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XIV Jornada de Estudos Antigos e Medievais – Maringá-PR, 18 a 20/11/2015 1
OS ESFORÇOS DOS SERMÕES DE CESÁRIO DE ARLES NA CRISTIANIZAÇÃO DA PROVENÇA NO SÉCULO VI
THIAGO FERNANDO DIAS1
Introdução:
Os constantes fluxos migratórios dos germânicos e a recente reestruturação geopolítica
do vasto território anteriormente dominado pelo Império Romano, provocaram diversas
alterações na estrutura da Igreja. No século VI, a Igreja enfrentou certa dificuldade para se
estabelecer, elaborar e expandir suas diretrizes de uma nova ortodoxia e combater as práticas
populares, na maioria das vezes, não condizentes com seus preceitos.
Essa dificuldade ficou evidente, não apenas no sul da Gália como em todo Ocidente
Medível, através do combate intensivo dessas práticas pela Igreja. Na primeira Idade Média2,
sobretudo a partir do século IV, houve uma tentativa constante de diálogo do setor eclesiástico
com a população, tanto nos meios urbanos quanto rurais. Essa tentativa de dialogo ficou
marcada pela produção constante de novos elementos que procuravam trazer novos fiéis.
Este processo de interlocução foi longo e, para ser empreendido, a Igreja necessitou do
auxilio de figuras importantes e, muitas das vezes considerados homens santos, como padres,
monges e bispos. Para desenvolver suas tarefas, esses personagens do clero utilizaram vários
instrumentos literários, entre eles, o sermão e as hagiografias. Segundo Hillgart (2004:21):
ambos mecanismos são as principais formas de cristianização do período e começaram a ser
utilizados no momento dos ritos litúrgicos. Tornando-se assim, uma profícua fonte de estudo do
momento de sua produção.
Embora, de modo geral, não apenas os sermões como toda literatura eclesiástica tenha
relativamente poucas referências diretas sobre a realidade da comunidade, quando comparada
ao que diz a temas particulares do cotidiano da vida eclesiástica como, por exemplo, a ascese,
1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Campus de Assis; Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Integrante do Núcleo de Estudos Antigos e Medievais (NEAM/UNESP). 2 Utilizamos a proposta de divisão da Idade Média de Hilário Franco Júnior, o historiador demarca como “Primeira Idade Média” a fase que se estendeu de princípios do século IV a meados do século VII, reservando “Alta Idade Média” para meados do século VIII a fins do X. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Por uma outra Alta Idade Média. In: ANDRADE FILHO, Ruy de Oliveira. (org.) Relação de poder, educação e cultura na Antiguidade e Idade Média. Santana de Parnaíba: Solis, 2005. P. 28.
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orações e normas. Não obstante, mesmo com essa lacuna, permanece o fato de que esses textos
procuram transmitir e articular um ideal concernente às aspirações cristãs do contexto de sua
elaboração. Deste modo, enquanto os escritos eclesiásticos não podem responder e resolver
todas, ou mesmo à maioria das questões e problemas enfrentados pela comunidade cristã na
Primeira Idade Média, eles possibilitam uma compreensão de como os primeiros bispos, no
nosso caso Cesário, pensavam a vida cristã e, sobretudo, permitem observar um contexto
comum inferindo quais as dificuldades que os mesmos encontraram no momento. Assim,
partimos do pressuposto de que esses textos, aqui observados, não evidenciam apenas
elementos eclesiásticos, eles transmitem informações de um mundo cristão, portanto,
permanecem relevantes e profícuos, não tanto porque são eclesiásticos, mas, acima de tudo,
porque são cristãos.
Primeiramente apresentaremos algumas características que distinguem o sermão como
gênero literário produtor de um discurso religioso cuja finalidade didática, exegética e/ou
moralizadora que, segundo as normas do próprio gênero, buscava alcançar principalmente o
“coração do fieis e não exatamente a mente” (KLINGSHIRN, 2004: 14). Em seguida,
procuraremos abordar a trajetória de vida do prelado gaulês, seu caminho percorrido para a
obtenção de um status que o levou a ser considerado como um dos maiores defensores da
ortodoxia cristã no século VI. Por fim, mas não menos importante, a cristianização da
Provença. nesse ponto procuraremos analisar e descrever como se deu esse processo e qual a
função do bispo para se consolidar.
Os sermões como gênero literário
Antes de iniciarmos a análise sobre a religiosidade popular e a cristianização nos
sermões de Cesário, faz-se pertinente oferecer uma breve observação sobre o principal
instrumento utilizado pelo bispo, seu modo de preparo, os objetivos e o papel desempenhado
como gênero literário.
Nossa fonte principal de analise nesse trabalho, os sermões, distinguia os ad populum e
ad clericos. Eles eram redigidos pelos patronus; protetor e personagem influentes junto ao
clero e a população. Para serem escritos, a Bíblia era o grande modelo dos clérigos,
principalmente, as palavras dos profetas e dos apóstolos (HILLGARTH, 2004: 21).
Contudo, em uma sociedade de illitterati – que a partir do século V se alfabetizava cada
vez menos, devido ao fechamento da maioria das escolas públicas – os sermões foram
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previamente preparados e copiados para serem disseminados por diferentes regiões, assim, eles
ofereciam a possibilidade para o alto clero, o clero inferior e também para seus colegas menos
brilhantes (SC. 6.2), de pregarem e propagarem a doutrina niceana (HILLGARTH, 2004: 21).
Por exemplo, Cesário fornecia uma cópia de seus sermões para qualquer um que passasse por
Arles e tivesse interesse em suas prédicas (VC, I. 55).
O intuito de sua produção era a de serem lidos em público na procura de abranger um
número maior de pessoas, visto que a difícil e vagarosa disseminação da escrita ficou evidente
no período (ANDRADE apud ANDRADE FILHO, 2005: 48). Na sua elaboração, era comum o
uso do latim simples, ou mesmo as línguas vulgares, de tal modo que os sermões circulavam e
eram lidos ao pé da letra como se intencionava que fossem (HILLGARTH, 2004: 21).
Por exemplo, a fim de disseminar ainda mais seus sermões, Cesário procurou garantir a
circulação de suas palavras, não apenas de forma escrita, como também pelo boca a boca. Em
um de seus sermões, ele tenta amenizar o problema do analfabetismo argumentando que,
certamente, em qualquer grupo, haveria ao menos uma pessoa que pudesse ler para os demais
(SC. 6.2). Além, disso, ele fez o possível para que seu publico memorizasse suas predicas, se
uma pessoa não se lembrasse do sermão todo, cada um deveria lembrar-se de uma parte. Assim,
juntos seriam capazes de reconstruir o sermão por completo:
“Alguém deveria dizer: ‘Eu ouvi meu bispo falando sobre a castidade’. O outro deveria declarar: ‘Eu me recordo que ele disse que deveríamos cultivar nossas almas assim como cultivamos nossos campos'. Ainda outro deveria dizer, ‘Lembro-me que meu bispo disse que quem consegue ler deve fazer um esforço e ler a Sagrada Escritura; quem não sabe, deve encontrar alguém que possa’. Ao mesmo tempo, eles recordam um ao outro o que ouviram. Assim, eles não são capazes apenas de lembrarem as palavras do sermão, mas, com a ajuda de Cristo, cumpri-las” (SC. 6.8).
Nesse momento, os sermões tornaram-se uma espécie de folheto previamente preparado
que procuravam, de alguma forma, chagar a uma parcela da população mais diversificada, para
divulgar os preceitos cristãos e mudar os hábitos comuns que não eram condizentes com a nova
ortodoxia e, além de tudo, tornaram-se o meio básico de instrução dos leigos no período.
Contudo, o problema mais grave com o uso dos sermões de Cesário como fontes
históricas parece residir, mais precisamente, no caráter normativo do próprio gênero. Na
verdade, o bispo utilizava os sermões para instruir e convencer seu público do que eles
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deveriam ser, não para descrever o que eram (KLINGSHIRN, 2004: 14). No entanto, se é
praticamente impossível tomar o sermão pelo seu valor explicito, podemos os observá-lo,
como o próprio bispo evidencia: “como um espelho”, que revelava ao seu povo os detalhes de
seu comportamento pecaminoso (SC. 42. 6 ).
Assim sendo, é aceitável que, os sermões, em sintonia com o período, produziram um
dialogo intenso com as ações populares e revelam que nem sempre a grande parte da população
esteve passiva diante a Igreja. Portanto, essa adequação e difusão do discurso cristão de Nicéia,
presente nos sermões, revelam um conteúdo importante como dados e relatos que normalmente
fazem menção a fatos e personagens legítimos. Antes de qualquer coisa, eles evidenciam
profundamente, a sua maneira, um ponto de vista e um sentido de mundo de um determinado
momento e sociedade. Tornando-se assim uma profícua fonte de estudo.
A trajetória de Cesário:
Cesário nasceu em uma família galo-romana nobre e influente da cidade borgonhesa
de Chalons-sur-Saône por volta de 469/470 (VC, 1.3). Em 486/87, com provavelmente
dezessete anos, ingressou, em sua cidade natal, na vida clerical sob a tutela do bispo
Sylvester. Atuou, por pouco mais de dois anos, em sua cidade natal e logo se dirigiu para o
mosteiro de Lérins, onde procurou dedicar-se com mais empenho ao serviço de Deus (VC,
1.5), ficando na ilha até seus dezenove ou vinte anos (488/489).
Porcarius, abade de Lérins, ficou maravilhado com a dedicação do jovem à vida
monástica, devido a seu empenho, logo conseguiu destaque e foi nomeado responsável pela
dispensa do mosteiro (VC, 1.5). Nesse momento, em Lérins, Cesário adquiriu boa parte de
suas referências intelectuais eclesiásticas e, sobretudo, conheceu as obras de Agostinho que
viriam a orientar na elaboração de muitos de seus sermões. Porém, rapidamente ficou
conhecido por sua demasiada dedicação a vida ascética e seu rigoroso controle na distribuição
dos alimentos da dispensa a seus correligionários. Com a desculpa de que deveriam levar uma
vida ascética exemplar, traduzida na atitude de limitar a distribuição dos mantimentos,
Cesário entrou em conflito com a maioria de seus companheiros, o que ocasionou o seu
adoecimento. Para evitar o prolongamento e intensificação desses conflitos, Porcarius o
retirou-o de suas funções (VC. 1.6).
Após o ocorrido, Cesário, dedicou-se com maior intensidade à vida ascética. A leitura
dos salmos, as orações, os jejuns e as vigílias, ficaram ainda mais constantes. Tal intensidade,
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somado os diversos conflitos com outros monges, fez com que sua saúde se agravasse ainda
mais (VC, 1.6). Devido a esse suposto adoecimento (KLINGSHIRN, 20004:31), o abade
Porcarius decidiu enviar o jovem monge até Arles, a fim de recobrar a saúde (VC, 1.7).
Cesário chegou em Arles entre 495 e 499. Na cidade, deu continuidade a seus estudos
e teve seu primeiro contato com a retórica. Seu principal mestre foi Julianus Pomerius,
também seguidor dos preceitos de Agostinho e de João Cassiano. (KLINGSHIRN, 20004:
73). No bispado de Arles, pouco a pouco galgou posições eclesiásticas, foi diácono, clérigo e
abade de um pequeno monastério em Trinquetaille, no subúrbio arlesiano (VC, 1,10). Embora
tenha passado rapidamente pelos vários estágios da carreira eclesiástica, Cesário continuou
com sua fidelidade ao ofício divino através das práticas monásticas que aprendera em Lérins
(VC 1.11).
E em pouco tempo na cidade, o jovem já havia conseguido fortalecer uma aliança com
a aristocracia local e com eclesiásticos de relevância, sobretudo com o bispo Aeonio, que
viera descobrir ser seu parente. Antes de morrer, Aeonio indicou Cesário como seu sucessor
para o posto de bispo de Arles. Indicação que não foi bem-vinda, devido sua baixa idade e,
principalmente, pela indicação prévia que havia sido feita pelo atual bispo, seu parente e que
poderia influenciar a escolha dos germanos e alguns clérigos.
Mesmo com as desavenças sobre a polémica indicação ao posto de bispo, Cesário
assumiu o cargo em 502 (KLINGSHIRN, 20004: 84). Uma de suas primeiras ações como
bispo foi fazer os leigos conhecerem os salmos, hinos e antífonas, “para serem cantados em
voz alta, alguns em grego, alguns em latim” (VC, 1.19).
Ao assumir o posto, o então bispo se envolveu ainda mais na política local que estava
sendo disputada por visigodos, francos e ostrogodos. Devido a esse momento conturbado da
Provença, o prelado teve, na sua primeira década de bispado, uma administração pouco
sossegada.
O bispo foi muito contestado, por parte dos clérigos locais e de alguns aristocratas, os
quais, no momento, eram submissos aos visigodos. Um dos motivos apontado por seus rivais
era que Cesário, desde que viera da Borgonha, estava tentando, com todas suas forças, passar
o território para os burgúndios. Devido a isso, em 506, o religioso foi condenado por
acusações falsas e ilegais e foi expulso de Arles, sendo relegado a Bordeaux, como se
estivesse em exílio (HILLGARTH, 2004: 50). Na cidade, o prelado provou sua inocência e
logo voltou para Arles, porém, tais desacordos com parte dos clérigos e aristocratas locais, só
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foram superados com a ocupação da região por forças ostrogodas, em 508, que permaneceram
no comando da região até 536.
Nessa conjuntura, Cesário adquire um papel fundamental, pois além de contar com o
apoio dos novos soberanos germânicos (VC, 1.37) o bispo tornou-se o principal representante
da diocese de Roma na região, o que lhe conferiu amplos benefícios e legitimidade a seu
episcopado (VC, 1.43).
Cesário tornou-se o bispo mais proeminente da Igreja Gaulesa quando o Papa Símaco
(498-514) o nomeou como vigário Papal (vicarius) da Gália em 514, o primeiro a receber
essa honraria da Igreja Romana (KLINGSHIRN, 2004: 131). Desse modo, a vinculação com
os romanos, possibilitou ao bispo a reinvindicação e realização de uma série de exigências,
bem como a proeminência da diocese sobre os assuntos eclesiásticos por toda a Gália,
sobretudo diante da diocese de Vienne, sua grande concorrente. Por outro lado, Roma,
encontrou em Cesário um influente aliado em seu projeto de afirmação diante do paganismo e
das heresias locais (KLINGSHIRN, 2004: 127).
Sob a tutela da Santa Sé, o prelado presidiu uma série de sínodos e concílios
ecumênicos na Gália, o mais importante deles foi o Concílio de Orange, em 529, que, ao tratar
do livre-arbítrio, condenou o pelagianismo3 e defendeu a teoria agostiniana (KLINGSHIRN,
2004: 141), além disso, é atribuído a Cesário a escolha de Agostinho como o teórico
fundamental da Igreja do inicio da Idade Média.
Com sua posição estabelecida e legitimada, Cesário liderou um intenso esforço de
disciplinamento clerical e laico e, em especial, de uniformização litúrgica e ampliação da ação
predical entre os eclesiásticos por meio de seus escritos, sobretudo, pelos sermões.
Sobre seus sermões, hoje são conhecidos um total de 238 que foram organizados e
distribuídos por temas, no fim do século XIX e início do século XX, por Germain Morin, um
grande estudioso beneditino que os dividiu em cinco partes, sendo elas: 1- (s. 1-80)
3 Teoria teológica cristã atribuída ao monge bretão Pelágio (360-435). Segundo esse religioso, a vontade humana e completamente livre, capaz do bem e do mal. A graça divina é extremamente concedida de acordo com os méritos de cada um, sendo seu propósito facilitar meramente aquilo que o livre-arbítrio pode fazer por si mesmo; assim, o pecado de Adão foi puramente pessoal e não teve qualquer efeito sobre o resto da humanidade. Segundo a doutrina pelagiana, a morte não é uma punição por pecados mas uma necessidade da natureza humana. As idéias desenvolvidas por Pelágio levaram-no a atacar certas práticas: como nascemos todos sem pecados, não há necessidade de batismo de crianças pequenas. Além disso, a oração pela conversão de outros é inútil, visto que não pode ajudá-los; a redenção do Cristo só tem efeito como exemplo. Veja sobre este assunto entre outros: LOYN, H. R. Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 293.
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denominada de diversis admonitiones; 2- (s. 81-186) de Scriptura; 3- (s. 187-213) de
Tempore; 4- (s. 214-32) de Sanctis; 5- (s. 233-8) ad monachos (MORIN, 1953).
Seus sermões foram produzidos ao longo de todo seu bispado, e sua dispersão foi
facilitada devido à importância adquiria pela diocese de Arles durante seu governo. Seu
empenho na elaboração, compilação e disseminação de seus sermões, confronta, por um lado,
à inquietação em fornecer aos eclesiásticos ferramentas apropriadas à cristianização dos fiéis,
e, por outro, à difusão da mensagem e preceitos religiosos de Nicéia.
Em alguns de seus sermões, Cesário procura combater e contrapor os cultos pagãos, o
complexo mitológico greco-romano, cultos orientais, superstições, entre outras práticas
religiosas da população. Além de buscar elaborar modelos para que futuros pregadores os
utilizassem em suas prédicas. Cesário morreu em 27 de agosto de 542. Sua hagiografia (Vita
Cæsarii) foi escrita sete anos após sua morte, elaborada por cinco clérigos que o conheceram
pessoalmente, além de contar com o auxílio de outros (HILLGARTH, 2004: 34).
A cristianização da Provença
Embora Germain Morin tenha exaltado veementemente o trabalho de Cesário, o bispo
não teve sua imagem de grande prelado da Igreja crista no século VI criada pelo estudioso
beneditino. O próprio prelado e seus biógrafos esforçaram-se para promover uma imagem
edificante de Cesário. Suas diversas obras, sobretudo os sermões, atestam o esforço
empregado pelo bispo em expandir sua imagem e influência de pregador do cristianismo.
Seus esforços não se limitavam apenas a cidade de Arles, outras cidades da região, assim
como o campo, foram locais de intensa dedicação do prelado arlesiano. Sempre incansável em
suas admoestações, defendendo e reafirmando em cada prédica o seu compromisso com a
moral cristã e seu compromisso para com os ouvintes a procura da cristianização da
população. O bispo adquiriu uma imagem icônica de cristão exemplar no século VI.
Utilizando-se desse posto adquirido, Cesário argumentava que os clérigos,
especialmente os bispos, teriam um papel central no desenvolvimento da cristianização e a
função de orientador e guardião da sociedade que estava inserido. Para ele, os bispos devem
pensar em si mesmos em termos de um exemplo moral. Não é função do bispo se preocupar
com a administração da cidade ou com os bens da Igreja, mas, utilizar-se da retórica para
cristianizar (SC. 58,1).
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O prelado arlesiano esteve sempre atento, não apenas com o que proferia a seu
rebanho, mas também, o que diziam e faziam os seus fieis, dessa forma, o bispo procurava
elaborar novos argumentos de persuasão, porém, em muitos momentos, ele acabava
contraindo em seus escritos, elementos cotidianos não condizentes com a moral cristã. Assim,
o processo de cristianização da Provença, foi marcado pelo encontro entre a fé cristã – ainda em
elaboração de Nicéia – e a religiosidade, romana e mesmo pré-romana da região. Não obstante,
este processo suscitou uma confluência de duas ou mais condutas religiosas entre suas práticas,
ou seja, da convergência entre os seus elementos surgiram outros que simultaneamente alterava
seus produtores, sendo constantemente reprimidas, rejeitadas e questionadas pelo prelado. A
título de exemplo, entre tantos outros, o primeiro de janeiro que se comemorava a festa das
calendas com a adoração a Jano (divindade do panteão latino) (SC. 192.1), também era o dia da
circuncisão de Jesus e o princípio do ano (BROWN, 1999: 118).
Para essa população, sobretudo rural, a maior parte dos cultos e das divindades
veneradas, não apenas na Provença, estava relacionadas com os elementos da natureza, onde a
variação errática dos elementos do cotidiano era uma realidade palpável e absolvida no mundo
essencial (BROWN, 1999: 114), especialmente a relação com a fertilidade e a produção.
Muitas vezes, essas divindades eram representadas por árvores, rios e rochas que
ganhavam altares ou até mesmo santuários para serem homenageados. Por sua vez, Cesário os
exortava-os a “destruir todos os templos, onde quer que você os encontre” (V.C. 14.1). Para o
bispo, o paganismo não era um conjunto de práticas independentes que “reluziam ainda através
do mundo físico recheado de poderes misteriosos e não cristãos. Em vez disso, apresentava o
paganismo como uma simples coleção de ‘tradições fragmentárias’ de ‘hábitos sacrílegos’,
‘costumes inertes’, ‘imundices dos gentios’ e que deveriam ser encobertos pelo cristianismo”
(BROWN, 1999: 117).
Devido à proximidade do novo credo com os fenômenos naturais, grande parte da
população ficou confuso e não os entendia como tal, a insegurança e o desejo de explica-los ou
controla-los esteve na base de seu imaginário4. Neste momento, a tênue fronteira entre o a
religião oficial (o cristianismo como um plano doutrinário em construção) e o pagão (ou
4 Por Imaginário entendemos: “um conjunto de imagens visuais e verbais gerado por uma sociedade (ou parcela desta) na sua relação consigo mesma, com os outros grupos humanos e com o universo em geral”. FRANCO JÚNIOR, Hilário. Cocanha: a história de um país imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 16. & FRANCO JÚNIOR, Hilário. Os três dedos de Adão: Ensaios de Mitologia Medieval. São Paulo: Edusp, 2010. p. 70.
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considerados como, com suas práticas romana ou pré-romana) não foi evidente, principalmentes
nos meios rurais, sobretudo por ambos serem tomados como sagrado. E a não distinção do
sagrado caracterizou profundamente suas atitudes, o que acarretou, sem duvida, uma difícil
percepção e distinção do que era real e o que fazia parte do imaginário a esta sociedade.
Assim sendo, é interessante se notar a dualidade do contexto de produção e pregação da
nova ortodoxia. De um lado a cultura clerical, do outro, as tradições folclóricas e seu
imaginário. A primeira condiz com o cristianismo de Nicéia e “corresponderia ao seu aspecto
público e institucionalizado, que elabora um conjunto de técnicas dirigidas, tendo como
finalidade a obtenção e conservação daquela garantia” através da produção da religião por meio
da ortodoxia cristã definida. A segunda, a religiosidade, mais como uma prática cotidiana
“implica crer na garantia sobrenatural, uma atitude religiosa fundamental e que pode ser
simplesmente interior e pessoal” (ANDRADE FILHO, 1997: 11) que é conhecida apenas
indiretamente através da análise dos documentos produzidos pela cultura clerical. Segundo Ruy
de Oliveira Andrade Filho:
“Uma religião institucionalizada como o cristianismo oficial pode, grosso modo,
responder a um conjunto de anseios e necessidades de um determinado grupo social.
Consegue assim, através de um certo número de símbolos, cerimonias, etc., exteriorizar
parte da sensibilidade espiritual de seus adeptos. Seu maior ou menor sucesso depende
da medida em que toca o inconsciente deste grupo. Sua maior ou menor duração se
encontra na sua capacidade de adaptação às transformações materiais e/ou
psicológicas, consciente ou não, do segmento a que se dirige” (ANDRADE FILHO,
1997: 135)
“a ‘religiosidade popular’ também não se apresenta enquanto uma simples redução,
um resumo ou mesmo um empobrecimento da religiosidade ‘erudita e/ou oficial’. Tinha
também as suas fontes, as suas estruturas, a sua criatividade e elasticidade” (ANDRADE FILHO, 1997: 135).
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Para uma tentativa de recusa à religiosidade popular, pela cultura eclesiástica, Cesário
insistiu em disseminar seus sermões e suas práticas. Por meio de sua retórica e de seus sermões
simples, ele exortou seus fiéis.
Estas medidas acabaram por gerar um sentido ambíguo e até mesmo equivocado do
culto ao sagrado, especialmente no mundo rural emergente no momento, pois, as velhas crenças
ancestrais de longa duração, pouco ou nada tocadas pela culturas antigas como a romana, viam-
se alheias aos avanços do cristianismo.
A Igreja, por seu turno, utilizando das medidas supracitadas encontrou dificuldades em
desenraizar os hábitos da população rural, onde “religião e magia não eram geralmente tidas
como atitudes opostas, mas complementares” (ANDRADE FILHO, 1997: 113). Cesário aborda o
equivoco de alguns fieis que muitas vezes não distinguia tais praticas, por exemplo, no 13°
sermão, ele prega:
“Vede, irmãos, aquele que recorre à Igreja em sua enfermidade obtém, se for digno, a
saúde do corpo e a remissão dos pecados. Uma vez que só na Igreja é possível, pois,
encontrar este duplo benefício. E por que há infelizes que se dedicam em causar mal a
si mesmos, procurando os mais variados sortilégios: buscando em encantos e feitiços
diabólicos em fontes e árvores, feitos por videntes e adivinhos charlatões?” (S. 13.3).
“E agora, dizei-me, que tipo de cristão é esse que veio à igreja para orar, mas se
esquece da oração e não se envergonha de proferir cânticos sacrílegos dos pagãos.
Pensei, pois, irmãos, se é justo que a boca cristã, que recebe o próprio corpo de
Cristo, profira cânticos inpudicos, uma espécie de veneno do diabo” (S. 13.4).
Verifica-se assim, com os exemplos acima citados, que a presença do considerado
“pagão” era constante entre a população. E ainda, a tentativa de embate por meio da pregação
foi insistente durante toda Primeira Idade Média. Porém, é difícil medir os efeitos da pregação,
e ainda, o período em que sua assimilação foi maior, ou menor, mas, podemos levar em conta o
que Hillgarth adverte: “levou-se alguns séculos para que o Cristianismo realmente penetrasse na
vasta massa da população da Europa Ocidental, e ainda, para a maior parte da população rural
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até o século VIII (e frequentemente muito depois), certa forma de paganismo continuava pelo
menos tão atraente quanto o Cristianismo” (HILLGARTH, 2004: 16).
Considerações finais:
Klingshirn defende que a tentativa missionária de Cesário ficou aquém de seus
objetivos, algo que dificilmente conseguiria, pois: as comunidades camponesas, literalmente
não têm tempo, nem compreensão total de seus argumentos para se dedicar ao regime
devocional pedido pelo bispo. A longo prazo, no entanto – como mostra Klingshirn – o
objetivo de Cesário foi, antes de tudo, foi legar aos futuros eclesiásticos um modelo de como
deveria ser feito, os exemplos de uma vida cristã associada com a ascese monástica. Sua
iniciativa foi inigualável até os carolíngios que apropriara-se muito de seu legado textual, ou
até mesmo os reformadores e missionários do início do período moderno (KLINGSHIRN,
2004: 242-43).
Deste modo, esta abordagem rápida e certamente inacabada sobre alguns aspectos da
religiosidade popular, deixa visível a tentativa de elaboração de uma nova realidade através da
pregação que, de fato, procurou definir os contornos da verdadeira religião diante do
paganismo e da superstição, e propor (até mesmo impor) um modelo de cristianismo (POLO
DE BEAULIEU apud LE GOFF & SCHIMITT, 2002: 367). Porém, isso não significa
fundamentalmente o desaparecimento da religião e religiosidade antes praticada, pois as práticas
consideradas pagãs continuavam arraigadas em todos os grupos, principalmente na população
rural. Como afirma Peter Brown: “O paganismo não era apenas uma superstitio, um traste velho
deitado fora da Igreja; paganismo mantinha-se no coração dos cristãos batizados, sempre pronto
a reaparecer sob a forma de ‘tradições pagãs’” (BROWN, 1999: 116).
Documentos medievais:
CESAIRE D’ARLES. Sermons au Peuple. Ed. bilíngue (Texto bilíngue Latim-Francês) de
Marie-José Delage. 3v. Sources Chrétiennes 1975; 243; 330. Paris: Les Éditions du Cerf, 1971 –
1978 – 1986.
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Vitae Caesarii Episcopi Arelatensis Libri Duo I, 28. In: MGH. S.S. R.M. t. III, Hannover 1896,
pp. 433-501.
Referências Bibliográficas:
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Reino Visigodo de Toledo (séculos VI e VII). Tese de doutorado. Universidade de São
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