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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE RODRIGO CEZAR MEDEIROS MOREIRA OS CONCEITOS POR SEMELHANÇA DE FAMÍLIA E O PROBLEMA DA TEXTURA AMPLAMENTE ABERTA Niterói 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

RODRIGO CEZAR MEDEIROS MOREIRA

OS CONCEITOS POR SEMELHANÇA DE FAMÍLIA E O PROBLEMA

DA TEXTURA AMPLAMENTE ABERTA

Niterói

2013

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RODRIGO CEZAR MEDEIROS MOREIRA

OS CONCEITOS POR SEMELHANÇA DE FAMÍLIA E O PROBLEMA

DA TEXTURA AMPLAMENTE ABERTA

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Universidade Federal Fluminense como

exigência parcial para obtenção do título de

Bacharel em Filosofia.

Orientador: Dirk Greimann

Niterói

2013

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RODRIGO CEZAR MEDEIROS MOREIRA

OS CONCEITOS POR SEMELHANÇA DE FAMÍLIA E O PROBLEMA

DA TEXTURA AMPLAMENTE ABERTA

Trabalho de conclusão de curso apresentado à

Universidade Federal Fluminense como

exigência parcial para obtenção do título de

Bacharel em Filosofia.

Aprovado em ___/___/___

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Prof. Dirk Greimann

______________________________________________

Prof. Diogo de França Gurgel

______________________________________________

Prof. Guido Imaguire

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Angela Cristina P. M. Moreira e José Moreira Neto, pelo incessante

apoio e pelos constantes e árduos esforços realizados para me proporcionar uma educação

digna, sem a qual não estaria fazendo o que aprecio. Agradeço também a todos meus

professores pelas valiosas lições e especialmente a meu orientador, Dirk Greimann, pelos

conselhos, ensinamentos e também pela inestimável confiança em mim depositada durante a

realização deste trabalho.

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RESUMO

Esta monografia tem por objetivo principal avaliar criticamente a relevância do problema da

textura amplamente aberta (wide-open texture) para os conceitos por semelhança de família

conforme formulados por Ludwig Wittgenstein em suas Investigações Filosóficas. Baseando-

me nesta obra, estabeleço alguns princípios metodológicos fundamentais para a interpretação

das observações wittgensteinianas sobre o tópico e, com o auxílio da bibliografia secundária,

apresento uma análise da noção de semelhança de família, a qual então considero para

examinar a pertinência do problema da textura amplamente aberta. Ao fim da monografia,

argumento que o problema origina-se de uma má interpretação da posição wittgensteiniana, a

qual sustenta que somente algumas (e não quaisquer) semelhanças são relevantes para a

aplicação dos conceitos por semelhança de família. Entretanto, para Wittgenstein, não é tarefa

da filosofia justificar ou fundamentar os conceitos de nossa linguagem, e nem estabelecer

critérios para determinar quais semelhanças deveriam ser consideradas relevantes.

Palavras-chave: semelhança de família; textura amplamente aberta; vagueza.

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ABSTRACT

This monograph's main objective is to critically evaluate the relevance of the problem of

wide-open texture for family-resemblance concepts as they are conceived by Ludwig

Wittgenstein in his Philosophical Investigations. Based on this work, I establish some

fundamental methodological principles for the interpretation of Wittgenstein’s remarks on the

topic and, supported by the secondary literature, I present an analysis of the notion of family

resemblance, which I then consider in order to examine the pertinence of the problem of

wide-open texture. At the end of the monograph, I argue that the problem has its origins in a

misinterpretation of Wittgenstein’s position, which is that only some (not every) resemblances

are relevant for the application of family-resemblance concepts. However, for him, it is not

philosophy’s task to justify or to lay the foundations of the concepts of our language, neither

to establish criteria for determining which resemblances should be considered relevant.

Keywords: family-resemblance; wide-open texture; vagueness.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................7

1 ABORDAGEM METODOLÓGICA.................................................................................13

1.1 Estratégia interpretativa para abordar a noção....................................................................13

1.2 Recorte temático.................................................................................................................14

1.3 A expressão “conceito por semelhança de família”............................................................15

1.4 O método filosófico das Investigações...............................................................................16

2 A INSERÇÃO DA SEMELHANÇA DE FAMÍLIA NAS INVESTIGAÇÕES...............21

2.1 As seções que antecedem a §65..........................................................................................21

2.2 A crítica do interlocutor imaginário da §65 e seus pressupostos........................................23

2.3 A suposta impossibilidade da definição disjuntiva.............................................................28

3 SEMELHANÇA DE FAMÍLIA..........................................................................................31

3.1 A falta de “algo comum” a todas as instâncias...................................................................31

3.2 O tipo adequado de investigação filosófica........................................................................32

3.3 A expressão “semelhança de família” e os problemas que traz..........................................34

3.4 Quantos são os conceitos por semelhança de família.........................................................38

4 SEMELHANÇA DE FAMÍLIA E DEFINIÇÕES DISJUNTIVAS................................41

4.1 A possibilidade de se definir conceitos através de disjunções e sua relevância.................41

4.2 A utilização cotidiana dos conceitos e o ideal de exatidão.................................................44

4.3 A vagueza e os conceitos por semelhança de família.........................................................47

5 O PROBLEMA DA TEXTURA AMPLAMENTE ABERTA.........................................60

5.1 A formulação do problema.................................................................................................60

5.2 Algumas das soluções propostas.........................................................................................62

5.3 A solução apresentada por Forster......................................................................................65

CONCLUSÃO.........................................................................................................................69

REFERÊNCIAS......................................................................................................................71

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INTRODUÇÃO

Gostaria, nesta breve introdução, de fornecer ao leitor uma explicação informal para a

noção de semelhança de família e para o problema da textura amplamente aberta, de modo a

prepará-lo para a complexa argumentação que se seguirá. Desejo, outrossim, justificar meu

tema, apresentar a organização desta monografia e estabelecer as metas que devem ser

alcançadas para que seja bem sucedida.

Em seu dicionário destinado a esclarecer conceitos fundamentais da filosofia de

Wittgenstein, Glock (1996, p. 120) relata que a primeira aparição do termo “semelhança de

família” (Familienähnlichkeit) na obra wittgensteiniana dá-se no Big Typescript, escrito pelo

filósofo logo após seu retorno à filosofia em 1929. Ali, Wittgenstein critica Oswald Spengler

por organizar dogmaticamente épocas culturais, falhando em reconhecer que pode haver

outras classificações caso considere-se diferentes semelhanças de família, i.e., diferentes

grupos de semelhanças existentes entres as épocas. Um ponto análogo é levantado pelo

filósofo na §17 das Investigações Filosóficas, quando, considerando a possibilidade de

repartirmos as palavras segundo espécies de palavras, ele observa que “a maneira pela qual

reunimos as palavras conforme as espécies dependerá da finalidade da repartição, – e da nossa

inclinação”. O ponto é que não existe apenas uma organização possível para épocas culturais,

assim como também não existe somente uma organização possível para nossas palavras. Esta

resistência ao dogmatismo é recorrente na filosofia wittgensteiniana e Glock (1996, p. 120)

observa corretamente que a noção de semelhança de família nasce intimamente associada a

ela.

Na §65 das Investigações Filosóficas, pode-se dizer que a introdução da noção

também vem contestar uma forma de dogmatismo, dessa vez referente ao que consideramos

como linguagem. Um interlocutor imaginário pressupõe ali que, em nossas investigações

sobre as diversas linguagens, o objetivo último deve sempre ser a determinação do que é

“comum a todos esses processos e os torna linguagem ou partes da linguagem” (IF §65), e

acusa Wittgenstein por negligenciar este tipo de pesquisa. Supõe-se que a descoberta do que é

comum a todas as linguagens poderá vir a nos fornecer critérios para determinar, para

qualquer caso possível, se se trata ou não de uma linguagem. Contra isto, Wittgenstein objeta

que não há uma propriedade ou conjunto de propriedades comum a todos os casos para os

quais aplicamos o conceito “linguagem”; ao invés disso, tais casos estão “aparentados uns

com os outros de muitos modos diferentes” (IF §66), e é por causa desses parentescos – ou,

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como Wittgenstein virá a tratá-los na §67: dessas semelhanças de família – que chamamos

tais casos de “linguagens”. Como constata Glock (1996, p. 120), a noção extrapola a

discussão sobre o conceito de “linguagem”, ocupando um lugar determinante na investida

wittgensteiniana contra o essencialismo dogmático – a ideia de que, para todos os conceitos,

deve haver algo comum a todas as suas instâncias que explique porque o conceito se aplica a

elas. Para um conceito que tem sua extensão determinada por semelhanças de família,

nenhuma das semelhanças de família está presente em todos os objetos aos quais o conceito se

aplica.

Neste contexto anti-dogmático, a utilização da noção se propagou para muito além dos

limites da filosofia. Wittgenstein sugere, na §77 das Investigações, que os conceitos da ética e

da estética são conceitos por semelhança de família, dando a entender que a busca de uma

definição que corresponda a nossos conceitos cotidianos de “arte”, “bem”, etc., terminará

sempre frustrada, por não existir a propriedade ou o conjunto de propriedades comum a todas

as obras de arte ou a todas as boas ações, e por não ser possível construir definições

disjuntivas1 para tais conceitos. Diversos autores destas duas disciplinas ponderaram as

observações de Wittgenstein: alguns as apoiaram e as sustentaram, enquanto outros, como

Sclafani (1971), seguiram um viés mais crítico, procurando identificar exatamente qual seria a

posição wittgensteiniana sobre conceitos por semelhança de família e se esta havia sido

adequadamente compreendida pelos outros autores. Para além da estética e da ética,

atualmente os termos “conceito por semelhança de família” (family-resemblance concept) ou

“termo por semelhança de família” (family-resemblance term) já são utilizados, em muitas

áreas, ao se tratar de categorias que se aplicam corretamente a objetos que não possuem uma

característica comum entre si.2

Dada esta prolífica utilização da noção de semelhança de família, não parece difícil

justificar a existência de estudos mais específicos, como a presente monografia, que se

destinem parcialmente a examinar o papel da noção nas Investigações Filosóficas, onde ela

recebe seu tratamento mais extenso. Por mais que um conceito possa e deva ganhar “vida

própria” após ser cunhado por um autor, podendo a partir de então ser utilizado em uma gama

de novas disciplinas, o primeiro passo deve consistir sempre na interpretação adequada da

1 Isto é, definições formadas através da disjunção, simbolizada como “˅” nos sistemas lógicos, e que equivale,

com algumas diferenças, ao termo “ou” da língua portuguesa. Assim, enquanto “solteiro é todo homem não-

casado e não-viúvo” seria uma definição conjuntiva, “presidente do Brasil é o homem ou a mulher que é chefe

do poder executivo no Brasil” seria uma definição disjuntiva. 2 Como, por exemplo, em Kraskum e Andrews (1998) e em Ward, Vela e Hass (1990) – dois artigos sobre

psicologia cognitiva infantil que têm por objetivo investigar como crianças aprendem nomes de categorias de

seres que não possuem nenhuma característica básica em comum. Os autores as denominam “categorias por

semelhança de família” (family-resemblance categories).

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noção a partir da obra original – sendo este um dos objetivos deste trabalho. Contudo, o pouco

consenso entre os comentadores sobre os objetivos de Wittgenstein ao introduzir a noção de

semelhança de família, e as divergências sobre a natureza da própria noção, nos fazem

perceber a fragilidade de uma utilização irrefletida da noção em outras áreas – afinal de

contas, na própria filosofia temos desde comentadores que consideram a posição

wittgensteniana como uma teoria destinada a responder ao problema dos universais (como

Bambrough (1960-61), Pompa (1967) e Griffin (1974)) aos que não a consideram

absolutamente uma teoria, mas sim um argumento para abalizar algumas de suas outras

posições filosóficas (é o caso de Sluga (2006) e de Forster (2010)). Destarte, o presente estudo

é também fundamental para precisar os erros e os acertos das diversas interpretações

fornecidas pela tradição filosófica.

Contudo, não bastassem estas divergências sobre a noção, um dos poucos pontos em

que os comentadores tendem a concordar é na legitimidade de uma objeção gravíssima aos

conceitos por semelhança de família. Acreditando que Wittgenstein definiu como conceito

por semelhança de família um conceito que se aplica corretamente a objetos não em virtude

de uma característica ou conjunto de características que em comum, mas sim em virtude de

semelhanças existentes entre tais objetos, seus opositores3 concluíram que um conceito por

semelhança de família deve se aplicar corretamente a todo e qualquer objeto. Para esclarecer

isto, considere, por exemplo, o conceito de “solteiro”. Ele se aplica corretamente a todos os

objetos que são “homens não-casados e não-viúvos”; i.e., todos os objetos que possuem estas

três características (ser homem, não ser casado, não ser solteiro) em comum são corretamente

designados como solteiros. Estas três características delimitam o conjunto de objetos que

consideramos como solteiros. Este, portanto, não é um conceito por semelhança de família.

Mas imagine que o fosse. Em vez do conjunto dos solteiros ser limitado por essas três

características, seria limitado por uma série de semelhanças existentes entre todos os solteiros.

E aí emerge o problema. Afinal, todo solteiro tem alguma semelhança com algum outro

objeto. Todos os solteiros são homens, e todos os homens se assemelham às mulheres pelo

fato de serem humanos, e todos os humanos se assemelham a outras espécies pelo fato de

serem seres vivos, sendo que todos os seres vivos se assemelham a cadeiras, mesas e bolas de

futebol por serem também objetos físicos, e por aí vai. Se considerarmos “solteiro” como um

conceito por semelhança de família, e procurarmos delimitar o conjunto dos solteiros por

semelhanças que existam entre seus objetos, ele se torna tão amplo que engloba praticamente

3 Cf. Richman (1962), Pompa (1967) e Griffin (1974).

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todos os objetos (pois entre quaisquer dois objetos é muito difícil que não exista pelo menos

uma semelhança). Este é o problema da textura amplamente aberta, que implica que, se a

extensão de um conceito por semelhança de família é limitada por semelhanças entre suas

instâncias, mas existem inúmeras semelhanças entre suas instâncias e outros objetos aos quais

o conceito supostamente não se aplica, então todo e qualquer objeto deveria fazer parte da

extensão do conceito. Vários comentadores consideraram que a exposição da noção de

semelhança de família nas Investigações Filosóficas realmente estava sujeita a esta objeção, e

procuraram solucionar o problema de diversas formas, sendo a solução mais recorrente o

fornecimento de critérios para estabelecer quais semelhanças seriam relevantes para a

aplicação do conceito. Como observa Andersen (2000, p. 313), isto implicou a transformação

do problema da textura amplamente aberta no problema dos aspectos relevantes. Este tipo de

solução, assim como outros, serão discutidos ao fim da monografia.

Vemos então a influência do problema da textura amplamente aberta para a

interpretação da noção de semelhança de família conforme formulada por Wittgenstein: dos

nove artigos selecionados para esta monografia que tratam especificamente da noção,4 seis

deles reconhecem a necessidade de discutir o problema,5 e um dos três restantes, o de

Bambrough (1960-61), foi escrito antes da primeira formulação da objeção, feita por Richman

(1962). Destarte, o tema do presente trabalho, que, em um momento inicial de seu

desenvolvimento, dizia respeito apenas à noção de semelhança de família, foi alterado para

abarcar a significativa objeção da textura amplamente aberta. Não seria possível fornecer uma

interpretação da semelhança de família nas Investigações sem enfrentar o problema – e, além

disso, acredito que tal confronto nos permite distinguir muitos pressupostos filosóficos da

noção que do contrário haveriam passado despercebidos.

Depreende-se, do que foi dito, as três metas principais desta monografia: 1) Levando

em conta a bibliografia secundária, fornecer uma interpretação para a semelhança de família e

para os conceitos por semelhança de família que seja condizente com o que Wittgenstein disse

nas Investigações Filosóficas. 2) Apresentar, em detalhes, o problema da textura amplamente

aberta para os conceitos por semelhança de família. 3) A partir da interpretação fornecida para

semelhança de família, avaliar criticamente em que medida o problema da textura

4 Andersen (2000), Bambrough (1960-61), Campbell (1965), Forster (2010), Griffin (1974), Pompa (1967), Prien

(2004), Richman (1962) e Sluga (2006). 5 Andersen (2000), Forster (2010), Griffin (1974), Pompa (1967), Prien (2004) e Richman (2006).

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amplamente aberta se aplica aos conceitos por semelhança de família, apresentando e

discutindo também algumas das soluções até aqui propostas.6

Gostaria de encerrar esta introdução expondo brevemente a estruturação da

monografia. Para constatar se o problema da textura amplamente aberta se aplica

verdadeiramente à semelhança de família tal como foi formulada por Wittgenstein, é

necessário fornecer primeiramente uma interpretação da noção que seja condizente com as

Investigações Filosóficas. No primeiro capítulo, Abordagem Metodológica, exponho em

detalhes minha abordagem interpretativa e o escopo de minha investigação, que se detém

exclusivamente sobre as Investigações. Explorando a metodologia filosófica que Wittgenstein

adota ali, derivo uma primeira condição interpretativa (C1) que minha construção da

semelhança de família deverá satisfazer para que possa ser considerada adequada à

formulação das Investigações. No capítulo seguinte, A Importância da Semelhança de

Família, procuro investigar o papel exercido pela semelhança de família no texto

wittgensteiniano, me focando especialmente sobre os motivos pelos quais o filósofo introduz

a noção na §65. Estas considerações me permitem apresentar duas novas condições

interpretativas (C2 e C3). Os capítulos 3 e 4, respectivamente Semelhança de Família e

Semelhança de Família e Definições Disjuntivas, se concentram efetivamente em examinar

o que Wittgenstein considerou como semelhança de família e como conceitos por semelhança

de família. O capítulo 3 trabalha principalmente a contraposição que Wittgenstein faz entre

conceitos por semelhança de família – que se aplicam a objetos que não possuem nenhuma

característica em comum que justifique sua aplicação – e conceitos que podem ser definidos

através de definição conjuntiva, por possuírem tais características necessárias e suficientes

para seu emprego. O capítulo 4, por sua vez, mostra como podemos diferenciar conceitos por

semelhança de família de conceitos construídos através de definições disjuntivas: o ponto é

que, para um conceito por semelhança de família, existem objetos para os quais sua aplicação

é duvidosa. Esta vagueza provém do fato de que não sabemos exata e rigidamente quais são as

características relevantes para a aplicação de um conceito por semelhança de família (i.e., não

sabemos exatamente quais são as semelhanças de família). Por fim, de posse de uma

interpretação abalizada da noção, no capítulo O Problema da Textura Amplamente Aberta

apresento o problema, as soluções até então empreendidas para resolvê-lo e, entre elas, a

6 Como pode ser constatado pelo sumário, o cumprimento da primeira meta ocupa uma parcela ingente da

monografia, enquanto a segunda e a terceira meta são trabalhadas em apenas um capítulo. Isto se justifica dada a

concisão e extrema complexidade do texto wittgensteiniano, que requer um intenso trabalho interpretativo. Além

disso, o problema da textura aberta é de fácil explicação, e se verá que pode ser resolvido (ou afastado) sem

dificuldade se atentarmos apenas para alguns pontos de nossa interpretação da semelhança de família.

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solução de Forster (2010), que defenderei por acreditar ser a mais satisfatória e a que mais se

adequa à interpretação aqui fornecida para a semelhança de família.

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1 ABORDAGEM METODOLÓGICA

1.1 Estratégia interpretativa para abordar a noção

Conforme observado, qualquer discussão sobre o problema da textura amplamente

aberta para os conceitos por semelhança de família precisa, primeiramente, estabelecer o que

compreende por semelhança de família e por conceitos por semelhança de família, pois só a

partir de então é possível analisar em que medida o problema da textura aberta se aplica ou

não à exposição fornecida. Na bibliografia disponível sobre o tópico, este primeiro passo tem

sido dado pela maioria dos comentadores através de formulações que seriam, supostamente,

mais precisas e meticulosas do que a explicação que Wittgestein efetivamente deu sobre

semelhança de família no Livro Azul e nas seções 65, 66 e 67 das Investigações Filosóficas.

Ao decorrer da monografia, as posições destes comentadores ficarão mais claras; contudo,

pode-se dividi-los sucintamente de acordo com papel que suas formulações exercem frente à

noção de semelhança de família: alguns defendem que suas formulações estão explicitando o

que Wittgenstein implicitamente disse sobre a noção e apenas não soube expor

satisfatoriamente7; outros apresentam suas próprias formulações como teorias que seriam as

consequências filosóficas diretas e relevantes do que Wittgenstein apenas indicou nos textos8;

por fim, há aqueles que têm por objetivo analisar a noção de semelhança de família para

tornar manifestos os erros nos quais ela incorre9. Por um lado, o presente trabalho reconhece

que Wittgenstein poderia ter sido mais claro e preciso em alguns trechos10

(do contrário, não

haveria motivação para que fosse escrito). Entretanto, discorda veementemente da maior parte

dos comentadores no que tange o método propício para abordar as Investigações.

Que o estilo da escrita wittgensteiniana exija grande atenção e trabalho intelectual por

parte do leitor, carecendo de arranjo sistemático e de teses afirmadas explicitamente, foi já

observado pelo próprio filósofo11

; no entanto, isso não implica que se deva, de maneira

7 É o caso de Campbell (1965) e de Forster (2010).

8 É o caso de Bambrough (1960-61) e de Prien (2004).

9 É o caso de Richman (1962), Pompa (1967) e Griffin (1974).

10 Cf., por exemplo, a extensa discussão sobre os problemas gerados pela expressão “semelhança de família” e

pela metáfora que Wittgenstein utiliza para justificá-la, nas pp. 34-36 desta monografia. 11

No prefácio às Investigações Filosóficas, ele escreve: “Após várias tentativas fracassadas para condensar meus

resultados num todo assim concebido, compreendi que nunca conseguiria isso, e que as melhores coisas que

poderia escrever permaneceriam sempre anotações filosóficas; que meus pensamentos logo se paralisavam,

quando tentava, contra sua tendência natural, forçá-los em uma direção. – E isto coincidia na verdade com a

natureza da própria investigação. Esta, com efeito, obriga-nos a explorar um vasto domínio do pensamento em

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acrítica, transformar em teorias ou teses filosóficas o que Wittgenstein explicitamente não

concebe como tal, e nem tomar como “inexatas” as exposições do autor para em seguida

reconstruí-las de uma forma que se adeque melhor às posições teóricas assumidas pelos

reformadores. Como bem observa McGinn (1997, p. 12) – minha principal referência no que

tange à abordagem interpretativa adequada para se analisar o texto wittgensteniano –,

“qualquer interpretação convincente deve conseguir abranger tanto a forma das Investigações

quanto as observações de Wittgenstein sobre a natureza de seu método filosófico; qualquer

outra abordagem estará em completa disparidade com o seu bem atestado cuidado com a

escrita e com a organização de suas observações”. Pretende-se aqui, portanto, apresentar uma

interpretação mais apurada da noção de semelhança de família, buscando-se abarcar o texto

das Investigações Filosóficas como um todo. Apenas deste modo, a partir de uma

interpretação fiel ao texto wittgensteniano e às suas observações sobre o método filosófico, é

possível verificar em que medida o problema da textura aberta representa ou não uma objeção

decisiva à semelhança de família.

1.2 Recorte temático

Devo dizer, inicialmente, que não pretendo tratar aqui das observações de

Wittgenstein no Livro Azul, onde o filósofo trabalha pela primeira vez a noção de semelhança

de família com alguma complexidade. Não apenas o projeto seria inexequível, devido ao

pouco espaço disponível nesta monografia, mas também outras razões prevaleceram para que

estabelecesse as Investigações Filosóficas como o limite textual e temático: além de ser uma

obra posterior ao Livro Azul, contendo, com alguma probabilidade, uma visão mais madura de

Wittgenstein sobre o tema, acredito que a noção de semelhança de família tenha nas

Investigações funções específicas e muito importantes, que podem ser tratadas de modo mais

orgânico num projeto monográfico. Recorrer ao que o Livro Azul tem a oferecer significaria

abrir mão deste projeto mais unificado de entender o funcionamento da noção dentro das

Investigações. Ademais – e esta é a razão mais importante para o recorte –, a posição

marcante e manifesta que Wittgenstein tem sobre a filosofia nas Investigações Filosóficas

(contrária, como se verá, à teorização vã) é, na minha opinião, essencial para compreender a

noção, sem que, para isso, seja necessário formular uma teoria a partir dela, como fazem

vários comentadores.

todas as direções. – As anotações filosóficas deste livro são, por assim dizer, uma porção de esboços de

paisagens que nasceram nestas longas e confusas viagens.”

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Ainda quanto ao recorte, não discutirei apenas as §§65-67 das Investigações,

costumeiramente tidas como o foco dos comentários sobre semelhança de família. Alguns

erros interpretativos simples podem ser evitados abrangendo-se uma maior área de análise,

como será mostrado ao decorrer desta monografia.12

Destarte, me deterei especialmente (mas

não exclusivamente) sobre as §§65-88, seguindo um recorte previamente estabelecido por

Glock. Em vez de agrupar §§65-67 enquanto seções que tratariam da semelhança de família,

ele as integra ao conjunto maior de §§65-88 considerando que este conjunto é um “ataque

contra o ideal do determinismo do sentido presente no Tractatus e em Frege” (GLOCK, 1996,

p. 286). De fato, procuro mostrar no capítulo seguinte que o “ideal do determinismo do

sentido” é um entrave ao modo como Wittgenstein se utiliza do conceito de jogo de

linguagem, e que precisa ser combatido para que o filósofo possa se utilizar deste conceito

sem objeções. Este combate se dá, em grande parte, através da noção de semelhança de

família, e assim considero acertada a decisão de Glock de agrupar §§65-67 no conjunto maior

§§65-88. Outro motivo importante pelo qual tomarei estas seções é que uma análise sobre os

limites esmaecidos e inexatos da extensão dos conceitos por semelhança de família, análise

que considero muito importante para compreender a argumentação wittgensteiniana, inicia-se

apenas na §68, entremeia-se com uma investigação sobre “seguir uma regra” e só se conclui

na §88 mediante uma observação sobre o uso dos termos “exato” e “inexato”.

1.3 A expressão “conceito por semelhança de família”

Devo apontar ainda que, apesar de não ser necessário justificar a utilização da

expressão “semelhança de família”, já que o próprio Wittgenstein a introduz na §67, a

expressão “conceito por semelhança de família” requer algumas considerações. Alguns

comentadores influentes, como Pompa (1967), Campbell (1965) e Griffin (1974), não se

utilizam desta expressão – o primeiro prefere falar em “termos gerais” que teriam sua

aplicação determinada graças às semelhanças de família existentes entre os objetos aos quais

se aplicam, enquanto os dois últimos preferem falar em “predicados por semelhança de

família” (family-resemblance predicates). Acredito que “conceito por semelhança de família”

seja preferível a estas alternativas. Por mais que Wittgenstein não utilize esta expressão,

12

Por exemplo, neste capítulo mostro que exposições que consideram como uma teoria filosófica as observações

de Wittgenstein sobre semelhança de família, executadas de diferentes formas por Bambrough (1960-61), Pompa

(1967), Griffin (1974) e Prien (2004), são fortemente desaconselhadas da perspectiva filosófica anti-teórica de

Wittgenstein – patente nas §124, §126 e §128. Já a posição de que a vagueza não é um aspecto essencial dos

conceitos por semelhança de família, defendida por Forster (2010), será contestada no capítulo 4 do presente

trabalho, a partir de uma leitura atenta da §68 em diante.

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16

tampouco utiliza a dos outros autores; mas, a favor da terminologia aqui aplicada, nas

Investigações Filosóficas Wittgenstein se utiliza da palavra “conceito” para designar um

termo que se aplique a uma pluralidade de casos de algum modo semelhantes entre si, seja

graças a uma propriedade em comum ou graças às semelhanças de família. Ele não utiliza

nem “termos gerais” e nem “predicados” neste sentido. Deste modo, adicionando “por

semelhança de família” a “conceito”, podemos limitar o conjunto de termos para designar

apenas os termos que têm seu uso determinado pelas semelhanças de família existentes entre

os casos aos quais se aplicam. Os conceitos obtidos por semelhança de família não ocupam,

na linguagem natural, apenas a função predicativa – “x é um jogo” não é o único modo de

utilizar-se o conceito “jogo” em nossa linguagem. Posso dizer a alguém “Ensine um jogo a

esta criança”, e enquanto é possível falar da correta aplicação e da compreensão do conceito

de “jogo” neste caso, não é possível falar que o predicado “x é um jogo” se aplicou verdadeira

ou falsamente a um objeto. Assim, a expressão “conceito por semelhança de família” é

preferível a “predicado por semelhança de família” por critérios wittgensteinianos, já que nos

permite trabalhar um grande número de exemplos da linguagem natural e discutir se um

conceito foi empregado aqui e ali correta ou incorretamente. Além disso, como observa

Forster (2010, p. 68), Wittgenstein considera como conceitos por semelhança de família

também “compreender”, “ler”, “saber”, entre outros, e dificilmente poderíamos dizer que

essas palavras são “termos gerais” como, por exemplo, “casa” é um termo geral. Certamente,

tal capacidade do termo “conceito” de ser mais apropriado para os objetivos de Wittgenstein

se dá, parcialmente, porque ele utiliza o termo de um modo um tanto livre – talvez com a

mesma liberdade com a qual o utilizamos na linguagem cotidiana. Não obstante, se queremos

ser condizentes com os objetivos wittgensteinianos nas Investigações, acredito que “conceito

por semelhança de família” seja a denominação mais adequada para um termo que

empregamos a um conjunto de casos em virtude das semelhanças de família que tais casos

possuem entre si.

1.4 O método filosófico das Investigações

Agora, para concluir esta introdução ao método a ser aplicado na leitura das §65-88,

remeto a algumas seções relevantes para se compreender o pano de fundo filosófico e

metodológico sobre o qual Wittgenstein gostaria que as Investigações Filosóficas fossem

lidas. Diz o filósofo na §124:

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17

A filosofia não deve, de modo algum, tocar no uso efetivo da linguagem; em

último caso, pode apenas descrevê-lo.

Pois também não pode fundamentá-lo.

A filosofia deixa tudo como está.

Se, como defendi, seguindo McGinn (1997), uma interpretação adequada das

Investigações deve considerá-la em sua totalidade, a observação wittgensteniana acima requer

que tomemos tudo o que é exposto nas §65-88 sobre semelhança de família não como a

postulação de uma teoria filosófica que tenha em vista fundamentar o nosso uso da

linguagem, mas como uma descrição de seu funcionamento. Muitos autores já demonstraram

certa incredulidade de que Wittgenstein tenha se atido puramente à descrição, e acreditam

que, pelo contrário, o interesse filosófico de sua obra reside exatamente nas teses que podem

ser formuladas a partir dela13

. É importante notar, também, que o que Wittgenstein muitas

vezes considera como simples descrição do funcionamento da linguagem pode ser visto por

outros filósofos como contendo certos pressupostos teóricos. Por exemplo, quanto de teoria

Wittgenstein já não estaria, furtiva ou inocentemente, adicionando à sua descrição da

linguagem ao utilizar um conceito que a recorta enquanto jogo de linguagem? Parece evidente

que o nível de investimento teórico ao se descrever uma linguagem é irremediavelmente

maior do que o necessário para se descrever que uma porta está aberta ou que está chovendo,

de modo que seria inexequível evitar todo tipo de teorização. No entanto, sem me estender

nessa discussão, penso que, no que tange às §§65-88, a §124 deve ser lida como uma

admonição para que evitemos um determinado esquema de investigação: o de que, dado um

conjunto de fatos linguísticos, procuremos explicá-los e fundamentá-los através de uma teoria.

O objetivo de Wittgenstein não é justificar ou explicar porque a linguagem é como é. Em vez

disso, ele procura investigar o funcionamento da linguagem para desfazer certos problemas

filosóficos, operando amiúde da seguinte maneira: primeiramente ele identifica, em uma

teoria, afirmação ou questão posta por um filósofo ou por um interlocutor imaginário, algo

que considera como um mal-entendido filosófico14

– em geral, um pressuposto que este

interlocutor toma como evidente e indiscutível. A partir disso, Wittgenstein analisa uma série

de exemplos ou casos (jogos de linguagem, frequentemente) que trazem tais mal-entendidos à

luz. E somente a partir destas análises ele se arrisca a derivar alguma conclusão positiva – não

13

Afirma Glock (1996, p. 294): “[A concepção puramente descritiva] parece empobrecer a filosofia, e é

geralmente considerada como a parte mais fraca da obra posterior de Wittgenstein – slogans não sustentados por

argumentação e contraditos por sua própria “construção de teoria”, que pode ser isolada do resto.” 14

Como observa McGinn (1997, p. 24), Wittgenstein acredita que “muitas das ideias que usamos como base

para nossas considerações filosóficas ocorrem já como metáforas ou imagens no discurso cotidiano”, e por isso

Wittgenstein muitas vezes não discute complexas teorias filosóficas, mas pressupostos um tanto inocentes que já

podem ser identificados em nossas considerações cotidianas sobre a linguagem.

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18

na forma de uma tese filosófica, mas na forma de uma descrição do modo como nossos

conceitos funcionam quando circunscritos a esses exemplos – os quais, como observa

McGinn (1997, p.10), o filósofo “parece nunca tomar como base para generalização”. Tal

atividade descritiva, por meio de exemplos, basta para revelar o pressuposto do interlocutor

como um mal-entendido filosófico.15

Pode-se ver, sem dificuldade, que a §65 e as seções

subsequentes operam de acordo com este esquema: 1) um interlocutor imaginário faz a

Wittgenstein a objeção de que o filósofo ainda não forneceu a essência ou a definição daquilo

que chama de “linguagem” (IF §65); em seguida, o filósofo rejeita esta objeção, não através

de uma refutação direta, mas através 2) da identificação do pressuposto sobre o qual a objeção

foi construída – a saber, o de que, para todo termo geral, há algo em comum a todos os

objetos aos quais o termo se aplica e que justifica esta aplicação (IF §65). Então, 3)

Wittgenstein apresenta uma gama de exemplos através dos quais é mostrado o funcionamento

de determinados conceitos de nossa linguagem – como “jogo” (IF §66), “número” (IF §67),

“planta” (IF §70), etc. Estes exemplos entram em clara oposição com o pressuposto do

interlocutor, que deve, portanto, ser descartado.

Destarte, derivo do que foi discutido acima uma primeira condição interpretativa

(daqui em diante referida como C1) que a exposição da noção de semelhança de família que

efetuarei nesta monografia deverá respeitar para se constituir como uma interpretação

adequada da posição wittgensteiniana:

C1: O que será estabelecido como semelhança de família e como conceitos por semelhança de

família não deve ser elaborado como uma teoria que tenha por objetivo fundamentar o uso da

linguagem, mas sim como uma descrição do funcionamento de alguns conceitos16

de nossa

linguagem.

Como foi anteriormente observado, um número relevante de autores que discutiram as

observações de Wittgenstein sobre a noção de semelhança de família as trataram como se

15

Na §109 das Investigações Filosóficas este procedimento é melhor explicitado: “[...] E não devemos construir

nenhuma espécie de teoria. Não deve haver nada de hipotético nas nossas considerações. Toda elucidação deve

desaparecer e ser substituída apenas por descrição. E esta descrição recebe sua luz, isto é, sua finalidade, dos

problemas filosóficos. Estes problemas não são empíricos, mas são resolvidos por meio de um exame do

trabalho de nossa linguagem e de tal modo que este seja reconhecido: contra o impulso de mal compreendê-lo.

Os problemas são resolvidos não pelo acúmulo de novas experiências, mas pela combinação do que é há há

muito tempo conhecido. [...]” 16

Aqui, deve-se considerar “alguns conceitos” através do quantificador existencial. O que está expresso em C1,

provisoriamente, como a posição wittgensteiniana sobre os conceitos de nossa linguagem, é que ∃x(Cx˄Sx), ou

seja, ‘existe pelo menos um x tal que x é um conceito e x é determinado por semelhanças de família’. Desta

forma, C1 se compromete com que a ideia de que tratar conceitos de nossa linguagem como conceitos por

semelhança de família seja uma forma de descrever seu funcionamento, mas deixa em aberto a quantidade destes

conceitos (i.e., se todos os conceitos de nossa linguagem podem ser considerados como conceitos por

semelhança de família ou se somente alguns deles).

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propusessem uma teoria, de modo que C1 parece minar logo de saída a autoridade deste tipo

de tratamento. Notadamente, dois autores muito influentes para a interpretação da noção,

Bambrough (1960-61) e Pompa (1967), trabalharam considerando-na como acarretando uma

teoria filosófica, a qual teria implicações diretas para o que os dois tomam como o “problema

dos universais”. Diz Bambrough (1960-61, p. 212):

Quando afirmo que Wittgenstein resolveu o problema dos universais, afirmo

que suas observações podem ser parafraseadas em uma doutrina [...] que

pode ser comparada às teorias tradicionais, podendo, então, ser mostrada

como merecedora de suplantá-las.

Pompa (1967, pp. 63-64), por sua vez, afirma:

O que Wittgenstein parece estar fazendo quando introduz a noção de

semelhança de família é propor uma teoria que ao mesmo tempo

corresponda aos fatos e explique a base da nossa aplicação de termos gerais.

[...] Se o que é dito nas Investigações pretende ser a apresentação de uma

teoria desse tipo, então pareceria ser uma teoria dos universais, i.e., uma

teoria estabelecendo as condições para a nossa aplicação de um termo geral a

suas diferentes instâncias.

Discutirei, mais à frente17

, se a semelhança de família, conforme apresentada por

Wittgenstein, possui alguma relevância para este “problema dos universais” – mas, no

momento, nos interessa apenas notar que os trechos supracitados contradizem manifestamente

as passagens em que o filósofo recusa a construção de teorias (e.g., IF §124, §126), e,

portanto, não são capazes de satisfazer C1. Apesar de Pompa (1967, p. 64) não extrair

diretamente uma teoria da semelhança de família das Investigações, ele sustenta que se as

observações de Wittgenstein “não têm a intenção de ser uma contra-teoria às teorias

tradicionais, então é difícil ver qual é o ponto filosófico pretendido ao direcionarmos nossa

atenção para ela”. Contudo, penso que a passagem acima sintetiza exatamente o erro de

Pompa; um erro que, se interpreto corretamente, é um tanto inesperado. Considerando-se as

ciências, ninguém sustentaria que para se refutar uma teoria deve-se contrapor a ela outra

teoria. Observações, experimentos, e argumentos baseados sobre eles podem exercer essa

refutação, sem que constituam imediatamente nenhuma nova teoria. E nenhum cientista diria

que estes experimentos, observações ou argumentos são desprovidos de interesse científico ou

que é difícil ver o “ponto científico” relevante. Por que então Pompa não percebe que

Wittgenstein, nas passagens em que trata da semelhança de família, pode apenas estar fazendo

17

Cf. pp. 36-37 desta monografia.

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observações sobre a linguagem, descrevendo-a, ou talvez levantando argumentos com base

nessa descrição? E se esta descrição e estes argumentos são capazes de refutar teorias

filosóficas previamente defendidas, como poderiam ser desprovidos de interesse filosófico?

No momento, proponho C1 apenas como condição interpretativa, e não posso dizer se o que

Wittgenstein formula em §§65-88 poderá ser transposto para essa monografia respeitando esta

condição; contudo, a imposição de Pompa de que a noção de semelhança de família deva ser

construída enquanto teoria para que possa ter implicação sobre problemas filosóficos é

infundada.

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2 A INSERÇÃO DA SEMELHANÇA DE FAMÍLIA NAS INVESTIGAÇÕES

Assim como no capítulo anterior derivamos das afirmações que Wittgenstein faz sobre

o método filosófico das Investigações uma condição (C1) para examinar posteriormente a

fidelidade interpretativa de nossa construção da noção de semelhança de família, pretendo

agora explorar em que medida outras condições podem ser derivadas para este exame,

considerando a importância da noção para a obra e as funções que exerce dentro dela.

Gostaria de começar pela razão mais evidente para a introdução da semelhança de família nas

Investigações, a saber, a refutação do interlocutor imaginário de Wittgenstein na §65. Por

mais que não haja discordâncias na bibliografia secundária quanto ao fato de que esta

refutação seja o objetivo principal e explícito de Wittgenstein ao introduzir a noção ali, até

onde pude perceber o papel que a semelhança de família tem de desempenhar para que a

refutação seja bem sucedida foi pouco contemplado.

2.1 As seções que antecedem a §65

Para introduzir e situar a crítica do interlocutor imaginário devemos considerar que,

nas seções que antecedem a §65, Wittgenstein utiliza diversas vezes a noção de jogo de

linguagem como uma ferramenta metodológica para exemplificar e, em seguida, rejeitar

certas teorias ou preconceitos filosóficos sobre a linguagem. É, por exemplo, o caso do jogo

de linguagem dos construtores na §2, uma atividade para a qual a teoria agostiniana da

linguagem exposta na §1 supostamente forneceria uma boa explicação. Entretanto,

Wittgenstein nos mostra em seguida como esta atividade corresponde a uma parte muito

reduzida do que costumamos chamar de linguagem, e que consequentemente a teoria

agostiniana não dá conta de toda a multiplicidade de nossa utilização da linguagem. De

qualquer maneira, a questão que nos interessa aqui é que Wittgenstein não procura fornecer

nenhuma definição do que chama de jogo de linguagem, apesar de empregar este conceito

abundantemente em grande parte das seções que antecedem a §65. Na §7, ele chega a

enunciar alguns conjuntos de atividades que considera como jogos de linguagem, mas de um

modo quase coloquial, o que dificilmente satisfaria um filósofo em busca de critérios claros

para a utilização desta noção (e, menos ainda, um filósofo do círculo da filosofia analítica no

qual Wittgenstein estava até então inscrito). Wittgenstein diz ali que utilizará a expressão

“jogo de linguagem” para se referir a “jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua

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língua materna”, a “linguagens primitivas” e também ao “conjunto da linguagem e das

atividades com as quais está interligada”. Que se possa depreender daí que um jogo de

linguagem consiste, primariamente, no emprego de uma linguagem em uma atividade, e

também no uso que fazemos da linguagem ao ensiná-la a crianças, não nos parece de grande

valia para avaliar se todos os casos em que Wittgenstein emprega a noção até §65 são ou não

válidos, e nem para nos auxiliar a construir jogos de linguagem para nossos próprios

propósitos filosóficos.18

Ou seja, ainda não parece que Wittgenstein tenha fornecido, até a

§65, um critério claro para estabelecer se o que tratou como jogos de linguagem são

realmente jogos de linguagem e podem ser considerados como linguagem, e esta é parte da

crítica que o interlocutor imaginário realizará ao filósofo ali.

Outra ideia importante que também influencia a crítica deste interlocutor é a de que a

linguagem cotidiana nos permite observar somente a superfície da linguagem, e que para

investigar o funcionamento desta seria necessário desvendar, através da análise, suas formas

mais básicas, que seriam subjacentes a esta aparência superficial. Como se sabe, esta ideia foi

adotada pelo primeiro Wittgenstein no seu Tractatus Logico-Philosophicus, que defende que

os componentes fundamentais das proposições, revelados pela análise, são nomes que

designam objetos que seriam indivisíveis e indestrutíveis (cf. IF §39, §46). A discussão dos

pressupostos desta teoria leva Wittgenstein, na §60, a se questionar em que medida faz

sentido falar em formas mais analisadas da linguagem; por exemplo, em que medida podemos

falar que a asserção “A vassoura está no canto”, após uma análise, se revela composta na

verdade pelas proposições “O cabo da vassoura está no canto”, “A escova da vassoura está no

canto” e “O cabo da vassoura está enfiado na escova da vassoura”? Ou em que medida quem

ordena que seja trazida a vassoura que está no canto ordena, em uma forma analisada, que

seja trazido o cabo e a escova da vassoura que estão enfiados um no outro e estão no canto?

Quando peço a alguém que me traga uma vassoura, não peço através da forma “analisada”.

Caso pedisse através desta forma, geraria estranheza no interlocutor, além de provavelmente

18

Como exemplo, uma dificuldade que já foi notada pelos comentadores (cf. Glock, 1996, p. 194) é a de que

Wittgenstein afirma que, apesar de jogos de linguagem serem em geral formas primitivas de linguagem (IF §2),

eles não podem ser recusados como ferramentas filosóficas sustentando-se que se tratam de linguagens

incompletas. Wittgenstein mostra, na §17, que nossa linguagem em algum momento também já foi muito mais

simples (sem, e.g., o simbolismo químico e a notação infinitesimal), e se dissermos que apenas hoje ela é

completa, nos comprometeríamos com a posição de que, no passado, todos falavam uma linguagem incompleta.

Pareceria, então, que não faz sentido falar de completude ou incompletude para um jogo de linguagem. Mas não

podemos dizer que os jogos de linguagem através dos quais as crianças aprendem a linguagem são incompletos?

Pois eles claramente só adquirem relevância se ensinam para algum outro uso da linguagem. O aprendizado de

palavras não é um fim em si mesmo, e pelos próprios critérios de Wittgenstein “o denominar não é ainda

nenhum lance no jogo de linguagem, – tão pouco quanto o colocar uma figura de xadrez no lugar é um lance no

jogo de xadrez. Pode-se dizer: ao se denominar uma coisa, nada ainda está feito” (IF §49). Como podemos então

considerar como jogos de linguagem as atividades através das quais as crianças aprendem a linguagem?

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ser censurado por emitir a ordem de forma tão inusitada. Podemos, obviamente, imaginar que

as ordens – a analisada e a não-analisada – irão gerar o mesmo efeito, e que meu interlocutor

trará a vassoura; mas daí podemos inferir que se trata da mesma ordem nos dois casos? Isto

dependerá de nossos critérios, de nossas considerações sobre o que é aqui essencial considerar

na ordem e em seus efeitos (cf. IF §§62-64). Por exemplo, se em um determinado contexto,

em um determinado jogo de linguagem, fosse necessário que a ordem fosse cumprida e

proferida do modo mais rápido possível, obviamente preteriríamos a forma analisada em favor

da não analisada, que contém menos palavras e pode ser dita e compreendida em um tempo

menor; por outro lado, se pedíssemos a alguém para retirar uma vassoura de um armário em

que há várias vassouras quebradas, a forma analisada poderia nos dar maior garantia de que

nosso interlocutor não nos traria somente o cabo de uma vassoura ou a escova. Destarte, não

existe uma maior exatidão ou uma maior utilidade que seja intrínseca à forma analisada, e

nem há a necessidade de compreender a forma analisada antes que se possa entender a forma

não analisada (pelo contrário, é mais provável que alguém compreenda “Traga-me a

vassoura!” do que “Traga-me o cabo de vassoura e a escova que está enfiada nele!”). No

entanto, é um pressuposto do interlocutor imaginário de §65 que compreender o que é a

linguagem seja possível apenas através de uma investigação que, por meio de uma análise,

possa discernir a essência da linguagem, sua “forma geral”. Apenas de posse dessa “forma

geral” poderíamos, para qualquer caso possível, determinar se se trata ou não de um caso de

linguagem.

2.2 A crítica do interlocutor imaginário da §65 e seus pressupostos

Isto posto, vamos à crítica que o interlocutor imaginado por Wittgenstein o faz, na

§65:

Aqui encontramos a grande questão que está por trás de todas essas

considerações. Pois poderiam objetar-me: “Você simplifica tudo! Você fala

de todas as espécies de jogos de linguagem possíveis, mas em nenhum

momento disse o que é o essencial do jogo de linguagem, e portanto da

própria linguagem. O que é comum a todos esses processos e os torna

linguagem ou partes da linguagem. Você se dispensa pois justamente da

parte da investigação que outrora lhe proporcionara as maiores dores de

cabeça, a saber, aquela concernente à forma geral da proposição e da

linguagem”. [...]

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“Todas essas considerações” às quais Wittgenstein se refere acima são as que expus

anteriormente e que antecedem a §65. Nesta seção, o interlocutor está explicitamente

censurando-o por não fornecer “o que é o essencial do jogo de linguagem”; ao mesmo tempo,

o essencial do jogo de linguagem é tratado como critério imprescindível para discernir o que é

um jogo de linguagem do que não é um jogo de linguagem – critério este que Wittgenstein é

repreendido por não fornecer. O interlocutor estabelece igualmente que dizer o que é essencial

do jogo de linguagem implicaria dizer o que é o essencial da linguagem, e fornecer um

critério para se empregar o termo “jogo de linguagem” nos proporcionaria consequentemente

um critério para empregar corretamente o termo “linguagem”. Por fim, observa que

Wittgenstein está se dispensando da investigação que o ocupara à época do Tractatus, a saber,

a busca pela “forma geral da proposição e da linguagem”; como vimos agora pouco, o

filósofo já vinha dirigindo duras críticas a este tipo de investigação (desde a §46, pelo menos).

A seção continua sem que Wittgenstein rebata diretamente as críticas do interlocutor.

Pelo contrário, veremos que ele assume que estas críticas procedem e, em vez de rebatê-las

diretamente, nas seções seguintes Wittgenstein se dedica a mostrar como os pressupostos

filosóficos da objeção do interlocutor não se coadunam com o funcionamento de muitos

conceitos, entre eles o de “linguagem”. São estes os conceitos por semelhança de família, dos

quais falarei mais à frente. Antes, todavia, é importante estabelecer claramente quais são os

pressupostos filosóficos presentes na supracitada objeção do interlocutor imaginário, já que

Wittgenstein, nas §§65-88, crê refutá-los através da noção de semelhança de família. Se nossa

interpretação da noção deve corresponder à planejada por Wittgenstein, deve poder ser

apresentada como possível refutação aos pressupostos do interlocutor imaginário. Logo, a

partir destes e do papel que a noção deve desempenhar para poder constituir-se como

refutação a eles, podemos estipular novas condições interpretativas que o presente trabalho

deve satisfazer.

C2 (provisória): O que será estabelecido como semelhança de família e como conceitos por

semelhança de família deve se constituir como possível refutação da posição do interlocutor

na §65.

Como observa Forster (2010, p. 66), Wittgenstein “evoca o caráter de semelhança de

família de termos como ‘proposição’ e ‘linguagem’ para neutralizar esta objeção [da §65]

mostrando que ela jaz sobre uma suposição errônea de como estes termos funcionam”. O que

no parágrafo anterior consideramos como “pressupostos filosóficos” do interlocutor o

comentador citado chama de “suposição errônea”. Enfim, Forster (2010, p. 71) remete esta

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suposição errônea a uma posição filosófica que teve como seu primeiro defensor, senão o

Sócrates histórico, certamente o Sócrates platônico: “Nos diálogos Platão representa seu herói

Sócrates requisitando que qualquer termo geral, para ser inteligível, precisa (a) selecionar uma

única forma compartilhada por todas as suas instâncias, que (b) seja definível através de

condições necessárias e suficientes, não triviais (i.e. que forneçam uma análise) e essenciais,

para a aplicação do termo”. De fato, no Eutífron vemos Sócrates se dirigir ao personagem que

dá nome ao diálogo pedindo-lhe que o diga o que é o pio e o ímpio, considerando-os como

formas unas presentes em todas as múltiplas ações enquanto ações pias ou ímpias (Eutífron,

5d, 6d). Sócrates supõe que, quando Eutífron lhe relatar a forma do pio em si, ele (Sócrates)

será capaz de observá-la e, “usando-a como modelo”, será capaz de dizer, para qualquer ação,

se se trata de uma ação pia ou não (Eutífron, 7d).

Na §65, o interlocutor de Wittgenstein lhe pede em relação ao termo “linguagem” algo

muito semelhante ao que Sócrates pede a Eutífron em relação ao termo “pio”.

Correspondendo ao requisito (a), o interlocutor pede a Wittgenstein que lhe diga o que há de

comum entre todos os processos que denominamos “linguagem” e que os tornam linguagens;

já em relação ao requisito (b), assim como Sócrates acreditava que a forma do pio o permitiria

discernir entre ações pias e não pias, o interlocutor wittgensteniano implica que o

conhecimento deste algo em comum o permitirá estabelecer o que é ou não é uma linguagem

para todos os casos possíveis. Posto de uma forma diferente, mas condizente com as

afirmações que o interlocutor fará posteriormente, se crê que este algo em comum nos permita

construir uma definição explícita e analítica19

para “linguagem”, que estabeleça condições

necessárias e suficientes para a aplicação deste conceito20

.

Será proveitoso nos determos um pouco sobre esse ponto, com o qual os

comentadores, em geral, concordam. Glock (1996, p. 120) manifesta a opinião de que

19

Entendo aqui “definição explícita e analítica que estabeleça condições necessárias e suficientes para a

aplicação de um termo” como uma definição que forneça, para um determinado definiendum, um definiens que

possa substituí-lo em contextos extensionais, que não o pressuponha (i.e., que não gere uma definição circular) e

que não contenha informações supérfluas. Além disso, o definiens deve, de certa forma, capturar o “sentido” do

definiendum (pois, do contrário, “Seres com rim ≝ Seres com fígado” seria uma definição válida). 20

Mesmo que o interlocutor, na §65, não formule explicitamente a posição (b) através da exigência deste tipo de

definição, esta exigência pode ser derivada da discussão nas seções subsequentes, onde o interlocutor propõe

definições através de soma lógica (IF §67), onde defende que se não temos critérios delimitados e rígidos para a

aplicação de um conceito não sabemos realmente seu significado (IF §70), e onde defende que certos tipos de

elucidação são inexatos (§88), deixando subentendido que a forma mais adequada de explicação conceitual se dá

através de definições analíticas explícitas. Além disso, Wittgenstein, nas §§82-87, toma o interlocutor como

defendendo implicitamente a posição de que regras para a aplicação de um termo devem indicar se a aplicação é

correta ou incorreta para todos os casos possíveis. Dadas todas essas considerações, extrai-se com algum grau de

probabilidade que é através de uma definição explícita, analítica e exata que o “algo em comum” será capaz de

nos dar critérios decisivos para estabelecer a quais objetos se aplica ou não um conceito (no caso da §65, o de

“linguagem”).

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A noção [de semelhança de família] é crucial para o ataque de Wittgenstein

ao essencialismo, a posição de que deve haver algo comum a todas as

instâncias de um conceito que explique porque elas caem sob ele […], e que

a única explicação adequada ou legítima de uma palavra é uma definição

analítica que estabeleça condições necessárias e suficientes para sua

aplicação, acarretando que, por exemplo, explicações por referência a

exemplos são inadequadas.

Ainda sobre o essencialismo, diz Griffin (1974, p. 636):

A solução que considero que ele [Wittgenstein] está rejeitando é a doutrina

essencialista de que todas as coisas que caem sob um determinado termo

geral o fazem porque cada uma delas possui alguma característica, ou grupo

de características, diferentes da simples e comum aplicação da palavra geral

e não possuída por nenhuma outra coisa.

Percebe-se que Glock coloca sob o rótulo do essencialismo os requisitos “socráticos”

(a) e (b), enquanto que Griffin põe apenas (a) – contudo, independentemente da doutrina a

qual se impute ambos os requisitos, devemos atentar para o fato de que estes são mutuamente

independentes, como constata Forster (2010, p. 72). É possível haver uma propriedade

comum a todas as instâncias de um conceito que seja a razão pela qual estas instâncias são

subsumidas sob ele e, no entanto, tal propriedade comum não poder ser incluída em uma

definição explícita e analítica. Talvez seja o caso, por exemplo, de nossos conceitos de cores,

cheiros, etc. Pois parece, à primeira vista, que todos os falantes apontam como azuis os

mesmos objetos em virtude destes objetos possuírem uma característica em comum –

entretanto, esta característica não pode ser assimilada a uma definição da palavra “azul”.21

Por

outro lado, nem todas as definições explícitas e analíticas são construídas através de uma

propriedade ou de um conjunto de propriedades comum a vários objetos, ou seja, através de

uma definição conjuntiva; existem também definições construídas através de disjunção.

Enfim, os requisitos (a) e (b), o essencialismo e a objeção do interlocutor imaginário

na §65 podem ser inscritos em uma oposição geral do segundo Wittgenstein ao que Glock

(1996, p. 286) chama de “determinismo do sentido” e Fogelin (1996) de “perfeccionismo

lógico”; ambos os termos se referem a um grupo de posições ou preconceitos filosóficos que

nascem da “sublimação da lógica de nossa linguagem” (IF §38). Fogelin (1996, p. 37) se

utiliza da expressão “perfeccionismo lógico” para se referir

21

Uma definição real da cor azul poderia ser “a cor, que no espectro visível, possui um comprimento de onda

entre 450 e 495 nanômetros”, mas não se trata de uma definição para a palavra “azul” tal como a utilizamos

cotidianamente. Não se aprende a utilizar corretamente a palavra “azul” através desta definição real.

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27

à posição, assumida amiúde tacitamente, de que as regras que subjazem e

governam nossa linguagem devem ter uma estrutura ideal – elas devem, por

exemplo, ser absolutamente rigorosas e cobrir todos os casos possíveis.

Ambos os comentadores atribuem este tipo de mentalidade, na história da filosofia,

pelo menos a Frege22

e ao Tractatus; entretanto, é inegável que o primeiro Wittgenstein

cometeu erros que, à luz das Investigações, são um tanto mais graves do que os de Frege. O

filósofo alemão defendia que a linguagem científica deveria ter regras absolutamente

rigorosas e que seus conceitos deveriam ter sentido e referência estritamente estabelecidos,

mas tinha consciência de que a linguagem natural não se adequava a tais padrões e não

defendia que deveriam ser impostos a ela. Já o autor do Tractatus tem uma posição diferente:

assevera que esta ordem lógica de regras e conceitos rigorosamente delimitados jaz sob a

linguagem natural, e que uma análise apropriada é capaz de a revelar. Nossos termos

aparentemente vagos, quando analisados, dariam lugar a nomes com referentes estritamente

estabelecidos, viz. objetos indivisíveis e indestrutíveis, o que garantiria a perfeição lógica de

nossas frases e também a manutenção do princípio da bivalência.

Dadas estas considerações, podemos aperfeiçoar C2, pois vimos que a posição do

interlocutor imaginário pressupõe que exista algo comum a todas as instâncias de um conceito

que seja o motivo pelo qual o aplicamos corretamente a todas elas e que conhecer o “algo em

comum” a todas as instâncias de um conceito nos fornece um critério para determinar quais

objetos pertencem ou não a ele:

C2 (provisória): O que será estabelecido como semelhança de família e como conceitos por

semelhança de família deve se opor à posição de que para todo conceito existe algo comum a

todas as suas instâncias que seja o motivo pelo qual o aplicamos corretamente a todas elas, e

que conhecer o “algo em comum” a todas as instâncias nos fornece um critério para

determinar quais objetos pertencem ou não ao conceito.

Como Richman (1962) e Campbell (1965) observam em seu artigos, existe uma

dificuldade na formulação wittgensteiniana que diz respeito ao que devemos entender por

22

Glock (1996, p. 98) deriva o termo “determinismo do sentido” de Frege, ao dizer que este “postulou que um

conceito deve ter “limites nítidos”, ou seja, que sua definição deve ‘determinar de modo inequívoco, para

qualquer objeto, se ele cai ou não cai sob o conceito’ (Leis II §§56-64; Póstumo 155). Um conceito sem uma

definição precisa não é um conceito genuíno.” Wittgenstein levanta o mesmo ponto na §71: “Frege compara o

conceito com um distrito e diz: não se poderia absolutamente chamar de distrito um distrito vagamente

delimitado. Isto é, nada podemos fazer com ele.”

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“algo em comum”23

. Seria este “algo em comum” a todas as instâncias de um conceito apenas

uma característica ou propriedade? É extremamente improvável que Wittgenstein quisesse

dizer isso. Afinal, com apenas uma propriedade dificilmente se pode justificar a aplicação de

um conceito. Tomemos, por exemplo, a definição de homem. Homem é todo animal racional.

Formulando isto em lógica de predicados de primeira ordem, teríamos ∀x(Hx⟷Ax˄Rx).

Assim podemos aplicar corretamente o predicado “x é homem” somente a objetos aos quais

possam ser aplicados corretamente ambos os predicados “x é animal” e “x é racional”.

Cotidianamente falamos em ações racionais, e obviamente existem muitos outros animais

além do homem, de modo que nenhuma das duas propriedades pode sozinha definir o que é

ser homem (de fato, toda definição per genus et differentiam, como o próprio nome já diz,

necessita de duas propriedades: uma correspondente ao gênero, e outra que é a diferença

específica). Além do mais, na linguagem cotidiana dizemos frequentemente que algumas

pessoas têm mais em comum que outras, e este algo em comum consiste em um maior número

de conjunções de características (pessoas loiras e altas têm mais em comum, sob estes

aspectos, do que pessoas loiras de alturas díspares). É evidente, deste modo, que C2 pode ser

melhor formulada da seguinte maneira:

C2: O que será estabelecido como semelhança de família e como conceitos por semelhança de

família deve se opor à posição de que para todo conceito existe uma característica ou um

conjunto de características comum a todas as suas instâncias que seja o motivo pelo qual

aplicamos o conceito corretamente a todas elas, e que para todo conceito nosso conhecimento

de tal característica ou conjunto de características nos forneça um critério para determinar

quais objetos pertencem ou não a ele.

2.3 A suposta impossibilidade da definição disjuntiva

Há ainda um último ponto a considerar, não imediatamente percebido pelo interlocutor

imaginário na §65, mas apenas posteriormente, na §68: a possibilidade de se construir, para

conceitos por semelhança de família, definições que não se baseiam em uma propriedade ou

em um conjunto de propriedades em comum, mas sim em disjunções.24

Como expus

anteriormente, o principal motivo pelo qual o interlocutor da §65 critica Wittgenstein é por ele

23

Richman (1962, p. 822): “Devem (precisam) todas as instâncias subsumidas sob um termo geral unívoco ter

algo em comum? Wittgenstein nos convida a dar uma resposta negativa a esta questão. Eu estou mais inclinado a

parafrasear a própria resposta de Wittgenstein a uma questão filosófica diferente (em §47, a questão de se uma

imagem visual é composta), e a dizer, “Isto depende do que você quer dizer por ‘algo em comum’”.” 24

O interlocutor diz na §68: “Bem; então o conceito de número explica-se para você [Wittgenstein] como a

soma lógica daqueles conceitos isolados aparentados entre si: número cardinal, número racional, número real,

etc., e igualmente o conceito de jogo como soma lógica de conceitos parciais correspondentes.”

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não ter fornecido uma definição do que chama de “jogo de linguagem” e do que chama de

“linguagem”. O interlocutor acredita que esta definição só pode ser fornecida através de uma

propriedade que todos os jogos de linguagem e todas as linguagens tenham em comum. No

entanto, mesmo que Wittgenstein seja bem sucedido em rejeitar esta posição, ainda

permanece a questão: mas não podemos definir “linguagem” através de uma série de

disjunções, de uma soma lógica? Pois, com este tipo de definição, é possível estabelecer

critérios para o uso de um conceito mesmo que os objetos aos quais este conceito se aplique

não possuam nada em comum. Por mais que a forma usual da definição analítica explícita,

quando aplicada a conceitos de nossa linguagem, seja conjuntiva, é inegável a utilidade que

definições disjuntivas podem ter para nós. Não precisamos de muitos exemplos para notar que

disjunções são tão utilizadas na linguagem natural quanto conjunções (“Viajarei amanhã ou

depois de amanhã”; “O tempo ficará ruim no fim de semana ou segunda-feira”, “presidente do

Brasil é o homem ou a mulher que governa o país”, etc.).25

Se se pudesse estabelecer com

segurança uma definição disjuntiva rígida para “jogo de linguagem”, por exemplo, que me

permitisse estabelecer quais construções contam ou não como jogos de linguagem, não seria

isto de grande valia?

Todavia, Wittgenstein afirma que não podemos construir uma tal definição que

corresponda ao uso que fazemos dos conceitos por semelhança de família, como

“linguagem”, “folha”, etc., e que uma definição disjuntiva estipularia limites para um novo

conceito. Isto é, teríamos não o velho conceito em sua forma aperfeiçoada, mas a criação de

outro conceito, aparentado com o conceito por semelhança de família, mas diferente dele (cf.

IF §76). Este tema será extensamente trabalhado no capítulo Semelhança de Família e

Definições Disjuntivas, mas já é possível antever sua relevância e estabelecer uma última

condição interpretativa que nossa construção da noção de semelhança de família deverá

respeitar:

C3: Nossa construção de semelhança de família e dos conceitos por semelhança de família

deve procurar explicar porque estes conceitos não podem receber definições analíticas

explícitas disjuntivas.

Sem C3, Wittgenstein estaria aberto à crítica de que, se nos esforçássemos

suficientemente, poderíamos construir uma definição disjuntiva de “jogo de linguagem” que

pudesse estabelecer, para todos os casos possíveis, o que conta ou não conta como “jogo de

25

Frequentemente a disjunção utilizada na linguagem natural é a exclusiva (i.e., contravalência), em vez da

disjunção não-exclusiva utilizada pela maior parte dos sistemas lógicos. Isto, no entanto, não é relevante aqui.

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linguagem”, e, portanto, que a rejeição da busca por uma definição foi mera negligência do

trabalho filosófico. Todavia, é evidente, pelo que já vimos até aqui, que o filósofo era

extremamente consciente da ausência de definição para “linguagem” e “jogo de linguagem”

em sua obra, de modo que uma justificativa adequada para tal ausência, ou algo que aponte

nessa direção, deve poder ser encontrado nas Investigações e satisfazer C3. Posiciono-me,

assim, ao lado de Sluga (2006, p. 4):

[Wittgenstein] está se defendendo da acusação de que suas considerações

sobre linguagem e significado nas primeiras sessenta e quatro seções das

Investigações Filosóficas não têm nenhum peso, já que ele falhou em definir

o conceito de linguagem. Para neutralizar esta crítica ele precisa mostrar não

somente que (a) “linguagem” é um termo por semelhança de família mas

também, e mais significativamente, que (b) termos por semelhança de

família não são capazes de definição formal.

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3 SEMELHANÇA DE FAMÍLIA

3.1 A falta de “algo comum” a todas as instâncias

Pretendo, a partir de agora, me focar detalhadamente nas Investigações Filosóficas e

realizar uma leitura pormenorizada das §§65-88, com o fim de apresentar e explicitar a

construção que Wittgenstein realiza da noção de semelhança de família. Como vimos

anteriormente, o primeiro trecho da §65 expõe a acusação de um interlocutor imaginário a

Wittgenstein, censurando-o por não ter fornecido ainda o que é comum a tudo o que

chamamos de “linguagem” e a tudo o que o próprio filósofo chama de “jogo de linguagem”,

além de reprová-lo também por não oferecer definições a nenhum dos dois conceitos. A

resposta de Wittgenstein, ainda na §65, é a que segue:

E isso é verdade. – Em vez de indicar algo que é comum a tudo aquilo que

chamamos de linguagem, digo que não há uma coisa comum a esses

fenômenos, em virtude da qual empregamos para todos a mesma palavra, –

mas sim que estão aparentados uns com os outros de muitos modos

diferentes. E por causa desse parentesco ou desses parentescos, chamamo-los

todos de “linguagens”. Tentarei elucidar isso.

Como se pode ver, o filósofo admite que, de certa forma, as críticas que recebeu de

seu interlocutor procedem. O que Wittgenstein ataca, no entanto, são os pressupostos sobre os

quais estas críticas são construídas. Assim, ele diz que, contrariamente ao preconceito

filosófico do interlocutor, “não há uma coisa comum a esses fenômenos [que chamamos de

linguagem], em virtude da qual empregamos para todos a mesma palavra”. Nós empregamos

a mesma palavra para todos esses fenômenos porque eles estão “aparentados uns com os

outros de muitos modos diferentes”. Há aí uma contraposição clara entre duas razões pelas

quais aplicamos uma palavra a um certo grupo de objetos: 1) aplicamos a palavra a

determinados objetos em virtude de uma característica que todos estes objetos possuem em

comum; 2) aplicamos a palavra a determinados objetos em virtude de uma série de

características (ou “parentescos”), nenhuma das quais todos estes objetos possuem em

comum. O segundo tipo de aplicação corresponde aos conceitos por semelhança de família.

Ademais, fica evidente que conceitos que se aplicam a objetos graças a mais de uma

propriedade em comum que estes possuam (e.g., no caso de “solteiro”, que se aplica a objetos

que são homens e que não são casados) estão muito mais próximos de (1) que de (2), pois em

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(2) não há característica comum a todos os objetos em virtude da qual um conceito se aplique

a eles. Deste modo, o que Wittgenstein está dizendo aqui se adequa a C2: alguns conceitos se

aplicam a determinados objetos não graças a uma característica ou um grupo de

características em comum, mas graças a uma série de parentescos. Conceitos que podem ser

construídos por definições conjuntivas, assim, não são considerados conceitos por semelhança

de família (e.g., “solteiro” considerado enquanto “homem não-casado e não viúvo” e “filho”

enquanto “indivíduo do sexo masculino em relação aos pais”).26

3.2 O tipo adequado de investigação filosófica

O filósofo termina a §65 com uma promessa de que as seções seguintes procurarão

elucidar o que foi dito ali, e já na §66 ele investiga o conceito de “jogo” para mostrar que não

há nada em comum a todos os jogos em virtude de que apliquemos a todos eles a palavra

“jogo”. Não se deve negligenciar o fato de que Wittgenstein coloca, como primeiríssimo

ponto para elucidar o que foi dito na §65, o exame do funcionamento de um conceito. Afinal,

ao investigarmos as seções das Investigações que nos levaram a construir C1, ficou evidente a

oposição wittgensteiniana à construção de teorias em filosofia, e, sob essa luz, poderia parecer

um tanto estranho o posicionamento do filósofo na §65. Ele expõe ali o que à primeira vista

poderia nos parecer uma teoria filosófica, que propõe que certos conceitos são aplicados a

determinados objetos graças a uma série de parentescos existentes entre esses objetos, e não

graças a uma característica em comum. Entretanto, o que se segue nas Investigações deixa

manifesto que, ao menos aos olhos de Wittgenstein, não se trata de uma teoria ou de uma

hipótese. Trata-se, sim, de uma conclusão direta da investigação de como certos conceitos

funcionam em nossa linguagem. Forster (2010, p. 75) observa que “Wittgenstein tem a

intenção de que grande parte da força de seu modelo de semelhança de família venha do

exame minucioso de exemplos específicos” – eu diria que, se Wittgenstein deseja ser

condizente com a sua rejeição de teorias filosóficas, toda a força do modelo deve vir da

verificação minuciosa de exemplos específicos. Se um conceito é ou não um conceito por

semelhança de família deve ser uma conclusão direta do exame de seu funcionamento.27

26

Campbell (1965, p. 243) atenta para o fato de que “um predicado não é um predicado por semelhança de

família em nenhum sentido absoluto, mas apenas relativamente a um dado contexto linguístico abarcando como

variáveis o vocabulário, os propósitos, as capacidades e as escolhas de um grupo que se utiliza da linguagem”.

Por isto devemos dizer que “solteiro” não é um conceito por semelhança de família se considerado enquanto

“homem não-casado e não viúvo”, i.e., se considerado por meio de uma definição conjuntiva. 27

Não me estenderei na discussão de exemplos específicos deste tipo de exame, mas em relação a isto é

interessante conferir a análise que Wittgenstein realiza do conceito de “ler”, a partir da §156. Ela é

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É sob este prima que deve ser lida a seguinte admonição wittgensteiniana, presente na

§66: “Considere, por exemplo, os processos que chamamos de ‘jogos’. [...] O que é comum a

todos eles? Não diga: “Algo deve ser comum a eles, senão não se chamariam ‘jogos’”, – mas

veja se algo é comum a eles todos.” A oposição aqui é muito clara: de um lado temos uma

posição teórica que prescinde de examinar o funcionamento efetivo de nossa linguagem

(“Algo deve ser comum a eles, senão não se chamariam ‘jogos’”), ou que já se lança sobre a

linguagem pensando que ela deva corresponder a uma certa teoria; do outro lado, temos a

posição wittgensteiniana – resumida sob o lacônico veja –, que nos aconselha a analisar os

casos específicos do que costumamos chamar de “jogo” antes de estabelecer se tal conceito se

aplica corretamente a estes casos graças a uma característica comum a todos eles. Ao dizer-

nos “não pense, mas veja!”, Wittgenstein deseja nos precaver contra este tipo de

(pressu)posição teórica. O mesmo ponto é reafirmado na §340: “Não podemos adivinhar

como uma palavra funciona. Temos de ver seu emprego e aprender com isso”. Assim, que

certos conceitos sejam conceitos por semelhança de família é inferido diretamente de uma

investigação do funcionamento destes conceitos, e o que é exposto a partir da §65 deve ser

visto principalmente como uma tentativa de descrever o funcionamento de um certo tipo de

conceito, e não como uma hipótese a ser posteriormente confrontada com a realidade.

Respeitamos, desta forma, C1, além de evidenciarmos como Wittgenstein pôde ter pensado a

noção de semelhança de família sob sua reiterada injunção de que a tarefa da filosofia é

primordialmente descritiva.

Após o exame de “jogo”, buscando nos diversos jogos uma característica em comum a

todos eles que justifique a aplicação do conceito e falhando, o que Wittgenstein descobre, ao

invés disso, é que entre os jogos existe “uma rede complicada de semelhanças, que se

envolvem e se cruzam mutuamente. Semelhanças de conjunto e de pormenor” (IF §66).

Muitos jogos são recreativos, mas nem todos (considere o futebol jogado profissionalmente,

por exemplo). A maioria envolve a vitória e a derrota de jogadores, mas estes conceitos não

são tão facilmente aplicáveis a jogos como “verdade ou consequência” e role-playing games.

Recreação e vitória/derrota são portanto características de um grande conjunto de jogos, mas

não de todos. Por outro lado, alguns jogos são jogados com bolas, alguns envolvem redes,

alguns envolvem corrida, e estas características se cruzam e se sobrepõem. Certamente, todos

provavelmente a mais extensa e direta que o filósofo realiza para um conceito por semelhança de família nas

Investigações. A conclusão é de que não aplicamos “ler” para descrever um processo que esteja ocorrendo na

mente daquele que lê, mas que possuímos diversos critérios em diferentes contextos para utilizar o conceito, e

nenhum destes critérios pode ser considerado como único e necessário para dizermos se alguém está lendo ou

não.

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são atividades, e a maioria possui regras, mas apenas estas características dificilmente podem

defini-los – uma reunião de trabalho é igualmente uma atividade e possui regras. Destarte,

Wittgenstein utiliza “jogo” como o exemplo paradigmático de um conceito por semelhança de

família. Não há uma única característica ou conjunto de características que todos os jogos

possuam em comum e que possa definir o que é um “jogo”, mas sim uma complicada rede de

semelhanças.

3.3 A expressão “semelhança de família” e os problemas que traz

Na §67, Wittgenstein caracteriza essas semelhanças com a expressão “semelhança de

família”, observando que “assim se envolvem e se cruzam as diferentes semelhanças que

existem entre os membros de uma família: estatura, traços fisionômicos, cor dos olhos, o

andar, etc., etc.” Por fim, diz ele: “os “jogos” formam uma família”. Esta passagem,

amplamente discutida pelos comentadores, suscita algumas dificuldades que serão tratadas a

seguir.

É evidente, pela discussão que fizemos da §65, que as semelhanças e os parentescos

são, para Wittgenstein, os responsáveis pela aplicação correta de um conceito por semelhança

de família, ao invés de um conjunto de características comuns. Neste sentido, a “família” que

os “jogos” formam deve existir graças a tais semelhanças e parentescos, sendo sua extensão

delimitada por eles – e o mesmo vale para os outros conceitos por semelhança de família.

Assim, independentemente das conclusões que Griffin (1974, p. 636) tira de sua interpretação,

ele acerta parcialmente ao afirmar que, para Wittgenstein, “nós aplicamos um termo geral a

algumas coisas porque há uma semelhança de família entre elas e não o aplicamos a outras

porque tal semelhança de família não existe entre elas”.28

Como é em virtude dessas

semelhanças de família que aplicamos um conceito por semelhança de família a determinados

objetos, é possível que alguém justifique a aplicação que faz de tal conceito através da

indicação de tais semelhanças. Assim, Forster (2010, p. 85) constata uma dimensão

reducionista nos conceitos por semelhança de família:

Apesar de Wittgenstein falhar em mencioná-lo [...], seu modelo de conceitos

por semelhança de família parece implicar que as características [features]

do mundo que são expressas por tais conceitos são sempre de alguma

28

Digo “parcialmente” porque, contrariamente ao que sugere a passagem, já vimos que nem todo conceito é um

conceito por semelhança de família, e portanto nem todos os “termos gerais” são aplicados em virtude de

semelhanças de família entre os membros; além disso, não há somente uma semelhança de família entre os

membros aos quais um conceito por semelhança de família se aplica, mas várias.

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maneira redutíveis a outras características. Pois o modelo implica que um

conceito deste tipo não envolve nenhuma característica comum e também

que, em vez disso, se aplica em virtude de características outras que a

característica expressa pelo próprio conceito.

As semelhanças de família são, desta forma, logicamente anteriores ao conceito que é

aplicado em virtude delas. Entretanto, na linguagem natural não é assim que funcionam os

conceitos “família” e “semelhança de família”, e isto é um problema sério para a formulação

wittgensteiniana.

Pompa (1967, p. 65) constata que, no caso das semelhanças que existem entre os

membros de uma família humana, o conceito de família é independente e logicamente anterior

ao conceito de “semelhança de família” ou de “semelhança entre os membros”. Os membros

são estabelecidos a partir do nosso conceito de família e as semelhanças são percebidas

posteriormente, sem que elas exerçam influência na formação da própria família. Então,

conclui Pompa (1967, p. 65), “se segue que alguém não pode estabelecer que haja uma

semelhança de família entre x e y a não ser que possa ser estabelecido pelo menos que x e y se

assemelham e que x e y são da mesma família”. Os critérios para estabelecer que x e y são da

mesma família são independentes dos utilizados para estabelecer que x e y se assemelham, de

modo que a metáfora utilizada por Wittgenstein na §67 se esfacela facilmente.

Cotidianamente, nós não estamos prontos a dizer que duas pessoas são da mesma família

graças a um conjunto de semelhanças físicas entre elas. Não dizemos que duas pessoas são da

mesma família se possuírem olhos azuis, nariz fino, cabelo loiro e orelhas pequenas. Mas

dizemos que é uma característica de uma determinada família um tipo de nariz, por exemplo –

e só o dizemos por saber quais são os membros desta família, sendo o reconhecimento da

semelhança posterior a isto.

Isto está em patente contradição com o objetivo de Wittgenstein ao introduzir a

semelhança de família. As diversas semelhanças de famílias que existem entre os objetos aos

quais se aplica um conceito deveriam servir ao menos como justificativa para a aplicação do

conceito, mas não podem exercer esse papel caso a sua própria aplicação dependa

anteriormente da aplicação do conceito. As semelhanças de família entre a, b e c não podem

justificar a aplicação do predicado F a estes objetos se preciso anteriormente pressupor que

Fa, Fb e Fc para atribuir tais semelhanças de família a eles. Portanto, a metáfora na §67 deve

ser compreendida de outro modo. Quando Wittgenstein diz que não pode “caracterizar melhor

essas semelhanças do que com a expressão “semelhança de família”; pois assim se envolvem

e se cruzam as diferentes semelhanças que existem entre os membros de uma família...” (IF

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§67), nós não devemos procurar estender a metáfora para além de seu objetivo explícito aqui:

o que é dito é somente que as semelhanças que formam o conceito “jogo” podem ser

comparadas com as semelhanças físicas entre os membros de uma família: assim como grande

parte dos jogos envolvem vitória/derrota, grande parte dos membros de uma família podem

ter a pele branca; assim como alguns jogos envolvem cartas, alguns membros de uma família

podem ser altos, e por aí vai. Nesta concepção a metáfora tem a intenção, um tanto modesta,

de mostrar apenas como se espalham e se configuram (como se “envolvem e se cruzam”) as

semelhanças de família entre o objetos aos quais um conceito se aplica. Entretanto, como foi

comprovado acima, este é o único uso adequado que pode ser feito desta metáfora, pois

quando consideramos o termo “semelhança de família” na linguagem cotidiana percebemos

que ele possui regras completamente diferentes (que dependem, primariamente, da aplicação

de “família”) das regras para a aplicação da noção de semelhança de família nas

Investigações.

Existe ainda um outro problema com esta metáfora, que a grande maioria dos

comentadores falhou em notar e que é a principal causa da objeção de que os conceitos por

semelhança de família teriam texturas amplamente abertas: assim como a metáfora parecia

sugerir que agrupamos certos indivíduos em uma mesma família graças a eles serem mais

parecidos ou possuírem um número de semelhanças físicas que outros indivíduos não

possuem, foi atribuída a Wittgenstein a opinião de que “jogo” seria construído através da

percepção de muitas semelhanças existentes entre os diversos jogos (e o mesmo valeria para

os outros conceitos por semelhança de família). Mas Wittgenstein não diz isso em momento

algum. O que ele afirma é que certas semelhanças são determinantes para diferenciar o que é

um jogo do que não é – mas não se pronuncia sobre como são estabelecidas quais

semelhanças devem ser levadas em conta. A este propósito, Forster (2010, p. 82) declara que

não faz parte da posição wittgensteniana sobre os conceitos por semelhança de família que

estes conceitos sejam definidos através de instâncias particulares e “tudo o que se assemelhe a

elas de toda e qualquer maneira” – ao invés disso, a “ideia é que as semelhanças em questão

serão uma variedade de tipos específicos de semelhanças entre as instâncias particulares do

termo”. Não são os objetos e quaisquer semelhanças entre eles que determinam a extensão do

conceito, e sim algumas semelhanças relevantes que determinam quais objetos pertencem ou

não ao conceito.

Entretanto, como estabelecer quais são as semelhanças relevantes para a delimitação

do conceito não é uma preocupação de Wittgenstein, que repete algumas vezes – inclusive na

§124, já discutida – que a tarefa da filosofia não é fundamentar a linguagem. Ou seja,

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Wittgenstein não pretende justificar a existência de nossos conceitos ao descrever seu

funcionamento através da semelhança de família. Não é sua intenção mostrar como nós, a

partir de nossa percepção sensível, originamos um conceito através de um grande número de

semelhanças que percebemos entre os objetos, nem nada parecido. Existe somente a

afirmação: certos conceitos são delimitados através de uma rede de semelhanças, e não

através de uma ou mais características em comum. E assim, contrariando Bambrough (1960-

1961), Pompa (1967) e Griffin (1974), vemos como a semelhança de família não quer e nem

deve ser considerada como uma teoria dos universais. No entendimento desses autores, uma

teoria deste tipo deveria explicar “porque nós aplicamos termos gerais da maneira como o

fazemos” (POMPA, 1967, p. 65), ou “porque nós utilizamos uma palavra geral para aplicá-la

corretamente a um número de diferentes coisas particulares, eventos, pessoas, etc., e, ao

mesmo tempo, não aplicá-la corretamente a outras coisas particulares, eventos, pessoas, etc.”

(GRIFFIN, 1974, p. 636). Mas Wittgenstein não deseja explicar isto. Ele não tenciona

fornecer o porquê de nossa aplicação de termos gerais a certos objetos. Ele deseja,

certamente, rebater a teoria de que nós aplicamos todo e qualquer termo geral a um

determinado número de objetos graças a uma característica ou um conjunto de características

que estes possuem em comum – mas sem formular uma teoria contrária. A mera investigação

do funcionamento de alguns conceitos, e a constatação de que funcionam do modo como

Wittgenstein os descreve, basta para refutá-la.29

Curiosamente, Pompa (1967) concebe esta

possibilidade, mas a descarta por acreditar que não possui relevância filosófica (o que, como

já vimos no capítulo Abordagem Metodológica, é injustificável). Diz ele que é difícil ver o

que o filósofo poderia dizer em resposta ao problema da textura amplamente aberta, exceto

“alegar que é apenas um fato que termos gerais são aplicados aos grupos específicos de

semelhanças sobrepostas”, pois “ele [Wittgenstein] certamente não pode usar a noção de

semelhança de família para explicar o agrupamento de semelhanças de família, já que [...]

existem semelhanças [...] entre atividades às quais diferentes termos são aplicados” (POMPA,

1967, p. 67). Com efeito, Wittgenstein não procura explicar porque determinadas

semelhanças contam para a aplicação do termo “jogo” e outras não. Isto é um fato e a tarefa

da filosofia não é justificá-lo ou explicá-lo, mas apenas mostrá-lo – pois é este fato que é

negligenciado pela posição do interlocutor na §65, que acredita que somente aplicamos um

termo geral a certos objetos em virtude de algo que todos possuam em comum.

29

O que afirmo aqui condiz com a posição contrária à construção de teorias filosóficas que Wittgenstein sustenta

nas Investigações, e deve ser pensado a partir dela. Deste modo, circunscrevo a opinião de que a semelhança de

família não pretende ser uma teoria dos universais somente às Investigações Filosóficas; qual é o papel filosófico

da noção em outros textos wittgensteinianos não será discutido aqui.

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38

E já que um conceito por semelhança de família tem sua extensão delimitada pelas

semelhanças de família, torna-se evidente, como Wittgenstein observa na §67, que novos

objetos serão tomados ou não como instâncias deste conceito se possuírem tais semelhanças –

i.e., o conceito também é estendido a novos objetos com base nas semelhanças de família:

Por que chamamos algo de “número”? Ora, talvez porque tenha um

parentesco – direto – com muitas coisas que até agora foram chamadas de

número; e por isso, pode-se dizer, essa coisa adquire um parentesco indireto

com outras que chamamos também assim. E estendemos nosso conceito de

número do mesmo modo como que para tecer um fio torcemos fibra com

fibra. E a robustez do fio não está no fato de que uma fibra o percorre em

toda sua longitude, mas sim em que muitas fibras estão trançadas umas com

as outras.

As fibras, obviamente, são as semelhanças de família, enquanto o fio representa o

conceito.

3.4 Quantos são os conceitos por semelhança de família

Por fim, a observação de Forster (2010) sobre o aspecto reducionista dos conceitos por

semelhança de família nos ajuda a resolver a questão de quantos dos conceitos de nossa

linguagem seriam determinados por semelhança de família.30

O comentador observa que

Wittgenstein “normalmente, não diz ou implica […] que todos os conceitos funcionem desta

maneira”, pois “sustentar que todos os conceitos funcionem desta maneira estaria em

desacordo com sua rejeição da ‘ânsia por generalidade’ em filosofia” (FORSTER, 2010, p.

67). De fato, Wittgenstein é extremamente cauteloso em generalizar suas conclusões, e só

poderia sustentar que todos os conceitos de nossa linguagem são conceitos por semelhança de

família se examinasse o funcionamento de todos eles (se, como propomos, a ilação de que um

conceito é determinado por semelhança da família só pode decorrer diretamente da análise de

seu funcionamento). Além disso, já vimos na §65 que conceitos que podem ser fixados

através de definições conjuntivas não são considerados conceitos por semelhança de família, e

veremos no capítulo seguinte (Semelhança de Família e Definições Disjuntivas) que um

conceito por semelhança de família que tenha sua aplicação delimitada por uma definição

disjuntiva é um novo conceito, e não mais o conceito por semelhança de família que existia

anteriormente, antes da delimitação (cf. IF §76). Foster (2010, p. 86) conclui que

30

Este problema havia sido levantado na nota de rodapé 16.

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39

uma vez que esta implicação redutiva do modelo wittgensteiniano esteja

explicíta, torna-se claro que ele [Wittgenstein] não pode sustentar, de

maneira coerente, que todos os conceitos tenham um caráter de semelhança

de família. Pois seria incoerente supor que todas as características da

realidade que nós identificamos com nossos conceitos sejam redutíveis a

outras características.

Baseando-se em um raciocínio análogo, Sluga (2006, p. 3) assume a posição de que

todos os termos que nós utilizamos para “indicar características diretamente observáveis das

coisas”, como “vermelho”, “redondo” ou “quente”, não são conceitos por semelhança de

família. Ele chama estes termos de “básicos”, e observa que tais termos não admitem

definição formal e são, ao invés disso, explicados por ostenção. É realmente improvável que

Wittgenstein considerasse tais conceitos como conceitos por semelhança de família; além de

ser muito mais plausível (apesar de ainda problemático) dizer que um conceito como

“vermelho” se aplica a objetos que possuem algo em comum em vez de dizer que “vermelho”

se aplica a objetos que possuem certas semelhanças entre si, a metáfora da família da §67 é

completamente inaplicável a este termo. Destarte, parece-me incabível atribuir a Wittgenstein

a opinião de que todos ou a maioria dos conceitos de nossa linguagem sejam conceitos por

semelhança de família.

Para concluir este capítulo e e preparar o caminho para os desenvolvimentos que virão

a seguir, podemos expor provisoriamente as nossas conclusões a respeito da semelhança de

família:

O termo ‘semelhança de família’ é utilizado por Wittgenstein para descrever um

tipo de característica31

presente nas instâncias de um determinado tipo de conceito.

Características deste tipo delimitam32

quais casos (ou objetos) podem ser considerados

como instâncias deste conceito, pois os classificamos como instâncias ou não instâncias

31

Devo ao professor Diogo França Gurgel a observação de que, estritamente falando, semelhanças não são

características, e sim relações. Como podemos, todavia, considerar que quando há uma semelhança de família

entre dois objetos esta semelhança é fundamentada sobre uma característica que ambos possuem em comum, é

possível reduzir a relação de semelhança à posse desta característica. Dito de modo formal, uma semelhança de

família é uma relação simétrica entre dois objetos. 32

É importante notar, entretanto, que elas não precisam delimitar sozinhas a extensão de um conceito para que

este conceito seja um conceito por semelhança de família. Conceitos como “jogo” e “linguagem”, que são

conceitos por semelhança de família, certamente possuem características necessárias, sem as quais é impossível

que algo seja um jogo ou uma linguagem. Assim, todo jogo é uma atividade, mas nem toda atividade é um jogo:

ser uma atividade é uma característica necessária, mas não suficiente, para que algo seja um jogo. A extensão do

conceito “jogo” é determinada pelas características necessárias em conjunto com as semelhanças de família.

Uma delimitação rígida para sua extensão provavelmente adquiriria a forma de uma definição que combinasse

conjunções e disjunções.

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do conceito ao identificarmos se tais características estão presentes neles ou não.

Nenhuma dessas características está presente em todas as instâncias do conceito.

Os conceitos delimitados por características deste tipo são ‘conceitos por

semelhança de família’.

Este é, evidentemente, um resumo um tanto simplório do que foi até aqui trabalhado,

mas podemos constatar através dele que, apesar de já fazermos frente à C1 (pois não

consideramos as observações wittgensteinianas sobre semelhança de família como uma teoria,

mas como uma descrição do funcionamento de certos conceitos) e à C2 (pois já mostramos

como alguns conceitos, como “jogo”, não podem ter sua aplicação justificada por uma

característica ou conjunto de características comuns aos objetos aos quais se aplicam), ainda

não fomos capazes de satisfazer C3. Que “jogo” e “linguagem” sejam delimitados por uma

série de características, nenhuma das quais é comum a todos os objetos aos quais aplicamos

estes conceitos, não nos impede de fornecer uma definição disjuntiva para eles. Cabe-nos

agora estabelecer porque uma definição disjuntiva é incapaz de capturar o modo como

aplicamos estes conceitos.

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4 SEMELHANÇA DE FAMÍLIA E DEFINIÇÕES DISJUNTIVAS

4.1 A possibilidade de se definir conceitos através de disjunções e sua relevância

Ao final da §67, Wittgenstein imagina que alguém possa objetá-lo que “a disjunção de

todas as características comuns” de um grupo de objetos seria algo que estes objetos possuem

em comum, mas dispensa esta tese como mero “jogo de palavras”. Realmente, não é difícil

perceber que estabelecer uma definição disjuntiva somente através deste procedimento não

nos levaria a lugar algum. Primeiramente, em situações cotidianas, quando perguntamos a

alguém o que determinados objetos possuem em comum, não costumamos aceitar como

resposta algo como “todos são vermelhos ou verdes”; diríamos a esta pessoa que ela está

listando duas características, e que os tais objetos não possuem nenhuma delas em comum –

diríamos que parte dos objetos tem em comum serem verdes, e outra parte tem em comum

serem vermelhos. Além disso, se considerarmos simplesmente a disjunção de todas as

características comuns no momento de construir uma definição disjuntiva, haverá sem dúvida

um número enorme de características supérfluas para nossa definição. Por exemplo, todos os

jogos são atividades, mas pelo critério acima também deveria constar na definição de jogo que

todos os jogos são atividades ou não, todos os jogos são jogos ou reuniões de trabalho, e por

aí vai. Por fim, mesmo que fossemos capazes de descartar todos os disjuntos supérfluos, a

definição não poderia ser construída apenas com base na “disjunção de todas as suas

características comuns”, mas deveria se utilizar também, pelo menos, de conjunções; afinal, é

uma característica comum a alguns jogos que neles se chute uma bola, e se este fosse um dos

disjuntos de nossa definição puramente disjuntiva, qualquer ato de chutar uma bola

constituiria um jogo. Destarte, é um tanto simplório dizer que todos os objetos aos quais se

aplicam um determinado conceito têm em comum “a disjunção de todas as suas características

em comum” – isto não nos auxilia a estabelecer critérios para nossa aplicação do conceito.

Na §68, entretanto, Wittgenstein parece considerar um pouco mais a sério a

possibilidade da definição disjuntiva. Seu interlocutor imaginário observa:

Bem; então o conceito de número explica-se para você como a soma lógica

daqueles conceitos isolados aparentados entre si: número cardinal, número

racional, número real, etc., e igualmente o conceito de jogo como soma

lógica de conceitos parciais correspondentes.

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Ou seja, o que o interlocutor propõe aqui é que os conceitos que Wittgenstein

considera como conceitos por semelhança de família podem ser definidos adequadamente

através de disjunções (i.e, soma lógica) de conceitos mais restritos e bem delimitados. Assim,

uma possibilidade para definir “jogo” seria chegar a conjuntos de jogos cada vez mais

específicos (e.g., jogos de cartas, jogos com bolas, etc.) e, após estabelecê-los e defini-los

rigorosamente, dizer que “jogo” é “jogo de carta ou jogo com bolas ou jogo de

adivinhação...”. Contra esta possibilidade, poderia-se objetar que para definirmos “jogo de

carta” ou mesmo um único jogo, como paciência, precisaríamos utilizar previamente o

conceito de “jogo”, de modo que seria impossível ou, no mínimo, circular prosseguir por este

caminho. Contudo, Wittgenstein não levanta este ponto. Ele não está preocupado em refutar

apenas um único tipo de definição que estabeleceremos por soma lógica, pois existem muitos

tipos diferentes. Poderíamos, ao invés de somar “conceitos parciais” como sugere o

interlocutor, somar todas as semelhanças de família do conceito de “jogo” (ou de qualquer

outro conceito por semelhança de família) e, assim, construir uma definição disjuntiva que

não dependa previamente do conceito de “jogo” (ou de qualquer outro conceito por

semelhança de família). Destarte, como constata Griffin (1974, p. 648), se escolhermos os

disjuntos adequadamente, podemos estar certos de que é possível obter uma definição

disjuntiva para qualquer conceito por semelhança de família. Pois, dado qualquer conjunto

finito de objetos que se subsumem sob um determinado conceito, é sempre logicamente

possível construir um predicado disjuntivo que se aplique a todos os membros do conjunto e

somente a eles, e depois utilizar este predicado disjuntivo na definição. Isto é possível graças

à condição de não-identidade, que determina que cada membro do conjunto deve possuir uma

propriedade não possuída por nada mais (afinal, se dois objetos possuem exatamente as

mesmas propriedades, podemos assegurar que se trata do mesmo objeto). A partir desta

definição disjuntiva poderíamos determinar se novos objetos pertencem ou não ao conceito.

Para ilustrar essa situação, suponhamos um universo em que existam somente oito

objetos (a, b, c, d, e, f, g, h) e seis predicados básicos (U, V, W, X, Y, Z). Por nossa condição

de não-identidade, não há dois objetos aos quais se aplique o mesmo conjunto de predicados

básicos. Fornecemos agora a lista de todos os objetos e de quais predicados se aplicam

corretamente a eles:

Para a, temos: Ua, Va, Wa, Xa, Ya, ¬Za

Para b, temos: Ub, Vb, Wb, Xb, ¬Yb, ¬Zb

Para c, temos: Uc, Vc, ¬Wc, Xc, ¬Yc, Zc

Para d, temos: Ud, ¬Vd, Wd, Xd, Yd, Zd

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Para e, temos: Ue, Ve, We, ¬Xe, Ye, Ze

Para f, temos: Uf, ¬Vf, ¬Wf, ¬Xf, ¬Yf, ¬Zf

Para g, temos: Ug, Vg, ¬Wg, Xg, Yg, ¬Zg

Para h, temos: ¬Uh, Vh, Wh, Xh, Yh, Zh

Suponhamos agora que neste universo exista um conceito Ω, e os falantes saibam que

o conceito Ω se aplica somente aos objetos a, b, c. Como podemos construir uma definição

para tal conceito? Primeiramente, percebemos que não existe nenhum predicado básico de

nossa linguagem que se aplique somente a a, b, c, e portanto nenhum predicado que possa

sozinho ser utilizado para definir a aplicação de Ω. Por outro lado, há três predicados que se

aplicam a todos os membros do conjunto {a, b, c}, a saber, U, V e X. Contudo, se

considerarmos o conjunto dos “x tal que Ux˄Vx˄Xx”, que corresponde ao conjunto {a, b, c,

g}, podemos observar que somente a conjunção destes predicados não pode definir a

aplicação do conceito Ω, pois este conceito não se aplica a g, enquanto que a conjunção de

predicados se aplica. Concluímos, assim, que uma característica ou um conjunto de

características comuns entre a, b e c não é o motivo pelo qual Ω se aplique a estes objetos, e

que Ω é provavelmente um conceito por semelhança de família.33

Podemos agora adicionar à conjunção de predicados U, V e X alguma coisa que

exclua g e que nos permita encontrar uma definição para Ω. O que difere a, b, c de g,

excluindo-se os predicados U, V e X? Ora, percebemos que a, b, c são todos W’s ou Z’s, ao

passo que g não é W e não é Z. Deste modo, encontramos um conjunto de predicados peculiar

a {a, b, c}, e podemos definir Ω através deles:

∀x(Ωx⟷(Ux˄Vx˄Xx˄(Wx˅Zx))

Este critério nos permite estabelecer que, para este universo em que existem apenas os

objetos a, b, c, d, e, f, g, h, o conceito Ω se aplica a a, b, c e não se aplica a d, e, f, g, h.

Evidentemente, só nos foi possível estabelecer critérios para a aplicação de Ω por

conhecermos de antemão todos os objetos aos quais Ω se aplicava corretamente, mas isso não

33

É interessante notar como o exame que realizamos aqui, que consiste em procurar o que há de comum entre

todas as instâncias do conceito Ω, é muito similar ao que leva Wittgenstein, na §66, a declarar “jogo” como um

conceito por semelhança de família, após falhar na busca de algo comum a todas as suas instâncias. A diferença

é que, no universo “fechado” em que utilizamos Ω, já possuímos de antemão todos os predicados básicos (seis,

no total) que poderiam se constituir como o “algo em comum” a todos os objetos aos quais o conceito Ω se

aplica, enquanto que é impossível uma investigação completa de todas as propriedades que poderiam ser o “algo

em comum” a todos os jogos.

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torna inútil a nossa definição. Pois, caso um novo objeto i seja introduzido neste universo, nós

já possuiremos critérios muito mais claros para determinar se Ω se aplica ou não a ele.

Quando a única informação que possuíamos sobre Ω era que Ωa, Ωb e Ωc, era muito mais

laborioso e complexo determinar se Ωi. Além disso, estudos sobre o significado do predicado

Ω, de seu desenvolvimento histórico e do papel deste predicado neste universo poderiam

certamente ser otimizados através de nossa definição.

E chegamos assim, mais uma vez, à seguinte questão: não nos seria de grande

vantagem, para conceitos como “linguagem”, “jogo” e “jogo de linguagem”, estabelecer

critérios para sua aplicação, mesmo que através de definições disjuntivas (como fizemos para

Ω)? Não poderia a filosofia da linguagem seguir um caminho mais seguro se soubéssemos

claramente quais são as características do que costumamos chamar de linguagem, assim

como, por exemplo, é benéfico para o comitê olímpico possuir critérios para a aplicação do

termo “jogo”? Enfim, a filosofia de Wittgenstein não seria aperfeiçoada através de uma

definição disjuntiva de “jogo de linguagem”?

4.2 A utilização cotidiana dos conceitos e o ideal de exatidão

Ainda abordando o conceito de “número” na §68, Wittgenstein responde a esta

questão observando o seguinte:

Isto não precisa ser assim. Pois posso dar ao conceito ‘número’ limites

firmes, isto é, usar a palavra “número” para a designação de um conceito

firmemente delimitado, mas posso usá-lo também de tal modo que a

extensão do conceito não seja fechada por um limite. E assim empregamos a

palavra “jogo”. Como o conceito de jogo está fechado? O que é ainda um

jogo e o que não o é mais? Você pode indicar os limites? Não. Você pode

traçar alguns: pois ainda não foi traçado nenhum. (Mas isto nunca o

perturbou, quando você empregou a palavra “jogo”.)

Portanto, a posição que Wittgenstein assume aqui é a de que o nosso emprego

cotidiano dos conceitos por semelhança de família não é rigidamente delimitado, e sim vago.

Esta vagueza, como ele deixa claro acima (“O que é ainda um jogo e o que não o é mais?

Você pode indicar os limites? Não.”), tem a ver com a existência de casos para os quais a

aplicação do conceito é duvidosa – ou, dito de outro modo, existem objetos que não sabemos

se pertencem ou não à extensão de um conceito por semelhança de família. São casos

limítrofes (borderline cases) para a aplicação deste conceito. Entretanto, esta falta de limites

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rígidos não prejudica em nada o emprego cotidiano destes conceitos. Esta falta de limites

“nunca o perturbou, quando você empregou a palavra “jogo””.

Primeiramente, devo sublinhar que Wittgenstein não diz que é impossível construir

uma definição rígida para esses conceitos; acima, o filósofo não se mostra contrário à

definição de ‘número’ através de soma lógica – ele diz apenas que “isto não precisa ser

assim”. Em outras partes de sua obra Wittgenstein afirma que, caso seja necessário, é

perfeitamente justificável que aperfeiçoemos nossa terminologia tendo em vista finalidades

práticas (cf. IF §132). Assim, Campbell (1965, p. 244) afirma que “à medida que F e G

admitem casos limítrofes [borderline cases], o valor de verdade de “Todos os F’s são G’s” é

indeterminado”, e que, portanto, “em todos os casos em que desejamos fazer generalizações

[...], predicados mais propensos a casos limítrofes devem ser substituídos por outros,

produzindo novas classificações que sejam menos propensas a disputas sobre casos

limítrofes”. Um dos âmbitos onde desejamos “fazer generalizações” é o científico, e

Wittgenstein certamente não se oporia ao aperfeiçoamento de nossos termos tendo em vista

metas científicas.

O filósofo discorda, entretanto, daqueles que pretendem aperfeiçoar a linguagem

natural tendo em vista um ideal deturpado de “exatidão” ao qual nossas palavras devem

corresponder. Ele trata desta questão na §71:

Pode-se dizer que o conceito ‘jogo’ é um conceito com contornos

imprecisos. – “Mas, um conceito impreciso é realmente um conceito?” –

Uma fotografia pouco nítida é realmente a imagem de uma pessoa? Sim,

pode-se substituir com vantagem uma imagem pouco nítida por uma nítida?

Não é a imagem pouco nítida justamente aquela de que, com frequência,

precisamos? [...]

Ao interlocutor imaginário, que se questiona se um conceito com contornos imprecisos

é realmente um conceito, Wittgenstein responde (através da analogia com a fotografia):

cotidianamente nos utilizamos sem dificuldades destes “conceitos imprecisos”, de modo que

se a “imprecisão” de um conceito não nos impede de utilizá-lo frutiferamente em inúmeros

casos, não se vê porque deveríamos dizer que não se trata de um conceito. O que caracteriza

um conceito, portanto, é o uso que fazemos dele – e por mais que para determinadas situações

seja proveitoso estabelecer critérios mais rígidos para a utilização de conceitos, isto não é

sempre necessário. “Pode-se substituir com vantagem uma imagem pouco nítida por uma

nítida”, mas a imagem pouco nítida é “justamente aquela que, com frequência, precisamos”.

Existem casos limítrofes para “azul” e “verde”, em que falantes frequentemente discordam da

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aplicação dos termos – mas isto não faz com que estes conceitos de cor sejam inúteis, e nem

os torna “não conceitos”. Como diz Wittgenstein, a fotografia pouco nítida é tão “fotografia”

quanto a fotografia mais nítida, assim como o conceito com contornos imprecisos é tão

“conceito” quanto um conceito científico, por exemplo.

Destarte, um conceito “impreciso” é certamente um conceito. Mas alguém poderia

perguntar: “não devemos substituir, na medida do possível, todos os conceitos de nossa

linguagem por conceitos exatos?” Precisamos analisar os pressupostos que jazem sob esta

pergunta: o que é este ideal de exatidão colimado aqui? Como é estabelecida esta exatidão?

Imaginemos que tenhamos como paradigma de exatidão o discurso científico, que nos diz que

a distância média entre a Terra e o Sol é de 150 milhões de quilômetros. Mas a distância é

exatamente esta? Não. Há aí uma série de aproximações. Entretanto, nenhum cientista

objetaria, contra esta informação, que a distância entre a Terra e o Sol é de 150.000.000.010

metros em vez de 150.000.000.000 metros. 10m são irrelevantes aqui, e isto significa: é

irrelevante para a ciência saber se a distância média entre a Terra e o Sol é 10m maior ou 10m

menor do que é atualmente considerado. 10m é irrelevante mesmo para a consideração do

diâmetro dos dois astros. Deste modo, se fôssemos requerer que todo tipo de discurso

almejasse a exatidão “máxima” – se fôssemos considerar “exatidão” enquanto ideal a ser

seguido, o próprio discurso científico passaria por inexato na grande maioria dos casos. Como

observa Wittgenstein na §88, “um ideal de exatidão não está previsto; não sabemos o que

devemos nos representar por isso – a menos que você mesmo estabeleça o que deve ser assim

chamado. Mas ser-lhe-á difícil encontrar tal determinação; uma que o satisfaça”. Em vez

disso, o filósofo defende que o termo “inexato” funciona em nossa linguagem como uma

repreensão, enquanto que “exato” funciona como um elogio; “e isto significa: o inexato não

alcança seu objetivo tão perfeitamente como o mais exato. Isto depende daquilo que

chamamos de “objetivo”.” (IF §88). Ou seja, para os objetivos científicos atuais é exato

estabelecer a distância média entre a Terra e o Sol como 150 milhões de quilômetros. Se

imaginássemos que, no futuro, o homem pudesse ir até a superfície do Sol, talvez aí fosse

necessário medir novamente esta distância, determinar critérios mais rígidos para estabelecê-

la, mas não é por isso que, no presente, vamos chamá-la de uma medida “inexata” da distância

média entre a Terra e o Sol. Ela é exata para os nossos objetivos científicos atuais. Do mesmo

modo, pode-se dizer que nossos conceitos cotidianos são inadequados ou inexatos em relação

à precisão metodológica da ciência, mas somente em relação a ela é possível dizer isso, e não

como se houvesse um ideal de exatidão para além da linguagem natural e da ciência, ao qual

todos os nossos termos ainda “inexatos” devessem corresponder. Considerando-se apenas

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nossos propósitos cotidianos, nossos conceitos por semelhança de família não podem ser ditos

“inexatos”, pois funcionam de maneira adequada.

4.3 A vagueza e os conceitos por semelhança de família

Uma questão importantíssima emerge quando consideramos em que sentido podemos

dizer que nossos conceitos cotidianos são imprecisos se comparados a conceitos científicos.

Pois, para nossa surpresa, quando examinamos os conceitos que utilizamos cotidianamente,

constatamos que não são apenas conceitos por semelhança de família que possuem casos

limítrofes para sua aplicação; isto ocorre mesmo com conceitos que se aplicam a objetos que

possuem características em comum.

Podemos verificar que uma definição científica como, por exemplo, “água é H2O” é

capaz de determinar, para qualquer substância química, se ela é ou não água, caso possuamos

os instrumentos adequados. Pois toda molécula ou é uma molécula de H2O ou não é uma

molécula de H2O. Isto é diferente para conceitos por semelhança de família como “jogo”,

pois existem casos possíveis em que ficaríamos em dúvida sobre a aplicação do conceito

(imagine, por exemplo, uma tribo em que uma atividade com as mesmas regras do xadrez

determine que o vencedor será o próximo cacique e que o perdedor será sacrificado;

chamaríamos isto de “jogo” ou teria esta atividade consequências muito graves para ser

considerada como jogo?), e o mesmo ocorre para conceitos como “solteiro”, que não

consideramos tradicionalmente como um conceito por semelhança de família. Este conceito

se aplica a todos os objetos que têm em comum a característica de serem “homens não

casados”. Mas isto pode despertar dúvidas. Por exemplo, um homem viúvo é solteiro?

Podemos aperfeiçoar nossa definição dizendo que “solteiros são homens não viúvos e não

casados”, e resolver esta dificuldade. Mas e um homem que está divorciado há três anos, após

um casamento que durou um ano: o chamaríamos de “solteiro”? Ou solteiros só podem ser

homens que não se divorciaram? Mesmo que aperfeiçoemos constantemente os critérios para

utilizar o termo “solteiro”, cotidianamente não o utilizamos como se, por antecipação,

excluíssemos todos estes casos em que pode haver dúvida – casos limítrofes em relação à

extensão do conceito “solteiro”. E as mesmas dúvidas poderiam surgir para todos os conceitos

utilizados em nossa definição de “solteiro” (como “homem”, por exemplo). Conforme afirma

Swinburne (1969, p. 296-297), é sempre logicamente possível imaginar casos em que a

aplicação de um conceito ou predicado seja duvidosa:

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Para quaisquer dois objetos, sendo um ¬F e o outro F, é logicamente possível

que se possa construir uma série de objetos intermediários sob todos os

aspectos relevantes, que sejam gradualmente cada vez mais parecidos com

um deles e cada vez mais diferentes do outro. Objetos poderiam ser

construídos sendo intermediários em tamanho, forma, cor, cheiro, gosto e

tato, ou seja em todas as propriedades que nossos sentidos podem detectar.

Em todas estas propriedades faz sentido supor que sejam possíveis graus

intermediários entre dois graus distintos. Portanto uma série de casos

intermediários, de objetos cada vez mais parecidos com os objetos-padrão de

F e cada vez menos parecidos com os objetos-padrão de ¬F podem ser

construídos. Então, qualquer que seja nosso modelo de um objeto

intermediário entre objetos-padrão de F e objetos-padrão de ¬F, a existência

de tal objeto e, consequentemente, a existência de um caso limítrofe

[borderline case] para a aplicação do conceito F é logicamente possível.

Qual é a dificuldade que tais considerações nos trazem? A de que Wittgenstein não

pode se dispensar da tarefa de fornecer definições disjuntivas para conceitos por semelhança

de família (como “linguagem”) apenas porque estes conceitos não possuem limites rígidos,

i.e., apenas porque existem casos limítrofes para os quais a aplicação destes conceitos é

duvidosa. Pois, como vimos, é possível imaginar casos limítrofes para a aplicação de qualquer

conceito, e mesmo para conceitos cotidianos que não são conceitos por semelhança de

família, como “solteiro”, existem casos possíveis para os quais sua aplicação é duvidosa. Para

satisfazermos C3, nós desejamos dizer que conceitos por semelhança de família não podem

receber definições explícitas disjuntivas porque são conceitos vagos, mas existem conceitos

cotidianos que não diríamos ser conceitos por semelhança de família que também são vagos e,

não obstante, podem, aparentemente, receber definições. Deste modo, é necessário mostrar de

que modo a existência de casos limítrofes para a aplicação dos conceitos por semelhança de

família nos impede que forneçamos definições disjuntivas rígidas para eles.

Richman (1962, p. 821) afirma que Wittgenstein sustenta duas teses: (i) que todas as

instâncias subsumidas sob um termo geral não precisam ter “algo em comum” e (ii) que

muitos termos gerais, do modo como são usados, não têm limites precisamente fixados ou

regras rígidas para aplicação. Isto já espero ter evidenciado até aqui. Mas o que Richman

observa em seguida, em relação a (i) e (ii), é que “apesar de Wittgenstein não manter sempre

distintos estes dois pontos, eles são claramente distinguíveis” (RICHMAN, 1962, p. 821). Ou

seja, lendo as observações de Wittgenstein a partir da §68, temos a impressão de que ele não

teve a preocupação de estabelecer claramente em que medida os conceitos por semelhança de

família possuem casos limítrofes para sua aplicação e em que medida este tipo de vagueza

está presente ou não em outras espécies de conceitos. Um dos comentadores, Forster (2010),

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chega inclusive a defender que é um erro considerar a vagueza como um aspecto essencial dos

conceitos por semelhança de família.34

Que sejam dois aspectos claramente discerníveis, e que ser um conceito que possua

casos duvidosos de aplicação não implica ser um conceito por semelhança de família, é

evidente. Se definirmos “solteiro” como “homem não-casado, não-viúvo e não-divorciado”,

podemos ter casos limítrofes para a aplicação de “solteiro” graças à existência de casos

limítrofes para a aplicação de “homem”, e nem por isso diríamos que “solteiro” é um conceito

por semelhança de família. Igualmente, podemos imaginar casos em que não sabemos se

aplicamos ou não um conceito científico a um determinado objeto por não possuirmos ainda

instrumentos adequados para experimentos, e isto também não faz dele um conceito por

semelhança de família. Por outro lado, que um conceito se aplique a objetos que não possuam

nenhuma característica ou conjunto de características em comum também não implica este

tipo de vagueza. O nosso conceito Ω, por exemplo, se aplicava a objetos que não possuíam

nenhuma característica em comum e nem por isso era um conceito vago, como foi visto. Mas

será que nos enganamos em dizer que Ω era um conceito por semelhança de família? Será que

não basta, para ser um conceito por semelhança de família, que o conceito se aplique

corretamente a objetos que não possuam nada em comum entre si? Enfim, o que precisamos

nos perguntar agora, analisando o que Wittgenstein diz nas Investigações, é se ser um

conceito por semelhança de família implica necessariamente possuir casos para os quais a

aplicação do conceito seja duvidosa.

Muitas passagens da obra nos levam a acreditar que sim, que, para Wittgenstein, todo

conceito por semelhança de família possui casos para os quais sua aplicação é duvidosa. Já

averiguamos como o filósofo introduz a discussão sobre a vagueza sem o menor cuidado em

discerni-la da discussão sobre semelhança de família, dando forte indicação de que, para ele,

se tratavam de dois assuntos intimamente relacionados. Além disso, na §68, Wittgenstein diz

que podemos dar ao conceito ‘número’ limites firmes, o que dá a entender que o conceito,

inicialmente, não possui tais limites. Estes limites podem ser traçados, “pois ainda não foi

traçado nenhum” (IF §68). É inegável, portanto, que Wittgenstein considera que os conceitos

por semelhança de família são empregados por nós, cotidianamente, sem delimitação firme.

Como a linguagem natural é o principal objeto de estudo deste filósofo, e como a maior parte

de seu exame do funcionamento da linguagem ocorre sobre situações “cotidianas”, é

34

Forster (2010, p. 70): “[Nas Investigações, a introdução] da noção de conceito por semelhança de família [...]

leva a uma longa discussão sobre vagueza, no sentido de indeterminação da extensão. Muitas de suas

observações ali e em outros lugares parecem tratar a vagueza como um aspecto essencial da semelhança de

família. Isto é um erro…”

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improvável que Wittgenstein tenha pensado que conceitos por semelhança de família não são

necessariamente vagos (no sentido expresso acima). Por fim, e este é o ponto mais importante,

Wittgenstein trata delimitações mais rígidas de um conceito por semelhança de família como

conceitos diferentes, e não como o mesmo conceito por semelhança de família em uma forma

“aperfeiçoada”. Diz ele, na §76:

Se alguém estabelecesse um limite rígido [para um conceito por semelhança

de família], não poderia reconhecê-lo como sendo aquele que eu sempre

desejara estabelecer ou havia estabelecido mentalmente. Pois eu não queria

estabelecer nenhum. Poder-se-ia então dizer: seu conceito não é o mesmo

que o meu, mas aparentado com ele. E o parentesco é o mesmo que o de

duas figuras, das quais uma consiste de manchas de cor fracamente

delimitadas e outra de manchas de cor com forma e distribuição

semelhantes, mas rigidamente delimitadas. A afinidade é tão inegável quanto

a diferença.

Assim, seguindo Wittgenstein nas §§76-77, podemos comparar a extensão de um

conceito por semelhança de família com um retângulo preto, que possui limites esmaecidos e

está desenhado sobre uma folha branca (imagine uma espécie de retângulo em degradê, do

preto ao branco da folha). Pela pouca nitidez dos limites, é difícil dizer onde exatamente

termina o retângulo. Obviamente, existem pontos onde vemos claramente o branco da folha, e

sabemos que ali já não há mais retângulo, mas por outro lado existem também pontos quase

brancos mas ainda um pouco acinzentados, e é discutível se estes pontos ainda estão no

retângulo ou não. Certamente, é possível neste caso “traçar muitos retângulos nítidos que

correspondam aos pouco nítidos. Quando, porém, no original as cores fluem umas nas outras

sem o menor vestígio de um limite, não se tornaria uma tarefa insolúvel desenhar uma figura

nítida correspondendo a uma difusa?” (IF §77). E é isto que acontece com o conceito por

semelhança de família “jogo”: há casos que indubitavelmente são jogos, como futebol, tênis,

jogo da amarelinha e poker; casos que indubitavelmente não são jogos, como banheiras,

lâmpadas ou brigas; e, por fim, casos em que a aplicação do conceito é muito duvidosa, como

roleta russa ou o nosso xadrez tribal, por exemplo. Poderíamos iniciar nossa explicação de

“roleta russa” para alguém dizendo que se trata de um jogo, mas na maior parte dos contextos

em que utilizamos a palavra “jogo” cotidianamente – como quando alguém diz, em uma

reunião de amigos: “Vamos jogar um jogo” – a roleta russa é inteiramente desconsiderada.

Isto acontece, como alguns comentadores observaram, graças ao fato de não sabermos

com clareza absoluta quais são as características relevantes que devemos buscar em um objeto

para aplicar um conceito por semelhança de família a ele. Diz Sluga (2006, p. 6, p. 18):

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Se segue daí que o conjunto de características que se “sobrepõem e se

cruzam”, através do qual nós determinamos o que é ou não é um jogo, não

está previamente fixado, e que novas características virão à tona e se

tornarão relevantes quando considerarmos novos jogos e perdermos de vista

os velhos; [...] a indefinibilidade dos termos por semelhança de família

wittgensteinianos é devida ao fato de que o âmbito das similaridades

relevantes não é completamente determinado.

Portanto, um dos motivos pelos quais conceitos por semelhança de família possuem

casos limítrofes para sua aplicação é porque nós não sabemos exatamente quais são as

semelhanças de família relevantes para a aplicação do conceito, e este é o motivo pelo qual

não podemos construir uma definição disjuntiva para estes conceitos, por não sabemos quais

exatamente seriam os disjuntos. Pretendo, em seguida, esclarecer estas afirmações, mas é

importante notar que elas já fazem com que nossa concepção de semelhança de família

satisfaça C3.

Wittgenstein trabalha esta indeterminação de características relevantes para a

aplicação de um conceito na §79 – não em relação direta com conceitos por semelhança de

família, mas tratando do significado de nomes próprios. A conclusão é que nomes próprios

não têm um uso rígido, que determine se sua aplicação é correta ou incorreta para todos os

casos possíveis. Ele utiliza como exemplo a frase “Moisés não existiu”. Diz Wittgenstein que,

segundo Russell, esta frase pode receber diferentes sentidos dependendo de qual descrição

associamos ao nome “Moisés” (e.g., “o homem que guiou os israelitas através do deserto”).

Este sentido é, evidentemente, essencial para estabelecermos a verdade ou falsidade da frase;

afinal, se considero como o sentido da frase “Moisés não existiu” que “o homem que guiou os

israelitas através do deserto não existiu”, a frase é verdadeira caso ninguém tenha guiado os

israelitas através do deserto (eles podem o ter percorrido sem líderes), caso eles tenham

percorrido o deserto liderados por uma mulher, e por aí vai; por outro lado, se considero como

o sentido da frase “Moisés não existiu” que “o homem que em criança foi retirado do Nilo

pela filha do faraó nunca existiu”, então é indiferente para a verdade ou falsidade da frase se

os israelitas foram ou não guiados através do deserto por Moisés. Assim, o sentido da frase e,

consequentemente, seu valor de verdade são determinados parcialmente pela descrição que

associamos a Moisés.

No entanto, Wittgenstein pede que nos foquemos sobre o momento em que proferimos

a sentença “Moisés não existiu”. A descrição que associamos a Moisés passa pela nossa

mente no momento em que a proferimos? Não. Tenho um sentido determinado e inequívoco

para o nome “Moisés” quando o aplico na sentença? É extremamente improvável.

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Suponhamos que eu respondesse, se indagado sobre o significado do nome “Moisés”, que por

“Moisés” me refiro ao homem que fez tudo o que a Bíblia narra de Moisés. Desse modo, se eu

dissesse “Moisés foi um líder religioso”, mesmo que o homem que fez tudo o que a Bíblia

narra de Moisés não tivesse por nome “Moisés”, a minha frase seria verdadeira – pois, por

“Moisés”, eu queria dizer o homem que fez tudo o que a Bíblia narra de Moisés,

independetemente de seu nome real. Entretanto, se na Bíblia estivesse escrito que Moisés

percorreu o chão do mar vermelho descalço, e factualmente ele tivesse percorrido com os pés

calçados, a minha frase “Moisés foi um líder religioso” seria falsa! Pois o sentido que eu dei a

essa frase era “O homem que fez tudo o que a Bíblia narra de Moisés foi um líder religioso”,

mas se o Moisés real percorreu o chão do mar vermelho calçado então não existe o homem

que fez tudo o que a Bíblia narra de Moisés; como, de acordo com Russell, a sentença se

compromete com a existência do “homem que fez tudo o que a Bíblia narra de Moisés”, se

este homem não existe, então a sentença é falsa.

Mas estaria eu disposto a descartar todas as minhas afirmações sobre Moisés apenas

porque ele percorreu o chão do mar vermelho com os pés calçados, em vez de tê-lo percorrido

descalço? Não. Então, devo reformular o que compreendo pelo nome “Moisés”. Posso dizer

que, por “Moisés”, me refiro ao homem que fez muito do que a Bíblia narra de Moisés. Mas

quanto? Para determinar perfeitamente o sentido e o valor de verdade de todas as frases em

que eu venha a afirmar algo sobre Moisés, eu deveria fornecer um sentido inequívoco para o

termo, mas isto não acontece quando digo que, por “Moisés”, entendo o homem que fez muito

do que a Bíblia narra de Moisés. O que Wittgenstein leva o leitor a constatar é que nós não

utilizamos nossas palavras com um sentido determinado e inequívoco. Ao asserir “Moisés não

existiu” em um determinado contexto, posso estar afirmando que “o homem que em criança

foi retirado do Nilo pela filha do faraó nunca existiu”, mas de maneira nenhuma estou

considerando, enquanto faço a asserção, todos os casos em que minha frase poderia ser falsa,

e conferindo a “Moisés” um sentido que lidasse por antecipação com todos estes casos. Seria

absurdo alguém considerar falsa minha frase “Moisés não existiu” apenas porque ele, quando

criança, foi retirado do Nilo pelo filho do faraó, e não pela filha, assim como seria igualmente

absurdo dizer que o sentido que eu dou para “Moisés” estaria preparado de antemão para lidar

com o fato dele ter sido retirado do Nilo pelo filho do faraó. Wittgenstein observa, ainda na

§79, que em vez do nome “Moisés” ter “um determinado uso, sólido e sem equívoco em todos

os casos possíveis”, parece ser mais adequado dizer que, ao utilizarmos o nome, temos em

mão “uma série de suportes” e que nos apoiamos em um deles quando os outros nos são

retirados. Assim, meu suporte inicial para “Moisés” em “Moisés não existiu” era “O homem

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que foi retirado do Nilo pela filha do faraó”; caso me retirem este suporte, dizendo que

Moisés foi retirado do Nilo pelo filho do faraó, obterei um novo suporte ao dizer que por

“Moisés” considero “o homem que foi retirado do Nilo pela filha ou pelo filho do faraó”, e

assim em diante.

Tais considerações podem ser transpostas para nossa discussão sobre os conceitos por

semelhança de família. Nós sabemos, em grande parte, o que atualmente consideramos como

“jogos”. Mas será que nós sabemos com base em que características, com base em que

semelhanças de família, viremos a considerar um novo caso como um caso de “jogo”? É

improvável. Quando digo que “x é um jogo”, este x pode ser recreativo (jogo da amarelinha)

ou não (futebol profissional), pode ter regras estritamente estabelecidas (xadrez) ou não

(verdade ou consequência), etc. Mesmo características que consideramos, à primeira vista,

como necessárias podem requerer revisão. Por exemplo, posso dizer que “se x é um jogo,

então x é uma atividade” – mas hoje em dia existem jogos eletrônicos, armazenados em

discos, e frequentemente predicamos do próprio disco que “isto é um jogo”; o mesmo

acontece com máquinas de pinball. Mas estes são objetos, e não atividades! Obviamente, não

seriam jogos se não estivessem envolvidos em alguma forma de atividade realizada através

deles, mas não posso mais simplesmente dizer que “para todo x, se x é um jogo, então x é uma

atividade”. Para o termo “linguagem” a situação é muito mais complexa. Temos linguagens

lógicas, constituídas artificialmente por um alfabeto e por regras gramaticais para a formação

das fórmulas; temos as diversas linguagens naturais, desenvolvidas historicamente e que

contêm regras gramaticais indissociáveis deste desenvolvimento histórico; temos linguagens

consideradas enquanto formas de expressão circunscritas a um grupo de indivíduos, como a

linguagem jurídica, a linguagem infantil; temos linguagens musicais, linguagem corporal,

linguagem obscena (que seria o conjunto dos termos obscenos), linguagem figurada, etc. Esta

lista nos permite constatar que nem toda linguagem possui um alfabeto próprio, nem toda

linguagem possui regras gramaticais, nem toda constitui-se de signos para representar sons, e

por aí vai. Conceitos por semelhança de família como estes já adquiriram uma multiplicidade

tão grande de usos que parece de fato uma tarefa insolúvel construir uma definição disjuntiva

para eles, já que não sabemos de antemão todas as características que consideramos relevantes

para a aplicação do termo. É claro que nós podemos, como exemplifica Wittgenstein na §71,

corrigir mal-entendidos se o nosso interlocutor toma o significado do termo de modo diferente

do que havíamos tencionado:

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Alguém me diz: “Mostre um jogo às crianças!” Ensino-as a jogar dados a

dinheiro, e o outro me diz: “Não tive em mente (gemeint) um jogo como

esse”. Deveria ele ter tido uma vaga ideia da exclusão do jogo de dados, no

momento em que me dera a ordem?

Não esperávamos que o interlocutor pudesse achar adequado ensinar um jogo de azar

para crianças, mas isto quer dizer apenas que podemos criticá-lo caso ele ensine este jogo, e

não que havíamos decidido de antemão, ou no momento do proferimento da ordem “Mostre

um jogo às crianças!”, todas as características relevantes para que algo seja considerado como

um jogo, nem que havíamos mentalmente considerado a possibilidade dos jogos de azar e a

recusado em seguida (posso, no máximo, dizer que o contexto de “ensinar um jogo para

crianças” usualmente exclui o ensino de jogos de azar, e esperava que o meu interlocutor

percebesse isto). Quando digo ao meu interlocutor “Não tive em mente um jogo como esse”,

obviamente não estou querendo dizer com isso que pensei, no momento do proferimento de

“Mostre um jogo às crianças!”, em todos os jogos que ele não poderia de maneira nenhuma

ensinar a elas. Em vez disso, “Não tive em mente um jogo como esse” é outra forma de dizer

que “Este não é um dos jogos que você poderia ensinar”. Aqui, como no caso de “Moisés”, eu

estava me apoiando em determinados suportes que me foram retirados: acreditava que meu

interlocutor teria o bom senso de excluir da minha ordem todos os jogos que não são

apropriados para serem ensinados a crianças; como ele não o fez, devo agora procurar um

novo suporte (talvez fazer uma lista de jogos que ele pode ensinar, ou de jogos que ele não

deve ensinar). Contudo, permanece a conclusão: no momento em que utilizei o conceito

“jogo”, não tinha em mente todas as características que considerava relevantes para o

conceito. Caso eu fosse indagado sobre elas, poderia listar algumas características como “ser

divertido”, “não conter violência”, “não conter apostas”, que considero essenciais para um

jogo que possa ser ensinado a crianças, mas muitas outras passariam despercebidas por mim

(por exemplo, jogos de cunho sexual podem ser divertidos, não conter violência e não conter

apostas, mas seriam ainda assim inadequados).

Destarte, o motivo pelo qual Wittgenstein acredita que um conceito por semelhança de

família possua casos para os quais sua aplicação seja duvidosa é porque nós não sabemos

exatamente quais características consideramos relevantes para sua aplicação, e assim satisfaz-

se C3. Mas este tipo de vagueza é exclusivo dos conceitos por semelhança de família? Sluga

(2006, p. 6) denomina termos que possuem este tipo de vagueza como open-ended terms, e

supõe que “O raciocínio último de Wittgenstein pode ser de que open-ended terms não

possuem definição formal e que termos por semelhança de família são tipicamente open-

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ended”. Ou seja, Sluga (2006) acredita que, para Wittgenstein, o fato de um conceito não

poder ser definido formalmente graças à indeterminação das características relevantes para

sua aplicação não implica que este seja um conceito por semelhança de família. De fato, esta

parece ser realmente a posição assumida nas Investigações.35

Afinal, como vimos, os

conceitos por semelhança de família são introduzidos, da §65 à §67, unicamente com base na

ideia de que tais conceitos se aplicam a objetos que não possuem nenhuma característica em

comum em virtude da qual sua aplicação possa ser justificada, de modo que não basta para

ser um conceito por semelhança de família a indeterminação das características relevantes

para sua aplicação. “Solteiro”, por exemplo, também pode sofrer o mesmo tipo de

indeterminação quando utilizado na linguagem cotidiana – pois, supondo que eu aplique este

conceito a todos os homens não-casados e não-viúvos, mas sem possuir nenhuma definição

rígida em mente, existem casos para os quais poderia ficar em dúvida sobre sua aplicação.

Chamaria alguém de solteiro se ele tivesse se divorciado pelo menos uma vez? Para o sentido

que “solteiro” assume na linguagem cotidiana, podemos cogitar situações em que é difícil

dizer se “não ser divorciado” é uma característica relevante ou não para a aplicação do

predicado “x é solteiro”.

Na §80, Wittgenstein se utiliza do termo “poltrona” em um exemplo que, apesar de

extraordinário, é expressivo:

Digo: “Lá está uma poltrona”. Que aconteceria se eu fosse lá buscá-la e ela

desaparecesse repentinamente da minha vista? “Não era, portanto, uma

poltrona, mas uma ilusão qualquer.” – Mas em alguns segundos vemo-la

outra vez e podemos pegá-la, etc. – “A poltrona estava lá, pois, e seu

desaparecimento foi alguma ilusão qualquer.” – Mas suponha que depois de

algum tempo ela desapareça outra vez – ou que pareça desaparecer. Que

diremos então? Você tem regras prontas para tais casos – que digam se se

pode ainda chamar a isto de “poltrona”? Mas elas nos escapam quando

usamos a palavra “poltrona”; e devemos dizer que não ligamos a esta palavra

nenhuma significação, uma vez que não estamos equipados com regras para

todas as possibilidades de seu emprego?

Se considerarmos a argumentação desta seção, pareceria que mesmo termos científicos

estariam abertos à indeterminação (por exemplo, aplicaríamos o predicado “x é uma molécula

de H2O” a uma molécula que desaparecesse e reaparecesse a todo momento?). Só que a

indeterminação aqui é puramente imaginária, i.e., existem casos imagináveis para os quais 35

Um outro autor que nota esta forma de indeterminação, Campbell (1965, p. 243), associa-a, entretanto, apenas

aos conceitos por semelhança de família: “… predicados por semelhança de família admitem uma nova [grifo

meu] classe de casos limítrofes, a saber, indivíduos que possuem um conjunto duvidosamente suficiente de

características relevantes”; e, na mesma página: “predicados por semelhança de família possuem textura aberta

na medida em que não está estabelecido previamente que características virão a ser consideradas relevantes...”.

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não possuiríamos critérios claros para a aplicação do termo “poltrona”. Wittgenstein dá a

entender, pela sua discussão sobre regras para aplicação de palavras, que é impossível para

uma regra eliminar todas as dúvidas imagináveis para a aplicação de um termo.36

Portanto,

todos os conceitos de nossa linguagem, mesmo os científicos, parecem abertos a dúvida em

casos imagináveis. Mas não é este o tipo de dúvida que emerge quando utilizamos termos

como “solteiro” e “jogo”. Em muitos contextos, ficamos em dúvida se desejamos designar

certas atividades como “jogos” (por exemplo, no caso apresentado por Wittgenstein na §71); e

se, em uma roda de amigos em um bar, uma bela mulher pergunta a um homem se o amigo

dele é solteiro, e o homem responde “não”, apenas porque o amigo dele é divorciado há dez

anos, o amigo tem todo o direito de repreendê-lo posteriormente. Portanto, que um conceito

possua casos atuais em que a sua aplicação é dubitável não basta para que seja um conceito

por semelhança de família, pois tal indeterminação parece afetar grande parte dos conceitos

que utilizamos cotidianamente (inclusive os nomes próprios, como vimos pelo exemplo de

“Moisés”). Destarte, um conceito é um conceito por semelhança de família se se aplica a

objetos em virtude das semelhanças de família existentes entre eles (e não em virtude de um

conjunto de características em comum) e se não são inteiramente determinadas quais

semelhanças são relevantes para a aplicação – a primeira característica, conceitos por

semelhança de família partilham com conceitos construídos através de definição disjuntiva; a

segunda característica, conceitos por semelhança de família partilham com grande parte dos

conceitos que utilizamos na linguagem cotidiana.37

36

“Disse que o emprego de uma palavra não é sempre limitado por regras. Mas qual a aparência de um jogo que

é inteiramente limitado por regras? Regras que não dão margem a nenhuma dúvida e que lhe fechem todas as

lacunas. – Não podemos imaginar uma regra que regule o emprego da regra? E uma dúvida que aquela regra

levante – e assim por diante? Mas isto não significa que duvidamos porque podemos imaginar uma dúvida.

Posso muito bem imaginar que alguém, cada vez que vá abrir a porta de sua casa, duvida se não abriu um abismo

atrás dela e disso se certifica, antes de atravessá-la (e pode acontecer que uma vez tenha razão) – mas por isso,

em caso idêntico, não vou duvidar.” (IF §84). 37

Como já observei acima, Forster (2010) critica Wittgenstein por tratar a vagueza como um aspecto essencial

dos conceitos por semelhança de família. Entretanto, é difícil saber como Wittgenstein pretendia contornar a

crítica de que “linguagem” e outros conceitos podem ser definidos através de disjunções sem constatar neles o

tipo de indeterminação especificada neste capítulo – ou seja, é difícil ver como Wittgenstein poderia ter se

recusado a definir disjuntivamente conceitos por semelhança de família sem constatar que são necessariamente

vagos. De fato, na §68, a discussão sobre a “falta de limites rígidos” para a aplicação destes conceitos é

introduzida claramente para rebater a possibilidade de uma definição através de soma lógica. Curiosamente,

Forster (2010, p. 74) observa: “Esta negação de que é sempre pelo menos possível especificar condições

disjuntivas necessárias e suficientes [...] para conceitos por semelhança de família me parece factualmente

correta e vitalmente importante para reconhecer algumas das implicações mais filosoficamente interessantes do

fenômeno. Assim, se alguém tentasse fornecer uma definição disjuntiva de um conceito por semelhança de

família como ‘jogo’, ele certamente iria falhar em capturar todos os casos; certamente seria sempre possível que

jogos reais ou imaginários poderiam ser pensados, os quais não poderiam ser capturados pela sua definição”.

Apesar dessa observação, Forster (2010) não percebe que sua previsão de que sempre iremos falhar em construir

uma definição disjuntiva para o conceito ‘jogo’, se não justificada, não passa de mera suposição infundada.

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Após estas considerações, podemos nos perguntar em que situação fica o conceito Ω.

Pode ele realmente ser considerado um conceito por semelhança de família? Em nosso

universo, no qual havia oito objetos e seis predicados, não existiam casos atuais para os quais

a aplicação de Ω era duvidosa, de modo que o conceito carecia da indeterminação própria dos

conceitos por semelhança de família. Mas digamos que um novo objeto i seja introduzido no

universo, e que ele se configure da seguinte forma:

Para i, temos: Ui, Vi, ¬Wi, Xi, ¬Yi, ¬Zi.

Lembrando que os objetos a que aplicávamos Ω – a, b, c – se configuravam como:

Para a, temos: Ua, Va, Wa, Xa, Ya, ¬Za

Para b, temos: Ub, Vb, Wb, Xb, ¬Yb, ¬Zb

Para c, temos: Uc, Vc, ¬Wc, Xc, ¬Yc, Zc

De acordo com a nossa definição de Ω, ∀x(Ωx⟷(Ux˄Vx˄Xx˄(Wx˅Zx)), i não

pertenceria à extensão do conceito Ω. Contudo, lembremos que esta definição havia sido

derivada do fato, já conhecido, que Ωa, Ωb e Ωc, e que a disjunção ‘Wx˅Zx’ havia sido

adicionada à definição somente para excluir g, já que sabíamos também que ¬Ωg. No lugar

dessa disjunção poderíamos ter adicionado qualquer outra que também excluísse g. Assim,

considerando que para g tínhamos Ug, Vg, ¬Wg, Xg, Yg, ¬Zg, a definição

‘∀x(Ωx⟷(Ux˄Vx˄Xx˄(¬Yx˅Zx))’ teria sido tão útil quanto a anterior para descartar g

enquanto sendo um Ω. E o que isto significa? Que os nosso falantes poderiam querer dizer

com Ω tanto Ux˄Vx˄Xx˄(Wx˅Zx) quanto Ux˄Vx˄Xx˄(¬Yx˅Zx), e que a aplicação de Ω seria a

mesma naquele universo (antes da introdução de i) para qualquer uma das duas definições que

escolhêssemos. De modo que, assim como no caso dos conceitos por semelhança de família,

os falantes de nosso universo não possuíam necessariamente de antemão as semelhanças de

família relevantes para a aplicação do conceito Ω (i.e., eles não precisavam saber exatamente

qual dos disjuntos seria adicionado à definição de Ω para que ela correspondesse ao modo

como o termo era utilizado). E isto implica que, se ao introduzirmos i em nosso universo, ele

se comportar como um caso atual e dubitável para a aplicação de Ω, isto pode se dar porque

os falantes não sabem quais das duas disjunções, ‘Wx˅Zx’ ou ‘¬Yx˅Zx’, é mais relevante para

a aplicação de Ω. Neste caso, Ω seria um conceito por semelhança de família.

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Considere agora que os falantes concluam, logo quando i é introduzido, que Ωi.

Assim, poderíamos estabelecer que a definição que mais se adequa ao conceito Ω é

‘∀x(Ωx⟷(Ux˄Vx˄Xx˄(¬Yx˅Zx))’, e que a propriedade de ser ou não ser um Y é muito mais

relevante para a aplicação de Ω do que a propriedade de ser ou não ser um W. Entretanto,

pode-se dizer que esta nova definição capture exatamente o uso que os falantes faziam de Ω

antes da introdução de i? Não. Antes de introduzirmos i havia muitas definições que se

adequavam ao uso de Ω – ou, seguindo a metáfora wittgensteiniana, tínhamos em mãos um

retângulo com limites esmaecidos. Não era necessário que os falantes tivessem em mente uma

destas definições específicas, pois todas elas convergiam para a mesma aplicação do termo. A

introdução de i e a decisão se Ωi ou ¬Ωi certamente pode requerer dos falantes uma definição

mais estrita de Ω – isto é, requerer que o retângulo seja desenhado com limites mais nítidos.

Mas é impossível dizer, com absoluta certeza, que a nova definição se adeque ao que os

falantes queriam dizer quando utilizavam Ω antes da introdução de i. Pois pode não haver

nada que eles queriam dizer para além do uso efetivo que faziam de Ω em relação a todos os

objetos de seu universo.38

Evidentemente, conforme observa Prien (2004, p. 18), nem toda

introdução de um novo objeto necessariamente altera ou problematiza as regras linguísticas

do conceito que pretendemos aplicar a ele – ou seja, quando da introdução de i, talvez fosse

imediatamente manifesto para todos os falantes que Ωi, sem que para chegar a essa conclusão

fosse necessário conjecturar sobre as regras para a aplicação de Ω.

Tendo em vista todas as considerações acima, somos agora capazes de estabelecer o

que, para Wittgenstein, pode ser considerado como um conceito por semelhança de família.

Obviamente, o que segue é um mero resumo do que foi apresentado até aqui, não pretende

substituir a argumentação anteriormente exposta e tenciona apenas servir de base para

examinarmos a relevância do problema da textura amplamente aberta (wide-open texture):

O termo ‘semelhança de família’ é utilizado por Wittgenstein para descrever um

tipo de característica presente nas instâncias de um determinado tipo de conceito.

Características deste tipo delimitam quais casos (objetos) podem ser considerados como

instâncias deste conceito, pois os classificamos como instâncias ou não instâncias do

conceito ao identificarmos se tais características estão presentes neles ou não. Em

contextos variados, estas características podem adquirir maior ou menor relevância

38

A este respeito, diz Fogelin (1996, p. 53): “Já que é fácil encontrar exemplos onde as regras que governam o

uso de um conceito não cobrem todos os casos, e já que é claro que estas supostas lacunas não afetam o emprego

prático destes conceitos, nós devemos ser cautelosos ao supor que as regras que governam o uso de um conceito

são mais completas (e, podemos adicionar, mais determinadas) do que o emprego atual do conceito demanda.”

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59

para estabelecermos se um novo caso é ou não uma instância do conceito, de modo que é

impossível determinar de antemão quais são as características que determinam a

extensão do conceito. Nenhuma dessas características está presente em todas as

instâncias do conceito.

Os conceitos delimitados por características deste tipo são ‘conceitos por

semelhança de família’.

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60

5 O PROBLEMA DA TEXTURA AMPLAMENTE ABERTA

5.1 A formulação do problema

O problema da textura amplamente aberta foi primeiramente constatado por Richman

(1962), que considera que parte de uma possível solução para o problema dos universais

deveria consistir em uma explicação de por que consideramos correta a aplicação de um

termo a determinados objetos e não a outros. De acordo com a resolução essencialista, isto se

dá pelo fato de determinados objetos possuírem uma propriedade em comum que justifica a

aplicação do conceito; enquanto que, segundo Richman (1962, p. 828),

os wittgensteinianos não “vêem” nenhuma propriedade em comum e não

sentem necessidade de postular uma. Afinal, que nós apliquemos ‘T’ a t1, t2,

t3, pode ser explicado pelo fato de que existem sistemas de relações a serem

descobertos entre os denotata de ‘T’.

Apesar de tratar a semelhança de família enquanto teoria sobre porque aplicamos

alguns termos de nossa linguagem do modo como aplicamos, Richman (1962) está certo ao

afirmar que as semelhanças de família entre os objetos podem justificar a aplicação de alguns

conceitos de nossa linguagem (como já vimos, este é claramente o ponto de §65). Entretanto,

de acordo com o comentador, esta assunção tem consequências indesejadas. Pois,

mesmo que assumamos que esta noção [de semelhança de família] sugira

uma explicação correta (apesar de extremamente imprecisa) de por que nós

aplicamos um certo termo às coisas às quais o aplicamos, ela não nos

fornece nenhuma explicação de por que nós nos recusamos a aplicar o termo

às coisas às quais nós não o aplicamos. A visão essencialista tem, pelo

menos, o mérito de explicar igualmente bem (ou mal) os dois aspectos do

nosso uso dos termos: nossa aplicação destes a algumas coisas e nossa não-

aplicação a outras. É difícil ver na explicação por semelhança de família por

que nós deveríamos nos recusar a aplicar um determinado termo a alguma

coisa. Não parece nem um pouco plausível dizer que nós não aplicamos ‘T’,

digamos, a s1 porque não há nenhuma semelhança entre s1 e qualquer

elemento da classe T. (RICHMAN, 1962, p. 828)

Ou seja, Richman (1962) interpreta a posição wittgensteiniana como sendo a seguinte:

em vez de aplicarmos um conceito a determinados objetos por estes objetos possuírem uma

determinada propriedade em comum, nós o aplicamos por estes objetos se assemelharem uns

aos outros. E o problema da textura amplamente aberta, de acordo com esta posição, é: como

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61

todos os objetos se assemelham em algum aspecto, nós deveríamos aplicar todos os conceitos

que sejam determinados por semelhanças a todos os objetos. O comentador observa que a

semelhança de família pode ser capaz de explicar como estendemos um conceito a

determinados objetos (através da semelhança entre eles), mas não antepõe nenhum limite ao

processo.

Pompa (1967, p. 66) oferece um contundente exemplo para que possamos

compreender o problema. De acordo com Wittgenstein, todos os jogos são jogos em virtude

de um conjunto de semelhanças que existe entre os casos de jogos (em oposição a uma

característica ou conjunto de características que todos possuam). Mas consideremos o caso do

boxe, um jogo olímpico. Deve se tratar de um jogo por possuir um conjunto de semelhanças

com outros jogos, e.g., xadrez. Mas se compararmos boxe e xadrez e boxe e briga de rua,

diríamos que boxe possui muito mais semelhanças com a briga de rua do que com o xadrez.

Só que briga de rua não é um jogo, mesmo se assemelhando de maneira marcante ao boxe.

Portanto, “dificilmente poderia ser dito que quaisquer semelhanças sobrepostas entre duas ou

mais atividades seria suficiente para que elas compartilhassem o mesmo termo geral”

(POMPA, 1967, p. 66).

Destarte, parece que Wittgenstein quer recusar a posição essencialista, de que todo e

qualquer conceito se aplica a um determinado grupo de objetos (sua extensão) em virtude de

características ou propriedades comuns a estes objetos e não se aplica a outros pela ausência

destas características ou propriedades. Para isto, Richman (1962) e Pompa (1967) atribuem a

Wittgenstein a teoria de que alguns conceitos não se aplicam em virtude de características

comuns, mas em virtude de semelhanças entre seus objetos. Todavia, enquanto a presença ou

ausência da característica comum era critério para determinar o pertencimento ou não do

objeto à extensão do conceito, a mera semelhança entre objetos não pode exercer este papel,

já que, verossimilmente, quase todos os objetos se assemelham em pelo menos alguns

aspectos.

Por fim, o problema da textura amplamente aberta pode ser verificado também para

nosso conceito Ω. Em nosso universo, tal que

Para a, temos: Ua, Va, Wa, Xa, Ya, ¬Za

Para b, temos: Ub, Vb, Wb, Xb, ¬Yb, ¬Zb

Para c, temos: Uc, Vc, ¬Wc, Xc, ¬Yc, Zc

Para d, temos: Ud, ¬Vd, Wd, Xd, Yd, Zd

Para e, temos: Ue, Ve, We, ¬Xe, Ye, Ze

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Para f, temos: Uf, ¬Vf, ¬Wf, ¬Xf, ¬Yf, ¬Zf

Para g, temos: Ug, Vg, ¬Wg, Xg, Yg, ¬Zg

Para h, temos: ¬Uh, Vh, Wh, Xh, Yh, Zh

o conceito Ω aplicava-se a a, b e c. Mas se dissermos simplesmente que o conceito Ω se

aplicava a a, b, c em virtude destes objetos se assemelharem entre si, então não podemos

explicar porque d, e, f, g, h não fazem parte da extensão do conceito. Afinal, todos estes

objetos se assemelham de alguma forma àqueles objetos aos quais aplicamos Ω. A

propriedade U está presente em todos os objetos, com exceção de h, de modo que todos estes

se assemelham em relação a U. Já h partilha pelo menos uma característica com cada um dos

objetos aos quais se aplica Ω, de modo que também se assemelha a eles. Assim, de acordo

com esta explicação para a aplicação de Ω, este conceito deveria se aplicar a todos os objetos

de nosso universo.

5.2 Algumas das soluções avançadas

Prien (2004, p.16) observa que, evidentemente, Wittgenstein não forneceu uma

explicação tão simplória para a aplicação dos conceitos por semelhança de família, pois o

problema da textura amplamente aberta é, de certa forma, óbvio demais para não constar nas

Investigações – caso o que o filósofo realmente desejasse fosse sustentar uma teoria de que a

extensão de certos conceitos é delimitada pelo fato de suas instâncias simplesmente se

assemelharem. Se desejamos manter a tese de que alguns conceitos se aplicam a um grupo de

objetos em virtude de semelhanças que estes objetos possuem entre si, precisamos então

apurar nossa tese para que ela não esteja aberta ao problema da textura aberta, i.e., precisamos

mostrar como através de semelhanças (e não de uma característica ou conjunto de

características em comum) podemos delimitar a extensão de um conceito. Portanto, vamos

examinar agora algumas das soluções que foram dadas ao problema da textura amplamente

aberta.

Uma das tentativas expostas por Griffin (1974, p. 645) é a de limitar a extensão dos

conceitos por semelhança de família através da quantidade de semelhanças entre os objetos.

De acordo com essa solução, os objetos subsumidos sob um conceito por semelhança de

família possuem um número maior de semelhanças entre si do que o número de semelhanças

existentes entre qualquer um desses objetos e outro objeto ao qual o conceito não se aplique.

Deste modo, boxe e xadrez, por serem jogos, teriam um maior número de semelhanças que

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boxe e briga de rua, e a e c, por serem ambos Ω, teriam um maior número de semelhanças que

a e g. Mas isto é obviamente falso. Griffin (1974, p. 645) constata que, além de ser

inexequível uma listagem absoluta de todas as semelhanças que boxe e xadrez possuem,

qualquer destas listagens resultaria, possivelmente, na conclusão de que boxe e briga de rua

possuem um número maior de semelhanças do que boxe e xadrez, apesar de somente os dois

últimos serem jogos. Podemos verificar também que, para a, c e g, os objetos a e g possuem

mais semelhanças do que a e c (cinco contra quatro, exatamente), e no entanto apenas a e c

são Ω. Portanto, não é possível justificar a aplicação de um conceito por semelhança de

família com base no número de semelhanças.

Para Andersen (2000), que busca sua solução na filosofia de Thomas Kuhn, uma

explicação adequada da aplicação de conceitos por semelhança de família só pode ser

fornecida se considerarmos todo o esquema conceitual de uma determinada comunidade

linguística, ou, pelo menos, um nível conceitual em que haja conceitos contrastantes. Isto se

dá porque, de acordo com Andersen (2000), não devemos considerar apenas as semelhanças

entre os objetos que se subsumem sob um determinado conceito, mas também as

dessemelhanças entre estes objetos e outros que são subsumidos sob conceitos contrastantes.

Assim poderíamos cogitar, por exemplo, que o conceito “atividades violentas” contrasta com

o conceito “jogo”, e que todos os jogos são semelhantes sob o aspecto de que possuem regras,

enquanto que todas as atividades violentas não possuem. Se considerássemos apenas

semelhanças, boxe e briga de rua realmente seriam mais semelhantes que boxe e xadrez; mas

se considerarmos a dessemelhança “possuir regras”, que limita o conceito “jogo” em relação

ao conceito “atividades violentas”, então podemos classificar boxe e xadrez como jogos e

briga de rua como uma atividade violenta. Para o exemplo em que nos utilizamos de Ω, essa

solução pressupõe a existência de um outro conceito que possa ser contraposto a Ω, limitando

sua extensão. Mesmo que possa ser uma solução de certo interesse filosófico, em nenhum

momento Andersen (2000) a atribui a Wittgenstein, mas sim a Kuhn – de modo que não é

nosso interesse discuti-la aqui.

Prien (2004), por sua vez, considera a semelhança de família como uma teoria sobre o

desenvolvimento temporal do significado de um conceito. Para este comentador, o objetivo

principal de Wittgenstein nas §§65-67 é descrever como o significado de um conceito pode

ser alterado quando surge um novo objeto que desafie os sistemas classificatórios atuais.

Efetivamente, o aspecto temporal do desenvolvimento de um conceito é tratado na §67, onde

Wittgenstein aponta um possível modo através do qual viríamos a chamar um novo objeto de

“número” – isto se daria em virtude de um parentesco que este novo objeto teria em comum

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64

com alguns dos objetos que anteriormente eram chamados de “número”. Ao longo destas

linhas, Prien (2004) afirma que as semelhanças não são suficientes para que os objetos sejam

subsumidos sob um determinado conceito (i.e., as semelhanças não são responsáveis pela

delimitação do conceito), mas apenas servem de base para que nós possamos estender e

delimitar um conceito. As semelhanças de família, destarte, são necessárias para a extensão

do conceito, mas não suficientes.

A solução de Prien (2004) é, sem dúvida, interessante, mas dificilmente faz jus às

intenções que Wittgenstein parece ter tido ao introduzir a semelhança de família. Na §65,

Wittgenstein está claramente contrapondo as semelhanças de família ao “algo em comum”

que justifica a aplicação de conceitos de definição conjuntiva, e o “por causa” em “por causa

desse parentesco ou desses parentescos, chamamo-los todos de “linguagens”” deixa claro que

nós podemos justificar a aplicação de um conceito por semelhança de família referindo-nos às

semelhanças de família existentes entre os objetos aos quais o conceito se aplica. Destarte, o

trecho na §67 em que Wittgenstein apresenta um esboço de “teoria” sobre o desenvolvimento

temporal dos conceitos por semelhança de família parece ser um argumento destinado a tornar

mais plausível a sua posição, em vez de ser o ponto principal dela. Além disso, como

observava já Pompa (1967), o interlocutor imaginário de §65 não pode ser refutado somente

através de uma explicação histórica do desenvolvimento do termo “linguagem”, já que isto

não impede que hoje o termo seja aplicado a casos com uma gama de características em

comum – a explicação histórica só pode refutá-lo servindo de base à posição de que hoje nós

não aplicamos o termo “linguagem” a casos que possuem uma gama de características em

comum; e, neste caso, o ponto do desenvolvimento histórico seria secundário para a

introdução da noção nas Investigações (como acredito que seja). É extremamente improvável

que Wittgenstein tenha tencionado que a semelhança de família fosse tratada primordialmente

como uma teoria empírica sobre o desenvolvimento do significado dos conceitos e só

mencionado isto brevemente em uma das seções em que a expõe.39

39

Evidentemente, a consideração do desenvolvimento histórico de um conceito é essencial para que possamos

analisar se se trata ou não de um conceito por semelhança de família. Richman (1962, p. 821) observa que o fato

de que alguns conceitos sejam determinados por semelhanças de família não deveria nos surpreender se

considerarmos “a maneira como o uso dos termos se desenvolve historicamente, e.g., por substituições através de

analogias, por generalização ou especialização de significado, ou por simples mal-entendido”. Poderíamos

utilizar-nos da metáfora em que Wittgenstein relaciona a linguagem a uma cidade (IF §18) para expressar este

ponto: assim como uma cidade não se desenvolve no espaço físico de uma maneira uniforme, tampouco se

desenvolve historicamente uma linguagem. Nem todos os prédios são construídos tendo em vista maximizar a

utilização do espaço urbano, nem todos os prédios são construídos tendo em vista embelezar a cidade, e nem

todos os prédios são construídos com o objetivo de abrigar moradores. De modo semelhante, nem todos nossos

conceitos são estendidos a novos objetos por estes objetos se enquadrarem em critérios rígidos e claros para a

aplicação do conceito – há uma gama de analogias, mal-entendidos, apropriações indevidas, usos jocosos, etc.

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Richman (1962) e Griffin (1974) observaram que uma possível solução para o

problema da textura amplamente aberta seria fornecer critérios para estabelecermos quais

semelhanças são relevantes para a extensão do conceito – afinal de contas, o problema parece

surgir exatamente porque a formulação de Wittgenstein seria, na opinião dos comentadores

que lhe objetam o problema, a de que a extensão de um conceito é limitada por quaisquer

semelhanças entre os objetos aos quais ele se aplica. Todavia, estabelecer maior ou menor

relevância para as semelhanças parece problemático. Griffin (1974, p. 647) constata que

uma vez que decidamos o que é central e o que é periférico para um

conceito, há uma forte inclinação em considerar o que é central como

constituindo condições necessárias e suficientes para o conceito. De fato,

podemos ver que quanto mais reduzimos o peso de aspectos centrais (dado

que tenhamos aferido-os corretamente em primeiro lugar) menos provável é

que os limites do conceito por semelhança de família ‘jogo’ venham a

coincidir com aqueles do conceito ordinário de ‘jogo’. Por outro lado, quanto

mais aumentamos o peso dos aspectos centrais mais próxima do

essencialismo nossa posição se torna.

Ou seja, se construíssemos o conceito por semelhança de família “jogo” delimitando

exatamente quais semelhanças são relevantes e quais não o são, poderíamos terminar com

uma definição disjuntiva para “jogo”. Como já abordamos acima (Semelhança de Família e

Definições Disjuntivas) e como Wittgenstein mostra na §68, uma definição disjuntiva possui

um nível de rigidez muito maior do que o da utilização do conceito “jogo” na linguagem

cotidiana, e não se poderia dizer que o conceito “jogo”, enquanto sendo definido por uma

disjunção, se equivaleria ao conceito por semelhança de família “jogo” que utilizamos

cotidianamente. Por esse motivo nos recusamos, inclusive, a tratar Ω como um conceito por

semelhança de família quando não havia casos dubitáveis para sua aplicação. Por outro lado,

se reduzirmos completamente o peso dos aspectos centrais, caímos novamente no problema

da textura amplamente aberta.

5.3 A solução apresentada por Forster

O leitor já deve ter percebido que uma possível resolução para esse impasse foi

apontada anteriormente, enquanto interpretávamos a semelhança de família nas Investigações,

e que ela consiste principalmente em três pontos: 1) Wittgenstein não afirma, em momento

Não obstante esta importância da história na formação dos conceitos por semelhança de família, espero ter

mostado como o objetivo principal de Wittgenstein ao introduzir a noção nas Investigações não pode ser o de

trazer tal importância à luz.

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66

nenhum, que quaisquer semelhanças contam para a aplicação do conceito (cf. p. 36 desta

monografia); 2) Wittgenstein não considera uma tarefa filosófica justificar ou fundamentar a

linguagem, ou seja, justificar porque certas semelhanças contam para a aplicação de um

conceito e outras não (cf. pp. 36-37 desta monografia); 3) o conjunto de semelhanças

relevantes não pode ser rigidamente estabelecido, já que não sabemos de antemão quais são

exatamente estas semelhanças (cf. cap. 4 desta monografia).

Sobre o primeiro ponto, nos será proveitoso ler, na íntegra, o que Forster (2010, p. 82)

tem a dizer:

… algumas vezes é argumentado que, já que ele [Wittgenstein] está tentando

basear a extensão de um termo por semelhança de família sobre as

semelhanças entre as suas instâncias, mas, factualmente, tudo se assemelha a

todo resto de alguma maneira, isto deixaria amplamente aberta a extensão de

um termo por semelhança de família. Mas esta versão da objeção jaz sobre

um mal entendimento de sua posição. É, certamente, verdadeiro que ele

sustenta que haja semelhanças entre as instâncias de um conceito por

semelhança de família que justifiquem aplicações particulares do termo

envolvido. Mas não faz parte de sua ideia, como a objeção pressupõe, que

isto se dê porque um conceito por semelhança de família seja definido como

se segue: ‘estas instâncias particulares e tudo que se assemelhe a elas de toda

e qualquer maneira’. Ao invés disso, sua ideia é que as semelhanças em

questão serão uma variedade de tipos específicos de semelhanças entre as

instâncias particulares do termo.

Deste modo, Wittgenstein se compromete com a posição de que determinadas

semelhanças, as semelhanças de família, justificam a aplicação dos conceitos por semelhança

de família, mas não defende, como os críticos pressupõem, que estas sejam quaisquer

semelhanças existentes entre as instâncias dos conceitos. São “tipos específicos de

semelhanças” que determinam a extensão do conceito, e não toda e qualquer semelhança que

possa ser identificada entre os objetos aos quais o conceito se aplica.

O que pode ter levado muitos comentadores a compreender equivocadamente a

posição wittgensteiniana é que o filósofo cala sobre como estas semelhanças de família são

estabelecidas; i.e., ele não procura fornecer nenhum critério para que possamos estabelecer

quais semelhanças são relevantes para a aplicação de um conceito por semelhança de família.

Na §65, ele explicitamente atribui a estas semelhanças a importantíssima capacidade de

justificar a aplicação de alguns de nossos conceitos; na §67, atribui a elas um papel

determinante na evolução da utilização que fazemos destes conceitos; todavia, no único

momento em que procura discuti-las diretamente (ainda na IF §67), se utiliza de uma analogia

um tanto problemática que as relaciona às semelhanças existentes entre os membros de uma

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mesma família – o que, como já vimos, parecia pressupor que os conceitos por semelhança de

família seriam construídos através da percepção sensível de um grande número de

semelhanças entre um grupo de objetos. É possível, dada a negligência do problema da

textura amplamente aberta em sua obra, que Wittgenstein não tenha sequer cogitado que

alguém o tomaria como afirmando que quaisquer semelhanças contam para a aplicação de um

conceito por semelhança de família; por outro lado, o modo incauto como cunhou o próprio

termo “semelhança de família” parece ser testemunha de que ele poderia ter se detido um

pouco mais detalhadamente sobre tais semelhanças.

Estando isto estabelecido, cabe mais uma vez observar que se Wittgenstein cala sobre

os critérios necessários para estabelecer quais semelhanças são relevantes para a aplicação dos

conceitos por semelhança de família é porque, além de ser impossível estabelecer de antemão

a relevância das semelhanças, ele julga que a tarefa da filosofia não é justificar ou

fundamentar nossa linguagem, ponto que reitera ao longo das Investigações (cf. §124, §126,

§133). Um determinado falante pode se utilizar das semelhanças de família entre os jogos

para justificar a aplicação que faz de “jogo”, mas não isto não implica que ele esteja

justificando porque estas são as semelhanças relevantes, e não outras. Não obstante, pode-se

extrair das considerações de Wittgenstein alguns pontos relevantes para a fundamentação de

nossos conceitos na realidade. Reforçando o não-dogmatismo wittgensteiniano, Forster (2010,

p. 81) observa que a explicação que o filósofo fornece para os conceitos por semelhança de

família

não tem por objetivo suprimir a possibilidade de que possa haver um número

de conceitos por semelhança de família alternativos que diferissem dos

nossos por classificar casos particulares de modos sutilmente ou não tão

sutilmente diferentes. Pelo contrário, ele [Wittgenstein] deseja afirmar este

tipo de possibilidade, e afirmar, além disso, que interesses diferentes dos

nossos podem apoiar tais formas alternativas de classificação.

Pode-se inferir daí que Wittgenstein, se solicitado a explicar porque determinadas

semelhanças são relevantes para a aplicação de um conceito enquanto outras não o são,

provavelmente o faria através do exame das intenções, dos objetivos, da cultura e das

atividades de um determinado grupo linguístico – ou seja, de sua forma de vida.40

O uso que

Wittgenstein faz do conceito de forma de vida, segundo Glock (1996, pp. 124-125), “acentua

40

Griffin (1974, p. 649), inclusive, cogita uma possível resolução do problema da textura amplamente aberta se

utilizando desta ideia: “… [talvez seja o caso que] a classe de referência de um predicado por semelhança de

família seja limitada não apenas pelas semelhanças de família entre seus membros mas também pelos propósitos,

intenções e atividades atuais da ‘forma de vida’ na qual o predicado é usado”.

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68

o entrelaçamento de cultura, visão de mundo e linguagem”, e se há fundamentação para

linguagem, esta teria de ser encontrada nos “padrões mutáveis de atividade das comunidades”.

Por fim, mesmo que as semelhanças de família possam justificar a aplicação de um

conceito – já que o falante pode remeter a elas para explicar porque aplicou um determinado

conceito por semelhança de família a um objeto e não o aplicou a outro –, elas não o fazem de

um modo completamente preciso. Como já vimos, não é estabelecido de antemão um

conjunto inequívoco de semelhanças que possam determinar, para todo e qualquer objeto, se

ele pertence ou não à extensão do conceito. Ao invés disso, as semelhanças relevantes se

apresentam contextualmente (como no exemplo do jogo que se deve ensinar a crianças na

§71) ou como “suportes” aos quais nos agarramos quando outros nos são retirados, de modo

que, cotidianamente, não utilizamos um conceito por semelhança de família tendo em mente

uma significação rígida para ele.

Dadas estas considerações, é evidente que imputar à semelhança de família o

problema da textura amplamente aberta é um erro derivado da interpretação equivocada das

§§65-88 e dos objetivos filosóficos das Investigações como um todo.

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69

CONCLUSÃO

Ao início da monografia, me propus as seguintes metas: 1) Levando em conta a

bibliografia secundária, fornecer uma interpretação para semelhança de família e para

conceitos por semelhança de família que seja condizente com o que Wittgenstein formulou

nas Investigações Filosóficas. 2) Apresentar, em detalhes, o problema da textura aberta para

os conceitos por semelhança de família. 3) A partir da interpretação fornecida para

semelhança de família, avaliar criticamente em que medida o problema da textura aberta se

aplica aos conceitos por semelhança de família, apresentando e discutindo também algumas

das soluções até aqui avançadas.

Em relação à meta (1), foi mostrado como Wittgenstein pôde considerar a sua

exposição sobre semelhança de família como correspondente ao funcionamento de certos

conceitos de nossa linguagem, e que atribuir ou não a eles o rótulo de “conceitos por

semelhança de família” só é possível após o exame deste funcionamento. As semelhanças de

família foram estabelecidas como características, presentes nas instâncias dos conceitos por

semelhança de família, que delimitam a extensão destes conceitos – i.e., se um determinado

objeto possui estas semelhanças de família, o conceito se aplica corretamente a ele, se ele não

as possui, o conceito não se aplica corretamente a ele. Nenhuma das semelhanças está

presente em todas as instâncias do conceito, mas “se envolvem e se cruzam mutuamente” (IF

§66), algumas estando presentes na maioria das instâncias e outras apenas em grupos

menores. Apesar da aplicação de um conceito por semelhança de família ser justificada

através destas semelhanças, não se pode, a partir delas, construir uma definição disjuntiva que

corresponda ao conceito – pois nos utilizamos cotidianamente de um conceito por semelhança

de família sem saber, de modo rígido e imutável, quais semelhanças contam para sua a

aplicação. Uma definição disjuntiva, ao delimitar estritamente os disjuntos (e portanto, as

semelhanças) que contam para aplicação, deixa de corresponder ao conceito cotidiano.

Destarte, um conceito é um conceito por semelhança de família se e somente se aplica-se a

objetos em virtude das semelhanças de família existentes entre eles (e não em virtude de um

conjunto de características em comum) e se não são inteiramente determinadas quais

semelhanças são relevantes para a aplicação.

O problema da textura aberta, correspondendo à nossa meta (2), foi apresentado como

consequência de uma certa interpretação das observações de Wittgenstein nas §§65-67, a

saber, a de que Wittgenstein estaria dizendo ali que um conceito por semelhança de família se

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aplica corretamente a objetos não em virtude de uma propriedade em comum a todos eles,

mas sim em virtude destes objetos serem semelhantes uns aos outros. Esta tese, apesar de

responder por que dois objetos são subsumidos sob um determinado conceito, não consegue

explicar por que certos objetos não são subsumidos sob o conceito: se o objeto a é subsumido

ao conceito F por apresentar semelhanças com outros objetos que se subsumem sob F, então

todo e qualquer objeto que possua semelhanças com os objetos F também devem se subsumir

sob este conceito. Como é plausível que todos os objetos se assemelhem de alguma forma,

todos os objetos deveriam pertencer à extensão de F.

A meta (3) foi alcançada, como vimos, ao mostrar-se que o problema da textura aberta

jaz sobre uma interpretação errônea das Investigações. Contra o que pressupõem os opositores

de Wittgenstein, o filósofo não afirma que toda e qualquer semelhança conte para a aplicação

do conceito. Assim, nem todas as semelhanças que existem entre os diversos jogos são

semelhanças de família (i.e., determinam a extensão do conceito “jogo”). Entretanto,

diferentemente da solução para o problema da textura aberta que pretendia fornecer critérios

para estabelecermos quais semelhanças são mais relevantes para a aplicação de um conceito, a

filosofia de Wittgenstein não pretende fornecer tais critérios, pois não procura justificar a

existência de nossos conceitos e nem o funcionamento de nossa linguagem. A tarefa da

filosofia wittgensteiniana é descrever esse funcionamento, tendo em vista o dissolvimento de

problemas filosóficos (IF §109). Por sua vez, a aplicação do conceito por semelhança de

família não é delimitada de modo rígido por critérios exatos – nós não sabemos, de antemão,

quais semelhanças estamos levando em conta ao aplicá-lo. De modo que a extensão do

conceito, apesar de não ser amplamente aberta, nunca é estritamente delimitada.

O exame do problema da textura aberta nos permitiu, deste modo, evidenciar o papel

da semelhança de família nas Investigações Filosóficas.

Page 72: OS CONCEITOS POR SEMELHANÇA DE FAMÍLIA E O PROBLEMA … RODRIGO.pdf · noção de semelhança de família e para o problema da textura amplamente aberta, de modo a prepará-lo para

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