obrascompletas teixeira de pascoaes

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OBRAS COMPLET

9^

minhai

air

sempreproiBl

A

Livraria a

Bcrtr.md orgulha-se

em

apresentarfilsofo e

obra

do grande poeta,

mestre do

saudosismo

Teixeira

de

Pascoaes,critica,

numaProf.

edio

parcialmentelizada pelo

concebida e reaJacinto do

eminente

Prado Coelho,

com

inexcedivei

com-

petncia e erudio.

A

vastido da obra e dos temas, ae, s

amplido

vezes, a dificuldade

t'o

pensamento dumaprofundado,penetraopsicolgica

dos maiores poetas

da nossa lingua, requeriam

um

estudoe

um dom

de

anlise

bem como umaintima

intuio

que permitissem apreender,realidade,

na

sua

mais

tanto

as linhas mestras da personalidade

doj

autor de Regresso ao Parasoflutuaes

como

duma

sensibilidade vibrtil

e riqussima.

TudoCoelho,

ISSO

conseguiu, deJacinto

um mododo PradoPrefacio

admirvel,

o Prof.

que analisou,

num

notvel etica

com a humildade da autncompreenso, o extraordinriocomo ningum o esplendore a

poeta que, possudo do Verbo, soubeexprimir

da Natureza, a nostalgia fundamental

do

Homem

atraco do

Infinito.

OS EDITORES

Lrico, Teixeira

de Pascoaes cantaestados

ingenuamente

impresses,

de alma, coisas imaginrias: os lugares santos

da infncia,

a

montanha,

a

fonte...

a

nvoa que sobe dose

rio...

o

amor que

estende

Naturezae

inteira.

Dissolve o

mundo em almaol'

melodia... Por temperamento

voca-

Obras Completasde

Teixeira de Pascoaes

Obras Completasde

Teixeira de PascoaesPOESIAIntroduo e aparatocrtico

por

Jacinto do Prado Coelho

I

volume

LIVRARIA BERTRAND

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INTRODUO

AS ORIGENS: A INFNCIA E A

MONTANHAfui

Hei saudades de mim, doutro quelA

menino!

Minha Alma)

Criado em altos sitias de granito. Na vizinhana agreste do Infinito(A

Minha Histria, in Terra Proibida)

Se houve homem preso a vida inteira s recordaes da infncia e, o que mais, ao estado de graa infantil, esse homem chama-se Teixeira de Pascoaes. infncia significa para ele a vida pura, a eterna promessa que sempre o acompanhou, em luta vitoriosa com a morte. A infncia uma nuvem, como a velhice uma pedra: nuvem que abrange tudo, pedra que tudo restringe sua forma dura e recorpoesia, para tada [Livro de Memrias, p. 51), Teixeira de Pascoaes, a infncia recuperada, o Paraso, o sonho reconquistados. Dele poderamos dizer o que Albert Bguin escreveu a respeito do romntico Jean Paul: Mais que por qualquer razo, Jean Paul amou o sonho porque o transportava s regies da infncia; o regresso candura deslumbrada da primeira idade ficou sendo a sua resposta preferida s ansiedades do homem amadurecido. minuto em que nascera para a conscincia fora para ele a entrada na esfera do dualismo, onde habita

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ameaa da morte. Mas, enamorado de unidade

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inocncia, saudoso do tempo em que o mundo era infinito, cultivou todos os meios que permitissem restituir-lhe horizontes sem limites, banhados por uma luz pura (UAvie Romantique et le Rve, ed. 1956, p. 191). J no final da existncia, nos Versos Pobres (1949), ao descrever-se como alma penada entregue s tempestades, Pascoaes acrescenta: sobre ela, esvoaa / Vaga cano, toda fluidez, distncia, / Etrea graa, / minha infn-

A

apenas um passado que se recorda, mas um presente que ressurge, dilatado, intangvel, como algo fora do tempo; o que nunca morre, o contrrio da morte. Nasci ao pr-do-Sol dum dia de Novembro. / / O meu bero o crepsculo embalou... (A Minha Histria, in Terra Proibida). Foi em Amarante, a 2 de Novembro de 1877, dia de Finados, quando os sinos soluam badaladas. Circunstncia que serviria a Pascoaes para determinar liricamente a causa remota da sua melancolia. A infncia decorreu-lhe no solar de Pascoaes, em Gato, a trs quilmetros de Amarante, em plena serra verdejante, virada ao Marozinho. De seu nome Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, pertencia a famlia nobre e abastada. O pai, Joo Pereira Teixeira de Vasconcelos, foi deputado, par do Reino, presidente da Cmara Municipal de Amarante, governador civil de Viseu e do Porto. Faleceu em 1922. Casara em 1875 com D. Carlota Guedes Monteiro, que lhe dera sete filhos: Antnio (1876-78), Joaquim, o futuro poeta, Miquelina Rosa, outro Antnio (1880-1903), Maria da Glria, que tambm havia de cultivar a poesia, Joo, que seria caador de elefantes e escritor, finalmente lvaro. D. Carlota s havia de morrer em 1952, onze meses antes de Teixeira de Pascoaes; assim o poeta, que muito a amava, pde sentir-se um eterno menino. O homem escreveu nunca sai das entranhascia...

(poema

XXXV). No

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maternas, a no ser para o tmulo {So Paulo, Quando a Me o precedeu, h alguns meses, P- 39) testemuele gritou: uni mundo que se acahalv nha a sobrinha Maria Jos, filha de D. Miquelina, pouco depois da morte do poeta (in Vrtice, n. 115, Maro de 1953). A Casa, ura dos cenrios da sua infncia mtica, ora reaparece, tal como foi, na mente do poeta, ora, pelo contraste entre o passado e o presente, porque o presente de velhice e abandono (durante os anos em que ficou desabitada, aps a morte dos avs) apenas alude ao que findou, destila a tristeza de se viver no tempo, como presa da morte. De qualquer modo, plo de atraco: esto l os objectos familiares de outrora, vagueiam l as sombras dos pais e dos avs. O poeta tem na Casa as suas razes; descrev-la retomar posse do mais ntimo de si. No se cansa de evocar, de invocar: a mesa velhinha com uma jarra que, em outro tempo, teve flores; o piano velhinho, num silncio de notas misteriosas; as tbuas carunchosas do sobrado; antigos canaps e cadeiras de pau-preto ( Onde julgo ainda ver, sentadas, conversando, / Criaturas que a Morte foi levando / E que hoje so, na terra, ossadas de esqueleto!); um velho armrio, uma chaleira de estanho, uma negra preguiceira, onde a av fiava na roca, a um canto da lareira, uma candeia de azeite em sncopes de luz... Tudo tornado venervel, digno de religiosa contemplao. E no esquece as imagens da capela ( antigas esculturas / De Santos a quem j rezaram meus avs) (Velhinhas Cousas, in Terra Proibida). Arrancando ao limbo esse mundo o mundo j irreal da sua infncia, do seu Gnesis Pascoaes integra-se no todo a que pertence. Voltando Casa, obedece a uma lei inelutvel. Ali envelhece, renasce e canta: Nesta casa de mstico abandono, / Vivo como se fosse o prprio Outono {Cantos Indecisos, XII). E, aps a morte, a exem

,

II

TEIXEIRA DEpio dos

PA SCO

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pais e dos avs, ali errar em espectro: casa, depois da minha morte vaguearei nos teus corredores, nas tuas salas, quando a sombra e o silncio invadem tudo... / Debruar-me-ei, nas tuas janelas, abertas sem rudo, vendo o luar encoberto

a velha

das horas mortas. Vaguearei no teu jardim; e, entre as sombras das rvores, serei uma sombra a mais... {Verbo Escuro, p. 79). O cenrio da infncia alarga-se: em torno da Casa o jardim, a quinta, o campo, a serra, tudo solidrio na memria do poeta. Uma das fontes, a do Anjo e do Fauno, junto escadaria de entrada, havia de sugerir a Pascoaes a aliana do Cristianismo e do Paganismo, Jesus e P. Outra, a dos Golfinhos, no jardim, dar-lhe-ia ao secar um dos seus grandes desgostos, inspirando-lhe versos magoados. aE vejo a antiga fonte: os dois golfinhos / E o nicho donde santo contemplava os passarinhos / outrora / Voando, flor da aurora [...] uX^ejo a nossa / ramada, ao longo do quintal: / Claustro de folhas mortas, a cair... (Quinta da Paz, in Sempre). A av, o av so figuras tutelares da idade maravilhosa que se esfuma na distncia dos anos: E vejo minha Av atarefada / desde o corar do dia; e vejo-a, noite, / ante uma cruz de Cristo ajoelhada [...] E vejo meu Av que era a candura / de minha Av mudada em fortaleza. / Homem simples e forte que nasceu / na mais simples e forte natureza / de serra austera e grave... (A Sombra do Passado, in As Sombras). J de cabelos brancos, o poeta sente a estranha volpia de vaguear com as sombras dos avs pelos corredores da Casa, tornado, ele prprio, quase irreal tambm. De velhos retratos a leo, na penumbra das paredes, desprende-se um sorriso, uma atitude de alma; o poeta, por sua vez, olha-os e sorri, pois tambm ele no passa de aparncia, mau retrato de si mesmo, onde cintila, s vezes, uma luzinha de mistrio uma apario.

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Desde menino conviveu com a gente humilde do campo, recebendo uma dupla lio: a do valor da humildade e a do portuguesismo que est na origem da Arte de ser portugus. Os criados contavam-lhe histrias de bruxedos, casos terrveis de ladres e o medo, que seria um dos temas da sua poesia, instalou-se-lhe na alma. Se Garrett teve uma Brgida para lhe abrir as portas da imaginao popular, a Pascoaes no faltou uma Lucrcia a criada que muitas vezes lembra no Livro de Memrias, baixa e magra, de olhos negros e sumidos, duas repas sujas de cabelo que nunca lhe embranqueceram. Enquanto fiava na roca, lareira, contava histrias de defuntos. Os reflexos das labaredas avermelhavam-lhe as mas do rosto; as cinzas empoavam-lhe o cabelo. Parecia um vulto dantesco, a prpria alma dos montes ensombrados. Ouo-lhe a voz nocturna, a esboar fantsticas cenas e personagens, no fumo torvo da lareira. A sua voz cristalizava em espectros vivos que me ficaram na memria [...] A tua voz, Lucrcia Ouo-a, como vejo o teu corpo de ningum, pouco mais que a tua blusa e as tuas saias do mesmo pano escuro, roubado s trevas (obra cit., p. 38). Outros criados a Eusbia, a Rosa, o Antnio perpassam em Quinta da Paz Ouo contos de bruxedos; / De alminlias a sofrer na solido: / / O imaginar do Povo, a luz do Medo, / Que, em mim, se fez nocturna inspirao... / E vejo o antigo criado, o padre Antnio / Que falava das bruxas, do demnio, / Dos franceses (terrveis pesadelos!) / E connosco brincava {Sempre, p. 51). As invases francesas, a resistncia herica na ponte de Amarante, ainda estavam vivas na memria do povo. Assim, o interesse de Pascoaes pela figura de Napoleo data dos tempos da meninice. Loison, o maneta, percorre Entre-Douro-e-Minho e incendeia Amarante (13 de Maio de 1809), que lhe resistiu, mas foi queimada. Das suas casas ficaram as

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paredes denegridasp {Napoleo, p. 219). oEram aquelas barretinas enormes das gravuras, que eu avistava, no horizonte da Abobreira, em criana, mal as criadas gritavam: Meninos, no faam barulho, que vm a os Franceses !j> {ibidem, p. 247). Numa carta ntima, indita, a L.D., de 25 de Junho de 1909, Pascoaes regista tradies familiares ligadas s invases francesas: Quando foi da guerra dos Franceses, meu Bisav paterno era comandante dos Drages de Chaves, e viu do alto da serra do Maro a sua casa arder Tinha sido incendiada pelos Franceses, assim como quase toda a Vila. De nossa casa s escapou das chamas a capela; e os Santos que nela ainda existem ainda esto cobertos de golpes de espadas e baionetas, feitos pelos soldados de Napoleo. Esta nossa casa, que os Franceses incendiaram, fica a trs quilmetros da vila de Amarante... Quer dizer: a figura de Napoleo pairava no prprio solar de Pascoaes, pelos estigmas deixados pelas inva!

ses.

Muitas vezes, em verso e prosa, o escritor evoca os perfis de pessoas da terra seres grotescos e trgicos, obscuros e todavia espantosos, mticos, que ho-de povoar a novela O Empecido. Vemo-los desfilar em Quinta da Paz, como no Bailado, como

no Livro de Memrias: a Couta, mendiga centencurvada sob os anos e a sacola; a Baroa, que fora rica e feliz, de boa educao, e cara na pobreza, e andava de porta em porta, com o brevirio e um guarda-chuva nas mos defuntas deria,

viva, e sabia deitar cartas e ler a sina; o Cipriano, doido e cego, que vadiava s pelos caminhos, falando alto, de cabelo desgrenhado e solto ao vento (Que medo me fazia!); a Doida, que julgava descobrir em todas as crianas os filhos que perdera; o Davim, alto e magro, taciturno, / Ampla fronte imaginosa, que, noite fora, cantava por ermos caminhos (aj sob la meia-noite / Meia hora tinha dado...);

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o Nozes,

com o chino na cabea e um remorso entranhado na alma, gritando pelos montes, chuva e ao frio: Matei! Que importa? Ningum viu!; a Isabel do Pedreiro, oa deitar sangue pela boca,

rodeada de criancinhas enfezadas e amarelas, feitas de cera suja; o abade de Gato, Jos Guilherme, que dava tudo aos pobres e se alimentava de caf (por desleixo filosfico, metia na terceira casa o primeiro boto da sobrecasaca, mais velha do que o tempo), etc, etc. Seres que ficaram intactos, imveis, no esprito do poeta, com aquela vida imaterial e por assim dizer imune s injrias do tempo que a vida autntica, diria Pasa vida da recordao coaes. Esse mundo da infncia vale, para ele, o Uni-

verso inteiro.

Tambm refere os trabalhos do campo e as festas que assistiu desde criana: as amalhas entoando, as aroas do mato, as segas, as esfolhadas, o So Miguel das vindimas (A Minha Aldeia, in Sempre, p. 2i); e o Entrudo, e a Semana da Paixo, com a procisso na vila, noite, os pobres penia

de tnica branca, sob os andores; e, em fiis que batem de porta em porta (p. 28) e o Natal, e os Reis, com a msica das festadas, os cnticos das raparigas ao Deus-Menino: E um canto repentino / Ouve-se, agora mesmo, nossa porta: / So chegados os trs Reis / lapinha de Belm... (p. 29). Assim pde conhecer na intimidade a gente rstica de Portugal, sabedoria, modo de sentir e costumes, onde se enlaam uma alegria pag e uma f crist o claro-escuro da Saudade, tal como Pascoaes viria a defini-la. E viveu os seus dramas, condoeu-se da sua pobreza: pobres camponeses, / Durante os negros meses! [...] faltas de trabalho! Inverno! Isolamento! (p. 19). Mais tarde, em A Era Lusada, havia de proclamar: Sinto perfeitamente que, se alguma coisa h de portugus na minha obra potica, foi portentes,

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DE(p. 45).

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anos da minha infncia no De facto, embora de sentido universal, a sua concepo do Mundo mergulha as razes na terra-me, na aldeia e seu cona serra do Maro, o vale do Tmega. torno Eram muitas as visitas da Casa: entre elas oas primas de Pinheiro, os Falces de Paredes, as meninas de Meios, a Viscondessa de Tardinhade, a D. Balbina de Belmonte, senhoras de aldeia, muito exticas de vesturio e penteado {Livro de Memrias, p. 57). Danavam danas de roda, na sala de visitas, enquanto meu tio Jacinto tocava, no piano, uma velha msica sentimental e antiquada. Era um homem gordo, de bigodes negros e fartos, com uma flor ao peito, salpicada de rap uma flor que nasceu na Primavera de 1885 e no murchou ainda (ibidem). s vezes, Joaquim ia com o av a caminho do Outeiro, a casa onde a me vivera antes de casar, e habitada agora por uma remota D. Eusbia, com um pente de tartaruga na cabea e um vu de seda negra (p. 113) ou visitava a casa de Meios, a casa de Paredes ou a casa de Tardinhade: L est a casa de Tardinhade, o terreiro, a velha olaia, porta, e a cumeeira a recortar-se num fundo violeta, ondulado e empedernido. volta, pinheiros e penedos: tmulos e ciprestes. Dentro, o Visconde, trmulo e encanecido, um filho idiota, o espectro duma filha com sete anos, e a Viscondessa, entre o demnio da loucura e o anjo da saudade (p. 71). Pegou-se-lhe para sempre o misto de espanto e de terror que lhe causou o espectculo da Viscondessa, com um riso de loucura, e do filho idiota, aos uivos. O encontro arrepiante com os abismos doter vivido os primeiros

meio dos camponeses

;

Em

inconsciente...

Onele,

ambiente da Casa e da aldeia cedo despertou ou contribuiu para despertar, o instinto relinoite, rezava o tero lareira, com os avs. tarde, j falecido o av paterno, ia com a av

gioso.

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com um vu de seda preta, de aenorme gravata multicolor num grande babeiro engomado (p. 157). Na Quaresma, no monte mais alto das cercanias, oapregoavam as almas do Senhor; e assim lanavam o sacro horror pelas humildes choupanas: E assim pregais, fiis, na soledade, / Toda abafada em erma escuridade: / / Alerta! A morte certa! A essa hora, em todos os lares se rezavam oraes (Os Montes, in Sempre). J o poeta-mcnino queria desvendar o mistrio das coisas; fazia perguntas ao Visconde de Tardinhade sobre a existncia de Deus e a criao do Mundo (Livro de Memrias, pp. 70-71), Acharia a resposta, anos depois, no grande livro que havia de alimentar a sua imaginao: Comecei a ler a Bblia, nessa poca, um livro encadernado de velho, com dedadas de esqueleto nas folhas rodas do caruncho. Lia-o, em voz alta, medroso e encantado, porque, em volta de mim, surgiam fantasmas para ouvir... Ado e Eva, Caim e Abel, Moiss com dois chifres na cabea, a moreninha dos Cnticos, David, Salomo, Judite, Rebeca, Jac e o seu sonho enchendo de asas brancas o Infinito, e a rainha de Sab, remota princesa da noite, constelada de pedrarias... E a imagem de Cristo a aparecer nos horizontes de Roma, como o anjo do extermnio? E as epstolas de Paulo? E Joo, na ilha de Patmos? (p. 109) Para o futuro poeta-pensador, embora cristo heterodoxo, a Bblia havia de constituir uma fonte constante de sugeste.*: ideias, imagens, dogmas que o poeta transformar em mitos. E j se adivinha como, no Pascoaes dos verdes anos, nasceu o interesse por So Paulo, de que seria, no outono da vida, o bigrafo-exegeta. Logo de muito pequeno revelou Joaquim um feitio estranho, inclinado ao isolamento esprito diria ele acanhado e concentrado, amante da solido que me criou. Vagueava pelos montes, sozinho, maravilhado por cada nova descoberta. Ele prprio o missa de domingo, elaele.

TEIXEIRA

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havia de lembrar, nos versos de A Minha Histria (in Terra Proibida): Fui criana que cisma e brinca pelos montes [...] E entre as outras crianas me encontrava, / Triste, silencioso; e tinha medo / / Das sombras do arvoredo... Ou, na prosa do Livro de Memrias: Vivia abstrado nas minhas mgoas e alegrias, e entretido nos meus brinquedos, como um pequenino Deus a fazer pequeninos mundos e a deit-los a voar, por uma palheira molhada em gua de sabo [...] Brincando, realizava, de algum modo, os meus devaneios infantis: lembranas inconscientes duma existncia divina (p. 49). Divertia-se com um burrito que lhe sofria, paciente, as picardias: E o meu jerico de criana? L est, com as ilhargas em sangue e a cabea entre as pernas, estacando! (Livro de Memrias, p. 36). E o jumentinho dos meus tempos de criana / / Vejo-te ainda, em corpo de lembrana, / Teimoso, orelhas longas a abanar... / Olhos que tinham dentro a dor, pasmada, a olhar... [Sempre, p. 54). Aprendeu a am-lo, com uma ternura que se estendeu, franciscanamente, a todas as criaturas, e de preferncia s mais desprezadas, s mais humildes. O jumento seria um dos motivos da sua poesia, como da prosa potica de Verbo Escuro (Da Alegria e da Tristeza): Que melancolia o envolve e sobrepassa, de cadas orelhas longas, profundos olhos abismticos... pobre animal, trotando ao longo da Via Dolorosa... Algumas vezes foi com a famlia a Rio Bom, perto da Rgua, onde vivia um tio, irmo do av paterno o sr. padre Joaquim de Rio Bt. E dali foi quinta da Corredoura, e viu, surpreso, pela primeira vez, uma lpide de mrmore, erigida sobre o tmulo dum co. Percebi, nesse instante revelador, outras almas, no Mundo, alm de ns {A Beira (num Relmpago), p. 165). No mundo da sua poe!

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tudo teria airaa: os animais, as plantas, as

pedras.

Se no Chico Nozes assassino descobriu Caim, a maldade humana, ele prprio ter sentido o primeiro remorso quando, ainda criana, roubou dois melros: aNuma tarde da minha infncia, roubei dum ninhodois melros, j vestidos de negras penas, tentando imprimir, no ar, o remoto voo herdado [...] Pouco depois do crime, senti, perto de mim, um bater de asas aflito. Era a me voando em socorro dos filhos [...] Ainda hoje sinto pairar em mim aquelas negras

(oPrimeiro Remorso, in Verbo asas aflitas! Escuro) Todavia da obra de Pascoaes estar quase ausente a noo crist do pecado: o mal a prpria existncia fsica, a condio de criatura, mas em todas as criaturas, at as mais criminosas, mur.

mura

a

alma inocente.

dum criado a cuja presena o pequeno Joaquim se habituara feriu de modo indelvel a suadesapegoafectividade: Vejo-te lareira, Antnio;

O

mas

vejo-te

ainda melhor na hora em que te zangaste e despesopro varreu a cinza do quadro; e a tua diste. mscara desvenda-se violentamente, como talhada num tronco seco de carvalho. L vais, pelo terreiro adiante, com uma caixa de pinho s costas. Curvado, fincado num pau, resmungas, e no olhas para trs. Nem um adeus As tuas costas e a caixa de pinho rompem as trevas do Passado e tm uma dureza de tua penedo e uma iluso de nvoa a dissipar-se. indiferena por ns, naquele instante, foi a minha primeira desiluso. Feri-me, para sempre, nessa pedra {Livro de Memrias, p. 35). Mas o abalo psquico mais fundo na infncia de Pascoaes foi a ida para a escola, logo a perda daquela radiosa liberdade em que a sua vida deslizara at ento. A expulso do Paraso, a obedincia a uma disciplina imposta, a necessidade de se conformar com a persona social que os adultos lhe determinam.

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ida para a escola separa as duas grandes idades da existncia do poeta; a partir desse momento, teria a pseudo-vida das convenes sociais e a vida autntica do regresso infncia, por obra e graa da memria e da imaginao amanhecente. Ficaria repartido entre dois mundos, em luta consigo

A

mesmo.Primeiro, a escola primria; vai, manh cedo, na um velho alto, de suas brancas e olhos azuis, a L est a casa de aula, bancos e mesas de pinho, enodoadas de tinta, mapas nas paredes, uma lousa enorme, com algarismos a giz, os cartes de Joo de Deus, e o seu retrato barbudo no primeiro livro de leitura (p. 8i). Vejo a casa da escola, o padre mestre, com uma carapua na cabea e uns culos na ponta do nariz [...] O que de mim conservo desse tempo so os dedos sujos de tinta e uma estranheza, um espanto de dor, uma espessura estpida composta de todas as letras do alfabeto (p. 82) Depois, o liceu. aL ficaram, na aldeia, o Nilo [o co de que tanto gostava] e o meu jumento: o jumento e as suas manhas de filsofo; o Nilo e o seu focinho de inspirado. L ficaram as manhs de sol e os passarinhos. L ficou a velha lareira, com a voz de Lucrcia e o vento, em noites invernosas (p. 83). L ficaram os avs, a dizer-lhe adeus, cada vez mais vagos da neblina. Pascoaes ia estudar em Amarante, instalando-se numa casa antiga onde o av paterno falecera e que desde ento ficara desabitada. Nessa casa, uma gravura esquecida sobre uma cmoda dar-lhe-ia a revelao do mar do mar e da lonjura indefinida: a torre do Bugio, o Tejo, um barco vela a sair a barra, encrespada de vento, que me deu no sei que ideia misteriosa da vastido do mar [...] Sentia-me abstracto e longe. No tirava os olhos da gravura amarelecida e poeirenta. Esta abstraco e este longe ficaram, em mim, para sempre (p. 84). Debrua-se janela, e admira-se de

companhia do av,

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ver transeuntes muito diferentes dos campnios de Gato: calados, mais bem vestidos, com outros modos e maneiras de falar; as botas deles rangem sensao indita para o rapazinho no empedrado vindo da aldeia. Atravesso o largo de S. Gonalo e entro no antigo claustro apoiado em arcarias de granito. Ouve-se um barulho de rapazes e uma sineta: dli))i ! dlim ! dlim .' (p. 85). aNeste meio acadmico e ruidoso, eu era

um

ser inverosmil. No sabia as lies, nem traar capa, nem trilhar as ruas da vila. O estudante metera-se em mim, como um intruso (p. 86). A capa foge-me dos ombros, um cabelo hirsuto

invade-me a testa ensombrada de atvicos medos ou Nos meus ouvidos soam estas palavras de desnimo: muito acanhado e no estuda... (p. 87). s sete horas da manh, no Inverno, j eu estava perante um livro aberto e um candeeiro de petrleo que espalhava, no meu quarto, uma luz mais triste que a duma vela de cera, cabeceira dum defunto. Metia as mos geladas nos bolsos e os ps num cobertor. Ou dormitava ou lia maquinalmente;espantos.

e todo o-88).

meu

ser se

decompunha em aborrecimento:

vento vazio na cabea (pp. 87as pginas em que recorda os tempos do liceu so baas, ressumam constrangimento e tdio. anos mais adiantados, a literatura (Ber-

nuvens pardas e

um

Todas

Em

nardim, Cames) havia de interess-lo; um ano, porm, ficou reprovado em Portugus. Naqueles tempos, Pascoaes mal sabia aprender nos livros; lia, sim, intuitivamente, nas coisas da Natureza e na prpria alma. s quintas e domingos, dias feriados, levantava-se de manhzinha e ei-lo, feliz, a caminho da serra. oQue alvoroo de ressurreio! Que liberdade! (p. 103). Libertava-me do estudantinho acanhado e macambzio. Fugia para os montes, de clavina ao ombro, com o Manuel Carlos e a sua raiuna dos21

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franceses e o Z d'01iveira e a sua barba passa-piolho, e o seu coco ingls amarrotado, a tapar-lhe a calva de marfim (p. 91). A minha alegria nessas manhs doiradas e geladas! Alas tambm, algumas vezes, fugia de noite para a aldeia. aPor l andava at ao luzir da estrela de alva, sobre uma fraga do Maro (p. 88). Ou acontecia-lhe assistir a um baile na eira, que durava at ao romper do Sol. oRegresso vila e entro em casa como um ladro. Instantes depois, adormeo, com a cabea pousada sobre uma estrofe dos Lusadas (p. 91). Numas frias de Natal, uma ida a Travanca permite-lhe subir aos cumes da serra. Faz a viagem a p, tendo por companheiros o Manuel Carlos e o Z d'01iveira. Travanca fica assente num pequeno patamar, onde finda a terra cultivada e comea o escalvado da Abobreira. Percorrem uma rua acheia de lama e pedras soltas, entre casebres miserveis: tectos de colmo e paredes de cascalho ou formadas dum s penedo ali nascido; e chegam a uma velhacasa, escura e baixa, do av materno de Joaquim, oao lado duma eira, donde se avista quase todo o a casa da Levada, norte de Portugal (p, 95).

cuja sala de jantar tem duas janelinhas que deitam para a imagem tempestuosa do Maro. Joaquim passa alguns dias nessa casa aconstruda entre cerros denegridos, rochedos, nuvens de gua e de neve, em plena desolao e solido {ibidc}}i). Levanta-se mal desponta a manh, e abala sozinho, sobe, no se cansa de subir, contempla exttico os horizontes indefinidos, montes e vales feitos de nvoa pela distncia, o cu e o mundo dissolvidos na mesma neblina, onde a quimera e a realidade se casam e viso torj impossvel distingui-las (p. 98). na-se visionria, julga ouvir vozes de alm-mundo, tem a iluso de boiar no ter. Desaparecem as fronteiras entre o eu e o no-eu, a alma e a Natureza. Experincia (dir-se-ia: mstica natural) decisiva.

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OBRAS COMPLETASque Pascoaes adolescente repetiu ou reviveu muitas vezes, e depois a cada passo repercute na sua poesia, bem como o anelo de altura, de regies imaculadas, numa nsia de imaterializao nunca satisfeita. Confunde-se com a Natureza, transformada, por seu turno, em Reino Espiritual. Os sentidos tornam-seIhe lugar de aparies. Na verdade, se Pascoaes descende dos Avs e da Casa onde viveu a infncia, se a Saudade o modelou desde o dia em que saiu da aldeia, com razo se afirmar filho tambm da paisagem das margens do Tmega, da regio onde se fundem de modo original o doloroso drama transmontano e o buclico paisagem onde o poeta julgar idlio minhoto ver simbolizada a psique portuguesa, misto de alegria e tristeza, de austeridade e doura: Sem esta terra funda e fundo rio / Que ergue as asas e sobe em claro voo; / Sem estes ermos montes e arvoredos / Eu no era o que sou {As Sombras, 2.* ed., p. 54). Minha maneira ntima de ser / Eu sei que resultou / Desta paisagem mstica e saudosa, / / E sempre a florescer / Que da sua tristeza Deus criou {Cantos Indecisos, p. 10).

COIMBRA E O MEIO CULTURALSofri, ao ver Coimbra, um dolorido espanto... Agravou-se, em meu ser, a alma que doena.(f

A Minha

Histria, in Terra Proibida)

Certo dia de 1895, dia de escurecido Inverno, partiu para Coimbra. Segundo desterro, mais grave ainda que o primeiro, e que s terminaria com a for-

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matura em Direito, em 1901. Sempre nostlgico da infncia, da Casa e da terra-me, divaga pela Coimbra medieval acomo um brbaro do Norte, fechado e taciturno. * Outra vez a sensao de espessura fria, acabrunhante, que lhe deixara o liceu; ou pior ainda. oOs lentes perfilam-se s portas das aulas, enquanto os alunos vo entrando, fazendo vniasrespeitosas queles dolos tremendos, vidos de clicas e outros sacrifcios. Vede o Moreira, um esqueleto enorme a surgir das trevas; o Calisto da primeira dinastia, o Pita sacerdotal e revelho, nascido, sob Osris, do ventre duma foca poeirenta [...] E, como contraste fino e elegante, o Alontenegro, ainda novo, dandy, barba Guise, de seda, e uma

cabea de marfim, com uma penugem doirada nas fontes e na nuca (Livro de Memrias, p. 124). Por curioso paradoxo, enquanto o medievo Calisto ensinava Filosofia do Direito, o Montenegro, fin de siccle, ensinava Direito Romano. Encontra um ambiente mental cheio de contradies, onde se debatem o positivismo agnstico, o cientismo evolucionista, o idealismo tico de Antero, que reduz o Universo conscincia, o fundo pessimismo que passou de Antero aos jovens simbolistas, o sentimento de que o pas est moribundo, vagas tendncias anrquicas e humanitrias, o republicanismo, o socialismo proudhoniano, o marxismo, o neogarrettismo propugnado por Alberto de Oliveira. ** lio de Junqueiro, com a sua religiosidade pantesta e pampsiquista, complementar do

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fadoseios,

um concentrado escreve Faria e Maia engolnum sonho infindo... [...] Vejo-o nos nossos longos pas,

versos fragmentariamente, quase alheio {A Minha Velha Pasta, p. 59). ** Na conferencia '^ Esprito Lusitano ou o Saudosismo (Porto, 1912), Pascoaes evocaria a Coimbra do seu tempo como um terrvel foco dcsnacionalizador que difundia vagas teorias jurdico-sociais, importadas do estrangeiro.

recitando

minha presena.

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rasgo panfletrio, fora a primeira grande influnTeixeira de Pascoaes, j nos tempos de Amarante. Juntou-se-lhe a de Antero, com a sua frustrada ambio de Absoluto, a de Joo de Deus, outro poeta da altura, do impalpvel, e a de Antnio Nobre, o eterno saudoso da infncia e pintor da terra portuguesa. Pascoaes, que no esconder a sua simpatia pelos anarquistas e um ideal de fraternidade que exige uma distribuio equitativa dos bens materiais (ser republicano e democrata, no obstante o meio familiar), combinar, numa singular heterodoxia, o agnosticismo e a f, proclamar o dinamismo fecundo da incerteza, ver em tudo a ambivalncia do sim e no, integrar na sua oscilante metafsica o transformismo segundo o qual o Homem (criador de Deus; ou sua criatura?) o termo dum processo de espiritualizao que comea na pedra, alma cativa (para usarmos a expresso de Antero); e para alm do Homem pressentir a alma, a quimera, o nada que o Infinito. par disto, comungar na reaco anticosmopolita, tradicionalista, concebendo a poesia no s como aventura metafsica, mas ainda como anunciao e fonte dum ressurgimento ptrio. Tentar decifrar pela Saudade a alma portuguesa e h-de profetizar, no Verho Escuro, o regresso do Encoberto, o fim da noite lusada. Mas Coimbra, alm do fermento das ideias, oferece ao poeta as finas sugestes duma paisagem doce, impregnada de tradio, feita de sorrisos de verdura, junto de gua paisagem que amacia as arestas transmontanas de Pascoaes: E desde ento minh'alma transmontana, / Desnuda e agreste, ao vento das alturas, / Tornara-se mais branda e mais humana, / Mais florescida de ntimas ternuras... (A Minha Histria, in Terra Proibida). E oferece-lhe os benefcios da amizade, no convvio com rapazes igualmente interessados por questes filoscia recebida por

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tambm de apurada sensigrupo que integrava Fausto Guedes Teixeira, Augusto Gil, Afonso Lopes Vieira, Joo Lcio, Alexandre Braga, Francisco de Faria e Maia, Abel de Mendona, Joo Direito. oE as noites no Julio ou na Tia Joaquina, duas tavernas em pleno Olimpo? L dentro, o Fausto e o Gil, coroados pelas Musas, luz duma candeia fumarenta; e eu, na sombra, esfumado numa admirao indefinida, num ah! de espanto... {Livro de Mevirias, p. 135). No Caf Lusitano, inundado de estudantes, havia a mesa dos poetas: O Fausto bebe, fuma, recita, apaixonado por todas as mulheres. O Gil, com os cotovelos fincados na pedra-mrmore, esmaga a cara assanhada entre as mos, como se os dentes lhe doessem. Tem uns bigodes de arame retorcidos para cima e fala quase sempre aos repeles... O Alexandre Braga, um Apolo modelado em cera, pelas noites de bomia. O Hilrio, trigueiro e lvido, de uma bigodes negros, a dois meses da morte estrela prestes a extinguir-se... O Joo Lcio, na sua primeira fase, radiando uma luz branca de pureza...ficas e estticas, alguns bilidade. Pertenceu a

voz do Hilrio, pelas noites lua(pp. 129-130). rentas: uma revelao dos longes dramticos da alma, um smbolo do inefvel. Pascoaes foi ainda scio fundador do clube de estudantes Amicitia, juntamente com Silva Pepulim, Faria e Maia, Augusto de Cerqueira e outros. Na sede do clube (R. do Corpo de Deus) havia conferncias e debates. A nos leu Teixeira de Pascoaes muitas das poesias do Sempre e Francisco Alexandrino [da Silva] quase todas as que vieram a compor o seu livro Passador) (Francisco de Atade Machado de Faria e Maia, A Minha Velha Pasta,P-

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53).

Acabado o curso, os desterros no terminaram. A Universidade transmutara Pascoaes no dr. Joaquim Teixeira de Vasconcelos, bacharel em Direito,26

OURAS COMPLETASO que impunha obrigaes. E, uma vez mais, o poeta submcteu-se. Iria advogar em Amarante, e, a partir de 1906, no Porto. oEntre o poeta natural e o bacharel fora, ia comear um duelo que durou dez anos, tanto como a formatura de Joo de Deus e o cerco de Tria. Vivi dez anos, num escritrio, a lidar com almas deste mundo, o mais deste mundo eu que nascera para outras convique possvel tdio, a vncias {Livro de Memrias, p. 164). impacincia, a saudade continuaram a consumi-lo. At que o poeta venceu, o duelo findou, e Pascoaes casa da infnpassa a viver no solar de Gato cia, abandonada, quase em runas aps a morte dos avs e entrega-se por inteiro, terra e poesia, num dilogo interminvel com os pinheiros, os espectros e o Imenso. Esta pequena aldeia excede o planeta (p. 162). O meu lar, as almas que o habitam, em presena ou em saudade, os meus campos e, ao longe, as indecises brumosas do Outro!

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a eterniMundo... E eis tudo para mim. Tudo dade e o infinito! [A Nossa Fome, p. 8).

O PRINCIPIO FEMININO

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virgetn, alto seio onde floresce

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mstica dos Ventos..(Senhora da Noite)

amor no est ausente da vida de Pascoaes; e vrias figuras femininas se esboam na sua obra como superiores motivos de inspirao. primeira dessas figuras parece ser aquela que o autor descreve

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lescncia que nunca mais ele pde esquecer: oDurante o dia, uma lembrana de rapariga de quinze anos, a idade em que morreu tuberculosa. Mas, nos meus sonhos, revive, ela mesma, loira e branca, duma delicadeza de formas infinitas. Estou a v-la, certa noite (era nossa criada), no antigo corredor de minha casa. Trazia apenas a camisa de dormir, pois no esperava encontrar algum, quela hora. Encarando comigo, subiu-lhe todo o pudor s faces j ruborizadas pela febre. No podendo fingir, tentou ocultar-se num sorriso envergonhado. E, na verdade, o seu sorriso iluminou-a completamente, revestiu-a duma aurola divina, como a desse anjo que passa por ns quando emudecemos, de repente... / Desde ento, aparece, nos meus sonhos, aquela figura misteriosa [...] Sinto-me num passado presente, junto daquela rapariga vestida apenas duma tnica de linho, com o cabelo loiro, em anis, a cercar-lhe o branco rosto afogueado (pp. 231-232). Essa rapariga morta aos quinze anos no ser a Leonor de O Bailado e do Livro de Memrias? escreve Pascoaes [...] est, LeoO valor real nor, na sbita expresso que, uma vez, surpreendi na tua fisionomia, to estranha e original, como se houvesses mudado repentinamente de figura Essa expresso disse-me de ti, durante o seu relmpago, o que nunca me disseram as tuas palavras, modos e gestos habituais... Foi uma hora em que todo o teu ser se desvendou, em que ele conseguiu romper a nvoa e deslumbrar-me para sempre... (p. 60). Note-sc que o abalo afectivo resultou da sbita revelao duma alma, e que essa rapariga de quinze anos, aloira e branca, logo se tornou, pela morte prematura, lembrana triste e smbolo de pureza inacessvel. No Livro de Memrias fala-se vrias vezes duma Leonor d' Alm, alminha triste de violeta a uns olhos onde a ternura denunciar-se nos olhos reza a sua mais ntima elegia (pp. 74-75). A, Leo-

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nor apario ou smbolo da beleza transcendente:

aA minha vida tem sido pintar o teu retrato, e enamorar-me de todas as figuras que se parecera conda tua apario que persegue c a prpria alma incriada da Beleza (p. 42). Em Verbo Escuro, de novo se alude donzela misteriosa: Virgem que floresceste o meu passado! [...] Vejo-te ainda vir ao meu encontro, nas manhs da minha infncia! (p. 28). Sempre, a composio Ela parece ser-lhe dedicada: A mstica Menina aparecida / [...] Passou, como viso misteriosa, / Deixando-me, na alma, aquele espanto / Que anima e transfigura cada cousa / / [...] Teu corpo, sonho em flor, desabrochou; / / Fez-se Beleza e Morte... (p. 33). Estudante em Coimbra, sofre timidamente um longo amor platnico por F. M., inspiradora do Sempre, que vivia nos arredores de Amarante, Francisco de Faria e Maia, ntimo de Pascoaes nesta poca, sublinha que, no obstante a tendncia para o vago, o abstracto, o principal impulsor da sua lira, nesta primeira fase da sua vida, foi o amor {A Mmha Velha Pasta, p. 61). O prprio poeta, no limiar do Sempre, declara que os seus versos so filhos queridos dum noivado espiritual. Quando vagueava na companhia de Pascoaes pelas encostas rudes do Maro e pelas ribas do Tmega, Faria e Maia conheceu em carne e osso a mstica menina adolescente, a princesinha que vivia esquiva no seu solar antigo de linhas aristocrticas, insensvel quele amor que, divinizando-a, se imaterializava Estou a v-la, bela, elegante, de linhas flexveis, andar ritmado de Deusa, no seu solar romntico, ao lado do poeta enamorado que,tigo, e so aparncias ilusrias

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contente s de v-la

Fugiu num voo, como por encanto, C deste mundo para os olhos dela!...29

TEIXEIRA DE PASCOABSda evocao desta cena outra me acode em que, passados anos, o vejo nestes mesmos stios, percorrendo, com deleite intelectual, o teatro dos seus amores, esse cenrio das suas dores, na serenidade perfeita que lhe dava a convico de que, para os poetas, o amor sem posse e sem esperana o nico alimento perene da sua inspirao... (pp. 78-79). carta indita dirigida a pessoa de famlia, documento psicolgico de muito interesse, Pascoaes confessa amar em silncio F. M. h dois anos sem dela exigir a menor prova de afecto. No ser minha um dia se eu morrer ou se ela no quiser [...] Foi ela que me deu algum talento. Se os meus ver-

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tm sido bem recebidos pelo mos inspirou assim to lindos!sos

pblico foi ela quefrias grandes?)

Outro episdio amoroso (dumaspe

foco uma Emlia, rapariga da aldeia, que se teria afeioado ao poeta, -lhe dedicada a composio Adeus, Emlia! da i.* edio de Terra Proibida. Cantava tristes canes feitas por ele; deu-lhe despedida um leno molhado de lgrimas; o poeta viver em Coimbra (a terra proibida) pensando nela: Por aqui, meu Amor, irei vivendo / Daquele triste olhar que tu me deste, / Quando ao longe, para mim, se foi escondendo, / Entre uma nvoa, o teu perfil celeste. Assim foi, pelo menos, na fico potica. E, alguns anos depois, o fugaz entusiasmo por uma inglesa estar na origem, segundo consta, do poema Senhora da Noite. Remonta a esta fase o amor epistolar, e frouxamente correspondido, que o poeta despertou numa admiradora, casada e dada s letras; a pobre senhora acusa-o de ser um fantasma sem corao mais tarde no calar cimes das inglesinhas da Foz... logo sobrevm o arrebatado amor por outra inglesa, Leonor Dagge, que o poeta descobre no Porto, num americano verdadeiro coup de foudre! e depois idealiza, ao

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que parece, na Eleonor de Marnus. No escrevera num lbum, em 1899, que preferia as loiras? (cf. artigo de Crispiniano da Fonseca in Estrada I). Declara o seu amor em carta indita de Larga 25 de Maro de 1909: -me impossvel demorar por mais tempo esta carta que lhe dir, como se fosse de viva voz, com que simpatia, lealdade e pureza de sentimentos eu a amo! Nos meses seguintes, procura com delicada insistncia convencer L. D., primeira vista hesitante, a casar com ele; por causa de L. D. empreende uma viagem a Londres, donde volta descorooado. Estava escrito: ficaria solteiro. Por simples acaso? Ou antes por pressentirem, ele e elas, que a sua vocao era outra? Alguns trechos da obra de Pascoaes ressumam a nostalgia dum amor realizado, a pena de ter sido condenado ao isolamento. Houve instantes em que fui a minha alma diz, ao fazer um balano da existncia. Transitei dela [a vida s alma da infncia] para o esqueleto, sem haver passado pelo corpo. Criana e velho, sem mocidade. As mulheres rejeitaram-ma e eu perdi-a. Ser moo ter uma amante ou noiva, ser amado, como na cantiga popular E ser amado ser belo. Sem beleza no h mocidade, embora haja infncia e velhice, os dois extremos (O Homem Universal, p. 59). Um complexo de fealdade (consequncia de amores frustrados?) volta a manifestar-se quando, referindo-se a So Paulo, pensa afinal nele prprio: Os feios que amam. S amam os que no podem ser amados; e o seu amor vingana. Vingam-se da prpria fealdade, escondendo-a num sonho de beleza ou obra de arte que, em nome deles, aparea (So Paulo, 2.' ed., p. 10). O futuro apstolo, feio, amoroso de Natura, desprezado pelas mulheres, tem de amar algum ou alguma coisa (p. 36). No seu exemplar de A Alegria, a Dor e a Graa de Leonardo Coimbra (Porto, 1916) Pascoaes marcou com um trao

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TEIXEIRA

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a seguinte reflexo: oPerder uma famlia, no a constituir (porque a famlia possuda jamais se perde) um desfalque irremedivel na parte que tomamos da grande taa da Alegria Me

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porm, o destino de solitrio porque reconheceu ser este o preo da sua grandeza de poeta, por natureza asceta e mstico, devassador de mundos ocultos, companheiro de sombras. Sabe por experincia prpria que o desejo insatisfeito no se esteriliza, no abdica da sua fora criadora. Reprimido, intensifica-se at espiritualizao, e gera oos sonhos e os fantasmas (O Hooutros filhos vieni Universal, pp. 89 e 90). E verifica, na acalmia das iluses juvenis, que o que ele buscava nas mulheres era, platonicamente, um arqutipo, a Beleza imaculada e imarcescvel: Nunca vi, diante dos meus olhos, a mulher bem amada. Isso que me parecia ela servia apenas para eu sentir por ela mais saudades. / O murmrio da gua aumenta a sede [Verbo Escuro, p. 57). O que ele buscava estava dentro dele, na alma ansiosa. A presena fsica ensina impede a comunho das almas; s na ausncia se efectua a verdadeira unio, por obra e graa da Saudade. E, dirigindo-se Leonor do Livro de Memrias, dir-lhe-: Sou o caminho por onde vens ao mundo; tu e outros fantasmas que eu adoro, pois nasci para viver alm da vida (p. 34). To etreas se apresentam as figuras femininas na obra de Pascoaes que mal acreditamos na existncia de inspiradoras de carne e osso; parecem antes puras vises do esprito ou entidades simbBelo, certo, o pastor ideal sacia nos licas. lbios voluptuosos das Ninfas a sua fome de amor mas tudo se reduz a um sonho, um sonho interrompido quando Belo pensa ter Jesus a seu lado... Em oldlio (i." edio de Sempre), narcisicamente, a Eleita confunde-se com a Alma: Oh dia

104). Aceitou,

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cu casar contigo, minha Eleita, / Meu amor, que afinal s tu me compreendes! (p. 22); Minha Alma, une aos meus teus lbios ideais / Que s tu aprendeste a sabcr-me beijar! (p. 23). As notas sensuais que se divisam em Senhora da Noite constituem uma excepo; e mesmo assim ressalvada pelo facto de a amada ser a Mcia-Noite, por metfora erma donzela; a sensualidade dilui-se era religiosidade, no sem um toque de irreverncia: oE, tmido de estrelas, o seu peito, / Sob os beijos de Deus, se vai abrindo... // E divinas carcias sensuais / O fazem brandamente palpitar... / Tetas de nvoa seios espectrais, / Onde um Menino Deus h-de mamar... (pp. 9-10). Na Elegia do Amor

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poema que, segundo Fernando Pessoa, paira acima do The Last Ride Together de Browning como poema metafsico de amor) a lembrana da amada que voou para os cus leva o poeta a sublimar-se, comungando, pelo amor, com todo o Universo: Vivo a vida infinita, / Eterna, esplendorosa. / Sou neblina, sou ave, / Estrela, cu sem fim, / S porque, um dia, tu, / Mulher misteriosa, / Por acaso talvez / Olhaste para mim. Eleonor, essa sombra etrea que diz a Marnus: Eu sou a eterna Luz que te fecunda, / Meu Criador e Amante torva Fonte, / Donde meu Ser espiritual(o to belo!

dimana... {Marnus, I). adoro a mulher

No admira, pois, que no Verbo Escuro liicidaraente o poeta confirme: Euem mimprprio (p. 94).

TEIXEIRA DEPOESIA E METAFSICA

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iSou o empecido, esse

homem

de olhos /tidos. ..j{Marnus. VIII)

o poeta

um

enviado. Ele

vem

ao

Mundo

afirmar

as superiores Potestades que misteriosamente presidem ao drama da Vida e lhe do um sobrenatural scntidov{Os Poetas Lus{a