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2020 GARROTILHO Luís Chacho

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  • 2020

    GARROTILHO

    Luís Chacho

  • ‒ 9 ‒

    Viemos puros do nada tornamo-nos pecadores, [Viemos] alegres mas vivemos lamentando.Pomos fogo nos corações com as lágrimas amargas, E acabando em cinzas oferecemos a vida ao vento.

    Umar-IkhayyàmRubaà´Iyat

    POR HIPÓTESE A HIENA

    O nó feito a correr parecia maior ali, transmitido à água do poço. Chorava. Quando choro tudo se evapora à volta, excepto um zumbido de mim próprio enquanto isto, e me esqueço por que o faço. «Infinita tristeza». Minhas lágrimas, peixinhos prata saídos à noite, caindo em si, animando milhentos redemoinhos pouco afas-tados entre si, água atormentada pelo meu apontamento de céu, pássaro triste voando à volta do seu próprio pescoço.

    Eu assim estava, bêbado, e não tinha importância, marcando de cima abaixo a mais imperfeita recta que se pode traçar àquela dimensão. «Conta... conta mais... conta», dizia para mim um da casa. «Conta», dizia. Como são as coisas se tornando coisas verdadeiras, enquanto são. Com discrição servia-me da beira daquele prato sem fundo, refeição de mim mesmo alimento à força. No amor e na doença, servia-me dos enganos fora de horas e dos enganos dos outros. Me enganei em nascer no sítio certo, é isso. Que não é uma desculpa que seja só minha. Sou o animal às voltas com o nome próprio, o procurando esconder.

    «Há coisa pior», diz. Os outros nomes para aqui chamados, venham cá, para depois. Os nomes rilhados. Me manifesto por riso quando não existe motivo para o fazer, mais ainda se te acho engraçado.

  • ‒ 10 ‒

    luís chacho

    Também fui baptizado por piada de mau gosto, e agora não acredito em nada. Ninguém? Tudo é espelho para o meu desconseguir. «Indo eu indo eu...», às superfícies resistentes desabotoar enfim a brilhante forma não procurada.

    Estar aqui a desajudar, reverberando meu líquen verbal aí quando, um filme negro cai do céu na noite de todos. O que mal se via se tornando fantasma de si próprio, se estreitando de infinito, pousou suas mãos trôpegas ao fundo do corredor na minha alma em mundo. Sou desviado para outro porto da coisa pensada, no último instante. Explicações que se perdem de dar àquela pátria de argila, onde se iria tocar num baixio e ficar. Ficando. Amontoo giestas a um canto da garganta, dispondo-as em espinha; corro já por elas descalço e mudo, outra vez um nó atado com o fio que sobra a um dia de distância pouco segura, entre o corpo e sua sombra cintada, feminina, depressão e intempérie.

    Pedra e labareda, parte da cama. Por um instinto siderúrgico, a cautela do corpo trocada pelos braços em coragem. Sentida ampu-tação do lado horizontal da cruz que carrego, vazia de hospedeiros. Se incorporam verbos em tempos trapos, e impropérios macios no meu dorso que cai em geada de afectos. Confirmo o horizonte à boca, conto a menos edifícios de esmalte e que falta fazem a esta rotina incisiva. Recua a gengiva e nos acostumamos ao sangue sem cor. Não estar longe de me interromper, vazo às paredes um desenho de animal em pessoa rasurado, liquefeito, escuro líquido. Alego a amargura, para autorizar a voz medrosa de ser dia por haver e acreditar nisso. A luz encerrada no peito, já grita ao mais profundo de um espaço inacabado. Desvio o olhar, não o suporto, o pé repete-se pelo metal danificado na base da cadeira. Sem olhar para tudo, registo o que acontece à cota nula da laje térrea. Padrão claro-escuro, claro. Que é isto o que conto e ponto.

    Sou o barbeiro que dança à tua volta, vítima que és, momentânea assassina da esperança em ser eu outro e outra pessoa passa à frente do espelho emoldurado com a madeira da noite na mesma cor.

  • ‒ 11 ‒

    garrotilho

    Sobra um resto do que fui, cortado cerce até quase ao dia em que me nasceram outros pedaços do mesmo corpo. Fios entrelaçados, pelas mãos marcadas do invisível já acontecido. O barbeiro onde vai ele leva atrás de si gente à farta ainda assim, se lhe altero à última da hora sua morada e parapeito. Sou ele e nós, que interceptados somos na medida de um diálogo cego de sentido.A escova que varre as ruas do sonho é música acima dos ouvidos, orifícios por onde se comunica o fogo que fica bem ao animal que assiste ao seu suicídio de memória. Obrigado de nada. São já as horas que são. Ecoa pelo palco da minha guerra com os outros um cântico sinuoso, um caminho de sons que por lá caem em desuso. Meu coração manda calar toda a aresta enformada na sombra, esta porção de superfície por onde andei, indiferente aos costumes, como hábito da surpresa. Tudo foi e ignorei, calei a ordem natural de um silêncio ali fora, ao frio. Um trovão que se precipitou sem mistério pessoal.

    Meu esqueleto é fraseado cintilante, concebido para unir todos os mundos esboçados por vir. A esperança se incomoda na minha matéria densa, operática porção de tudo a se desentender. Arru-mado na caixa das ferramentas, o escultor que se usa de símbo-los, preenchendo suas curvas com traços de vida desnivelada, com a coisa em que se torna, ela própria, coisa séria. O que prego cai de novo ao chão. Me levanto até aqui. E acontece, pelas extremas, o horizonte da desordem.

    Um pouco perdido, bem sei, se nisto volto as costas e ouço, por assim dizer, a palavra castigar, simples matéria, afiada pelo gume da palavra. Por mim se alastra a chaga simétrica, outra palavra tal espatifar é ainda com ela que toda a vaidade é chapa calandrada para vir a ser coisa visível. Forço o cinto fora das ilhargas da roupa-gem dobrada na vergonha em ser mais do que um. Ameaço com silvos de curtume. Está decidido, divide-se a desgraça pelo tempo de um verbo filho único, o egoísta e diabo que existe a pensar que a pedra tem uma e só medida que é a sua. Vou e não volto. Veremos.

  • ‒ 12 ‒

    luís chacho

    Liberta o outro lado do caminho desta morte se quiseres, amanhã. Esfrego rubra a língua no ponteiro dos segundos que levaste a amaldiçoar-me, enquanto traço à mão levantada a tangente da roda louca do meu pensar nesse cu inteiro de corpo. Aceno-te da janela escancarada do condutor, sôfrega buzina da tragédia em exercício. O riso sem lugar para habitar ou boca ou coisa nenhuma, desponta na figura que os dedos não percebem pelo contorno. Amiga noite que de ti nada escondo, apanha-me, vê se és capaz, com braços verticais, esta moeda lançada momentos antes e dobra-a no dorso das cigarras. E apresenta meu caso ao acaso do meu destino. Pois penso em ti por trás e pela frente umas paredes retorcidas pela ânsia da tua água, hidrografia contornada pelo reflexo dos teus braços solares. Contido finjo e sou o que finjo, até não ser outro, porque não eu, desse modo. Esqueço tudo, e fui tanto assim tanto tempo, medida de todas as coisas, que evitei não colidir contra elas. E essas são paredes, reforçadas pelos arames da minha disposição encurvada.

    Maravilhosa estrela de inertes, por ti preenchido tanto vazio. Vou lancetado dos humores viciados, tantas são as variáveis da pele ao toque do dia que acaba. Teste intrusivo, mas não conclusivo, sobre o que provoca fenda. Rasgado pela humidade capilar e outras anomalias materiais. Trocado de lugar antes de o ser, outra coisa sou. Somos assim, mal te conheço, mesmo assim aceita este vinagre, ou despreza-o, tanto se me dá. É em ti que penso quando abandono a pé a máquina voraz, minha loucura, pois sou alimento para ela enquanto haver. Vives longe ou demais.

  • Luís Chacho, 1974, cresceu entre Lisboa e a Outra Margem.Publicou o poema “Aqui Del(ete)” na colectânea poética O Desejado. Robot Bimby (organização de Jorge Corvo Branco, Companhia das Ilhas, 2015).Escreveu a letra da música “Gelatina” dos Duble Dread e o texto adaptado ao videopoema “Sonho Brando” (em colaboração com Rafael Teles), que integrou o projecto multimédia internacional HearteartH. Implantou um "Postiço" na revista Gueto. Publicou sua "Vida Mulata", livro online, pela Enfermaria 6. Os poemas “Esquadri-nhar” e “Entre nós”, obtiveram uma menção honrosa no concurso Teixeira de Pascoaes 2016-2017, CLEPUL. Colabora regularmente com a Palavra Comum, Revista Galega Lusófona de Artes e Letras, com fotografias.O que escreve (e fotografa), pode ser encontrado no blogue Cimento-Cola (http://cimento-cola.blogspot.pt/)