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OS ANJOS EXISTEM? Antônio Mesquita Galvão Ed. Vozes, 1994 (2ª. edição) Ed. Lúmen (Buenos Aires), 1995 – em espanhol

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OS ANJOS EXISTEM?Antônio Mesquita Galvão

Ed. Vozes, 1994 (2ª. edição)Ed. Lúmen (Buenos Aires), 1995 – em espanhol

Dedicatória

Dedico este livro aos meus queridos filhos

ANA MARIA e SÉRGIO RICARDO

recordando os momentos da infância deles, quando à noite, junto à cama,

orávamos o “Santo Anjo do Senhor”.

Canoas, RS -1993.

2

O anúncio

O anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galiléia chamada Nazaré. Foi a uma virgem, prometida em casamento a um homem chamado José, que era descendente de Davi. E o nome da virgem era Maria. O anjo entrou onde ela estava, e disse: “Alegre-se, cheia de graça! O Senhor está com você!” Ouvindo isso, Maria ficou preocupada, e perguntava a si mesma o que a saudação queria dizer. O anjo disse: “Não tenha medo, Maria, porque você encontrou graça diante de Deus. Eis que você vai ficar grávida, terá um filho, e dará a ele o nome de Jesus. Ele será grande, e será chamado Filho do Altíssimo. E o Senhor dará a ele o trono de seu pai Davi, e ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó. E o seu reino não terá fim”. Maria perguntou ao anjo: “Como vai acontecer isso, se não vivo com nenhum homem?” O anjo respondeu: “O Espírito Santo virá sobre você, e o poder do Altíssimo a cobrirá com sua sombra. Por isso, o Santo que vai nascer de você será chamado Filho de Deus. Olhe a sua parenta Isabel: apesar da sua velhice, ela concebeu um filho. Aquela que era considerada estéril, já faz seis meses que está grávida. Para Deus nada é impossível”. Maria disse: “Eis a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra!” E o anjo a deixou.

(Lc 1,26-38).

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃOI Quem são os anjos? 1. Natureza e função

2. O nome dos anjos3. Os anjos na arte4. O ensinamento da Igreja5. Na liturgia

II Os anjos na Bíblia1. No Antigo Testamento

1.1 O anjo de Javé1.2 O anjo exterminador1.3 Mensageiro e servidor1.4 Aquele que protege

2. No Novo Testamento2.1 Jesus e os anjos2.2 Na anunciação2.3 Mistério da salvação2.4 Juízo final2.5 No Apocalipse2.6 Nas literaturas apócrifas

III Outras teorias sobre anjos1. No platonismo2. Teorias esotéricas3. No espiritismo4. Hierarquia celeste5. No Catecismo da Igreja

IV Os anjos caídos1. O pecado dos anjos2. Potências sobrenaturais3. Demonologia

V Os mensageiros de Deus1. Os papas e os anjos2. Literatura cristã a respeito dos anjos 2.1 Natureza 2.2 Tarefas dos anjos 2.3 Grupos de anjos 2.4 Nomes dos anjos3. Ligação4. Os anjos existem!5. A ladainha dos Santos Anjos

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

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INTRODUÇÃO

Hoje o mundo dos leigos, ditos seculares, descobriu e adentrou ousadamente em terrenos por onde até então só trafegavam místicos, teólogos e pensadores religiosos: o mundo espiritual.

O modismo do ocultismo esotérico, os avanços da parapsicologia, os equívocos do psicologismo pós-freudiano, as teorias sobre UFOs e vida inteligente em outras galáxias, as descobertas das experiências psíquicas, algumas derivadas dos delírios das drogas, o culto das filosofias orientais, a chamada “meditação transcendental” , e a procura de experiências místicas cada vez mais fortes e profundas, indo até os rituais satânicos, tudo isso tem levado o homem ao estudo, nem sempre coerente, acadêmico e racional das ciências espirituais, onde se ressaltam as figuras dos anjos, dos demônios e de outros seres sobrenaturais.

O que antes era vedado à pesquisa secular, hoje é invadido pela livre especulação. E o pior: cada ramo de pesquisa, cada escola, cada tendência ou grupo religioso cria suas leis e dita cátedra, transitando muitas vezes por “achismos” ou evidências empíricas, em geral ao arrepio das fontes mais ortodoxas, como a teologia, a ciência bíblica e as literaturas judaico-cristãs paralelas.

Via-de-regra, esses estudos que se distanciam das bases reais, não se inspiram em textos próprios e, como conclusão, resultam em ciências falsas, em cultos híbridos e em superstições sem a mínima base, científica, lógica ou teo-lógica e, assim, vulneráveis à mais tênue investigação.

A culpa disto reside, em parte, no fato de não existirem hoje muitas obras sobre angelologia (a parte da teologia que estuda os anjos). Nossos sistemas de ensino ou cursos de teologia no Brasil, não tem tratados sugestivos sobre os anjos O lugar dos anjos na vida católica vem sendo cada vez mais reduzido, folclorizado e conduzido aos equívocos da superstição. Em termos de catequese das crianças então nem se fala! Isto sem citar quando os catequizandos não ficam expostos às tendências esotéricas de algum(a)s catequistas.

Em termos gerais, infelizmente, o aprofundamento teológico da fé no mistério dos anjos não realizou grandes progressos desde o fim da era escolástica (século XVI). Os teólogos se preocupam mais com a teologia social (relação Deus-homem), vivendo-se uma era mais cristocêntrica, diminuiu a adoração ao Espírito Santo (a Renovação Carismática tenta revivê-la), a devoção aos anjos e santos, e mesmo à Virgem Maria não tem a ressonância na devoção popular de algumas décadas passadas. Dentro deste contexto, destacamos:

A diminuição do interesse e frequência à missa – as antigas tradições católicas ensinavam que os anjos assistiam à missa e,

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após seu término, “voavam para Deus a fim de levar nossas orações...”;

O ceticismo, o racionalismo e o neopsicologismo obscureceram o estudo e a devoção dos anjos;

A devoção mariana do século XIX e início do século XX fez diminuir o culto outrora prestado aos anjos;

Como hierarquicamente os anjos são simples serviçais de Deus, a mentalidade pragmática do homem moderno imagina que atento à Revelação e sob a Providência pode prescindir da presença e da proteção dos anjos.

O clássico quadro das crianças passando por uma ponte com as tábuas soltas, sobre um rio caudaloso, protegidas pela figura de um anjo com as asas abertas, hoje pertence às imagens do passado e das recordações de infância. No sentimento e na concepção moderna, os anjos se tornaram seres relegados mais ao âmbito da lenda e da fantasia infantil.

Na verdade, como dissemos, existem muito poucas literaturas sérias a respeito dos anjos. E esse foi um dos motivos deste livro: primeiro pela inexistência de bons livros de angelologia em português, e, segundo, por acreditar serem os anjos criaturas de Deus, encarregadas por ele de zelar por nós e nos conduzir ao Reino dos céus. A maioria das obras que se encontra por aí, por incrível que possa parecer, mistura estudos de anjos e demônios, e acaba falando mais nos últimos que nos primeiros.

A teologia referente aos anjos é pouco difundida entre os meios cristãos. São raras as casas de formação que tem a angelologia entre seus currículos. É uma pena, pois se trata de uma irrefutável realidade espiritual, capaz de ajudar os fiéis a enfrentar com mais coragem, serenidade e fé os sofrimentos, as dores, as incertezas e as provas que a vida nos impõe a cada dia. E, ao mesmo tempo, ajuda a intuir a maravilhosa beleza da vida que nos espera no futuro. Os anjos são mensageiros de Deus! Nas páginas deste trabalho vamos discorrer sobre essa realidade.

Os anjos são uma realidade bíblica. Há citações sobre eles desde o Livro do Gênese (3,24) até o Apocalipse (22,16). Sua atividade protetora é relatada em, praticamente, todos os livros das Sagradas Escrituras, em quase trezentas passagens, 110 no Antigo Testamento e 168 no Novo.

Oremos ao Espírito Santo de Deus para que nos dê o entendimento a fim de penetramos nesse mistério.

O Autor.

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I QUEM SÃO OS ANJOS

1. Natureza e função

Anjo é o nome dado aos seres espirituais, cuja função é a de serem mensageiros, enviados por Deus. A palavra anjo é originária do hebraico “mal’ak” que nos LXX traduziram por ángelos, = mensageiro, que pela vulgata foi traduzida para o latim como angelus, chegando até nós como anjo.

A angelologia, como ciência teológica que estuda os anjos, difundiu-se a partir da Idade Media. Como natureza, podemos dizer que os anjos são seres espirituais, supra-terrestres, sobrenaturais, criados por Deus para determinadas funções. Essas funções são, basicamente de servir de mensageiros e pontos de ligação entre o mundo invisível e o visível.

Os anjos estão a serviço de Deus e – por determinação deste- também a serviço dos homens 1.

Diversas culturas e religiões conhecem espíritos da natureza ou seres supra-humanos, semideuses ou demiurgos. O anjo como espírito, mensageiro e serviçal, é uma exclusividade das culturas judaico-cristãs e das religiões influenciadas por estas, entre elas o islamismo.

Os espíritos puros, orientados para Deus, em virtude da sua essência, não são seres petrificados em um ato de adoração muda. Sua essência peculiar vai mais além do mover-se e agitar asas, conforme a narração de Isaías (cf. 6,3), rica em simbolismos e plástica. Encarregados de zelar pelo bem-estar dos homens, eles também vigiam as investidas do maligno e se perfilam diante do trono de Deus, louvando-o com hinos de glória e majestade 2.

A melhor definição de anjos talvez seja a de São PAULO, contida na Carta aos Hebreus:

São espíritos encarregados para um serviço, enviados àqueles que deverão herdar a salvação (Hb 1,14).

A teologia escolástica afirmava serem os anjos os mediadores, subordinados a Deus a serviço de Cristo. Indagado sobre os anjos, assim se manifestou Monsenhor GIUSEPPE DEL TON, uma das maiores autoridades em angelologia:

Como são os anjos?

São seres espirituais, inteligentíssimos, dotados de personalidades distintas, que tem consciência de suas realidades e missões;

Qual a forma dos anos?

1 SANTO AGOSTINHO. Sermo VIII, 32 H.PETERSON. El libro de los Angeles. Paderborn 1961 (Trad. de Carlos Alberto Soares).

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Sua forma corpórea é uma questão controvertida entre os teólogos. São Gregório de Nazianzo afirmou que eles são seres espirituais, mas que para cumprir missões de Deus, podem assumir formas visíveis;

O que os anjos podem fazer a nosso favor?

A rigor tudo! Sendo bons, inteligentes, poderosos e cientes do plano de Deus para os homens, eles podem nos auxiliar nesta vida a buscar a salvação eterna;

Quantos são os anjos do céu?

Incontáveis! São tantos quantos necessários para os projetos de Deus. As Sagradas Escrituras afirmam, em sua linguagem simbólica, serem 1.000 milhares (Livro de Daniel) ou doze legiões (Evangelhos). Sabe-se que o número de anjos é superior ao número de homens 3.

No Concílio de Latrão (1215) foi definida claramente a existência dos anjos, ao afirmar que Deus criou duas espécies de seres: os espirituais (os anjos) e os corporais (os homens e os animais), reafirmando assim na carta de São PAULO aos Colossenses onde é afirmado terem sido criações de Deus “todas as coisas visíveis e invisíveis”, e apresenta a hierarquia angélica. O apóstolo conclui: “Tudo foi criado por Ele e para Ele” (cf. Cl 1,16).

Nada nos impede de admitir que a angelologia bíblica e cristã dos primeiros séculos foi influenciada em parte por doutrinas similares, assiro-babilônicas e irânicas. Deve-se observar que as idéias extra-bíblicas relativas aos anjos, soa derivadas de uma revelação original, que se mesclou no transcurso do tempo com especulações míticas, superstições e fantasias. O crente sem o necessário aporte de uma catequese eficaz cai, muitas vezes, no subjetivismo de alguns erros, em geral de corte esotérico, que desfiguram o conteúdo original da doutrina dos anjos, esquecendo, deste modo, a fé que lhe foi revelada.

No panteão irano-mesopotâmico há um ser sobrenatural, híbrido, com patas de leão, asas de águia e corpo de guerreiro, chamado, no acádico de kari-buh. Ora, esse karibú das culturas dominadoras pode ter gerado na literatura judaico-palestinense do tempo do exílio e do pós-exílio, a figura e a idéia do querubim, considerando-se a época em que apareceu essa expressão entre o povo judeu.

Também entre os teólogos protestantes não são raras as afirmações a respeito das realidades angélicas. Há significativos textos que falam da natureza e função dos anjos em escritos de KARL BARTH († 1968), JOHN WESLEY († 1791) e do conhecido pregador batista norte-americano BILLY GRAHAM.

É provável, como afirmou são BOAVENTURA († 1274), que muitos dos nossos dons espirituais tenham sido mediados pelos anjos. Também é possível que o sucesso dos santos tenha tido realmente esse motivo, que aprenderam a ceder e compreender através dos seus guias angelicais, que lhes foram dados por Deus, com o propósito de ajudá-los a cumprir suas respectivas missões. É

3 G. DEL TON. Una grande inquieta sugli angeli. Ed. Vatican., 1991

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curioso que hoje, até a moderna exegese luterana, que sempre se manifestou tão fundamentalista à exclusiva mediação de Cristo (cf. 1Tm 2,5), passa a reconhecer vestígios da intervenção dos anjos no plano da salvação.

Além da natureza espiritual e função de mensageiros, se encontra a expressão anjos na linguagem figurada para exprimir o profeta, o pregador e até os bispos das igrejas. Este uso aparece nas Escrituras e nas literaturas cristãs.

Na arte e na literatura dos últimos séculos, os anjos tem aparecido, transformados em seres etéreos e, com frequência, de natureza ambígua. A arte e as letras românticas geralmente desvirtuam a figura do anjo como ser espiritual e mensageiro. É como escreve o teólogo ROMANO GUARDINI:

Sua imagem está se desviando do amplamente belo, até a sensibilidade e o sentimentalismo, havendo sido diminuídos para falar as ambigüidades do barroco e do rococó, e em especial a indústria dos objetos religiosos 4.

Os anjos são seres espirituais dotados de grande poder, que são enviados como ministros de Deus aos eleitos. Porém, tal como sucede aos contatos espirituais de qualquer sorte, a participação apropriada no ministério dos anjos, na existência terrena, depende muitíssimo da abertura espiritual dos crentes, da sua percepção mística e santidade de vida.

Os anjos são mensageiros de Deus, enviados com propósitos especiais, e ministram na vida dos crentes, sob as ordens do Senhor, as orientações do Espírito Santo 5.

A Bíblia está repleta de relatos das atividades dos anjos em cumprimento aos desígnios de Deus, tanto no Antigo como no Novo Testamento, conforme teremos oportunidade de ver no capítulo seguinte.

Com frequência se fala no AT nos anjos de Deus, confundindo o anjo com o próprio Deus. Esses relatos são bem precisos em Gn 18 (os três homens que apareceram a Abraão), em Ex 8 (o episódio da sarça ardente, com Moisés), e em Jz 6,11-18 (com Gedeão). Nesses casos, parece que o estilo de literatura revela uma certa ilusão dos personagens, pois, segundo as antigas tradições literárias judaicas, o mensageiro, ao anunciar a mensagem, em nome de quem a enviou, usa sempre a primeira pessoa do singular, repetindo a palavra do Senhor. Nos textos bíblicos citados, é o anjo quem aparece e fala, de tal modo que sugere ser Deus quem está falando.

Entretanto, em Gn 32,22-32 não fica claro se é o anjo a serviço de Deus ou é o próprio Deus, enquanto Jacó na solidão da noite, espera com temor e terror o encontro com seu irmão Esaú, é atacado por um homem. Os dois lutam até a madrugada. O misterioso inimigo não pode vencer a Jacó, nem sequer pode se livrar dele. Não obstante, com um pequeno movimento de mão paralisa Jacó. Este lhe pergunta quem é, sem obter resposta alguma, dando a Jacó um nome novo: “Não te chamarás mais Jacó, mas Israel, porque lutaste com Deus, e venceste”. Assim, pois, neste caso, o anjo do Senhor é o próprio Deus a intervir diretamente na história humana, dando-lhe forma e estrutura.

4 Der Engel; In: Dantes Göttlichter Komödie, Zit., 19775 E. H. PLUMPTRE. The Angel of God. Miss., 1976

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As heresias gnósticas dos primeiros séculos desvirtuaram a natureza e a função dos anjos. No origenismo (séc. III-IV dC.) os seguidores de Orígenes († 254) afirmavam que o espírito do homem era preexistente, pois seria a encarnação de algum anjo.

Para penetrarmos de cheio no estudo dos anjos é preciso que se identifique sua natureza (espiritual) e sua função (mensageiros). Feita esta primeira identificação, e a partir dela, a compreensão nos chega de forma mais clara e espontânea.

2. O nome dos anjos

Não são muitas passagens da Bíblia em que haja uma citação nominal dos anjos.Em geral, os textos costumam falar no anjo e em seu trabalho, sem explicitar seu nome. Preliminarmente, os anjos são descritos como serafins, querubins e arcanjos. Trata-se mais de função do que propriamente de nome.

Querubim, derivado do arcádico karibú, , como já vimos, significa, em algumas bibliografias, aquele que tem sabedoria e em outras, aquele que zela.

Serafim, que significa os ardentes, denotam uma classe de anjos que velam a face de Deus, adorando-o com amor ardente.

Arcanjo, do grego , quer dizer príncipe dos anjos, ou, se quisermos ser mais preciosistas, origem ou autoridade ().

Após o exílio babilônico (587-528 a.C.) os anjos passam a ser mais invidualizados, chegando a ter nomes próprios, muitas vezes relacionados com a função específica que exercem. O contato de Israel exilado com a superveniente cultura babilônica pode ter influenciado a maneira de representar a corte divina, de maneira mais variada e mais rica (cf. Zc 1,11s).

Os querubins, serafins e arcanjos aparecem às vezes em figuras humanas, ou em figuras mistas (com asas), significando serem mensageiros do poder e da glória de Deus. Encontramos serafins em 1Rs 6,23-29; Is 6,2.7; Ez 25,18s. Já os querubins aparecem mais vezes:

Gn 3,24 – com a espada chamejante para guardar o caminho da árvore da vida;

Ex 25,18; 37,7; 1Sm 4,4 – dois querubins de ouro guarnecem a arca da Aliança;

2Sm 22,11; Sl 18,10 – Javé cavalga nos querubins para vir em auxílio dos homens;

Hb 9,5 – na narrativa de Paulo, os querubins cobrem com sua sombra a glória de Deus.

Bem mais tarde, a literatura judaica começa a dar nomes aos anjos, surgindo, então os arcanjos Miguel e Gabriel e, posteriormente, Rafael, sendo este último não-canônico nas escrituras judaicas.

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Miguel é aquele como Deus, considerado o chefe das milícias celestes que combatem contra os demônios e o poder das trevas. O arcanjo Miguel é patrono e defensor do povo judeu. Há referências bíblicas sobre ele, a partir de Daniel (Dn 10,13. 12,1), passando por 1Ts (4,16) e Jd (9), até o Apocalipse (12,7). A liturgia Católica celebra São Miguel Arcanjo dia 29 de setembro e a Ortodoxa a 8 de novembro. O arcanjo Miguel é importante personagem na luta contra Satanás, na imortal obra de JOHN MILTON († 1674), o Paraíso Perdido.

Gabriel é o anunciador. Há controvérsias sobre o significado de seu nome. Em algumas bibliografias aparece como Homem de Deus, Deus mostrou-se forte e até Herói de Deus. Gabriel é o arcanjo da anunciação a Zacarias (cf. Lc 1,19) e a Maria (v. 26). No Antigo Testamento há referências a ele no livro de Daniel (cf. 8,16; 9,21).

Rafael que dizer Deus cura, ou Cura de Deus. É o menos canônico dos três arcanjos. Todas as referências a ele aparecem no livro de Tobias, cuja canonicidade não é acatada pelos judeus. Para pertencer ao cânon (regra) sagrado dos judeus, o livro tinha que conter os seguintes requisitos: a) ter sido escrito em hebraico (ou aramaico); b) escrito na Palestina; c) até a reforma de Esdras (± 400 a.C.). Ora, como o livro de Tobias teria sido escrito após Esdras, os judeus o classificaram como apócrifo. Quando ocorreu a Reforma Protestante no século XVI Lutero adotou o cânon judaico, razão pela qual o livro de Tobias, e alguns outros, não aparecem nas Bíblias protestantes.

Todo esse aposto histórico foi para explicar porque o anjo Rafael não goza de integral prestígio entre judeus e protestantes, uma vez que todas as suas atividades são descritas numa literatura não-reconhecida por eles. Na Bíblia católica há referências a Rafael apenas no livro de Tobias (cf. 3,16s; 5,4; 9,1.5; 12,15).

Estes são, portanto, os nomes dos três anjos que aparecem na Bíblia. Em outras literaturas apócrifas, cabalísticas ou esotéricas existem outros, que falaremos depois, mas que, por não terem o aval bíblico, são relacionados apenas como curiosidade cultural.

3. Os anjos na arte

Apenas para ilustração, vamos informar aqui a representação de anjos nas principais obras de arte de humanidade. Nesses trabalhos, em geral pinturas, são exaltadas algumas características, como a função de ajudador e guarda, com rostos de crianças, asas e vestes voláteis. O anjo São Miguel é geralmente apresentado como um guerreiro romano, com espada e armadura, envergando grandes asas. Damos a seguir uma relação de autores clássicos que pintaram anjos 6, seja como guardiões, seja como anunciadores ou adoradores na corte celestial:

Bosch (1450-1516) - O Paraíso e Ascensão ao céu;

Boticelli (1441-1510) - Virgem com o Menino e um anjo.- Virgem dos serafins,

6 Estas obras são encontradas na Internet (Google).

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- Anunciação: Virgem do Magnificat.- Natividade mística;

Del Sarto (1530) - O sacrifício de Isaac; El Greco (1614) - Anunciação,

- Alegria da santa aliança,- Coroação da Virgem;

Filippo Lippi (1460) - A anunciação;

Fra Angelico (1455 ) - Anunciação- A Madona, o Menino e os anjos

Goya (1828) - Maria Rainha dos mártires.

Giotto (1337) - Madona no trono;- Anunciação de Santa Ana;- O sonho de São Joaquim;- Fuga para o Egito;- O sonho da Virgem Maria;

Da Vinci (1519) - Batismo de Cristo;- Anunciação;

Manet (1883) - Morte de Cristo;

Paolo Caliari (-1588) - O sacrifício de Abraão/

Pedro Serra (séc. XIV) - A anunciação;

Rafael (1529) - Ressurreição;- Coroação da Virgem;- Madona de Baldaquim;- Madona de Foligno;- Visão de Ezequiel;

Rembrandt (1669) - Visão de Daniel;- O anjo e Tobias;

Rubens (-1640) - Adoração dos pastores;- A virgem em uma grinalda de flores;

Simone Martini (1344) - A anunciação; - Majestade.

Outras belíssimas representações de anjos adoradores são encontradas nos mosaicos bizantinos da basílica de Háguia Sofia, em Istambul, de autores desconhecidos.

4. O ensinamento da Igreja

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A Igreja católica, fiel às Sagradas Escrituras, afirma que os anjos existem. Essa existência de anjos, como criaturas pessoais e não simples força, energia ou emanação, foi dogmatizada desde o IV Concílio de Latrão (1215, DS 800) e posteriormente o Concílio Vaticano I (1870, DS 3002) com base nas afirmações do Concílio de Nicéia (DS 327.125). No Credo Niceno-constantinopolitano a Igreja afirma sua fé no Deus criador do mundo visível e invisível.

Diversos teólogos, e o maior deles Tomás de Aquino, tem repetidas vezes afirmado a existência dos anjos Em sua encíclica Humani Generis (1950) o papa Pio XII afirmou categoricamente a existência dos anjos como seres sobrenaturais, com funções de ajuda aos homens, quer no terreno espiritual quanto no material.

Por este motivo, a Igreja ensina a relação dos anjos, não só com Deus mas também com toda a humanidade.

Os anjos trabalham na construção do Reino de Deus, na obra da criação, consolidação e aperfeiçoamento do Reino. São Miguel luta vitoriosamente contra o dragão, jogando-o no inferno (cf. Ap 12,7s). Fiel ao que ensina São Paulo (cf. Hb 1,14), a Igreja afirma que uma das missões dos anjos consiste em servir aos herdeiros da salvação 7.

Nossa Igreja tem proclamado como anjos os pregadores da boa-notícia, com base nos textos escriturísticos (cf. Is 29,7; Ml 2,7; 3,7; Mt 11,10; Mc 1,2/ Lc 7,27; Gl 4,14; Ap 2,1.8.12.18). É rica a manifestação da liturgia com relação aos serviços prestados pelos anjos à Igreja, como veremos no tópico a seguir. A Igreja faz coro à Bíblia ao chamar os anjos de:

Santos de Deus (cf. Jó 5,1; 15,5; Sl 89,6.8; Dn 4,10); Santos Anjos (cf. Tb 11,14; 12,15(; Guardas (cf. Dn 4,10; Jd 4,15); Protetores – cada povo tem seu protetor (cf. Gn 10,13,20s).

É preciso um certo senso-crítico e também algum conhecimento teológico para distinguir o que é artigo de fé e o que é religiosidade popular. Antigamente todas as atividades da natureza eram atribuídas aos anjos. Posteriormente, a evolução das ciências mostrou realidades diferentes. Era crença popular, por exemplo, na Idade Média, que os anjos faziam os movimentos do mar, acendiam o sol, criavam a chuva e outros fenômenos naturais. Quando Laplace expôs em 1825, as “leis da mecânica celeste”, tais crenças desabaram, pois não tinham o suporte bíblico-dogmático dos ensinamentos inspirados.

A fé na missão e existência dos anjos consiste no seguimento aos ensinamentos da Bíblia e do Magistério da Igreja. Cabe aos fiéis rejeitar idéias piegas sobre “anjinhos”. O plano de Deus, no qual os anjos estão inseridos, é coisa séria, coerente e vigorosa. A própria expressão “anjinho” é hoje usada de forma pejorativa, como a exprimir alguém ingênuo, fora da realidade.

A fé no serviço dos anjos, depurada de tradições folclóricas, superstições esotéricas ou preceitos da filosofia helenista ou das religiões orientais, deve 7 M. SCHMAUS. Los Angeles. In: Teologia Dogmática. Madrid, 1950 (trad. de Ana Maria Galvão).

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voltar a constituir elemento vital e sadio da teologia e da piedade do povo de Deus. Nesse sentido movimenta-se o ensinamento da Igreja. Apenas para concluir, é interessante observar que a teologia protestante aceitou, no primeiro momento, os ensinamentos sobre a existência dos anjos. A partir do século XVIII, começou a colocar em dúvida essa existência que, segundo eles, nada mais é que um simples dogma papista.

5. Na liturgia

Certa vez, durante a celebração de uma missa, SÃO BERNARDO († 1153) entrou em êxtase e pode contemplar uma escada que subia da terra para o céu, através da qual os anjos conduziam as almas para o Reino. O santo entndeu que aquelas almas se libertavam do purgatório pelo sufrágio da missa e eram conduzidas ao céu por seus Anjos da Guarda.

A igreja, onde foi celebrada esta missa existe até hoje, em Roma, e passou a ser denominada, desde então de Igreja Santa Maria – Escada do céu, em cujo interior existe um imenso painel onde está retratada aquela visão.

A louvação a Deus constitui a felicidade e perfeição dos anjos. Neles se faz realizar um estado sobrenatural de perfeição, que nós chamamos de céu (cf. “Tratado sobre os Novíssimos”; Sl 89,6; Hb 12,22; 1Tm 5,21). No transcurso da história da salvação aumenta sua bem-aventurança, enquanto que, sucessivamente vão conhecendo novas ações redentoras de Deus. Na liturgia dos anjos aparece o exemplo para a adoração e o louvor a Deus. A partir desse exemplo o ser humano começa a edificar sua perfeição sobrenatural 8.

A liturgia humana, o culto de adoração, louvor e ação de graças a Deus nasceu modelada pela liturgia dos anjos na corte celestial.

SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, um dos “Pais da Igreja” ensina que os anjos assistem o sacrifício da missa. Um místico sensitivo é capaz de sentir a presença desses seres sobrenaturais junto ao altar da celebração. Terminada a missa os anjos voam em tropel para levar a Deus as preces e os agradecimentos dos fiéis. É claro que se trata de uma imagem de sentido figurado, afinal, Deus toma conhecimento das intenções da missa antes mesmo dela serem manifestadas. O que o santo quis enfatizar foi a presnça dos anjos nas liturgias em homenagem a Deus.

No auge dessas liturgias, o povo canta o “Santo”, embalado pelas fráguas da fé, como viva expressão de louvor e glória a Deus. O que é o “Santo”? É um ato de louvor do coro dos serafins (ardentes no amor) frente a Deus:

Santo, Santo é Javé Deus dos exércitos!Sua glória enche a terra inteira (Is 6,2).

No hino das vésperas da festa dos Anjos da Guarda, assim ora a Igreja:

Exultamos a vós, guardiões dos homens, a quem Deus colocou ao ladro fraco, para acompanhar-lhe e para que, indefeso não seja vencido pela astúcia dos inimigos. Porque desde que o espírito da traição sucumbiu vilmente, sendo

8 M. SCHMAUS. Op. cit.

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tirado da glória e despojado de sua antiga majestade, anseia por chamar aos abismos por Deus para irem para o céu. Por isso, desçam guardiões vigilantes e evitem aqueles que desfrutem a sua proteção as misérias da alma e tudo o que ameaça a segurança, descanso e paz do pequeno. Louvada e bendita seja a Santíssima Trindade operando trinitariamente na glória imorredoura, divindade única, agora e em toda a eternidade. Amém! 9.

Como vemos, é inegável a presença dos anjos na liturgia da Igreja. Do mesmo modo que servem a Cristo, eles também protegem a Igreja, assistem-na nas tribulações e participam da animação de seus cultos. SANTO AFONSO DE LIGÓRIO costumava dizer que “os anjos sorriem quando a liturgia e a oração são bem dirigidas à glória e à majestade de Deus”. Nesse mesmo sentido o beato armênio JOÃO MANDUKANZIAN afirmou que “no momento em que o Santo Sacramento vem ao altar e abre os céus, descendo Cristo, as milícias angélicas descem à terra e rodeiam o altar onde está o sacramento do Senhor, ficando todos cheios do Espírito Santo”.

É certo que os anjos moram no céu, junto de Deus. Terminado o anúncio do Natal aos pastores, eles voltaram para lá (cf. Lc 1,15). Mesmo morando no céu, por serem espíritos perfeitos, eles vem à terra e ficam ao lado dos crentes toda vez que a Igreja celebra com fé, esperança e compromisso suas liturgias, em especial a Santa Missa.

9 Antiga fórmula litúrgica das Igrejas Orientais.

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II OS ANJOS NA BÍBLIA

1. Antigo testamento

1.1O anjo de Javé

A expressão anjo de Javé ou anjo do Senhor, em alguns episódios confunde-se com a própria presença de Deus, como já foi mencionado no capítulo anterior, como no caso da pessoa que entra em luta com Jacó. Aí se confunde a figura do mensageiro e do emissor da mensagem. Enquanto alguns autores afirmam que o varão que se opôs a Jacó era um anjo, outros biblistas levantam a questão no sentido de ser o próprio Deus. Tanto assim que numa nova aparição (cf. Gn 31,11ss) é dito a Israel (e não mais a Jacó) “EU SOU o Deus que apareceu a você em Betel”.

Resta saber se o hagiógrafo não sabia tratar-se de Deus ou se, por respeito, próprio dos antigos hebreus, não mencionou diretamente o nome do Senhor, preferindo, nessas manifestações a expressão malak Yahweh (anjo de Javé), que as versões gregas chamariam de hô ángelos tou kyriou.

Existe uma coletânea dessas aparições de uma figura singular, distinta dos outros anjos. Ao que tudo indica, parece ser essa a forma sob a qual Javé aparece. Embora não rejeitada de todo, essa tese não tem aceitação unânime entre exegetas e teólogos. Entre outras, destacam-se essas manifestações:

a Agar (Gn 16,7); a Abraão (24,7.40); a Moisés (Ex 3,2); a Balaão ((Nm 22,5-3,12); no nascimento de Sansão (Jz 13,6.9.13); ameaçando o povo impenitente (Jz 2,1-4); protegendo eficazmente contra os inimigos (2Rs 19,35).

Esse anjo não é um ser subsistente em si, criado por Deus, mas identifica-se com o próprio Javé 10.

Outras aparições do anjo de Javé merecem destaque, como a Josué (Js 5,13s), quando manda tirar as sandálias pois aquela terra é sagrada e vai servir para realizar o projeto do Senhor. A outra é uma narrativa de grande beleza, que destaca a presnça dos anjos na glória de Deus: é o sonho de Jacó (Gn 28,10), em que o patriarca vê a escada do céu onde os anjos subiam e desciam, na essência da aliança e da comunicação entre o visível e o invisível, entre o humano e o transcendente. Extasiado, ao acordar Jacó chama o lugar de betel, lugar onde o Senhor fez sua casa. Manifesta-se, ainda o anjo de Javé ao deter a mão de Abraão, que segundo ordens de Deus, estava prestes a imolar seu filho único Isaac, nascido após longo período de esterilidade.

10 DEB – Dic, Encicl, da Bíblia. Ed. Vozes, 1987

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Nesse momento, o anjo de Javé o chamou lá do céu e disse: “Abraão, Abraão!” Ele respondeu: “Aqui estou!” O anjo continuou: “Não estenda a mão contra o menino! Não lhe faça nenhum mal! Agora sei que você teme a Deus, pois não me recusou seu filho único”. Abraão ergueu os olhos e viu um cordeiro, preso pelos chifres num arbusto; pegou o cordeiro e o ofereceu em holocausto no lugar do seu filho. E Abraão deu a esse lugar o nome de “Javé providenciará”. Assim, até hoje se costuma dizer: “Sobre a montanha, Javé providenciará”. O anjo de Javé chamou lá do céu uma segunda vez a Abraão, dizendo: “Juro por mim mesmo, palavra de Javé: porque você me fez isso, porque não me recusou seu filho único, eu o abençoarei, eu multiplicarei seus descendentes como as estrelas do céu e a areia da praia. Seus descendentes conquistarão as cidades de seus inimigos. Por meio da descendência de você, todas as nações da terra serão abençoadas, porque você me obedeceu” (Gn 22,11-18).

Essa interpenetração de Deus e da figura dos anjos, que é relatada em diversas partes do Antigo Testamento, serve para demonstrar a importância e a dignidade da missão destes, pois em muitas oportunidades o povo chegou a confundir a atividade divina com a manifestação de seus mensageiros.

Mesmo no Antigo Testamento judaico os anjos não são meras figuras simbólicas, mas mensageiros e ajudantes eficazes de Deus e, como tal, objetos de fé e veneração. A apreciação dos antigos à mediação evangélica nunca chegou ao ponto de adoração, pois sempre ficou claro ao povo fiel que os anjos, embora suas maravilhosas qualidades, são também criaturas de Deus. Os antigos hebreus, e posteriormente os israelitas acreditavam que o Senhor se servia dos anjos para dirigir o mundo e a história, dos quais ele é o soberano. Estas posições de crença são encontradas desde os primórdios do judaísmo.

Na Torá encontram-se narrativas sobre a mediação dos anjos nas versões javista (Gn 16,7s) e eloísta (21,17). Em ambas as versões, o anjo é mal’ak, enviado por Deus para uma missão específica. A palavra hebraica é derivada do verbo l’k com o significado aproximado de anunciar, guiar, ajudar, velar. É sinônimo do verbo grego kerissôo, de onde vem kérygma.

Em inúmeras passagens do Antigo Testamento emerge a certeza na existência dos anjos (cf. 2Cr 18,18; Também 12,19; Dn 7,10, etc.). Essa existência é acolhida pela fé popular e pervade a literatura religiosa daquele tempo:

Vigiam a porta do paraíso (Gn 3,24); Portadores de Deus (2Sm 22,10; Sl 18,11); Adoradores de Deus (Sl 29,1; 148,2); Guardiões do “Sancta Santorum” (1Rs 6,25-28); Na visão de Ezequiel, quatro são os querubins de fogo (Ez 1,100.

Com a instauração da monarquia em Israel (900 a.C.) a crença nos anjos cresce em toda a Palestina, sendo os mesmos considerados como seres invisíveis, porém presentes e serviçais, guarda das pessoas e da nação (cf. 1Rs 19,3-8).

1.2 O anjo exterminador

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A crença enraizada na cultura judaica, como de resto em todo Oriente Médio, afirma que o anjo de Javé, como vimos no tópico anterior, no episódio da última praga do Egito, é o temível anjo exterminador, que desce à terra para punir os opressores do povo de Deus. Na verdade, o mashit é aquele que vem com o poder de Deus (ou é o próprio Deus que desceu para executar a décima praga contra o Egito, que impedia a libertação do povo eleito (cf. Ex 12,38).

Volta-se àquela dúvida anterior: o executor dessa sentença contra os poderes adversos é um anjo ou é o próprio Senhor Javé? Embora a imperfeição das traduções de algumas exegeses, o verbo é conjugado na primeira pessoa:

Eu ferirei os primogênitos do Egito (Ex 12,23).

De qualquer forma, são feitas estas colocações no intuito de deixar clara a ativa participação dos anjos nas ações de Deus. A esse respeito, escreveram os Hagiógrafos:

... e o Senhor mandará do céu um bom amigo para espalhar terror e tremor (2Mc 15,23).

1.3 Mensageiro e servidor

A angelologia hebraica, que atua como base da cristã, organizou-se de forma mais sistemática depois do cativeiro babilônico. Como a maior pres4ença de Javé fosse para os judeus freqüentadores do templo de Jerusalém, estando eles desterrados e longe do seu templo, sentiram-se afastados – e até abandonados – de Deus. Começava a surgir aí, de forma mais acentuada, a referencia cultual aos seres intermediários, os anjos.

O livro do profeta Daniel, por exemplo, é rico em exposições de como ele e outros hebreus foram servidos e salvos pela ação dos anjos, que funcionaram como mensageiros e ajudantes.

O desenvolvimento da angelologia do período pós-exílio se condensa nos livros de Jó, Daniel e Tobias que sublinham a total criaturalidade e dependência dos anjos em relação a Deus, sem nunca chegar aos exageros dos escritos apócrifos. A eles nunca é concedida nenhuma participação das realidades de Deus (cf. Jó 1,6-12; 2,1-7; Sl 89,8), mas sempre considerados, por uma parte, seres enviados aos homens (cf. 1Cr 21,18; Tb 3,37; Dn 14,33). para ajudá-los e protegê-los de várias maneiras. Por outra parte, são considerados aqueles que levam a Deus as orações dos homens 11.

Sobre a função de mensageiros e servidores já falamos no capítulo anterior. Aqui vão somente relacionar os textos bíblicos , alguns pelo menos, onde aparece essa atuação dos enviados:

Criaturas (Dn 3,57s); Numerosos (Jó 25,3); Imperfeitos, se comparados a Deus (Jó 4,18; 15,15; Sl 88,7); Ministros para a glória de Deus (Jó 38,7; Sl 103,20s; 148,2; Is 6,2-5;

Ez 10:11 A. MARRANZINi. Anjos e demônios. Ed. Loyola, 1981

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Mensageiros (Gn 19,1; 28,12; 32,12; Sl 103,20; 1Cr 21,18); Enviados aos homens (Gn 16,7s; Nm 22,22-35); Membros do exército de Javé (Js 5,14; 1Rs 22,19); Companheiros de Deus (Gn 21,17; 22,11); Formam a corte celeste (1Rs 22,19); Protetores (Gn 24,7; Sl 19,11); Às vezes podem punir (1Sm 24,16; Sl 78,49).

1.4 Aquele que protege

É inegável a função protetora dos anjos. Toda a Bíblia está cheia de narrativas a esse respeito. E não é só nas Escrituras que vamos encontrar relatos sobre as intervenções protetoras dos anjos. A história da Igreja, as literaturas paralelas, a cultura popular, as tradições, em tudo há relatos, uns mais verossímeis, outros mais fantásticos, mas sempre histórias em torno da proteção que os anjos dispensam às pessoas, às propriedades e até às nações.

Mais adiante falaremos no anjo da guarda, ou anjo custódio, tal qual a Igreja ensina hoje. No saltério lemos um canto de alegria pela proteção dispensada pelos anjos aos justos (cf. Sl 91,11). Na extensa viagem de Tobias a Média, o jovem hebreu recebe a proteção constante e eficaz do arcanjo Rafael (cf. 5,4s, 21; 6,3; 8,2s; 12,12).

Nos primórdios do povo de Deus vemos um anjo protetor de Abraão, que vai à frente do patriarca para defendê-lo dos perigos da jornada (cf. Gn 24,7).

Sem dúvidas, o livro de Daniel é aquele em que aparecem as mais numerosas referências à atuação dos anjos, justamente como protetores dos filhos de Deus. Dn é uma das bases da angelologia, não só judaica, mas também cristã. No mesmo livro encontramos três passagens vigorosas onde sobressai o amor que Deus tem pelos seus eleitos, como envia seus anjos para dar-lhes proteção.

Primeiramente temos a história dos três jovens que, para não negarem sua fé, adorando falsos deuses babilônicos, são jogados em uma fornalha, para morrerem queimados. Para espanto dos algozes, no dia seguinte eles são encontrados vivos, dentro da fornalha, não apenas os três rapazes, mas quatro. Um anjo do Senhor veio protegê-los e fazer-lhes companhia, para que as chamas não queimassem suas peles e nem seus cabelos ficassem com cheiro de fumaça (cf. Dn 3).

Vemos aí a presença protetora dos anjos que, a mando de Deus, vieram resgatar os jovens das garras da morte. Embora conselheiro do rei da Babilônia (primeiro Dario depois Ciro) o jovem Daniel por ser exilado hebreu, teve diversos problemas com membros da corte, motivados por inveja e por sua firme decisão de não cair em idolatria.

Em duas oportunidades, por causa desse tipo de intrigas, Daniel foi parar na cova dos leões para ser devorado pelas feras. Nas duas ocasiões (cf. 6,17-25; 14,31-42), o anjo de Javé veio em socorro do jovem profeta e os vorazes leões não o atacaram, embora logo após devorassem os caluniadores. Que

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lição há nesses episódios! Sem Deus, tanto Daniel como seus três amigos teriam sido mortos. Não morreram porque tiveram fé em Deus que veio em seu socorro, enviando, nas duas oportunidades, um anjo protetor que os livrou da morte injusta, cruel e iminente. Através do anjo da guarda o Senhor mostra seu desvelo pelos oprimidos e injustiçados.

É interessante entender que se Daniel estivesse sozinho com os leões, ele teria sido devorado. Com fé em Deus e na proteção dos anjos foi salvo e reabilitado. Essa fé em Deus e a confiança na presença dos anjos protetores tem, desde os tempos mais antigos, animado o povo de Deus a caminhar, rico com confiança e esperança.

2. Novo Testamento

2.1 Jesus e os anjos

Embora despido das figuras épicas e mitológicas do Antigo Testamento, o Novo está cheio de referências à existência, função e importância dos anjos. Antes de entrarmos na relação direta de Jesus com os mensageiros é bom anotarmos algumas referências a esses caros seres espirituais.

Avisaram José para fugir para o Egito e tempos mais tarde retornar (cf. Mt 2,13.19);

Ministros da glória de Deus (cf. Mt 18,10; Lc 2,18s); O arcanjo Gabriel anuncia a Maria a encarnação (cf. Lc 1,26); Alegram-se pela conversão dos pecadores (cf. Lc 15,10: Libertaram os apóstolos da prisão (cf. At 5,17-25; 12,6.10; Encorajaram Paulo a caminho de Roma (cf. At 27,23s); Existem (cf. Mt 22,30; Hb 12,22); Auxiliam na conversão dos pecadores (cf. At 10,1-8); Estão ao redor do trono de Deus e do Cordeiro (cf. Ap 5,11s).

O NT levanta algumas questões sobre a hierarquia dos anjos (cf. Ef 1,21; 3,10; Cl 1,16; 1Pd 3,22). Sobre esse assunto teremos oportunidade de falar mais detalhadamente no capítulo seguinte.

Conforme já vimos, há a presença dos anjos na vida de Jesus desde a anunciação feita por Gabriel, em Nazaré. No nascimento do Menino são os anjos que dão a boa notícia aos pastores.

A partir do início da vida pública de Jesus, a presença dos anjos é uma presença constante até o sepulcro e a ressurreição:

Os anjo servem a Jesus no deserto (cf. Mc 1,13; Lc 4,11); Jesus passa quarenta dias e quarenta noites (um tempo de provação) no deserto sendo tentado por Satanás, e os anjos o serviam. Nas tentações até o Maligno sabe do trabalho protetor dos anjos:

E o diabo lhe diz: “Se és Filho de Deus, joga-te daqui para baixo, porque a Escritura diz: ‘Deus ordenará aos seus anjos a teu respeito, para que te guardem com cuidado. E mais ainda: eles te

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levarão nas mãos para que não tropeces em nenhuma pedra’” (Lc 4,9b-10).

Conforto no Getsemaní (cf. Lc 22,43): Nos momentos de angústia, no Jardim das Oliveiras, sentindo-se só e abandonado por seus amigos, Jesus é confortado por um anjo;

Anunciam a ressurreição (cf. Mt 28,2-5 par.). O projeto abraçado por Jesus não é caminho para a morte, mas para a vida. E os anjos são anunciadores dessa novidade:

E aconteceu que as mulheres perplexas com isto, dois homens se postaram diante delas, com vestes fulgurantes. Cheias de medo, inclinaram o rosto, eles porém disseram: “Por que vocês estão procurando entre os mortos aquele que está vivo? Ele não está aqui: ressuscitou!” cf. Lc 25, 4ss).

Removem a pedra do túmulo (cf. Mt 28,2b); qual um santuário vivo, o sepulcro é aberto para que mundo contemple e adore o ressuscitado;

Anunciam a parusia (cf. At 1,11); após a ascensão de Jesus, eis – mais uma vez – os mensageiros de Deus anunciando mais uma boa notícia:

Homens da Galiléia! Por que vocês estão aí parados, olhando para o céu? Esse Jesus que foi tirado de vocês e levado para o céu, vira do mesmo modo com que vocês o viram subir (cf. At 1,11).

Como se constata, e teremos oportunidade de aprofundar adiante, a vida terrena de Jesus é acompanhada pelos anjos, desde a anunciação em Nazaré, o Natal, nas tentações, na agonia mortal, na ressurreição, nas promessas da segunda vinda e na volta definitiva para julgar vivos e mortos.

Além da dimensão funcional cristológica, a angelologia se constitui também um momento intenso de antropologia teológica. A angelologia dá a conhecer ao homem um aspecto do mundo que o rodeia em sua decisão crente, e impede que ele infra-valorize as dimensões desta, mostrando-lhe como se acha uma comunidade de salvação, mais ampla que a própria humanidade 12.

O Novo Testamento confirme o que as Escrituras veterotestamentárias haviam revelado: os anjos são seres reais, vivos, sobrenaturais, invisíveis, criados por Deus, que contemplam a face do Pai (cf. Mt 18,10) como bem-aventurados que já desfrutam da cidadania do Reino (cf. 22,30). Embora eles ignorem o kairós do Juízo Final (cf. 24,36) serão seus executores (cf. 13,39; 24,31; 25,31).

Na teologia paulina se encontram algumas referências sobre a relação dos anjos com Cristo:

os anjos são subordinados a ele (cf. 1Cor 15,27; Ef 1,21; Hb 1,1-8); Cristo é cabeça dos anjos (cf. Ef 1,10; Fl 2,8-11; Cl 1,15-19; 2,10);

12 K. RAHNER. Angelologia I. Madrid, 1954.

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eles foram criados por Cristo e para ele (cf. Cl 1,16-20; Ef 1,10);

É tão estreita essa relação, que a Igreja Primitiva chamava a Eucaristia de Panis angelicus (pão dos anjos).

2.2 Na anunciação

A rigor, os anjos participam dos mais importantes anúncios da história da salvação.

Começamos pelo arcanjo Gabriel. Antes de anunciar a Maria ele levou o anúncio a Zacarias a chegada do precursor (Lc 1,11-20). Assim como um Abraão e Sara dos tempos completos, também Zacarias e Isabel não tinham filhos e curtiam sua dor por esse fato, que na ótica da época os enchia de opróbrio. Pois Deus resolve que desse casal idoso e estéril nascerá aquele que vai anunciar a chegada do Messias. Isabel concebe, e como Zacarias não crê nas palavras do anjo, vai permanecer mudo até o nascimento de João Batista. Isabel e Zacarias representam o homem sem Deus: velhos, estéreis e sem esperança. Deus desemboca em suas vidas e suas trevas são convertidas em luz.

Depois de anunciar a Zacarias, o anjo vai, seis meses após, anunciar a Maria a chegada do Salvador (cf. Lc 1,26-38). Quando Jesus nasce em Belém, os anjos anunciam o fato aos pastores, e depois se põem a cantar hinos de glória, alegres com a novidade que acabam de transmitir (cf. Lc 2,9-14).

A ressurreição também é anunciada pelos anjos, num conjunto de afirmações encontradas nos quatro evangelhos (cf. Mt 28,5/ Mc 16,16; Lc 24,5s/ Jo 20,13). Posteriormente, Jesus sobe aos céus e também nesse momento se constata a presença de anjos, que insuflam esperança no povo, dizendo que Jesus vai voltar.

2.3 Mistério da salvação

Os anjos do Senhor estão intimamente ligados à história da salvação dos homens. Como mensageiros, agentes e participantes do projeto de Deus, os anjos tem agido junto aos homens no intuito de conduzi-los àquela salvação que Deus planejou desde todo o sempre e que Jesus veio executar.

Dos seres celestiais, a quem nós chamamos de anjos, a Bíblia diz que são enviados, mensageiros, espíritos criados. filhos de Deus. membros da família divina, sentinelas, habitantes do céu, exércitos celestes. Em certo sentido, os anjos formam a corte de Deus e são enviados por ele aos homens, para que, como seus instrumentos, atuem na história da salvação 13.

Embora algumas correntes exegéticas vejam vestígios do projeto da salvação na promessa de inimizade (cf. Gn 3,15) entre a mulher e a serpente, e na colocação de um querubim à porta do paraíso (v. 24) como a guardar algo de valor, reservado para o futuro, a um convidado especial, a maioria das tendências teológicas afirma que o processo de salvação é instaurado a partir de Abraão, quando o Senhor o manda abandonar sua terra e sua parentela e 13 M. SCHMAUS. Op. cit.

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rumar para uma outra, especial e de fartura (12,1-4). Uma vez definido o projeto de salvação a partir de Abraão, este passa a receber a assistência dos anjos de Deus. A aparição sobrenatural ao futuro patriarca, junto ao carvalho de Mambré, retrata o carinho com que Deus começa seu plano. Os três homens que surgem à frente de Abraão (três anjos ou a Santíssima Trindade?) vem lhe dizer que sua geração será abençoada, numerosa e fecunda, pois para Deus tudo é possível (18,1-22a). A respeito dessa visita, São Paulo adverte sobre a caridade e a hospitalidade:

Perseverem no amor fraterno. Não se esqueçam da hospitalidade, pois algumas pessoas, graças a ela, sem saber, acolheram anjos (Hb 13,1s).

No seguimento à visita a Abraão, os anjos se dirigem a Sodoma a fim de destruí-la por causa de seus pecados e da iniqüidade que lá imperava. Ló é salvo, primeiro porque era justo, e depois, porque como seu tio Abraão, recebeu os anjos em casa e os tratou com hospitalidade. Quando os depravados homens de Sodoma quiseram sodomizar – usando um termo atual, transar – os anjos, Ló ofereceu, num gesto de clara hospitalidade palestina e respeito com os hóspedes, suas duas filhas virgens à sanha dos degenerados.

Os anjos se livram dos agressores e ordenam que Ló deixe a cidade, salvando-o da destruição (cf. Gn 19,1-19). A salvação física e circunstancial de Ló neste episódio é uma prefiguração da salvação universal dos justos e santos.

São Paulo reconhece os anjos inseridos no plano de salvação traçado por Deus, chamando-os de espíritos servidores, enviados ao serviço daqueles que devem herdar a salvação (cf. Hb 1,14).

No mistério diário da salvação acontece a mediação angélica entre o humano e o divino. Os anjos, ao mesmo tempo em que afastam os homens dos perigos e dos maus caminhos, capaz de levá-los à perdição espiritual, criam neles uma consciência que só em Deus há solução, lenitivo e segurança.

Nos dias de hoje muitas pessoas não acreditam na existência dos anjos. Um pouco é por culpa dos pregadores, profetas e catequistas que, não foram ungidos o suficiente para levar uma mensagem desse quilate a uma sociedade tão sufocada pelo materialismo e pelo hedonismo como a nossa. Em segundo lugar, as pessoas embora apresentem uma certa sede de Deus e de infinito, em geral buscam a solução pelo lado errado, de forma equivocada, aonde há mais fantasia e menos interiorização. É por isso que muitos não acreditam mais nos anjos, assim como descrêem de projeto divino que elabora para a salvação deles.

Será que os anjos existem, mesmo?

Ora, não é porque eu nego a existência de uma determinada coisa ela vai deixar de existir. O plano da salvação existe e está aí. Os anjos são criaturas de Deus encarregadas de nos ajudar a viver esse projeto divino. Eles estão destinados a nos ajudar. E como vão nos ajudar? Simplesmente se nós pedirmos a intervenção desses seres sobrenaturais. Se nós buscarmos a ajuda deles.

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Pelo simples fato de eu ter um vidro de aspirinas no armário não quer dizer que vá ficar curado da dor de cabeça. Eu preciso buscar o remédio e tomá-lo. Assim ocorre com a graça de Deus. No mistério da salvação podemos sentir a presença dos anjos atuando conforme a vontade de Deus:

Conduzem os jutos, depois da morte ao Reino dos céus ou seio de Abraão (cf. Lc 16,22);

Protegem os fracos e os pequenos (cf. Mt 18,10).Nesse contexto é notável a fé da Igreja nascente nos anjos, como

protetores individuais (Cf. At 12,15). Dentro das narrativas da instauração da nova Igreja, a Palavra feito Caminho, se observa a ação do anjo que move (literalmente transporta de forma sobrenatural por mais de 200 quilômetros) a Felipe, para que este, no deserto de Gaza encontre, evangelize, converta e batize o ministro etíope da rainha Candace (cf. At 8,26).

O prêmio da salvação será creditado aos justos, aos penitentes e aos seguidores de Jesus que virá acompanhado por seus anjos:

O Filho do Homem virá em sua glória, com seus anjos, e retribuirá a cada um conforme sua conduta (Mt 16,37).

No livro do Apocalipse, a revelação da salvação tem nos anjos importantes colaboradores. Jesus faz sua revelação ao vidente (João) através da mediação dos anjos (cf. Ap 22,16). Ao entregar a João o Evangelho da Salvação, o livrinho de sabor doce (mensagem de triunfo) e amargo (sofrimentos e compromissos), o “anjo forte” (representação do poder divino) sugere ao vidente que passe a profetizar às nações (cf. 10,1).

A salvação universal, da qual o anjo é mensageiro, será obtida pela oitiva à Palavra de Deus e seu devido seguimento. Ouvir e colocar em prática (cf. Mc 16,15), torna a todos testemunhas do Ressuscitado (cf. At 1,8). Os anjos estão diretamente integrados nessa tarefa.

2.4 Juízo final

Embora os anjos desconheçam o dia e a hora do fim dos tempos (cf. Mc 13,32), é certo que eles virão com o Cristo na sua glória (cf. Jo 1,51) para separar os justos dos pecadores como o pastor separa as ovelhas dos cabritos (cf. Mt 25,31-46).

Após o julgamento, os considerados justos pelo Pai das Luzes serão conduzidos para o Reino (v. 34) preparado e guardado pelos anjos desde o início dos tempos. Nessa vinda gloriosa, ardentemente expectada pela Igreja, com Jesus virão seus anjos, todos participantes da glória e da vitória final dos eleitos (cf. 16,7).

Numa visão própria da apocalíptica judaica, o Evangelho revela a parusia iminente, quando Jesus virá para realizar seu juízo definitivo, em sua glória e majestade, quando os anjos tocarão trombetas reunião os makários (bem-aventurados) dos quatro cantos da terra (cf. Mt 24,31). O profeta Daniel anunciava desta maneira o estabelecimento do reinado messiânico, através de

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um Filho do Homem (o Cristo, ungido para tal), que viria sobre as nuvens, rodeado de anjos, conforme as teofanias do Antigo Testamento.

A parábola do joio e do trigo retrata a escatologia iminente, o final dos tempos, quando na hora da colheita os anjos de Deus ...

Apanharão todos os que levam os outros a pecar e praticar o mal, e depois os lançarão na fornalha de fogo. Aí eles vão chorar e ranger os dentes... (Mt 13,40s).

No dia do Juízo, Cristo virá com seus anjos- tantas vezes repetimos aqui propositalmente – e envergonhar-se-á daqueles que dele ou do seu Evangelho se envergonharam.

A insistência no fato de os anjos acompanharem o julgador se prende, na verdade, ao temor do julgamento. Ora, se alguém vai chegar e implantar uma nova ordem, e junto esse alguém vem pessoas que eu conheço, que vou fazer? Devo estabelecer contato com essas pessoas para que, de uma forma ou de outra, facilitem as coisas para mim. Não parece correto?

No dia do Juízo, que vai acontecer simultaneamente com a parusia, Jesus virá acompanhado de nosso anjo da guarda, de seres espirituais destinados a nos ajudar e serem mediadores no esforço da salvação. Por que, então, não começar esses contatos com nossos anjos protetores e amigos? E não se diga que se trata de uma atitude interesseira, do tipo “toma-lá-dá-cá”.

Se eu aproximo (ou reaproximo) dos anjos protetores, aos poucos eu vou conformando minhas atitudes, minhas expectativas e toda a minha vida de acordo com as propostas de Deus, expressas nas sugestões dos anjos. Ora, perfilando-me às propostas e mensagens dos anjos, automaticamente me habilito à pregação e às promessas de Jesus. Assim, me habilito à salvação e ainda posso ser um ajudante da libertação dos outros irmãos. Viram a importância da nossa aproximação com os anjos?

2.5 No Apocalipse

Já citamos aqui tantas passagens do livro do Apocalipse que este tópico quase se torna desnecessário. O verbete anjo, no singular ou no plural aparece 71 vezes no último livro do Novo Testamento. Se em algumas poucas passagens do livro, a palavra anjo tem o significado de bispo, ou responsável por alguma Igreja da Ásia Menor, na maioria das citações a referência aponta para os seres espirituais mesmo.

As concepções a respeito dos anjos, no livro do Apocalipse, se baseiam nos ensinamentos daquilo que se convencionou chamar de “judaísmo tardio”, que é uma fusão entre o judaísmo tradicional e o helenismo dos primeiros séculos do cristianismo. Pois, na Revelação – o outro nome que damos ao Apocalipse – vemos o papel que os anjos desempenham no cumprimento das diversas tarefas atribuídas por Deus.

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Aqui, serafins e querubins são reunidos em grupos de “quatro seres vivos” que rodeiam o trono de Deus (cf. 3,4-8). Já de início (1,4) aparece-nos a figura dos sete príncipes angélicos que se acham de frente para o trono daquele que É, que Era e que Vem. A idéia da existência desses seres espirituais ante o trono celeste aparece pela primeira vez na resposta do arcanjo Rafael a Tobias e a seu pai:

Eu sou Rafael, um dos sete anjos que estão sempre prontos para entrar na presença do Senhor glorioso (Tb 15).

Entre as tantas funções angélicas aqui descritas, cabe-nos destacar algumas:

O anjo do abismo (9,11) é a personificação do “anjo exterminador” do Egito;

O anjo que domina o fogo (14,18) é, na linguagem apocalíptica, um poder que emana do altar. Pode referir-se às liturgias sacrificiais dos tempos antigos;

Servos de Deus (1,1/ 10,1s; 17,1s), no primeiro versículo do livro se refere ao anjo que faz a mediação entre Deus e o vidente João. Nos demais, se ressalta a disponibilidade dos anjos a serviço do Criador;

Auxiliares no governo do mundo (7,1;8,2) tem aqui uma exegese óbvia;

Anjo das águas ((16,5) é uma visão nitidamente helenista, a exemplo dos demiurgos afirma que cada elemento da natureza tem seu protetor. Encontra-se traços semelhantes no hinduísmo e nas crenças africanas.

O livro do Apocalipse desaprova – por idolatria – a adoração aos anjos (19,10), pois segundo o mesmo, eles são simples companheiros de serviço e portadores do testemunho de Jesus. Aqui fica bem clara a idéia de que os anjos são revestidos de uma incrível luz sobrenatural, mas isto não os torna divindade nem credores de adoração. Só a Deus cabe adoração! Aos anjos é devida amizade, admiração, amor e imitação. Assim como não se adora Maria, os anjos, por criaturas, também não devem ser adorados (22,8s).

2.6 Nas literaturas apócrifas

Primeiramente, é salutar conceituarmos o termo apócrifo.O verbete apócrifo, a partir do grego, é algo não-canônico, ou seja, algo fora da regra, sem autoridade, não-regulamentar.

Apócrifos são escritos judaicos e cristãos que não eram usados no culto público e na teologia. Apresentam-se como se pertencentes aos cânones das Sagradas Escrituras, pois trazem o nome de algum autor que poderia ser considerado como inspirado. Mas o termo apócrifo já denota certa depreciação: são os livros colocados à parte, por não pertenceram ao cânon 14.

14 DEB. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, Ed. Vozes, 1984

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De forma que as citações que aqui aparecerão, embora com terminologia semelhante, não tem nenhum valor doutrinário ou dogmático. Sua inclusão nesta obra tem um caráter meramente cultural.

Há muitas referências aos anjos e outros seres invisíveis nas literaturas hebraicas paralelas, sejam elas apócrifas ou cabalísticas. Também o iranismo (influência da cultura do Irã) teve influências preponderantes no desenvolvimento da angelologia do Oriente Médio.

Podemos encontrar no mazdeísmo persa a figura dos imortais benfazejos, uma espécie de avatares das antigas divindades funcionais do panteísmo iraniano. A grande diferença entre os anjos da literatura canônica e da apócrifa reside na forma fantasiosa, espetacular e inverossímil com que os últimos realizam suas tarefas e missões.

Nos apócrifos – muitos deles encontrados no Mar Morto, cavernas do Qumran – encontra-se, por exemplo, designações de anjos como “filhos do céu” (Enoc Etíope, 6,2; 1Qs 4,22; Jub 17,11). Há referências fantásticas sobre os anjos no “Apocalipse de Enoc”, no “Apocalipse Siríaco de Baruc”, no “Testamento de Levi”, no “Enoc Eslavo” e no Jub (Livro dos Jubileus). As descobertas do Mar Morto aparecem sob a referência “Q”.

Há um curioso trecho apócrifo conhecido como “História de José, o carpinteiro”, encontrado no Egito, no século XVIII, de origem provavelmente copta do século V dC. Nele aparecem os anjos presentes na morte e no funeral de São José. No texto, a narrativa é do próprio Jesus:

Os anjos tomaram sua alma e a envolveram em lençóis de seda (...). Coloquei sua alma nas mãos de Miguel e Gabriel para que lhe servissem de defesa contra os gênios que espreitam no caminho. Os anjos começaram a entoar cânticos de louvor, até que finalmente sua alma chegou aos braços do meu Pai 15.

Embora impregnada de um gnosticismo helênico, esta citação demonstra a missão protetora dos anjos. O caminho, que segundo a narrativa, a alma teria que passar, cheio de perigos, nos remete à idéia do Hades mitológico. Quanto à utilização da letra “Q” para designar os manuscritos de Qumran – hoje guardados no “Museu do Livro”, em Jerusalém, abertos à visitação pública – é prudente não se fazer confusão com a letra “Q” que é usada no estudo bíblico para expressar “fonte” (quelle, em alemão), de onde um texto deriva ou se origina.

15 História de José, o carpinteiro. In: Bíblia Apócrifa, Vozes, Petrópolis, 1989. Cap. XXIII, v. 2 e 4.

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III OUTRAS TEORIAS SOBRE ANJOS

1. O Platonismo

As culturas antigas, mesmo as pagãs, possuíam em seus sistemas de crenças, relações com seres superiores, poderosíssimos e capazes de grandes feitos. Já vimos a existência deles no panteão irânico-babilênico. Nas crenças indo-européias vamos encontrar figuras semelhantes aos anjos, assim como no folclore do norte da Europa há seres deste tipo, lá chamados de gnomos, duendes e fadas.

A diferença entre esses e os anjos que conhecemos, objeto da fé judaico-cristã, situa-se basicamente na credibilidade. Os anjos são uma realidade palpável, comprovada por inúmeras aparições a santos e místicos de todos os tempos, além de mencionados na Bíblia. Eles representam um artigo de fé (“...creio ... criador de todas as coisas visíveis e invisíveis...”).

Os anjos são bons (embora alguns hajam decaído e se desviado, como veremos mais a frente), ajudam os seres humanos e são mensageiros das boas notícias de Deus. Ao contrário, duendes, fadas, gnomos e outras figuras são criações imaginárias do folclore e das fantasias de alguns povos nórdicos. Todos esses estão sujeitos à instabilidade humana, ora são bons ora irados, mal-humorados e ciumentos.

Não pode haver termo de comparação – como querem alguns – entre os anjos e os duendes, por exemplo, simplesmente porque esses últimos não existem, embora o grande esforço dos esotéricos em apresentá-los como seres reais.

Nos escritos gregos, gerados a partir do século V a.C., é encontrado um exagerado misticismo temperado com superstição, tendente à magia e à bruxaria. Sua base é nitidamente mitológica e, como tal fantástica, irreal. No platonismo vamos encontrar a figura dos demiurgos, no grego “aquele que constrói”, como alguém que organiza o mundo e as realidades humanas. Trata-se de seres espirituais, inteligentes, intermediários entre os homens e os deuses, que praticam atos em nome das divindades. Os demiurgos do platonismo, segundo a cultura helênica antiga, moviam a terra, acendiam as estrelas, agitavam os mares, davam crescimento às plantas e ajudavam os homens que lhes eram favoráveis.

Segundo PLATÃO († 347 a.C.), os demiurgos eram uma força suprema que criou o universo, organizando a matéria preexistente. Aqui esses seres tem poderes criadores (e não mais de meros cooperadores), semelhantes às divindades do Olimpo. A filosofia da stoá (pórtico) posteriormente, pela identificação da realidade e matéria dos demiurgos, admitiu que aqueles seres superiores, por serem reais, tinham – ainda que de forma sutil – um corpo.

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Nos primeiros séculos de nossa era, o gnosticismo, eivado de idéias do neoplatonismo levou muitos a interpretações falsas, pagãs, blasfemas e – consequentemente – não-cristãs 16, onde os demiurgos (e não os anjos, conforme ensina a Bíblia) seriam substratos e emanações da substância divina, o que nos levaria a um panteísmo incontrolável e, no mínimo herético e idolátrico.

2. Teorias esotéricas

Inicialmente, é bom que se procure entender o sentido da palavra esotérico, como algo vinculado ao ocultismo e aos sistemas da magia. O esoterismo é um conjunto de idéias (não chega a ser uma ciência, faltam-lhe elementos) que preconiza que as grandes verdades, científicas, religiosas ou filosóficas, não podem estar disponíveis ao conhecimento do grande público, mas restritas a um número limitado de escolhidos, ditos iniciados, selecionados por sua cultura, piedade ou valores morais.

Esoterós, no grego, quer dizer algo íntimo, interior, oculto, que vem do interior, não-revelado. No oposto, exotérico aponta para algo aberto, acessível a todos. Pois nas concepções esotéricas, os anjos são seres superiores, de natureza espiritual, verdadeiras emanações de Deus, ricos em força magnética. Alguns sensitivos notam presenças da energia angelical através da radiestesia 17 por meio de pêndulos. Tais práticas carecem de maiores comprovações científicas.

Se para algumas correntes esotéricas os anjos são emanações18 da força de Deus, enquanto para outras são seres em face de transformação (perfilada às terias cármicas), entidades de pura luz e energia que, enquanto evoluem, regem os homens e as eras (a Era de Aquário, segundo os esotéricos será regida pelo anjo Saint Germain, em cuja linha de encarnações aparece o místico El Mórya e até São José, esposo de Maria).

Para o esoterismo, os seres superiores (algumas chamam de “Mestres Ascensos”) funcionam um pouco como os anjos do cristianismo e um pouco como os demiurgos do platonismo, ora ajudando ora prejudicando, responsáveis pelo destino e encarregados de movimentar o tarô e as runas nos ritos cabalísticos.

Para o gnosticismo esotérico, os anjos ou éons, não são seres criados, mas partes de Deus – emanações – que dele se desprenderam aos pares para estabelecer comunicações com os homens, aterrorizados pelo pecado. 16 O Neoplatonismo foi uma corrente de pensamento iniciada no século III que se baseava nos ensinamentos de Platão e dos platônicos, mas interpretando-os de formas bastante diversificadas. Apesar de muitos neoplatônicos não admitirem, o neoplatonismo era bem diferente da doutrina platônica.17 Sensibilidade a radiações.18 Segundo o pensamento de Plotino († 270) ou M. Schelling († 1854), a emanação é um processo no qual a divindade suprema irradia, emite ou propaga sua própria substância, criando o universo, uma extensão de sua natureza divina, de maneira processual, contínua e permanente. O anjo fruto de emanação, não é criatura, mas um pedaço que sai da divindade para se transformar em nosso ser.

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Justamente quando escrevia este parágrafo assisti a um programa matinal de tevê, onde uma “vidente” esotérica falava sobre um arcanjo, segundo ela chamado de “Mitz-rael”, que seria um “anjo favorável” às pessoas nascidas sob um determinado signo do zodíaco. De acordo com a apresentadora, esses anjos só conseguem “ancorar” em casas que tenham muitas flores, pedras e cristais, bem como a recitação do Salmo 90. Para coroar tão insólito discurso, a vidente despediu-se com um sonoro “axé”. Eu fiquei pensando nessa salada, de anjos, astrologia, cristais, esoterismo, salmos... No mesmo dia escrevi para uma revista onde tenho uma coluna mensal, uma matéria chamada “salada mística”.

3. No espiritismo

A doutrina espírita não aceita os anjos como seres espirituais, superiores aos homens, uma vez que essa superioridade, segundo seu codificador, só pode ser obtida através do progresso, pela lei do carma:

Deus não poderia criar seres perfeitos, pois estaria sendo injusto, visto que criou outros imperfeitos (...). Os anjos são almas dos homens que chegaram àquela perfeição que a criatura comporta (...). Os demônios são espíritos imperfeitos, suscetíveis de regeneração, e que colocados na base da escala hão de nela se graduar 19.

Na verdade, os espíritas não acreditam na teoria cristã dos anjos. Para eles os anjos são seres em transformação, reencarnações de pessoas hoje em estado de evolução. Segundo a lei do carma (também chamada de “lei de causa e efeito”) o ser morre, renasce, reencarna, torna a morrer e torna a reencarnar, até a total a total purificação.

Ora, dentro dessas premissas, não é possível admitir a existência nem dos anjos nem dos demônios, pois ambos seriam graduações extremas, como fim e começo, da escalada para a evolução. A Igreja, fiel ao que preceitua a Bíblia, ensina que o diabo está perdido e não vai mais conseguir conversão nem reconciliação. Afirma também a Igreja que os anjos são seres tornados perfeitos (após a prova da queda) e que não poderão mais experimentar regressão ou nem ascenso.

Esse ensinamento é rejeitado pelo espiritismo, pois nas leis da reencarnação todos podem evoluir. E assim, não há demônios nem anjos. O próprio Cristo, para o espiritismo não é Deus, mas filho de Deus, um espírito iluminado, que já foi homem (pode até ter sido um demônio), já foi anjo e hoje é espírito de luz. Qualquer pessoa, de acordo com a doutrina codificada por KARDEC pode, a custa de muitas reencarnações, tornar-se um anjo, ou um espírito de luz, igual a Cristo.

Este é um dos motivos pelo qual se afirma que o espiritismo não é cristão (embora eles digam que sim), pois não reconhece a divindade de Cristo. Ora, se não é Deus, não ressuscitou, e assim negam toda a essência do cristianismo.

19 A. KARDEC. Le ciel et l”enfer. Paris, 1865.

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4. Hierarquia celeste

No século IX de nossa era, o irlandês JOÃO SCOTO ERÍGENA causou uma enorme polêmica ao traduzir e editar um livro chamado De Coelesti Hirarchia (Sobre a Hierarquia Celeste) de autoria de alguém que se intitulava “Dionísio, o areopagita”, mais tarde conhecido como “o PSEUDO DIONÍSIO”, que por volta do século VI produziu uma obra sobre a hierarquia dos seres celestes, dividindo os seres invisíveis em nove coros, assim relacionados:

1ª. hierarquia1º. coro – anjos2º. coro – Arcanjos3º. coro – Principados

– A função dessa primeira hierarquia é proteger pessoas e propriedades.

2ª. hierarquia1º. coro – Potestades2º. coro – Virtudes3º. coro - Dominações

– A essa hierarquia cabe o governo do mundo (acima das leis da mecânica celeste) e a iluminação dos coros inferiores);

3ª. hierarquia1º. coro – Tronos2º. coro – Querubins3º. coro – Serafins

– A esses cabe a visão de Deus e sua glorificação.

Existem outros conceitos individuais sobre alguns coros:

Serafins são aqueles abrasados de amor pela presença de Deus; Querubins luminosamente a sabedoria de Deus; Tronos são os que proclamam a majestade de Deus; Dominações fiscalizam o cumprimento dos deveres dos anjos e dos

próprios anjos; Virtudes promovem os prodígios clamados pela Igreja e pela

humanidade; Potências (ou Potestades) protegem as leis que regem o mundo

físico e metafísico.

Estes conceitos e organizações hierárquicas de coros fazem parte da obra aludida, mas não tem nenhum peso dogmático ou doutrinário em matéria de fé. Na Idade Média surgiu outra forma de ordenar a hierarquia celeste, alterando os critérios de DIONÍSIO, unificando em três únicos coros. Desconhecem-se o autor (ou autores) dessa nova organização que, como a anterior, não recebeu da Igreja nem críticas nem aprovações solenes. A nova ordem é:

1. Serafins, Querubins e Tronos;

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2. Dominações, Potestades e Virtudes;3. Principados, Anjos e Arcanjos.

Esta classificação dos anjos tornou-se clássica na teologia católica, mas não é artigo de fé 20.Os Tronos, as Dominações, as Virtudes e as Potestades trazem consigo

uma influência helênica e em alguns casos pagãs. Jesus cita-os nos evangelhos como potências que deverão ser submetidas no fim dos tempos. Há de forma subjacente uma certa conotação negativa a elas. São Paulo em sua literatura posterior relaciona essas instâncias sem valorizá-las.

Algumas dessas potências invisíveis e sobrenaturais aparecem na literatura apócrifa como forças do mal. Voltaremos ao assunto, oportunamente,

5. No Catecismo da Igreja

Em 8 de dezembro de 1993, Roma promulgou um novo “Catecismo da Igreja Católica”, enfatizando que “conservar o depósito da fé é a missão que o Senhor confiou à sua Igreja e que ela realiza a todo tempo” 21.

A idéia de um catecismo para toda a Igreja surgiu ao finalizar o Sínodo de 1985, em Roma, convocado para celebrar os vinte anos do encerramento do Concílio Vaticano II. O Sínodo viu a necessidade de apresentar a toda a Igreja uma síntese – nova e atualizada – de toda a doutrina católica.

Pois nesse “novo” Catecismo podemos encontrar um rico repertório místico e pastoral a respeito dos anjos. Quando muitos imaginavam que o catecismo fosse se ocupar com temas atuais, em detrimento de outros mais tradicionais, a nova obra veio cheia de ensinamentos éticos e morais sobre os mais variados enfoques das ciências teológicas, sociais e humanas, sem descuidar, entretanto, da mística, onde vamos encontrar significativas referências a respeito da existência dos anjos, como veremos a seguir.

A existência dos anjos é uma verdade de fé!

A existência dos seres espirituais, não-corporais, que a Sagrada Escritura chama habitualmente de anjos é um valor que faz parte do depósito de fé dos cristãos. O testemunho da Bíblia a respeito é tão claro quanto a unanimidade da Tradição 22.

Quem são os anjos?

Mais adiante o Catecismo faz a pergunta e ele mesmo dá a resposta:

A respeito deles disse Santo Agostinho: O nome anjo indica sua função e não sua natureza. Se perguntas por sua natureza dir-te-ei que é um espírito ; se perguntas o que faz, te direi: “É um anjo!” (Sl 103,1.5). Com todo o seu ser, os anjos são servidores e mensageiros de Deus. Porque contemplam

20 Revista “Pergunte e responderemos”, n. 166. 1973, p. 37.21 JOÃO PAULO II; Const. Apost. Fidei Depositum. 1993.22 Catecismo n. 328

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constantemente o rosto do Pai (Mt 18,10) são agentes de suas ordens, atentos à sua Palavra (Sl 105,2) 23.

É de certa forma, curioso que, quando muitos esperavam um documento pleno de ensinamentos modernos, o Catecismo vivifica a doutrina dos anjos, que muitos céticos julgavam coisa folclórica e ultrapassada.

Cristo virá com seus anjos

Cristo é o centro do mundo angélico! O Catecismo da Igreja retoma o tema dos anjos como colaboradores da obra criadora de Deus e redentora de Jesus Cristo. As referências à participação deles no mistério são inúmeras e freqüentes:

Quando o filho do homem vier na sua glória com todos os seus anjos (cf.Mt 25,31) São seus por criados por ele e para ele (...). São seus, mais ainda porque ele os fez mensageiros de seu projeto de salvação (cf. Hb 1,14).

Na liturgia

Na sua liturgia, a Igreja se associa aos anjos para adorar o Deus três vezes santo: ela invoca sua assistência (...), festeja mais particularmente a memória de certos anjos (Miguel, Gabriel e Rafael), os “anjos da guarda” 24.

A conhecida figura do “anjo da guarda”, tão querida de nossa infância, e hoje, dado o pragmatismo crescente, quase arquivada nos escaninhos da fábula, é solenemente dignificada no Catecismo.

Desde a infância até a morte, a vida humana é cercada pela proteção e pela intercessão dos anjos. Cada fiel é ladeado por um anjo como protetor e pastor para conduzi-lo à vida (São Basílio, Eun. 31). Ainda aqui na terra, a vida cristã participa, na fé, da sociedade bem-aventurada dos anjos e dos homens unidos a Deus 25.

23 Idem 33124 Ibidem 33525 Ibidem 336

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IV OS ANJOS CAÍDOS

1. O pecado dos anjos

Os livros canônicos nada falam sobre o pecado e a queda dos anjos, pelo menos explicitamente sobre as razões e a cronologia da ruptura. Na epístola de Judas (v. 6) há uma breve referência, citando os apócrifos do século I, combatendo a mística irracional dos gnósticos. São Pedro dedica uma linha ao assunto: “Deus lançou nos abismos do inferno os anjos que haviam pecado” (2Pd 2,4).

Como teria sido o pecado dos anjos? Como ocorreu a ruptura entre o bem e o mal? Na verdade, existem duas linhas básicas de exegese para tentar trazer luz sobre o assunto.

A primeira, de fundo judaico, afirma que o pecado dos anjos fora o de se relacionarem sexualmente com mulheres (cf. Gn 6,1-4). Originando uma geração de seres maus (ou gigantes). Nessa perspectiva, eles perderam poderes e direitos, por se terem deixado seduzir pelas “filhas dos homens”, e por conta disto deixaram os céus, sua morada, abandonaram seu Senhor que, iniciando seu processo de destruição, guardou-os presos em cadeias eternas, sob as trevas, para o julgamento do último dia (cf. Jd 5-6).

Como castigo pelo pecado (relações sexuais com as filhas dos homens), esses anjos teriam sido provisoriamente encerrados nos infernos para serem depois lançados no fogo eterno, no dia do juízo final 26.

As antigas literaturas rabínicas de Israel (séc. III a.C.) falavam em nefilim (os caídos, derrubados), como seres espirituais que haviam cedido às tentações do pecado e por isso expulsos das cortes celestes. Talvez por conta desse evento, e fiel a essa exegese que São Paulo tenha perguntado aos crentes do seu tempo: “Vocês não sabem que haverão de julgar os anjos?” (1Cor 6,2).

Em princípio, caberá aos bem-aventurados julgar os espíritos maus (cf. Jd 5-6): segundo Orígenes, não existem diferenças essenciais entre o espírito humano e os anjos redimidos e transformados na imagem de Cristo, os homens estarão acima dos anjos e poderão tornar-se seus juízes (cf. Dn 7,22). “Haverá então, nos justos, uma excelência superior aos anjos” 27.

Os anjos, porém, não eram considerados sem mácula perante Deus (Jó 4,18). Também para eles é esperado um juízo (21,22) 28.

Esta exegese do surgimento dos gigantes (cf. Gn 6,4b) é uma das tantas existentes e aceitas por alguns segmentos da teologia. A mais aceita,

26 Dicionário de Teologia Bíblica. Ed. Loyola, 5 vols.; cf. Jub 4,22; Enoc Etiop 6s; Apc Sir. Bar. 56,12s; Fil. Gig. 6; Fl. Josefo A. I 1,31.27 Apócrifo II Bar. 51,12.28 H. B. KUHN. The Angelology of the Non-Canonical Jewish Apocalipsis. London, 1948.

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entretanto, é a de SANTO TOMÁS DE AQUINO, que afirma que o pecado dos anjos que caíram foi a soberba. Embora se possa até relacionar a primeira hipótese com a soberba, a maioria dos exegetas, a partir da escolástica, prefere colocar sob a palavra soberba e vaidade, a ambição, o orgulho e a rebeldia.

Movidos pela soberba – tal qual Adão e Eva – os anjos quiserem ser iguais (ou melhores) que Deus. Segundo a doutrina dos Pais da Igreja, eles pecaram porque tinham liberdade. De acordo com o tomismo, ao serem elevados a uma ordem de criação sobrenatural, no limiar da visão beatífica (como nas provas finais de um “estágio probatório”), eles tiveram a opção de aceitar ou rejeitar. Uns rejeitaram o mal e passaram a integrar efetivamente a corte celeste. Outros, usando de forma equivocada sua liberdade, preferiram aceitar as propostas más que começavam a ser formuladas em seus interiores e caíram. O dominicano Bañez defende ardorosamente esta tese:

Qualquer que seja a opinião que se siga, é certo que, em todo caso, os anjos foram submetidos a uma prova. Não se sabe do que constou nem o quanto durou essa prova. Sobre o pecado dos anjos, a Revelação se limita a fazer breves indicações. Se todo o pecado começa com a soberba (Ecl 10,12s), também o pecado dos anjos deve ter assim iniciado. De concreto, pode-se especular a respeito da queda de Satanás. É que este, deslumbrado com sua glória, poder e beleza, se esqueceu que dependia de Deus e negou essa dependência, opondo-se a ser mera criatura. Sua luta encarniçada com Cristo e contra toda a obra da redenção nos permite concluir que Satanás resistiu em reconhecer a supremacia de Cristo, a ver nele o Filho de Deus encarnado, o coração e a cabeça de toda a criação 29.

Embora as Sagradas Escrituras não relatem explicitamente a revolta e a queda de Lúcifer e seus anjos, há indícios dessa expulsão que, vinculados a pequenos relatos, nos podem dar a pista daqueles fatos.

A criação da terra e do homem estão distantes, uma da outra, não apenas por seis dias, mas por milhares de anos. Quando a Bíblia começa, através da narrativa da tradição P (Sacerdotal) a contar o hexaemeron (os seis dias da criação), constata-se a existência de um hiato entre o mundo criado há 50 milhões de anos (segundo dados da ciência) e o homem, cuja vida não excede 80 mil anos. Tanto que o Livro do Gênesis abre dizendo “a terra estava informe e o caos pairava sobre as águas” (1,1). Ora, nós todos sabemos que Deus não criou a terra para ser um caos (cf. Is 45,18). Por que razão então o hagiógrafo fala em caos?

Lúcifer era o Anjo da luz: lux (luz) + fero (trazer), aquele que traz a luz. Pelo pecado da soberba, certamente, aquele que era chamado, por sua beleza, de “estrela da manhã” (cf. Is 14,13s; Jó 38,7; Ez 28,12-17 e Eclo 16,7) foi por Deus lançado nos abismos, tornando-se o anjo caído (cf. Ef 2,2; 6,12) de quem fala São Paulo. A queda de Satã também é mencionada em Jd 9.

Essa rebelião de anjos, liderada por Lúcifer, arrastou consigo a terça parte das cortes celestes (cf. Ap 12,3s). Por causa dessa revolta a terra se tornou informe, vazia, um caos (cf. Gn 1,1s). O ato criador de Deus, a partir dos

29 P. GAECHTER. Zeitschrift für Katholische Theologie. Mun., 1948

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chamados “seis dias da criação”, é como que uma recriação, pois dentre os anjos, criados anteriormente para serem perfeitos, houve uma rebelião. Ainda hoje, Satanás, para enganar se disfarça de “anjo de luz” (cf. 2Cor 11,14). Uma questão relevante: os anjos que caíram foram condenados para sempre?

Segundo os testamentos, os anjos foram condenados imediatamente após cometer o pecado, e de novo serão sentenciados definitivamente no dia do juízo universal. Também São João (8,44) atesta o pecado e o castigo deles.

O Catecismo dedica, no capítulo “ A profissão de fé” um tópico inteiro à queda dos anjos, relacionando essa queda à de Adão e Eva, nossos primeiros pais. O documento deixa claro que a queda dos seres invisíveis se deve a uma ruptura livre e radical levada a efeito por eles, quando desprezaram de forma irrevogável a Deus e ao seu Reino. Ao tentar Adão e Eva, o Maligno evidencia um reflexo de sua rebelião: “Vocês serão iguais a Deus” (Gn 3,5).

Trata-se do caráter irrevogável da sua opção, e não uma deficiência da infinita misericórdia divina, que faz com que o pecado dos anjos não possa ser perdoado. Não existe arrependimento para eles depois da queda, como não existe arrependimento para os homens após a morte 30.

A mais grave consequência da conduta desses anjos caídos tem sido a sedução mentirosa através da qual eles tem induzido o rompimento da humanidade com Deus. Nos primeiros séculos do cristianismo apareceu um dualismo maniqueísta onde era afirmado que Deus criou os anjos, e Satanás os demônios. Como estavam em debate as teorias docetistas e arianas, tomou vulto a teoria de que Deus criava o espírito e Satanás a carne.

Deste modo, dentro dessa linha de raciocínio, o diabo seria o plasmador do corpo humano no seio materno, pois a carne era uma obra dos espíritos maus. Tais idéias seriam posteriormente condenadas no Concílio de Braga, Portugal, em 561.

A partir da patrística do século III, a Igreja começou a afirmar que Deus criou todos os anjos bons. Alguns, usando mal sua liberdade, e pelo pecado da soberba, se rebelaram, sendo expulsos do céu. Deus não criou os anjos bons e os demônios maus. porque ele não pode criar o mal. Criou a todos bons; os demônios se tornaram maus por decisão própria e pessoal. Sobre isto, o IV Concílio de Latrão dogmatizaria em 1215:

As três Pessoas Divinas são o princípio único de todas as coisas. Deus é o criador de todos os seres visíveis e invisíveis, espirituais e corporais. Por sua força todo-poderosa, desde o início dos tempos, criou simultaneamente ex nihilo (a partir do nada), uma e outra criatura, a espiritual e a corporal, isto é, os anjos e o mundo terrestre, depois criou a criatura humana, que consta de espírito e corpo. O diabo e os outros demônios foram por Deus criados naturalmente bons, mas por si mesmos se tornaram maus 31.

A expressão demônio, para caracterizar o espírito mau data do século II dC. e se origina da palavra grega daimon, que quer dizer espírito, alma,

30 Cat. 39331 DS 800 (428).

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interioridade e consciência. Nos filósofos pré-socráticos – e isto se constata no fragmento 79 de Heráclito – a palavra aparece como algo extraordinário.

A partir da teocrasia helenista (fusão dos deuses do Olimpo), esta palavra passou e significar, além daqueles sentidos, um espírito fora do ser humano. A partir desta raiz, ARISTÓTELES (†322 a.C.) cunhou o verbete eudemonia, como doutrina que considera a busca de uma vida feliz, seja em âmbito individual seja coletivo, o princípio e fundamento dos valores morais, julgando eticamente positivas todas as ações que conduzam o homem à felicidade

2. Potências sobrenaturais

Quando tratamos da hierarquia celeste, tomamos contato com os coros de seres sobrenaturais aos quais a Bíblia se refere. Essas referências se encontram nas seguintes fontes:

Virtudes (Dynamis – virtutis)Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21.

Potestades (exousias – potestatis)1Cor 15,24; Ef 1,21; Cl 1,16.

Principados (arxé – principatus)Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21; Cl 1,16.

Dominações (kyriontes – dominationes)Ef 1,21; Cl 1,16.

Tronos (Thronos – Throni)Cl 1,16.

Assim, como não se pode estabelecer claras diferenças entre essas categorias de seres invisíveis, igualmente não se pode afirmar que sejam eles anjos realmente mensageiros e servidores de Deus.

Há no Novo Testamento referências a seres sobrenaturais com traços nitidamente maléficos e até demoníacos (cf. Rm 8,38; Cl 2,15; Ef 2,6; 6,12). Dentre essas potências sobrenaturais se encontram narrativas que os revelam fiéis a Deus enquanto outras manifestam clara oposição.

Esse antagonismo não é claramente elucidado, nem nos trechos bíblicos (canônicos) nem nas literaturas posteriores (apócrifos). A fidelidade e a oposição parecem estar ligadas à liberdade conferida a toda a criatura. A oposição (a Deus e aos homens) parece ser fruto de uma opção livre, porém perversa, que principados, dominações, tronos e potestades fizeram no início da história (cf. Jd 6-16; 2Pd 2,4).

Embora constantes do elenco das potências sobrenaturais, esses seres sobrenaturais nem sempre podem ser identificados com os anjos, mensageiros de Deus. Tanto assim que São Paulo escreve que Cristo (e com ele toda a sua Igreja) há de submeter essas forças à sua autoridade (cf. Ef 1,22; 3,2; Cl 2,10; 15,20).

37

Para um diminuto segmento da exegese bíblica, essas potências seriam representantes da hegemonia da lei mosaica.

Não é peculiar aos anjos o espalhafato nem as demonstrações de poder e força que se observa em certas publicações não-canônicas. Os anjos, e isto parece mais do que claro, são criaturas espirituais, simples, humildes e sem a mínima arrogância. Perfilada a esse juízo, encontramos em uma elucidativa afirmação de Tavard:

Note-se que os principados, potestades, tronos e dominações jamais são chamados de anjos nas Escrituras. Isso se explica pelo fato de que anjo é nome derivado de uma função (mensageiro) exercida por seres celestiais. Estes são ditos anjos quando fazem as vezes de emissários de Deus 32.

Há ainda quem afirme – embora sejam bem poucos – que a criação de seres espirituais elaborada por Deus se teria constituído, separadamente de anjos e das demais potências sobrenaturais.

O fato é que se observa um certo confronto, restando-nos perceber que as potestades e demais hierarquias se apresentam dentro de uma ambigüidade que quase vinte séculos de exegese não esclareceram. Assim como não é prudente desprezar, é recomendada certa parcimônia no culto dessas entidades, evitando-se invocações e comunicações pois, se Cristo – e assim afirmam as Escrituras em diversas passagens – vai submeter e subjugar todas essas hierarquias celestes.

Ora, mesmo que o leitor desconheça a língua grega, mas sabendo que São Paulo emprega a expressão katarguesei, particípio passado do verbo katargéo (destruir) para as potências invisíveis, fica sinalizada alguma advertência para nós. Assim, se Jesus destruiu (cf. 1Cor 15,24), despojou (Cl 2,15) e subjugou (Ef 1,21) essas potências, é porque elas são, no mínimo forças oponentes. Não parece claro? Tanto assim que na epístola aos romanos (8,38) o apóstolo nomeia em primeiro lugar os anjos e, depois deles, potestades, principados, etc.

Estou convencido que nem a morte, nem a vida, nem os anjos nem os principados. nem o futuro nem o presente, nem as forças das alturas ou das profundezas, nem qualquer outra criatura, nada nos poderá separar do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor (Rm 8,38s(.

A despeito dessa ambigüidade, muitas Conferências Episcopais da Europa incluíram essas potências celestes na “Ladainha dos Santos Anjos”.

3. Demonologia

Ultimamente, o saber das coisas misteriosas e proibidas tem fomentado uma busca pelos conhecimentos esotéricos, de satanismo e demais práticas de ocultismo. Essas práticas, em geral visam reduzir o sacro e o mistério ao nível do vulgar, impregnando manifestações verbais e literaturas grotescas, tais

32 G. TAVARD. Lês Anges, Freib. 1968

38

como profanação de coisas sagradas, rituais satânicos (às vezes sadomasoquistas), orgias sexuais e celebrações cabalísticas.

Em contrapartida, grandes segmentos da sociedade, da dita intelectualidade e até dentre membros da própria Igreja costumam afirmar que o diabo não existe.

A psicologia moderna (ou usando um termo depreciativo de CHARTREUX: o neopsicologismo) começa a afirmar que o demônio, pecado e inferno não existem, mas fazem parte de um conjunto de fantasmas gerado por uma cultura repressiva capaz de criar nas pessoas um acentuado e irreversível complexo de culpa.

A esse respeito recordo a queixa de uma catequista, em uma comunidade do interior do Rio Grande, que foi advertida pela coordenadora (uma religiosa) para que não falasse em diabo, demônios ou inferno para não amedrontar as crianças e não contrariar suas famílias.

A fisionomia dos demônios, seres espirituais maléficos, só lentamente se foi aclarando na revelação. De início os textos bíblicos utilizaram certos elementos tomados de empréstimo às crenças populares sem ainda relacioná-los com as ameaças de Satanás. No final do estudo tudo tomou sentido à luz de Cristo, que veio a este mundo para libertar os homens das investidas de Satanás e de seus subordinados 33.

A Bíblia não inicia falando no diabo. Usa metáforas, como a serpente que veio tentar Eva (cf. Gn 3,1). A expressão tentador atribuída a Satanás (de onde derivou-se Satã, o adversário) tem raízes no árabe, vizinhos cananeus dos judeus, onde uma entidade capaz de por à prova a fidelidade dos homens se chama shaitan e possuía a forma de uma serpente.

A figura do tentador, que testou a fé de Jó (cf. 1,6-12; 2, 2-6) e tentou colocar à prova a fidelidade de Jesus no deserto (cf. Mc 1,12s) seria uma atividade mais ou menos providencial e, de certa forma tolerada por Deus 34.

Após o exílio (séc. VI a.C.) a cultura judaica foi permeada por influências mesopotâmicas (Pérsia e Irã), e o livro Tobias (cf. 6,13s) é um dos primeiros a apresentar a narrativa dessa nova concepção histórica de um ser maldoso.

A partir da penetração no judaísmo da idéia da responsabilidade demoníaca por todo o mal, foi-se institucionalizando, como consequência, a convicção de que o uso adequado da ciência dos anjos era o melhor método para controlar os demônios 35.

Como conseqüência dessa nova ordem teológica, surgiu a expressão grega diábolos (desordeiro) para descrever o procedimento dessas entidades: o que desune, o que causa desordem, aquele que acusa, o que seria traduzido, posteriormente, pelos LXX como satanás ou satã. Foi satã que criou dúvidas quanto à fidelidade de Jó. De todas as formas, satã, no Antigo Testamento, não representava ainda e propriamente um adversário contra Deus, mas um aliado deste para provar a fidelidade do homem. Na verdade, segundo a descrição dos 33 VTB. Vocabulário de Teologia Bíblica. Ed. Vozes 1987. p. 112.34 P. J. QUEVEDO-GONZALEZ. Feiticeiros, bruxos e possessos. Ed. Loyola, 1981.35 Idem

39

cronistas tratava-se de um ser ciumento da amizade de Deus com os seres humanos, e que procurava provar que estes não eram dignos daquela amizade, e que eram iguais a ele - satanás – cujas faltas o haviam excluído da amizade com o Criador. No fim do século IV a.C. registra-se nova etapa de conceitos, quando Satã passa a ser nome próprio e designa não mais um mero adversário, mas agora um inimigo que vem perder o povo de Israel.

Esse inimigo de Israel a se chamar diábolos (o diabo), quando a ele é atribuída a função de estabelecer desordens na sociedade, nas famílias e no coração das pessoas, tornando-se um acusador (a partir do século I a.C.), conforme antigos textos, através dos quais a morte da humanidade é vista como consequência do pecado, que penetrou no mundo através dele (cf. Sb 2,24).

Embora apócrifos e sem uma consistência sistemática, alguns escritos mais antigos já falavam em espíritos do mal capazes de desviar (hat’at) os filhos da luz, levando-os à ruína (cf. 1Os 3). O verbete hat’at quer dizer desvio, e é como a língua hebraica se refere ao pecado.

Mesmo sem total apoio das Escrituras, pode-se suspeitar, afirmar até, que depois de criados, os anjos tiveram algum tempo de opção de exercer seu livre-arbítrio. Seria nesta fase, quem sabe, que Lúcifer e seus seguidores se rebelaram, sendo excluídos da comunhão e passou a ser satã (adversário e acusador dos homens.

É certo e sabido que Deus não criou nenhum ser mau. O mal não faz parte de sua natureza nem do seu projeto criador. Na verdade, eles é que se tornaram maus e réprobos por opção própria. Esta teoria é esposada por vários Pais da Igreja, como SÃO GREGÓRIO DE NAZIANZO 36, SÃO BASÍLIO e SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, no Oriente, e TERTULIANO, EUSÉBIO DE VERCELLI e SANTO AMBRÓSIO 37 no Ocidente. Tais afirmações foram abraçadas pelo I Concílio de Braga (ano 560) no cânone 7: “quem diz que antes o diabo não foi um anjo bom feito por Deus (...) seja anátema” . Também Santo Agostinho fez colocações nesse mesmo sentido 38.

Afinal, os diabos existem? Sim, assim como os anjos bons e puros, eles existem! Trata-se de uma realidade bíblica de todos os tempos e, em especial, reconhecida por Jesus (cf. Mt 25,41b), afirmada pela Igreja (IV Concílio de Latrão, 1215) e proclamada pela Tradição e pelo Magistério. Os espíritas negam a existência dos demônios. Para eles trata-se de espíritos obsedados, atrasados, sem luz, que carecem de purificação e desenvolvimento. Quando se purificarem totalmente, irão se tornar “espíritos de luz”, iguais a Cristo.

Um argumento comum contra a possibilidade de existência dos demônios é deduzido do fato que a psicologia e algumas outras ciências descobriram nomes para as doenças e fenômenos que no passado eram atribuídos a espíritos malignos. Na realidade, porém, não existe nenhum conflito em aceitar a diagnose que um psicólogo ou psiquiatra faz de um caso de anomalia mental e em aceitar ao mesmo tempo a possibilidade de influxos concomitante da ação de um espírito maligno. As ciências da psique não podem dar explicações para

36 Oratio 40: PG 3637 Adversus Martionem II,X; PL 296-29838 De Genesi ad litteram. Lib. XI, 27-28. PL 34.

40

todos os fatores que contribuem para os problemas mentais ou outros distúrbios de comportamento. Por isso, a perspectiva positivista que exclui a possibilidade de influências sobrenaturais, representa um horizonte estreito, em nítido contraste com a visão religiosa, a qual pode aceitar todas as características positivistas e ainda estar aberta para ulteriores elementos explicativos 39.

Em entrevista a uma revista austríaca, o papa João Paulo II afirmou a existência do diabo e sua atuação no mundo em que vivemos:

Em toda parte do mundo os adeptos do demônio sempre perverteram o pensamento humano. Não há perversidades que não lhes venha à memória. O que leva as pessoas à magia, bruxaria e culto a satanás? O diabo! Ele é uma realidade, o mundo é um lugar da presença dele 40.

O fato incontestável é que Satanás vive em radical e irreversível negação a Deus. Como pai da mentira que é, ele procura inverter valores, mesclar verdades e mentiras e impor à criação um comportamento adverso àquele requerido pelo projeto de Deus.

No que se refere à atuação dos espíritos malignos no mundo, a afirmação básica do magistério eclesiástico é que sejam considerados como sedutores dos homens para o mal. Satanás é o tentador, simplesmente; dele provém toda a maldade. Ele é o intrigante refinado que perturba o equilíbrio moral das sociedades humanas. Trata-se de um feiticeiro traidor e astucioso que procura infiltrar-se em nós através dos sentidos, fantasias, instintos, pensamentos utópicos, falsos ideais desordenados no campo de nossas atividades, para levar a ruína nossa vida e nosso agir. Sobre as realidades ontológicas do demônio, assim se expressou o papa Paulo VI:

O diabo é uma força atuante, um ser vivo, perverso e pervertedor, uma realidade assustadora, misteriosa e amedrontadora. Ele é o chefe de muitos seres espirituais que são somo ele, originariamente boas criaturas de Deus, mas que se afastaram porque se revoltaram e foram ao inferno. Quem nega a existência dessa realidade se coloca fora da doutrina bíblica e eclesiástica 41.

A tradição fala na vaidade e na soberba de Lúcifer como princípio de todo o mal. A vaidade de se considerar perfeito o levou à soberba e à revolta e, por isso, ele foi jogado no abismo (cf. Is 14,12-15; Lc 10,18). É controvertida a origem do nome Lúcifer. Uns afirmam se tratar de anjo da luz, outros, como vimos, aquele que tem (traz) a luz. Os demônios são referidos no Novo Testamento como anjos do diabo (cf. Mt 25,41b; 2Coe 12,7; Ap 12, 7ss).

A avareza, o egoísmo e a ambição personificam também as forças do mal. Jesus as identifica como um poder demoníaco, sob cuja escravidão o homem se degrada. O Antigo Testamento possuiu alguns relatos de situações de pecado a partir da ambição:

O rico se afadiga para acumular riquezas, e quando descansa se afoga em prazeres. O pobre se afadiga consumindo suas forças, e quando descansa cai na miséria. Quem ama o ouro não se conserva justo, e quem corre atrás do lucro,

39 J. NAVONE. Da Ciência à Teologia, In; Anjos e Demônios na Bíblia. Ed. Loyola, 1981.40 In: Zeitschrift de Katholoken für Glaube und Kirche. Viena, 1986.41 In; Osservatore Romano, 24/11/1972.

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com ele perecerá. Muitos foram vítimas do ouro e sua ruína foi inevitável (Eclo 31.3-6; Henoc 63,10).

No “sermão da montanha” Jesus adverte:

Ninguém pode servir a dois senhores. ou odiará a um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Assim, vocês não podem servir a Deus e às riquezas (Mt 6,34. par).

O termo riquezas aparece em outras versões como dinheiro. No original, porém o termo é mámon (não podem ser escravos de mámon). Esse mámon (alguns dizem mamôn) é um entidade siro-fenícia semelhante ao Plutão mitológico (deus das riquezas na Grécia antiga) que dava toda a riqueza ao homem até destruí-lo. Os judeus encaravam mámon como uma entidade má (um inimigo) que vinha para perder o povo sob a promessa de riquezas. Na patrologia latina, SÃO JERÔNIMO († 419) chega a afirmar que o dinheiro é o esterco do diabo.

A Bíblia revela que os demônios se supunham instalados em tranquilidade e Jesus veio para perdê-los (cf. Mt 8,29; Mc 1,24). As Sagradas Escrituras nos apresentam inúmeras citações sobre os demônios, os anjos caídos, com diversos nomes e qualificativos:

Satã (ou Satanás, o adversário): Jó 1; Zc 3,1s; Mt 17,11;

Diabo (do diábolos, o desordeiro): Mt 4,1; 13,39; Tg 4,7. Ap 20,10;

Belial (ou Beliar, o malvado): Jz 19,11; PR 6,12; 2Cor 6,15;

Belzebu (ou baalzebub, o senhor das moscas): Mt 10,15; 12,37; Mc 5,22;

Maligno: Mt 6,13; 13,19; Ef 6,16; 1Jo 2,13s;

Homicida desde o começo: Jo 8,44;

Príncipe desde mundo: Jo 12,31; 14,30; 16,11;

O deus deste mundo: 2Cor 4,4;

Mentiroso e pai da mentira: Jo 8,44b;

Dragão: Ap 12,2;

42

Antiga serpente (alusão a Gn 3): Ap 12,9; 20,2;

Legião (porque são muitos): Mc 5,9;

Asmodeu (o pior dos demônios): Também 3,17;

Lilith (um demônio feminino): Is 34,14.

SANTO AGOSTINHO afirma que, se o demônio atuasse diretamente sobre os homens, não haveria justos. Existem limites impostos por Deus a essa ação malévola. Os anjos protegem o ser humano contra os assaltos do diabo. Eles dão o primeiro e decisivo combate às investidas infernais. Os demônios não tem acesso direto à inteligência e à vontade dos homens, tem acesso tão-somente aos sentidos, imaginação, instintos, sensibilidade e memória. É por esses caminhos que eles costumam atacar a humanidade. A esse respeito há um texto de M; SCHAMAUS que fala sobre essa ação:

No final dos tempos, o diabo intentará um último e supremo esforço, quando lhe será permitido instalar um curto e aparente domínio sobre o mundo. Desenvolverá tal pompa e tais artifícios de sedução que até os homens de boa vontade se sentirão inclinados à apostasia (1Tm 4,1; Ap 16,13; 19,20). Mas Cristo descerá então do céu, feito um raio e destruirá para sempre o reino de Satanás (cf. Ap 20,1s) 42.

O místico SÃO VICENTE DE PAULO dá ênfase ao valor da oração – e em especial à matinal – para enfrentar os poderes do mal.

Hoje, como se sabe, há muitas tendências, nos meios científicos, e até na teologia, que colocam em dúvida ou mesmo negam os danos das práticas demoníacas. O neopsicologismo, já aludido aqui, afirma que não existe pecado, mas carências psicológicas e desvios patológicos de conduta. Ora, se não existe pecado, não há inferno e, por conseguinte, os demônios são seres irreais. E o que é pior: se não existe pecado a vinda de Cristo ao mundo foi em vão. Para Satanás esta é sua maior vitória: fazer-nos pensar que ele não existe, que é folclore, ou invenção dos padres para assustar as crianças.

Ao negarmos a existência dos demônios fazemos como que uma trégua com eles, E assim deixamos de estar vigilantes...

42 Op. Cit.

43

V OS MENSAGEIROS DE DEUS

1. Os papas e os anjos

A palavra inspirada dos papas sempre serviu de base para a formação do pensamento social e doutrinário da Igreja. A queixa que elaboramos no início do trabalho sobre a ausência de boas bibliografias específicas de angelologia moderna não se aplica aos tempos passados, onde a literatura cristã é rica em instruções, ensinamentos e comentários sobre o assunto.

Neste tópico vamos nos referir à produção papal sobre os anjos, verificada a partir do século XX. Posteriormente falaremos sobre a literatura cristã dos séculos passados.

No livro do profeta Ezequiel podemos ler que “os anjos explicam aos profetas o sentido de suas visões! (40,3s). Nesse sentido, entendemos que muitos papas tem sido inspirados pelos anjos a proclamar o evangelho da salvação e a sã doutrina da Igreja.

Dentro dessa perspectiva, vamos analisar aqui os principais pronunciamentos dos últimos papas sobre a doutrina dos anjos.

Pio XI (1857 – 1939)

Certa vez, em uma audiência, o papa ACHILLE RATTI (Pio XI) confidenciou a um grupo de visitantes que, todos os dias ao acordar e deitar orava ao seu anjo da guarda. E, muitas vezes, repetia a oração durante o dia, quando as coisas de complicavam:

Non tremiamo a dire, anche per um debito di riconoscenza AL nostro angelo custode, di esseri semtiti sempre da lui assistiti in modo mirabile. Soventissimo sentiamo che egli é qui, vicino a noi, pronto all’ assistenza all’ainto 43.

É incrível que um homem do vigor de Pio XI, que denunciou as perseguições que o ditador STÁLIN moveu contra os cristãos na Rússia, que se opôs a HITLER e resistiu a MUSSOLINI, teve a coragem e a piedade de mencionar sua devoção ao anjo da guarda, a ponto de invocar sua ajuda durante o dia, inclusive, no célebre discurso de 2 de setembro de 1934, ele recomendava a devoção ao anjo da guarda aos católicos, em especial a visitantes importantes, como diplomatas, governantes de nações estrangeiras, reis e príncipes, missionários e jovens.

O papa Pio XI foi um homem de coragem e oração. Tais fatores, construtores de sua santidade, atribuem-se à sua devoção aos santos anjos da guarda, devoção esta que o acompanhava nos momentos mais difíceis e, cada vez mais, aproximava-o de Deus.

43 G. DEL TON. Una grande inchiesta. Milano, 1966,

44

Pio XII (1876 – 1958)

Também o papa EUGÊNIO PACCELLI falou dos anjos a visitantes ilustres. Sua encíclica Humani Generis , publicada no ano santo de 1950 denunciava algumas manobras gnósticas que visavam um certo racionalismo da fé.

Contra essas tentativas se insurgiu o papa, dando especial ênfase à doutrina dos anjos, resgatando suas pessoas espirituais da onda de materialismo mítico que começava a assolar o mundo. Nesse particular, sua doutrina é breve, porém compacta, e rica em aplicações práticas.

Em face dessas posições, Pio XII foi chamado de “O Pastor Angélico”, tal sua devoção e confiança nos anjos da guarda. Inspirado na Bíblia, na doutrina dos Santos Pais da Igreja e na liturgia, Paccelli indica a missão dos anjos na vida dos homens:

Cada homem, enquanto humilde, é vigiado por seu anjo e colocado no caminho de Deus, através de Cristo, Nosso Senhor 44.

João XXIII (1881 – 1963)

A fé de ÂNGELO GIUSEPPE RONCALLI na presença ativa e afetuosa de seu anjo da guarda era tanta que, como Pio XI, o invisível, de certo modo se tornava visível aos olhos de sua fé. João XXIII considerava o culto dos anjos como uma devoção essencial para a vida cristã. Em sua carta a uma pessoa da família, antes de ser papa, quando era Núncio Apostólico na França, ele escreveu:

Che consolazione sentircelo bem vicino questo celeste guardiano, queta guida dei nostri passi, questo testimone anche delle più intime azioni. Io recito l”Angeli Dei almeno cinque volte AL giorno e sovente converso spitiriualmente com lui, sempre però com calma, in pace 45.

Em conversa com prelados canadenses, João XXIII teria afirmado que Deus lhe dera a inspiração para convocar o Concílio Vaticano II através do seu anjo da Guarda.

Paulo VI (1897 – 1978)

O ensinamento do papa GIOVANNI BAPTISTA MONTINI coroa o testemunho de seus três antecessores. Em sua “Profissão de Fé” (Credo do Povo de Deus) de 30/06/68, no encerramento do “Ano da Fé”, o papa nomina, em duas oportunidades, a presença dos anjos no Plano da Salvação, no qual todo cristão deve crer.

Nós cremos em um só Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis (que são os espíritos puros chamados anjos).

44 Idem ibidem45 Id. ibid.

45

Ao término desse credo, Paulo VI evoca as almas que contemplam a Deus no céu, às quais são associados os santos anjos. Para o papa, os anjos e os santos são associados de Deus nos diversos graus de governo do mundo.

João Paulo II (1920 - 2005)

Também o papa KAROL JÓZEF WOJTYŁA se revela preocupado em propagar o ensino tradicional da Igreja a respeito dos anjos.:

É verdade que o materialismo e o racionallismo de todos os tempos tem negado ou procurado desmerecer a existência dos anjos. Negar sua existência ou sua função é rejeitar as Escrituras e, com essas, toda a história da salvação 46.

Por ocasião da bênção à estátua restaurada do arcanjo São Miguel (protetor da cidade de Roma), assim se expressou o papa Wojtyla:

Nosso desejo é que cresça a devoção aos anjos e em especial ao anjo da guarda em cada um de nós 47.

2. Literaturas cristãs a respeito dos anjos

Nos séculos passados, muitos santos, teólogos, místicos e papas tiveram visões, encontros e contatos em que receberam revelações dos anjos de Deus. Como por definição da teologia pastoral, eles são seres espirituais, qualquer contato com o mundo angélico só pode ocorrer no plano da fé, como ensinou Santo Agostinho:

Esse angelos novimus ex fide 48

Com base nos textos bíblicos, a Igreja tem ensinado por quase vinte séculos que Deus criou os anjos. Essa afirmação consta de muitos documentos históricos da Igreja, e faz também parte de sua produção teológica desse período. A doutrina dos anjos consta do depósito de fé da Igreja.

Esse conjunto de ensinamentos foi consolidado – de quisermos de forma histórico-acadêmico ir de frente para trás – nos concílios de Latrão (o IV, 1215) 49 e Vaticano I (1869-1870) 50.

Os ensinamentos rabínicos, oriundos dos fariseus, deram espaços à angelologia, combatendo os excessos tendentes à idolatria, ao gnosticismo e aos esoterismo da cabala. No chamado judaísmo tardio, vamos encontrar os essênios a favor da doutrina dos anjos, conforme informa Flávio Josefo 51. Enquanto isso, os saduceus se manifestaram integralmente contrários (cf. At 23,8).

No século II, Lactâncio fala do anjo de fogo (cf. Ap 16,8) que fará o sol ficar parado por três dias para abrasar os homens de calor. No miolo da 46 In: Uma grande inquiesta. op. cit.47 Idem ibidem48 “Conhecemos a existência dos anjos pela fé”. In: Enarr. in Os. Sermo 1,15.49 DS 42850 DS 178351 In: Antiguidades judaicas, II 8,7

46

doutrina dos Pais da Igreja (teologia patrística) vamos encontrar um rico veio de inspirações, onde brotam ensinamentos sobre a natureza dos anjos, suas tarefas, suas formas de aglutinação (os coros) e seus nomes 52.

Na verdade, nem todas essas teorias são rígidas e canonicamente aceitas pela Igreja, como o caso das formulações do Pseudo-Dionísio, como vimos. Entretanto, como não existem anátemas sobre elas, a maioria é oriunda da lavra de santos e mestres da patrística, decidimos incluí-las neste trabalho:

2.1 Naturezaa) Os anjos são seres espirituais (Ireneu: Adv. Haer. II 30,6s: Ps. Dionísio. Cael

Hierd. I,8; Tertuliano. Apol. 22,8; Clemente de Alexandria. Strom, V,36; Orígenes. Contra Cels. IV,24). Embora essa corrente do pensamento cristão afirme a característica espiritual dos anjos, alguns lhes admitiam corpos aéreos (Gregório Magno. Moral XXVIII, 3 ou corpos etéreos. Agostinho. Enoch. 59; Fulgêncio. De Trin. 9.

b) os anjos são seres morais: b 1 – Criados por Deus (Justino. Diálogos, 88,4; Atenágoras. Preb, 24,3; Ire- neu. Adv. Haer, II,2s; Agostinho. Civ. Dei, IX,23;

b 2 – Criados pelo Logos (Taciano. Odr. ad Graec. 7,1s; Orígenes. De princ. I, 7,1; Atanásio. Contr. Ar. 1,62);

b 3 – Dotados de liberdade (Justino. 2Apol.6,5);

b 4 – Santificados pelo Espírito Santo desde a sua criação (Basílio. Hom. in Ps32,4; João Damasceno. In Fide Ort. II,3);

b 5 – Bem aventurados (Gregório de Nazianzo. Or. XXVIII,31).

2.2 Tarefas dos anjos

Conforme consta na maioria dos manuais de angelologia, são seis as tarefas atribuídas aos santos anjos de Deus:

a) Servir a Deus (Clemente Alex. Strom. VII 3,4; Orígenes. Contra Cels. VIII 8,25; Atanásio. Contr. At. I 55-52);

b) Servir aos homens (Pastor de Hermas. Vis. IV 4,2,4; Agostinho. Civ. Dei. VII, 30);

c) Ser guardião da humanidade (Clemente Alex. Strom. VII 57,5; Orígenes. De orat. 11,5/ Ambrósio. Ps 38,32; Jerônimo, Mt III, 18; Tomas de Aquino. STh I, 113,2.5);

d) Guardar as nações (Basílio, Adv. Eunom. III,1; Ireneu. Adv. Haer. III 12,9; Ambrósio. Exp, Ev. Luc II,50);

52 A. M. GALVÃO. Quem são os Pais da Igreja? Ed. Recado, 1995.

47

e) Levar a Deus as orações dos justos (Gregório Magno. Dial. IV,58; Gregório de Nazianzo. Or. XXXVIII,12; João Crisóstomo. Sermo ressurrectione 3; Clemente. Strom. VII 39,9; Agostinho. In Ps 78,1);

f) Presença na hora da morte.(Tertuliano. De anima, 53,6; Orígenes. In Num. V,3; Gregório Magno. Hom. Ev. Lc XXXV,8).

2.3 Grupos de anjos

Aqui há a já aludida questão sobre os coros e as hierarquias celestes, da qual a Igreja, por não ter total apoio da Bíblia, não apóia integralmente, mas também não rejeita de todo. Essas teorias, embora controvertidas, foram consideradas aceitáveis a partir de SÃO GREGÓRIO MAGNO († 604) que foi o 30º sucessor de Pedro e exerceu o Pontificado de 690 a 604.

a) quatro grupos (ou coros) de anjos (Jud. tardio, or. sibil. II,21,5);

b) seis grupos (Pastor de Hermas. Vis. III 1,5s)/

c) sete grupos (Clemente. Strom. VI 143,1).

2.4 Nomes dos anjos

A Bíblia judaica só menciona os nomes dos arcanjos Miguel e Gabriel. no que é acompanhada pelos reformistas, a partir do século XVI. Como a literatura católica incluiu o livro de Tobias no seu cânon, a partir dos primeiros séculos, este livro é considerado dêutero-canônico (tornado canônico posteriormente). Quando o livro de Tobias passou a circular entre as comunidades cristãs é que surgiu a devoção pelo arcanjo Rafael, que só é mencionado desse livro.

Para os católicos, portanto, além da multidão de anjos que povoam os céus, nominalmente só são conhecidos os três arcanjos: Miguel, Gabriel e Rafael. Fora disso é especulação e foge ao ensinamento da Igreja e vai contra a fé das comunidades.

A título de curiosidade cultural – e apenas isto – poderíamos citar outros nomes de anjos, como o de Uriel, que o judaísmo tardio menciona como o quarto arcanjo 53, e mais outros como, por exemplo, a nominata levantada pelo monge Amadeus Menez 54, Miguel, Gabriel Rafael, Uriel, Jeudiel, Baraquiel e Selatiel (ou Sealtiel).

A Igreja Católica se opôs a essa teoria, pois a mesma não encontra nenhum amparo nas Escrituras e, ainda, por considerar muitos desses nomes como relacionados a alguns cultos de magia, esotéricos e cabalísticos e do mazdeísmo persa.

3. Ligação

53 AMBRÓSIO. De fide.54 In: Os arcanjos, séc. XV.

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Algum cético, ateu ou irmão separado poderá argumentar que não temos necessidade dos anjos, pois Cristo nos basta, e ele é o único e maior mediador entre o ser humano e o Pai. E, de certa forma, terão razão em assim afirmar. A graça divina que flui até nós através de Cristo é suficiente. É suficiente, pergunto eu? Todos os homens se salvam? Ninguém se perdeu?

É claro que Cristo é suficiente! Seu gesto redentor a partir do sacrifício na cruz nos basta! Mas ele, na imanência da Trindade Econômica (economia da salvação) preferiu criar ajutórios, como balizas, faróis ou sinais capazes de conduzir o homem a ele. Mas a Igreja, como instituição humano-divina não tem essa missão? Sim, se a Igreja também tem – entre outras – essa finalidade, por que Deus não criaria outros seres espirituais, perfeitos e servidores para ajudar os homens no caminho para a salvação? Não é assim com os santos? Não é assim com a Virgem Maria, medianeira de todas as graças, a mãe de Deus:

Embora alguns digam que adoramos pessoas ou imagens, na verdade os católicos só adoram a Deus, mas tem especial carinho e admiração por Maria e pelos demais santos, a quem procuram imitar o exemplo de cristão que eles foram. E nesse rol se incluem também os anjos. Só Deus basta, só o sacrifício vicário de Cristo é o suficiente para salvar os homens, mas para fazer frente ao mal, tão crescente, sutil e instalado, o próprio Deus criou os anjos, como mensageiros e ajudadores, fazendo a ligação entre o céu e a terra, entre o mundo visível e o invisível, entre a Igreja triunfante e a militante. A esse respeito recorremos à sábia e inspirada palavra de Santo Tomás de Aquino:

Os anjos não impedem que o homem faça mau uso de sua liberdade, mas não cessam de iluminá-lo ao arrependimento 55.

Em Tb 3,16 lemos a situação de Rafael como guardião de Tobias e de seus projetos:

No mesmo instante, o Deus da glória escutou a oração dos dois e mandou o arcanjo Rafael curá-los: tirar as manchas dos olhos de Tobit, a fim de que ele pudesse enxergar a luz de Deus e fazer com que Sara, filha de Ragüel, se casasse com Tobias, livrando-a de Asmodeu, o pior dos demônios.

Perguntado sobre o anjo da guarda, assim se manifestou o beato frei PIO DE PIETRALCINA, um especialista em angelologia:

Cada um deles tem suas tarefas bem precisas. Alguns são encarregados de cuidar dos homens, para ajudá-los na luta contra os demônios, protegê-los nas dificuldades da vida e orientá-los para o bem. Cada ser humano, desde o dia de seu nascimento, é confiado a um anjo da guarda. Ele tem como tarefa específica cuidar do seu protegido, pelo qual deverá responder diante de Deus. Naturalmente que a ação do anjo daquele que não crê fica mais limitada, porquanto o anjo não pode violar a liberdade da pessoa que tem sob seus cuidados, A ação do anjo da guarda a nosso favor será diretamente proporcional à confiança, ao entendimento que tivermos com ele. Quem não acredita na realidade do anjo da guarda, quem nunca fala com ele, nada lhe pede, não pode ter muitos benefícios, pois com sua conduta cortou os canais de comunicação com seu anjo. Quem, ao contrário, vive em estreita comunicação com seu anjo

55 STh III 5 q. 2-4

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da guarda, encontra nele um amigo preciosíssimo e poderoso que lhe pode ser extremamente útil 56.

O entendimento do mistério do anjo da guarda só pode ser iniciado depois de compreendermos o outro mistério maior, que é a misericórdia de Deus. Ora, dirão, como o autor usa as palavras entendimento e compreensão num mesmo período em que aparece o verbete mistério?

De fato, o de Deus pode ser penetrado até onde ele no-lo revela, e de acordo com as limitações da nossa inteligência. Mistério é uma expressão usada pela teologia para definir aquelas realidades de Deus nas quais nossa compreensão humana não tem capacidade de acessar. Vamos estudando, deduzindo, intuindo até um certo ponto. Dali para frente não podemos avançar mais, pois nosso intelecto não mais alcança. Aí começa o mistério. De qualquer forma, usamos dois meios para nos aproximar do mistério divino: a inteligência, até onde ela pode alcançar, e a fé, em atitude apofática de adoração, onde não é mais possível compreender. Através desses meios podemos compreender a doutrina dos anjos a partir do conhecimento da providência e da misericórdia de Deus.

A conversão a Deus consiste sempre na descoberta da sua misericórdia 57.

O autêntico conhecimento, no Deus rico em misericórdia, Deus amor e benignidade, é fonte constante de conversão e santidade. Jesus ensina que os pequeninos tem lá no céu seu anjo da guarda que por ele vela incessantemente. Esses pequeninos não são apenas as crianças, mas também os que se fazem pequeninos pelo amor, humildade e desprendimento. Um pequenino aceita pela fé a existência de seu anjo protetor, o que um grande rejeita, pois não cabe em sua lógica racionalista.

Em algumas literaturas mais antigas e em livros escritos em Portugal, encontra-se o anjo da guarda chamado de anjo custódio. Duas expressões para fazer referência à mesma realidade.

Embora céticos e agnósticos neguem, todas as pessoas tem seu anjo protetor. Assim como há quem negue o mistério da eletricidade, energia nuclear ou a chegada do homem à lua, há também os que negam a existência dos anjos, apelando para a proteção de potências do mundo, via-de-regra, débeis e transitórias.

Na literatura cristã contemporânea fomos descobrir um precioso testemunho a respeito do anjo da guarda. Como o italiano (o romano) é uma língua de fácil compreensão, achamos melhor apresentar sem a tradução, para que o leitor saboreie o sentido original dessa bela peça sacra:

Quando l’anima è unita agli angeli, prova come um accrescimento delle sua facoltà. L’astronomo Che avvia gli occhi a um telescópio scopre orizzonti Che La potenza della sua vista naturale non potrebbe mai raggiungere. L’effecto prodotto nell’anima è press’a poço análogo quando per Il contatto spirituale che la unisce all’angelo essa prova uma subitana estensioine dell’inteligenza e

56 In: Por que os anjos caíram de moda? Apd. Revista Rainha. Ed. Pallotti, Porto Alegre, junho de 199257 DM 84

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dell’amore. È um mistero che non saprei spiegare, ma ho provato La cosa como l’ho detta 58.Para os cristãos, especialmente nós católicos, o anjo da guarda é uma

verdade estupenda. Ela é tão maravilhosa que, por causa disso, alguns tem dificuldade em crer nesses protetores. Ao nascer cada pessoa, homem ou mulher, recebe de Deus um presente inestimável: um anjo amigo, protetor, com a missão específica de cuidar dele, encaminhá-lo à salvação e acompanhá-lo durante a vida terrena. Esse presente divino é uma das mais belas e consoladoras verdades da fé cristã.

Quando as mães, com fé e carinho começam a ensinar seus filhos a rezar, três orações se destacam nesse início de aprendizado: O Pai-Nosso, a Ave-Maria e o Santo Anjo. Esta última é inculcada nas crianças, nessa primeira catequese familiar, como oração da manhã e da noite e assim perdura, pela vida afora, como pedido de proteção de crianças e adultos, mães e pais de família, operários, agricultores, religiosos e místicos:

Santo Anjo do Senhor,Meu zeloso guardador, Se a ti me confiou a Piedade Divina,Sempre me rege,Guarda, governaE ilumina.

Amém!

Os quatro verbos precatórios da oração tem um sentido especial que aponta para a confiança-certeza do povo que tem fé:

REGE é o pedido para que o anjo nos defenda dos perigos morais e físicos, doenças e acidente?

GUARDA significa a proteção contra os pecados que afastam os crentes do projeto de Deus;

GOVERNA aponta para aquela orientação para a perseverança na doutrina e no evangelho de Jesus;

ILUMINA, por fim, reflete o pedido para que o nosso anjo da guarda nos ajude a encontrar a verdade e tomar decisões justas e misericordiosas.

A tradição da Igreja ensina que os santos tiveram uma confiança total nos anjos da guarda. A familiaridade com que um anjo nos transmite um sentimento de segurança é incrível. Os nossos companheiros invisíveis estão – segundo a Igreja – sempre prontos a nos defender.

58 In: Diário Espiritual da Mística Lúcia Cristina († 1900). “Quando a alma está unida aos anjos, prova como que um acréscimo de suas faculdades. O astrônomo que coloca os olhos em um telescópio divisa horizontes que a potência da sua visão natural não poderia mais enxergar> O efeito produzido na alma é mais ou menos análogo quando, pelo contato espiritual que a une ao anjo, esta experimenta uma súbita extensão da inteligência e do amor. É um mistério que não saberia explicar, mas que foi experimentado assim como foi dito”.

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Na Bíblia há várias referências explícitas ao múnus protetor e ajudador dos anjos, além da narrativa do livro de Tobias, em que o arcanjo Rafael funciona como um protetor. Na passagem do Mar Vermelho, o anjo de Israel se coloca entre o povo judeu e as tropas egípcias, fazendo trevas para que os inimigos não se aproximassem (cf. Ex 14,19s). No mesmo episódio do Êxodo, Javé revela a Moisés a atividade do seu anjo protetor:

Vou enviar um anjo na frente de você, para que ele cuide de você no caminho e o leve até o lugar que eu preparei para você. Respeite-o e obedeça a ele. Não se revolte, porque ele leva consigo o meu nome, e não perdoará suas revoltas. Contudo, se você lhe obedecer fielmente e fizer tudo o que eu disser, então eu serei para você inimigo de seus inimigos e adversário de seus adversários. Meu anjo irá à frente de você e o levará (Ex 23,20-23a).

A cultura sapiencial judaica está repleta de citações que se referem ao anjo da guarda:

O anjo de Javé acampa ao redor dos que o temem, e os liberta. Provem e vejam como Javé é bom; feliz o homem que nele se abriga )Sl 34,8s).

Você fez de Javé o seu refúgio e tomou o Altíssimo como defensor. A desgraça jamais o atingirá, e praga nenhuma vai chegar à sua tenda, pois ele ordenou aos seus anjos que guardem você em seus caminhos. Eles o levarão nas mãos, para que seu pé não tropece numa pedra (Sl 91,9-12

No Novo Testamento há muitas referências sobre o anjo que protege, algumas dela proferidas pelo próprio Jesus:

Cuidado para não desprezar nenhum desses pequeninos, pois eu digo a vocês: os anjos deles no céu estão sempre na presença do meu Pai que está no céu Mt 18,10).

Aconteceu que o pobre morreu, e os anjos o levaram para junto de Abraão (Lc 16,22).

Não são todos eles (os anjos) espíritos encarregados para um serviço, enviados para servir àqueles que deverão herdar a salvação? )Hb 1,14).

Quando Jesus ressuscitou, dois anjos montaram guarda no sepulcro, tornando-o um sacrário (cf. Jo 20,12). Antes disto, no Getsemani, um anjo o conforta (cf. Lc 22,43). No chamado tempo de Igreja, os anjos protetores exercem admiravelmente suas funções: um liberta Pedro da prisão (cf. At 5,19; 12,7-10), confortou – em sonho – o apóstolo Paulo em sua incerteza (cf. At 17,23).

Os escritos da Igreja primitiva, após a morte dos apóstolos tem a partir do século II uma significativa quantidade de referências à proteção dada pelos anjos aos fiéis.

Para proteger a Igreja, os anjos prosseguem em torno a Miguel, seu chefe, o combate contra Satanás, que perdura (cf. At 12,1-9) desde as origens 59.

59 In: O Pastor de Hermas, op. cit.

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Assim como existem anjos que guardam as pessoas, também ocorre a proteção às nações. O arcanjo Miguel, por exemplo, é protetor de Israel.

Portugal também tem seu anjo da guarda. Em 1915, alguns pastores tiveram uma visão em Fátima, sobre a qual não puderam prestar os esclarecimentos necessários. A visão não foi clara. Na primavera de 1916 apareceu um anjo a Lúcia, Francisco e Jacinta. Agora não é mais uma visão obscura; é um anjo mesmo! Não temam – disse o anjo – rezem comigo:

Meu Deus, eu creio em vós, em vós espero e vos amo! Vos peço perdão pelas minhas faltas!

Na continuação ensinou as crianças a dizer:

Os corações de Jesus e de Maria estão atentos às vossas vozes e às vossas preces.

Quatro meses mais tarde, os pequenos videntes enxergaram um anjo ajoelhado e, e junto a ele, em suspenso, um cálice e uma hóstia, que irradiavam luz> O anjo convidou-os a orar por três vezes esta oração:

Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, eu vos adoro profundamente e vos ofereço o preciosíssimo corpo, sangue, alma e divindade de Jesus Cristo, presentes em todos os tabernáculos da terra, em reparação aos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que é ofendido. E pelos méritos infinitos de seu Sacratíssimo Coração e do Coração imaculado de Maria, vos peço a conversão dos pecadores.

Numa dessas aparições às crianças, o anjo teria se revelado como o protetor de Portugal. Em 13 de maio de 1917, menos de ano depois dessa aparição do anjo, Maria Santíssima apareceu aos três pastorzinhos.

A presença de um querubim colocado à porta do paraíso “guardando a árvore da vida” (cf. Gn 3,24) revela a função dos anjos da guarda das propriedades. Esta figura do anjo é um dos sinais de esperança do plano de salvação. O paraíso aqui é entendido como uma visão eufêmica de um lugar-limite-ideal, reservado ao homem. Como na versão do hagiógrafo se trata de uma propriedade de valor incalculável, Deus teria destacado um anjo para esse trabalho de guarda. Desde os primeiros relatos sagrados há a preocupação em descrever os anjos na função de guardadores das criaturas e coisas de Deus 60.

4. Os anjos existem!

Justamente quando eu pesquisava sobre os anjos, para compor este livro, assisti a um programa de televisão onde a apresentadora se propunha desvendar o mistério dos anjos. Como não poderia ser diferente, o assunto me atraiu, até a hora em que tomei conhecimento do seleto quadro de debatedores: um colunista social, uma socialaite, um empresário, uma psicóloga e uma animadora de programas infantis. Achei curioso a produção do

60 Sob o título “Anjo à porta” há um aprofundamento sobre esse assunto em meu livro O Caminho da Esperança, Ed. Vozes, 1987.

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programa não haver convidado teólogos, padres, pastores, místicos. Só havia achólogos. E como havia!

Em resumo, numa análise honesta e isenta do programa que assisti, em termos de fé e esclarecimentos não deu para aproveitar nada. E o pior: foram ditos muitos absurdos, muitas inverdades, coisas fantasiosas, invencionices que nada tem a ver com angelologia, com o que a Bíblia revela e a Igreja ensina.

É por causa de manifestações desse quilate que a crença nos anjos está hoje tão deturpada. O problema começa com a literatura. Não existem livros novos nem tampouco livros bons sobre esse assunto. Há tempos tentei buscar subsídios em um livro que se propunha falar sobre anjos e demônios. Parece que o autor sabia mais de demônios do que de anjos, tamanha a desproporção nos assuntos enfocados.

Olhando a pobreza de certas bibliografias parece que o tema se esgotou e tudo o que tinha para ser dito foi falado nos livros de décadas passadas. Em segundo lugar, a maioria das boas obras de angelologia que aparecem por aí são estrangeiras. E caras! Há pouca coisa em português, quase sempre fazendo parte de um livro ou de uma coleção. Em terceiro lugar, parece que a própria Igreja absorta em outros projetos se esqueceu de proclamar a doutrina dos anjos. Os anúncios das catequeses também são insuficientes.

A realidade dos anjos é tão maravilhosa que muitos cristãos chegam a considerá-la como uma belíssima coletânea de fábulas. No entanto, o papa JOÃO PAULO II, em recente pronunciamento, falou longamente sobre o assunto, descendo a detalhes práticos:

Os anjos existem e são mandados pela divina providência para nos ajudar a alcançar a santidade de vida!

Citando a Bíblia, os Santos Pais da Igreja e os teólogos mais abalizados, o Santo Padre se deteve em ilustrar a figura e as funções do anjo da guarda – uma espécie moderna de superman – que está sempre junto de nós e pode realizar em nosso favor coisas maravilhosas 61.

O teólogo luterano R. K. BULTMANN († 1976) nega a existência dos anjos:

Não se pode usar a luz elétrica e o rádio, servir-se de modernos instrumentos médicos e clínicos nos casos de doença, e acreditar, ao mesmo tempo, no mundo dos espíritos e dos milagres do Novo Testamento 62.

Esse pronunciamento reflete o idealismo cientificista típico do pensamento alemão do início do século XX, que praticamente rejeitou a crença dos anjos. Em alguns segmentos luteranos, onde não silenciam, ainda há aquela recusa, por se tratar – segundo eles – de um dogma papista.

Outro teólogo e biblista R. CHAMPLIN de formação anglicana (nascido em 1933) lamenta a retração dos fiéis em relação à crença nos anjos, e afirma-os

61 In: Revista Rainha dos Apóstolos. Ed. Pallotti, março de 1990.62 In: Kerygma und Mithos. Hamburg (1955). Vol. I, p. 18.

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como uma inegável realidade bíblica “embora negligenciados pelo lado protestante da cristandade” 63.

Quais são as causas da diminuição ou retração do culto aos anjos? Em primeiro lugar, temos as profecias bíblicas em que no fim dos tempos, muitos perderiam a fé, a caridade esfriaria e o povo viveria ao sabor de suas paixões (cf. Mt 24,12). A devoção aos santos anjos traz ao ser humano uma série de implicações místicas que o modelo social moderno rejeita, pois requer simplicidade, afeto, dedicação, pureza, acolhida e serviços ao próximo.

Muitos negam ou duvidam da existência angélica afirmando que só o que é pertinente ao homem moderno é que pode ser admitido como verdade lógica. A esses seria de perguntar se a geometria pertence ao homem moderno. O ser humano vive o círculo vicioso de um novo paganismo, onde produz, compra, consome, volta a produzir, torna a consumir, e assim sucessivamente. Esse materialismo cega e embrutece, e assim as pessoas deixam de perceber valores para só notarem coisas mensuravelmente válidas.

Como o homem moderno julga que suas ciências tem respostas para tudo, a doutrina dos anjos o enche de medos e temores, pois desnuda sua fraqueza e finitude. Diante do mistério do infinito, o ser humano recua assustado e ferido em seu orgulho e auto-suficiência. Com isso ele passa a rejeitar o mistério. A rigor, essas causas poderiam ser relacionas em cinco itens principais:

a) O racionalismo: Talvez esteja aí a maior causa. O racionalismo é o pai de todas as atitudes pragmáticas. Ele bane toda a proposta de mística e de espiritualidade. Não aceita nada que não seja possível provar cientificamente. É derivado do iluminismo europeu dos séculos XVII e XVIII que estabeleceram o primado da razão;

b) A auto-suficiência tecnológica: Esta é parente próxima do racionalismo, mas tem outras origens e consequências. A tecnologia visa dominar a terra e o cosmo (se possível for) pela máquina, pelo computador, pelas teorias cada vez mais avançadas. Na ambição de dominar queimam etapas do desenvolvimento natural e evolução do ser humano. O progresso desse materialismo cientificista bane sentimentos e coisas piegas. Os anjos e outras realidades sobrenaturais se incluem nesse índex.

c) Os meios de comunicação social: O homem televisivo, sempre em contato com a realidade das notícias e a irrealidade da ficção, a ponto de não mais saber distinguir onde começa uma e acaba a outra, não tem mais condições de crer em algo que não vê ou não aparece no “jornal das dez”. De fato, os mass-media tornam acessível a fantasia através de manipulações e efeitos especiais. Ora, quem está acostumado com as construções de SPILBERG ou de GEORGE LUKAS vai ter tempo a perder com os anjos da guarda?

63 In: Novo Testamento – Interpretado Versículo por Versículo. Ed. Milenium, 6 vol. 1979.

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d) Algumas representações artísticas: Uma das razões que levaram os homens a não crer mais nos anjos está, sem dúvida, na representação iconográfica que os artistas faziam (e fazem) dos mesmos, O anjinhos barrocos, por exemplo, menininhos gorduchos, de cabelos encaracolados a sobrevoar os santos, algumas figuras até mesmo efeminadas e de olhares lânguidos voltados para o céu, as figuras humanas porém aladas, muito comuns na arte mas pouco aceitáveis racionalmente, levaram as pessoas menos reflexivas e mais críticas à negação sumária dos anjos. E, de certa forma, essas pessoas tem alguma parcela de razão: um ser celeste e puro nada terá destas formas apresentadas pela criação dos pintores e escultores fantasiosos 64. Por este motivo decidi incluir neste livro o tópico “os anjos na arte” para que pudéssemos, através da visualização e do debate dos clássicos, eliminar preconceitos e corrigir distorções;

e) A falta de fé: Eu estaria sendo demasiadamente simplista se afirmasse que a causa da diminuição da devoção aos anjos estava contida nos itens acima relacionados. De fato, ali existem muitos ingredientes influenciadores da retração ao culto angelical. Mas não são todos e – talvez – nem o principal motivo. À grande questão é que o homem chega, neste final de século XX minado pelo materialismo, pelo intelectualismo, pelo automatismo a ponto de não conseguir mais enxergar além das aparências. Isso é não ter fé! Muitos homens não só perderam a fé nos anjos, em Jesus Cristo e em Deus, como, de resto, perdeu a fé em si mesmo. Ele só acredita no sistema, só confia no dinheiro, só recorre ao poder da força.

Quando preparava este livro, conversava com uma senhora que me confessou não acreditar em Deus, nem nos valores morais, muito menos nos anjos. Falou-me de seu trabalho, de suas propriedades, de suas viagens e dos móveis e utensílios que possuía em sua fina residência. Eu perguntei a ela: “No que mais você confia, além do dinheiro?”

As angústias de nosso tempo tem criado nas pessoas vácuos de depressão e desesperança e, consequentemente, se lhes tem diminuído a fé. A falta de fé no espiritual é talvez a maior causa da diminuição do culto aos anjos do céu e – em paralelo – do aumento das ansiedades que dominam muita gente.

Crentes na existência dos anjos, muitas nações têm devoções especiais pelos anjos. Isso aconteceu no passado e ainda acontece hoje. O profeta Daniel fala nos anjos protetores dos persas e gregos (cf. 12,1). São Paulo se refere ao “Anjo da Macedônia” que lhe apareceu em sonho, pedindo socorro para o povo (cf. At 16,9). Portugal, já foi dito aqui, tem seu “anjo custódio”, assim como Israel e alguns países europeus, entre eles a Espanha e a Hungria.

A existência dos anjos é um mistério que o homem não poderá descobrir sem a revelação de Deus. Não obstante, a mente humana pode, iluminada pela fé, demonstrar que não é de modo algum absurda sua existência, não só pelas

64 E. D’ASSUMPÇÃO. Ainda existem os anjos? In; Revista O Recado, junho 1992.

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afirmações da Palavra inspirada, mas também pelas manifestações do anjo da guarda na vida de tantas pessoas, santos, místicos, homens de fé 65.

Com amparo nas Escrituras, poderíamos dizer que os anjos constituem o mundo celeste (cf. Lc 16,10) onde assistem a Deus, entoando-lhe cantos de louvor e bendizendo-o (cf. Sl 29,1/ 148,2),m em multidões incalculáveis (cf. Hb 12,22; Ap 5,11). São os seres invisíveis, cuja fé professamos no Credo Niceno-constantinopolitano.

A fé na existência dos anjos bons e maus faz parte da dogmática católica, isto é evidente. Ela está contida na Sagrada Escritura, e proclamada por concílios ecumênicos, confirmada pelo consentimento unânime dos Pais da Igreja e ensinada por todos os teólogos 66.O plano da salvação tem nos anjos ajudantes fiéis e dedicados, em

especial o anjo da guarda de cada um.

O mistério dos anjos faz parte do grande mistério da salvação, pelo qual o Pai, Cristo e o Espírito Santo assistem à Igreja e a cada um dos seus membros no seu caminho para a consumação final 67.

Entretanto, é bom que se esclareça, não se deve adorar aos anjos. A eles a humanidade deve carinho, respeito e estima, mantendo-se dóceis às suas inspirações e atentos às suas comunicações. Assim como não se adora à Virgem Maria nem aos santos, mas dedica-se a eles amor, devoção e confiança, assim com os anjos sucede a mesma coisa, pois todos são criaturas de Deus. São hereges algumas teorias panteístas de que a origem dos anjos se deu por geração por si u emanação da essência de Deus.

Não se adora anjos, portanto. Adorar alguém fora de Deus é idolatria. Isso não impede a posse de imagens, quadros ou figuras do anjo da guarda. Podemos tê-las assim como possuímos fotos de parentes queridos, de amigos, do time de futebol e nossa preferência ou estátuas de heróis nacionais. É equivocada a afirmação de irmãos de outras religiões que os católicos adoram imagens, pelo simples fato de as possuírem. Não se adora imagens, mas não é proibido tê-las em casa. Deus proibiu esse tipo de adoração, mas autorizou a colocação de dois querubins em cima da Arca da Aliança (cf. Ex 25,18s) e permitiu que confeccionassem uma “serpente de bronze” (cf. Nm 21,9) com poderes curativos. Emocionado, João, o vidente de Patmos quis se ajoelhar aos pés do anjo, no que foi contido:

Não faça isto! Eu sou o servo de Javé como você e seus irmãos e aqueles que guardam as palavras do Livro. É a Deus que você deve adorar (Ap 22,8s).

Sobre a proibição de adorar anjos ou quaisquer outras criaturas pode-se ler Cl 2,18 e Ap 19,9s. Quanto às literaturas de origem reencarnacionista, observa-se afirmações no sentido de que não existem anjos, mas espíritos de seres humanos, que evoluíram. Já o esoterismo de corte hinduísta tenta provar através de testemunhos não muito convincentes que o anjo “x” ou o “y” apareceu a algum guru sensitivo, passando fluídos e energias, cujos efeitos é possível constatar através dessa ou daquela manifestação.65 M. SCHMAUS. Op. cit.66 G. TAVARD. Op. cit.67 MARRANZINI. Op. cit.

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Com os escritos teológicos cristãos a coisa é mais diferente. No presente trabalho procuramos (e as demais obras de angelologia não diferem muito quanto aos objetivos) expor a doutrina dos anjos conforme está na Bíblia e, fiel a esta, como a Igreja preconiza. Não é nossa intenção provar a existência, a utilidade e as manifestações angélicas. Por se tratar de artigo de fé, a doutrina dos anjos não precisa ser provada.

O leitor que leu até aqui notou que este é um livro de doutrina católico-cristã e, como tal, com base na fé em Deus-Pai, no seu Cristo e na revelação que chegou até nós pelas luzes do Espírito Santo. As coisas místicas e espirituais têm origem a partir da fé das pessoas. A partir do que se pode constatar algo, físico ou documentalmente, essa coisa perde seu caráter místico. Para acessar desse jeito não é mais necessária a fé, bastando os sentidos ou as ciências particulares.

A partir das exigências da nossa fé, vemos que os anjos não são apêndices celestes a vagar pelos ares, a ilustrar obras de arte renascentistas. Os anjos são entidades sobrenaturais, intimamente ligados ao projeto de Deus.

A salvação trazida por Cristo tem dimensões cósmicas e envolve também o mundo transcendental dos anjos, na grande família dos filhos de Deus 68.

Nunca é demais repetir: os anjos são uma verdade de fé! O Antigo e o Novo Testamento estão cheios de narrativas e menções que atestam a existência ativa dos anjos de Deus, que estão sempre inseridos na história do universo e no mistério da redenção.

Ah! Questionarão os céticos, eu nunca vi um anjo, como é que posso acreditar numa entidade tão sobrenatural? Ora, você consegue enxergar a eletricidade? Você já viu o amor ou o perdão? Embora invisíveis, se sente seus efeitos Será que nunca sentimos em nossas vidas o efeito da proteção ou inspiração do nosso anjo da guarda? Ou somos daqueles que creditam tudo à sorte, à capacidade ou predestinação?

A piedade cristã da Igreja, dos Santos, dos antigos Pais da Igreja e de tantos místicos (e tudo com base nas Escrituras) ensina que o anjo, enquanto contempla incessantemente a face de Deus, ajuda a humanidade em suas necessidades. A atividade dos anjos, conforme descrita na Bíblia é capaz de ensinar que a vida das criaturas de Deus deve ser composta de oração, adoração, contemplação, louvor, trabalho e ajuda desinteressada. Assim trabalham os anjos. Assim Jesus anunciou a “plataforma” do Reino no sermão da montanha (cf. Mt 5–7).

Uma outra característica da santidade dos anjos da guarda enchia de admiração Santo Tomas de Aquino e com ele muitos fundadores de institutos religiosos, como Inácio de Loyola, João Batista de La Salle e Maria Tereza Soubiran: a síntese perfeita que há nos anjos da contemplação e da ação. As intervenções na vida de seu protegido na terra não impedem, de fato, ao anjo de contemplar a Deus no céu: o anjo é contemplativo na ação e ativo na contemplação 69.

68 G. TAVARD. Op. cit.69 Una grande inquiesta... op. cit.

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O mesmo anjo que guarda os pequeninos contempla a face de Deus no céu (cf. Mt 18,10). Trabalho e adoração: ação e contemplação. Como é difícil para os cristãos estabelecerem um equilíbrio entre a ação e a contemplação! Há um anjo que guarda os pequeninos... E quem é adulto, perdeu seu anjo da guarda?

Na verdade, só quem é pequenino que é capaz de desfrutar a presença e a proteção dos anjos; não os pequeninos de pouca idade ou em tamanho, mas em gestos, em simplicidade e atitudes de vida. Jesus privilegia sobremodo esses pequeninos. Quem não se assemelhar a eles não vai entrar no Reino (cf. Mt 18,3). Ele louva o Pai porque escondeu os grandes mistérios do Reino aos sábios, homens importantes e cheios de arrogância e poder e deu a intuição dessa compreensão aos pequeninos (cf. Lc 10,21). Nos originais encontramos a palavra (népios = sem fala, criança de peito, débil) para caracterizar a humildade e a fraqueza desses pequeninos que fizeram opção por Jesus. Quem se converter e se tornar simples, se converte, do ponto de vista evangélico, em um pequenino e, por conseguinte, alguém que faz jus ao Reino. Esses se tornam crentes no mistério dos anjos. Só aos simples é revelado esse conhecimento...

Assim, vemos que o anjo existe para todos, só que muitos, por serem demasiadamente grandes, pelas riquezas, pelo saber, pela superficialidade de vida, pelo comprometimento com valores subalternos, deixam de se abrir à inspiração de seus anjos protetores.

Os anjos tentam ajudar, mas muitos estão surdos pelos ruídos do mundo e cegos pelo brilho das riquezas, do orgulho e dos sentidos em desordem e, não podendo sentir a presença da proteção angélica, passam a negar sua existência. Quem quiser se abaixar e desfrutar da companhia e proteção dos anjos tem um caminho bem simples a seguir: converter-se, despir-se das vaidades e dos falsos valores, assim como fazem as crianças. Enfim, é preciso tornar-se um pequenino.

Dizem que o homem se torna grande quando perde a vergonha e se afasta dos preconceitos e se ajoelha diante do seu Deus. Quantas vezes, no meio da tormenta , crise ou assalto das dúvidas as orações do “Santo Anjo do Senhor” ou do “Angelus” nos tem aberto as portas, indicando as soluções ou nos dado conforto. É preciso buscar esse tipo de experiência mística.

Quando éramos pequenos rezávamos, antes de dormir, a oração do “Santo Anjo”. Depois, crescemos e deixamos de orar. Hoje lemos livros de cultura técnica ou romances, assistimos televisão e não temos mais a grandeza de orar a Deus e de pedir a intercessão de nosso anjo da guarda. Quem sabe, pode começar aí o processo de nos tornarmos pequeninos outra vez?

Assim como os anjos fazem parte da grande família de Deus, e isso nos ensina o Concílio Vaticano II 70, os anjos atendendo a vontade do Pai, querem que os homens também passem a fazer parte ativa dessa grande família, cuja

70 LG 12; GS 7

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inscrição é feita através do Batismo e a Confirmação ocorre através da vivência continuada das prescrições feitas por Jesus em seu “sermão da montanha” 71.

Uma vez conformada a esses valores, a vida do crente se torna participante do mistério da graça, e a realidade dos santos e anjos assume papel de elemento associado à conversão e à perseverança. E, a partir daí, ele pode exclamar, cheio de fé e alegria, junto com a Igreja.

SIM, OS ANJOS EXISTEM!

5. A Ladainha dos Santos Anjos

Esta litania (ladainha) tem aprovação eclesiástica para uso particular a partir de algumas dioceses da Alemanha, desde 1956 72. Senhor tende piedade de nós.Cristo, tende piedade de nós.Senhor, tende piedade de nós.

Jesus Cristo, ouvi-nos.Jesus Cristo, atendei-nos.

Deus Pai, Criador dos Anjos, tende piedade de nós.Deus Filho, Senhor dos Anjos, tende piedade de nós.Deus Espírito Santo, vida dos Anjos, tende piedade de nós.Santíssima Trindade, alegria de todos os Anjos, tende piedade de nós.

Santa Maria, rogai por nós.Rainha dos Anjos, rogai por nós.

Todos os Coros dos Espíritos Celestes, rogai por nós.Santos Serafins, Anjos do Amor, rogai por nós.Santos Querubins, Anjos do Verbo, rogai por nós.Santos Tronos, Anjos da Vida, rogai por nós.Santos Anjos da Adoração, rogai por nós.Santas Dominações, rogai por nós.Santas Virtudes, rogai por nós.Santas Potestades, rogai por nós.Santos Principados, rogai por nós.Santos Arcanjos, rogai por nós.Santos Anjos, rogai por nós.São Miguel Arcanjo, rogai por nós.Vencedor de Lúcifer, rogai por nós.Anjo da fé e da humildade, rogai por nós.Anjo da Unção dos Enfermos, rogai por nós.Anjo dos moribundos, rogai por nós.

71 A respeito desse tema sugiro a leitura do meu livro “Sermão da montanha – uma proposta de vida nova”, Ed. Santuário 1992.72 Innsbruck, 3 de abril de 1956.

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Príncipe dos exércitos celestes, rogai por nós.Companheiro das almas do Purgatório, rogai por nós.São Gabriel Arcanjo, rogai por nós.Anjo da Encarnação, rogai por nós.Mensageiro fiel de Deus, rogai por nós.Anjo da esperança e da paz, rogai por nós.Protetor de todos os servos e servas de Deus, rogai por nós.Guarda do Santo Batismo, rogai por nós.Patrono dos sacerdotes, rogai por nós.São Rafael Arcanjo, rogai por nós.Anjo do Divino Amor, rogai por nós.Dominador do Espírito, rogai por nós.Anjo da cura e do alívio na dor, rogai por nós.Auxiliador nos casos de necessidade, rogai por nós.Patrono dos médicos, viajantes e peregrinos, rogai por nós.Todos os Santos Arcanjos, rogai por nós.Anjos do serviço perante o trono de Deus, rogai por nós.Anjos do serviço prestado à humanidade, rogai por nós.Santos Anjos de Guarda, rogai por nós.Auxiliadores em nossas necessidades, rogai por nós.Luz em nossas trevas, rogai por nós.Amparo em todos os perigos, rogai por nós.Admoestadores de nossas consciências, rogai por nós.Intercessores perante o trono de Deus, rogai por nós.Defensores contra o inimigo, rogai por nós.Nossos guias seguros, rogai por nós.Nossos mais fiéis amigos, rogai por nós.Nossos prudentes conselheiros, rogai por nós.Nossos modelos de obediência, rogai por nós.Consolação no abandono, rogai por nós.Espelho de humildade e pureza, rogai por nós.Anjos das nossas famílias, rogai por nós.Anjos dos nossos sacerdotes e curas de almas, rogai por nós.Anjos das nossas crianças, rogai por nós.Anjos da nossa terra e da nossa pátria, rogai por nós.Anjos da Santa Igreja, rogai por nós.Todos os Santos Anjos, rogai por nós.

Oremos

Concedei-nos Senhor, o auxílio dos vossos Anjos e Exércitos Celestes, a fim de que, por eles, sejamos preservados dos ataques de Satanás, e, pelo Precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e pela intercessão da Santíssima Virgem Maria, Rainha dos Anjos, libertos de todos os perigos, possamos servir-Vos em paz para sempre. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo. Amém!

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(Concluído em 25 de março de 1993, “Dia da Anunciação de Nossa Senhora” e do aniversário da minha filha Ana Maria).

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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

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