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Parte I ORIENTAÇÃO

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Parte I

ORIENTAÇÃO

“As armas e os barões assinalados,Que da Ocidental praia Lusitana,Por mares nunca dantes navegados,Passaram ainda além da Taprobana;Em perigos e guerras esforçados,Mais do que prometia a força humana,E entre gente remota edificaramNovo Reino, que tanto sublimaram...”

Os Lusíadas, Canto I, Primeira Estrofe. Luiz Vaz de Camões (1524-1580).

“O Espaço...A fronteira final...Estas são as viagensda nave estrelar Enterpriseem sua contínua missãode explorar novos mundos,buscar novas formas de vidae novas civilizações...Audaciosamente indoonde homem algum jamais esteve...”

Abertura dos episódios da sérieJornada nas Estrelas,produzida por Gene Roddenberry emuito popular na TV abertanas décadas de 1960 e 1970.

Capítulo 1

Visão Geral deOrientação, Cartografia

e Navegação

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Fundamentos de Orientação, Cartografia e Navegação Terrestre - Raul M. P. Friedmann

Estas quatro curtas perguntas – De onde viemos? Ondeestamos? Para onde vamos? Como iremos? – reúnem singularsimplicidade e objetividade, mas – talvez justamente por isto – podemgerar respostas muito variadas. Militares, escoteiros, excursionistas,aventureiros dos mais variados matizes, motoristas urbanos e estradeiros,guias e turistas e centenas de outros exemplos poderiam ser mencionadoscomo pessoas que precisam responder a tais perguntas nas suasatividades. Aliás, talvez fosse muito mais difícil dizer a quem nãointeressam tais perguntas e respostas...

As formas de responder a estas perguntas fazem parte da históriada humanidade. Mais do que isto, em alguns aspectos, a procura pormelhores respostas mudou os rumos da história – por exemplo, na épocadas grandes navegações, quando ao se navegar “por mares nunca dantesnavegados” novos continentes e “caminhos marítimos” foramdescobertos.

FIGURA 1.1 AS PERGUNTAS FUNDAMENTAIS DE ORIENTAÇÃO E NAVEGAÇÃO:

De onde viemos? Onde estamos ? Para onde iremos? Como iremos?

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

De onde viemos? Onde estamos? Para onde vamos? Comoiremos? Em maior ou menor grau tais perguntas são feitas – e nem sem-pre respondidas – por quase todas as pessoas em quase todos os dias.São perguntas que interessam – e influenciam diretamente – a vida depessoas de atividades tão diferentes como, por exemplo, um explorador eum carteiro. O explorador freqüentemente está em regiões que lhe sãocompletamente desconhecidas e o carteiro, por outro lado, costumapercorrer uma mesma seqüência de ruas e avenidas para entregar ascorrespondências que lhe são confiadas a cada dia de trabalho. Oexplorador precisa continuamente de novas respostas para poder ir anovos e variados lugares – onde nunca esteve anteriormente – e retornarcom segurança. Para o carteiro, que faz quase sempre um mesmo roteiro,as respostas costumam ser sempre as mesmas.

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Capítulo 1 - Visão Geral de Orientação, Cartografia e Navegação

Neste sentido da palavra, Oriente é uma definição muito simplese de fácil entendimento. A princípio, também é muito fácil de ser posta emprática: basta observar a direção do nascer-do-sol no local onde estamos.

De modo geral, qualquer observador da Antiguidade – mesmoque fosse pouco atento ou pouco curioso – perceberia que o Sol nasce“de um lado do céu” e se põe “mais ou menos do outro lado” e que taisposições variavam bastante ao longo do tempo. Em alguns destesmomentos tão distantes no tempo e na história, provavelmenteobservadores mais atentos começaram a perceber que apenas em algunspoucos dias do ano o sol se punha exatamente na direção oposta em quenascia e que estes poucos dias aconteciam somente na primavera e nooutono1. No verão, quando os dias eram mais longos, o Sol nascia maisà direita, se punha mais à esquerda e sua trajetória aparente na abóbadaceleste era mais alta. No inverno, quando os dias eram mais curtos,acontecia o contrário: o Sol nascia mais à esquerda, se punha mais àdireita e sua trajetória aparente na abóbada celeste era mais baixa, maisinclinada e próxima do horizonte. Mas, de modo geral, o Sol nascia “maisou menos de um lado do céu” – o Oriente – e se punha “mais ou menosdo outro lado” – o Ocidente.

As observações do céu noturno evidenciavam outros fenôme-nos. As constatações mais óbvias e importantes costumavam ser que asestrelas aparentemente giravam em torno de um ponto fixo no céu e quea posição deste ponto parecia ser sempre a mesma numa região.Interessantemente, a direção deste ponto estava “no meio do caminho”entre a direção do nascer e do pôr-do-sol num mesmo dia, independen-temente da época do ano.

Com o passar do tempo, estas direções notáveis foram assumin-do nomes e definições que facilitaram seu uso. Afirmar exatamente queme quando fez isto é, obviamente, impossível. Provavelmente as únicascertezas para observações que se iniciaram tão longe no tempo sejamque as direções hoje chamadas, em português, de Leste e Oeste estãorelacionadas com as direções do nascer e do pôr-do-sol1, com o Orientee o Ocidente, respectivamente. E que as direções hoje denominadas Nortee Sul estão relacionadas com o centro do movimento aparente do céunoturno e com a direção do Sol no ponto mais alto de sua trajetóriadiurna. O conjunto destas quatro direções básicas – Norte, Sul, Leste,Oeste – costuma ser chamado de pontos cardeais.

Convém observar que, de um ponto de vista estritamentetécnico, a expressão pontos cardeais seria inadequada porque pontosisolados, a princípio, descrevem posições e não direções. Porém, apesardeste fato, a expressão “pontos cardeais” se tornou a forma mais comum,sucinta e objetiva de se descrever estas quatro direções principais.

1 Convém mencionar que, numa mesma localidade, as direções do nascer e do pôr-do-sol variam bastante ao longo de um ano. O Sol somente nascerá exatamente à Leste e por-se-á exatamente à Oeste apenas nos equinócios, que acontecem nos dias 23 de setembro e 21 de março. Ver também o capítulo 8 - A Forma da Terra e o capítulo 17 - Perdido!

Algumas vezes, as pessoas fazem estas perguntas em sentidofigurado. Nestes casos, as respostas terão de ser procuradas nosdomínios da religião, da filosofia e afins. Mas, de modo geral, nossa“jornada” tratará do sentido literal de tais perguntas e repostas.

Ao longo de todo este livro, estudaremos orientação, cartografiae navegação terrestre sob muitos pontos de vista. Na maioria das vezesestudaremos com a finalidade principal de pôr estes conhecimentos emprática. Mas, conhecer um pouco da história ajuda a entender acuriosidade e os “espíritos de uso, de busca e de aventura” que semprenortearam quase todos os navegadores. E isto ajuda muito a pôr emprática tudo – muito mesmo!

Não é necessário ler os capítulos na ordem em que sãoapresentados e, para algumas aplicações práticas, nem todos eles seriam“absolutamente indispensáveis”. Mas a leitura de todos os capítulos –mesmo que fora de ordem – com toda a certeza acrescentará inúmerasnovidades e curiosidades aos navegadores mais experientes e dará umcolorido singular ao aprendizado dos recém-iniciados ou dos que estejampor começar. No prefácio declaramos que “escrevi o livro no qual gostariade ter apreendido Orientação, Cartografia e Navegação Terrestre”. E,para os leitores que não me conhecem pessoalmente, gostaria de colocarque, tanto como aluno quanto como professor, sempre acreditei que oensino deveria ser, na medida do possível, prazeroso e instigante.

E antes que os leitores “pouco ou nada experientes” saquemsuas “bússolas e GPS zero quilômetro” e se aventurem “mata adentro,morro acima e mar afora”, vou pedir que leiam e pratiquem um pouco emlugares conhecidos e seguros. E, se você for daqueles que só estãointeressados “no mínimo do mínimo”, então leia apenas o capítulo 17 –Perdido! Pelo menos você terá sido avisado, e eu estarei isento de culpa.

Retomando palavras um pouco mais formais e o tratamento naprimeira pessoa do plural, no restante do primeiro capítulo, daremos umabreve visão geral de orientação, cartografia e navegação terrestre. E nos16 capítulos que se seguem a este, abordaremos cada assunto, seusdesdobramentos e a sua relação com o contexto de forma bem detalhada.

Sendo assim, falemos um pouco sobre a palavra orientação.

A ORIGEM E O SIGNIFICADODA PALAVRA ORIENTAÇÃO

A origem da palavra orientação vem de Oriente, que significa adireção do Sol nascente, a parte do céu onde nasce o Sol.

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Fundamentos de Orientação, Cartografia e Navegação Terrestre - Raul M. P. Friedmann

UM POUCO SOBRENAVEGADORES, DIREÇÕES E POSIÇÕES

Durante séculos e milênios, as únicas fontes de informaçãoconfiáveis sobre direções – para os que se aventuravam em terras eáguas desconhecidas – foram os movimentos aparentes do Sol e dasestrelas. Se estes astros não estivessem visíveis, nem mesmo manteruma direção aproximada seria possível. Imagine-se então uma estimativaprecisa de posição...

As formas de se determinar posição, por força das circunstân-cias, eram muito vagas e imprecisas. Para os navegadores marítimos, quegeralmente se deslocavam próximos à costa, morros e montanhas notáveis,entradas de baías e outros pontos de referência de forma bem definidapoderiam indicar as proximidades de um porto seguro e conhecido, ondeseria possível, por exemplo, reabastecimento e trocas comerciais. Tambémpoderiam indicar “perigos imediatos a evitar” ou algo como “cerca demetade do caminho até Angra dos Reis3.”

2 Ver capítulo 5 - Orientação Como Prática Esportiva e Corridas de Orientação.

3 Angra é um tipo de baía ou enseada de grande abertura, característica de litoraiselevados e montanhosos como a Serra do Mar. Consta que Angra dos Reis, no Rio deJaneiro, foi assim denominada por ter sido descoberta no Dia de Reis.

FIGURA 1.2 VELEIROS NA BAÍA DE GUANABARA

Os povos que conseguiram melhor descrever estes fenômenose relacioná-los com a passagem do tempo e das estações do anodesenvolveram calendários bastante precisos, que – entre outrosbenefícios – facilitavam bastante o planejamento e o controle das ativida-des agrícolas e pecuárias. Mas, a posse destes conhecimentos tambémse revelou extremamente útil para todos os que se aventuravam a viajargrandes distâncias em território desconhecido, pois lhes permitia aomenos manter algum senso de direção na ausência de pontos notáveisno terreno.

Os dicionários costumam listar muitos significados para a palavraorientação. Os que mais se encaixam em nosso contexto costumam serdefinições do tipo “determinar uma posição ou direção em relação aospontos cardeais” e “determinar uma direção a seguir, a fim de atingirum destino específico”. De modo geral, estes significados descrevemmuito bem o que seja orientação e estão bem relacionados às perguntasbásicas apresentadas no início.

Além destes significados, a palavra orientação pode descreverum esporte bastante peculiar2, cuja atividade mais característica costumaser a corrida de orientação.

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Capítulo 1 - Visão Geral de Orientação, Cartografia e Navegação

BÚSSOLAS E DIREÇÕES

Um dos mais significativos marcos na história das navegaçõese da tecnologia foi o desenvolvimento da bússola6. Este instrumentosimplesmente revolucionou todas as formas de navegação, porquepossuía a “impressionante, misteriosa e quase inacreditável característicade apontar sempre para uma mesma direção7 ”. E, se uma direção dereferência constante podia ser obtida, outras direções poderiam serapontadas com base nesta referência. Para os que gostam de generalizaras questões-chave, poderíamos dizer que “a bússola resolveu a questãodas direções8”.

Já a questão de posição era absurdamente mais complexa de serresolvida na ausência de pontos de referência. Mas no resolver estaquestão se encontrava a chave para ir além de tudo, para conhecer suaposição em meio ao desconhecido e contar – ao menos – com algumapossibilidade de retorno. Se tal questão pudesse ser sempre resolvida,pelo menos as respostas às perguntas “Onde estamos?” e “Para ondeiremos?” seriam satisfatórias.

FIGURA 1.3.B - BÚSSOLA NÁUTICA, MODELOCLÁSSICO, MONTAGEM EM CONSOLE OU PEDESTAL.

Fonte: rule 1997 - Marine Products Catalog / Danforth

4 Nem sempre muito fiéis...

5 Linha-base é uma “linha” de referência e segurança – não necessariamente visível– que pode ser usada como auxílio à determinação aproximada de posição ou comorota de fuga. No capítulo 15 – Navegação em Vias de Acesso Precárias e Fora de Viasde Acesso, este conceito será abordado em detalhes.

6 Os capítulos 3, 4, 6 e 7 tratarão de bússolas sob muitos e variados aspectos.

7 Hoje sabemos que isto “não é exatamente verdade”, mas para todos os efeitospráticos da época parecia ser e era mais do que suficiente.

8 Esta afirmação é um evidente exagero, um notório abuso de linguagem. Mas oleitor saberá considerar apenas “o espírito da citação”.

Desenhos de morros e montanhas notáveis no litoral, associadosa uma estimativa de tempo de viagem “sob condições de vento moderado”ou informações afins poderiam ser valiosos elementos auxiliares, masgeralmente os comandantes e os pilotos das embarcações exerciam asfunções de “arquivos vivos” e “fiéis depositários4” das informações quedefiniam tanto o caminho quanto os objetivos das viagens.

Navegadores fluviais poderiam contar com pontos de referênciaem ambas as margens do rio – desde que visíveis. As próprias curvas dorio, sua largura, remansos e corredeiras também poderiam ajudar adeterminar posições e, inclusive, determinar até onde o rio seria navegávelcom um certo tipo de embarcação.

Os navegadores terrestres, na maioria das vezes, poderiam disporde maior número de pontos de referência no terreno. Se, por um lado, istoconstituía uma grande vantagem em relação aos navegadores aquáticos,por outro lado a ausência de linhas-base5 bem definidas – como a linhada costa ou as margens dos rios e lagos – era uma clara desvantagem. Emalgumas ocasiões, estradas precárias, longas cercas em ruínas, serras eextensas cadeias de montanhas poderiam servir como linhas-base simples-mente por serem suficientemente distintas de seu entorno.

Mas, sem divagar muito, a questão-chave de todos os tipos denavegação permanecia a mesma: determinar posições de forma razoavel-mente precisa era um procedimento que exigia pontos de referênciapróximos e, de preferência, de “notória visibilidade”. E em algumasocasiões nuvens baixas poderiam, por exemplo, acabar com a “notória” eem outras “a tal da visibilidade” poderia ser aniquilada pela ocorrênciade nevoeiros ou de chuvas torrenciais. Pois é....

FIGURA 1.3.A - BÚSSOLA NÁUTICA, MODELO DESOBREPOR, MONTAGEM HORIZONTAL OU VERTICAL.

Fonte: rule 1997 - Marine Products Catalog / Aqua Meter

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Fundamentos de Orientação, Cartografia e Navegação Terrestre - Raul M. P. Friedmann

ASTRONOMIA DE POSIÇÃO

Outro marco na história das navegações e da tecnologia foi odesenvolvimento da Astronomia de Posição. A astronomia de posição,como sugere seu nome, visava meramente a determinação de posição emqualquer ponto da superfície terrestre com base nas posições aparentesque o Sol, a Lua ou as estrelas – genericamente chamado de astros –ocupavam no céu.

O “marco” representado pela bússola pode ser muito melhordelimitado que o “marco” representado pela astronomia de posição.Reescrever a história provável da astronomia de posição em poucosparágrafos não é tarefa das mais simples, mas vamos tentar “um resumodo resumo”.

O “marco” da astronomia de posição pode ser dividido emalguns outros “marcos secundários” – cada um deles bastante significa-tivo. Uma vez aceito que a Terra possuía forma aproximadamente esférica,aqueles mais familiarizados com geometria sabiam que seriam necessáriosdois ângulos e duas referências fixas sobre esta esfera9 para definirposições sobre a mesma – os nomes atualmente usados para estes ângu-los são latitude e longitude e para as referências Equador e Meridianode Greenwich. Outro marco secundário poderia ser associado ao avançodos instrumentos para medição de ângulos com precisão, o quepossibilitou medir a latitude de forma igualmente precisa.

Para medir o segundo ângulo com precisão semelhante, foinecessário “o estabelecimento de outro marco secundário”: odesenvolvimento de cronômetros “de precisão” – pois longitude envolviatambém medições de tempo, coisa que não acontecia na latitude. Muitosforam os personagens envolvidos nesta saga, mas, indubitável e recoheci-damente, foi o inglês John Harrison (1693-1776) quem desenvolveu osprimeiros cronômetros marítimos confiáveis e de uso prático. Harrison,um mecânico de parca instrução formal, filho de um carpinteiro, dedicoucerca de 30 anos de sua vida ao desenvolvimento de 4 modelos sucessi-vos. Foi o seu bem sucedido esforço que possibilitou uma solução práticapara a maior questão científica do século XVIII: a determinação daslongitudes de forma confiável.

Medições precisas das posições de astros conhecidos, doinstante de tempo referente a uma observação ou do intervalo de tempoentre observações associados ao conhecimento da geometria e dasfórmulas matemáticas que descrevem estes movimentos permitiam – aosque dominavam estes conhecimentos e sabiam manejar com destreza osinstrumentos de medição – determinar sua posição na superfície terrestrede forma bastante precisa. Às vezes surpreendentemente precisa.

Mesmo numa explicação tão resumida como a que foi tentada,fica bastante evidente que “navegar com auxílio das estrelas” é muitomais difícil e muito diferente do que simplesmente “navegar olhando asestrelas”. De modo semelhante, é relativamente fácil notar que muitopoucas pessoas possuíam o conjunto de habilidades e conhecimentosnecessários à determinação de coordenadas usando astronomia deposição.

Por estes e outros motivos, até há alguns poucos anos, para agrande maioria das pessoas latitude e longitude eram assunto visto “depassagem” em algumas aulas de Geografia e algo muito próximo de –contando com o perdão antecipado do leitor pela expressão a seguir –uma “inutilidade prática”.

FIGURA 1.4 VELEIROS SOB O CÉU NOTURNO

Mas, visto por outro ponto de vista, “a astronomia de posiçãoresolveu a questão das posições e coordenadas” e permitiu a usuáriosespecializados determinar posições e navegar com base em coordenadas.Porém, por forças das circunstâncias, para a maior parte dos usuáriosinteressados em posições e coordenadas, tal recurso, por ser caro,demorado, difícil e tedioso de usar, permaneceu inacessível até muitorecentemente – as duas últimas décadas do século XX –, quando “foiestabelecido outro marco” na história da navegação e da tecnologia: ossistemas de posicionamento global, mais conhecidos pela sigla GPS –Global Positioning System.

9 Este parágrafo aborda o assunto de forma extremamente resumida e superficial.Para uma explicação mais elaborada, recomenda-se a leitura do capítulo 8 – A Formada Terra - e de livros de Astronomia Básica e de Geografia.

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Capítulo 1 - Visão Geral de Orientação, Cartografia e Navegação

GPS – SISTEMA DE POSICIONAMENTO GLOBAL

No último quarto do século XX, a partir da década de 1970, oDepartamento de Defesa dos Estados Unidos da América planejou eimplantou o sistema NAVSTAR GPS. De forma extremamente simplificadae resumida, o sistema poderia ser “descrito” como uma constelação desatélites artificiais capazes de servir como referência de posição parareceptores especiais localizados na superfície terrestre. Estes receptoressão capazes de interpretar informações recebidas de cada um dos satélites“visíveis” e calcular sua própria posição10. O sistema foi desenvolvidobasicamente com finalidades militares11, mas desde o início de suaoperação, parte de seus sinais foi disponibilizada para uso civil.

No final do século XX e início do século XXI, com apopularização do uso civil dos sistemas GPS ocorreu uma mudança semprecedentes na história: a determinação de posição na superfície terrestretornou-se um procedimento espantosamente preciso e simples, mesmopara navegadores sem nenhuma experiência ou – mais surpreendenteainda – sem nenhum conhecimento de astronomia de posição. Em palavrasmenos formais, obter as coordenadas de um ponto qualquer da superfícieterrestre tornou-se algo tão simples que a maior dificuldade de umusuário “comum” passou a ser “o que fazer com as coordenadas e asposições obtidas”. E as coordenadas e posições podiam agora ser obtidasmesmo com nevoeiro ou chuva – condições que inviabilizavam e inviabi-lizam quaisquer outros métodos, os quais, invariavelmente, exigiamvisadas através de instrumentos ópticos para a obtenção dos “dadosiniciais12”. Para navegação, as possibilidades eram óbvias e fascinantes:se as coordenadas de um posição já fossem cohecidas (e se o caminhonão oferecesse perigo), seria então possível navegar diretamente paraposições sem a já mencionada “notória visibilidade” e até mesmo paraposições “sem qualquer visibilidade”.

Os praticantes de esportes e atividades ao ar livre, fossem elasprofissionais ou de lazer, são o exemplo mais óbvio dos diretamentebeneficiados. Excursionistas e aventureiros de todos os matizes,montanhistas, navegadores, pilotos, militares de todas as Forças Armadas,“jipeiros, trilheiros, caçadores, pescadores e outros mentirosos13”começaram a se valer das espantosas facilidades proporcionadas pelouso do sistema – que do ponto de vista “deles” se resumia a usar umaparelho de tamanho semelhante a um telefone celular, com preço variandoda centena até o milhar de dólares, capaz de informar a própria posição nasuperfície terrestre com uma margem de erro típica de 10 a 15 metros14. Omesmo sistema passou a atender usuários tão distintos quanto umpescador que deseja retornar a “um poço de pesca localizado em algumlugar do Rio Araguaia” e um explorador polar que, às vezes, simplesmentenão pode visualizar a estação que está distante dele apenas algumasdezenas ou centenas de metros, por estar momentaneamente numwhiteout15.

Nos últimos anos do século XX, um interessante “efeitocolateral” da popularização do sistema GPS foi a renovação do interessepor mapas – mais particularmente, por cartas topográficas, cartas náuticase aeronátucias providas de coordenadas. Ao mesmo tempo, aumentousubitamente o interesse por fotografias aéreas, ortofotocartas, imagensorbitais georreferenciadas16 e produtos afins. Isto acontece, enre outrosmotivos, porque as coordenadas estabelecem um vínculo inequívoco entreposições no terreno e suas correspondentes representações nos mapas– sejam eles cartas topográficas, cartas náuticas ou quaisquer outrasformas de representação do terreno e das águas.

Nos primeiros anos do século XXI, o desenvolvimento e a popu-larização de programas como o Google Earth e outros assemelhadostornaram possível a usuários da internet navegar virtualmente por quasequalquer ponto da superfície terrestre, escolher pontos de vista, observarseu entorno numa escala conveniente e determinar suas coordenadas. E,se as coordenadas de uma posição estão disponíveis, de alguma maneiraé possível “colocá-las dentro de um GPS” e usá-lo para navegar até acorrespondente posição.

10 Esta brevíssima explicação também é “um resumo do resumo”. Para uma explicaçãoum pouco melhor, ver o capítulo 11 – Introdução ao Sistema NAVSTAR GPS.

11 Basicamente controle de posição de embarcações, aeronaves, veículos terrestres,direcionamento de mísseis, bombas inteligentes e artefatos teleguiados. Odesenvolvimento de receptores GPS portáteis também permitiu que combatentesindividuais ou grupos de combatentes controlassem suas posições e horários deforma espantosamente precisa, facilitando a coordenação de missões e operaçõesespeciais. A operação Tempestade no Deserto, na Guerra do Golfo, em 1991, podeser considerada o “marco inicial” deste tipo de uso.

12 Este é um aspecto pouco lembrado pelos que usaram apenas GPS e desconhecemquaisquer outros métodos de obtenção de coordenadas e posições. Estes métodosforneciam apenas os “dados iniciais”,também que precisavam de “processamentosdiversos” e de “outros dados auxiliares” para gerar a informação “de saída” - umaposição. O sistema GPS possibilitou aos usuários o acesso direto e emtempo real à informação de posição.

13 Sem nenhuma ofensa a qualquer participante destes grupos, entre os quais estamospessoal e parcialmente incluídos. Por serem basicamente grupos de lazer, em que atéos notórios exageros e o “bate-boca” fazem parte da diversão e do “ambiente”,

acabaram por gerar expressões idiomáticas na linha de “histórias de pescador” eoutras “pérolas da baixaria”...

14 Isto após maio de 2000, quando foi autorizada a interrupção do recurso dedisponibilidade seletiva (S/A), que reduzia artificialmente a precisão do sistema paracerca de 100 metros, no caso dos usuários “comuns”. Para maiores detalhes, ver ocapítulo 11 – Introdução ao Sistema NAVSTAR GPS.

15 Um whiteout é um “blackout ao contrário”. O observador tem a sensação deestar imerso em luz. Pode acontecer, por exemplo, sob uma névoa densamenteiluminada. Este é dos motivos pelos quais os exploradores polares e freqüentadoresde regiões onde a neve e o gelo são fenômemos comuns necessitam dispor de óculoscom alto grau de escurecimento.

16 Imagens obtidas por satélites que, por processos diversos, contém informações deposição relativas à área imageada.

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Fundamentos de Orientação, Cartografia e Navegação Terrestre - Raul M. P. Friedmann

FIGURA 1.5 RECEPTOR GPSMARCA GARMIN, MODELO ETREX

O receptor está em tamanho natural. A linha etrex é formadapor aparelhos que se encaixam com naturalidade

na palma da mão e podem ser facilmente operadoscom apenas uma das mãos do usuário.

UM POUCO SOBRE CARTOGRAFIA

Em geral, estamos tão familiarizados com mapas dos maisvariados tipos que raramente iremos nos lembrar quando foi que vimoscada tipo de mapa pela primeira vez. Recorremos a mapas de arruamentode uma cidade para localizar endereços, a mapas rodoviários para conferiras rodovias que nos levarão a uma cidade qualquer, a mapas turísticospara planejarmos nossas férias ou feriados e por aí vai.

Tão variados são os tipos de mapas, suas aplicações e as técnicasenvolvidas em sua produção, que a organização formal destesconhecimentos resultou numa ciência denominada cartografia - oumelhor, uma combinação de arte, técnica e ciência.

Alguns tipos de mapa são de especial interesse para a navegaçãoterrestre e para a navegação em águas abrigadas: as cartas topográficase as cartas náuticas – principalmente as cartas náuticas de baías, nestecaso. A quantidade de informações contidas nestes tipos de mapa é algoimpressionante: vias de acesso (por exemplo, estradas de diversos tipos,caminhos, trilhas e canais de navegação), hidrografia, relevo, profundi-dades, cobertura vegetal e elementos notáveis do terreno – tanto osnaturais quanto os artificiais – são as principais, embora não as únicas.E tais informações são “a chave” para irmos além dos caminhos que nossão conhecidos com a confiança de podermos definir os caminhos e osdestinos de nossas navegações. Definitivamente, não é pouca coisa!

No capítulo 9, Fundamentos de Cartografia, e no capítulo 16,Um Pouco Mais Sobre Cartografia, estudaremos em detalhes a “leitura”,interpretação e o uso das informações contidas nas cartas topográficas,cartas náuticas e afins.

Convém ainda observar que o uso de um receptor GPS podeinformar com precisão nossas coordenadas em tempo real e, de possedestas informações, podemos verificar nas cartas topográficas e nascartas náuticas qual é, efetivamente, nossa posição atual. Isto mesmo emcondições de visibilidade bastante precária ou nula.

O uso combinado de bússolas e cartas permite grandesfacilidades de navegação, desde que seja possível uma estimativaaproximada de nossa posição atual. Inclusive, sob boas condições devisibilidade, o uso de uma bússola pode nos auxiliar a determinar nossaposição nas cartas de forma bastante simples e precisa. Mas deixemosisto para mais adiante, no capítulo 3 – Bússolas: Construção,Funcionamento e Técnicas Básicas de Uso.

Mas, e quando não existiam mapas, cartas topográficas e cartasnáuticas? E quando existem, mas não estão disponíveis?

Os grandes exploradores e aventureiros sempre lidaram comquestões de orientação e navegação terrestre. Não lidavam muito comcartografia porque para tais pioneiros simplesmente não existiam mapas.Muitos dos caminhos assim descobertos foram verdadeiras odisséiascomerciais e militares e o segredo associado a elas – freqüentementesegredos de Estado – na maioria das vezes restringia o conhecimento docaminho completo a um número muito pequeno de indivíduos.

À medida que se tornava necessário repassar o conhecimentodo caminho para maior número de pessoas, surgia a necessidade deorganizar os roteiros de uma forma mais inteligível.

FIGURA 1.6 REPRODUÇÃO PARCIAL DO MAPA NEW CHART OF THE COAST OF BRAZIL (1824)

Reprodução parcial do mapa New Chart of the Coast of Brazil from Cape Frio to River Plate, drawn from surveys made by order of theportuguese goverment, London, R. Blachford & Co., Navigation Warehouse & Naval Academy. Mapoteca do Serviço de Documenta-ção da Marinha (A.912.815 A-VII-1824-L266). Nova Carta da Costa do Brasil do Cabo Frio até o Rio da Prata, desenhada a partir delevantamento efetuados por ordem do governo português, Londres, R. Blachford & Co., Armazém de Navegação e AcademiaNaval. Este documento inglês, datado de 1824, incluía detalhamentos das principais baías das regiões por ele cobertas, inclusive comlevantamentos batimétricos (de profundidade). A parcela do mapa acima apresentada abrange a região da Ilha do Mel (Island do Mel),entrada da Baía de Paranaguá (Bay of Paranguá) e imediações. Reprodução a partir da página 29 do livro Baía de Paranaguá, Mapas eHistórias, de autoria de Carlos Roberto Soares e Paulo da Cunha Lana, Editora UFPR, com a devida permissão. Para leitores maisdetalhistas e cinéfilos, fica uma curiosidade: este mapa aparece numa das cenas iniciais do filme Mestres dos Mares - O Lado MaisDistante do Mundo, na qual o capitão Jack Aubrey (intrepretado pelo ator Russel Crowe), comandante do navio H.M.S. Surprise, o usa paraestudar uma de suas rotas. Para os mais afeitos à hidronavegação e à cartografia, fica a sugestão de compará-lo com cartas náuticas,cartas topográficas e imagens de satélite atuais - onde são claramente visíveis os grandes bancos de areia da região. No CD que acompanhaeste livro, existe um diretório específico com diversos materiais relacionados à Ilha do Mel. A latitude 25°30’S e a longitude 48°20’W sãoboas coordenadas para iniciar uma procura em programas como o Google Earth® ou o GPS TrackMaker®.

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Fundamentos de Orientação, Cartografia e Navegação Terrestre - Raul M. P. Friedmann

O instrutor conta com os benefícios da interação que somente apresença dos alunos e o estar num terreno favorável ao aprendizadopodem proporcionar. Se algum leitor acha que não, pense no fato de quevocê aprendeu a falar “interagindo com seus instrutores e seu ambiente”– e muito antes de poder estudar formalmente ou entender oratória,gramática e “assuntos correlatos”. Mas, por outro lado, o estudo e aorganização destes e outros conhecimentos certamente lhe permite falarcom maior correção, desenvoltura e elegância. E organizá-los paraapresentação num livro desenvolvido com finalidade de ensinar podeampliar enormemente o número de alunos e, também, permitir que cadaum deles estude de acordo com sua própria disponibilidade de tempo esua velocidade de aprendizado.

Como não poderei contar com o benefício de interagir com amaioria dos leitores deste livro, empreendemos nossos melhores esforçosem produzir um texto que fosse de agradável leitura e fácil entendimento,que contemplasse tanto as informações “absolutamente indispensáveisao entendimento” quanto aquelas capazes de servir como “regraspráticas, esclarecimentos e curiosidades adicionais”. Convém lembrarque, à semelhança do falar, orientação e navegação em qualquer formasão assuntos cujo aprendizado envolve, obrigatoriamente, o ato depraticar. E isto terá de ficar a seu encargo.

Uma das maiores dificuldades no ensino e no aprendizado deassuntos muito abrangentes é a escolha de uma abordagem inicialadequada e a organização de alguns conceitos básicos – em outraspalavras, lançar os fundamentos. Bem lançados os fundamentos, orestante do processo flui com mais naturalidade e podemos visualizarmelhor tanto o contexto quanto aspectos mais específicos. Orientação,cartografia e navegação em qualquer forma são, por natureza, assuntosabrangentes e intimamente relacionados entre si – aliás, em muitoscasos é simplesmente impossível desvincular completamente um do outro.Por exemplo, mapas são feitos para facilitar as navegações, para que aspessoas se orientem melhor.

Se formos estender nossas considerações além disto,começaremos a “andar em círculos” e não chegaremos a lugar nenhum.Sendo assim, sugiro que o leitor “navegue” diretamente para algumcapítulo que lhe pareça mais atraente no momento ou que aceite meuconvite a trilhar o caminho sugerido. Seja lá como for, espero que ao finaldo livro, você seja capaz de navegar “por mares nunca dantesnavegados”, passar além de sua “fronteira final” ou simplesmente“percorrer antigos caminhos” com segurança e desenvoltura.

Boa jornada e até breve!

17 A expressão “em tempo real” se popularizou junto com a informática. Significa originalmente “o processamento de informações para uso imediato” e se caracteriza pelapronta disponibilidade das informações “de entrada” e, “ao mesmo tempo ou imediatamente após”, das “correspondentes informações de saída”. A título de curiosidade, adefinição mais correta de sistemas em tempo real, tecnicamente falando, envolve um limite específico de tempo para o processamento de uma tarefa.

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Elaborar roteiros desta natureza adequadamente facilitaria novasviagens dos mesmos navegadores e poderia também permitir que outrosinteressados e envolvidos pudessem efetuar a mesma viagem com acerteza de “estar no caminho correto”. Desta forma, mesmo na ausênciados que organizaram o roteiro, seria possível atingir o destino previsto e,posteriormente, retornar ao ponto de partida.

Elaborar mapas é comparativamente muito mais difícil queelaborar um roteiro ou uma planilha de navegação, pois exige representar,de alguma forma, tanto “o caminho” quanto “as proximidades” e, depreferência, “tudo que estiver ao redor e ainda mais além”. Justamentepor representar muito mais que “apenas o caminho desejado”, os mapaspermitem a escolha de outros caminhos, o conhecimento da posiçãoatual e a navegação para novos destinos, diferentes do originalmenteplanejado.

Este é o fundamento e o “espírito” da elaboração e do uso demapas. Tudo isto aconteceu em inúmeros momentos da história, emcontextos muito diferentes e, sem dúvida alguma, com grande variedadenos resultados obtidos. Nos capítulos 9 e 16, já mencionados, daremosalgumas “breves pinceladas” relativas à história dos mapas, embora ofoco destes capítulos seja seu uso. E veremos algo muito interessante:conhecer e saber usar mapas nos facilita as navegações mesmo quandonão há mapas disponíveis.

Agora que as palavras orientação, cartografia e navegação jáse encontram mais bem definidas, falemos um pouco das relações queelas guardam entre si e de como utilizamos tudo isto na prática, quando“tudo acontece ao mesmo tempo - em tempo real17”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quase todos lidam com orientação, cartografia e navegaçãoterrestre desde muito cedo – e com todos estes assuntos ao mesmotempo – embora, na maioria das vezes, sem se dar conta deste fato ou,com o perdão da expressão, sem “dar nome aos bois”.

Como todos os assuntos muito abrangentes, navegar no terreno,usar mapas e se orientar são atividades que, a princípio, são mais fáceisde serem apreendidas e praticadas de forma interativa do que ensinadassem a presença de um instrutor.