto a ser atualizado segundo o padrão das modernizações conservadoras de praxe. R ifado portanto o inventá­

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rio das diferenças, não nos faltava nada, tudo por aqui estava no seu devido lugar. C om o não há história do Mesmo, apagavam -se todas as diferenças da “ história nacional” : da passagem da Colônia à N ação até o teatro de som bras que teria sido a fam igerada Revolução de 3 0 , e por aí afora. Com o sobra talento em nossa perso­nagem, não houve falha hum ana, mas técnica: culpa da filosofia.

E como você avalia a experiência da revista T eoria e Prática?Q uando ela apareceu em 1967 , eu era aluno de Ruy Fausto. Eu era um aluno apli­cado que morava na fronteira da “Boca do L ix o ” , sem telefone, televisão nem pen­sar, e com o dinheiro curto. Estudava em tempo integral, o meu único contato com o mundo real era através do Bento... V ejam só, voltei para a M aria Antônia, lar­guei a militância política estudantil e resolvi me tornar um super “ch ato -boy” . R is­quei todo o meu passado político espiritualista, enquanto M arx passava a ser ape­nas uma referência epistem ológica, que interessava para a lógica e para a o n ­tologia. Isso, via G iannotti. Via Bento, era um M arx mais exótico e interessante, era o M arx de Sartre e M erleau-Ponty. O que realm ente interessava era uma boa tese, logicam ente consistente, sobre a dialética de M arx . De minha parte, não ha­via nenhum vínculo social com absolutam ente nada. Estávam os de costas para o país, em bora fôssem os, do ponto de vista teórico, politicam ente avançados. Po­dia-se ser especialista em O capital, conhecer toda a história do bolchevism o — com o Ruy conhecia — , mas apenas com o preâm bulo ou pretexto para uma boa tese de filosofia. Q uando eu estava no último ano da Faculdade, apareceu a Teo­ria e Prática, em 1967 .

Foi quando me aproxim ei mais do Ruy Fausto, que sem o saber se encarre­gou da m inha reeducação política. Ele me fez ler T ro tsky , a biografia de Isaac D eutscher, sem falar no folclore do segundo “Sem inário M a rx ” , do qual uma par­te foi fazer a Teoria e Prática. Foi aí que as coisas com eçaram a se juntar, quando a Faculdade se radicalizou e os estudantes com eçaram a passar para a clandestini­dade, preparando a entrada na luta arm ada.

O ra, a minha perspectiva se inverteu: o farol passou a ser a Teoria e Prática, essa era a grande revista e eu tinha de estudar desesperadamente para acom panhar aquilo, porque era ali que as coisas iriam acontecer. Bento continuava a ser a m i­nha reserva literária e filosofante, mas Ruy passou a ser a minha referência políti­ca, tanto é que, em determ inado m om ento, eu com ecei seriamente a me considerar um trotskista im aginário. E o Ruy me sabatinava, dizendo: “V ocê está indo bem, já conhece Bordiga” .

Você foi para a França em 1969. Defendeu seu doutoramento sobre Fiegel em 1973, que veio a ser publicado no Brasil em 1981 e que aca­ba de ser publicado na França. Como você avalia esse seu doutoramento hoje?

Já ouvi muitos elogios a esse trabalho, e estou com eçando a desconfiar que as pes­soas acham que é a única coisa boa que fiz. Nunca se sabe. N o entanto, seria uma injustiça desnecessária dizer que se trata de um trabalho escolar, quando na verda­de se trata da tese padrão franco-brasileira que todo o mundo fazia. Ela tem dois

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méritos: prim eiro, não está escrita inteiram ente em jargão hegeliano. O segundo m érito é que eu acho que a idéia da tese é boa.

Você tinha o Marx no horizonte?Era um M arx muito precário, mas tinha. O ponto de vista da tese é o do jovem M arx, a interpretação que ele faz da Fenomenologia do espírito, em que o conceito de trabalho é fundam ental. E tinha um pouquinho do jovem Hegel de Lukács. Essas eram as minhas únicas referências. Vagam ente, mas muito mal digerido com o um outro horizonte, tinha algumas coisas de G iannotti, das Origens da dialética do trabalho. A perspectiva sobre Hegel, naturalm ente, só poderia ser m arxista, e ela foi se acentuando, no decorrer da redação, devido ao livro de [Gérard] Lebrun, La patience du concept. N o limite era uma tese contra Lebrun, m as, ao mesmo tem ­po, ela o assim ila, pois o seu livro tinha sido uma revelação para mim. N a verdade, o que eu pensava era: “com o é que eu posso ju stificar o acerto involuntário do Lebrun?” . Eu fiz uma primeira redação dos capítulos iniciais, apareceu o livro de Lebrun, interrom pi a tese e fiquei vários meses estudando Lebrun. É um grande li­vro, e eu tinha de explicar por que esse livro é bom , mesmo estando inteiram ente errado: a idéia de que Hegel não é um filósofo doutrinário, essa é a sua idéia genial. Só que Lebrun centra isso na idéia de linguagem. Com essa descoberta ele acabou reduzindo Hegel e a dialética a um discurso, a uma façon de parler.

Durante dez anos você esteve empenhado num projeto sobre o “ABCda miséria alem ã”. Em que consistia esse projeto e o que o levou ainterrompê-lo?

Q uando eu estava na França, escrevendo a minha tese, percebi que eu tam bém , para variar, estava correndo por uma pista inexistente. Estava terminando uma boa tese, aliás fui preparado na USP para fazer isso, e tinha duas escolhas na volta ao Brasil: podia continuar fazendo a lição de casa, isto é, aquilo que os meus professores es­peravam que eu fizesse depois do doutorado em Hegel. Teria de fazer uma livre- docência explicando a Lógica, de Hegel. Escolheria um problem a, tentaria explicá- lo e m ostraria com o da Lógica se passa para O capital — o program a do “Sem iná­rio M a rx ”, de Giannotti e de Ruy. Em parte eu até com ecei a fazer isso, pois che­guei ao Brasil e dei dois anos de curso sobre a Lógica. Essa escolha seria a mais fácil. Por inércia eu faria um trabalho bem feitinho sobre a Lógica, seria útil etc.

A outra escolha, mais arriscada, exigia mais energia e mais coragem. Ao mesmo tem po que eu descobri o Brasil, com eçava a descobrir coisas sobre a história da Alemanha, que não poderiam entrar na tese, pois seriam consideradas historicism o, e eu não tinha ainda condições de juntar tudo isso. Q uando descobri que o Brasil que eu estava estudando via R oberto [Schwarz] era uma sociedade nacional perifé­rica, e que as sociedades nacionais periféricas, a partir do século X IX , tendiam a se assem elhar, com o Portugal, Alem anha, Rússia, Irlanda, Itália, Áustria etc., isso foi uma “ mina de ou ro” . E o que pensei? A ntonio Cândido é interessante para dizer o m enos, R oberto idem. N ão sabem e não dão a mínima para K ant, Frege e com pa­nhia. Aí tem coisa, devo estar no bonde errado. São esses “caras” que contam . Para bem ou para mal é a eles que se tem de referir para interpretar um ob jeto histórico

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específico, que é o único sobre o quai nós podemos falar: o Brasil. Pois só podemos falar do mundo através do Brasil, consolidando-se ou se desm anchando.

Por outro lado, se eu virasse um especialista em Hegel, que é um autor “quen­te ” , o que eu poderia ser? N o m áxim o um bom professor de filosofia clássica ale­mã. Eu iria me aposentar deixando papers úteis para as pessoas que viessem de­pois — afinal o D epartam ento tinha sido feito para funcionar dessa maneira. Só que naquele m om ento já não me interessava mais fazer só isso, eu tinha de passar para o outro lado. M as, para isso, eu estava com pletam ente despreparado, não só no sentido escolar, estava mentalm ente despreparado. Eu era um ótim o aluno da Filosofia, o queridinho de todo o mundo, mas, ao mesmo tem po, considerava-m e um idiota com pleto, incapaz de dizer qualquer coisa interessante sobre qualquer assunto que não fosse Hegel, Nietzsche e cia. Poderia, é verdade, dar umas aulas sobre Saussure, Lévi-Strauss, Freud e Lacan. M as todo o mundo podia e devia fa­zer isso, esses temas tinham virado um assunto escolar e profissional. E eu aspira­va por uma vida intelectual menos rotineira, em que pudesse falar e escrever coisas que as pessoas do outro lado, julgassem interessantes e, sobretudo, que servissem para alguma coisa.

N o entanto, eu não podia passar para o outro lado com o se fosse fazer uma pós-graduação em sociologia ou literatura. N ão iria ficar estudando W eber e Durk- heim para, depois de vinte anos, escrever alguma coisa sobre industrialização no Brasil. Nem era meu propósito escrever sobre história política, econôm ica do Bra­sil. O meu propósito era pensar a cultura brasileira de uma m aneira que não fosse o trivial dos estudos literários. E quem escrevia dessa forma era o Roberto, não havia outro. R oberto era com pletam ente anôm alo, porque era form ado em sociologia, conhecia bem M arx, conhecia os frankfurtianos e tinha uma com preensão anti-ide- ológica da literatura. E pensei: o que posso fazer na mesma direção? N ão seria por meio de uma graduação em sociologia ou em teoria literária. T inha de fazer sozi­nho. E fiz com leituras indiretamente m onitoradas por R oberto , que passou a ser uma espécie de referência permanente. Eu aprendia conversando com ele, e estu­dando o que ele estava escrevendo.

Ao 1er os textos de Lukács (sobretudo os de filosofia clássica alemã e Hegel), eu fiz uma grande descoberta, grande para o tam anho da minha ignorância, é c la ­ro: Lukács tentou, mas não conseguiu, vincular filosofia clássica alemã e desenvol­vimento desigual e com binado num país periférico. Ele afirm ou que uma coisa tem a ver com a outra, mas não dem onstrou com o. Se eu dem onstrasse, cum priria o program a m arxista, que era o da minha form ação uspiana, e teria uma chave para com preender o vínculo entre vida mental e processo social nas situações periféri­cas, que, por sua vez — com o o R oberto estava provando — , revelam a natureza do núcleo central.

O abandono desse program a [“A BC da miséria alem ã” ) foi estritam ente cir­cunstancial. N ão renego nada e não há mistério: simplesmente não acabei. Eu que­ria explicar com o funciona o discurso hegeliano e com o funciona a dialética. T ra ­tava-se de uma história da m odernização através da intelligentsia, que procurava m ostrar com o se dá a passagem do iluminismo para a dialética, e com o, já no ilu- m inism o, há dialética. Comecei com os franceses e depois passei para a Alem anha,

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ou seja, tratei de com o os franceses são refratados na Alem anha, e de com o a dia­lética apareceu para dar conta dessa refração, desse deslocam ento. Então com ecei com um ensaio sobre a invenção hegeliana da dialética dos intelectuais na Ilustra­ção francesa, com o isto era decantado numa espécie de “ Q uestão de M éto d o” e culm inava no exorcism o do êxtase intelectual durante o T error jacobino. Eu p ro­curo m ostrar com o esse êxtase intelectual foi refratado na Alem anha, numa espé­cie de lógica interna fantasm agórica das idéias. Depois disso, eu trataria dos itaha- nos e de G ram sci, passaria para a Rússia (em bora o cam inho real fosse o inverso), m ostrando com o os franceses e os alemães foram lidos por lá. Para isso, eu teria de estudar todos os publicistas, a radicalização da intelligejttsia russa e, sobretudo, a figura do intelectual nos grandes rom ances russos do fim do século X IX , em D os­toiévski e Tolstói. Sem falar noutras periferias européias. Até sobre Portugal escre­vi alguma coisa e engavetei. M as todo esse programa iria consumir uma vida inteira.

Havia, dessa m aneira, um panoram a mundial a ser estudado. E, nesse siste­ma de diferenças e continuidades, havia alguma coisa com o um pensamento dialético dessa m undialização da cultura e do capital que era uma expansão diferenciada, pois tratava-se do centro e da periferia. Queria m ostrar que esse estudo era feito por um brasileiro, ou seja, que se tratava da perspectiva crítica da periferia sobre o movimento das idéias quando se dá a expansão do capitalism o desde a hegemonia inglesa até o início do século X X . Feito isso, o meu foco passaria a ser o Brasil, e eu estava lendo sobre o Brasil, para fazer a junção e, portanto, a com paração sistem á­tica. Num determ inado m om ento, em 1 9 82 , pela primeira vez eu arrisquei dar um curso sobre filosofia e cultura no Brasil, no prim eiro ano de filosofia. Em 1 9 8 3 , quando eu estava com o assunto razoavelmente arrumado em minha cabeça, a Folha de S. Paulo me pediu para resenhar o livro de Ruy [Fausto], e eu pensei: “Bom , agora eu vou entrar” . O bviam ente eu não resenhei o Ruy, falei de um capítulo brasileiro do m arxism o ocidental. Em 1 9 8 4 , com ecei a estudar Cruz Costa. E, para isso, ha­via uma continuidade: com ecei por Cruz C osta, passei pelo D epartam ento de Filo­sofia, e cheguei aos clássicos locais e a form ação da filosofia paulistana, ou seja, cheguei a Bento, G iannotti, Porchat e Ruy. Nesse m om ento, falei para o R oberto: “Essa é a hora do vamos ver. Se eu largar os alem ães, eu largo um trabalho que está bem encam inhado. .Mas, acho que é hora de arriscar — quem quiser que con ­tinue essa tarefa — , e vou tratar do assunto para o qual me preparei, que é o as­sunto de maturidade de todos nós — o Brasil” . Dessa form a, fiz uma passagem que acho mais ou menos coerente. E o que me interessava era passar pelo filtro a idéia crítica de form ação e o transplante cultural responsável pela minha própria consti­tuição mental filosófico-uspiana. E larguei o “ ABC da miséria alem ã” . N ão falta­ram os com entários sinceram ente desolados: “Esse cara larga a lógica, vai para a esquerda hegeliana, vai estudar filósofos menores, depois larga a história da filosofia, vai fazer sociologia das idéias na Alem anha, e depois passa para Cruz C osta?” .

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­lações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Com eçarei pelo trivial: falar em filosofia brasileira é com o falar em filosofia fran­cesa, alem ã, italiana etc., ou seja, a filosofia feita na França acaba gerando uma

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tradição pelo fato de ter sido feita na França, e não por ter vínculos atávicos ou sobrenaturais com algum espírito da terra ou coisa que o valha. Nesse sentido, a filosofia brasileira é o conjunto de publicações brasileiras sobre um assunto tradi­cionalm ente classificado de filosófico pelos bibliotecários. Isso é a filosofia feita no Brasil, e ela não é distinta das demais por ser “brasileira” . D ito isso, nem tudo está dito. A filosofia brasileira não é brasileira, ela é im portada. .Assim com o a filosofia am ericana não é am ericana, é alem ã. A assim cham ada filosofia analítica am erica­na, a filosofia neopositivista am ericana, é a filosofia alemã que, nos anos 30 , imi­grou para os EUA. M as nem por isso a filosofia brasileira deixa de ser alguma co i­sa que tem um estilo próprio, e que este estilo responde por uma tradição muito particular de estudos cu jo em brião se com pletou nos anos 6 0 no Brasil.

Esse em brião diz respeito ao transplante de técnicas intelectuais francesas de lidar com filosofia que se realizou a partir dos anos 30 , isto é, a transplantação da filosofia universitária francesa que desem barcou em São Paulo sem maiores medi­ações. Trata-se de professores que chegavam nas classes do futuro D epartam ento e com eçavam a falar em francês com o se estivessem cm um liceu, ou em uma facul­dade de província francesa, anunciando ato contínuo: “ nesse semestre vamos estu­dar tal assunto (norm alm ente a idéia disso ou daquilo na filosofia de fulano ou beltrano), a bibliografia é essa, os temas de trabalho são esses, sem inário é assim, d issertação se faz assim e não existem mais cursos panorâm icos, apenas m ono­gráficos” . Com isto, a colonização com eçou a ser feita. Era uma colonização ne­cessária e a seu modo progressista que fazia com que as pessoas, se desvinculassem de toda a tralha ideológica que se imaginava ser filosofia nas faculdades de D ireito ou nos círculos am adores que filosofavam por conta própria na cidade. As pessoas se isolavam , rompiam com essa mentalidade municipal e passavam a se com portar com o se fossem europeus. À primeira vista, nada mais desfrutável, mas foi dessa alienação que afinal provou ser produtiva que resultou o assunto que está nos ocupando agora.

A filosofia brasileira é um corpus que não precisa se apresentar com o um conjunto de obras “originais” de filósofos brasileiros inspirados — isto é bobagem. Trata-se de um movim ento coletivo que se cristalizou no final dos anos 6 0 , quan­do as primeiras teses “européias” foram concluídas. E esse estilo acabou sendo iden­tificado com o chato , m orno e técnico, ou seja, filosofia paulistana, da USP. É a fi­losofia feita no Brasil em termos profissionais, e que por isso, é capaz de sustentar a com paração com o sim ilar estrangeiro. E isso form ou (e form a) alunos, público, leitores escolados e uma gama variada de publicações. Constituiu-se um repertório de referências bibliográficas, de temas a serem estudados, de maneiras de se fazer teses, de se dar aula e assim por diante. Esse repertório foi fundamental, pois, a partir de um determ inado m om ento, foi possível dizer que a filosofia no Brasil funciona­va, e que existia uma filosofia brasileira. M as isso não quer dizer que haja uma lógica brasileira diferente de uma lógica da O ceania.

Dito isso, vamos para a segunda parte da pergunta: a da relação com a cultu­ra brasileira. É uma constatação dolorosa, mas a filosofia é uma espécie de primo pobre na form ação do sistema cultural brasileiro. É bom frisar isso porque as pes­soas do ram o ficam muito estom agadas com essa afirm ação, achando que estão

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sendo menosprezadas, subestim adas, tachadas de irrelevantes etc. Q uando não se trata disso, não se trata de uma desqualificação profissional e intelectual. Estas pessoas são com petentes, até demais. Para entender essa circunstância, temos de nos com penetrar do seguinte: a cultura de um país periférico com o o Brasil está intei­ram ente centrada na idéia de que através de gêneros e form as inescapavelm ente européias — o rom ance, a poesia, a pintura, a arquitetura etc. — , trata-se de ex ­primir a verdade original de uma experiência local. Ou seja, só é relevante a forma que promove essa reinterpretação, que seja um instrum ento de descoberta e reve­lação do país. Tudo se passa então com o se estivéssemos condenados a essa figura­ção da experiência, ã necessidade de sermos apresentados incansavelm ente à nossa própria e desconhecida imagem , por isso mesmo uma imagem inacabada. É preci­so entender que isso não faria sentido em sociedades nacionais consolidadas com o a Inglaterra ou a França. Nesses países não há nenhuma insegurança quanto aqui­lo que se é, e quanto a imagem que deve se pro jetar e construir. É com o se a nossa inteligência local só funcionasse na medida em que fosse empurrada por esse impe­rativo de configuração. Daí o caráter central da literatura. Todas as formas que pos­sam tornar narrável essa experiência ainda com pletam ente em brionária possuem uma função estruturante. Isto faz com que o teor de verdade dessa experiência eminentemente literária seja puxado para cim a, desde que ela cumpra essa função, daí também uma certa tendência sentim ental ao realism o miúdo de simples fideli­dade ã cor local, que nos empurra de volta para a miopia localista.

O ra, qualquer tipo de atividade que discrepe dessa intenção está estrutural­mente condenado a ter um papel subordinado. A filosofia, no nosso caso, padece duplamente dessa restrição. Na primeira parte da resposta, nós tínham os definido a filosofia com o uma rotina intelectual que se cristalizou em uma determ inada ins­tituição e numa circunstância hi.stórica precisa. É o alargamento e o aprofundam ento dessa rotina intelectual que, com o m étodo de estudo, forma aquilo que cham am os de cultura filosófica funcionando no Brasil, independentemente dos talentos indi­viduais. A existência desse lugar subalterno deve-se ao fato de que essa cultura fi­losófica institucional, necessariam ente universitária e profissional, é por definição, senão incom patível, pelo menos indiferente a esse projeto. Ela é inadequada por­que a filosofia profissional, e não há outra sem retrocesso doutrinário e antimoderno, não é mais nem pode ser uma filosofia figurativa, isto é, não tem mais condições de descrever a experiência real com o era sua am bição na Era Fiegel, e de transpor essa experiência real para o plano conceituai. O ra, no Brasil a literatura fez isso de m aneira supletiva durante mais de um século e, depois, foi deslocada e recolocada no seu devido lugar artístico. C om o diz Antonio Cândido: era uma literatura de incorporação e passou a ser uma literatura mais especializada, cum prindo o seu destino estético, sem abdicar no entanto daquela sondagem incontornável da e x ­periência local.

Com o tem po e as nossas instituições universitárias, a literatura foi substituí­da pelas ciências sociais e pela econom ia política. A interpretação do país passou a ser feita pelo ensaio sociológico — científico e universitário. Portanto, a sociologia também foi uma figuração do país. E com o a filosofia é estruturalm ente incapaz de dar conta desse pro jeto, tem de ter necessariam ente uma vida m arginal. Para

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prosperar com o uma especialidade acadêm ica seria, ela teve de se desvincular des­se pro jeto de figuração da experiência nacional. A filosofia m oderna, a filosofia profissional, abandonou, com o uma espécie de resquício doutrinário dogm ático, essa pretensão de ser uma espécie de figuração do mundo no sentido mais amplo. Por isso que, quando a filosofia profissional apareceu em São Paulo e se alastrou por todo o país, ela provocou um certo escândalo. Porque parecia um bando de pessoas com pletam ente alheadas, de funcionários medíocres, explicadores de tex ­tos, assimiladores de textos, de costas para o país. Funcionários que não tinham nada a dizer porque se recusavam a tanto por escrúpulos intelectuais, ou seja, por­que não eram demagogos, não eram doutrinários e porque achavam que não podiam desentortar o país em nome de cosm ovisões filosóficas. Portanto, a filosofia pro­fissional necessariam ente teve de ocupar esse lugar secundário. Restaria explicar o seu crescente sucesso de público nos últimos vinte anos. M as isso já é uma outra história e com o nada me foi perguntado a respeito... Suspeito que algo tem a ver com o tipo de auto-ajuda demandada pelo colapso da m odernização.

O D epartam ento de Filosofia era movido por dois impulsos, um consciente e outro não. Nossa imodesta consciência técnica nos confirm ava na seguinte certe­za: “som os os melhores, qualquer questão de m étodo é conosco mesmo — até os sociólogos recorrem a nós. Som os considerados filósofos e a filosofia é o topo do topo. Som os também estudiosíssimos e articulad os” . Era a superstição acadêm ica de que o filósofo sabe de tudo. Em função disso, todo o mundo estudava pra bur­ro. M as eu acho que havia ainda uma outra m otivação informulada: a de que aquele enclave fazia parte de um esforço coletivo de construção nacional, mesmo que nin­guém falasse disso. E nem poderia, porque seria mal visto. N o entanto, acho que essa convicção sem iconsciente era uma espécie de energia social que empurrava o estudo. M as isso que estou cham ando de “sistema cultural filosófico”, esse conjunto de obras, de produção de leitores, de cursos, de rotina intelectual foi impulsionado por esse ânim o construtivo. E quando se form ou, e com eçou a se reproduzir de maneira am pliada, esse élaii com eçou a definhar. E o que se passou a fazer? Segui­mos tocando o serviço bem feito, fazendo intercâm bio internacional, colaborando com eventos — que são pautados por um sistema de efemérides da indústria cultu­ral — e pronto. Insisto que isto não passava pela cabeça de ninguém. Imaginava-se que ao passar um semestre debulhando os Livros A nalíticos de A ristóteles, alguma coisa no país e no mundo iria mudar. .Agora não, é preciso fazer bem feito para ganhar uma bolsa, ir para os EUA ou Alem anha, voltar e publicar um livro, isto é, enturm ar-se na rotina mundial. E a diferença que ia ser feita quando esse sistema se com pletasse não veio, e pegou todo mundo no contrapé.

£ veio a ditadura...N ão, a ditadura não afetou. Pelo contrário , ela retardou esse processo, porque o D epartam ento teve de se encolher, fechar-se em copas e estudar mais ainda. C u rio­sam ente, quando a ditadura com eçou afrouxar no fim dos anos 70 , deu-se o gran­de apogeu da filosofia brasileira. Com o refluxo da ditadura, imaginou-se que o país iria virar do avesso, que iria reatar com o que era antes de 1964 , que o país iria voltar a ser inteligente, que iríam os dar um salto e com pletar a agenda de dois sé-

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culos de atraso. Na filosofia, imaginava-se isso a partir do que era feito na SBPC, com os cursos que se multiplicavam na universidade, com a SEAF [Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas] e a .ANPOF [A ssociação N acional de Pós-Ciradu- ação em F ilosofia[, e com a volta da filosofia ao secundário. Então, de 1974 até 1 984 , houve um auge que escamoteou o fato de a filosofia já estar rodando em falso, mas ninguém sabia disso. O país estava avançando, havia fordism o periférico, dos sindicatos do ABC] estava saindo um partido dos trabalhadores e o PM D B havia se renovado. E, graças aos m ilitares, com a m ultiplicação das universidades federais, havia cursos de filosofia no Brasil inteiro. Então a e.xpectativa em relação ao país que viria depois do fim da ditadura, e o fato de a filosofia estar com passada com isso, era enorm e. T an to é que nós achávam os que o problem a era a dem ocratiza­ção do poder universitário, e que já havia ocorrido uma espécie de contam inação de classes, uma proletarização da universidade. M as não, sim plesmente a classe média havia sido rebaixada e tinha aum entado mesmo na falta de um m otor for­m ativo, a filosofia, que em princípio não podia atender aos imperativos da figura­ção da experiência nacional, no entanto prosperou. E qual foi o critério desse flores­cimento.' Fazer teses inteligentes sobre assuntos clássicos. M as quem fazia essas teses inteligentes, tecnicam ente com petentes, não tinha muita perspectiva a não ser a de continuar indefinidam ente fazendo teses com petentes. Até então havia a perspecti­va de que essa com petência iria se espraiar, esse era o projeto da Faculdade. Lem ­brem o-nos de Antonio Cândido divergindo de Cruz C osta, em nome de uma espé­cie de convicção iluminista acerca do funcionam ento da inteligência. Q uando Cruz Costa, na melhor tradição da filosofia pré-crítica, dizia: “o que importa é uma orien­tação filosófica que dê um rumo, e, que nesse rumo, ponha feijão na panela do povo” , Antonio Cândido replicava de duas m aneiras, uma tradicional e outra iluminista. A tradicional era a seguinte: “temos de ter um bom curso de filosofia porque quando um brasileiro puder dar uma contribuição original sobre os tem as universais da fi­losofia, nós teremos dado um passo gigantesco rumo ã civilização que caracteriza o concerto das nações” . Havia o outro lado, o lado ilum inista, que estava na ori­gem daquele impulso do qual falei anteriorm ente. Então dizia o seguinte, nos anos 4 0 : “Cruz Costa, você se enganou. Nós temos de tratar dos temas universais. E estou certo de que uma boa tese sobre Fichte produz o seguinte efeito: torna a inteligên­cia daquele que fez a tese e daqueles que podem decifrá-la incompatível com a iní­qua desigualdade social brasileira” . Portanto quem aprende a pensar decifrando um clássico (e a filosofia dessa m aneira é sempre progressista), lendo Platão ou Fichte, vai mudar o país. Foi essa energia, essa im aginação de que quem estuda bem estará colaborando patrioticam ente para reduzir o grau de iniqüidade local, que em pur­rou a filosofia na Faculdade.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como o(s) mais represen- tativo(s) da sua produção filosófica? Pediríamos que você nos contas­se como ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

Bom , com o se diz em assem bléia, essa proposta está prejudicada. N ão tenho refle­x ão filosófica própria e original e, portanto, não posso ter conceitos que orientem essa reflexão. N ão é coqueterie, não estou fazendo charm e ao dizer que nunca fiz

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filosofia. N ão posso nem dizer que pretendi fazer filosofia porque, quando entrei na Faculdade, a primeira coisa que me disseram foi: “Você não vai ser filósofo. Isso não existe. Filosofia não tem conteúdo e não é matéria transmissível. Esqueça isso. Vocè será um técnico em bibliografia filosófica” . Quem alim entava essa pretensão de ser filósofo era o pessoal da linha T obias Barreto e M iguel R eale ou Vicente Ferreira da Silva, entre outras sumidades.

Em Sentimento da dialética, comentando a perspectiva glohalizante que a idéia de dialética assume em Roberto Schwarz, você afirtna; “Roberto não só ia anotando o alcance mundial de nossas esquisitices nacionais como ia construindo uma plataforma de obsen>ação a partir da qual objetava esta mesma ordem universal. O que reconhecerá em ato no pensamento literário de Machado. Estava assim lançada a base de uma Ideologiekritik original. O mesmo chão histórico que barateava o pen­samento e diminuía as chances de refle.xão — pois aqui se desmancha­va o nexo entre idéias e pressuposto social, o que lhes roubava a dimen­são cognitiva — , devolvia a faculdade crítica com a outra mão, fazen­do nossa anomalia expor a fratura constitutiva da normalidade mo­d em a”. Quais os alcances de uma tal Ideologiekritik, e como você vê este conceito hoje?

Eu não sei se explico bem esse termo Ideologiekritik, acho até que renunciei a de­fini-lo no texto. Vou explicar um pouquinho para dizer o que há de original no R oberto e o que eu tinha na cabeça quando estava redigindo esse trecho. A crítica da ideologia aparece quando os clássicos do m arxism o reinventam a palavra “ ideo­logia” e usam a idéia de “crítica ", advinda do século X V III, do Iluminism o. É bom não esquecer a palavra “crítica” está presente no subtítulo d’0 capital: “C rítica da econom ia po lítica” . Portanto não se trata de doutrina, mas de C rítica. Com Kant, a C rítica passou a ocupar o lugar da T eoria , com o ele m ostra na Crítica do juízo— e é o mote da grande tese de Lebrun, Kant e o fim da metafísica.

Quando emprego o termo, estou pensando sobretudo na formulação dos frank­furtianos. Para eles, o term o ideologia não é mais pejorativo, a ponto de constata­rem que a ordem capitalista regrediu tanto que nem mais ideologia produz. ,A ideo­logia sempre tem um fundamento de verdade. Ela não é inteiram ente falsa, nem é inteiram ente verdadeira, não é um mero engodo. A idéia de ideologia com o uma m anipulação de massa, em que se ludibria os indivíduos, é uma idéia iluminista — é denúncia da superstição. A novidade do m aterialism o de .Vlarx é que ele rompe com essa tradição ilum inista, com a “ história do e rro ”, com a idéia de que a difu­são das luzes dissipará as trevas. E por si extrai da filosofia clássica alemã a idéia substantiva de “aparência” , que se converterá na idéia m aterialista de “aparência social necessária". A simples crítica raciocinante (com o queriam os iluministas) não faz com que essa aparência se dissolva no ar.

Q uando se fala em ideologia, pensa-se em racionalização. E não se trata ape­nas disso. Repito que a m atriz da idéia de crítica da ideologia é o idealismo alem ão, até porque ele mesmo é a transposição (não deliberada, é claro) do funcionam ento real desse processo social de produção da ilusão. O primeiro a se dar conta desse

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novo âm bito material da Crítica foi Hegel. A fonte de M arx, a idéia de crítica da ideologia, é a idéia de reflexão tal com o ela aparece na Fenomenologia do espírito, de Hegel. O que faz a consciência, segundo Hegel? Ela se ilude tam bém , ela é uma fábrica de ideologias. M as ela se distingue pela seguinte peculiaridade: a reflexão. Essa reflexão vai reaparecer em M arx, só que de maneira a um tempo fantasmagórica e real, objetiva. É o capital que se refere a si mesmo, o fetiche do fetiche. Ele funciona com o se fosse uma consciência: valoriza-se a si mesmo, refere-se a si mesmo, mede as suas quantidades etc.

Em Hegel, a consciência, ao mesmo tempo em que é uma fábrica de ideologias, é a crítica dessas ideologias, porque ela se corrige a si mesma. Ela é a sua própria medida. Na form ulação do Hegel: “ela é o seu próprio con ceito” . Ela afirm a uma verdade sobre si que até então desconhecia, e, ao expor essa verdade, ela a com pa­ra com a sua experiência dessa mesma verdade e, desse juízo passado sobre si mes­ma emerge algo com o um sentim ento dram ático de seu descom passo, de sua divi­são. N egação interna que procura resolver por uma nova operação crítica com an­dada pelo seu próprio padrão de medida. Portanto a ideologia e a falsa consciência não são inteiram ente falsas, há um m om ento de verdade que é inconsciente e obs­curecido, porque há uma relação de poder e de dom inação na ideologia, o impulso do auto-engano, da racionalização etc. De sorte que o conceito de Ideologia por assim dizer confia numa verdade substantiva que existe, e é expresso por idéias, que por sua vez são eminentemente práticas. Por isso a idéia que está embutida na ideo­logia é a que Kant tinha em mente, que é sempre idéia da razão, e necessariamente prática, pois tem a ver com sua realização ou não no mundo.

O que é cham ado de ideologia burguesa, que vai do cristianism o já totalm en­te secularizado e racionalizado (no sentido w eberiano) até a arte, passando pelo direito natural e pela filosofia, é uma espécie de repositório de verdades da hum a­nidade em seu progresso rumo ã em ancipação. Então justiça, liberdade, igualdade, fraternidade, universalidade, beleza são idéias verdadeiras. Só são falsas na medi­da em que na ordem burguesa se apresentam com o já realizadas. Foi o jovem M arx quem com eçou a dizer isso: “a crítica da ideologia nada mais é do que obrigar o mundo a confessar aquilo que ele já é. não estou acrescentando nada” , ou seja, na hora em que o mundo se confessa, ele se corrige. E a revolução é essa confissão, em que ele reencontra a sua verdade, expressa na inconsciência da ideologia. A ideolo­gia, portanto , transcende a realidade, está para além da realidade. A realidade está aquém, e a ideologia é falsa porque é uma promessa não cumprida. A crítica da ideo­logia é uma operação lógico-social, crítico-revolucionária — com o dizia o jovem M arx — , que permite que essa verdade se reencontre consigo mesma. Ou seja, no m om ento em que aparece, implica necessariam ente em uma transform ação social. H á, dessa form a, uma falsa universalidade que, confrontada com a sua realização defeituosa, por assim dizer se regenera coincidindo afinal consigo mesma. O que é isso? Uma pressuposição muito forte que implica numa concepção otim ista da his­tória. Trata-se cm suma de uma filosofia da história. E a configuração derradeira dessa mola secreta da crítica da ideologia, sua incessante correção interna, é a fa­mosa contradição entre forças produtivas e relações sociais de produção. A revo­lução é essa reviravolta, tal qual uma experiência da consciência, no sentido hegelia-

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no. De m odo que há um sistema de universais que constitui o arcabouço da civili­zação liberal burguesa clássica, do século X IX até a grande crise entre 1914 e 1939 , no interior do qual a crítica da ideologia funciona justam ente com o o impulso de realização do ideário burguês. Por isso que, nessa vertente originária do m ateria­lismo, o capital e a burguesia são progressistas por definição, liberalism o e socia­lismo se implicam mutuamente. Nesse sentido, a crítica da ideologia funciona com o uma negação determ inada, no sentido hegeliano. N o caso de Hegel, por se tratar de uma filosofia especulativa, essa identidade do conteúdo consigo mesmo já está assegurada, vai haver necessariam ente um happy end. Por isso, quando com eça a Fenomenologia do espírito, nós já sabemos que tudo vai dar certo, assistimos ã cons­ciência se educando através de sucessivas crises movidas pela crítica imanente de seus castelos ideológicos, com o nessa toada o negativo das perdas se converte em positivo, a consciência vai se enriquecendo à medida que é desenganada.

Mutatis mutandis, com o capital é o mesmo enredo. Ele permite tecnicam en­te superar pela primeira vez a escassez, e, portanto, permite à humanidade encon­trar-se consigo mesma e encerrar a sua pré-história. A sua pré-história é a história dessas ilusões, a história de promessas em ancipatórias de justiça, liberdade, igual­dade etc. M as uma em ancipação por enquanto apenas negativa, que os sociólogos cham arão de m odernização. E ninguém pode dizer que é contra tais prom essas, até mesmo em relação à promessa da propriedade, pois é no socialism o que a proprie­dade vai se realizar com o tal. Dessa form a, há um processo movido a ilusão, mas que traz consigo o germe da sua satisfação interna. A crítica, assim, é uma com pa­ração consigo mesmo, com o se o ideal burguês clássico fosse constantem ente pos­to à prova e se saísse bem sempre dando um passo adiante.

O ra, no caso de M achado de Assis, R oberto Schwarz não pensou mais nesses term os, quer dizer, nos term os de uma boa superação. O que ele descobriu? Que a idiossincrasia, a originalidade e a genialidade de M achado permitiram pela primeira vez verificar que a crítica da civilização burguesa, o que os clássicos cham aram de crítica da ideologia, estava funcionando de maneira diferente. Para R oberto, a ra ­zão pela qual a Ideolologiekritik funcionara até então coerentem ente na Europa liberal, mas não no Brasil não estava no fato de que a experiência periférica da coexistência sistêmica de capitalism o e escravidão falseava a própria vigência dos padrões civilizatórios da idade liberal burguesa. O que ele está dizendo é o seguin­te (e é isso que tento dizer no texto citado por vocês); nós temos a possibilidade, através de M achado, de entender o que está acontecendo na Europa. E o que esta­va acontecendo na Europa, na época de .Machado, era a derrocada da civilização liberal burguesa. Para R oberto , os dois termos da crírica da ideologia, o universal e a sua realização particular, com o que se relativizam e rebaixam mutuam ente.

Dessa form a, não era porque éramos atrasados, coloniais, escravistas etc., que estropiávam os a universalidade do programa liberal burguês. É porque ele já esta­va contam inado desde a raiz, isto é, a nossa experiência dem onstrava o form alism o da civilização liberal capitalista, mostrava que ela podia conviver com não im por­ta qual tipo de barbaridade, com o a escravidão por exem plo. O caráter form al, ou seja, a equivalência generalizada e a abstração, fez com que essa civilização pudes­se conviver com todos os tipos de “ retrocessos” que, na verdade, nos tornavam seus

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contem porâneos. D c modo que o m otor da crítica clássica da ideologia já estava com eçando a falhar e foi, pouco adiante, desm oronar com o nazism o, ou seja, com a crise term inal da civilização burguesa, que com eçou a m adrugar com o im peria­lismo. Dessa form a, M achado, em seus próprios term os, estava refratando a expe­riência imperialista do desm oronam ento da civilização liberal. A norm a universal burguesa foi desmoralizada pela sua particularização local, que ela no entanto ao mesmo tempo desqualificava.

Isto aparece quando as duas coisas se juntam e culm inam na com édia ideoló­gica de M achado, que é a relativização recíproca desses dois lados. Isso não estava nos clássicos, e apareceu pela primeira vez com os frankfurtianos, isto é, com o colapso da civilização burguesa quando caíram os dois lados: a norm a ideológica geral e o impulso de elevar a realidade ao seu próprio padrão imanente. Consta que Horkheim er teria dito que falar em N egação Determinada ou Ideologiekritik diante da ruptura histórica representada pelo III Reich parecia-lhe uma indecência. Então a crítica progressista da ideologia burguesa caiu por terra, o que M achado anteviu e foi tirando por aqui as consequências. C om o artista, cie era radicalm ente crítico em relação ao capitalism o, mas já não podia mais ser linearmente progressista. Se o fosse seria mais um Silvio Rom ero. D aí a invenção satírica do “ hum anitism o” , uma salada grotesca da fraseologia burguesa mais avançada para sacram entar bar­baridades cá e lá. E nesse sentido que a crítica da ideologia foi renovada. Por isso o sexto sentido do R oberto foi lá e acertou, até hoje fico impressionado.

Também em seu livro Sentim ento da dialética, você afirmou: “Uma vez exposta a raiz social da volubilidade narrativa, a alternância prática de patrocínio oligárquico e negócios burgueses, estava montado o es­quema histórico de que carecia o crítico, a fortna objetiva exigida pelo programa dialético traçado por Antonio Cândido nos tertnos em que vimos Roberto Schwarz interpretá-lo. Repetindo: isso quanto a primeira acepção de dialética consagrada pela tradição materialista que man­da procurar na configuração artística a estrutura social sedimentada. Quanto à segunda acepção que estamos dando à palavra, a reversi­bilidade caprichosa de nortna e infração, acabam os de verificar que ela vinha fazer justiça à sensação de dualidade que o Brasil incessantemente disperta”. Seria essa um boa apresentação do conceito de dialética de que você se utiliza? Tal conceito guarda afin idade com a noção de “dialética negativa” de Adorno?

É uma boa ilustração, mas não guarda afinidade com Adorno. Uso, de vez em quan­do, o term o “dialética negativa” para lem brar que o esquema evolutivo progressis­ta, o que se entende por dialética no m arxism o clássico, não funciona no Brasil. Isto é, Lukács não funciona. Explicando o R ob erto , num determ inado m om ento do Sentimento da dialética, relem bro porque o M achad o não é realista no sentido lukácsiano. Com o eu não tinha outro term o, acabei usando “ dialética negativa” . Roberto mostra com o essa alternância da norma burguesa e infração da norma bur­guesa, mas sobretudo a repetição desse m ecanism o, não leva a lugar nenhum. Por­que a forma machadiana de enquadrar esteticamente a experiência brasileira já havia

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revelado que não haveria esse passo adiante. E, na sociedade brasileira, essa “ su­peração” do passado colonial escravista deveria m archar na direção de uma socie­dade de classes à européia — o pressuposto do grande realism o. O que acabou não ocorrendo e M achado intuiu de saída. De sorte que o grande realism o seria falso no Brasil. Na passagem de ïaià Garcia para Memórias póstumas de Brás Cubas, (sempre segundo R oberto) há um cam inho representado por Esteia, a personagem que recusa a desm oralização inerente à sociedade senhorial — “a taça do favor já estava transbordando” . Esteia seria o em brião da narrativa realista burguesa euro­péia. Com o ela escapa de um arranjo da m atriarca Valéria e vai ser professora, seria possível im aginar que o próxim o rom ance de M achado seria propriam ente realis­ta, em que há classes configuradas e a possibilidade de carreira social fora do patro­nato. Segundo R oberto ele deve ter pensado: “ isto, no Brasil, é falso, essa estrutura patriarcal vai se m etam orfosear e reproduzir” . A tram a realista, que é a imagem mais enfática daquilo que os clássicos na Europa, de Hegel a Lukács, cham aram de dialética entre indivíduo e sociedade — esse drama dialético de oposições, a hélice que em purra o rom ance — , não iria acontecer no Brasil. N a bela expressão de R oberto: “essa hélice empurra em direção ao nada” . Nesse sentido, a dialética clás­sica fez com que o pensamento progressista brasileiro, em uma certa época, desde­nhasse M achado e fosse procurar Lima Barreto — o que é um engano total.

Então eu uso “dialética negativa” para caracterizar uma alternância, um cer­to girar em falso entranhado na lógica da sociedade brasileira. Com isso, eu estou abusando um pouco da maneira pela qual Hegel descrevia o caráter inconclusivo da idéia de reflexão nos clássicos alem ães, sobretudo em Eichte e Kant. N estes, a im aginação balança de um lugar para o outro e não produz nenhum resultado, não avança. N o caso de M achado, foi isso o que eu quis dizer. Se eu quisesse ter com ­plicado a minha vida, poderia ter dito que não tinha nada a ver com a dialética negativa de A dorno, que não é propriam ente alternância indefinida que não se re­solve. Só que essa alternância inconclusiva no M achado tem um efeito mimético exem plar, e essa é a dem onstração de R oberto. M achado usa recursos não realis­tas, vai ao Setecentos inglês e aos m oralistas franceses do século X V II para obter uma representação “realista" da matéria brasileira que lhe interessava retratar es­truturalm ente. Por outro lado — e é aí que eu poderia ter com plicado a minha vida — , eu poderia dizer: no fundo, não há dialética.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação pennanece até hoje? Como ela sedá na atualidade?

Isso é pergunta padrão para dois terços das pessoas que se ocupam com filosofia. Bom , com o não sou filósofo, e com o não tenho me ocupado muito dessas questões sobre a relação entre filosofia e ciência, vou sair pela tangente. Vou dar uma resposta pragm ática. Voltarei ao meu realejo uspiano, para, depois, falar da atualidade.

Uma das grandes revelações da “form ação” dos franceses na USP foi a dissocia­ção entre filosofia e ciência. A m editação filosófica sobre a ciência e a epistemologia passou a ter um caráter inteiram ente subsidiário e nada decisivo, em bora para uso dom éstico, ocupasse um lugar no currículo quase tão central quanto a história da

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filosoíia. Em princípio, a epistem ologia não teria mais nada a dizer para um cien­tista. Isso faria parte da m odéstia, e da futura timidez uspiana, no sentido de que nada do que se pudesse falar de m atem ática e de física, de Aristóteles até a teoria quântica, teria algum interesse para quem faz ciência.

A relação intrínseca da filosofia com a ciência é, para nós, um problem a e.s- sencialm ente histórico. Houve um m om ento em que elas eram indicerníveis, dos gregos até Descartes e Leibniz. Esses dois foram os últimos que eram cientistas e filósofos indistintam ente, no sentido original do term o. Com Kant, isso desapare­ceu. O primeiro a dizer isso de maneira não tem atizada explicitam ente, dentre os franceses que chegaram aqui, foi IJeanJ M augüé. E quem disse de m aneira sistem á­tica foi Lebrun. Ele m ostrou que, com K ant, a nossa relação congênita com a ciên­cia desaparece, isto é, a filosofia passa a não ter mais nada a dizer para quem faz ciência. T an to é que é possível fazer uma prova empírica e sociológica elem entar: quando alguém das ciências exatas ou biológicas cham a algum filósofo para falar, não quer ouvir nada sobre biologia. Darwin ou Einstein, quer ouvir filosofia, quer saber quem foi Platão, Aristóteles, Freud etc. O s cientistas conhecem seu métier, querem mesmo é cultura geral. E Lebrun mostrou uma coisa que é daquelas que abrem a cabeça das pessoas que com eçam a fazer o curso de filosofia: por que Kant se tornou obscuro? Ele não era obscuro. N a fase pré-crítica ele escrevia muito bem, até parecia um filósofo francês, de tão claro que era. Isso porque não havia ainda divisão entre filosofia e ciência. A rigor quem cuida de filosofia a partir de Kant, não pode enquanto filósofo saber positivamente de nada: aliás esse nada é o seu assunto real, com o sabia qualquer rom ântico alem ão.

Q uando a filosofia, para K ant, deixa de anunciar o saber, torna-se possível a reflexão, não só propriam ente epistem ológica íoriginalm ente. Teoria do Conheci­m ento), com o sobre a epistem ologia e sobre ela mesma — com a história da filoso­fia. Porque ela se separa da ciência e passa a refletir sobre as suas próprias catego­rias, os conceitos puros do Entendimento e por aí afora. Portanto, com o dizia Lebrun, K ant torna-se com plicado e ilegível, porque já não estava mais com unicando um saber positivo. O ra, quem faz epistem ologia tem de adm itir que está cultivando um gênero filosófico reflexivo, de teor histórico e sem nenhuma pertinência para quem produz ciência. Q uando m uito, é possível refletir sobre a prática da ciência com o uma prática social. M as daí já não é mais o filósofo que faz isso. Dessa form a, o filósofo já não tem mais nada a dizer para o m atem ático, para o biólogo, que estão “se lixand o” para ele. Tornando-se uma disciplina universitária entre outras, a fi­losofia além do mais ocupa-se mesmo é dela mesma — a idéia de crítica kantiana — , às volas com os conceitos puros da razão, com o Kant a definiu. E isso vai de K ant a H usserl, passando por Frege e W ittgenstein.

Q uando essa triste equação se inverte, temos H aberm as. Ele com eça a imagi­nar algumas ciências especiais, que são mais do que ciências. Dá com o exem plo Freud, Piaget e outros. Essas ciências têm um m om ento reflexivo em que, no inte­rior da sua própria produção conceituai, refletem sobre isso com o se mimetizassem a filosofia. Nesse m om ento talvez o filósofo tenha alguma coisa a dizer. M as isto é conversa fiada, não dá para acreditar. A ciência com o fenôm eno social é um bruta assunto. M as essa filosofia profissional que conhecem os não tem nada a ver com

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isso. Talvez a Teoria Crítica dos frakfurtianos, entendida num sentido muito am- pio, tivesse algo a dizer. M as n<ão é filosofia, nem sabem os mais se ainda existe. D aí haver alguma coisa a se dizer sobre o funcionam ento contem porâneo da ciência, e, principalm ente, sobre seu caráter de tecno-ciência, isto é, m ostrar o m om ento em que ela virou fator de produção. M as a partir daí, o quê? Fazer epistem ologia de um fator de produção? É brincadeira! Dizer que há uma relação dialógica na pro­dução da ciência, e requentar Pierce, Thom as Kuhn e com panhia? Que a com uni­dade científica está mudando de paradigma? O ra, essa com unidade vai olhar e di­zer: “ .\h? T á bom ” . Agora, se exam inarm os o funcionam ento da tecno-ciência, a coisa muda de figura, pois o debate passa a ser político. Q uando nosso patrim ônio genético é cotado em bolsa, é preciso ver que tipo de ciência se está fazendo.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobreum possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como você se posiciona em relação a esse debate?

Hegel nunca falou que a arte havia acabado, sobretudo porque foi contem porâneo do apogeu da arte na Alem anha. Ele simplesmente disse o que seria a arte do futu­ro: que a arte não teria mais nada a ver com o absoluto, isto é, que a arte não fun­cionaria mais do mesmo jeito que funcionou na sociedade medieval ou na socieda­de antiga. A sua expressão para isto é: “ O s joelhos, diante de uma obra de arte, não se dobram m ais” . D aí o caráter farsesco das enxaquecas estéticas de M m e. Verdurin. Trata-se do processif de dessacralização da arte com o instituição. M as, ao mesmo tem po, essa dessacralização da arte implicou em sua autonom ização, ela passou a ser um ob jeto entre outros, passou a ser consumível. Beethoven foi o pri­meiro a pensar num público mais ou menos anônim o com o futuro m ercado, ape­sar dc seus patrocinadores aristocráticos. N o m om ento em que isto ocorreu, a arte foi se tornando cada vez mais o seu próprio assunto, na maneira hegeliana de en­tender o fenóm eno. É por isso que Hegel cham ou a arte rom ântica de dissolução da arte, ou seja, que havia nela um predomínio do arranjo formai sobre a experiência enfática da qual, a princípio, a arte tinha sido o veículo privilegiado. Portanto a arte, para ele, iria prosperar, mas não mais com o o princípio cristalizador da experiên­cia fundamental da verdade. O problema era esse: ela não teria mais nada a ver com a verdade.

M as deixem os de lado essas altas paragens especulativas. Acho que seria bem mais interessante precisar o foco e escapar das generalidades filosofantes recorren­do ã prata da casa, por exem plo, para continuarm os cm fam ília, o debate entre a O tília |Arantes| e o R oberto |Sch\varz|, docum entado em dois artigos, sobre a di­m ensão estética da arquitetura m oderna. {Mutatis mutandis, o mesmo desencontro entre de novo o R oberto e Iná Cam argo Costa sobre o juízo estético no teatro de­pois de Brecht.) E isso tem a ver com a segunda parte da pergunta, com o desapa­recim ento ou não do fenôm eno estético na sociedade contem porânea. No caso da arquitetura contem porânea, quer dizer depois dos m odernos, O tília é categórica: desapareceu. E é disso que se trata. N o com entário que R oberto fez do trabalho dela, disse mais ou menos o seguinte: “ C oncordo inteiram ente com a sua análise da dissolução do m ovim ento m oderno arquitetônico, m as, uma vez esgotado esse

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m ovim ento, que por sua vez havia incorporado o avanço da vanguarda artística — sobretudo a construtiva — , qualquer que seja o diagnóstico, ele deixou um acervo atrás de s i” . Era isso mesmo que O tília estava discutindo, o que significa dizer que a arquitetura moderna brasileira representa um dos m aiores patrim ônios arqui­tetônicos a céu aberto que se conhece. “ Então o que a gente faz com isso?” , per­guntou Roberto. Com essa pergunta, ele queria dizer que mesmo que com o tendência histórica e estética o movim ento arquitetônico m oderno não tivesse mais futuro, as obras de qualquer modo ficaram . E m ais, continuava achando que tal acervo, brasileiro e internacional, era ainda uma senha para uma ordem social superior — com o queria o program a moderno. E o que se faz com essas obras, do ponto de vista da sua substância artística? São obras belas, bem realizadas — em suma, são obras de arte. R oberto dizia ainda que, quanto ao movim ento m oderno, ele usava a distinção adorniana entre ideologia e sua realização, ou seja, que a ideologia só é falsa quando ela se apresenta com o realizada, não em si mesma. O ra, segundo Otília não se poderia sem m ais, sobretudo em arquitetura, dissociar “p ro je to” e realiza­ção. “ M as o problem a” — insistia o R oberto — “é que essas obras que restaram com o relíquia do movim ento m oderno carregam e preservam uma espécie de se­mente crítica , que acende a im aginação utópica das pessoas, e, por isso, são e con ­tinuam belas. O esgotam ento do movimento moderno não anulou esse efeito. Você IO tília I detectou uma tendência histórica, mais uma ironia objetiva por assim di­zer clássica. Sendo o movimento m oderno, em princípio, declaradam ente anti-sis­têm ico, ele acabou se convertendo inteiram ente no seu contrário afirm ativo, inte­grou-se e tornou-se funcional, com o você dem onstra. Q uando o capitalism o mu­dou, ele m orreu. Posso até concordar com isso, mas diria que você identificou uma tendência, analisou sua reversão e depois deixou as obras de lado. E, ao deixar as obras de lado, você abdicou de decifrar na beleza da obra de arte, que é o edifício arquitetônico m oderno, a promessa de uma em ancipação futura. Você deixou de decifrar o curso do mundo através da obra de arte. E essas obras, malogradas ou não, são necessariam ente a cifra do nosso tem po” .

E mais: “ Você conclui, portanto , que na arquitetura, pelo menos depois da falência do movim ento m oderno, a idéia de experiência estética seria no mínimo um equívoco. Quem imagina estar experim entando uma espécie de apogeu, ou de intensidade estética relevante, diante de um edifício m oderno, ou não, está enga­nando a si mesmo. É essa a sua conclu são?” . Resposta: “ É isso m esm o” . O ra, não se pode avaliar o interesse da resposta — e essa conversa continua — sem levar em conta que se trata em primeiro lugar de arquitetura, ou m elhor, de arquitetura de­pois da grande ruptura produzida pelos m odernos numa quadra histórica crucial.

O que O tília estava dizendo era que, do ponto de vista estrito da arquitetura, o movim ento m oderno, quando apareceu, eliminou a possibilidade de se conside­rar uma obra arquitetônica com o uma obra de arte, com o uma obra de arte autô­noma tom ada em si mesma. Ele apareceu justam ente para contrariar a inclusão da arquitetura no sistema das belas artes. Com isto, a bela obra arquitetônica não era mais uma obra de arte, quando muito um sintom a (no sentido freudiano), com o os estilos históricos do revivalismo burguês do século X IX . N o que diz respeito às obras arquitetônicas anteriores, até mesmo o tem plo grego, a idéia de que se trata de uma

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obra de arte é uma ilusão retrospectiva, algo com o o anacrônico juízo de gosto na origem dos museus imaginários da vida, que reúne num mesmo âm bito estético tudo aquilo que tinha funções sociais numa outra sociedade, do religioso ao político. O pendor vanguardista do movim ento m oderno foi m ostrar que arquitetura não era escultura ou coisa que o valha, por mais que um construtivista prolongasse o gesto de M ondrian, mas tinha que ser transgressivam ente funcional e é por isso que ha­via a esperança de que essa reordenação do espaço pudesse alterar a ordem social. E se se tratava de uma obra de arte, era justam ente na intenção vanguardista de elim inar a distância estética entre arte e realidade. C om o o pro jeto m alogrou, a reunião m useológica das sobras, por mais edificantes que sejam e nos falem ao co ­ração, representaria um retrocesso nos term os mesmos dos m odernos que pro jeta­vam pensando em acabar com tudo isso. Seria algo tão incongruente com o um museu do Socialism o. Aguardemos o próxim o capítulo. Se me expliquei bem , não se trata de um Fia Flu am alucado do tipo ainda existe x não existe mais algo que se con ­vencionou cham ar experiência estética genuína. Até porque, seja dito de passagem, na sua dimensão antropológica elem entar, de princípio estruturante do processo de individuação através do autodistanciam ento pela imagem, pela faculdade ficcio- nalizante e tc ., a configu ração estética da relação com o mundo é propriam ente imperecível, salvo na situação inumana e terminal de uma absorção integral pela inconsciência de um ser mergulhado na positividade do im ediato. M as obviam ente não é disso que se trata , assim com o também não está em discussão a centralidade do trabalho na troca m etabólica da sociedade com a natureza quando se discute a crise da sociedade do trabalho assalariado, abstrato e historicam ente determ inado. Com o nos tempos de Hegel, ninguém está dizendo que a Arte acabou, mas simples­mente que a alta voltagem de uma primeira audição de Schõnberg ou leitura de um trecho inacabado de Kafka não se repetirá mais com a intensidade e a verdade de quem se defronta com um lim iar histórico.

E hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des­frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

Com o professor de filosofia — e com o estou sendo entrevistado nesta condição, preciso maner a ficção — não teria absolutam ente nada a dizer, e nem poderia, pois os assuntos não se entroncam . E no entanto nossos coleguinhas andam opinando m uito sobre isso. M as o que seria um diagnóstico filosófico “profissional” sobre uma era pós-nacional? Diria que é ponto a meu favor essa brincadeira de mau gos­to que consiste em dizer que, com a globalização, estamos nos aproxim ando da “ paz perpétua” kantiana. Por aí vocês vêem com o a filosofia tornou-se, na sua sobrevida, uma m áquina bisonha de disparates. Lem brem-se do Husserl que às vésperas do apocalipse nazista estava dizendo que era hora de ressuscitar o vigor da razão teó­

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rica — que só a teoria pura poderia recolocar a Europa em seu trilho rumo à idéia transcendental de humanidade. Bom , imaginar que a essa altura do cam peonato, quando dois terços da humanidade vivem com menos de um dólar por dia, esta­mos nos aproxim ando da “paz perpétua” de K ant, já é um primeiro disparate. O segundo despropósito filosófico é o de im aginar que a idéia cosm opolita kantiana estaria prestes a se realizar. Q ue, com uma sociedade civil mundial, serem os todos cidadãos do mundo [Welíhürger]. M as agora o ponto é a favor da velha filosofia, pois Kant não era idiota. A idéia de Weltbürger de K ant não tem nada a ver com a idéia de Estado mundial. Aliás, para ele, a idéia de Estado mundial era o império, a pior das tiranias, o contrário da república. Im aginar-se, dessa form a, cosm opoli­ta kantiano, fazendo parte de uma sociedade civil mundial é sim plesmente se a jo e ­lhar diante da tirania que virá na form a de um im pério, que aliás é um outro nome convencional para a espúria retom ada da hegem onia am ericana, entenda-se: o po­der econôm ico de em issão do dinheiro mundial lastreado pelo poder das armas. Weltbürger, para K ant, era simplesmente poder apelar para a opinião pública, para além do seu status particular. E essa opinião pública, para ele, era erudita e mun­dial, correspondia-se em latim . Portanto ser um cidadão do mundo é ser m em bro de uma república mundial das letras, em que todas as pessoas, independentemente da condição social, correspondem -se e argum entam entre si numa língua universal— o latim . O s filósofos de hoje estão contribuindo para o debate contem porâneo com essas enorm idades.

É obvio que a febre ética de hoje é um pobre sucedâneo do empenho político bloqueado. Im plicando um pouco mais com os nossos coleguinhas, não sei com o os filósofos ainda não prom overam um revival do estoicism o rom ano, algo com o uma etiqueta m etafísica para se aguardar em casa o fim do mundo. T od o o refluxo de 1968 converteu-se nessa grande maré ética. Está aí o último Foucault que não me deixa m entir, para não falar na ética discursiva dos piedosos professores ale­mães. E tom e ética disso e daquilo. (O outro encosto é a estética: basta um concer­to da Filarm ônica de Berlim, para a turm a do esteticam ente correto sentir a pre- .sença do absoluto e atravessar a cracoiândia pisando em nuvens.) E mais “socieda­de civil” a torto e a direito. Q uem diria, antes teatro de uma guerra de posições, a sociedade civil hoje passa por espaço da liberdade, onde se “vive na verdade”, com o se dizia no leste Europeu. Ativistas sociais, socialites, próceres do hig business sus­piram em uníssono por mais autenticidade, com o nos bons tempos do jargão existen­cialista. Só que o existencialism o agora é de m ercado. A ética é um fator de produ­ção, as empresas consideram o lucro um acidente operacional, sua vocação é toda cultura e cidadania. E por aí vamos. O curioso é que neste mundo e.svaziado da guerra social de antigam ente, é um deus nos acuda toda vez que cidadãos não-proprietá- rios e politicamente articulados se aproximam demais do poder de Estado e do Banco C entral, que continuam onde sempre estiveram . Está claro tam bém que essa gran­de quermesse hum anitária — que às vezes explode em surtos de histeria coletiva, pois há uma clara tendência à depressão gerada pela im potência flagrante das ini­ciativas éticas individuais para a calam idade coletiva em que se converteu o capita­lismo hoje — se deve muito à percepção (não inteiramente equivocada) de que numa sociedade conectada horizontalm ente em rede a questão social se resume à divisão

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entre os que estão “d entro” e os que estão “ fo ra” , e sua resolução é um problem a de “ inserção” ou qualquer outra com pensação, sim bólica de preferência. M e pare­ce uma questão de tempo identificar as novas form as de exploração e antagonism o sob a superfície ética da “exclu são” . Quando se com eça a falar demais em ética e seus derivados e patrocinadores, está-se dizendo outra coisa, na verdade um decre­to sem apelação: a econom ia de m ercado veio para ficar e estam os conversados.

Tam bém me parece claro que tam anho frenesi ético de nossas elites e sua cli­entela (e nelas incluo contra-elites ã esquerda), para não falar em desfaçatez, algo tem a ver com o desmanche nacional em curso, que aliás não é fatalidade económ i­ca natural mas fruto de decisões de com ando político e dom inação social num es­paço mundial que nunca esteve tão hierarquizado e polarizado. Contraprova? Con- tento-m e com um term o de com paração histórico. Considerando nossa problem á­tica passagem de Colônia à N ação, C aio Prado Jr . costum ava dizer que nos faltava o essencial, o “nexo m oral”, que entendia com o vínculo social, com o um conjunto aglutinante de forças para além do laço meramente econôm ico do contrato m er­cantil. Pois era essa miséria “ m oral” , própria de uma colônia de exploração, mero em preendim ento com ercial — éram os um vasto em pório regido pelo mais cruento cálculo econôm ico, o do lucro auferido com o trabalho escravo e o “trato dos vi­ventes” — que nos inviabilizava com o sociedade. Com o ultrapassar o mercado rumo à nação? Esse o dram a. Inclusive do pensam ento progressista ulterior, que aliás com plicou-se ainda mais ao inverter o raciocínio — até hoje: a idéia “ m oral” de sociedade foi rifada porque algo com o uma econom ia nacional foi para o ralo. Ou seja, não há nação sem mercado interno e toca a procurar pelo em ovo, em arran­car um nexo societário não-m ercantil da form a-m ercadoria! M ercado não form a nação. A prova está aí: hoje, com muito otim ism o, som os apenas um m ercado, ora emergente, ora submergente. Com o se eclipsou o “nexo m oral” demandado por Caio Prado, junto com a atual reconversão colonial-m ercantil veio o auto-engano ético que estam os vendo.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?Foi uma relação pretérita, de adolescente. Atualm ente, para mim, é apenas um fe­nôm eno sociológico. N ão tem o menor significado pessoal.

Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança deparadigm a” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada nalinguagem?

Se eu ainda desse aula, com eçaria pelo seguinte esclarecim ento: essa conversa de mudança ou crise de paradigma a três por dois com eçou com o senhor Thom as Kuhn, para dar conta do que estava acontecendo com a mudança de humores da episte­mologia am ericana. Em meados dos anos 6 0 , antes do desembarque da ideologia francesa, chegou aos ouvidos am ericanos a notícia de que as verdades científicas são históricas, independentemente da sua verificação em pírica, e dependiam de um consenso entre aqueles que estavam envolvidos no debate. E redescobriram coisas que os alem ães estavam falando desde o historicism o do século X IX . Entre outras coisas que a ciência fazia parte de um sistema cham ado cultura, banalidade da qual

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os antropólogos há um bom tempo sabiam extrair consequências interessantes. A idéia de paradigma com eçou com isso, com a idéia de historicização do núcleo duro e positivo do pensamento científico.

O interessante é que houve antes, na virada de século filosófico , um “giro lingüístico” endógeno, uma tradição interna que se iniciou com Frege — que não por acaso vinha da m atem ática — , desviando-se da filosofia da consciência — pre­dom inante na Alemanha até a fenom enologia — , e migrou para a Inglaterra, na recepção de um Bertrand Russell. Depois vieram os austríacos, W ittgenstein e as­sim por diante. Isso foi uma questão interna, a transform ação da filosofia profissi­onal, até então centrada na idéia de representação, que passou com arm as e baga­gens da consciência para a linguagem. M as continuou sendo filosofia profissional e, portanto , não mudou nada em relação à linhagem m oderna, que vinha de Kant. O fam oso “giro lingüístico” não mudou nada. Simplesmente a filosofia universitá­ria livrou-se da ganga psicologizante e passou para a análise lógica do conhecim ento.

A virada que nos im porta, a conversão ao paradigma com unicacional, onde sobressai a dim ensão pragm ática da linguagem, é da metade deste século. De qual­quer m aneira, esse giro com eçou a aparecer quando o élan “desenvolvim entista” geral (algo com o uma convergência m odernizante dos vários cam inhos nacionais), no centro, com o Welfare State, e na periferia, com a industrialização, com eçou a implodir e a desacreditar a noção “ progressista” de progresso. Depois isso foi ba­nalizado pelos pós-m odernos com o o “ declínio das grandes narrativas” , na verda­de apenas uma estilização de fatos reais, nada que se assemelhasse a uma ruptura na H istória do Ser. Nesse m om ento, ficou mais ou menos claro que a noção de pro­gresso supunha continuidade, e que progresso com continuidade supunha uma matriz que lhe é coextensiva, cham ada tempo e consciência. Então as filosofias da cons­ciência e da tem poralidade com eçaram a cair em desgraça, com o também as deci­sões que envolviam tem po e consciência, com o a idéia de sentido e engajam ento da filosofia existencialista. C om o essa parafernália com eçasse a periclitar, a panacéia da linguagem passou para o primeiro plano. De início através do estruturalism o linguístico, que foi apropriado prim eiram ente pelos antropólogos e, só depois, pe­los filósofos. Q uando os filósofos “arrom baram ” essa porta aberta e descobriram a Am érica, para a antropologia já era uma evidência o fato de as sociedades vive­rem mergulhadas em sistemas sim bólicos, evidência, que ao se generalizar, se e x ­prime hoje na convicção de que até a econom ia se tornou cultural. Portanto, tanto a idéia de progresso, quanto a idéia neopositivista de objetividade com o teste últi­mo de realidade, foram para o brejo, pois só há significações socialmente construídas. (Grandes novidades... E com o rola tinta.)

Só que, nesse m om ento, as idéias herdadas de objetividade, de progresso, de consciência e de tem poralidade estavam desm oronando, porque a sociedade do capitalism o organizado tam bém estava. O crescim ento com pleno emprego fora deslegitim ado, o m otor m aterial da antiga consciência; o sujeito forte da socieda­de liberal burguesa, também tinha se eclipsado. Vieram os pós-estruturalistas fran­ceses e obviam ente fizeram a festa. Derrida tem pelo menos faro , porque a Des- co n stru ção nada m ais é do que a súm ula dos fa to s m uito pouco m etafísicos estilizados pelo colapso dessa geocultura progressista de legitim ação do capitalis­

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m o, com o R oberto foi o prim eiro a lem brar certa vez, em 1994 , num breve en­saio de primeira intitulado “ Fim de sécu lo". Na outra ponta, um sociólogo fran­cês, Luc Boltanski, também foi o prim eito a notar que, pensando bem, os rizomas de Deleuze são uma abreviatura “ ideológica” da Sociedade em Rede. Convenha­m os: esses ideólogos franceses no fundo eram excelentes sism eografos, porém inidôneos com o toda apologia indireta, com o diria o velho Lukács, com perdão da má lem brança. M as a estilização destes fatos também produziu incongruências. Por exem plo o nosso am igo H aberm as, um dos teóricos dessa mudança de para­digma. Ele achou que o finado paradigma da consciência tinha um prolongam en­to , a sociedade do trabalho, e seu correspondente paradigm a, o da produção. Por­tanto, para continuar m odernizando a m odernidade, H aberm as afirm ou que se­ria necessário repensá-la por meio do paradigm a da com unicação, coisa de que os pós-m odernos vinham falando fazia tem po. Ele form ulou isso no início dos anos 80 , e os estruturalistas franceses estavam dizendo isso há vinte anos. Assim, o pobre H aberm as escreveu todo o Discurso filosófico da modernidade, com ca ­pítulos sobre D errida, Foucault etc. para dizer a mesma coisa. Q ual era a briga de Foucault com a esquerda francesa m arxista? Era “tchau tra b a lh o ” . E a de Derrida tam bém . Entre outras razões, era por isso que eles estavam flertando com o “gauchism o" cultural e antiprodutivista de 1968 . É claro que eu estou brincan­do, porque obviam ente há um abism o entre Foucault e H aberm as. M as estão to ­dos no mesmo barco. Então a polêmica com o pós-estruturalism o francês, no Dis­curso, não exprim e esse confronto inapelável que o debate a respeito procura dar a entender. Prova disso: todos se encontraram , estão abraçados — com suas dife­renças de praxe — , nos EUA. Onde encontram os pragm atism o local (revitalizado pelo pós-estruturalism o francês), onde está a esquerda cultural am ericana, e a ver­são am ericana da última teoria crítica — H aberm as. Estão todos abraçados no mesmo paradigma. Seria interessante deixar um pouco de lado essa conversa toda sobre mudança de paradigma e procurar entender o esgotam ento histórico real de que ela de fato é apenas a sintom ática desconversa.

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever a sua visão dofuturo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

Ainda sou de pinião que utopia é uma palavra para abreviar socialism o. A pergun­ta, assim, é: “o que se pode considerar socialism o ho je?” — e já é difícil m anter ate a palavra “socialism o” na medida em que o socialism o real a enxovalhou. Então é necessário imaginar uma sociedade pós-capitalista que não seja apenas utópica no sentido de uma idéia moral reguladora. Isso eu deixo para as O N G s fazerem (ri­sos]. Por outro lado — e a encrenca é essa — , é necessário im aginar uma sociedade pós-capitalista, e ver se e com o as coisas vão de fato nessa direção. O que .Marx queria dizer com utopia? Exatam ente o contrário do que estou procurando indicar agora. Utopista, para M arx , era o pessoal que procurava se organizar ã margem da sociedade de m ercado em constitu ição, isto é, era a reação defensiva do cam ­pesinato se proletarizando. Essa gente brutalm ente despossuída imaginava poder reconstituir uma espécie de econom ia natural à margem da nova sociedade do ca ­pital, organizando-se por exem plo na form a de cooperativas. O que M arx dizia?

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“V ão m orrer na beira da estrada. Eles têm de mergulhar na grande corrente histó­rica que por meio de uma reviravolta épica vai dar no socialism o. V ão sofrer, mas, no fim , vai dar tudo certo ” . Esse era o socialism o “científico” , m ovim ento social por assim dizer garantido por uma m ola propulsora nada “cien tífica” cham ada negação da negação. .Vlas imaginem dizer isso em 1848 ; era o horror dos horrores. A nova .sociedade era uma coisa sinistra, a miséria um coisa inacreditável, e, no fundo, ■Vlarx estava dizendo; “seus bisnetos, daqui a cem anos, estarão no Welfare State europeu. Padeçam o inferno, mas não tentem se organizar fora desse tro ço ” . Ele tinha razão, a proletarização engoliu todo o mundo.

O ra, o drama atual, nesse jogo de utopia e socialismo, é que essa ladainha senti­mental da exclusão é falsa. N unca todo o mundo esteve tão incluído com o hoje em dia. É certo que estamos ferrados, e isso é outra coisa — pois viramos lixo descartável destinado ao aterro sanitário social. Os descartados não estão excluídos. São des­cartados porque estão absolutam ente incluídos. Esse é o drama dessa nova etapa.

Então a idéia de utopia, de uma saída possível, está se tornando socialm ente proibitiva. E o socialism o tam bém . A idéia clássica de socialism o tem de ser intei­ramente repensada. O que significava socialism o? A verossimilhança política e sen­timental do socialismo significava que quem era socialista representava alguma coisa de novo. O socialism o era uma tendência real e visível. E era possível apontar esta tendência com o algo que já suplantava o que estava aí, e que era m elhor. E isto passava tanto pela vida pessoal quanto pela organização produtiva. M esm o sendo moderna e capitalista, a sociedade liberal-burguesa se apresentava assim mesmo com o uma ordem tradicional, a cu ja constante inovação produtiva correspondia uma espécie de bolor cultural, de m ofo m oral, sem falar é claro na opressão econô­mica de sempre. De qualquer m odo era um mundo no qual se sufocava e os socia­listas vinham trazer o ar fresco da história, que tinham a seu favor.

H oje o negócio mudou, e quem fala em socialism o parece ter ficado para trás. N ão se pode apontar um obstáculo material ou moral que o mercado não se encar­regue de superar. .A idéia de que havia uma sociedade pós-burguesa ao alcance da m ão, uma espécie de promessa embutida na antiga ordem , que se cam inhava em direção a ela, saiu de cena. A prova mais extraordinária dessa recuperação perm a­nente é o movim ento de em ancipação das mulheres, talvez a m aior revolução des­de o neolítico. E o que mudou? N ada. .Ao mesmo tem po em que houve uma revo­lução, a sociedade de m ercado incorporou essa revolução. Isso significa que a idéia de limite a ser transposto cm direção ao socialism o desapareceu repentinam ente do horizonte. Se analisarm os o ciclo das grandes revoluções anti-sistêm icas deste sé­culo, dc 1917 a 1949 (Revolução Chinesa), não seria disparatado afirm ar que o capitalism o encalacrado estava por um fio, e que o mundo do trabalho tinha inclu­sive o progresso técnico em seu poder, portanto em condições de desbloquear aquele fim de linha civilizacional. Era vesossímel a possibilidade real de se encerrar a pré- história da humanidade. H oje, não. Ou novam ente, ainda não.

A esse propósito, gostaria de falar um pouco do livro de Paul Singer, Utopia militante, publicado pela coleção Z ero ã Esquerda. O que está fora de cogitação, no seu breviário? Paul Singer m ostra que não podemos mais pensar segundo a ló­gica binária cam po contra cam po, isto é, o socialism o não mais virá pela expropri-

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ação de uma classe por outra que, organizada em Estado, socializará os meios de produção. Isto está fora de cogitação, vide o exem plo da União Soviética. O socia­lism o, diz ele, tem de ocorrer por meio de algo com o uma adesão voluntária, a tra ­vés de “ im plantes” socialistas, o que ele cham a de ilhas de econom ia solidária den­tro de uma econom ia de m ercado capitalista dom inante. Então vão se criando es­sas pequenas ilhas de sociabilidade não inteiram ente organizadas pelo nexo mer­cantil. Essas ilhas, no entanto, precisam ter algum tipo de relação com o “exterior” , precisam vender os seus produtos no m ercado. Paul Singer com eça a fazer revisões extraordinárias. O que são esses implantes socialistas para ele? O sufrágio univer­sal é um implante socialista. Com o assim? O ra, socialismo e dem ocracia, para Singer, são sinônim os. O sufrágio universal foi “arran cado” pelos de baixo. O Estado de Direito também é um implante socialista, também foi arrancado pelos despossuídos, pois o Estado liberal sempre foi oligárquico. O direito de associação sindical tam ­bém é um implante socialista. O Welfare State tam bém , e assim por diante. Com o Paul Singer não é dado a especulações teóricas, o que acho que ele está dizendo é: a realização do socialism o não está mais garantida por uma dialética imanente. N ão há mais uma reviravolta produzida pelo próprio sistema, mas esses implantes que tendem a se alastrar por adesão voluntária e deverão dem onstrar a sua superiori­dade m aterial e moral sobre o conjunto da sociedade.

Seria possível, no entanto, relem brar a Paul Singer que isto tam bém aconte­ceu na passagem do Antigo Regime para o capitalism o, pois tam bém nessa época se poderia falar em implantes capitalistas. Esses implantes passaram a desorgani­zar e a reorganizar os m ercados locais — a interconectá-los — , passaram a finan­ciar a produção, e só venceram a parada porque esse novo arran jo da vida econô­mica revelou-se produtivo. M arx viu isso muito bem: a passagem foi irresistível por­que desenvolveu de maneira exponencial as forças produtivas da sociedade. Então é preciso perguntar a Paul Singer: “ O que você faz com esse problem a? Você está raciocinando por analogia, e, conform e esse raciocínio, tais implantes deveriam ar­rebatar toda a sociedade por adesão voluntária? Onde a superioridade das novas forças produtivas?” . Ele diria: “ É verdade, mas nós temos de pensar que, do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas e da organização capitalista con ­form e a esse desenvolvim ento, o capitalism o é um desastre no que diz respeito, por exem plo, a coisas fundam entais para a vida civilizada com o a saúde, a educação, a ecologia etc. E por aí que se deve com eçar” . O ra, a saúde é uma calam idade — a grande m aioria das populações vai m orrer porque não pode pagar os custos capi­talistas da medicina — e alguma coisa tem de ser feita. O mesmo raciocínio serve para a educação. Dessa m aneira, é possível imaginar que nesses dom ínios pode-se quebrar com a idéia de um horizonte intransponível. Essa “ utopia m ilitante” para Paul Singer é a im aginação dessa ordem pós-capitalista que pode ser antevista ao vivo com tais ilhas. E essas ilhas utópicas podem ser entendidas no seu sentido antigo. E por isso que, atualm ente, Paul Singer tornou-se tam bém erudito em história do socialism o cooperativo dito utópico. Trata-se de uma aposta, pode dar tudo erra­do, mas é um cam inho, entre outros ainda por descobrir, dentro e fora do mundo do trabalho, que absolutam ente não acabou, nunca se trabalhou tanto e tão mal em empresas podres em troca de dinheiro.

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A outra discussão a respeito do livro de Paul Singer é sobre a questão do Es­tado, e portanto do crédito. As cooperativas precisam de crédito. Já se disse ao Paul Singer: “ É necessário pensar m acro, porque quem controla o crédito em uma eco­nom ia capitalista controla tu do” , com o vem dizendo e argum entando Fernando Haddad, no qual me inspiro e espero ter entendido bem. N ão é ã toa que bancos e Estado estão sempre juntos. E o controle do crédito é político. Num certo sentido, não seria um despropósito dizer que os bancos deveriam estar fora do m ercado, pois dinheiro não é m ercadoria, com o trabalho e terra tam bém não são. Então o pro­blema do crédito nesses implantes utópicos pós-capitalistas repõe todo o problem a clássico de uma sociedade de classes antagônicas em que a econom ia é de com an­do político. Até a era liberal foi um ciclo histórico de capitalism o politizado até a medula. Com o crédito, o Estado entra na equação, ou seja, a disputa entre as clas­ses pelo crédito passa pelo confronto com o Estado. O dinheiro é um artefato po­lítico e o curso da moeda é uma peça fundamental da dom inação social. Câm bio e juros são instrum entos políticos, não decisões de m ercado — só aquele paranóico do Gustavo Franco achava que banana e câm bio eram a mesma coisa. Nada mais político do que a briga pelo controle do câm bio e do dinheiro. O ra, com isto, é pos­sível voltar ao conflito m acro, de modo que volta a luta política, volta a luta pelo controle do Estado. Se se chegar ao problem a do dinheiro e do crédito, chega-se ao coração do sistema, e obviam ente os atuais donos do mundo não vão deixar bara­to, só m ortos largarão o osso.

Portanto, o Estado será sempre essencial. Ele só está sendi) desm anchado e deslegitimado para os de baixo. Para os de cim a, ele nunca foi tão organizado, tão eficiente, tão dinâm ico e tão associado às finanças, que, por sua vez, estão associa­das à tecnologia de ponta. Se se for ao crédito e a esse Estado que está funcionando bem aqui no Brasil, vai-se ao coração do sistem a, sem o ônus das categorias tradi­cionais do socialism o. E passa a ser necessário saber quem se beneficia disso, quais são as classes sociais, para saber com quem se aliar e o que se vai dizer e fazer em função dessa relação entre poder e dinheiro. Por isso que é preciso uma nova teo­ria das classes. D issociar Estado e mercado e dizer que estam os indo em direção a uma sociedade civil global é reles enganação.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar­ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas?

“Nossa sociedade” de quem? Por que não dizer de uma vez que o capitalism o, e não a “ nossa sociedade” , que nunca foi nossa, tornou-se mais uma vez uma am ea­ça à sobrevivência da espécie no planeta (os energúmenos e outros deslumbrados falam em Renascim ento), e que toda vez que "nossa sociedade” se vê am eaçada a esse ponto insano de insegurança, responde com o fascism o? Tom ada ao pé da le­tra, a gracinha sociológica cham ada Sociedade G lobal de R isco é isso aí.

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Principais publicações:

1981 Hegel: a ordem do tempo (São Paulo: Brasiliense);1992 Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas (co-autor) (São

Paulo: Brasiliense);1992 Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira (Rio de Janei­

ro: Paz e Terra);1994 Um departamento francês de Ultramar (Rio de Janeiro: Paz e Terra);1996 Ressentimento da dialética (Rio de Janeiro: Paz e Terra);1996 O fio da meada (Rio de Janeiro: Paz e Terra);1997 Sentido da formação. Três estudos sobre Antonio Cândido, Gilda de Mello

e Souza e Lúcio Costa (co-autor) (Rio de Janeiro; Paz e Terra);1997 Diccionario de bolso do Almanaque Philosophico Zero à Esquerda (Pe-

trópolis: Vozes).

Bibliografia de referência da entrevista:

A dorno , Th. Dialética negativa, Madri: Taurus.Althusser, L. A favor de Marx, Jorge Z a h a r Editores..Arantes, O. B. F. O lugar da arquitetura depois dos modernos, Fapesp/Edusp. C ândido de Mello e Souza, A. Formação da literatura brasileira, Itatiaia. ___________ . “ Dialética da m aland ragem ” . Revista do Instituto de Estudos Brasi­

leiros, n° 8, 1970.Goldschmidt, V. A religião de Platão, Difel.Guéroult, M . Descartes selon l ’ordre des raisons, Paris: Aubier.Hegel, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Vozes.___________ . Ciencia de la Lógica, Buenos Aires; Solar.Horkheim er, .Vi. e A dorno, Th. Dialética do Esclarecimento, jorge Z ah a r Editores. Horkheim er, .M. “Teoria tradicional e teoria crít ica” , coleção O s Pensadores, Abril

Cultural.H aberm as, J. O discurso filosófico da modernidade, M artins Fontes.___________ . Teoria de la acción comunicativa, M adri; Catedra.Husserl, E. Investigações lógicas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Kuhn, Th. A estrutura das revoluções científicas, Pespectiva.Lebrun, G. La patiente du concept. Paris; Gallimard.___________ . Kant e o fim da metafísica, M artins Fontes.Lukács, G. História e consciência de classe, Elfos.___________ . El joven Hegel, Barcelona: Grijalbo.-Marx, K. O capital, coleção O s Economistas, Abril Cultural.___________ . Manuscritos econômicos-políticos, Lisboa; Edições 70.Schwarz, R. Ao vencedor as batatas, Duas Cidades/Editora___________ . Um mestre na periferia do capitalismo, Duas Cidades/Editora 34.Singer, P. A utopia militante. Vozes.

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C a rlo s N elson C o u tin h o ; “ V ejo um fenôm eno m u ito in teressan te — negativo , m as in teres­san te — o c o rre n d o no Brasil, que é o d o esvaziam en to da d im en são política da sociedade civil. F. esse esvaziam ento real se trad u z iu m u ito c laram en te tam bém num esvaziam en to c o n ce itu a i” .

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CARLOS N ELSO N C O U T IN H O (1943)

Carlos Nelson C ou tinho nasceu em 1943, em Salvador (BA). Formou-se em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia e, em 1964, mudou-se para o Rio de Janeiro em razão da repressão política. Permaneceu na Europa entre 1975 e fins de 1978. Em 1986, tornou-se professor titular da Faculdade de Serviço Social da Uni­versidade Federal do Rio de Janeiro, função que ocupa até hoje. É o editor brasilei­ro dos Cadernos do Cárcere, de Antonio Gramsci. Esta entrevista foi realizada em ou tu b ro de 1999.

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhehn Meister em dois romances, Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. No pri­meiro, o foco está posto na fortnação do indivíduo Wilhelm Meister, enquanto o segundo desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade. Seria esse um bom mote para que você nos falasse de sua fortnação intelectual?

N ã o me recordo bem se Goethe distinguiu assim tão claramente um período de for­m ação individual e ou tro das relações do indivíduo com a sociedade. Acho que já na form ação do indivíduo a sociedade está presente, quer dizer, os indivíduos são p rodu to da sociedade, e não o contrário . Feita essa observação, digamos, m eto­dológica, entendo que você está interessado em saber da minha form ação intelec­tual. Bom, é uma formação meio bizarra, vou ten tar relembrar algumas coisas dela.

Para a minha formação intelectual, a primeira coisa fundam ental , de que eu me lembro bem, foi ter descoberto aos 13 ou 14 anos, na biblioteca do meu pai, O manifesto comunista e D o socialismo utópico ao socialismo científico. .Vleu pai era poeta, com alguns livros publicados. N ã o era um grande poeta, mas tinha algum talento. Era depu tado udenista, mas não era uma pessoa conservadora , era uma pessoa progressista, mas que, p o r injunções baianas, era ligado à U D N. E tinha na sua estante O manifesto comunista e D o socialismo utópico ao socialismo científico. A leitura desses livros foi um deslum bram ento para mim. Acho que quem lê o Mani­festo aos 14 anos e não tem uma sensação de descobrir o m undo, esse cara não vai muito longe. É realmente um livro fantástico. Foi um marco no que eu cham aria de "m inha form ação intelectual” . Li o Manifesto rapidamente, é um livro pequeno, e, a partir de então, eu já era comunista. Consolidei esse com unismo lendo Do socia­lismo utópico ao socialismo científico, tam bém uma brochura muito interessante, um a parte do Anti-Dühring de Engels. E tomei algumas decisões. Uma delas foi a de fazer política, um pouco porque meu pai fazia e um pouco pelo avesso dele, porque eu ia fazer pela esquerda e ele fazia pela UD N, mas eu tomei claramente essa decisão.

Então, um aspecto interessante da minha atividade intelectual, da minha op-

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ção por ser intelectual, uma pessoa que traba lha com idéias, é o fato dessa at iv ida­de estar estreitamente articulada à minha opção política. N unca consegui distin­guir entre ser com unista e ser intelectual. N ã o entrei no Partido C om unista imedi­atamente, até porque eu estava ainda no ginásio, no final do ginásio para o colegial, mas já me considerava com unista , já via o m u ndo assim. Li m uito , e minha fo rm a­ção intelectual foi essencialmente a de au tod idata ; não tive nenhum mestre, quer dizer, nenhum a pessoa mais velha que tenha me orientado nas minhas leituras. Li meio caoticamente. Tive um professor no terceiro ano colegial, Paulo Farias, que aliás se exilou em 1964 e nunca mais voltou ao Brasil e que é hoje professor na Inglaterra, especialista em m uçulm anos negros. Paulo Farias era professor de H is­tória , marxista , tam bém do Partido, e me deu algumas boas indicações, entre elas um a pela qual eu lhe sou eternam ente g rato , a de Gramsci. Foi o Paulo Farias a primeira pessoa que me falou de Ciramsci. N a época, eu vinha ao Rio de Janeiro — eu devia ter uns 17 anos, en tão — e comprei um a edição argentina de Gramsci, El materialismo histórico y la filosofia de Croce.

Você vinha muito ao Rio de Janeiro nessa época?A partir dos 16 anos, eu vinha um a ou duas vezes por ano. Aos 18 anos, mais ou menos, fiquei amigo de Leandro Konder. Foi quando publiquei, irresponsavelmente, na revista da Faculdade de Direito da Bahia, um artigo cham ado “Problemática atual da dia lética” , que é indiscutivelmente um besteirol, mas um besteirol engraçado, porque eu citava Gramsci, citava Lukács, e um amigo com um deu essa revista ao Leandro. O Leandro me escreveu uma gentil carta, aliás — ele lembra sempre disso — , um a carta muito o n o d o x a , “ você está lendo autores meio heterodoxos, cuidado e tal, você está com desvios um pouco idealistas” . M as a partir daí nós ficamos muito amigos e seguramente essa foi ou tra coisa muito im portan te em m inha formação intelectual.

O Lukács chegou como para você?Lukács eu descobri na Faculdade de Direito da Bahia. N a biblioteca da Faculdade de Direito, havia uma revista com uma resenha sobre o recente lançamento na França de Histoire et conscience de classe. Aí anotei na minha listinha, vim ao Rio — em 1961, se não me engano — , e junto com o Gramsci, comprei tam bém Histoire et conscience de classe, que foi um livro que tam bém fez m uito a minha cabeça, em ­bora eu hoje ache que não é o melhor texto do Lukács, que é um texto prob lem á­tico, mas certamente foi um livro que fez m uito a minha cabeça.

Hntão, vejam bem, foi essa minha atividade intelectual-política que me levou a op ta r p o r fazer Direito. Por quê? Porque a Faculdade de Direito era, na Bahia, a faculdade onde se fazia política. Basta dizer, por exemplo, que, dos 450 a lunos que a Faculdade tinha en tão , a base do Partido C om unista tinha cerca de cinqüenta pessoas, ou seja, mais de 10% da escola. £ eu entrei na base do Partido tão logo entrei na Faculdade. Isso para não falar na JUC [Juventude Universitária Cató li­ca], que devia ter os seus outros cinqüenta, e nos grupos de direita, que tam bém estavam mais ou menos organizados na Faculdade. Então, entrei em Direito para fazer política, mas meu interesse teórico central, nesse m om ento , já era certamente

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Filosofia. M as eu não terminei o curso, porque, no segundo ano, quando começou a ficar cha to , aquele negócio de Direito Processual Penal etc., eu desisti. Eu já esta­va fazendo Filosofia em regime de disciplinas isoladas, acho que se cham a assim, e aí terminei Filosofia, me graduei em Filosofia.

M as eu não aprendi nada na Faculdade de Filosofia da Bahia. Aprendi talvez um pouqu inho com o professor de História da Filosofia, A uto de Castro , que era um mar.xista kan t iano — na época não entendi hem com o isso era possível, mas depois li |Karl] Vorländer, M a x .Adler etc. e soube que era possível. A uto era kel- seniano e, ao mesmo tem po, marxista. M as era um a pessoa que tinha uma certa informação de História da Filosofia. Ele dava História da Filosofia, chegava em Kant e acabou, depois de Kant nada. M as, até Kant, ele tinha uma boa informação. Fui a luno tam bém do padre Pinheiro, que é vivo até hoje, já não é mais padre, mas era padre na época, dava aula de batina e era tomista radical. Eu me lembro que um dia — eu era garo to , estava en trando na faculdade, devia ter uns 18, 19 anos — ele disse a seguinte barbaridade, com grande ênfase: “ nenhum pensador disse que a con ­tradição é um fato objetivo. A contrad ição é sempre um erro lógico e tc .” . Eu disse: “ mas, professor, o Hegel disse isso” . “ N ão , não disse.” N o dia seguinte, levei o li­vro do Hegel e mostrei a ele. Então, não aprendi nada ali. Eu diria que, pelo con ­trário , se tivesse aprendido , teria sido desinform ado. N a verdade, eu tinha p o u ­quíssimos professores. O padre Pinheiro era professor de todas as disciplinas, p ra ­ticamente: de In trodução à Filosofia, de Lógica, de Teoria do Conhecim ento e de Metafísica. T inha um ou tro professor de Ética e Estética que jamais deu uma aula. Ele passou trinta anos na universidade e não deu nenhum a aula com princípio, meio e fim. M orreu , coitado. Era uma pessoa muito simpática.

Então, a minha formação, com o eu disse antes, é uma formação extremamente pessoal. E, claro, acho que to d o au tod ida ta tem limites. É claro que o treinam ento sistemático que a universidade dá — um a boa universidade — ajuda bastante. Eu li muito por minha conta, descobrindo assim meio casualmente os autores. R etom an­do. então, eu entrei na Faculdade de Direito e no Partido Com unista no jnício de 1961. N o Partido sei quan d o entrei, mas não sei direito quan d o saí. Em to rno de 1981, 1982, me afastei do Partido. Concluí Filosofia, mas não me licenciei, sou apenas bacharel, po rque no último ano eu vim para o Rio de jane iro . Vim para o Rio m uito em função do golpe de 1964. O A uto de Castro tinha me cham ado para ser assistente dele. Ele era catedrático, e o catedrático na época convidava alguém para ser assistente. Eu estava até com essa idéia na cabeça, mas o golpe foi uma coisa muito com plicada, eu respondi processo e passei praticam ente todo o ano de 64 no Rio, evitando a prisão. Isso, por ou tro lado, consolidou muito minha amizade com o Leandro, tam bém com outros intelectuais cariocas, e eu decidi vir para o Rio, m orar no Rio. Fiz isso em 1965. Consegui nesse ano transferência do meu emprego. Eu era funcionário do Tribunal de Contas. Meu pai era então conselheiro do Tribunal de Contas e me arran jou esse emprego. N a época, não havia concurso. Trabalhei nesse em prego na Bahia alguns anos e consegui essa coisa boa que foi vir para o Rio, transferido para o Tribunal de C ontas do Rio de Janeiro. Há até um episódio interessante sobre isso. Vou ao T ribunal de Con tas do Rio, me apresento ao João Lira Filho, um jurista amigo do meu pai. .Aí me apresento lá, botei um paletozinho,

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gravata. “ Dr. João , vim aqui me apresentar para trab a lh a r .” “ M eu filho, vá para casa. Se eu precisar de vocc um dia, eu o c h a m o .” O u seja, passei três ou quatro anos esperando que ele me chamasse... Comecei en tão a t raba lhar em tradução. .Ainda quando morava na Bahia, traduzi, aos 22 anos, Gramsci, o volume Concepção dialética da história, o livro tem esse título no Brasil — aliás, estou fazendo agora uma nova edição crítica de Gramsci. Traduzi m uito, mais de setenta livros. E de­morei muito para reconhecer que era t radu to r , porque sempre achava que estava fazendo um bico. Em dado m om ento , percebi que o volume de minhas traduções era uma coisa certamente significativa. E eu diria que essas traduções nem sempre foram traduções puram ente profissionais. H á m uitas que seguram ente são. M e m andavam o livro, e eu traduzia. Mas há um bom núm ero delas que são tam bém um traba lho de edição: sugestão minha ao editor, textos prefaciados, apresentados.

Um ou tro elemento im portan te a registrar, nesse período, é o fato de eu não ter feito pós-graduação. N ão fiz pós-graduação duran te m uito tempo. N ão só p o r ­que pós-graduação praticam ente não existia na época. Além disso, não tinha com o meta en trar na Universidade, até porque era o período da d itadura , eu era (e sou) marxista, um m arxista explícito até, porque meus livros indicavam claramente essa condição: Literatura e humanismo, de 1967, tem com o subtítulo “Ensaio de críti­ca m arx is ta” . E tam bém não me interessei m uito p o r en trar na universidade.

N o início dos anos 80, fiz um d o u to rad o no luperj, em C^iência Política. M as não defendi tese, po rque no final do d o u to rado — eu estava p reparando uma tese sobre (íramsci — , abriu um concurso p ara professor titular na Universidade Fede­ral do Rio de Janeiro, no qual eu consegui me inscrever com notório saber, que me foi dado pela Universidade. Eu en tão usei a tese para fazer o concurso e, com isso, ganhei tam bém o título de livre-docente, porque o concurso para titular é equiva­lente ao de livre-docente. Além de ganhar um emprego, ganhei um título. De m odo que m inha carreira acadêmica é, digamos, meio torta , porque eu entrei po r cima, com notório saber. Depois de qua tro anos dando aulas num a faculdade privada, no Bennet, entrei na UFRJ em 1986. São, po r tan to , dezessete anos na universida­de. E só me aposentarei na compulsória.

Voltando para a década de 1960. A impressão que se tem é que o am ­biente intelectual paulista era muito diferente do ambiente intelectual carioca. A impressão que se tem pensando em casos como o da editora e da revista Civilização Brasileira, é a d e que, ao contrário do que ocorria em São Paulo, o debate intelectual no Rio de Janeiro era de um modo geral menos restrito, menos universitário, menos homogêneo do ponto de vista dos seus participantes.

Sem dúvida.

Em que medida isso foi importante para que você não tenha se decidi­do a seguir essa carreira acadêmica no sentido clássico da palavra? Em que medida isso poderia explicar, por exemplo, as diferentes interpre­tações, os diferentes usos de Lukács, o que você fez e o que foi feito em São Paulo?

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É uma observação extrem am ente pertinente essa sua. Acho que o pensam ento so­cial e a cultura estética do Rio de Janeiro eram na época com pletam ente diferentes dos de São Paulo. Q uer dizer, nós não t ínham os uma prática acadêmica muito for­te nessa época. Leandro Konder não era da universidade, eu não era da universida­de, Ferreira Gullar não era da universidade. O próprio José Guilherme .Merquior tam bém não era da universidade nesse tempo. É possível que isso tenha provocado diferentes m odos de entender Lukács. O nosso m odo era um m odo voltado mais para a ação política, com o eu tinha dito antes. N ós três, Gullar, eu e Leandro, é ra ­mos claramente intelectuais políticos. A gente tentava evidentemente não reduzir o traba lho intelectual apenas ao uso político imediato, mas havia uma clara in ten­ção de influenciar, de m arcar posição, de abrir debates. O marxismo paulista é bem diferente: tem um viés acadêmico m uito forte, no bom e no m au sentido. Eu acho, po r exemplo, que não é casual que o marxismo paulista tenha dado uma figura como Fernando Henrique Cardoso. M arx é usado academicamente, mas quan d o se to ­m am decisões políticas, essas nada têm a ver com o marxism o. N ã o digo isso, evi­dentemente, de todos os marxistas paulistas. Considero Roberto Schwarz certamente o mais kicido crítico literário brasileiro. Gosto muito do trabalho filosófico do Paulo Arantes. Acho que a fase marxista do Giannotti é extremam ente rica. .Mas diria que há diferenças, você observou bem, muito interessantes entre Rio e São Paulo. N ão me parece casual, po r exemplo, o fato de Gramsci ter um peso bem m enor em São Paulo do que tem no Rio. Talvez o único desses m arxistas paulistas que se interes­sou por Gramsci foi o Paulo xArantes, que aliás escreveu um belo ensaio sobre ele, que está no livro Ressentimento dii dialétia}. M as, para os outros uspianos, talvez com exceção do [Octávio] lanni, Gramsci é um pensador que passou batido. C o n ­tudo, esse lado, digamos, acadêmico tem tam bém um aspecto positivo, mas sem es­quecer que ser autodidata tem também suas vantagens. Gramsci não tinha nem curso superior, en trou para fazer Lingüística e desistiu no meio porque a política não dei.xou. E é Gramsci. M as acho que um certo treinamento sistemático, evidentemente, ajuda o desenvolvimento intelectual. Uma boa academia, uma boa universidade, com o é o caso da USP, ajuda seguramente nesse sentido.

-\'íj Bahia, em fins dos anos 19S0 e começo dos 1960, havia um climade grande efervescência cultural. Como foi essa experiência para você?

Na virada dos anos 50 para os anos 60, houve de fato na Bahia, onde eu estava no período, uma floração cultural extremamente significativa, um período em que você tem o surgimento de G lauber Rocha, de João Ubaldo Ribeiro, de C aetano , Gil etc. É uma coisa muito ligada à Universidade da Bahia. É uma coisa curiosa, isso. H o u ­ve um reitor, um reitor au tori tár io , que passou décadas com o reitor, Edgar Santos. Fizemos greve contra ele, achávam os que ele era um reacionário etc. e tal. M as foi um reitor que deu muita im portância às escolas de arte: abriu uma escola de tea­tro , uma escola de música, um a escola de dança, levou pessoas de fora para lá, o Luiz C^arlos .Maciel, o Koellreurer. Isso criou um ambiente, cu diria, muito prop í­cio a uma floração cultural, que foi m uito im portan te nesse período. E ou tra figu­ra muito marcante nessa época na Bahia foi Lina Bo Bardi. Dona Lina foi para a Bahia para organizar o Museu de Arte C ontem porânea e o Museu de Arte Popular

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da Bahia, e agitou m uito o meio cultural baiano. Ela foi seguramente um a das o u ­tras pessoas que me falou de Gramsci, além do Paulo Farias, que foi certamente o primeiro a me falar dele. Ela dizia que a Bahia era a expressão real do nacional- popular. N ão é bem assim, mas a presença dela foi um a coisa im portan te na m i­nha geração. E notem que os que viemos para o Rio, e não fomos poucos — N oênio Spínola, m inha irmã Sônia C ou tinho , e tan tos ou tros — , encontram os aqui um cli­m a cultural muito parecido com o clima cultural da Bahia. G lauber tam bém veio para o Rio. E acho que nenhum de nós veio para o Rio e en trou na universidade. Penso em Glauber, em C aetano , que foi meu colega em Filosofia. C aetano não ter­m inou o curso, coisa da qual ele se arrepende até hoje. N ós fomos colegas, ele era um ano mais a trasado que eu, em bora seja um ano mais velho. Foi q u an d o fiquei amigo dele. Ciiaetano era crítico de cinema nessa época e fazia crítica para um a re­vista cham ada Afirmação, onde eu tam bém escrevia. Aliás, lá escrevi um artigo grotesco, cham ado “ Irracionalismo: metafísica em pân ico” . O título é engraçado, mas o artigo é muito ruim. O Caetano, eu dizia, escrevia crítica de cinema e, de vez em quando , dizia assim, “gente, eu fiz um a m úsica” , era uma coisa m uito engraça­da [cantarola], “o sam ba vai crescer q u an d o o povo com preender que é o dono da jogada. . .” . Então , eu sempre digo: convivi com um gênio e não me dei conta. M e consola pensar que, na época, ele talvez ainda não fosse um gênio...

Quando você vai para a Itália na década de 1970, essa sua experiên­cia italiana não foi de certo modo um “elevar ao conceito” esse tipo devínculo orgânico entre cultura e política que você estava perseguindo?

Em dado m om ento , ficou impossível a minha situação no Brasil. Eu mudei de casa, o Exército me procurou na velha casa, procurava minha mulher no traba lho , e eu tomei a decisão de sair do Brasil. Escolhi ir para a Itália exa tam ente porque meu grande m odelo era o Partido C om unista Italiano. Para muitos, o g rande modelo era o PCUS, Partido Com unista da União Soviética, e a p rópria União Soviética. Para mim, era o Partido Com unista Italiano. Para mim, a grande dor não foi a queda do m uro de Berlim ou o fim da URSS, mas o fim do Partido C om unista Italiano.

Quando exatamente você foi para a Itália?Em m arço de 1976. M inha decisão tem en tão muito a ver com meu am o r pelo PCI. .Além do fato de que o italiano é seguram ente a língua estrangeira que dom ino melhor, e tam bém pela minha ligação com Gramsci. Gramsci foi um au to r que fi­cou um pouco latente na minha preocupação intelectual durante alguns anos, quando me meti a fazer crítica literária. D uran te alguns anos , Lukács tom ou o lugar de Gramsci, ganhou , digamos, uma dimensão m aior na minha atividade intelectual, mas Gramsci sempre esteve presente nela, desde o início. Hoje em dia mais ainda, já que n ão faço ou tra coisa senão p repara r um a edição crítica dos Cadernos do cárcere, que deve estar com eçando a ser publicada em novem bro deste ano [ 19991.

Eu fui para a Itália sem emprego. Depois trabalhei muito, até profissionalmente duran te algum tem po, no PCB no exílio, mas, no início, eu não tinha emprego, meu pai m andava dinheiro, e eu pensei em aproveitar o tem po na Itália para fazer uma pós-graduação. Qual não foi m inha surpresa ao descobrir que na Itália não existia

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pós-graduação! Agora tem, o chamadí^ "do t to ra to di ricerca” . Assisti a algumas aulas na Universidade de Bologna, onde fiquei, mas não fÍ7. nenhum curso formal. Depois, em Paris, já no último ano que passei na Europa, tam bém pensei em fazer um d o u to ­rado, mas aí as condições no Brasil permitiram a minha volta e eu terminei não fazendo o dou to rado sobre Lukács, em que eu seria orientado pelo meu amigo Michael Lòwy.

Você volta em 1980?Voltei no final de 1978. Porque no dia 1" de janeiro de 1979 acabava o Al-5. Che­guei à Bahia, me lembro bem, em 23 de dezem bro de 1978. Fiquei en tão um ano e meio na Itália, uns três meses em Portugal, e um ano em Paris. Fiz muita política no exterior. Lá, além de redator da Voz Operária, tornei-me assessor da Comissão Executiva do PCB, onde tive com o colega o .Aloysio Nunes Ferreira, hoje Secretá­rio Geral da Presidência da República. Acho que ele f inalmente conseguiu ser Se­cretário Geral [risos].

M as foi um m om ento muito importante na minha formação, a minha ida para a Itália. Lembro-me de que cheguei na Itália, liguei a televisão e o Enrico Berlinguer, en tão secretário do PCI, dava uma entrevista e dizia o seguinte: “ Eu me sinto mais protegido no guarda-chuva da O tan , para fazer o socialismo que eu quero, do que no Pacto de V arsóvia” . Eu pensei: “M as esse cara é um traidor, isso é um absurdo com ple to” . M as, progressivamente, me tornei eu rocom unista , a partir de minha experiência com o PCI. Eu ainda tinha uns preconceitos marxistas-leninistas fortes qu an d o fui para a Itália. N unca fui stalinista, inclusive porque eu tive a sorte de ter en trado no PC qua tro anos depois da denúncia dos crimes de Stalin. N unca fui pró- União Soviética, sempre tive uma forte dúvida em relação ao socialismo que lá era constru ído, mas ainda tinha meus preconceitos. Dizer que a O tan é melhor que o Pacto de Varsóvia foi algo que me chocou profundam ente. N ão obstante isso, acho que aprendi m uito nessa minha estada na Itália. A democracia como valor univer­sal não teria sido escrito se não fosse esse meu período italiano.

A própria expressão “democracia como valor universal” é de Berlinguer, como você mesmo escreve...

Sim. N o septuagésimo aniversário da Revolução Bolchevique, Berlinguer vai a .VIos- cou e faz um discurso duro , em que diz que a democracia é um valor histórico uni­versal irrenunciável. Eu gostei da expressão e usei um pouco com o slogan. Eu diria que o período que passei na Itália foi o meu douto rado . Aprendi muito, foi muito im portan te para mim.

Na Itália, você sobrevivia de traduções?Fazia traduções para o Brasil e meu pai me m andava algum dinheiro. Já no perío­do de Paris, eu recebi alguma coisa do PCB.

Voltando ainda uma vez para a década de I960. Três paradigmas te­óricos marcaram o ambiente intelectual do período, a saber o estrutu­ralismo, o existencialismo e o marxismo. Como você avalia esses para­digmas hoje, como é que você se relacionou com eles?

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N o fim dos anos 50 e início dos anos 60, certamente dois paradigm as fortes eram o existencialismo e o marxismo. E isso é muito curioso, porque um au to r que me influenciou m uito nesse período foi Sartre. Eu li a Crítica da razão dialética, achei um livro genial — e é um livro genial, certamente — , e escrevi meu primeiro artigo que eu diria sério — ainda infanto-juvenil, mas sério, no sentido de que era mais traba lhado , menos maluco — , que é precisamente um ensaio sobre Sartre. O título original é “A trajetória de Sartre do existencialismo à d ia lética” ; é um ensaio m ui­to s impático a Sartre, que eu reproduzi no meu primeiro livro. Literatura e hu­manismo, num a versão bastante modificada. É um artigo interessante, que eu q ue­ria publicar na revista do Partido Com unista , que era a Estudos Sociais. M andei o artigo, passou um ano em discussão. T erm inaram publicando, mas sob a rubrica “Problemas em debate” . De qualquer maneira, publicaram, e eu diria que é um artigo bastante heterodoxo em relação ao marxismo-leninismo da época. É uma defesa de Sartre. Eu digo claramente, po r exemplo, que não existe uma dialética da n a tu ­reza, que Sartre estava certo ao dizer que não existia dialética da natureza. O a r t i ­go usa muito Gramsci e Lukács, colocados assim com o parceiros de Sartre num a com um batalha por um m arx ism o renovado. Então, diria que a m inha relação com o existencialismo, com Sartre em especial, foi boa. N unca vi no existencialismo francês um inimigo a com bater. Ao contrário do estruturalism o, que realmente se to rnou , em dado m om ento , a minha besta fera. O estru turalism o é mais tardio, eu diria. A influência do es truturalism o se dá no final dos anos 60, no início dos anos 70, e foi um a onda no Brasil. Acho que meu livro O estruturalismo e a miséria da razão é um livro estreito, em alguns casos sou m uito duro na crítica do es tru tu ra­lismo, particularm ente de alguns autores, mas acho que foi justa a idéia de que era preciso com bater o estruturalismo. Em dado m om ento , com o esvaziamento cultu­ral provocado sobretudo pelo AI-5, e com o esvaziamento da universidade, o es­tru turalism o ocupou um lugar que antes era não só do marxism o, mas tam bém do marxismo. O cupou de que maneira? Com toda aquela retórica de antiideologia, anti- hum anism o, anti-historicismo etc. Então, na verdade, ele serviu para desviar pes­soas de uma análise crítica, dialética e racionalista do real. Acho assim que meu livro tinha sentido. É muito curioso, po r exemplo, que, antes do meu livro, tenha saído um artigo do C arpeaux , um belo artigo cham ado “ O Estruturalismo é o ópio dos intelectuais” . É um artigo panfletário, com o o é toda a produção final do Carpeaux, toda ela panfletária, brilhantemente panfletária. É um artigo que quer dizer exa ta ­mente isso: “ O lha, os caras estão virando estruturalistas para poder sair da luta p o ­lítica” . O O tto tinha muita sensibilidade, acho, para esse tipo de coisa. Aliás, é ta m ­bém curioso que o primeiro longo artigo publicado no Brasil sobre Gram.sci seja do O tto M aria C arpeaux , publicado em 1966 na Revista Civilização Brasileira. Então, o es truturalism o é bem diferente do existencialismo. N ã o aprendi com o es­truturalismo. Aprendi com Sartre, com os existencialistas franceses, que estudei mais, porque Heidegger não conheço bem; não conhecia na época e continuo sem conhecer. ■Aprendi com eles, não via neles, digamos, inimigos ideológicos; eram apenas dife­rentes. O estruturalism o, não. Althusser me irritou particularmente, porque é uma leitura de M a rx que é o exato oposto de tudo aquilo que eu acho que deve ser.

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Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como você vê as re­lações entre a filosofia e a cultura brasileira?

Acho que não, e isto, peio menos, em dois sentidos. Primeiro, acho que não existe uma “ filosofia nac ional” . Isso o Álvaro Vieira Pinto tentou fazer na época do I.SEB [histituto Superior de Estudos Brasileiros). E o padre Vaz, na mesma época, fez um artigo m uito bonito dizendo exatam ente que isso não existe. Aristóteles nasceu na Cirécia, mas dificilmente você pode dizer que Aristóteles era um “ filósofo nacional g rego” , simplesmente. A filosofia tem uma dimensão universal indiscutível. C laro que há um condicionam ento histórico nacional da filosofia: Descartes não poderia ser alemão, é francês. .Vlas não gosto dessa expressão “ filosofia brasileira” . Em segundo lugar, acho que não houve ainda no Brasil — não sei se vai haver um dia— a criação de um a filosofia realmente original, quer dizer, uma corrente de pen­sam ento ou um filósofo que possa ser com parado , por exemplo, claro, cum grano salis, com um Kant, um Hegel, um M arx.

.A maioria dos filósofos brasileiros tem o seu au to r estrangeiro que é trazido para o Brasil, eu diria até abrasileirado, colocado dentro das condições do Brasil. O Paulo Arantes tem o Hegel, G iannotti teve o M arx , hoje tem o Wittgenstein, ■Marilena Chaui tem o Espinosa, o M arcos N obre tem o .Adorno, e, vamos lá, Carlos Nelson C ou tinho tem o Gramsci. .Me parece que não existe ainda — eu não sei se essa é a op in ião de vocês — um a filosofia própria , que permita dizer: “Aquele cara tem um pensam ento próprio , estabeleceu uma corrente n o v a ” . Talvez isso exista na Lógica, com o N ew ton da Costa. M as Lógica, para mim, é um grande mistério.

E Miguel Reale?A verdade é que eu nunca li o Reale. Se li, foi alguma coisa de Direito, e esqueci. M as eu não creio que se possa dizer que Reale tem um pensam ento filosófico p ró ­prio, com o não o tinham nem Earias Brito, nem Tobias Barreto. Pode até ser que alguém tenha , mas não me parece que tenha es ta tura universal. N en h u m au to r brasileiro entraria num a história da filosofia, a não ser com o literatura secundária.

Míis é possível pensar em temas filosóficos pelo menos, como o tema da dialética, por exemplo. Pode-se dizer que há trabalho nesse campo.

Sim, há traba lho nesse campo. O que eu estou dizendo é que há, em todos os te rre­nos do pensam ento filosófico e sobre um grande núm ero de autores da história da filosofia, im portantes contribuições brasileiras ao desenvolvimento de conceitos e da reflexão sobre esses autores. Seguramente, os dois livros de Giannotti sobre o marxism o. Origens da dialética do trabalho e Trabalho e reflexão, são livros im ­portantes, dc nível internacional. O que eu estou dizendo é que não há, digamos, uma m aturação que permita o surgimento de um filósofo que tenha um pensam en­to, um sistema próprio.

Por quê?É uma boa pergunta. Por várias razões. Primeiro, porque a tradição filosófica do país é baixa. A Filosofia se to rn o u uma coisa séria no Brasil qu an d o se criou o “ de­par tam ento francês de u l t ra m ar” , com o diria o meu amigo Paulo Arantes. Até en­

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tão, não era sério. Eu disse a vocês que tive um professor que afirmou enfaticamente que nenhum pensador tinha dito que a contrad ição era objetiva, mas que não pas­sava de um erro lógico. Então , acho que faltava realmente um caldo de cultura necessário. Este, aliás, é um problem a geral da cultura brasileira, não se refere só à filosofia. M as eu diria que, no caso da literatura, por exemplo, ocorreu a cons tru ­ção de uma literatura brasileira — Antonio Cândido, aliás, mostrou isso muito bem — , que é mais sólida e está consolidada há mais tem po que a filosofia. Talvez ago ­ra se esteja cr iando realmente um a organização da cultura — para usar um term o gramsciano — que vai permitir, espero eu, que a filosofia tenha um desenvolvimento maior, M as, certamente, nós temos hoje um a p rodução filosófica ex trem am ente importante. E diria que se trata de uma produção de nível internacional, sem diivi- da nenhum a.

Que conceito(s) de sua reflexão você destacaria como o(s) mais repre-sentativo(s) de sua posição filosófica? Pediríamos que você m s contassecomo ele(s) surgiu (ou surgiram) em seu trabalho e como o(s) vê hoje.

Eu seria um pouco simplista e diria o seguinte; acho que o conceito que mais me m arcou, que mais m arcou minha p rodução teórica, foi o conceito de totalidade. Eu me lembro de que, quando li aquela célebre frase do I.ukács, “o m arxism o se dis­tingue da ciência burguesa não pela predominância dos fatos econômicos, mas pelo princípio da to ta lidade” , aquilo foi para mim uma iluminação. E, nesse sentido, em bora eu esteja dando aqui um a entrevista para um livro sobre filósofos, eu n u n ­ca me considerei filósofo. Eu nunca me considerei filósofo até porque nunca me preocupei m uito com essa divisão departam ental do saber. “ Eu estou escrevendo sobre o quê? Isso aqui é sociologia da literatura, é teoria polít ica?” E acho que isso tudo está ligado ã m inha condição de marxista. O que M a rx era? O que (íramsci era? Gramsci era um teórico da política, era um folclorista (já que escrevia sobre folclore)? Sinto-me sempre desconfortável qu an d o escrevem “Carlos Nelson C o u ­tinho, cientista polít ico” . Isso realmente eu não sou. Adoro política, faço política, penso sobre política, mas ciência política para mim é uma coisa meio am ericana, esse negócio de fazer survey sobre voto, sobre eleição, sistema par t idár io — e não é isso o que eu faço. Talvez eu pudesse me identificar com o uma pessoa que faz Filosofia política. M as, com o disse a vocês, sou absolutam ente ignorante em Lógi­ca, que é um terreno fundamental na Filosofia. Então, diria que o conceito de to ta ­lidade foi um conceito que eu não desenvolvi, mas que foi, digamos, meu norte metodológico.

Diria que dois conceitos, em duas fases diferentes da m inha p rodução inte­lectual, me m arcaram certamente muito. O primeiro foi o conceito de razão, que tem claramente a sua origem em Lukács, e que corresponde ao meu período lukácsia- no, firmemente, fanaticamente lukácsiano.

Qual é esse seu período autenticamente lukácsiano?É o período que marca tan to Literatura e humanismo quan to O estruturalismo e a miséria da razão, sobretudo até O estruturalismo e a miséria da razão. Diria que, sobretudo nesse período, a categoria da razão foi muito im portan te para mim. Há

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uma coisa inteligente naquele livro — vou me elogiar um pouco — , ou seja, a des­coberta de que existe não só uma “ destruição da ra z ã o ” , o irracionalismo aberto , que Lukács havia exposto no seu injustamente desqualificado livro — um livro que tem muita coisa boa, ainda que haja m om entos insuportáveis, com o aquele epílo­go que é uma coisa de guerra fria, mas há m om entos muito interessantes — , mas tam bém uma “ miséria da raz ão ” , o em pobrecim ento da razão em nom e do racio- nalisnio formal. Este é um m om ento — talvez na época eu não reconhecesse isso— frankfurtiano da minha produção . Li m uito os frankfurtianos, eles sempre me fascinaram muito — Dialética do iluminismo foi um livro que tam bém me marcou — , mas sempre to m a n d o minhas distâncias. Para os frankfurtianos, o inimigo fun­dam ental não era tan to o irracionalismo clássico, mas essa razão empobrecida, essa razão eclipsada — um livro que me m arcou muito tam bém foi Eclipse da razão, do H orkheim er, que é uma crítica exa tam ente a essa razão que perde a sua dimensão objetiva e se torna meramente razão instrumental. N a época, eu não reconhecia isso. Para mim, era puro Lukács. Mas, certamente, essa leitura dos frankfurtianos me ajudou a pensar um pouco essa questão dos dois modos de com bate r a razão d ia­lética, ou abandonando-a ou miserabilizando-a.

O segundo m om ento é o do meu reencontro com Gramsci, em meados dos anos 70, depois de um período em que Gramsci ficou, digamos, meio sonolento; trata-se do m om ento em que m inha preocupação teórica m aior passou a ser a p o ­lítica, a reflexão sobre o es ta tu to ontológico da política, para usar uma expressão meio pedante. Isso é m uito m arcado no meu livro sobre Gramsci, cuja primeira edição é de 1981 — acabou de sair uma nova edição, com várias alterações em relação à primeira. Já nessa primeira edição é clara a minha proposta de entender a teoria política de (íramsci à luz das categorias ontológicas do último Lukács. Além disso, um tema im portan te da minha p rodução foi seguramente a questão da de­mocracia. A democracia como valor universal é uma expressão disso, ainda que eu já viesse trabalhando sobre esse tema antes. Acho que esse artigo, publicado em 1979, teve uma im portância muito grande no debate cultural e político daquele m om en­to. N ão tan to pelas suas qualidades intrínsecas — acho que é um artigo que desen­volve pouco alguns conceitos, é sobretudo um artigo de com bate — , mas penso que pus o dedo num tema que realmente era um tema quente, quer dizer, eu puxei uma discussão. Eu tive a sorte de ser a pessoa que desencadeou um processo de discus­são que, até hoje, acho que marca o pensam ento da esquerda brasileira. Ninguém pode mais dizer “eu não sei que a democracia tem um papel im por tan te” . M as, sin­ceramente, eu não acho que tenha criado nenhum conceito importante, quem sou eu... .Acho que trabalhei alguns conceitos, joguei algumas idéias na praça.

Você voltou a Gramsci. O que você achou do livro Os 45 cavaleiroshúngaros, de Oliveiros Ferreira?

N ão gostei. O Oliveiros realmente conhece bem Gramsci, leu bastante Gramsci. Mas ele começa afastando de sua interpretação qualquer conotação “escatológica”, como ele diz, ou seja, o Gramsci revolucionário. N o en tan to , Gramsci foi um m arxista e um revolucionário. Disso resulta um Gramsci sociologicamente durkheim iano, na primeira parte do livro, e um Gramsci clausewitziano na política, na segunda. Acho

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que é um livro que nào ajuda a entender Gramsci. M as não deixa de ser curioso, ate mesmo sintomático, que um pensador com o o Oliveiros Ferreira, um liberal conservador, tenha se in teressado por Gramsci. Já existe hoje, eu diria, uma razo­ável literatura sobre Gramsci no Brasil, de qualidade entre média e boa. Acho que o livro do Oliveiros é um livro certamente de alto nível, mas que propõe uma leitu­ra equivocada. E Gramsci se presta m uito a esse tipo de coisa, porque deixou uma obra fragmentária, sistemática na sua articulação categorial, mas formalmente frag­mentária , o que permite leituras que, no Brasil, po r exemplo, vão do PSTll ao PPS. O Edm undo Fernandes Dias, da Unicamp, por e.xemplo, que está no PSTU, tem uma leitura de Gramsci que privilegia o m om en to antiinstitucionalista, conselhista. O PPS faz um a leitura, com o fazem hoje os pós-comunistas na Itália, de um Gramsci quase liberal. A posição de .Massimo D ’Alema é a de dizer que, em Americanismo e fordismo, Gramsci defende o liberismo, o que é um a leitura abso lu tam ente equi­vocada e instrumental. Leitura, aliás, que levou a que Fernando Henrique desse uma entrevista ã Veja, não sei se vocês viram, em que ele cita Gramsci sete vezes, dizen­do inclusive que todos os progressistas hoje são gramscianos. Por quê? Porque ele leu, uma semana antes, o artigo de D ’Alema, que tinha saído em O Estado de S. Paulo, e repetiu literalmente o que o D ’Alema disse sem citá-lo. Q uer dizer, além do mais é um plagiário.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela se dá na atualidade?

Eu me pergunto: será que a filosofia estabeleceu sempre na sua história essa rela­ção com o saber científico? Creio que, em dado m om ento , não havia uma distin­ção entre ciência e filosofia. Um pensador com o Aristóteles, que é indiscutivelmen­te um filósofo, é alguém que escrevia sobre as partes dos animais, sobre física, so­bre os meteoros, sobre a alma hum ana; por tan to , você pode dizer que Aristóteles era ao mesmo tem po um psicólogo, um sociólogo, um politólogo. A independen- tização da ciência da filosofia me parece, no caso das ciências naturais , uma coisa que não só ocorreu, mas foi m uito positiva. Certamente , o movim ento que leva a Galileu é tam bém um movimento filosófico, quer dizer, a filosofia acom panhou esse processo pelo qual a ciência se to rnava independente. N o caso das ciências sociais, acho que é diferente. Acho que o nascimento das chamadas ciências sociais está muito ligado ao colapso do princípio da to ta lidade na filosofia. Estou repetindo o que o Lukács disse, mas me parece uma coisa verdadeira. N inguém pergunta: “ Rousseau é o quê? É um filósofo? O u é um teórico da polít ica?” . Q uer dizer, até certo m o ­mento , enquan to a burguesia foi uma classe progressista, o pensam ento , já que ti­nha o princípio da to ta lidade com o base, impedia de dizer “ fulano é isso” , “ M o n ­tesquieu é sociólogo, não é filósofo” etc. A partir do eclipse do princípio da to ta li­dade — com a dissolução da filosofia hegeliana, para falar mais claramente — , sur­gem as tais ciências sociais particulares, que tentam dividir o social, fatiá-lo, e, com o diz muito bem Lukács, essencialmente desistoricizá-lo. O que falta, assim, às ciên­cias sociais particulares é não só o princípio da totalidade, mas tam bém a idéia da historicidade dos fatos sociais. Então, eu diria que a relação da filosofia com essas

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ciências sociais particulares — filosofia entendida com o teoria social global, com o ontologia do ser social — é um a relação problemática. N ão partilho do negativismo com pleto do Lukács de dizer: “não, isso aí não tem nada a ver com o m arxism o, a sociologia é ideologia burguesa” . Acho que não é só isso. .Mas é certamente uma reflexão insuficiente sobre o social. Acho que a filosofia, Lukács dizia assim, tem o direito de exercer um a crítica ontológica das ciências. Penso que isso seja correto, isto é, mostrar que uma descoberta de Weber, por exemplo, para ter valor heurístico, servir efetivamente ã com preensão do real, tem que ser submetida a um tra tam en­to ontológico, ou seja, tem de ser relacionada com a to talidade, historicizada. Os “ três tipos puros da dominação legítima” é uma bela idéia. Weber criou ali três tipos ideais, com o ele cham a, que não correspondem exatam ente ao real, mas que são indicativos para se entender formas de legitimidade. M as ele fez isso de um a m a­neira puram ente formalista. Acho que temos a obrigação, nós marxistas, de his- toricizar essa categoria.

M as essa posição parece se aproximar muito do programa de “Teoriatradicional e teoria crítica”, de Horkheimer...

Sem dúvida. Seguramente é o tex to dos frankfurtianos que, em bora talvez não seja o mais brilhante, é certamente o que mais me agrada, é aquele com o qual mais me identifico. Acho que o grande limite da Escola de F rankfurt foi conceber o m arx is­mo sem classe operária . E um a coisa complicada. Deu no que deu com o Robert Kurz e sua crítica radical do capitalismo. M as com o é que se sai dele? M as entendo a situação dos frankfurtianos. A opção ali era dura: ou aderir à União Soviética ou ficar com um m arx ism o meio etéreo, academicista. M as cabe lem brar que Gramsci redigia os Cadernos na mesma época.

Desde Hegel, no século XIX, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobreum possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como você se posiciona em relação a esse debate?

Acho essa teoria do fim da arte uma teoria problem ática, mas acho que ela é m o­m ento de uma das coisas mais brilhantes de Hegel, que é a tentativa de jun tar sis­tema e história. De pensar as categorias teóricas, os fenômenos teóricos, à luz da sua historicidade. Lukács tem uma bela observação, no capítulo da Ontologia so­bre Hegel, em que ele diz que Hegel tem um a ontologia verdadeira, que é um a o n ­tologia baseada no ser, no movim ento do ser, e tem uma ontologia falsa, iogicista, um a tentativa de encadear os fenômenos a partir de uma lógica que não diz respei­to à lógica do real, mas a uma lógica do pensam ento . .Acho que, no caso da teoria do fim da arte, isso é muito claro. A lógica do sistema exigia que Hegel dissesse que o nosso tem po é o tem po da filosofia, do conceito, e não mais da representação e da intuição. Q uer dizer, para ele a arte rom ântica é uma arte já em processo de dis­solução. M as, independentem ente desse logicismo da teoria do fim da arte, acho que Hegel colocou um problem a importante: há épocas históricas que são mais ou menos favoráveis ao desenvolvimento da arte. Aquela idéia brilhante do M arx de que a Ilíada e a Odisséia só podiam surgir na Grécia clássica, que Cam ões não fez uma epopéia. Voltaire não fez uma epopéia. Por quê? Porque cada época histórica

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tem uma expressão artística. E há épocas históricas desfavoráveis, pelo grau de ali­enação e de desintegração social, ao desenvolvimento da arte.

V oltando à pergunta , acho que não foi bem isso o que Hegel quis dizer, em ­bora eu ache que ele disse também isso. Imagine uma pessoa do século XXV, olhando para o século XX. (Para o século XIX, isso não vaie. Hegel já era m or to quando houve um a maravilhosa floração do rom ance, tan to francês quan to russo, houve uma maravilhosa f loração da p in tura , com o impressionismo.) Será que um a pes­soa do século XXV, pensando o século XX, achará que foi um período de grande floração artística, m algrado T hom as M a n n , m algrado Kafka? N a pintura , algum p in tor ficará do século XX? N a música erudita , algum grande com posito r ficará? São perguntas que vale a pena fazer. Nesse sentido, acho que Hegel bo to u o dedo num a questão sobre a qual devemos pensar.

Nas suas reflexões sobre estética e sobre a atividade artística em geral, você sempre se valeu do conceito de nacional-popular, enfatizando a importância da arte conseguirão mesmo tempo criar uma imagem al­ternativa do Brasil e aproximar essa imagem do povo. Como é que você vê essa questão hoje?

N ã o sei se sempre usei essa categoria do nacional-popular com tan ta ênfase q u a n ­to em alguns textos mais recentes. Acho que eu traba lhava mais com o conceito de “ rea lism o” de Lukács. Mas sempre com a idéia do nacional-popular na sombra, pelo menos. O nac ional-popular é um conceito, eu diria, m uito mal traba lhado . O nacional-popular não é nem nacionalismo, nem populismo. O que Gramsci quer dizer com esse conceito é que a grande arte, ou seja, a grande cultura, ganha uma dimensão nacional quando integra o povo na nação. E é um a categoria que surge em Gramsci em função da crítica ao tipo de cultura e de intelectualidade existentes na Itália. Segundo Gramsci, um a das grandes tragédias ita lianas foi o fato de a intelectualidade, po r ser ligada ao P apado , ser cosm opolita , ou seja, não ter um vínculo orgânico com o povo, com a nação italiana. E eu gosto dessa categoria p o r ­que acho que ela nos permite tam bém pensar o caso brasileiro. Acho que há g ran ­de semelhança entre a formação da intelectualidade italiana e a brasileira. T am bém no Brasil os intelectuais foram m uito ligados ao poder e m uito pouco atentos ao fato de que não se faz grande arte se não se integra à arte tam bém um a reflexão sobre o povo. Penso assim ser m uito im portan te para nós esse conceito de nacio­nal-popular , que eu utilizo m uito num texto meu cham ado Cultura e sociedade no Brasil, em que tento pensar — claram ente ã luz de Gramsci — a formação dos p ro ­blemas da intelectualidade brasileira e da cultura brasileira. Lá eu falo na presença entre nós de uma cultura intimista, o rnam ental , não ligada aos problemas popu la­res, e tento indicar com o alternativa a ela essa idéia de uma cu l tu ra nacional-popu- lar — que, para mim, é evidentemente grande cultura , é M achado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, D ru m m o n d de Andrade.

Glauber Rocha...Tam bém , tam bém . Acho que Glauber chegou a usar essa idéia de nac iona l-popu­lar em algum m om ento da sua p rodução . Acho que o primeiro período de Glauber

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é claramente nacional-popular: Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe, Antônio das Mortes. A sua segunda fase talvez seja “ in te rnacional-não-popular” [risos], Acho que ele se perdeu, infelizmente.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional e, atualmente, não seria mais evidente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do Direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como você vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem des­frutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

Gramsci fazia uma distinção, que me parece muito interessante, entre a pequena e a grande política. E ele explicava assim: a pequena política é a política do corre­dor, da picuinha, do acordo parlam entar , política do dia-a-dia. E a g rande política é a política que discute m udança ou conservação de estruturas globais. Eu diria que a hegemonia do neoliberalismo — e, no p lano cultural, a hegemonia do cham ado pós-m oderno — é um pouco a tentativa de m atar a grande política, de transform ar a política na pura pequena política. N ã o se discutem mais grandes alternativas so­ciais, se essa ordem social deve ser superada ou não. Discute-se se se paga ou não a dívida ao FMI, se se privatiza ou não tal coisa, que acordo tem que ser feito no Par­lamento, qual a troca de favores com deputados para que eles votem a reeleição presidencial etc. Enfim, diria que isso é uma prova do recuo da hegemonia da es­querda e do avanço indiscutível hoje do cham ado pensam ento único, do neolibe­ralismo. E não teremos condições de reverter essa hegemonia se não voltarmos a fazer g rande política. Nesse sentido, acho que a grande tarefa da esquerda é a de politizar tudo , no sentido positivo dessa palavra, ou seja, de relacionar todas as grandes questões que são colocadas no m undo de hoje com as estruturas, de a p o n ­tar para o universal, para o nível ético-político, para usar outra expressão de Gramsci.

Dito isso, acho que faz parte desse mito do pensam ento único a idéia do fim do Estado Nacional. Trata-se de um processo, evidentemente, é possível fazer um prognóstico de que isso talvez aconteça daqui a duzentos anos. -Mas acho que, por enquanto , os Estados Nacionais ainda têm peso na definição da política, em alguns casos mais que em outros. Certamente , não é possível hoje fazer política nacional italiana sem levar em conta o fato de que a Itália faz parte da C om unidade Euro­péia. .Acho que na Europa está se criando um Estado supranacional, mas com ca­racterísticas de Estado N acional em relação a outros Estados extra-europeus. Hegel sem pre dizia: cada Estado é um indivíduo em relação ao outro . Seguramente a Europa está se constitu indo com o um Estado diferente do Estado americano, do Estado japonês, do Estado brasileiro. Particularmente no caso do Brasil, essa idéia do fim do Estado Nacional é uma idéia muito perversa, porque parte do princípio de que temos de en t ra r na globalização sem um mínimo de instrumentos para g a ­rantir a soberania nacional, para garan tir os interesses populares. N ão sou favorá­vel a essa idéia de que os Estados N acionais desapareceram. Acho que há um m o ­vimento do grande capital financeiro para que os Estados Nacionais percam essa

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capacidade de incidência soberana sobre seus territórios. M as certamente isso é uma coisa que nós, da esquerda, devemos com bater. É algo que faz parte do arsenal político e ideológico do pensam ento neoliberal.

Você se consideraria um intelectual orgânico do PT? Como é que você avaliaria essa sua tarefa de discutir grandes questões, de colocar pro­blemas de transformação em sentido global, no âmbito da política ins­titucional?

Eu sempre brinco dizendo que, quando eu era do PC, eu tinha um casam ento mo- nogâmico. M inha relação com o PT é um casam ento aberto [risos]. Tenho um vín­culo certamente orgânico com o partido, sou militante do PT desde 1989. Acho que, obje tivamente, algumas das minhas idéias, alguns dos meus textos, provocaram debates internos no partido . Eu me lembro de que, quando entrei no PT, fui convi­dado por todas as correntes para expor meus pontos de vista. Tive discussões en- graçadíssimas, sendo ora acusado dc esquerdista , ora de direitista. M as acho que houve um a troca forte, em algum m om ento , entre mim com o intelectual do PT e o PT em geral. N ão me parece casual que hoje eu não sinta mais essa troca. N ão é um problem a só meu, é um problem a geral do PT. Acho que o PT está passando por um período seguramente m uito complicado. O fio da navalha entre fazer polí­tica concretamente e manter-se fiel às p ropostas estratégicas é muito estreito. Que intelectual tem hoje im portância orgânica na form ulação das p ropostas do PT? Talvez nenhum. E talvez nem mesmo os intelectuais do PT com o um todo. Para mim, é um a coisa muito clara que, para o bem e para o mal, minhas idéias tinham im­pacto no Partido Com unista . Digo “para o bem ou para o m a l” porque às vezes você expunha determinadas idéias e o Partido o com batia duram ente , até botava você para fora, mas, de certo m odo , diria que até isso era prova de que eles respei­tavam os intelectuais. Até o fato de expulsar era sinal de que, para os PCs, o inte­lectual t inha um peso. Eu não vejo isso no PT. Acho que o PT traba lha com seus intelectuais um pouco com o figuras de destaque na sociedade. É o caso do A nto ­nio Cândido , por exemplo. É ó tim o que o Antonio C ândido assine alguma coisa pelo PT. M as que im portância , que influência têm as idéias de A ntonio Cândido no partido? Acho que, infelizmente, m uito pouca. O PT, para dizer com clareza, valoriza pouco o t raba lho dos intelectuais que estão filiados ao partido. Recente­mente, Lula cham ou Antonio C ândido para organizar um am plo seminário sobre socialismo. Pode ser o início de um a autocrítica.

Várias vezes você externou a opinião de que a existência de intelectuais, no sentido pleno da expressão, dependia de uma sociedade civil forte, dinâmica. Nesse contexto, como é que você vê o papel do intelectual hoje?

Vou me limitar particularm ente ao Brasil. Vejo um fenômeno muito interessante— negativo, mas interessante — ocorrendo no Brasil, que é o do esvaziamento da dimensão política da sociedade civil. E esse esvaziamento real se traduziu muito cla­ramente tam bém num esvaziamento conceituai. Gramsci tem um segundo m omento de chegada no Brasil. Ele chega em meados dos anos 60, nào é m uito lido, não tem

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m uita influência. Em meados dos anos 70, Gramsci volta e tem en tão um a enorme influência. Nesse mesmo momento, começa a surgir no Brasil — certamente em gran­de parte por influência de Gramsci — o uso generalizado da noção de sociedade civil. Sociedade civil, notem bem, sempre entendida com o uma coisa boa em con tra­posição a um Estado ruim, o que naquele m om ento tinha sentido. Por quê? Porque todos os segmentos organizados na sociedade civil, inclusive os patronais, estavam se co n trapondo naquele m om ento concreto à permanência da d itadura. Ademais “ sociedade civil” tinha uma conotação engraçada, era o contrário de “ m ilita r” . A partir daí, acho que se criou um a falsa leitura de Gramsci, uma falsa leitura do con ­ceito, que te rm inou servindo ao neoliberalismo. Q uer dizer, tudo o que vem da sociedade civil é bom , tudo que vem do Estado é ruim. O ra , a UDR é sociedade civil, a Klu-Klux-Klan é sociedade civil! Então, despolitizou-se o conceito de socie­dade civil, que passou a ser o reino das O N G s, da solidariedade, do setorialismo: a ONCÎ que tra ta de criança e adolescente, a O N G que trata de baleia. E isso veio reforçar, com o eu já tinha tido antes, o fim da grande política. Acho que essa des­politização, no sentido forte, da sociedade civil brasileira complica muito a ação dos intelectuais, porque nos desvincula exatamente dos aparelhos de hegemonia aos quais estávamos ligados. Tem algo a ver tam bém com o que eu falei antes a respei­to do PT. O PT, em grande medida, está fazendo pequena política, discutindo se entra ou não no governo Garotinho...

Mí7s a grande política também se faz com o poder...Sim, não só se faz com o poder, com o estou absolutam ente convencido de que a tarefa fundam ental de um partido político e, com o tal, do PT, é a de tom ar o p o ­der, é chegar ao poder. Agora, chegar ao poder para quê? Apenas para governar? Meu grande medo é o de que a esquerda chegue ao poder e, no esforço da gover­nabilidade, apenas governe a ordem existente. Q ue interesse tem um partido que se pretende revolucionário, ainda que conceba a revolução através de reformas, que se propõe a m udar a es tru tura social do Brasil, que interesse tem esse partido em participar de um governo que faça a gestão do existente, mais ou menos com o César Maia o faria, ou com o .Marcelo Allencar geriu?

A sua concepção de democracia atribui um valor emancipatório a su­jeitos coletivos como partidos de massa, sindicatos, associações profis­sionais, comitê de empresa e bairro etc. Como conciliar essa posição com a tendência crescente à burocratização e ao esvaziamento dessas organizações? Dito de outra maneira, essas organizações já não se tor­naram rotineiras, no sentido conservador da expressão?

.Vie lembrei aqui, claro, do Michels. N inguém leu aquele livro do .Michels, O s par­tidos políticos, e não tom ou um certo susto. Michels é elitista, reacionário , conser­vador, mas é um caso de ciência social particular que temos que 1er. Eu não con ­cordo com a idéia da lei de ferro da oligarquia de Michels, ou seja, a idéia de que não tem jeito: qualquer organização, mesmo que surja voluntariamente , de baixo para cima, termina se burocratizando , se oligarquizando. M as esse é um risco real, que se acentua e se to rna quase inevitável em m om entos de esvaziamento da dimen­

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são política da sociedade civil. Q u a n d o se tem um a sociedade civil mobilizada, at i­va, participativa, esses riscos são menores. N o m om ento , é indiscutível que há uma crise da form a sindicato, e não só no Brasil, é um a crise mundial. Por quê? Porque m u dou a form a de ser da classe t rab a lh ad o ra . N ã o só dim inui o percentual do operariado fabril na população economicam ente ativa, com o se criam formas m úl­tiplas, bas tante diferenciadas de traba lho . Um sujeito que traba lha em casa, com com pu tado r , ainda que gere mais-valia para alguém, não se sente identificado com um t raba lhado r de m acacão na linha de m ontagem de uma fábrica de automóveis. Então, é preciso repensar isso. A forma sindicato talvez tenha que ser d rasticam en­te modificada. A meu ver, os sindicatos não podem , por exemplo, representar ape­nas os interesses dos t raba lhadores empregados. Os sindicatos têm que encontrar um a maneira de representar tam bém os interesses dos desempregados e dos nào- em pregados, dos que não têm acesso a organizações formais. Eu acho que todas essas questões devem ser levadas em conta quando a gente pensa esse processo de burocratização que certamente ocorreu.

Sou inteiramente solidário com a idéia de que os avanços necessários para su­perar a o rdem capitalista têm que ser realizados com ap ro fundam ento da dem o­cracia. Se alguma coisa eu mudasse naquele meu ensaio de vinte anos atrás, “A de­mocracia com o valor universal” , acho que m udaria o título para “A dem ocratiza­ção com o valor universal” . Por quê? Porque aquele título pode dar a falsa impres­são de que nós defendemos a form a institucional concreta que a democracia assu­me em cada m om ento concreto, ou, mais precisamente, a form a que o processo de dem ocratização assume em cada m om ento concreto. Tem os um com prom isso com o processo de democratização, de socialização do poder, e não necessariamente com a institucionalidade que a expressa em dado m om ento concreto. Acho que a de­mocracia, para corresponder efetivamente a uma sociedade não-capitalista, para cor­responder a uma sociedade que pretende superar o an tagonism o de classe, tem que ser um a democracia m uito mais participativa do que a atual. Tem que envolver a participação de sujeitos coletivos muito mais num erosos e am plos que os atuais. E isso tem que ter um a expressão institucional. Tornou-se óbvio que não há socialis­mo sem democracia. Isso hoje nem o PSTU nega. M as não está tão claro para a esquerda que, sem socialismo, tam bém não há democracia, quer dizer, a dem ocra­cia plena, entendida com o am pla participação, com o socialização do poder. N ão é casual que nosso querido Rousseau tenha dito o seguinte; ninguém deve ser tão pobre que seja obrigado a se vender — ou seja, a se to rn ar traba lhado r assalariado — , isso é incompatível com a democracia. O que Rousseau nos propõe no Contrato social é similar ao com unism o, é um a sociedade que tem governo mas não tem Es­tado , não tem uma instituição desligada da sociedade, não tem diferenças de clas­se. O governo é o comissário do povo, aliás um a bela palavra, que os bolcheviques usaram no início da Revolução. Então, acho que essa plena democracia rousseau- niana só é possível com o com unism o, tal com o M a rx o concebeu. Dito isso, insis­to em que é preciso dar ã dem ocracia formas institucionais. A democracia não é apenas a participação, a democracia tam bém se expressa em formas institucionais.E, notem bem, a forma é real. A democracia que aí está é formal, mas a forma é real, quer dizer, a forma não é uma abstração, a forma é um m om ento da realida­

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de, é um a determ inação reflexiva do conteúdo , para usar um a expressão de Hegel. Então, é claro que a democracia tem que ter forma. M as formas que se ap ro fu n ­dam , que se renovam. O valor universal não é esta específica forma de dem ocra­cia, mas sim o processo de dem ocratização, que se expressa na socialização da p a r ­ticipação política e na socialização do poder.

Como você caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?M inha família não é uma família particularm ente religiosa. .Meu pai era ateu. Di­zia ser agnóstico, mas era ateu. E minha mãe é uma kardecista muito pouco o r to ­doxa , eu diria. Q u an d o eu tinha 12 ou 13 anos, eu estudava, contra o parecer do meu pai, num colégio de irmãos maristas. Hoje vejo claramente que, para chatear meu pai, eu fiquei meio catolicão. C om ungava , confessava. Isso coincidiu tam bém com o m om ento em que eu li o Manifesto, quan d o percebi que era mais fácil me afirmar con tra meu pai com o com unista do que com o católico. Então, abandonei o catolicismo e a religião em geral.

Lukács tem uma expressão m uito boa. Ele fala em “carecimento religioso” , algo que expressa um a necessidade de transcendência diante do fato de não se en­con tra r sentido real na vida efetiva, na vida imanente. Eu, sinceramente, sou desti­tuído de carecimento religioso. Entendo que as pessoas o tenham. M a rx dá à reli­gião um tra tam ento que é corre to no essencial — a religião é uma forma de al iena­ção — , mas, nessa forma de al ienação, passam às vezes exigências que são exigên­cias reais, exigências básicas. As pessoas só lembram que M a rx disse que a religião é o ópio do povo. M as, na mesma frase, ele diz que “a religião é o grito da criatura o p r im id a” — ou algo semelhante — e então , vírgula, “é o ópio do p o v o ” . Eu acho que se manifesta na religião uma dem anda de justiça muito forte, algo que deve­mos, nós marxistas, não-religiosos, levar em conta com o alguma coisa muito posi­tiva para a transform ação do m undo.

Como você se situa em relação aos problemas de uma “mudança deparadigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcada nalinguagem?

C om o marxista, evidentemente acho que a filosofia, em princípio, não pode ser cal­cada na linguagem, não pode partir da linguagem, tem que partir do traba lho , das interações que o traba lho provoca e das formas superiores de atividade hum ana, com o, por exemplo, a práxis. H aberm as cham ou a atenção para a distinção entre agir instrumental e agir com unicativo, entre traba lho e interação, mas eu acho que isso já está em .Marx, está no m arx ism o, e sem o dualismo problem ático de H a ­bermas. Certamente , quando .Marx fala em força produtiva , está falando em agir instrumental; qu an d o fala em relações de p rodução , que é o m odo pelo qual os ho ­mens se articulam entre si para desenvolver as forças produtivas e dom inar a n a tu ­reza, está falando em interação. M as a idéia de que é preciso substituir o parad ig­ma do traba lho ou da p rodução pelo paradigm a da linguagem ou da com unicação me parece uma idéia equivocada. Eu diria o seguinte: os hom ens falam porque t ra ­balharam , porque precisaram co laborar no processo de trabalho. Então, não me parece que, ontologicamente, a linguagem deva ser colocada antes do traba lho . A

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forma básica de ser do hom em , a forma pela qual o hom em se faz hom em , é no processo de t raba lho , é no seu metabolismo com a natureza, quando surge o agir teleológico, que só existe no ser social. Lukács tem uma categoria muito interes­sante, que é a categoria da prioridade ontológica. Ele diz o seguinte: uma coisa pode existir sem que a ou tra exista, o ser pode existir sem a consciência; mas a consciên­cia não pode existir sem o ser. Dizer que o ser tem prioridade ontológica sobre a consciência não significa dizer que há prioridade lógica ou axiológica, não quer di­zer que o ser é melhor que a consciência, não quer dizer que o t raba lho é melhor do que a linguagem. C om isso, Lukács quer dizer que, ontologicamente, a priori­dade é do traba lho , da ação teleológica que interfere na ação causal e modifica a ação causal. Nesse sentido, não parti lho dessa inversão de paradigm a, em bora re­conheça a im portância , insisto nisso, de es tudar melhor e t raba lhar m elhor a lin­guagem. Um tema, aliás, que não foi m uito desenvolvido pelo m arx ism o, ao me­nos pelo m arx ism o clássico.

Você utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão do fu ­turo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

C om o eu disse antes a vocês, o segundo livro sério que li na minha vida foi D o socialismo utópico ao socialismo científico. Então, nós marxistas , em geral, não dam os à palavra “ u to p ia” um sentido positivo. D am os à palavra “u to p ia ” o sen­t ido de um a coisa generosa, mas ine.xeqüível, irrealizável. Nesse sentido, não me identifico com a palavra “ u to p ia” , não sou blochiano. M as que projeto tenho de sociedade? Acho que alguma coisa disso já ficou mais ou menos clara nas minhas colocações anteriores. C on tinuo com unista , fazendo evidentemente um a distinção entre o com unism o com o projeto e o ch a m a d o com unism o histórico, que começa com a revolução bolchevique de 1917, universaliza-se com a criação da Terceira In ternacional e com a criação em cada país de um a seção — brasileira, italiana, japonesa — da Terceira In ternacional, e leva à consolidação do despotism o stali- nista. C om esse com unism o, nenhum de nós é m aluco de se identificar mais, e m ­b ora eu tenha um a identificação m uito forte com a revolução bolchevique de 1917. M as acho que um a coisa é o projeto transfo rm ador que aquela revolução desencadeou, ou tra coisa são as formas concretas que o Estado soviético assumiu, sobretudo a partir do final dos anos 20, quando Stalin rompe com Bukharin e com a NEP [Nova Política Econômica] e estabelece a política da industrialização ace­lerada e da coletivização forçada. A par t i r daí, instaura-se realmente um despo­tismo. Eu não hesitaria em utilizar o te rm o “ to ta l i tá r io” , em bora ele tenha o ri­gens não m uito puras, na politologia am ericana. .Mas eu usaria o term o “ to ta l i tá ­r io ” no sentido de que o Estado absorveu a sociedade civil, utilizou os organis­mos da sociedade civil com o instrum ento da a tuação do Estado-part ido . Então, eu diria que esse com unism o histórico é um a coisa que, felizmente para nós co ­m unistas, desapareceu do horizonte. N ã o considero a C hina um país com unista . Acho que o com unism o é o projeto de um a nova sociedade, de uma sociedade igualitária, participativa e p ro fundam ente dem ocrática . Diria que um a coisa — entre m uitas ou tras — que devemos certam ente rever no m arx ism o é a teoria do fim do Estado, se ela for entendida com o o fim do governo, com o o desapareci­

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m ento de qualquer ripo de governo. Essa teoria está m uito presente em L.ênin, que insiste em que o Estado se extingue ao longo da fase da d itadura do proletariado. Acho que essa idéia de que o Estado vai se extinguir levou a que nâo se discutisse qual é a forma do Estado no socialismo. Para que discutir as formas do Estado se ele vai desaparecer. ' Então, acho que a idéia do desaparecim ento do Estado deve ser entendida apenas com o uma idéia reguladora , no sentido kant iano , com o o em penho para que haja cada vez menos Estado, mas sem que ele desapareça co m ­pletamente. Hoje, qu an d o dizemos que somos com unistas, que lu tam os pelo co ­munismo, acho que devemos tam bém definir claramente o seguinte: qual vai ser a forma política do com unismo? Para mim, a form a política é o Estado de direi­to , com alta participação popular, com institutos de democracia de base corrig in­do as deformações da representação. M as seguramente é um Estado de Direito que tem instituições garan tidas por uma Constituição, natura lm ente reformável. Você poderia me perguntar: mas o com unism o será o fim do mercado, a estatização de todos os meios de produção? Eu diria que não. Estou convencido hoje de que algo de m ercado poderá existir depois do desaparecim ento do capitalism o — afinal, o m ercado é uma forma de interação que antecedeu o capitalismo. Uma coisa é a generalização das relações mercantis, ou tra coisa é a existência de elementos de m ercado subord inados a um controle social. N ã o estou p ro p o n d o uma economia social de m ercado, não sou social-democrata alemão. M as penso um socialismo em que há m ercado, e cm que pode haver um pluralismo de formas de p rop rieda­de. Pode-se ter p ropriedades realmente estatais — em alguns casos, isso é neces­sário — , pode-se ter p ropriedades cooperativas, e pode-se até ter p ropriedade p ri­vada , em alguns setores. O boteco da esquina n ão precisa scr es ta t izado , táxi tam pouco , uma pequena empresa pode con tinuar p ropriedade privada.

O que você acha da teoria da derivação do Estado?D o derivacionismo? N ã o é uma teoria que tenha me a tra ído muito. Acho que o Estado tem uma au tonom ia relativa muito grande, e é um pouco difícil nós definir­mos todos os m ovim entos do Estado a partir da lógica do capital. Eu até diria o seguinte: freqüentemente há movim entos do Estado que são contrários ã lógica do capital. Por quê? Porque o Estado não é um instrum ento na m ão da classe dom i­nante. O Estado capitalista não é mais — se é que alguma vez o foi — o comitê executivo da burguesia. H á uma definição de Poulantzas que me parece muito boa: o Estado é a condensação material de um a correlação de forças entre classes e fra­ções de classes, com hegemonia de uma delas. Eu diria que é uma definição tão boa que acho que vale tam bém para o Estado socialista que imagino. Enquan to no Es­tado capitalista há correlação de forças com a hegemonia seja do capital financei­ro, com o agora, seja do capital industrial, com o há algum tem po atrás, o Estado socialista é uma correlação de forças em que há hegemonia das classes t r ab a lh ad o ­ras. C laro que há vários m ovim entos do Estado que são es tru turalm ente dedutíveis da lógica do capital. O Estado passou a intervir na econom ia em grande parte p o r ­que a lógica da acum ulação o exigiu. Os franceses até criaram — os soviéticos ta m ­bém, mas os franceses com mais sofisticação — a teoria do capitalismo monopolista de Estado. Que, em dado m om ento , me fascinou um pouco pelo seu rigor lógico: o

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Estado intervém porque está ca indo a taxa de lucro, o Estado intervém com ativi­dades não-lucrativas para repassar mais-valia para o capital etc. Acho que isso explica coisas, mas não acho que explique o funcionam ento global do Estado. O Estado tem sua lógica própria e essa lógica não está ligada à lógica do capital apenas, mas sim à lógica da luta de classes. Se se quiser deduzir de algum lugar a ação do Esta­do, esse lugar é a luta de classes, que é um fenômeno fundamental na explicação do social. Sou inteiramente con tra a idéia da desaparição da luta de classes, ou a idéia de que a luta de classes se to rnou um conflito entre outros . M e lembro do W effort, dan d o entrevista antes de ir para os Estados Unidos, dizendo assim: “O conflito cap ita l- trabalho não é mais o conflito central, é um conflito entre o u tro s” . N ão , acho que é o conflito central. N ã o é o único conflito, não posso explicar tudo a partir dele. N ã o posso explicar a Nona de Beethoven só a partir do conflito de classe. M as seguramente vou ter que usar o conflito de classe para entender a Nona de Beethoven: o contex to histórico concreto, o que a visão do m u n d o da burguesia revolucionária representava naquela época, de que m odo essa visão do m undo pôde se expressar m ateria lmente nos maravilhosos sons daquela sinfonia.

Mas essa concepção de Estado que você está defendendo é também umacrítica aos limites da concepção que Marx tinha do Estado...

Limites históricos. Escrevi um traba lho , cham ado “A dualidade de poderes” , que agora está no livro Marxismo e política, em que tento mostrar isso. Acho que, quando .Marx escreveu O manifesto comunista, deparou-se com um tipo de Estado que era realmente muito restrito, no sentido de que não era permeável ã maioria esm aga­dora da sociedade. O nde havia Estados absolutistas, isso era óbvio. .Mas, mesmo onde havia Estados liberais ou semiliberais, com o na Inglaterra e na França, havia voto censitário. Eu brinco sempre que o par lam en to era o soviete da burguesia, representando só os proprie tários . E só vai haver sufrágio universal no século XX. Então, o Estado era restrito, efetivamente. Acho que a idéia de M arx de que o Es­tado usa apenas a coerção, de que todo Estado é um a d itadura — isso não está no Manifesto, mas está um pouco depois — , de que o Estado é um comitê executivo da burguesia, essa idéia corresponde mais ou menos àquele m om ento histórico. E digo “ mais ou m enos” porque, três anos depois do Manifesto, no Dezoito Brumário, M a rx já vai ter uma ou tra teoria, bem mais am pla, de Estado, em que o Estado tem au tonom ia relativa em relação à burguesia. O Estado bonapartis ta não é um com i­tê e.xecutivo da burguesia. O que eu acho é que o Estado m udou, a natureza do Estado capitalista m udou , mas sem deixar de ser capitalista. Eu não gosto d aque­les marxistas que dizem: “ A natureza, a essência do capitalismo não m u d o u ” . Eu não sou platônico. C om o se houvesse o m undo das idéias puras, das essências, que não m uda nunca. Acho que, qu an d o m udam as aparências, a lguma coisa da essên­cia m udou tam bém . Eu diria assim: o Estado capitalista, em última instância, re­presenta os interesses do capital, assegura a divisão da sociedade em classes, asse­gura a p ropriedade privada. M as o m ovim ento concreto do Estado tem que ser explicado a parti r do fato de que ele se ampliou, de que a sociedade civil, ou seja, a auto-organização da sociedade, inclusive das classes subalternas, tem influência clara nas relações de poder, já que a sociedade civil é um m om ento do Estado. E o Esta-

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do não representa mais apenas os interesses das ciasses dominantes. Se é um Esta­do que busca a legitimação, se é um Estado liberal-democrático, ele tem evidente­mente de levar em conta dem andas que provêm de setores que não são os das clas­ses dominantes. E acho que essa am pliação da concepção m arxista do Estado é a grande contribuição de Gramsci à teoria política.

Você diria que o marxismo e o movimento operário demoraram paracompreender essa mudança do Estado?

Acho que sim. Sobretudo porque, em dado m om ento , tornou-se hegemônico, no interior do m ovim ento , o m arx ism o soviético. E Lênin deparou-se com um Estado que era restritíssimo. O czarismo podia ser claramente pensado com as categorias do Manifesto. Engels, pouco antes de morrer, escreveu um texto brilhante, que é o “ prefácio” a uma nova edição da Luta de classes na França, em que ele claramente aponta para uma outra concepção de Estado. Ele diz ali que o Estado é fruto de um con tra to entre o príncipe e o povo e apon ta para um ou tro tipo de revolução. Desgraçadamente, m orreu logo depois. M as, na Segunda Internacional, havia in ­dicações no sentido de que a teoria do Estado iria ser revista. C laro que Bernstein queria rever tudo, queria jogar fora tudo. N ã o é o caso. .Mas acho que há em Rosa, em Kautsky, movimentos nessa direção. O bolchevismo, a partir da vitória da revo­lução russa, foi apresentado com o “o ” m arx ism o do nosso tempo. Lênin virou o “ M arx do nosso te m p o ” , e criou-se essa coisa absurda que é o marxismo-leninismo. Você pega um livro com o O Estado e a Revolução, que é uma boa tese de mestrado, porque Lênin reuniu todas as citações sobre Estado em M a rx e Engels, e você não encontra essa do “ prefácio” de Engels. Q u an d o M arx , o velho M arx , diz em dado m om ento que, onde não houver uma burocracia forte, é possível conceber que uma vitória eleitoral leve ao socialismo através do parlam ento , Lênin retruca: mas é p o r ­que na época não havia burocracia, mas agora já há, en tão não pode ser assim, tem que ser na porrada , na violência etc. Então, o paradigm a de teoria do Estado e da revolução de Lênin — e eu digo com sinceridade, estava correto para a Rússia, tanto que ele tom ou o poder; se a prova da existência do pudim era comê-lo, ele comeu o pudim — generalizou-se para situações em que evidentemente o Estado já não era mais com o aquele Estado russo, nem m esm o com o o eu ropeu da época do Manifesto.

Provocativamente, cos tum o dizer que a essência do m étodo de M arx é o revi­sionismo. O que é o m étodo de M arx? É a fidelidade ao movim ento do real. O que é o real? U sando a expressão do Lukács, é o jo rrar incessante do novo. Então, se não renovo minhas categorias, se não as reviso para pensar o real em constante devir, sou infiel ao marxismo. Seria absurdo imaginar que o m u n d o é igualzinho ao que o M arx viu. H á uma outra frase boa do Lukács no mesmo sentido: podem os a b a n ­d onar afirmações concretas de M arx , no limite, todas, e sermos o r todoxam en te marxistas, se formos fiéis ao m étodo. Isso é absurdo , todas é impossível, Lukács disse isso provocativamente. M as, realmente, há várias coisas que M a rx disse que não correspondem mais ao real. Para entender o capitalismo de hoje, você tem que passar necessariamente pelo Capital de iVIarx. M as, se ficar só no Capital, não é possível entender o capitalismo de hoje.

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Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em lar­ga escala e alienação cultural em massa. Como você vê tais problemas?

C om o um velho marxista , vejo-os com o resultados do capitalismo. Agora , M a rx não viu uma coisa — entre as m uitas que ele não viu — , que é a possibilidade real e concreta de que as forças produtivas se to rnem forças destrutivas, que é a grande questão que os ecologistas colocaram. H á em M arx , e sobretudo nos bolcheviques, em Lênin, T ro tsky e nos outros, até em Gramsci, a idéia do produtiv ism o, do per­manente desenvolvimento das forças produtivas. C om o se isso fosse possível, com o se a natureza fosse inesgotável. Hoje nós sabemos que não é. Então, esse é ou tro pon to cm que temos de repensar o com unism o. Por que não pensar um com unis­m o com crescimento zero? Acho que isso é uma possibilidade real. Se a hu m a n id a ­de hoje distribuir bem o que produz, vai haver o suficiente para todos. Será que é preciso que to d o m undo tenha três carros, qua tro geladeiras, cinco televisões?

Cinco filhos?Sim, crescimento zero inclusive populacional. M arx não afirmou isso, mas deixou mais ou menos implícita a idéia de que com unism o seria o des lancham ento radical do desenvolvimento das forças produtivas, não haveria mais nenhum a barreira a esse desenvolvimento. M as há um a barreira que é colocada pelo limite ecológico.

Você diria que a alternativa “socialismo ou barbárie” se coloca hoje ainda?

N ó s es tam os na barbárie . A barbárie não deve ser en tendida com o colapso dos prédios na cidade, com o m arem otos, mas com o um processo perm anente de desa­gregação social, de decadência, de degenerescência, que é o que estamos vendo. Quem não está ac o m panhando o que está acontecendo com a África? A África é a ba rb á ­rie, no sentido de que 4 0 % das crianças nascem com Aids, há guerras civis pe rm a­nentes, desagregação do Estado, fo rm ação de cleptocracias, de poderes abso lu ta­mente corruptos. Por que isso aconteceu? A África se organizava tribalmente, com formas evidentemente pré-capitalistas, pré-feudais. Chegou lá o colonialismo, num m om ento em que m atéria -prim a bara ta interessava ao capitalism o, desarrum ou aquilo tudo , criou aqueles países que não existem, que não têm nada a ver com a história das etnias, e, de repente, a África não interessa mais, não tem condições de participar da ciranda financeira, e largaram para lá. Acho que isso é barbárie . C om o são barbárie , no m undo desenvolvido, as formas de violência crescente nas g ran ­des cidades, a intensificação da alienação, a pasteurização, o em brutecim ento cul­tural etc. Estamos diante da “banalização do m a l” , que dissimula a barbárie.

No que você mudou? De algumas coisas você já falou, de algumas m u­danças nas suas concepções, e você destacou a importância do método de Marx como um revisionismo. No que você mudou realmente?

É difícil para nós mesmos avaliar exa tam ente aquilo em que m udam os. N ão gosto m uito de reler minhas coisas. F reqüentemente, eu achava que era bom, vou 1er e não gosto. Seguramente eu mudei a m inha concepção de política cultural. Fui m ui­

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to influenciado por um texto de Lukács que se cham ava assim: “ Franz Kafka ou Thom as M a n n ?” . Então, eu tinha sempre uma preocupação: “ Fulano ou Beltrano?” , “ Visconti ou Fellini?” , “Graciliano Ram os ou Clarice Lispector?” . N o tem po em que eu fazia crítica literária , isso era terrível. Essa é uma coisa em que eu mudei. Hoje penso que é preciso se abrir , no terreno da cultura, para a pluralidade das manifestações culturais. Isso não significa, evidentemente, que a gente perca a ca­pacidade de exercer uma crítica ideológica daquilo que nos parece equivocado, ou que leva a posições que não são corretas. Acho que isso, inclusive, vale para a arte. Acho que há manifestações artísticas que expressam visões do m undo equivocadas. M as por que não Kafka e T hom as M ann?

M udei tam bém claramente em minha avaliação de Lenin. Lênin, para mim, era seguramente o terceiro clássico do marxismo. O que Lênin dizia valia tanto, tinha tanta justeza, quan to o que diziam M arx e Engels. N ão é e.ssa a minha posição hoje. Lênin é um revolucionário notável, indiscutivelmente, e um pensador brilhante. .Acho que Lênin tem reflexões importantes sobre vários temas. O conceito de via prussiana, por exemplo, que ele criou para pensar a modernização da Rússia, é um conceito que me parece ex trem am ente opera tório para pensar um caso com o o do Brasil. .Acho que a teoria do imperialismo, em bora tenha sido form ulada de uma maneira que não correspondeu inteiramente à realidade — “capitalismo em pu trefação” etc. — , teve o mérito de cham ar a atenção para fenômenos de acum ulação in ternacio­nal do capital, para uma nova etapa do capitalismo, na qual e.stamos ainda hoje. .Mas acho que Lênin é anacrônico na sua teoria do Estado e da revolução, na medi­da em que ele generalizou, com o categorias marxistas válidas em todas as cond i­ções históricas concretas, a lgumas coisas válidas apenas para a realidade russa, algo que Rosa Luxem burgo, na época, já tinha visto. Hoje, não me considero mais um leninista. Sou .seguramente uma pessoa que simpatiza com a obra de Lênin, mas que tam bém tom a distância em relação a ela.

.Mudei tam bém na minha avaliação de vários outros autores m arxistas que eu tra tava um pouco rapidam ente, com o o “ renegado” Kautsky, o “ revisionista” Bernstein, ou mesmo essa polonesa simpática que é Rosa Luxem burgo. O u seja, passei a valorizar mais o pluralismo da refle.xão no interior do marxismo. Nesse sentido, não acho que exista um “g ram scism o” . Gramsci tam bém diz coisas com que não concordo . N os textos sobre “ am ericanism o e ford ism o” , por exemplo, Gramsci fez uma avaliação justíssima a respeito do capitalismo num a de suas n o ­vas etapas, mas ele tem uma avaliação dos processos de racionalização do t r a b a ­lho que é no mínimo problemática. N ã o é casual que não haja em Gramsci o con ­ceito de traba lho alienado. Essa categoria m arx iana não aparece em Gramsci, ele valoriza positivamente a racionalização do t raba lho , acha que o socialismo deve usá-la tam bém . Lênin tam bém pensava assim. E isso é a expressão, a meu ver, de um com unism o produtivista, de um com unism o de países que ainda têm que fazer um longo percurso de desenvolvimento material para poder efetivamente im plan­tar ou desenvolver o com unismo.

Você participa ativamente do site “Gramsci e o Brasil”, que tem porobjetivo divulgara obra de Gramsci, bem como reflexões em tom o dela.

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por meio da internet. Como você avalia os resultados dessa iniciativa? Como você vê hoje novos meios de comunicação e organização como a internet?

Acho que o nosso site é um a prova de que se pode usar bem a internet. C om o todo meio de comunicação, acho que, até certo ponto , ela é neutra ideologicamente. N ã o sou adorn iano , no sentido de entender que o meio em si é problemático. N ã o vejo problem a nenhum em ouvir a Nona Sinfonia no rádio. Acho que a internet pode ser uma coisa bem ou mal usada. O problema é a propriedade privada e monopolista dos meios de com unicação. Felizmente, pelo menos por enquan to , a internet não tem esse problem a. T an to que estamos lá com o nosso site. N ã o poderíam os fazer um program a no horár io nobre da TV G lobo sobre Gramsci, mas podem os pen­du ra r o site na internet. É pouco, mas é algo. E é um sucesso, o nosso site. Recebe, em média, de três a qua tro mil visitas por mês, tem de sete a dez mil páginas aber­tas por mês. N ã o tem um dia que alguém não abra . Q u a tro mil pessoas se inscre­veram para receber o boletim que a gente m anda , de dois em dois meses. Acho que é um a prova, esse site, de com o se pode usar bem a internet. E, se vocês não se in­com odarem , lá vai a p ropaganda: o endereço é <\v'\\ 'w.artnet.com.br/gramsci>.

Principais publicações:

1967 Literatura e humanismo (Rio de Janeiro: Paz e Terra);1972 O estruturalismo e a miséria da razão (Rio de Janeiro: Paz e Terra);1980 A democracia cotno valor universal (Salamandra: 1984);1981 Gramsci: um estudo sobre o seu pensamento político (Rio de Janeiro :

D P& A , 1999);1985 Dualidade de poderes: Estado, revolução e democracia na teoria marxista

(São Paulo: Brasiliense);1990 Cultura e sociedade no Brasil (Belo Fíorizonte: Oficina do Livro);1992 Democracia e socialismo (São Paulo: C-ortez);1996 Marxismo e política (São Paulo: Cortez);2000 Contra a corrente: ensaios sobre democracia e socialismo (São Paulo: Cortez).

Bibliografia de referência da entrevista:

Bloch. The principie o f hope, Cambridge, M IT Press.Engels, F. D o socialismo utópico ao socialismo científico, Pespectiva.___________ . Luta de classes na França, Obras escolhidas de Marx e Engels, Alfa

ü m e g a .Gramsci, A. Concepção dialética da história. Civilização Brasileira.___________ . Cadernos do cárcere. Civilização Brasileira.Flabermas, J. Técnica e ciência como ideologia, Lisboa: Edições 70.___________ . Teoria de la acción comunicativa, .VIadri: Catedra.Hegel, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Vozes.

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Ciência de la Lógica, Buenos Aires, Solar.H obsbaw n, E. (org.). História do marxismo. Paz e Terra.H orkheim er, M . e A dorno , Th. Dialética do esclarecimento, Jorge Z a h a r Editores. H orkheim er, \1 . “Teoria tradicional e teoria crít ica” , coleção Os Pensadores, Abril

Cultural.___________ . Eclipse da razão. Labor Editorial.Kurz, R. ( ) colapso da modernização. Paz e Terra.Lênin, V. I. O Estado e a revolução. Obras escolhidas, Avante!.Lukács, G. História e consciência de classe, Elfos.___________ . Realismo crítico hoje. C oordenada.___________ . A falsa e verdadeira ontologia de Hegel, Livraria Editora Ciências H u ­

manas._. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx, Livraria Editora Ciên-

cias H um anas.______ . Introdução a uma estética marxista. Civilização Brasileira.______ . Marxismo e teoria da literatura. Civilização Brasileira.

M arx , K. O capital, coleção Os Economistas, Abril Cultural.M arx , K. e Engels, F. Manifesto comunista. Paz e Terra.Michels, R. Os partidos políticos. Senzala.Rousseau, J.-J. Do Contrato Social, coleção O s Pensadores, Abril Cultural. Sartre, J.-P. Crítica de la razón dialéctica, Buenos Aires: Losada.

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B althazar B arbosa F ilho; “ A filosofia n o B rasil, p o r e n q u an to , está ausen te e m u ito d is tan ­te do d ebate púb lico . Isso se deve em p a rte tam bém à e sp an to sa ignor,ínc ia na qual se faz o debate púb lico hoje no B rasil" .

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BALTHAZAR BARBOSA FILHO (1943)

Balthazar Barbosa Filho nasceu ein 1943, em Porto Alegre (RS). Graduou-se em Direito na Universidade Federal do Rio G rande do Sul e obteve o grau de mes­tre e o titulo de d o u to r em Filosofia pela Universidade Católica de Louvain (Bél­gica). Foi professor da Universidade de São Paulo e da Universidade Estadual de Campinas. É professor do D epartam en to de Filosofia da UFRGS. Esta entrevista foi realizada em fevereiro de 2000.

Goethe dividiu a vida de seu personagem Wilhelm Meister em dois romances. Os anos de aprendizado e Os anos de peregrinação. N o pri­meiro, o foco está posto na formação do indivíduo, enquanto o segun­do desloca esse foco para os liames desse indivíduo com a sociedade.Seria este um bom mote para que o senhor nos falasse de sua fonnação intelectual?

Uma das razões que me levaram para a Faculdade de Direito foi o fato de eu per­tencer a uma família de juristas — o meu pai era jurista. M as, ao mesmo tempo, sempre tive um interesse por filosofia, desde o meu curso de segundo grau. C om o tive uma forte formação religiosa, católica, interessava-me muito por algumas facetas da teologia, em especial do es tudo de S. T om ás de Aquino — lembro-me que, nes­sa época. M arcos M üller e eu fizemos um seminário sobre a Suma de S. Tomás. Fui levando, então, paralelamente a Faculdade de Direito e a Faculdade de Filosofia.

Terminei o curso de Direito no final de 1965, mas não terminei o curso de filosofia. Tive a oportunidade, naquela ocasião, de ir para a Universidade de Louvain e já havia o p tado — lá por volta dos meus vinte anos de idade — por fazer apenas filosofia. Procurei um local em que pudesse ter uma formação mais adequada do que aquela que poderia ter aqui em Porto Alegre.

Como foi o seu curso de graduação em filosofia em Porto Alegre?O curso dc graduação do Rio G rande do Sul refletia a form ação dom inan te de fi­losofia no Brasil, que começou a existir a partir do final do século passado. Esse curso contava majoritar iam ente com pessoas que poderiam estar no direito e com pessoas provenientes da área religiosa, com o padres. Havia, no en tan to , algumas exceções que foram muito importantes: fui a luno do professor Ernani .Maria Fiori, que naquele tem po já começava a se destacar com o um pensador independente; fui tam bém aluno do professor Gerd Bornheim, que naquele tem po voltava de um pe­ríodo na Alemanha e nos apresentou Hegel; e, por último, fui aluno de Ernildo Stein, que foi quem me apresentou Heidegger pela primeira vez. A form ação fundam en­tal que se tinha por aqui era essencialmente de proveniência medieval, em par ticu­

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lar S. Tom ás de Aquino. O meu csrudo sis temático em filosofia com eçou com S. Tomás, depois, nos cursos da faculdade, comecei tamhém a me interessar por l.eibniz.

Qual a sua avaliação de Emani Fiorif É a mais positiva possível. É a mais positiva porque ele foi um homem cuja paixão pela filosofia conseguiu despertar muito interesse não só entre estudantes que faziam filosofia, mas tam bém no meio cultural do Rio G rande do Sul. Graças ao seu em ­penho, a filosofia passou a ser considerada com o uma atividade que um a menina ou um rapaz poderia desem penhar honradam ente , e não apenas com o um bico. O professor Fiori foi o primeiro filósofo profissional gaúcho de regime de dedicação exclusiva à filosofia. .Além disso, fez um traba lho rigoroso em filosofia.

Como foi a sua experiência na Universidade de Louvain?Saí de Porto .Alegre com um projeto megalómano; um estudo do conceito de subs­tância em S. T om ás de Aquino, Leibniz e Hegel — o que revelava o g rau de inge­nuidade e de deficiência de form ação que eu possuía naquele m om ento . Fui para Louvain, um a boa faculdade que se destacava principalm ente na área de feno­menologia, em que havia sólidos pesquisadores, e que tam bém começava a se des­tacar na área de filosofia da linguagem. Em razão do meu interesse por Leibniz, fatalmente fui 1er o livro de Bertrand Russell sobre esse autor. Esse livro desper­tou-me rapidam ente para a filosofia analítica; Russell, Frege e, sobretudo, o pri­meiro Wittgenstein do Tractatus logico-philosophicus. A bandonei os estudos que até então havia feito, inclusive o projeto m egalóm ano, e passei a concentrar os meus estudos basicamente na ontologia desenvolvida p o r Frege, Russell e Wittgenstein. Disso resultou a m inha dissertação de m estrado sobre a noção de forma lógica no Tractatus de Wittgenstein, em 1970. Após a dissertação, continuei os estudos nes­sa direção, mas, dessa vez, mais interessado pelo segundo Wittgenstein, em espe­cial pelas Investigações filosóficas e os temas que aí gravitavam. N aque la ocasião, isso significava essencialmente estudar textos em inglês, pois praticamente não havia estudos nessa área em língua alemã e menos ainda em língua francesa. Assim, fui para Leeds, na Inglaterra, t raba lhar com o professor Peter Geach — um ótim o fi­lósofo. Depois, em 1971, passei um semestre em Heidelberg com o professor T u ­gendhat, que, naquele tempo, iniciava-se na filosofia analítica. Ele dava cursos so­bre filosofia da linguagem, mas gaguejava em lógica. Era um desastre, porque inú­meras vezes começava a dem onstrar um teorem a, não sabia levar adiante , e recor­ria invariavelmente a Erau [Andréa 1 Loparic, que fazia as continhas para ele.

■Mas, de meus anos de Louvain, guardo com o marcante meu con ta to com o professor Jean Ladriere. N ã o encontrei, depois, nenhum filósofo com ta m an h a acuidade, p rofundidade e penetração. Devo ainda dizer que tam pouco encontrei, depois, ser hum ano mais íntegro e completo.

O senhor poderia falar um pouco acerca de seu doutoramento sobre'Wittgenstein, defendido na Universidade de Louvain e até hoje inédito?

Por um desses equívocos históricos gigantescos, os neopositivistas de Viena filiaram- se erroneam ente ao Tractatus, e fizeram dele a sua referência fundamental . Isso era

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paradoxal, porque o Tractatus é um livro de uma selvageria especulativa rara e os neopositivistas eram absolutamente antimetafísicos — como também possuíam uma veemência igualmente rara (risos). N o entanto, achavain que Wittgenstein era o seu precursor. Por ou tras razões tam bém , o neopositivismo foi um desastre — o que não retira os vários méritos fundamentais que teve — , e o projeto inconsistente que eles form ularam foi pouco a pouco sendo abandonado . X o caso de W'ittgenstein, o aban d o n o foi feito por ele próprio . Ele decidiu corrigir “os graves e r ro s” de filo­sofia que havia com etido no Tractatus, o metafísico em especial. D uran te um vas­to período de tempo, passou a escrever algo que culminou nas Investigações filo­sóficas. Em primeiro lugar, o que me fascinou nesse livro foi que, à primeira vista, ele não tem antecedentes na história da filosofia. Fiquei desconfiado com isso, p o r­que não acredito em gerações espontâneas a partir do nada. Em segundo lugar, in­teressavam-me tam bém os pontos exatos em que W'ittgenstein procurava evidenci­a r quais eram os erros cometidos pelo Tractatus. E ele tinha a seguinte idéia (que não era tota lmente extravagante): se a metafísica, na acepção clássica da palavra— a teoria do ser enquanto ser — , é possível, então a sua boa forma é a do Tractatus. Agora, já que não deu certo, há alguma coisa de e rrado com ela. As Investigações filosóficas, em parte, são um traba lho dessa natureza , ou seja, refazem m inuciosa­mente os mecanismos que nos levam aos desvarios metafísicos. Para isso, Wittgens­tein utiliza uma das suas noções centrais, que é a de significação. Então o meu t r a ­balho foi sobre a noção de significação nas Investigações filosóficas. N aque la oca­sião, em 1972, com o a bibliografia sobre W ittgenstein era ainda m uito escassa, mesmo em língua inglesa, esse meu traba lho tinha algum interesse. Ele deveria ter sido publicado num a coleção dirigida pelo professor Paul Ricoeur, que estava na banca do meu dou to rado . M as, em 1974, um filósofo cham ado Peter H acker pu ­blicou um livro magistral sobre Wittgenstein, e tudo aquilo que tinha de interes­sante na minha tese ele disse de maneira muito melhor, com mais precisão, com mais clareza e com mais profundidade.

Em seu artigo sobre o positivismo de 'Wittgenstein, o senhor escreveu:“Do T rac ta tu s ao empiricismo lógico há, é certo, um abismo, mas o abismo é estreito, e o salto pareceu possível e inevitável. É esse salto que Wittgenstein arriscou, por volta de 1930, e cujo fracasso terminou por levá-lo à total transfiguração de seu pensamento. Ele deixou de respon­der diferentemente às mesmas perguntas, e passou a interrogar diferen­temente a lógica, a linguagem e o mundo”. Como seria essa continua­ção esboçada pelo final do artigo, quer dizer, como o senhor vê o cha­mado segundo Wittgenstein das Investigações?

O período de 1929 ao qual me refiro é o período no qual W'ittgenstein esteve mais p róxim o do positivismo. E nesse período que ele ab a n d o n a as teses fundamentais do Tractatus, e a acusação mais constante que faz a si mesmo, depois do ab a n d o ­no, é a seguinte: no Tractatus, ele preserva certas idéias absolutam ente pré-conce- bidas a respeito de determ inados pontos. Uma vez aceitas essas idéias, o resto se­guia implacavelmente. E essas idéias preconcebidas, segundo Wittgenstein, dizem respeito ao funcionam ento da linguagem, por conseguinte, ao funcionam ento do

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pensamento. Segundo e!e, a filosofia privilegia uma única maneira de pensar, em que nós podem os determinar a dimensão do verdadeiro e do falso. M as, para W itt­genstein, não é apenas assim que nós pensamos, pois nós pensamos de maneiras regradas. O nosso pensam ento é muito mais variado do que e o pensam ento privi­legiado pela filosofia. Desse privilégio, cuja fonte ele atribui talvez injustamente a S. Agostinho, decorre uma concepção platónica da lógica, a lógica transcendente às atividades hum anas. Wittgenstein en tão navega entre dois rochedos: de um lado, o rochedo do pla tonism o, ou seja, supor que a lógica é algo abso lu tam ente externo às atividades hum anas; de ou tro lado, o rochedo do relativismo — que ele tem de evitar igualmente — , ou seja, que as leis lógicas nada mais são do que expressões dos m odos psicológicos segundo os quais agimos, significamos e falamos. Essas são as duas coisas que ele pretende evitar nas Investigações filosóficas. E convém insis­tir; é im portan te no ta r que o projeto original de W'ittgenstein era, ao longo das Investigações, escrever um livro sobre os fundam entos da matem ática e um livro sobre os fundam entos dos conceitos psicológicos. F. expressivo o fato de ele ter t r a ­balhado com o parte de um m esm o livro o dom ínio do puram ente formal da m ate­mática junto com o dom ínio do intencional, das emoções e dos sentimentos. Ele diz: “Esse mesmo tipo de cartografia conceituai que faço dos cham ados conceitos psicológicos deve ser feito com os conceitos m atem áticos” . Isso reflete aquela difí­cil navegação que ele pretendia com a.s Investigações, depois do dogm atism o do Tractatus. Já há cinco volumes publicados referentes a esse projeto, mas ainda é um a massa m altraba lhada de que não se sabe m uito bem o que pode sair. Q uan to ao sucesso ou êxito disso, Wittgenstein foi um bom profeta a respeito da sua p ró ­pria progenitura. Ele diz, sob a forma fragmentária que é característica sua, que o único legado que ele deixa é um certo jargão. O que realmente é verdade [risos]: “ jogos de linguagem” , “ formas de vida” etc. Embora eu acredite que ele tenha muito mais coisas para deixar. .Mas aí é ou tra história.

O senhor passou sete anos fora do país (1966 a 1973). Nesse períodoentre a sua saída e a sua volta, o que mudou no Brasil?

O que mais me cham ou a atenção, pelo menos no início, foi o seguinte: naquele tem po não existia Instituto de Filosofia, Instituto de Política, mas a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. E na Faculdade havia matemáticos, físicos, químicos, literatos, filósofos etc. Com o golpe de 64, uma das faculdades que mais sofreu com os expurgos foi a da Universidade Federal do Rio G rande do Sul (UFRGS). N a área de filosofia a devastação foi completa. Os bons professores de filosofia que t ín h a­mos em Porto Alegre foram todos, sem exceção, expurgados nesse período. O D e­par tam ento de Filosofia foi ocupado en tão pelo que havia de pior, desde que fosse de direita. Isso foi um período esquecido do D epartam en to de Filosofia daqui do Rio G rande do Sul. Com a USP não aconteceu o mesmo. Ela teve uma capacidade de resistência inercial que nós não tínhamos. Apesar das cassações, a USP resistiu, conseguiu m anter um bom grupo de professores e desempenhou um papel muito im portan te na preservação de um bom traba lho de filosofia.

Bom, o que m udou essencialmente neste período.^ Foi nesse período que os traços bacharelescos e eclesiá.sticos da filosofia desapareceram definitivamente.

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Talvez isso seja um exagero, mas esses traços to rnaram -se to ta lm ente marginais. .A filosofia tornou-se muito mais profissional e os laços entre o direito e a filoso­fia de ixaram de ser significativos. Ao m esm o tem po , houve um a b ru ta l ideo- logização do traba lho filosófico, que teve uma im portância m uito grande. Isso foi fundam ental com o dem onstração de resistência, principalmente por parte d aq u e ­les que ficaram dentro da Universidade e tinham de resistir. N a USP, trabalhava- se com o m arxism o, lia-se muito Da contradição do .Vlao-Tsé-Tung e coisas des­se tipo. Q u a n d o cheguei, em 1973, alguém (que eu não vou dizer quem é) per­guntou: “ Você fez d o u to rad o sobre o q u e?” . Eu respondi: “ Sobre W ittgenstein” , e a pessoa disse: “W'irtgenstein é neopositivista, então é fascista” . Era difícil... .VIas era essa a atmosfera de resistência da época, sobretudo por parte da Universidade de São Paulo, por parte da Universidade do Rio de Janeiro , de .Vlinas Gerais e daqui. Os temas dom inantes eram aqueles que gravitavam em volta do m arx is­mo. Isso serviu para definir bem o público que freqüentava a Filosofia, mesmo que não profissionalmente, de an tropólogos, de sociólogos, cujas referências eram es­sencialmente marxistas.

F. depois da volta ao Brasilf Terminei o meu dou to rado , voltei para o Brasil, e tive um m om ento brevíssimo na Universidade de São Paulo. Naquele m om ento , jOswaldol Porchat, jun to com um grupo da USP, teve a opo r tun idade de fundar o C;entro de Lógica e Epistemologia (CLE) e o D epartam ento de Filosofia da Unicamp. N ão conhecia nem Porchat, nem IJosé Arthur] Giannotti e nem Bento [Prado Jr.] — naquela época, a Santíssima T rin­dade da filosofia de São Paulo. Fomos em bando para Cam pinas, e essa experiên­cia foi ex traord inária sob todos os pontos de vista. Éramos um bando de metecos, onde não havia nenhum aborígene, mas muitos estrangeiros. Lembro-me de .Víichel Debrun, Gérard Lebrun, Andreas Raggio, Ezequiel De Olazo, Eduardo Robossi, p ro ­fessores que faziam par te do co rpo regular. C laro que nem todos ficaram muito tem po, mas pelo menos duran te dois anos um desses ficava por lá. O que formava um D epartam ento com muitos interesses e, além disso, com um grau de rigor no traba lho muito bom. Com isso, aprendia-se muito. M esmos os brasileiros, os pri­meiros a aparecer, tam bém tinham um variado interesse filosófico que ia desde a fenomenologia, com (.'arlos Alberto [Ribeiro de M oura] , até Frege, com Luiz H en ­rique [Lopes dos Santos], passando por Hegel, com .VIarcos .Vlüller, e assim por diante. M as o projeto restringia-se à lógica e à filosofia da ciência. Julgava-se que o ensino de lógica era absolutam ente fundam ental para a form ação de qualquer estudante de filosofia, e um dos aspectos mais im portantes da cultura con tem porâ­nea era, afinal de contas, a ciência — pelo menos foi isso que aconteceu a partir do período m oderno. Então, cabia estudar esse aspecto de uma maneira mais ap ro fun ­dada . (!llaro que a filosofia da ciência, naquela época, dedicava-se essencialmente aos neopositivistas, aos positivistas lógicos do g rupo de Viena. N o en tan to , no D epartam ento , os clássicos históricos do conhecimento, mesmo os da ciência clás­sica, nunca foram negligenciados, como Descartes, Hume, Husserl e assim por diante. M as, de fato, havia um a tônica forte no neopositivismo.

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A idéia do CLE era selecionar também estudantes que não tinham for­mação em filosofia e levá-los a uma pós-graduação em filosofia. Qual é a sua avaliação dessa experiência?

Apesar de rudo, é boa. Por um lado, muitos erros foram cometidos, sobretudo o excesso de ênfase dada nos cursos a autores menores em detrimento dos grandes clássicos da filosofia. Isso foi muito desvantajoso. Por ou tro lado, vejo com o van­ta joso que, naquele tempo, os órgãos de f inanciamento, pr incipalmente a CAPES, eram ex trem am ente generosos. Justam ente por nós não term os uma g raduação e por não exigirmos uma form ação prévia em filosofia, eles nos davam a possibili­dade de ter um semestre de adap tação para os alunos. Fazíamos um pré-exame de seleção, e, depois, havia o tal semestre com três disciplinas obrigatórias invariantes— “ In trodução à I .ógica” , m inistrada pela Andréa | l .oparic | , “ In trodução à H is­tória da Filosofia” , ministrada por Carlos Alberto, e “ Introdução à Epistemologia” , ministrada por mim. Era esse semestre que, de fato, fazia a seleção dos alunos. Ao final do semestre, nos reuníamos e considerávamos o seguinte: um aluno podia não ser m uito ta lentoso para lógica, mas, em com pensação, podia ter um ó tim o talento especulativo. Ou vice-versa: um a luno com um talento formal aguçadíssimo, mas que não sabia filosofia. T ínham os de p rocurar pesar essa seleção da maneira mais sensata possível. Isso foi um dos pontos mais positivos do D epartam ento . O ponto mais negativo foi esse desequilíbrio entre os autores con tem porâneos e os autores clássicos.

Queria salientar ainda um último ponto , o mais im portan te nessa experiên­cia do Cen tro de Lógica, cujo mérito principal pertence a Porchat: a atmosfera de debate e de discussão que se instalou ali. Antes, qualquer discussão de idéias filo­sóficas, qualquer discordância ou crítica veemente a uma tese, exposição ou a rg u ­mento, era tom ada com o uma agressão pessoal, e im ediatam ente a pessoa criticada se punha em legítima defesa. Isso fazia com que a discussão degenerasse rapidamente. A U nicamp, naquela ocasião, conseguiu criar — o que felizmente depois se espa­lhou — a tradição da discussão feroz, acesa, mas que, no en tan to , permanecia ex ­clusivamente no terreno das teses e das idéias, e não no terreno pessoal. Isso foi a contribuição mais im portan te da Unicamp.

Queria insistir exatamente nesse ponto. Chama a atenção em sua res­posta o fato de Porchat ter inaugurado os colóquios. Antes disso, se se comparar o que era o centro de Porto Alegre, o centro paulista etc., como estava a situação? Criou-se com esses colóquios uma certa integração nacional?

Criou-se. H avia, antes disso, o Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) do professor •Miguel Reale, que realizava sempre um grande congresso nacional e, às vezes, co n ­gressos internacionais, interamericanos etc. Esses congressos tinham uma es tru tu ­ra formal: uma grande conferência seguida de comunicações. Mas não havia no Brasil a tradição do pequeno colóquio temático, em que um núm ero reduzido de pessoas fossem convidadas para falar, para se expor e discutir. Isso não era um costume nem em Porto Alegre, nem em São Paulo, nem no Rio de Janeiro e nem em M inas Gerais. Os trabalhos que eram feitos nessas cidades eram isolados. São Paulo tinha

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um cnihalho em filosofia bem mais desenvolvido do que aquele que era feito no resto do país, mas traba lhava de maneira m uito autista , ignorando o que se fazia fora de seu estado. \ ã o havia, po r tan to , uma integração nacional no cam po da filo.sofia. Pouco a pouco, os colóquios de Porchat foram reunindo e pondo em con ta to as pessoas que traba lhavam nos diferentes centros. Foi através disso que essas pessoas passaram a se conhecer melhor, saber dos traba lhos dos outros e a discutir com bastante intensidade.

O senhor participou também da assessoria da CAPES e da estruturaçãode cursos de pós-graduação. Como o senhor avalia esse processo deinstalação da pós-graduação em filosofia no Brasilf

Sempre vejo essas coisas de uma maneira superficial, porque não conheço as minúcias e os detalhes da história da instalação da pós-graduação no Brasil. Em todo caso, a m inha impressão é a seguinte: de todas as atividades governam entais na área de educação, a im plementação da pós-graduação foi a que deu melhor resultado. Em ­bora tenham os um a pós-graduação muito nova, o progresso que houve na quan t i­dade e, sobretudo, na qualidade dos traba lhos depois da implementação foi colos­sal. N ão só isso: se a gente e.xaminar o início e o atual estágio da pós-graduação em filosofia no Brasil, há um progresso fora do com um . É verdade que não se tem ainda um volume de publicações expressivas, e padecemos da maldição de escre­ver em português. .Vlas a qualidade média no Brasil não é inferior ã qualidade média dos escritos filosóficos na França, na Inglaterra, na A lemanha e nos Estados Uni­dos. C laro que eles têm um volume de massa crítica infinitamente maior do que a nossa. Por terem mais história, p roduzem uma quan t idade de textos que é incom ­parável com a nossa produção. M as houve um progresso ex traord inário , e a tribuo isso em grande parte à invenção e à instalação da pós-graduação aqui no Brasil. O que receio é que essa situação agora , por várias causas, possa ser prejudicada e se perder. H á, nesse m om ento , um projeto de extinguir o mestrado, visto com muita simpatia pelo Ministério da Ciência e da Tecnologia, pelo C N P q e pela CAPES com os mais variados argumentos. N a minha opinião, o único argum ento real, não ex­presso, é p o u p a r dinheiro, ou seja, o sujeito passa para o dou to rad o direto e fica menos tem po recebendo o dinheiro que lhe é destinado pelo Estado. Isso é de uma rara estupidez, porque centros com o a USP, as federais do Rio, de M inas e do Rio Grande do Sul recebem fatalmente estudantes que vêm com formações as mais diver­sas. Às vezes um estudante é m uito promissor, mas é m uito ignorante. Visivelmen­te ele não pode ir para o d o u to rad o direto, tem de ter uma p reparação prévia. Em grande parte é o m estrado que faz isso, pois é uma p reparação imprescindível para o dou to rado . Em alguns casos não, mas, pelo que eu saiba, esses casos ainda são minoritários. Receio que isso vá prejudicar a pós-graduação, ou seja, a única expe­riência estatal conhecida nos últimos anos que deu excelentes resultados. Claro que está na hora de ajustar, fazer uma revisão geral, “ aper tar pa ra fusos” e fazer a d a p ­tações. M as alterações fundamentais são muito arriscadas, não sou favorável a elas.

O que significou, na sua opinião, a experiência da Sociedade de Estu­dos e Atividades Filosóficas (SEAF) ?

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Foi uma experiência im portante, porque a SEAF, peia primeira vez, expressou a realidade, isto é, que havia um grupo de pessoas trabaliiando em filosofia no Brasil e não apenas localmente. Por um lado, foi a primeira tentativa de constituição de uma com unidade nacional de pessoas interessadas em filosofia. Foi o em brião do que é hoje a Associação Nacional de Pós-G raduação em Filosofia (ANPOF). Por ou tro lado, nasceu du ran te a d itadura militar e teve um a coloração política e ideo­lógica absolutamente natura l, o que acarretou divisões internas, atritos etc. M as em razão dos fatores externos, da d itadura , duvido que ela pudesse ter sido de ou tro modo.

Como foi criada a ANPOF e como o senhor a vê hoje?A A N PO F foi criada em parte pela divisão interna da SEAF e em parte devido à indução dos orgãos de financiamento (CNPq e CAPES), que queriam interlocutores privilegiados e, ao mesmo tem po, representativos. Privilegiados no seguinte senti­do: a pós-graduação não teve um surto exclusivo, ela proliferou disciplinadamente na nossa área, mas, em outras áreas, de maneira incontrolável. Em qualquer luga­rejo do Brasil, hoje, pode-se fazer m estrado em pedagogia ou em artes. Enquanto , no com eço da década de 80, a pós-g raduação da filosofia t inha doze cursos de m estrado e apenas três de dou to rad o — a USP, a Unicamp e a Federal do Rio — , havia 42 cursos de m estrado em pedagogia.

Por ou tro lado, havia uma grande dissensão dentro da SEAF. Por definição, os grupos que realizam em qualquer setor do conhecimento os traba lhos mais q u a ­lificados são minoria. Isso gerou dentro da SEAF uma tensão, porque os grupos majoritários, que realizavam um traba lho menos bom — para dizer o mínimo — , passaram a ter a hegemonia da instituição. Isso teve com o conseqüência o fato de os critérios de integração à SEAF ficarem cada vez mais frouxos, e os grupos que faziam um traba lho de melhor qualidade se rebelavam, ou pelo menos não gosta­vam do com portam en to da m aioria da SEAF. Então havia briga den tro da Socie­dade. Além disso, a SEAF não representava apenas a pós-graduação, mas tam bém todas as graduações. C om o CHAPES e C N P q, naquela ocasião, estavam investindo essencialmente na pós-graduação, induziram a criação da ANPOF.

C om o é que eu a avalio hoje? A pós-graduação no Brasil cresceu m uito e com grande rapidez (embora seja relativamente nova). Isso foi inevitável porque, na época da criação da A N PO F, para qualquer depar tam ento de filosofia ter dinheiro, era necessário ter um a pós-graduação . A CAPES e o C N P q só pun h am dinheiro no m estrado e no dou to rado . Isso im ediatam ente estimulou a criação, um pouco sel­vagem, de m estrados e dou to rados , e muitos departam entos não eram qualificados para esse tipo de trabalho.

Além disso, há um problem a federativo que não parece ser solúvel a curto prazo: sanar o desequilíbrio que há entre N orte e Nordeste de um lado, e Sul e Sudeste de ou tro . Acompanhei esse problem a em particular na Paraíba. O Ministério da Educação e o C N Pq resolveram fazer o seguinte: para haver um a pós-graduação decente no N ordeste , eles concen tra ram investimentos maciços na Paraíba para a form ação de mestres e doutores no Rio, São Paulo, M inas, Porto Alegre ou no ex ­terior. O resultado disso foi o seguinte: os que se saíram melhor vieram para o Sudeste

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e ficaram. Enfim, é assim que as coisas se passam. M as, mesmo assim, as pós-gra- diiações permaneceram e cresceram. Isso acabou por introduzir procedimentos pouco seletivos na A N PO F. Por exemplo, os Congressos da A N PO F se realizam a cada dois anos e há uma comissão que seleciona os traba lhos que serão apresentados. Isso cria problem as da seguinte ordem: recusa-se um traba lho de pós-graduação da USP porque não é considerado suficientemente e laborado para ser apresentado no Congresso. Ao m esm o tem po, pode-se aceitar um traba lho de um professor muito pior do que o primeiro, que não pode ser recusado para não criar um a atmosfera belicosa. Flá, então , essa dificuldade de coexistência dentro da A N PO F de níveis de pós-graduações muito dispara tados, que reflete as divisões nacionais.

N o en tan to , a A N PO F exerce um traba lho m uito im portan te , pois as pós- graduações de m elhor qualidade acabam tam bém es tim ulando as de pior qual ida­de a melhorar, e, em relação a com o estava o Brasil, houve uma melhora perceptí­vel e importante. Pouco a pouco as coisas tendem a melhorar. Avalio-a, por tan to , de maneira bem positiva. C laro que há tam bém , com o em qualquer área, o p roble­ma das avaliações. N inguém gosta de ser mal avaliado e ocorrem brigas e dissen- sões. -Mas, devagarinho, as coisas estão indo. Acredito que a A N PO F faça um bom traba lho . As suas reuniões a cada dois anos reúnem uma quan t idade imensa de estudantes, professores e curiosos, o que permite que a gente tenha um a idéia do que se faz em filosofia hoje no Brasil, e quais são as suas direções dominantes (mesmo que circunstanciais).

O senhor é conhecido nos círculos filosóficos como um arguto leitor de textos alheios, que sempre se modificam após suas sugestões e comen­tários. No entanto, o senhor ptdylica relativamente pouco. A que se deve isso?

Claro que há uma parte psicológica, uma inibição para a escrita. E essa inibição possivelmente vem de fumos literários que tive na adolescência. “C om eti” sonetos, “com eti” contos etc. N unca fiz uma investigação sistemática com auxílio de um terapeuta para saber de onde vem essa minha inibição com a escrita. Então, vamos deixar de lado essa parte, já que a ignoro.

A outra parte dessa inibição vem do seguinte: é im portan te que se publique muito no Brasil, sobretudo em filos(ífia, para se criar uma tradição que ainda não temos. É necessária uma m udança até mesmo de vocabulário , pois se a gente vai, por exemplo, traduzir um tex to clássico alemão, existem dificuldades que nos le­vam a ter de inventar palavras, devido ao fato de o português não possuir palavras correspondentes às palavras de língua alemã. Então, essas publicações são im por­tantes para estabelecer uma com unidade que possa debater um texto escrito em português, que possa saber o que uns e ou tros pensam e que tam bém possa fixar um vocabulário com um de filosofia no Brasil. N o en tan to , nos últimos anos, há um excesso de publicações — e estou falando em relação ao cenário tan to nacional q u a n to internacional. N ão sou in teiramente desfavorável a alguns incêndios de “bibliotecas de A lexandria” . Claro que isso é uma brincadeira, mas é necessário pensar esse estímulo desvairado à publicação. forma pela qual está sendo execu­tado esse processo no m undo inteiro, e mais recentemente no Brasil, deve sofrer um

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procedim ento qualquer de seletividade, de tal maneira que as pessoas não sejam julgadas pela quan tidade daquilo que publicam, mas pela qualidade do que publi­cam. Esse problema prejudica, por e.xemplo, os mestrados e doutorados, pois quanto m aior tor o núm ero de teses defendidas na pós-graduação, maior é o núm ero de bolsas que o p rogram a recebe. Isso tem um resultado: as pós-graduações se to rnam cada ve7. mais complacentes. M esm o quando um a pessoa vai ser avaliada para um projeto de pesquisa no CN Pq, conta o núm ero de artigos publicados. Q u an d o es­tava na CAPES, junto com o professor Ricardo Terra, achávamos que o fato de uma pessoa ter muitos artigos publicados não queria dizer nada, pois poderia ser tudo um a porcaria . Um sujeito pode ter escrito apenas dois artigos, mas artigos que são fora do com um . Essa é a racionalização da minha incapacidade de escrita. Escrevo m uito, mas, de fato, tenho dificuldade em publicar. Publico as únicas coisas que têm algum interesse q u an to à qualidade, e tenho uma certa rebeldia à quantidade de publicações. Espero, esse ano, ter finalmente alguma coisa de interessante para publicar sobre a questão do tempo.

Seria possível falar de uma “filosofia brasileira”? Como o senhor vê asrelações entre a filosofia e a cultura brasileira?

A expressão “ filosofia brasileira” é realmente am bígua e tem dois significados di­ferentes: o primeiro é inocente, trata-se da filosofia que se pratica no Brasil; o se­gundo já não é inocente, pois trata-se de um a filosofia que possui teses, conceitos e a rgum entos que são específicos ao Brasil, assim com o haveria um a filosofia perua­na e, eventualmente, um a filosofia gaúcha [risosj. C om isso, a filosofia brasileira deveria ser dividida em filosofia paulista, gaúcha, goiana etc.

O traba lho de filosofia feito no Brasil, o único t raba lho que me parece possí­vel, é aquele cuja matriz é ocidental, e cujas raízes fundamentais são os gregos, o direito rom ano e o cristianismo. Por ou tro lado, se se considerar que existe um es­tilo de filosofia que se faz em um país, torna-se perfeitamente legítimo falar em uma filosofia alemã por oposição a uma filosofia inglesa, a uma filosofia francesa etc. O r t o s países privilegiam temas em detrim ento de ou tros que são privilegiados por outros países. Por exemplo; o idealismo não é um tema exclusivamente alemão, mas predom inantem ente alemão, assim com o o em pirismo é um tema predom inan te­mente inglês e o racionalismo é um a característica da filosofia na França. Nessa acepção do fazer filosofia, penso que o Brasil ainda não possui um estilo próprio , mas, talvez, comece lentamente a esboçá-lo e comece a introduzir um a certa forma argumentativa dominante de filosofia. N ã o se pode esquecer que a filosofia no Brasil, talvez por sua proveniência jurídica, acen tuou muito a retórica. Se se ler os textos de filosofia do coineço do século XX , percebe-se com o eram retóricos e pouco argumentativos. Penso que progressivamente a idéia de a rgumentação tornou-se um ponto im portan te na filosofia do Brasil, assim com o o fato de considerar que uma idéia clara não é necessariamente uma idéia trivial e que uma idéia obscura não é necessariamente uma idéia profunda . Nesse sentido, talvez seja permitido pensar cm algo que possa vir a se cham ar filosofia brasileira.

A segunda parte da pergunta é mais difícil e espinhosa. A pergunta não deve­ria ser sobre “ as relações entre a filosofia e a cu ltu ra brasileira” , mas sobre “as

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relações entre a filosofia e ” — o que? — “cultura brasileira con tem porânea?” — o que isso quer dizer? Uma coisa é certa: a maior parte daquilo que se faz em filoso­fia no Brasil é esotérica, faz-se em determ inados grupos. Às vezes me ocorre dizer que nós estamos num a situação cultural semelhante àquela dos monges medievais que preservavam m anuscritos cuja utilidade e cuja relação com a cultura eles não sabiam qual poderia vir a ser. .A gente em parte faz isso com a filosofia, ou seja, a gente preserva um certo patrimônio cultural sem saber se um dia ele será novamente apreciado, novam ente utilizado etc. C laro que isso é um pouco exagerado, mas a filosofia no Brasil, por enquan to , está ausente e m uito distante do debate público. Isso se deve em parte tam bém à espantosa ignorância na qual se faz o debate públi­co hoje no Brasil. As duas pessoas com formação filosófica que intervieram no debate público no Brasil foram Giannotti e M arilena |C hau i | . E o resultado disso é o se­guinte: se Ciiannotti utiliza a sua form ação filosófica para a exposição de alguns argum entos sobre a situação política do país, torna-se incompreensível, porque o público nâo tem uma form ação mínima que permita com preender alusões daquela natureza. É possível fazer a com paração com o debate público estabelecido na Ale­m anha: H aberm as escreve no Die Zeit com grande grau de sofisticação intelectual e filosófica, e é com preendido e refu tado por ou tras pessoas que não são necessari­am ente especialistas em filosofia. Já aqui, no Brasil, o d istanciamento é de tal o r ­dem que esse tipo de debate não é possível tal com o ele acontece na França, na A lemanha e na Inglaterra. Isso é um ponto . O ou tro ponto é o seguinte: a filosofia internacionalmente perdeu a posição única que ela ocupou na cultura ocidental até o final da Segunda G uerra .Mundial. Os dois últimos filósofos de repercussão fo­ram Jean-Paul Sartre e Bertrand Russell. Sartre aparecia na televisão, todo m undo queria saber quan tas mulheres tinha tido Russell nos últimos meses, e o que Sartre andava fazendo no Boulevard Saint Michel. Esse tipo de relação entre o filósofo e a cultura desapareceu talvez definitivamente. Houve um distanciamento grande entre a filosofia e a cultura. Em par te tam bém pelo ex trao rd inár io ab as ta rd am en to e complacência da cultura e da sociedade no Brasil. N ão sei quais são as causas que levaram à aceitação de qualquer porcaria com o se fosse um a expressão cultural. E a considerar, por exem plo, que C aetano Veloso é um grande poeta. Se C aetano Veloso passa a ser considerado um grande poeta é porque alguma coisa está p ro ­fundamente doente na nossa cultura.

A sua produção se caracteriza por ter como referência textos clássicos da filosofia. Nesse sentido, ela poderia ser colocada sob a rubrica “his­tória da filosofia”. O senhor vê oposição entre fazer história da filoso­fia e fazer filosofia?

Depende de com o se entendem essas duas coisas. Faria a seguinte brincadeira: a filosofia sem a história da filosofia é cega, e a história da filosofia sem a filosofia é vazia. H ouve no Brasil uma m udança , talvez ainda em andam ento , na m aneira de considerar a história da filosofia. Houve um período em que a história da filosofia tinha com o uma espécie de prescrição metodológica reproduzir de maneira siste­mática o pensam ento de um au tor, e pon to final. Uma caricatura disso consistiria no seguinte: o que a história da filosofia deve fazer é reproduzir aquilo que o au to r

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disse e acabou. Uma outra maneira igualmente caricatural da história da filosofia encontra-se com muita freqüência na história da filosofia p raticada pelos ingleses analíticos. Consiste em pensar que “os grandes pensadores” , alguns colegas mais antigos de Cambridge e de O xford , tinham até algumas idéias bastantes legais. M as nós, hoje, sabemos m uito mais graças à lógica fregeana. Lemos esses autores para a fastar o grande num ero de bobagens que escrevem e encontrar porventura algu­ma idéia interessante. Esses dois equívocos, em relação à história da filosofia, es­tão pouco a pouco sendo evitados no Brasil, em que se começa a ter um cuidado crescente em perceber que os pensadores clássicos não pensavam necessariamente com o nós fomos habituados a pensar. Isso tem a seguinte vantagem: reconhecer um pensam ento alheio facilita reconhecer as nossas próprias opções e decisões funda­mentais. Funciona, muitas vezes, com o um contraste: se uma pessoa reconhece uma tese alternativa, torna-se possível a ela reconhecer que a sua tese tem alternativas, e, po r tan to , isso faz com que ela com preenda melhor os seus próprios argumentos. Isso é uma vantagem que está sendo largamente disseminada.

Gosto muito da frase de um filósofo medieval — se não me engano, S. Boa- ventura. N aquele tem po, cultivavam-se m uito os gregos, sobretudo P latão e Aris­tóteles, e os com entadores medievais não se privavam de localizar erros nesses dois filósofos. Esse filósofo medieval recebeu uma crítica que dizia o quão ridículo era um filósofo menor com o ele ousar criticar Aristóteles. Ele deu um a resposta sim­ples: “ realmente sou um anão, mas um anão em om bros de gigante. Então vejo mais do que o gigante vê” . Isso permitiu um grande respeito ao pensam ento dos clássi­cos, mas, ao mesmo tempo, a consciência de que esse respeito não é uma subserviên­cia, isto é, respeito n ão significa aceitação de argumentos de autoridade. .Mas in­sisto na frase inicial: julgar que se possa fazer filosofia ignorando a história da filo­sofia é cegueira, do mesmo m odo que fazer história da filosofia sem um esforço de pensam ento filosófico é vacuidade completa. N ão sei quem disse: “ ignorar a histó­ria da filosofia é condenar-se a repeti-la” . Então vam os ganha r tempo.

Quais são os filósofos brasileiros mais importantes?O conceito de im portância varia segundo diferentes critérios. Uma coisa é ser im ­portan te para um propósito , ou tra coisa é ser im portan te p ara um o u tro propósi­to. Uma faca pode ser im portan te porque é ótima para co r ta r determ inada coisa, e ou tra faca pode ser igualmente im portan te por ter pertencido a N apoleão . São cri­térios to ta lm ente distintos de im portância . Q uero destacar, em primeiro lugar, o seguinte: o papel que a Universidade de São Paulo teve, em relação ao resto do país, na construção de uma filosofia profissional. Cruz Costa, Lívio Teixeira e, sobre tu ­do, a tr indade form ada por G iannotti , Porchat e Bento tiveram uma grande im por­tância — diria até que são os primeiros profissionais de filosofia no Brasil. Em se­gundo lugar, penso em Porchat e a sua invenção do Centro de Lógica no D ep a rta ­m ento de Filosofia da Unicamp. Ele inventou o debate filosófico no Brasil, a dis­cussão acesa que não é vista em termos pessoais. Devo destacar tam bém o t ra b a ­lho único feito no Brasil por G uido de Almeida e Raul Landim: a única escola de filosofia que há neste país — uma coisa realmente ex traord inár ia que os dois con ­seguiram fazer. E en tendendo p o r escola não algo que tem uma unidade do u tr in á ­

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ria, mas algo que tem um a ex traord inár ia convergência de interesses temáticos e um certo estilo argumentativo . Isso permite, po r exemplo, identificar, por meio da pergunta de alguém em plenário, se essa pessoa foi aluna do Guido ou de Raul. Eles têm uma escola muito im portante, e foram capazes de form ar um grupo de alunos que. hoje, são dos mais promissores professores de filosofia do país. Por razões com pletamente diferentes, destaco tam bém o traba lho da professora M arilena, que teve uma importância muito grande. Por razões similares à im portância do t r a b a ­lho do professor G iannotti. T an to M arilena, q u an to G iannotti , foram os que mais d iretamente se em penharam em apresentar a filosofia num debate sócio-político- cultural do país. É bem verdade que nem sempre com muito sucesso, mas isso p o u ­co importa. Os dois foram os que mais expuseram a filosofia ao debate público. ■Além disso, há tam bém os traba lhos de tradução, que, em bora tenham sido feitos num a quan tidade m uito pequena, tiveram uma grande im portância para a fo rm a­ção e desenvolvimento da filosofia no Brasil. Penso na coleção O s Pensadores, e Porchat foi um dos principais incentivadores dela.

N ão se pode esquecer tam bém do padre H enrique Cláudio de Lima Vaz, que teve um lugar destacadíssimo na história da filosofia nacional. Com sua erudição ex traord inária , teve sempre clara, não obstante ser jesuíta, a consciência da dife­rença entre a filosofia e as suas convicções religiosas. Padre Vaz, pela vastidão de sua cultura, introduziu no debate contem porâneo filósofos que eram pouco conhe­cidos ou invariavelmente negligenciados, com o por exemplo Hegel na década de 60. Enquanto G iannotti fazia o seu dou to rado sobre Stuart Mill e a tradição da USP estava essencialmente voltada para o pensamento francês, devido a Cruz Costa e Lívio Teixeira, padre Vaz tinha um espectro de interesse muito mais am plo do que em qualquer ou tro local da filosofia no Brasil. Isso foi im portan te porque abriu o cam po de interesse filosófico para além daquilo que era feito, sem prejuízo da n o ­tável qualidade de clareza e penetração dos argum entos de padre Vaz, um excelen­te filósofo. T am bém merece destaque sob esse aspecto o professor Gerd Bornheim. Foi graças a ele que aqui no Rio G rande do Sul e no Brasil começou-se a falar em Heidegger. O primeiro curso que fiz com o professor Gerd, isso deve ter sido em I960 , era um seminário sohre O que é a metafísica. Heidegger era um ninguém, um desconhecido aqui, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Gerd Bornheim foi um dos primeiros a publicar sobre Heidegger e toda a tradição existencialista, Sartre e Merleau-Ponty. Foi graças a ele que esses pensadores passaram a adquirir a im por­tância que vieram a ter na década de 60 no Brasil.

Que conceito(s) de sua reflexão o setthor destacaria cotno o(s) mais represetítativo(s) de sua posição filosófica? Pediríatnos que o senhor tios cotitasse cotno ele(s) surgiu (ou surgirattt) em seu trabalho e cottto o(s) vê hoje.

É mais ou menos inevitável que eu me refira aos meus interesses atuais. M as vou procurar refazer a gênese desses interesses, que talvez desconheço. Q u an d o lecio­nava epistemologia na Unicamp, preferencialmente traba lhava com epistemologia das ciências hum anas. O brigatoriam ente então , em razão desse com prom isso com a docência, passei a exam inar o debate clássico do século XIX entre as ciências do

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espírito e as ciências naturais , um debate que começou na Alemanha. Sempre dei­xou-m e fascinado e in teressado a tese segundo a qual o m odo de com preensão dos fenômenos hum anos é irredutível, ou pelo menos diferente do m odo de c om preen­são dos fenômenos naturais. Isso era uma convicção provavelmente infantil que eu tinha, provavelmente de origem religiosa. Q u an d o eu era religioso, acreditava no pecado e na responsabilização. P ortan to , era obrigado a acreditar na liberdade — não se pode ser responsável se não se é livre. M as se se aceita essa tese simples, ou seja, a possibilidade de que os atos hum anos sejam livres e que pelo menos algu­mas coisas da realidade são resultados de ações livres, en tão se terá alguma dificul­dade em sustentar que o mecanismo de explicação desse tipo de acontecim ento da realidade seja simétrico, ou idêntico, ao mecanismo de com preensão dos aconteci­mentos naturais. Isto foi um tema que sempre me fascinou e, com o já disse, q u a n ­do fui a Louvain eu tinha aquele projeto megalômano — aliás, com o convém quando se tem vinte anos — de es tudar S. Tom ás, Leibniz e Hegel. E o que me fascina até hoje em Leibniz é a idéia segundo a qual tudo aquilo que acontece, o fato de es tar­mos aqui, po r exemplo, está desde sempre escrito na essência individual de cada um. Q u an d o Deus fez o m undo , sabe-se lá quando , esse fato já estava previsto. Se é assim, en tão maktub. M as Leibniz diz que não, e em vários textos desenvolve a r ­gum entos de extrem a finura para m ostra r que não existe nenhum a incompatibili­dade entre tudo aquilo que em um ser qualquer, inclusive nos seres hum anos, está rigorosamente determ inado e alguns atos absolutam ente livres, nâo obstante serem tão determ inados q uan to quaisquer ou tras coisas. N o en tan to , nunca achei a solu­ção leibniziana satisfatória. Às vezes, em filosofia, acha-se intuitivamente um a r ­gum ento insatisfatório, mas não se consegue localizar onde é que ele derrapa. Em filosofia a gente aprende, com o tam bém em qualquer ou tro setor da cultura, inicial­mente com um mal-estar com um a afirmação, para depois p rocurar saber de onde provém esse mal-estar e localizar onde está o erro, ou a derrapagem que o induziu. Eu tinha en tão , tan to pela form ação religiosa quan to pelo interesse por Leibniz e por Hegel, um a preocupação central com a noção de liberdade e com a família de noções que gravitam em to rno dela.

Em razão do meu constante interesse por S. Tom ás de Aquino, passei ta m ­bém a me interessar por Aristóteles. E esse filósofo tem um tex to absolutam ente genial que é o capítulo IX do Tratado da interpretação. Cos tum o apresentá-lo da seguinte maneira: parece que há um argum ento nesse capítulo de um jovem lógico— os eruditos dizem que, se ele não foi a luno de .Aristóteles, foi quase con tem po­râneo dele — que tom a frases de Aristóteles e m ostra que são inconsistentes entre si. M as essas não são frases quaisquer, são frases da Lógica de Aristóteles. A res­posta de Aristóteles é a seguinte: “ fui eu que inventei essa brincadeira, en tão vou m ostrar que esse jovem não a entendeu d ire i to ’". Aristóteles dá assim um lição de lógica e de metafísica a esse jovem. M as a idéia de Aristóteles consiste em que, em primeiro lugar, não há com o compatibilizar, ao contrário do que Leibniz preten­de, o determinismo dos acontecim entos com a liberdade dos agentes; diz que essa com patibilização é impossível. E, em segundo lugar, que essa incompatibilização em nada afeta a validade dos princípios lógicos. A m inha idéia, então, é a seguinte: .Aristóteles só pode fazer isso com os princípios lógicos se ele os temporalizar. Pode-

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se, por exemplo, formular o princípio de não-conrradição à maneira de Parmênides, ‘‘o ser é, o não ser não é” , mas não é assim que Aristóteles o formula. Ele o fo rm u­la introduzindo curiosamente a noção de aspecto, que vai ser traduzida por p ro ­priedade, e a noção de tempo: “o mesmo não pode ser e não ser ao mesmo tem po sob o mesmo aspec to” . Isso acontece do mesmo m odo com o princípio do “ tercei­ro exc luído” e do mesmo m odo com o princípio de identidade. Então passei a me interessar fortemente peia noção de tem po, sobretudo pela relação que a noção de tem po tem com a noção de ação. E penso ter encon trado em Aristóteles dois con ­ceitos de tempo: um conceito perfeitamente adequado à esfera dos acontecimentos determ inados, que se poderia cham ar de acontecimentos m eram ente físicos, e inna noção de tempo irredutível a essa primeira e que é específica dos com portam entos hum anos. Aristóteles se apercebeu dessa distinção. Esses temas que mais me inte­ressam são puram ente especulativos ou teóricos, mas tam bém possuem relevância prática. Isso é um a convicção minha: se as ações hum anas são estritamente deter­minadas, en tão certas práticas e doutr inas ético-políticas tornam -se ininteligíveis.

Da pequena parte publicada de sua produção, parece constante a per­gunta pelas relações entre teoria e práxis, pelas relações entre a pergunta pela verdade e a pergunta pelo fundamento da ação, enfim, pelos lia­mes e distâncias entre saber e fazer. Em seu artigo “Saber, fazer e tem­po: uma nota sobre Aristóteles”, publicado no volume em homenagem aos sessenta anos de Guido Antonio de Almeida e Raul Landim Eilho, o senhor aponta o tem po (e os diferentes sentidos de tempo) como ele­mento essencial a distinguir ação e conhecimento. Estaria a i a raiz das dificuldades de relacionamento entre ciência e ética no mundo modemof

A pergunta é de uma am plitude que intimida, não saberia responder. Eu contra- perguntaria da seguinte maneira: quais dificuldades, em particular, você tem em vista quando fala das dificuldades de relação entre ética e ciência? Porque existem várias dificuldades de variados tipos.. .

Estou pensando particulannente na origem da sua última resposta, que era justamente a escola histórica alemã. Essa tentativa de distinguir rigidamente os domínios da natureza e da cultura, para que a lógica de um domínio não invada a lógica do outro domínio, com todos os problemas que essa distinção acarreta.

Q uero fazer, primeiro, uma observação bem ingênua e lateral a esse respeito. T e­nho uma impressão muito esquisita acerca da ciência contem porânea, muito excên­trica. Essa excentricidade baseia-se no seguinte: na história da cultura hum ana nunca se teve ta m anho senso de historicidade, isto é, um senso segundo o qual as coisas variam muito e fortemente segundo o tempo. Por exemplo: duran te um bom par de milênios, boa parte da humanidade acreditava que o sol girava em torno da Terra. O ra , as pessoas não eram necessariamente menos inteligentes do que os as trônom os dos séculos X \T e XVII, e não eram tam bém necessariamente menos descuidadas em suas observações. Nesses dois séculos, passa-se acreditar no oposto. Em qualquer setor do conhecim ento hum ano , verificam-se fenômenos análogos a esse tipo de

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questão: du ran te certo tem po algo é tom ado por verdadeiro, e, depois, aquilo que era tom ado com o verdadeiro passa a ser tom ado com o falso. Tem-se aí a tentação do relativismo, isto é, nunca se tem a possibilidade de determ inar que algo é verda­deiro, mas somente a possibilidade de tom ar algo com o verdadeiro, correndo o risco de am anhã isso ser tota lmente falso. Então, po r um lado, a ciência contem porânea desenvolveu fortemente esse senso da sua própria historicidade; por o u tro lado, a ciência moderna parece esquecer esse sentido da sua própria historicidade e se apre­senta com a explicação última acerca da realidade. A maioria dos filósofos da ciência, não dos cientistas, considera que a ciência contem porânea e um a espécie de es tá­gio final do pensam ento científico, com o se pensava que a filosofia seria esse es tá­gio final. Isso é um a mistificação com pleta do conhecim ento científico, que não corresponde à atividade científica. As cham adas ciências hum anas tam bém foram vítimas, ou p rodu to ras , de um ou tro tipo de mistificação, a saber: apresentarem-se nas suas esferas de a tuação com o mesmo grau de “ex a t id ã o ” e “certeza” que se encontra no dom ínio das ciências naturais. A economia, por exemplo, é um a frau­de, não no sentido m oral, mas no sentido cultural. Os economistas possuem uma respeitabilidade social fora do com um , não há um acontecim ento que ocorra para o qual um economista não é cham ado a opinar e, tanto quanto eu saiba, nunca foram capazes de acertar uma única previsão. De onde vem esse incrível prestígio social dos economistas senão do fato de eles se auto-apresentarem com o cientistas? Eles dizem: “nós sabemos, conhecemos os m ecanism os” , ou seja, em ciência isso quer dizer que conhecem as leis que determ inam que tais coisas acontecerão assim e não de um a ou tra maneira alternativa. Essa hegemonia cultural que a ciência passou a assumir, hegemonia essa que era até en tão ocupada pela religião, é incompatível com a ética se, primeiro, o senso de historicidade do pensam ento desem bocar num relativismo e, segundo, se a perda do senso de historicidade do conhecim ento de­sembocar num a espécie de determinismo abso lu to do com portam en to hum ano , no afas tam ento com pleto da responsabilização. .Agora, isso não é um problem a da ciência propriam ente dita, mas mais um problema dos filósofos da ciência. Os cien­tistas, pelo contrário , estão fortemente interessados em problem as éticos.

Nas linhas finais de seu artigo “Sur une critique de la raison ju rid ique”, podemos 1er: “devo acrescentar que existem ainda em Kant questões muito importantes que continuam a aguardar uma resposta definiti­va. Mas, como já se disse, tenho por vezes o sentimento de que as mais importantes ainda não foram formuladas”. Quais seriam essas questões?

Uma delas é a seguinte: Kant distingue claramente, ou pretende distinguir claramente, razão teórica e razão prática. Ao mesmo tem po, insiste profundam ente na unidade da razão, d izendo que não são duas razões, mas que são dois m odos de utilização de um a única razão. Ao lado disso, ele afirma tam bém que os resultados obtidos através da razão teórica são de um certo tipo, e os resultados obtidos mediante o uso prático da razão são de um ou tro tipo com pletam ente diferente. O uso da ra ­zão teórica permanece no dom ínio fenomenal, no dom ínio do estrito determinis­mo, e o uso prático da razão vai além do dom ínio fenomenal, vai para o transcen­dente, porque a existência de Deus e a im orta lidade da alma passam a ser postu la­

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dos racionais da razão prática. Essas teses kantianas a respeito da unidade da ra ­zão, do uso teórico e do uso prático da razão, permanecem obscuras até hoje. Essa dificuldade tam bém vem de um pensam ento bem mais antigo, de Aristóteles por exemplo, quando ele trata do que cham a de silogismo prático, por contraste e com ­paração com o silogismo teórico. Esse é um problem a que K ant herda e não é ca­paz de form ular de maneira to ta lm ente persuasiva.

Há ainda um a segunda dificuldade, esta de natureza pessoal. Refere-se ao conceito de natureza de Kant e o conceito de natureza dos clássicos. Penso que Kant aceita em parte a tese hum eana segundo a qual não se pode deduzir nenhum a p ro ­posição norm ativa de proposições descritivas, ou seja, que o real é m oralm ente neutro. C laro que essa concepção é com pletam ente incompatível com a concepção medieval. Lem bro-me de um exem plo de H um e p reocupado em m ostra r que de proposições descritivas não se podem deduzir proposições normativas, por tan to , que não se podem justificar as segundas pelas primeiras. Ele diz o seguinte: “ por que você faz tal coisa? Porque sou cristão e é um m andam en to divino que tal coisa deva ser feita. M as por que você acata o m andam ento d iv ino?” . O ra essa é uma pergunta provavelmente ininteligível para um pensador medieval. O conceito de natureza, em Kant, é m uito p róxim o do conceito hum eano de natureza. E isso ta l­vez seja um dos elementos de compreensão da separação que Kant termina por fazer entre razão teórica e razão prática. Essa separação, não obstante as reiteradas afir­mações da unidade, não é absolutam ente compreensível. Essa é uma das perguntas que gostaria de ver adequadam ente form uladas e respondidas.

Nesse mesmo artigo, “Sur une critique de la raison ju rid ique”, o senhor afirtna o seguinte: “o pensamento crítico pretende-se uma ciência do ser verdadeiro”. Isso não significa imputar a Kant uma ontologia que o criticismo teria superado?

T odo o m undo aceita o critério aristotélico da verdade e não propriam ente a d o u ­trina aristotélica da verdade. Q u an d o digo que as coisas são de um certo jeito, e as coisas são do jeito que digo que elas são, en tão estou dizendo a verdade. Q u an d o digo que as coisas são de um certo jeito, e as coisas não são do jeito que digo, en­tão estou d izendo o falso. O s filósofos medievais, em especial S. T om ás de .Aquino, introduziram a idéia de adequação e de concordância. Surgiu en tão a doutr ina da adequação: uma proposição é verdadeira se ela corresponde ao real, se ela é ade­quada ao m undo etc. Kant formula uma crítica a essa concepção da doutr ina da adequação e diz: “ Vamos considerar que o pensam ento é verdadeiro qu an d o ele corresponde àquilo sobre o que está pen san d o ” . C om o é que se determina que ele corresponde? N ão se tem nenhum ponto externo ao próprio pensamento que se possa ocupar para determ inar essa correspondência.

Aliás, é preciso lembrar que Kant é o único filósofo p ropriam ente ateu, em ­bora fosse extremamente religioso. T an to a fundamentação do conhecimento quanto a fundamentação da moral prescindem da demonstração da existência de Deus. Kant é o primeiro pensador do O cidente que foi capaz de uma em preitada desse tipo, pois todos os seus predecessores procuraram justificar o conhecim ento hum ano e a realidade da ação hum ana mediante algum recurso transcendente.

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Mas, fechado esse parêntese, o que faz Kant repetir Descartes? M ostra que não temos nenhum critério ex terno ao próprio pensam ento ao qual nós possamos recorrer para saber se o pensam ento é verdadeiro. Se o pensam ento é verdadeiro, e se nós somos capazes de reconhecê-lo com o verdadeiro, então é mediante certas propriedades que nós reconhecemos no próprio pensamento. O único acesso que temos à realidade é através do pensam ento da realidade. O que faz Descartes? In­troduz o critério da dúvida e diz o seguinte: “Um pensam ento é duhitávei se exis­tem razões para tom á-lo com o falso. C on tudo , se eu provar que existe um pensa­mento, ou um conjunto de pensamentos, que não seja passível de dúvida, então não posso tom á-lo com o falso e, por definição, eu o tom o necessariamente por verda­d e i ro” . Isso não é m uito diferente, do pon to de vista de estratégia, do procedim en­to kan t iano que consiste em dizer o seguinte: se eu dem onstro que um pensamento é universal e necessário, en tão eu tenho tudo aquilo que é razoável esperar para considerá-lo com o verdadeiro. Portan to , não preciso recorrer a nenhum a p roprie ­dade externa ao pensamento, senão a uma característica imanente a ele próprio. É somente nesse sentido que se pode dizer que o procedim ento criticista kan t iano é uma ciência do ser verdadeiro, desde que o ser verdadeiro seja tom ado nessa acepção.

Gostaria ainda de fazer mais um parêntese: em razão das causas psicanalíti- cas das minhas dificuldades em publicar meus textos, que caridosam ente deixamos sob silêncio, nunca corrijo os meus artigos. Então surpreende-me que eu tenha es­crito isso, pelo menos não me lembro de ter escrito.

Em sua história, a filosofia manteve uma relação estreita com as ciên­cias e o saber científico. Tal relação permanece até hoje? Como ela sedá na atualidade?

Vamos considerar um segmento de tem po um pouco maior do que a atualidade. T odos os grandes pensadores do século X X estiveram diretamente envolvidos com o desenvolvimento do conhecimento científico, em particular com o desenvolvimento de alguns setores desse conhecimento. Afinal, com as ciências naturais, nós tivemos nesse século duas realizações espantosas do pensam ento científico: po r um lado, a relatividade e, por ou tro lado, a física de partículas — a mecânica quântica . A pri­meira parece nos obrigar a alterar concepções tão fundamentais quanto as de espaço e tempo, e a segunda parece tam bém nos obrigar a alterar concepções muito originá­rias, com o a de causalidade, por exemplo. M exer com espaço e tempo e mexer com a causalidade é muita coisa. H á tam bém , no final do século XIX e começo do XX, o domínio das ciências formais. Kant escreveu que no essencial a lógica estava acaba­da, mas depois Frege inventa a teoria da quantificação. Ao mesmo tem po, os m a­temáticos resolvem fazer a teoria dos conjuntos, que, segundo a expressão de Flilbert, é o paraíso: “ N inguém vai nos expulsar do para íso c a n to r ia n o ” . O que tem de paradisíaco no paraíso cantoriano? Tudo aquilo que a matemática até então conhecia pode ser expressado pela teoria can toriana . Essa teoria unifica tudo, pois não se conseguia unificar a álgebra com o cálculo e com a teoria de números. A teoria can toriana põe tudo isso no seu devido lugar. Bom, se ela é capaz de fazer coisas que nenhum a dessas outras teorias foi capaz de fazer, ela é o paraíso. .Vias, com o todo o m undo sabe, no paraíso há uma serpente. A serpente do paraíso can tor iano

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é a seguinte; a teoria cios conjuntos é paradoxal. Os matemáticos ficaram muito aborrecidos, pois en tra ram no paraíso e não conseguiram m atar a serpente |risosj.

Esses três desenvolvimentos foram muito im portantes para o desenvolvimen­to do pensamento. .Mesmo um filósofo com o Heidegger, que aparen ta ser distante dos desenvolvimentos formais — da m atem ática e da lógica — , m ostra um forte interesse pelo desenvolvimento da lógica fregeana em alguns de seus escritos inédi­tos (que agora estão sendo publicados). Ele dava cursos inteiros sobre esse tema. Russell nem se fala, em bora eu não o considere da mesma estatura de Heidegger e Wittgenstein. Este último passou a sua vida inteira, tanto no Tractatus quan to nas Investigações filosóficas, cham ando a atenção para a mistificação do conhecimen­to científico que acontece no nosso tempo. N o Tractatus a idéia era bastante clara: só a ciência é capaz de nos fazer com preender tais e tais coisas. .Mas, para as coisas realmente im portantes , a ciência é inútil. Já nas Investigações ele executa uma ope­ração com parável às das ciências físicas e formais. O seu projeto original era escre­ver, na segunda parte das Investigações filosóficas, sobre o funcionamento da m a­temática, coisa que nunca executou.

O problem a geral do nosso século foi. pelo menos até recentemente, com o descrevi. Ao mesmo tem po, no en tan to , é visível que a filosofia recua de maneira defensiva em relação à ciência. Hoje em dia, é m uito difícil um filósofo ter alguma audiência ao refutar, mediante argum entos filosóficos, argum entos científicos. O ônus da prova nunca é do cientista, é sempre do filósofo. Isso significa que, do ponto de vista social e da credibilidade, o cam po retórico está com pletam ente alterado. E o cientista quem ocupa o centro desse cam po e tem a presunção da verdade. E, do ponto de vista cultural, essa situação é profundam ente em pobrecedora , pois a filo­sofia tem de se defender e tornar-se respeitável perante a ciência, nem sempre com resultados favoráveis.

Hoje, nos Estados Unidos, existe um a coisa cham ada neurofilosofia, patroc i­nada pelo casal Church land , cuja empresa mais bem-sucedida é a neurociência. Eu fui contem porâneo de um ou tro em preendim ento , o da inteligência artificial. Esse em preendim ento começou com o projeto de tradução au tom ática , derivou para a inteligência artificial e, agora, estuda a neurociência. A tradução automática começou em 1960, patrocinada pelos governos norte-am ericano e russo, e queria encontrar p rogram as de com putação que fizessem a tradução au tom ática de uma língua para outra. Rios de d inheiro foram investidos, muitos pesquisadores passaram mais de dez anos t raba lhando , e o desastre foi completo. Depois disso, ninguém mais falou em tradução autom ática , to d o o m undo abandonou a idéia de traduzir Guimarães Rosa para o russo, ou Shakespeare para o chinês, com um program a de co m pu ta ­dor Irisosj. C]omeçou-se en tão a considerar o projeto da inteligência artificial: que um com putador , ou seja. uma m áquina incrivehnente limitada, que usa um frag­mento lógico minúsculo e que faz uma porcariazinha de cálculo, pudesse opera r da mesma maneira que o en tendim ento hum ano . Parcia-se en tão da seguinte co n s­tatação: ora. já que podemos simular esse com portam ento , quem sabe nós possa­mos simular tam bém todos os com portam entos hum anos inteligentes. Foram rios de dinheiro, muitos pesquisadores envolvidos, e. até agora. nada. Então, o projeto atual é a neurociência. isto é. encon trar a base neurológica dos cham ados co m p o r­

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tam entos inteligentes. Q ue isso seja um problem a de pesquisa notável, de biologia, de neurobiologia etc., não há dúvida. O problem a são os resultados filosóficos que são retirados a taba lhoadam ente disso. Essa neurofilosofia é o besteirol con tem po­râneo com o qual nós temos de conviver na relação entre filosofia e ciência hoje.

Desde Hegel, no século XDí, trava-se um debate sobre o fim da arte, sobreum possível desaparecimento do fenômeno estético em nossa socieda­de. Como o senhor se posiciona em relação a esse debate?

De fato sou um am ador em relação ã arte, num duplo sentido; primeiro no sentido etimológico da palavra — eu gosto de arte; mas tam bém no sentido corriqueiro da palavra — não sou um estudioso de estética. Leio de uma maneira amadorística livros sobre sociologia, história e filosofia da arte. Curiosamente, não acho que essa seja a pergunta mais im portan te que um filósofo deve form ular hoje, a saber; a pergun­ta sobre o fim da arte. Gosto m uito de um au to r norte-am ericano cham ado Arthur D an to , que passou a vida inteira querendo ser artista, não obteve sucesso e acabou to rnando-se filósofo. Agora, com setenta e poucos anos, é crítico de artes plásti­cas. A pergunta de D an to que me fascina é; quais sãos os critérios para se distin­guir alguma coisa que é uma obra de arte de ou tra coisa que não é uma obra de arte independentemente, ou melhor, antes de nos perguntarm os se é um a boa ou má obra de arte? Por exemplo; um curador de museu pega a lata de sopa Campbell’s de Andy W arho l e a com pra por não sei q u an to para o museu. Pode-se ir ao super­mercado e encontrar uma latinha igual àquela. Por que a lata do Warhol é uma obra de arte e a do superm ercado não é? D o mesmo m odo, pode-se com para r o vaso sanitário de D ucham p e um banheiro público, que não é um a obra de arte. Esta é um a pergunta filosoficamente fascinante, e, do pouco que conheço, a melhor res­posta é a do p róprio D anto , que consiste em dizer o seguinte; é impossível dissociar o conceito de obra de arte das intenções hum anas. “ Ser um a obra de a r te ” não é um predicado que a coisa tenha nela mesma, independentem ente da relação que ela tenha com os seres hum anos. Pelo contrário , ela depende das intenções daqueles que as fazem, isto é, dos artistas.

Qual é a diferença entre filosofia e literatura?Acho que a filosofia ainda preserva o seu ideal grego ao p rocu ra r com preender o ser enquan to ser, aquilo que existe na medida em que existe. O essencial da li tera­tura não é a com preensão direta daquilo que existe na medida em que existe, mas talvez o contrário; ela procura com preender aquilo que existe mediante compreen- sões alternativas, e po r meio da construção dessas alternativas. A literatura é um instrum ento insubstituível de com preensão da realidade justamente por não p ro ­curar entendê-la diretamente, mas com o uma alternativa dentre ou tras igualmente possíveis. U sando um vocabulário leibniziano, eu diria que a literatura é um exer­cício perm anente de construção de m undos possíveis. Nesse sentido, ela é insubs­tituível para a filosofia.

A segunda resposta que eu daria para distinguir filosofia de literatura ta m ­bém é igualmente clássica; desde Aristóteles a gente sabe que não se pode descre­ver e dizer um indivíduo na sua individualidade. S. T om ás vai dizer que o indiví­

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duo é inefável. Isso não tem nada de místico, é uma tese que se segue apenas con ­ceitualmente: um indivíduo, enquanto indivíduo, nunca poderá ser expressado ade­quadam ente em palavras, tan to em termos conceituais q uan to filosóficos. Eu pen­so que a literatura é justamente um instrumento que nós temos de apresentar uma situação individual na sua individualidade. Penso, po r exemplo, que um romance, um a tragédia, são os únicos instrumentos hum anos capazes de apresentar o indiví­duo com o tal. Isto é uma diferença fundam ental entre a filosofia e a literatura.

É hoje corrente o diagnóstico de que a política tem um novo lugar. Segundo esse diagnóstico, a política tal qual a conhecíamos era um fe­nômeno essencialmente nacional, e, atualmente, não seria mais etndente o pressuposto de um Estado Nacional como fonte e garante do direito e como detentor do monopólio do exercício legítimo da violência. Como o senhor vê tal diagnóstico? Na sua visão, a primazia de que parecem desfrutar as questões morais no debate público atual tem relação com esse novo estatuto da política em nossos dias?

Uma coisa é responder a essa pergunta em princípio, ou tra coisa é respondê-la le­vando em consideração a situação concreta na qual a pergunta é pertinente. Pri­meiro: ninguém recusaria a idéia de um tribunal internacional realmente neutro. Segundo: ninguém recusaria a idéia de uma força internacional capaz de d iminuir conflitos, desde que essa força internacional fosse realmente neutra. Dessa m anei­ra, nem o caso do tr ibunal nem o caso militar poderiam expressar interesses e p re­dileções de determinados grupos, sejam étnicos, econômicos, ou o que for. O ra , do ponto de vista teórico, a idéia de E s ta d o -\ 'a çã o está em crise, e é necessário que os intelectuais se ponham a pensar nas alternativas possíveis a essa idéia. N o entanto , esta crise do Estado-Nação está acom panhada por uma crise moral: não existe mais nenhum conjunto de regras de com portam ento , nenhum conjunto de prescrições de conduta que seja universalmente aceito. Pelo contrário , as pessoas acham que não existe tal conjunto, que ele não pode existir e que é ótim o que não exista. Dei­xem eu contar uma história: nesse m om ento , na CPI do mais famoso hospital de Porto Alegre, está se averiguando o caso de um a senhora de 88 anos que tem um conjunto de deficiências cardio-respiratórias. Ela teve uma esquemia cerebral p ro ­funda que atingiu o seu tronco, foi levada á UTI e está ligada a aparelhos. Depois de um determinado tempo, pouco a pouco foram restabelecidas as suas funções n o r­mais, particularm ente as respiratórias. Estabelecido um certo pa tam ar de funcio­nam ento respiratório , ela foi colocada num quarto . N o dia seguinte, im edia tam en­te ela teve uma parada cardio-respira tória , e voltou a ser ligada aos aparelhos. O cardiologista então pergunta para a filha dessa mulher: “Vamos t ra ta r agora da ressurreição?” . A filha diz: “ C om o assim?” . E o médico: “Q ueria saber, no caso de ela sofrer um novo episódio de parada cardio-respira tório , nós a reanim am os ou n ão?” . A pergunta é simples: uma pessoa ligada a aparelhos tem a perda de sua capacidade de consciência; se essa pessoa tem uma parada cardio-respiratória, ela deve ou não ser reanimada?

Vamos voltar então à questão do fim do Estado-N ação. Aparentemente não existe resposta, não se aceita esse tipo de questão. Algumas pessoas acham que não

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há o que fazer. Já ourras pessoas acham que em circunstância nenhum a, nesse caso, pode-se omitir socorro. Acho que a reflexão política contem porânea, ainda que não possa ser confundida com uma análise ética, não pode ser dela separada. Isso de um ponto de vista abs tra to . De um pon to de vista concreto, histórico, eu ignoro com o essas coisas se passam, em bora um a parte da imprensa considere que a cons­tituição dessas instituições transnacionais responde, na verdade, aos interesses norte- am ericanos e da Com unidade Européia. N o en tan to , antes de pensarm os em Esta­do transnacional, devemos pensar no Estado Nacional . Um país que jamais conhe­ceu o apogeu pode en trar num a sociedade sem Estado-N ação , sem jamais ter sido um Estado-Nação?

Em seu artigo “Sur une critique de la raison jurid ique”, o senhor escre­veu: “todos os deveres, enquanto tais, reduzem-se aos deveres éticos. Isto quer dizer que os imperativos juridico-políticos são formalmente h ipo­téticos. Se nós supomos sua condição (quer dizer, a lei moral) como dada, então sua justificação é puramente analítica”. Se interpreto bem, isto quer dizer que o “solipsismo” da prática kantiana não pode fun­dar o intersubjetivismo necessário do direito e da política. Como pen­sar então as relações entre direito e moral? Uma moral fundada inter- subjetivamente não poderia então estabelecer os laços com as exigên­cias próprias do direito e da política?

N ã o tenho cond ição sequer de esboçar um a resposta a essa pergun ta , mas vou em pregar o mesmo ardil que já empreguei anteriorm ente, o da contrapergunta . O que significa pensar um a moral fundada intersubjetivamente? Podemos pensar que uma moral só é fundada intersubjetivamente se todos os agentes concernidos por essa moral estiverem de acordo com as regras que a determinam. Nesse sentido, por exemplo, uma moral mafiosa é uma m oral intersubjetivamente fundada. A paren­temente todos os m em bros da família es tão de acordo com as regras. Agora, isso parece ser uma conseqüência indesejável para uma m oral intersubjetivamente fun­dada , porque as suas regras não apenas têm de ser em piricamente aceitas pelos in­divíduos concernidos, com o têm de ser racionais e necessariamente reconhecidas. Isso significa que a sua fundam entação em nada depende do seu reconhecimento intersubjetivo, pois ela pode ser procedural. Eu aceitaria, de maneira arbitrá ria , a concepção de moral de H aberm as, se ele me apresentasse um teorem a segundo o qual a decisão procedural excluísse o resto.

Qual é hoje a implicação moral da idéia de felicidade?Wittgenstein m orava no mesmo prédio em que m orava Russell. Ele tinha 19 anos e Russell tinha quarenta e tantos. Certa vez W'ittgenstein foi. por volta da meia-noite, à casa de Russell, e este lhe perguntou: “ N o que você está pensando, Wittgenstein? N a lógica, ou em seus pecados?” . Wittgenstein respondeu: “N o s dois" [risos]. M as o que eu quero con tar sobre a felicidade é o seguinte: certo dia, Russell perguntou a W'ittgenstein: “ Você quer ser perfeito?” . Ele respondeu: “ C la ro ” . C^omo se fosse óbvio para qualquer ser hum ano aspirar à perfeição! A noção de felicidade m oder­na tem um conteúdo relativamente preciso, que não tem mais nada a ver com o con-

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teiidü pensado pelos antigos. Tenho a impressão de que a cultura contem porânea é ex trem am ente platônica, por mais que isso possa parecer contrad itó rio . Platão, contra Aristóteles, afirmava um dualismo irredutível do ser hum ano: somos com ­postos de duas coisas e a nossa melhor par te é aquilo que veio depois a ser c h a m a­do de alma. Devemos usar o corpo dentro de limites bem precisos, devemos ter uma disciplina do corpo etc., subord inando todas as suas atividades e desejos às ativi­dades e desejos superiores da alma. O que é im portan te em Platão não é essa su­bordinação, mas a separação de duas atividades, de dois domínios com pletam ente independentes. ,Acho que a cultura contem porânea é platônica no sentido de ta m ­bém possuir domínios com pletam ente diferentes de atividades. De um lado, o d o ­mínio de atividades de um determ inado tipo, e, de ou tro lado, o dom ínio de ativi­dades de um ou tro tipo com pletam ente diferente, que, em Platão, seriam conside­radas com o atividades inferiores, atividades corporais . E difícil, po r exemplo, di­zer de maneira m inim am ente persuasiva que é melhor escutar Bach do que escutar “ rock pau le ira” . A resposta cultural é: “ Cada um na sua". Para a cultura con tem ­porânea, nâo há nenhum a razão objetiva para se afirmar que Bach é melhor do que “ rock pau le ira” , pois cada um escolhe a parte que acha mais ad equada para si mesmo. A cultura con tem porânea é platônica porque não junta mais as coisas. A felicidade na cultura contem porânea não é mais com o os antigos a tomavam : com o a realização perfeita daquilo de que o ser hum ano é capaz. .A felicidade, hoje, é socialmente apresentada com o consum o. Ser feliz é poder fazer coisas, em par t icu­lar ir a .Vliami uma vez por ano para com pra r quinquilharias. Há uma moça em São Paulo, m uito minha amiga, que leva adolescentes da alta burguesia paulistana para fazer um curso de inglês em Cam bridge e de francês na França. .A primeira coisa que os adolescentes fazem quando chegam a Paris é perguntar onde fica o M cD ona ld ’s e onde podem com prar blusões de m arca. Isso exprime no que consis­te a aspiração à felicidade dos brasileiros da nossa classe social, não a dos brasilei­ros em geral. Dos brasileiros em geral, a felicidade consiste nas coisas mais funda­mentais, com o com er, dorm ir , traba lho , saúde, educação etc.

Como o senhor caracterizaria a sua relação com a religião e a fé?N um a palavra; tenho respeito pela religião antiga tal com o ela se expressava até os anos 1950. F. tenho respeito pela fé, desde que não seja supersticiosa. N ã o sou re­ligioso e não tenho fé. M as quero fazer essa restrição pela seguinte razão: o cristia­nismo teve uma função cultural fundamental no Ocidente. Eu tive um a formação católica, estudei em colégio católico e lembro-me da fo rm ação que os jesuítas e dominicanos t inham naquela época. A religião hoje se expressa essencialmente a t ra ­vés do padre Marcelo, esse tipo de Xuxa católico que não se diferencia, no essencial, do bispo Edir M acedo. Os seus procedim entos são do mesm o m odo execráveis. Q u an to à fé, lançaria essa mesma reserva. As religiões atualm ente apresentam-se essencialmente com o mercadoria , e a d imensão especulativa das grandes religiões da palavra, das religiões monoteístas — o islamismo e o cristianismo — , perderam justamente aquilo que as distinguia: a relação com a palavra, com a justificação, com a a rgum entação , com a exegese etc.

B nlthazar B arbosa Filho 42.3

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Como 0 senhor se situa em relação aos problemas de uma “mudançade paradigma” da filosofia, de uma filosofia “pós-metafísica” calcadana linguagem?

É necessário que a gente se entenda quan to à expressão “ pós-metafísica” . M etafí­sica, na sua acepção mais precisa, significa aquilo que Kant eliminou na “ tarefa trans­cendental” , isto é, algo que com o ciência específica é impossível. Dessa forma, a filosofia kantiana é essencialmente pós-metafísica. M as há dois problemas aqui: pri­meiro, resta saber se os argum entos kantianos são probantes; segundo, se o fato de não fazermos mais ciência metafísica depende de provas que nos foram apresen ta­das e pelas quais fomos persuadidos, ou se depende de outros fatores extra-argu- mentativos, extra-racionais, ou seja, fatores contra tuais , culturais etc. A nossa cul­tura toda é antimetafísica, não é só a filosofia que é pós-metafísica. Essa é um a primeira observação que devemos fazer.

A segunda observação diz respeito ao fato de a filosofia, não obs tan te ser m aioritariamente pós-metafísica, cont inuar p raticando temas metafísicos e se inte­ressar fortemente por temas metafísicos como, por exemplo, a liberdade — um tema que é dom inan te em vastos setores da investigação filosófica. N ã o é ã toa que há um ressurgimento muito grande das cham adas teologias racionais.

A terceira observação que faço diz respeito a um a filosofia cujo pon to central é a linguagem. A linguagem só tem interesse para a filosofia na medida cm que: 1) nós tom am os a linguagem com o expressão do pensam ento , com o expressão da razão; 2) apenas a tom am os naqueles aspectos que são expressão do pensam ento e do hum ano; 3) nós a consideramos um a expressão de mais fácil acesso à com preen­são do que o próprio pensamento, do que a própria razão, isto é, que há caracte­rísticas da linguagem que não são expressão do pensam ento , ou que são específi­cas ã língua. Estudar a fonética, a sintaxe, a lingüística, não tem nenhum a relevân­cia filosófica. Acho que o maior filósofo da linguagem foi Aristóteles, ou Platão (isso depende m uito das preferências), e aquilo que no nosso século passou a ser c h a m a­do de filosofia da linguagem, no que havia de filosoficamente fecundo, não tinha nenhum laço necessário com a linguagem. E, naquilo em que havia necessariamen­te um laço com a linguagem, era filosoficamente escasso. Recorrer ao O ED (Oxford English Dictionary) para resolver problem as de filosofia é um dos piores procedi­mentos que eu já vi. Por ou tro lado, do ponto de vista metodológico, o recurso à linguagem é, com o qualquer ou tro , bem utilizado, de grande valia.

Como o senhor vê hoje a filosofia analítica?C om certeza já tem missa de sétimo dia, quiçá missa de um ano [risos]. Depende do que a gente entende por filosofia analítica, já que ela é um saco de vários gatos. Um dos gatos, um dos progenitores dessa prole, foi o neopositivismo lógico — uma peça de museu im portante, pois aprendem os muito com os erros alheios. N o caso do neopositivismo, sucedeu-se a filosofia da linguagem ordinária , que é uma filo­sofia m uito ordinária . N os anos 40, Wittgenstein disse um a frase de extrema cruel­dade: “A filosofia da linguagem ordinária não é filosofia, quando é filosofia é má filosofia” . T am bém a filosofia da linguagem ordinária não produziu nenhum re­sultado filosoficamente expressivo, não produziu nenhum esclarecimento im por­

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tante, sequer uma reform ulação cie questões filosóficas. O grande legado da filoso­fia analítica à filosofia contem porânea foi o restabelecimento da clareza, da distin­ção e da argum entação em filosofia. M as isso não é particular à filosofia analítica. Se se com para Platão a Aristóteles, Platão foi um dos clássicos da literatura grega, um dos prosadores que a Grécia jamais produziu novam ente, enquan to Aristóteles escreve m uito mal. M as são dois estilos de dem onstração com pletam ente diferen­tes, e não há razão a priori de privilegiar um em relação ao outro . H á, no entanto, um a diferença essencial que me faz preferir o estilo aristotélico ao estilo platônico: a diferença é que se pode ensinar o estilo aristotélico, enquan to que o estilo p la tô ­nico depende de talento. Poesia sem talento é um desastre, já a prosa sem talento não é tão desastrosa assim. Pode-se descrever, mesm o sem talento, o estado dessa sala, mas fazer poesia do estado dessa sala requer um talento extraordinário . En­tão, o legado da filosofia analítica é esse (e não defendo que seja o melhor): é mais fácil ensinar filosofia mediante os recursos da clareza, da distinção e da argum en­tação, do que ensinar a filosofia sob o m odo alusivo, em que o modelo fundam en­tal é a poesia, a alusão. .Agora, quando a poesia filosófica e a alusão filosófica se encontram , saem obras absolutam ente extraordinárias . M as é de chora r quando a gente lê alguns textos em que um sujeito quer fazer poesia filosófica e não sai d a ­quelas banalidades assustadoras. Espero que se reservem lugares para os grandes p rosadores da filosofia.

O senhor utilizaria o conceito de “utopia” para descrever sua visão dofuturo da sociedade humana? Em que consistiria tal utopia?

Vou responder essa pergunta em duas etapas: a primeira e tapa diz respeito ao que eu gostaria que fosse a sociedade hum ana. Nesse caso, eu me limitaria a um con ­junto de lugares-comuns atrozes. Então, passemos à segunda etapa. De um lado, correm os o risco de perder alguns valores universalmente respeitados e fundam en­tais: liberdade, igualdade, fra ternidade etc. De ou tro lado, se preservássemos as identidades culturais , isto é, se a diversidade de manifestações hum anas não se apagasse, não haveria M c D o n a ld ’s por toda parte. C ostum o dizer que só conheço três coisas que são realmente universais: a matemática, a Coca-Cola e o jeans. Na verdade, essas questões são desejos utópicos, porque, em bora não seja uma pessoa qualificada para justificar as percepções que tenho dos encam inham entos da socie­dade e da cultura contem porânea , o meu sentimento acerca disso é mais pessimista do que otimista. Penso que os valores universais não serão preservados, pelo me­nos num prazo que eu possa perceber — ou que meus filhos possam perceber. A homogeneização cultural, a banalização cultural, parecem-me também um fenômeno irreversível. Essas duas perdas são absolutam ente lastimáveis. Então eu tenho uma utopia positiva e um a desconfiança negativa.

Nossa sociedade produz incessantemente elementos autodestrutivos co­mo riscos ambientais globais, ameaças de desintegração social em largaescala e alienação cultural em massa. Como o senhor vê tais problemas?

N ão tenho uma opinião própria e clara acerca desses problemas. Vejo, de um lado, um a ideologia pseudo-científica d izendo que nós, seres hum anos, e a ciência em

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particular, sempre encontrarem os as soluções para os problem as que criamos. Isso é uma afirmação com pletam ente infundada e não verdadeira. Se fosse verdadeira, já teríamos alguma prova de que isso seja plausível ou aceitável. Por conseguinte, é perfeitamente possível que de fato estejamos criando problem as para os quais as gerações futuras não terão respostas adequadas e não disporão de recursos adequa­dos para resolvê-los. Se é provável? N ão sei. De ou tro lado, todas essas ca lam ida­des que são provenientes das ações hum anas, as calamidades ecológicas, parecem apresentar de maneira bem simples o seguinte problem a de filosofia, que me parece aceitável, e que nasce da seguinte suposição: nem nós, nem os nossos filhos seremos afetados diretamente e de maneira irreversível por essas calamidades ecológicas, mas as gerações do futuro, que ainda não existem, serão afetadas. A ques tão filosófica interessante é: em primeiro lugar, com o é que os interesses de seres que não existem devem determ inar a conduta de seres que existem? Em segundo lugar, sobre que fundam entos nós atribuím os direitos a seres inexistentes? N ã o estou dizendo que não se deve fazer, mas quero entender o porquê de fazermos isso, por que nós achamos que devemos fazer isso? C om o é que seres inexistentes podem ser sujeitos de direito?

Quais são os seus projetos atuais e futuros?Depois de am anhã , vou para Paris. H á dois anos e meio abriu uma vaga de profes­sor titular aqui no D epartam en to de Filosofia. Aposentou-se o professor Ernildo Stein e, com o sou o professor mais velho, há uma pressão amistosa dos mais jo­vens para que eu faça o concurso. Esse processo exige a apresentação de uma tese, en tão eu preciso de seis meses para te rm inar alguma coisa que tenha pelo menos com eço e meio — pois o que escrevi até agora só tem começo, não tem nem mes­m o meio. Pretendo, nesses seis meses, escrever, te rm inar e al inhavar notas sob a form a de um livro sobre a noção de tem po e ação. Tenho com o pon to de partida a tem poralização dos princípios lógicos de Aristóteles e um a análise do que acho ser o mais perfeito com entário , feito por Boécio, do capítulo IX do Tratado da inter­pretação. Ele tem dois com entários, sendo que um deles é genial. Depois, vou exa­minar o que significa o conceito agostiniano e boeciano de eternidade. Terminarei mais ou menos na direção em que se encontra a tônica da tese, isto é, a distinção de dois m odos diferentes da temporalidade: o m odo primitivo da tem poralidade, a tem poralidade hum ana ou da ação hum ana , e a tem poralidade física.

Vai ter primazia da prática?N ã o há primazia de nada sobre nada [risos]. Vai ter primazia do conceito prático de tempo sobre o conceito físico. Tenho ainda dois projetos a longo prazo: um li­vro que comecei a fazer sobre algumas estru turas de a rgum ento em filosofia. Vejo um a certa homologia entre a maneira com o Aristóteles “ dem o n s tra” o princípio de não-contradição e o princípio do terceiro excluído no livro IV da Metafísica-, a maneira com o Descartes dem onstra que a proposição “eu sou, eu ex is to” é neces­sariamente verdadeira qu an d o a penso ou a afirmo; e a “ Dedução transcendenta l” , sobretudo, a necessária aplicabilidade das categorias aos objetos da experiência em Kant. A idéia é a seguinte: não existe dedução estrita em nenhum dos casos, e nem pode haver. Descartes e Aristóteles dizem isso expressamente.

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(-)Lirra coisa que pretendo fazer é um artigo sobre a com paração entre a filo­sofia prática de Aristóteles e a filosofia prática de Kant. O artigo se cham a “ Uma defesa aristotélica de K ant" . Tem um título deliberadamente provocador para di­zer que a filosofia prática de Kant não é algo para se jogar fora.

Principais publicações:

1982 “ Sobre o positivismo de W ittgenstein” . Wjitiiscrito, vol. 5, n" 1;1999 "Saber, fazer e tempo: uma nota sobre Aristóteles” , in Edgar da R. M a r ­

ques et. al. (orgs.i. Verdade, conhecimento e ação: ensaios em homenagem a Guido Antônio de Almeida e Raul Landim Filho (São Paulo: I.oyola).

Bibliografia de referência da entrevista;

Aquino, T. de. Suma teológica. Livraria Sulina.Aristóteles. Metafísica, M adri; Editorial Gredos.___________ . Categorias, Lisboa; Guimarães.C a rnap , R. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Descartes, R. Meditações, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.D anto , A. After the end o f art, Princeton: Princeton University.Frege, G. “Sobre a justificação científica de uma conceitografia” , coleção Os Pen­

sadores, Abril Cultural.H aberm as, J. Consciência moral e agir comunicativo. T em po Brasileiro.Hilbert, I. Principles o f mathematical logic. N ew York: Interscience Publishers. Kant, I. Crítica da razão pura, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Leibniz, G. W. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Russell, B. Coleção Os Pensadores, Abril Cultural.Wittgenstein, L. Tractatus logico-philosophicus, Edusp.___________ . Investigações filosóficas, coleção Os Pensadores, Abril Cultural.

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INDICE O N O M Á S T IC O

A bram o, Lélia, 308 Adler, .Max, 375 A dorno, T heodor W ., 60,

156, 162-3, 173, 1 9 6 ,2 3 9 , 3 2 5 ,3 5 8 -9 ,3 8 1

Almeida Prado, Dceio de, 62,

Almeida, G uido .■\ntònio de. 2 2 7 ,2 3 4 , 2 5 8 -6 0 ,4 1 2 -3 , 415

Almeida, José Américo de, 22 .Althusser, l.ouis, 97, 120,

152, 2 2 5 ,3 1 4 , 3 4 1 ,3 8 0 .Amoroso Lima, .-Mceu (Tristão

de Athayde), 276, 338 .Anaxagoras, 144 .Andrade, .Mário de, ''4 -5 , 149 Andrade, O sw ald de, 91-2, 338 -Andrade, R udá de, 92 -Anscombe, G ertrude

Elisabeth, 267 •Arantes, .Aldo, 254-5 , 340 .Arantes, O tília Fiori, 152,

361-2•Arantes, Paulo Kduardo, 99,

123, 126-7, 142, 150, 153,157, 186, 199-200 ,202-4 ,2 0 7 -8 ,2 1 4 -6 ,2 2 5 ,3 0 3 ,3 3 7 ,3 7 7 ,3 8 1 ,

A rendt, H annah, 158. 282, 298 .Arida, Pérsio, 217 Aristóteles, 2 6 ,2 9 ,3 6 ,4 1 ,4 3 ,

52, 57, 66, 73, 79, 83, 96, 120, 129-.Î0, 173, 187, 215, 223, 230, 246, 255, 259, 268, 284, 307, 337, -M2, 353, 360, 3 8 1 ,3 8 4 , 4 1 2 ,4 1 4 -5 ,4 1 7 , 420, 423-6

•Arnou, René, 29 •Aron, R aym ond, 106 Bachelard, G asron, 46, 96,

109, 323 Bachelard, Suzanne, 94 Bacon, Francis, 226 Bakhtin, .Mikhail, 180

Barata, Rui, 74Barbosa Kilho, Balthazar, 234,

237, 259-60 ,401 B arbosa, R icardo, 56 Barbuy, H aroldo, 100 Barreto. Tobias, 22, 280, 355,

381Baudelaire, C harles, 72. 325 Beauvoir, Simone de, 196 Benjamin, C ésar, 183 Benjamin, W alter, 59-60, 84,

155-6, 162, 180-1, 185-6, 188, 190, 195-6, 325-6

Bergson, H enri, 37, 96, 206, 2 0 8 -1 0 ,2 1 4 ,2 1 8 ,2 2 4

Berlinguer, linrico, 379 Bernstein, Edouard, 158, 160,

395, 397 Berquo, Elza, 96 Biard, François-.Auguste, 257 Bobbio, N orberto , 196 Boecio, A. M . T. .Severino, 426 B onaparte, N apoleão, 114,

14 6 .4 1 2 Bornheim , G erd, 45, 186,

4 0 1 .4 1 3 Boyd, W illiam, 134 Bradley, 257 Braga, Rubem, 56, ~5 Braque, Georges, 110 Brasil Fontes, Joaquim , 72 Braz Teixeira, A ntônio, 21 Brecht, Bertold, 60-1, 63-4,

84, 361 Bricmont, Jean, 218-9 B uarque de H olanda, Sérgio,

3 1 9 ,3 4 6 Cacciola, M aria Lúcia, 166 C am ões, Luis de, 385 C anabrava, Kuriolo, 100 C andido, A ntonio, 77, 92,

148, 188-9, 1 9 1 ,2 0 4 ,2 1 1 , 215, 2 7 8 ,3 0 8 , 338, 340-1, 346, 348, 352, 354, 358, 382, 388

C ardoso, Fernando Flenrique, 64, 95-8, 111, 157, 160, 168, 171, 1 8 3 ,2 0 5 -6 ,2 9 4 , 3 4 1 ,3 7 7 , 384

C arnap , Rudolf, 41, 256 Carneiro Leão, E. 53, 56-7, 186 C arpeaux, O tto M aria, 69, 380 C arvalho Franco, M aria

Sylvia de, 305 Cass, M ark Julian , 217 C astoriadis, Cornelius, 93,

158, 162 C erqueira Leite, Rogério, 124 C hacon, V am ireh, 281 C hardm , Teilhard de, 33-4, 43 Châtelet, François, 154 C haui, .Marilena, 56, 80, 96,

99, 1 8 6 ,2 0 4 , 207, 260-1, 2 7 4 ,2 8 1 , 299, 3 0 4 ,3 4 2 -6 .3 8 1 ,4 1 1 ,4 1 3

Cícero, 303 Clastres, Pierre, 200 C olom bo, Cristóvão, 319 Com te, Augusto, 56, 79, 280 C ondorcet, m arques de, 166 Copleston, Frederick, 29 C orção, G ustavo, 62, 254 Costa, Nevi-ton da, 2 2 ,2 8 1 ,3 8 1 C outinho , Carlos Nelson,

179-80, 184-5, 193, 196, 373, 381-2

Croce, Benedetto, 54, 220 Cruz C osta, João, 93-4, 97,

100, 146, 148-9, 202-3,2 0 7 ,2 1 1 ,2 2 8 , 274, 279- 8 0 ,3 4 5 , 350, 3 5 4 ,4 1 2 -3

D agnino, Evelina, 319 De Decca, Edgar, 307 De Jouvenel, Bertrand, 202 De Libera, Alam, 257 D ebrun, .Michel, 2~4, 405 Deleuze, Gilles, 1 5 4 ,2 1 3 ,2 1 6 ,

2 1 8 ,2 2 2 . 2 2 4 -5 ,3 6 7 D errida, Jacques, 88, 202,

222, 366-7

428 .Vlarcos N o b re e José .Marcio Rego

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Descartes, Rene, 49, 51, 55.79, 82-3, 1 3 2 ,2 4 3 , 166,214, 2 4 6 ,2 5 1 -2 , 257, 261- 4 ,2 6 6 , 270 ,3 1 4 , 3 2 2 ,3 6 0 , 3 8 1 ,4 0 5 ,4 1 8 ,4 2 6

Dewey, John, 222 D ostoiévski, 266, 350 D raper, 169D rum m ond de .Andrade,

C;arios, 69 , 75-6, 85, 162, 166, 2 0 0 ,2 1 0 -1 ,3 0 3 ,3 8 6

D ucham p, M arcel, 110, 420 D um m ett, M ichael. 267 D urkhfin i, F.milc, 349 Einstein, A lbert, 27, 218, 360 Engels, Friedrich, 160, 170,

1 8 5 ,2 4 8 , 302, 333, 373, 395, 397

Espinosa, Baruch, 51, 55-6,80, 153, 186, 2 5 1 ,2 5 7 , 2 6 1 -2 ,3 0 3 ,-6 ,3 1 3 -5 ,3 1 7 - 22, 3 3 1 ,3 3 5 , 343-5, 381

Eaustino, M ário , 73-6 Fausto, Ruy 94, 100, 145,

203-4, 340, 347-8, 350 Fernandes, Florestan, 205, 341 Ferreira da Silva, Vicente, 91-

2, 281, 355 Ferreira G ullar, José R ibam ar,

77, 182-3, 377 Ferro, Sergio, 150 Fichte, Johann G ottlieb, 51,

96, 354, 359 Fm k, Eugen, 230, 233, 239 Einlcy, M oses, 327 Fiori, Ernani M aria , 46, 48,

152, 2 2 8 ,4 0 1 -2 Eiori, Joaqu im de, 319 Fiori, José Luís, 220 Fischer, Kuno, 51 Flusser, V'ilem, 296 Foucault, Paul M ichel, 57, 78,

215, 222, 2 2 5 ,2 3 2 ,3 0 6 . 323, 333, 364, 367

Fourier, C harles, 193-4 Freud, Sigmund, 62, 146, 172,

181, 185, 194, 3 0 0 ,3 0 2 ,349, 360

Freyre, G ilberto , 45, 79 Furtado, Celso, 320 G adam er, H ans Georg, 84, 283 Galileu (iaiilei, 59, 384 Ciassendi, l’ierre, 270 Gcach, Peter, 267, 402 Gellner, Ernest, 131-3

G iannotti, José A rthur, 80,91, 97-8, 117, 119-20,150, 167, 172-4, 186 ,202- 5 ,2 0 7 ,2 1 7 , 222-3, 225, 235, 248, 260, 268-9 , 274,2 8 1 ,3 0 4 , 340-5, 347-8,350, 377, 3 8 1 ,4 0 5 ,4 1 1 -3

G ilson, Etienne, 36, 43, 251, 257, 266

Gleizcr, .Vtarcos, 261 G oldschm idt, V ictor, 93-5,

119-20, 122, 149, 203, 276, 304-5, 342-3

Gom es de Sou7,a, Luiz Alberto, 255

G oodm an, N elson, 219 G órgias, 302 G orz, André, 304 Gram sci, A ntonio, 179-80,

196, 350, 373-4, 376-8, 380-9, 395-8

G ranger, G illes-G aston, 91-4, 96, 100, 109, 119-20, 148- 9, 203, 2 0 7 ,2 1 0 -1 ,2 1 6 -8 , 323, 342-3

Guedes, .Armênio, 179, 182,185 G uéroult, .Martial, 46, 51, 91,

93, 122, 202-3, 251-2, 2 5 8 ,3 4 1 -3

Guim arães Rosa, João, 303 ,419 Flaherm as, Jürgen, 303, 419 H acker, Peter, 403 H alev i.E li, 172 H artm ann , N icolai, 16-9, 69 Hegel, G. W. Friedrich, 8, 16,

19-20, 22-3 , 30, 34-5, 38, 42-4, 48, 53, 55-6 . 59, 64. 70, 79, 82-4, 96, 100, 110, 117, 120, 129, 135, 151,153, 155, 162, 164, 167, 172, 174-5, 189-90, 196, 2 0 3 ,2 0 7 ,2 1 4 -5 ,2 1 9 ,230. 240 , 242 , 257, 280, 289, 304-5 , 321, 325-6 , 328, 337, 341, 347-9 ,352, 356-7 , 359-62 , 364,3 7 5 ,3 8 1 , 3 8 5 -7 ,3 9 1 , 401-2 , 4 0 5 ,4 1 3 -4 , 420

Heidegger, M artin , 29, 46 , 4 8 -9 ,5 1 -4 , 60, 70, 7 4 ,7 8 , 80-3, 8 7 ,8 9 , 120, 204, 2 1 4 .2 1 9 , 222, 225, 228, 2 3 0 -1 ,2 4 6 ,2 9 6 ,3 8 0 , 401, 4 1 3 ,4 1 9

Heller, .Agnes, 187

H erder, Johannn G ottfried , 34 H ilbert, 1., 418 Hill, C hristopher, 306-7, 319 H irzm an, l.eon, 184 H itler, Adolf, 64, 169 H obbes, Thom as, 314 H obsbaw n, Eric, 159 H om ero, 73, 162 H orkheim er, M ax, 239, 324,

358. 383. 385 H um e, David, 131-2, 143,

2 2 4 -5 ,2 1 4 , 4 0 5 ,4 1 7 Husserl, F'dmund, 16-7, 70,

79, 94, 102, 104, 167,2 2 5 ,2 2 8 , 2 3 0 -1 ,3 2 1 ,3 2 3 , 332, 340, 360, 363, 405

H uxley, .Aldous, 66 H yppolite, Jean , 46, 120 lanni, O ctávio, 96, 341, 377 Im bert, C laude, 94, 152, 221 Jacobi, Ruggero, 49 Jaeger, W erner, 92 Jam es, W illiam, 222 Jam eson, Frcdric R., 192 Janine Ribeiro, R enato, 56 Jankélévitch, V ladim ir, 151 Jaspers, Karl. 25 João Paulo II (Karol W oytila),

39-41Jung, Carl G ustav, 146 Kaflca, Franz, 77, 181, 363,

386, 397 Kautsky, Karl, 157-8, 160,

395’, 397 Kierkegaard, Soren Aabye,

2 2 0 ,2 2 3 ,3 3 1 Knoll, Victor, 306 K olakow ski, Leszek, 319 K onder, Leandro, 177, 180,

374-5, 377 Koselleck, R einhart, 188 Kruschev, N ik ita , 178-9 Kuhn. Thom as, 323, 361, 365 Kurz, R obert, 109, 157, 161-

2, 385La Rochefoucauld, François,

166Lacan, Jacques, 153, 219. 349 Ladrière, Jean, 255-7 Lafer, Celso, 274, 277, 291 l.andim Filho, R aul, 230-1,

234, 237, 2 5 1 ,2 5 8 ,4 1 2 -3 , 415

Landsberg, Paul, 74 Lask, Emil, 276-7

C onversas com Filósofos Brasileiros 429

Page 432: Conversas com Filósofos Brasileiros

Lauer, Q uentin , 2,î0 Lebrun. G érard, 95-7, 152,

202-6, 2 0 9 ,2 1 4 .2 1 6 , 220.226, 260, 2 "4 , 2 9 1 .3 0 4 . 348, 355. 360, 363-4, 405

Lctorr, C laude, 93-4. 148,158, 1 6 2 ,2 0 3 . 307, 314- 6 , 327, 344, 345

Leibniz, G. W „ 223. 246, 264, 322. 360. 4 0 2 ,4 1 4

Lênin, Vladim ir L, 64. 158, 160, 305, 3 9 3 ,3 9 5 -7

Lévi-Strauss, C laude, 78. 167, 205, 209, 332, 343, 349

l evy, Lia, 261l.évy-Brühl, Lucien, 146 Lima Barreto, Afonso

I lenriques de, 359, 386 Lispector, Clarice, 81-2, 397 Locke, John, 94. 188 Loparic, A ndrea. 124 Loparic, Zeljko, 7 9 ,2 1 7 , 235 Lopes dos Santos. L.

H enrique, 1 2 4 ,2 1 0 ,2 1 8 ,223, 259-60, 405

Lotz, Johannes B.. 29 Lowy, M ichael, 152-3, 160,

195, 379 Luhm ann, N iklas, 277-8, 285-

6, 295Lukács, Georg. 56, 155-6,

179-80, 183, 185. 190.194, 1 9 6 ,3 4 1 ,3 4 8 -9 , 358- 9, 367, 374^ 376-80, 382- 6, 392, 395, 397

Luxem burgo, Rosa, 160, 395, 397

Lyotard, Jean-François, 154 M achado de Assis, Joaquim

M aria, 56, 162, 166, 303, 340, 346, 355. 357-9, 386

M achado, R oberto , 56 ■Macherey, Pierre, 261 M aciel, Luiz C arlos, 377 M agaldi, Sábato, 62 M ann, T hom as, 386, 396 M ansion , Suzanne, 255 M ao-Tsé-Tung, 171. 181,

305, 405 M aquiavel, N icolo, 24, 306-7,

344-5M aranhão , H aro ldo , 73, 75 M arcuse, H erbert, 53-4, 166,

193, 194, 204, 3 0 5 ,3 2 4 . 331

M arechal, Joseph, 232. 254-6 M aritain . [acques, 32-3, 119.

255M artins. Carlos Estevam. 181 .\la rtm s, .Max, 73-5 M arton . Scarlett, 56 M arx , Karl. 1 7 ,3 0 ,4 2 , 52-3.

55, 59. 62, 64, 95. 9 '-8 . 102-4, 106-8. 116, 118, 120, 150, 153, 155-60,165, 167-8, 171. 173-4, 181-2, 185, 187. 189-92,195, 197, 204, 218. 248-9, 252, 2 5 4 ,3 1 5 , 3 3 1 ,3 3 6 , 3 4 0 -1 ,3 4 3 , 346-9, 355-6,367-9. 377, 380-2, 385. 3 9 0 -1 .3 9 4 , 396-9

M arx , Ví enier, 230 M auriac, François, 74 M cCloskey, D onald, 217 -McIntyre, A nthony, 113 M ead, .Margaret, 146 M ello e .Souza, Gilda de, 93,

148, 203-4, 274, 305-6, 340

M enasseh bem Israel, 319 M endes, Francisco Paulo, 70-4 M erleau-Ponty, M aurice, 46,

5 0 ,5 7 , 78, 94, 1 7 1 ,2 0 8 , 213, 215, 218, 304-5, ,307, 316-7, 320, 3 2 3 -5 ,3 2 8 , 342-4, 3 4 7 ,4 1 3

M erquior, José Guilherme.179, 1 8 1 ,3 7 7

M ichels, Robert, 389 Milliet, Sérgio. 92 M olière, 109 ■Vlonteiro, D ouglas, 319 .Montes, M aria Lúcia, 274 M ontesquieu, 384 •Monteverdi, C laudio, 62 •Moore, T hom as, 66 M oreira Leite, Dante, 146, 149 M oreno, Arley R^, 216-7 -Vlotta Pessanha, Jose

Américo, 342 •Meunier, Emm anuel, 33-4,

227, 255 M üller, H einer, 61 .Müller, .Marcos, 55, 401, 405 N ew ton, Isaac, 59 N icolau de C usa, 20 N ovaes, .^dauto, 307, 319 N'ovais, Fernando, 95, 97-8,

205, 320, 341

•Nunes, Benedito. 57, 69, 74, 281

Nunes, Carlos .Alberto. 69 O laso, Ezequiel de, 124 Oliveira V ianna. Francisco

José de. 45. 79 O liveira, .Armando M ora de,

306O liveira, Francisco de, 320 O liveiros Ferreira. 383-4 O rtega Gasset. José. 22 Padre l.ebrct, 338 Paim, A ntônio, 22 Parm ênides. 302. 415 PascaL Blaise. 199 -200 .214 ,

2 5 7 ,3 3 1 Paulo VI, 39Pedrosa, •Mário, 52-3, 346 Pegoraro. O linto. 235, 257,

259Pereira de Q ueiroz, M , Isaura,

319Pessoa, Fernando, 74, 81-2,

21 IPiaget, Jean, 46, 360 Pierce, Charles S , 361 Pierre, Abbé, 275 Pirro, 137, 143-4 Piscator, Erwin, 63 Platão. 26. 36, 44 , 66, 73, 79,

8 1 ,8 9 , 92, 94, 119, 128-9. 143. 2 0 6 ,2 1 3 , 284, 289, 298, 322, .342, 354, 360, 3 7 1 ,4 1 2 ,4 2 3 , 425-7

Plotino, 29Pomien, K rystophe. 326 Pontes de .Miranda, Francisco

C avalcanti, 279-80 Popper, Karl, 20, 131, 133,

217Porchat Pereira, O sw aldo,

96, 119, 149, 202, 206, 219, 2 3 7 ,2 6 0 ,2 7 4 ,2 7 7 , 280-3 , 296, 337, 350, 40.5- 7 ,4 1 2 -3

Prado Jr„ Bento, 93, 95-6, 99,loi, 128, 148, 199, 202, 2 0 7 ,2 1 3 ,2 1 8 , 2 7 4 ,2 8 1 -2 ,304, .307, 337, .340-1,34.3, 3 4 7 ,3 5 0 , 4 0 5 ,4 1 2

Prado Jr., Caio, 151, 204,303, 320, 346, 365

Prado, V'asco. 60-1 Protagoras, 217 Proust, M arcel, 73

430 M arcos N o b re e José M are io Rego

Page 433: Conversas com Filósofos Brasileiros

Q uartim de M oraes, João,150

Quine, W ilU rJ . 115. 13.Î,199, 265

K adbruch, (iust.ivo, 16 Ramos, G raciliano. 386, ,59” Rancicre, |a^;que^. 153 Rawls, John. 115 Reale Jun ior, Miguel, 293 R e a le ,.Miguel, 15, 100. 274-7,

2 ‘ 9 -8 1 .2 8 7 , 305-6, 35.5. 381. 406

R ibeiro de .Moum, Carlos Alberto. 124 ,405

Ribeiro. Darcy, 42, 235 Ricoeur, Paul, 34, 211, 225,

403Rodrigues T orres Filho,

Rubens, 56, 9 6 ,2 0 4 . 207, 2 1 0 ,2 7 4 , 342

Rohden, Valérlo, 235 R om cro, Silvio, 358 Rorty, Richard, 131-3, 142,

217, 221-3 Rothschild, .Meyer .Amschel, 52 R ouanet, Sérgio Paulo, 189 R ousseau, Jean-Jacqucs, 202,

2 0 8 -9 ,2 1 4 , 220, 3 4 1 ,3 8 4 , 390

Russell, Bertrand, 223, 257, 265, 267, 3 6 6 ,4 0 2 ,4 1 1 , 419, 422

Sabbíuai Sevi, 319 Safo, 72Salazar, .Antônio de O liveira,

64Salgado, Plínio, 307, 345 Sampaio Ferraz |r ., Tércio,

273Santo .Agostinho. 41, 43. 66,

319, 404 Santo Anselmo, S3, 264-5 Santos, José H enrique, 228,

235S.io Boaventura, 412 São Francisco de .Assis, 40 São Tom ás de .Aquino, 22, 29,

36, 44, 83, 119 ,4 0 1 -2 ,414, 416

Sartre, Jean-Paul, 46, 48-50, 53-4, 74, 79, 98, 179-80,194, 196, 199-200 ,204-6 ,2 0 8 ,2 1 0 ,2 1 6 , 2 2 0 ,3 0 4 , ■>41-3, 380, 41 1 .413

Scheler, ,Ma.x, 16 -7 .39

Schelling, Friedrich W ilhelm.73. 11"

Scheniberg, .Mário, 52-3 Schiller. Friedrich. 49 Scholem, G erschom , í 19 .Schönberg, .Arnold, 84, 2S9,

363Schopenhauer, A rthur, 166,

223Schwarz, Roberto, 54, "’S.

150, 157, 159, 186, 199,2 0 8 ,2 1 0 ,2 1 5 ,3 0 4 , 308. 337, 346, 348. 355, 357-8, 361, 377

Sexto Empírico, 123, 134, 137-8

Shakespeare, W illiam, 76, 171 ,418

Silva Telles, G offredo da. 274, 291

Simões, Francisco, 273 Singer, Paul, 96, 199, 205,

368-70Skinner, Burrhus Frederick, 103 Sócrates. 24 , 35, 40, 77, 214,

284Sokal, .Alan, 218-9 Sola, Lourdes, 150 .Souza, H erbert de (Betinho),

244. 255 Stalin, losef. 64 , 170-1, 178,

379. 392 S tarobinski, Jean , 209 Stein, Ernildo, 281, 401, 426 Sterne, Laurence, 83 Stock, Robert, 75 Stravinsky, Igor, 110 Straw son, Peter Frederick,

265, 267, 290 ■Stuart .Mill, Joh n , 94, 168 ,413 Tales de M ileto, 143 Tarski, Alfred, 100 Taylor, Charles, 34 Teixeira, Lívio, 119, 146, 148,

202, 207, 274, 303-4, 309. 412-3

T erra , Ricardo, 91 . 410 Thom pson, E. P., 306-7 T olstoi, Leon, 74 T orres, .Alberto, 20 T ragtem berg, .Maurício, 199 T rotsky , Leon. 149, 151, 171,

305, 347, 396 T ugendhat, Ernst, 231-2. 248.

402

l ’nam uno, .Miguel de. 74 Vaz. 1 lenriqiie C laudio de

Lima (padre), 29. 55-6, 228. 230-2, 2 3 8 ,2 4 5 ,2 5 1 -2, 254-5. 257, 260, 266, 276, 338, 340. 381, 413

V'az. Zeferino, 124-5 Veríssimo, José, 7{), 72 V ernant. Jean-Pierre, 312 Versiani V'elloso, A rthur, 30,

228Vesentini. C arlos, 307 Vico, G iam battista, 274 Viehweg, T heodor, 276-8,

282-3 , 285-6, 289 Vieira Pinto, Álvaro, , 180-2,

228, 252, 342, 381 V ilanova, Lourival, 277 Vieira, padre .Antônio, 319 Villalobos, João, 302 V iotti, Emilia, 146 Virgílio, 303 Voltaire, 200, 385 V orländer, K., 249, 375 Vuillemin, Jean-C^laude, 94-5,

2 1 0 ,2 1 6 , 224 W ahl, Jean, 46 W eber. M ax, 349, 385 Weil, Eric, 304 W erneck Vianna, Luiz, 184 W ittgenstein, Ludwig. 80, 87,

89, 102-3, 10.5, 107, 118, 125, 141, 143-4, 167, 173, 2 1 0 ,2 1 2 -1 4 ,2 1 6 ,2 1 7 . 219-26. 232 . 248, 2,50, 2 5 5 -6 ,2 6 2 , 267-9, 271, 296, 298. 332, 360, 366, 3 8 1 ,4 0 2 -5 ,4 1 9 .4 2 2 ,4 2 5 , 427

Z enäo de tlé ia . 302

C onversas com Filósofos Brasileiros 431

Page 434: Conversas com Filósofos Brasileiros

F .s t f 1 iv R o KOI c :o M P (» ro t . \ i S a b o n p c l a

B racH K R & M A I.rA , COM TOTOUTOS DO B i -

r i : a i Í 4 t IM PRtS«) HtLA B a r t i r . \ G r a í i c a

t E u r r o R .\ t.M p a p i l A l t a A l v i - m 7 5 g/m -

[>A C lA . Sl'ZANO DE PAPFI. F, C f I I II OSF PARA

A E d i t o r a 3 4 , fm n o v t m b r o d k 2 0 0 0 .

Page 435: Conversas com Filósofos Brasileiros

À Jita tlu ra Jo s militares contnkuiu de m anei­ra pcn'crsa para completar o arcabouço insti­tucional da filosofia: expulsou seus estudan­tes maiores para a Europa, que lá completa­ram sua formação, e criou a pós-graduação.

Mas de que falam essas pessoas que em geral se obstinaram em virar as costas de sua filosofia para o mundo, que se formaram e formam especialistas e profissionais do pen­samento universitário? Elas nem sempre se­guiram seu voto de silêncio. Desde cedo, no final dos 50, inseminaram de modo episódi­co as ciências sociais, a política, o debate da democracia.

A filosofia migrou para o Brasil. Mas ela teria sotaque nacional, seria capaz de diálo­go organizado com a cultura brasileira? Nes­tas Conversas, muitos espezinham a idéia de filosofia nacional, para outros a filosofia não tem nada a dizer, outros a esconjuram. Um se reduz a combatente do consumo conspícuo de modas intelectuais importadas. Mas o que se defende? O que fica?

Os depoimentos deste livro sugerem que fica para trás a idéia de que um estudioso na­cional de filosofia não possa ser mais que um monge copista de um conhecimento sem mui­to sentido evidente, mas que deve ser preser­vado. Melhor, os debates mais ou menos in­voluntários destas Conversas mostram que o pensamento filosófico daqui c poroso. Que o debate político pode fazer com que o mundo vibre as cordas do universo paralelo da filo­sofia, e que ela reflita, nos termos da sua mú­sica distante, algo da vida nesta periferia do mundo. Resta, f>orém, a grande questão, sem­pre reposta neste livro, sobre o que ainda é possível na política nacional: ela subsiste ain­da pelos cantos, mas sob risco crescente de sufocação pelo poder da finança mimdialí- zada, do poder norte-americano e pelas teias jurídicas que os legitimam — o Império.

Vinícius Torres Freire

Page 436: Conversas com Filósofos Brasileiros

A filosofia é hoje quase que exclusivamente uma disciplina universitária, não resistindo ao crivo da lógica da utilidade funcio­nal. Mas por que deveríamos nos deter aí? Por que não perguntar: é necessário que seja assim ou pode ser de outro modo? Por que a utilidade funcional deve ser o critério para decidir sobre o valor ou desvalor de alguma coisa?

Q uando nos colocamos essas perguntas, não podemos mais voltar tranqüilamente ao senso comum e afastar a filosofia, seja como algo inatingível, seja como algo demasiado inútil. E talvez esteja aí o interesse da filosofia: ela é um estorvo, uma pedra no sapa­to. Nesse sentido, agarrarmo-nos ao senso comum é uma das manei­ras de remover o incômodo. Porque, ao sermos chamados para dar razões para nossas opiniões, crenças e ações, cedo ou tarde iremos esbarrar também em problemas filosóficos, para os quais a histó­ria da filosofia apresenta uma série de formulações e de respostas.

Além disso, um livro como este tem de pensar também o que significa fazer filosofia num país periférico, tem de pensar como a filosofia se instalou por aqui e qual o seu sentido para a cultura brasileira. Cada uma das entrevistas deste livro, cada reconstrução pelos entrevistados de seus respectivos percursos intelectuais, é uma resposta a essas perguntas.

ISBN fiS-73Sb-LHD-0