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Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta M 2019

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  • Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes

    A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta

    M 2019

  • Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta

    A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes

    Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes,

    orientada pela Professora Doutora Maria Luísa Malato da Rosa Borralho Ferreira da Cunha

    Faculdade de Letras da Universidade do Porto

    Novembro de 2019

  • A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes

    Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta

    Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes

    orientada pela Professora Doutora Maria Luísa Malato da Rosa Borralho Ferreira da Cunha

    Membros do Júri

    Professora Doutora Rosa Maria Martelo Fernandes Pereira

    Faculdade de Letras - Universidade do Porto.

    Professora Doutora Maria Celeste Lopes Natário Alves dos Santos

    Faculdade de Letras - Universidade do Porto

    Professora Doutora Maria Luísa Malato da Rosa Borralho Ferreira da Cunha

    Faculdade de Letras - Universidade do Porto

    Classificação obtida: 16 valores

  • Não é a vida uma existência solitária nem definitiva.

    Para esta dissertação, contei com os ralhetes dos meus pais, os bordados da minha avó, a

    casa abandonada da Aninhas, a ansiedade das esperas atrás de um palco, a frustração de

    um casamento, as palmas de gente anónima, a conversa com a Professora que mudou o

    rumo da minha forma de pensar, o colo da mamã e das irmãs e o renascimento, dentro do

    nascimento, de uma filha. Não foi escrita a quatro mãos, mas esta tese é, sem dúvida, uma

    convergência com uma certa direção. Para onde? Sabê-lo-ei no último suspiro.

  • 6

    Sumário

    Declaração de honra 7

    Agradecimentos 8

    Resumo 9

    Abstract 10

    1. Loucura e Ironia 11

    2. Que faces da Ironia? 18

    Capítulo 1 - LOUCURA E INTERROGAÇÃO 22

    Algumas reflexões biográficas 22

    Capítulo 2. – LOUCURA E RECONHECIMENTO 45

    A voz da razão 45

    Capítulo 3. – LOUCURA E APARÊNCIA 75

    Da Loucura física à metafísica 75

    Capítulo 4. - LOUCURA E AUSÊNCIA 92

    A ilusão da linguagem 92

    Conclusão (ou Considerações finais) 111

    Referências bibliográficas 118

  • 7

    Declaração de honra

    Declaro que a presente dissertação A Ironia da Loucura em Teixeira de Pascoaes é de

    minha autoria e não foi utilizado previamente noutro curso ou unidade curricular, desta ou

    de outra instituição. As referências a outros autores (afirmações, ideias, pensamentos)

    respeitam escrupulosamente as regras da atribuição, e encontram-se devidamente indicadas

    no texto e nas referências bibliográficas, de acordo com as normas de referenciação. Tenho

    consciência de que a prática de plágio e auto-plágio constitui um ilícito académico.

    Porto, 30 de Setembro 2019

    Lia Isabel Gomes Ribeiro de Bettencourt Gesta

  • 8

    Agradecimentos

    A quem me deu força e estímulo quando deixei de acreditar: a minha mãe, as

    minhas irmãs, a minha filha.

    Agradeço à minha Professora, meu eterno farol, porque a sua luz me impediu de ir

    contra as rochas.

    Agradeço a Luz de todas elas.

  • 9

    Resumo

    Este estudo pretende refletir propedeuticamente sobre a complexidade do conceito

    de Loucura na obra de Teixeira de Pascoaes. Na sua obra, a loucura é, fundamentalmente, a

    nosso ver, uma ironia de valor retórico, porque finge ser o que não é: uma voz menor.

    Incidiremos sobre a variabilidade da definição da “Loucura”, e que tipos específicos de

    Loucura residem na sua poética, na sua obra literária, mas também não-literária. Desde logo

    nas suas memórias, a loucura parece ocupar lugar de relevo: os loucos que povoam a sua

    infância são seus mestres, ensinam a ver, mas também a criar. Mas a Loucura é também

    personagem: determina um corpo que se move, e se fecha, de forma distinta dos demais. A

    Morte surge como um tema indissociável da loucura: nos poemas alegóricos, a descrição do

    amor que há entre a Loucura e a Morte vem adensar o pensamento de que o mundo

    necessita de uma visão sensível – e não apenas intelectual, mecanicista ou científica – para

    ser compreendido. Contextualizando a obra de Teixeira de Pascoaes, interessar-nos-emos

    desde logo pela sua sustentação irónica, para perceber até que ponto uma poética/retórica

    da loucura e morte é usada para sustentar um processo de transformação da arte em que a

    razão não se opõe à emoção, o físico se concilia com o metafísico, a imitação com a criação

    e o ético com o estético.

    Palavras-chave: Teixeira de Pascoaes; Loucura; Ironia; Amor; Saudosismo;

  • 10

    Abstract

    This study intends to reflect in its roots the complexity of the concept of Madness

    in the work of Teixeira de Pascoaes. Madness is fundamentally, in our view, an irony of

    rhetorical value, because it pretends to be what it is not: a small voice. We will focus on the

    variability of the definition of Madness in Pascoaes, specifying several types of Madness

    we can find in his poetics, in his literary, but also non-literary work. From the outset in his

    memories, madness seems to occupy a prominent place: the madmen who populate his

    childhood are his masters, they teach him to see, but also to create. Madness is also

    character: it determines a body to move and close differently from others. Death emerges as

    an inseparable theme of madness: in allegorical poems, the description of the love that

    exists between Madness and Death thickens the thought that the world needs a sensitive –

    and not just an intellectual, mechanistic or scientific – vision. We will be interested in the

    ironic support of Pascoaes’ work, to see to what extent a poetic / rhetoric of madness and

    death is a process of art transformation in which reason is not opposed to emotion, where

    the physical is reconciled with the metaphysical, the imitation with the creation, and the

    ethical with the aesthetic.

    Keywords: Teixeira de Pascoaes; Madness; Irony; Love; Nostalgia;

  • 11

    Introdução

    A LOUCURA COMO IRONIA: UMA ESTRATÉGIA RETÓRICA

    Este trabalho deseja refletir sobre a complexidade do conceito de loucura no

    pensamento de Teixeira de Pascoaes. Com efeito, pensamos que a loucura é um

    engodo na sua poesia e na sua prosa. Ou melhor, uma ironia: o tema é uma estratégia

    para dizer que não é importante o que é mais importante. Diz-nos: “não ligues: são

    palavras de um louco”, mas para que leiamos: “liga ao que te digo: são palavras de

    sabedoria”.

    1. Loucura e Ironia

    Nesta relação entre a loucura e a ironia, parece-nos útil entrar no tema pela

    mão de um filósofo do séc. XX de nome Vladimir Jankélévitch (1903-1985). Este

    pensador distancia-se de Teixeira de Pascoaes pelo seu agnosticismo, no que toca ao

    carácter religioso, porém aproxima-se dele ainda enquanto pensador místico, no

    sentido em que pensa uma vivência entrançada do divino com o profano. Este tipo de

    vivência metafísica, de caráter transcendental, gera um saber, um conhecimento do

    mundo obtido em experiências humanas que não se é capaz de exprimir por sentidos

    literais, de forma concreta e objetiva.

    De certa forma, o valor inefável de certas experiências humanas (como a

    descrição de um pôr-do-sol, a audição de uma obra musical ou a leitura de um poema),

    pela impossibilidade de o definir ou predicar, obriga-nos a admitir como complexas

    estas interpretações que vão muito para além da capacidade sensorial de cada recetor.

    As sensações, ainda que julgadas básicas, provocam sentimentos complexos e pedem

  • 12

    palavras ambíguas. Estas experiências humanas, que são de facto baseadas na

    realidade, sugerem, apesar da sua simplicidade, um entendimento que está além das

    funções referenciais da linguagem, não só por se dizerem muitas vezes indizíveis e

    inexprimíveis, mas também por admitirem um sem número de interpretações

    subjetivas, nunca se conseguindo alcançar a totalidade de cada experiência. Por vezes,

    evocam um campo transcendental que se expressa como mistério, um sentido definido

    pela indefinição.

    “[…] o homem, ao escutar o inefável, não sabe o que fazer para se elevar à altura do que

    saboreia. [...] Deve-se, portanto, perdoar o ouvinte do Andante Spianato caso ele não saiba como

    agradecer nem se colocar à altura daquilo que saboreia. Deve-se perdoá-lo caso ele celebre de modo

    desmedido aquilo que é incomensurável a toda a celebração: pois só balbuciando abordamos o

    inefável.” (Jankélévitch, 1964: 125)

    A relação com a “religiosidade” na aceção latina de “re-ligação”, dá-se numa

    revisitada ligação entre o homem e o mistério, transcendente e inefável, expressa por

    Jankélévitch pela expressão “je-ne-sais-quoi”. A experiência vivida – que nunca se

    entende na sua completude (porque tal é impossível) – é lida como uma amostra do

    transcendente, para o ser que é tocado por ela: por ela, é-lhe possível intuir o que está

    para além do sensível, ainda que sem ver os limites no seu esplendor. No que o

    transcendente, tem que ver com o inefável existencial, e Jankélévitch liga esta

    incapacidade linguística à assunção de uma certa forma de ignorância:

    “[…] eis o próprio mistério do nosso destino, o nosso destino é, portanto, literalmente um

    néscio quo e um nescio-unde; esse destino duro e mole consiste, ao mesmo tempo, em alcançar algo

    sem saber o que seja, em saber que se é antes de saber quem se é […].” (Jankélévitch, 1964: 60)

  • 13

    Esta citação pode ser reduzida a um “o-que-eu-sei, sei-que-não-sou; o-que-

    não-sou, tudo-isso-sei”. O conhecimento não seria nunca completo e só através da

    religação com o divino poderíamos ter um ínfimo vislumbre do nosso saber relativo.

    Sendo o nosso trabalho sobre as funções da loucura na obra de Teixeira de

    Pascoaes, a utilidade de referir o pensamento de Jankélévitch pode não parecer clara.

    E, no entanto, a loucura referida nos seus textos não se compreende sem esta noção

    comum de “inefabilidade” da descrição do mundo, devendo ela ser nomeada aqui,

    desde logo para relativizar a razão humana. Para Jankélévitch, é obrigação do ser

    humano tornar o infinito uma realidade linguística. Para Pascoaes, é obrigação do

    poeta tornar dizível esse infinito. Para ambos, o ato da palavra (filosófico ou poético)

    tem uma dimensão religiosa, mas na medida em que transcende a realidade sem a

    retirar do contexto do discurso possível, parecendo de certo modo assumir a inversão

    do processo de comunicação da linguagem. Não é a linguagem do inefável que

    preenche a linguagem do ser humano. Mas a linguagem do ser humano que tem de

    humanizar o inefável:

    “O Homem está separado de Deus e unido. Todo o traço de separação é de união e vice-versa

    – a ponte e o abismo. O homem e Deus! a razão e o absurdo! [...] Se Deus é um absurdo, o nosso maior

    desejo é humanizá-lo, metê-lo dentro da nossa pele, revesti-lo da nossa fantasia. E ei-lo uma pessoa

    transcendente, ornada dos mais belos atributos”. (Pascoaes, 1993: 65)

    O nosso poeta não só tenta humanizar Deus como vê na Natureza o mesmo

    valor transcendental atribuído ao ser humano. Todas as coisas contêm em si o

    Universo.

    “O ser é uma síntese das coisas, onde elas se convertem em sensações, recebidas e estudadas

    à luz da consciência. É qual espelho reproduzindo as imagens e fundindo-as numa só imagem

    espiritual.” (Pascoaes, 1993: 9)

  • 14

    Teixeira de Pascoaes defende que o complexo está sintetizado no simples,

    que dentro do nada há tudo e que, ao atingir essa unidade, estamos também a atingir a

    divindade: uma divindade que está patente na imperfeição humana e na dúvida

    existencial, em termos que podemos aproximar dos de Jankélévitch, sobre as

    experiências sensoriais, descritas curiosamente pelo mesmo sentido do paladar (“o

    homem, ao escutar o inefável, não sabe o que fazer para se elevar à altura do que

    saboreia”, cf. supra):

    “Há frutos que transcendem o nosso gosto. E uma flor, com o seu sorriso de sol, é um

    instantâneo divino. O divino quando nos aparece é num relâmpago. Mas não guardamos, em nós, esse

    relâmpago, à maneira de S. Paulo. O divino é efémero.” (Pascoaes, 1993: 82)

    Se, para Pascoaes, “o destino do homem é ser a consciência do Universo em

    ascensão perpétua [...]” (1993: 10), a base das coisas é de substância poética e não

    científica porque, segundo ele, a realidade não podia ser mensurada num plano

    científico nem material. Pascoaes renega os cientistas, mas porque julgam adquirir a

    infinitude do conhecimento do mundo através de medições quantitativas. Segue

    apontando a sua incapacidade de interpretar cabalmente os fenómenos que se limitam

    a uma perceção do mundo material. Chega a ridicularizar quem se recusa a uma

    experiência direta com essa “realidade” de onde gotejaria a essência do mundo e das

    coisas. Apenas o poeta adquiriria a sua inspiração em total sintonia com o cosmos (e

    por isso aqui o “poeta” surge como um artista que pode utilizar o som, o silêncio ou a

    palavra).

    Tal não é certamente a posição de Jankélévitch, que tem em vista a discussão

    do pensamento filosófico. Mas há, em Pascoaes, uma sensibilidade irónica que o une a

    Vladimir Jankélévitch, porque em ambos é pela ironia que é estimulada a dúvida,

    ainda que com relações de estímulo bem diversas.

    Para Pascoaes, é a consciência que vai exigindo diferentes graus de criação.

  • 15

    Os minerais, os vegetais, os animais, os seres humanos, são feitos da mesma matéria.

    Mas ainda que a tenham em comum, são incapazes, ou capazes, de diferentes graus de

    consciência. Também para Jankélévitch, é a consciência que obriga a pensar não só o

    próprio absoluto, mas também as diferenças entre o ser humano e o Divino. O ser

    humano e Deus tornam-se, por um lado, cúmplices na partilha da consciência, mas,

    por outro, distintos na questão da imortalidade. Sendo simultaneamente “a ponte” e “o

    abismo” (retomamos aqui as metáforas de Pascoaes), resta ao ser humano fazer-se, à

    semelhança de Deus, criador e não somente criatura. É, pois, o ato de criar um fator

    que justifica a ligação estreita entre as duas entidades. O ser humano é compreendido a

    partir da sua continuidade e descontinuidade com o Criador.

    Em que medida a questão da ironia é aqui relevante? Para Vladimir

    Jankélévitch, a ironia é uma espécie de boa consciência (e por isso ele a distingue da

    hipocrisia), em que a cumplicidade e o humor são parte fulcral da alteração do nível de

    consciência. A ironia é um lugar emaranhado de que são excluídos os ignorantes, os

    pedantes, todos os que têm sobre o que “entendem” uma certeza absoluta e

    inquestionável, e por isso também todos os que apenas utilizam a versão “à letra” do

    significado das palavras e do discurso. Por isso Jankélévitch afirma que a ironia

    pressupõe o culto da liberdade, e nessa liberdade radical se aproxima a ironia da

    loucura. Quando tudo é questionado, quando se quer dizer o contrário do que se diz,

    ou uma coisa diferente, os limites da verdade alargam-se infinitamente, estremecendo

    só então, de forma clara, os alicerces dos paradigmas tidos como certos. As definições

    são postas em causa e os dogmas estabelecidos são perturbados porque aí (na ironia ou

    na loucura) começa uma reflexão sobre a certa incerteza. Acerca deste espaço que se

    abre de repente, e sobre o tempo livre necessário a esta demanda reflexiva, escreve o

    filósofo na sua obra sobre a Ironia:

  • 16

    “Una vez que han tomado conciencia de su ignorância, un malestar inexplicable los

    atormenta: un malestar que nace de la contradicción, y que, según el Platon de Ménon, prepara la

    reminiscência.” (Jankélévitch, 1964: 14)

    Mas nem só neste aspeto a ironia se aproxima da loucura, ou a loucura da

    ironia. A loucura parece também escapar ao crivo moral pelo riso. O fator cómico não

    é evidente, ainda que ele esteja pressuposto, já que é preciso um sentimento de

    superioridade para que a ironia ‒ ou a loucura ‒ subvertam essa realidade com as

    lentes refratoras em que o emissor diz o contrário do que quer dizer, cabendo ao

    recetor interpretar essa distorção extrema. O momento irónico é, pois, um momento de

    cumplicidade superior. Quando tal dimensão refratora interpela seletivamente o leitor/

    recetor último, este sorri ao entrar no jogo. Ele sabe também que o que parece não é:

    “La seriedade se define com respecto a una alegria siempre posible, así como la evidencia

    designa el terreno ganado a la duda.” (Jankélévitch, 1964: 19)

    Ainda segundo Jankélévitch, a ironia não tem unicamente uma importância

    artística, literária (apesar de parecer necessitar de um tempo/ espaço de ócio), porque a

    ironia tem necessariamente uma componente moral que a arte não possui como

    necessária. Ora se a loucura é um discurso não-moral, ou melhor, não condicionável

    pela moral porque colocado num patamar inimputável, poderíamos dizer que o

    discurso do louco se aproxima do discurso irónico porque foge à responsabilidade de

    dizer. Tudo o que a ironia diz pode ser negado.

  • 17

    A ironia funciona assim como a loucura: é um instrumento de defesa e de

    ataque simultaneamente. Afasta a tristeza e ridiculariza o perigo para amenizar a dor e

    o sofrimento que a consciência provoca. É um jogo perigoso com um possível final

    infeliz. O louco, como o que usa da ironia, diz o que não pode ser facilmente

    entendível.

    Resta saber quem sabe: quem percebe o jogo? Ingénuos e tolos serão, para

    Teixeira de Pascoaes, todos os que permanecem iludidos pela linguagem literal. O

    louco é, afinal, mais sábio que o vulgo, que tudo confunde.

    “[…] o vulgo confunde tudo. Não distingue a Árvore das árvores, nem o Homem dos

    homens. E não haveria árvores sem a Árvore, esse fantasma que é todo o ambiente vegetal. Que é a

    nossa vida senão uma parte da vida que se concretizou e organizou?” (Pascoaes, 1993: 63)

    Como Teixeira de Pascoaes, também Jankélévitch distende o pensamento de

    forma a relaxar os limites que o oprimem, para que ele se reinvente e mantenha a sua

    continuidade/ liberdade. Como se fora adolescente, com seu estilo interrogativo

    impetuoso, Pascoaes gera afinal a mesma controvérsia que o filósofo russo quando

    atribui a Sócrates a loucura da ironia, nas querelas com os charlatães atenienses, na

    Grécia Antiga. A ironia, desde logo a socrática, tal como a loucura em Pascoaes,

    parece servir para provocar exaltação, surpreender, espantar, ainda que o emissor

    “ironicamente” se considere, ou seja considerado, um tolo ou um doido.

    Por esse lado, a ironia é uma figura que interessa à loucura. Num conjunto de

    figuras débeis, que dizem o que se não pode dizer, encontramos, com a mesma função

    dos loucos, todos aqueles que são linguisticamente desconsiderados: os palhaços, as

    crianças, os bêbedos, os doentes, os velhos, enfim, os moribundos da razão consciente,

    encorajados a expressar o que nunca se expressa em voz alta; a trazer para fora, o que

    está escondido, porque socialmente condicionado, por vezes alterando as posições

    sociais, hierarquicamente instituídas:

  • 18

    “[…] la conciencia es una especie de echarse atrás [...] la conciencia es un desquitarse del

    objeto al que se aplica, y en este sentido es la fuerza del débil [...] En esto consiste la superioridade del

    inferior, la fuerza de los débiles, la riqueza de los pobres: el pobre será a fortiori, más rico que el rico.”

    (Jankélévitch, 1964: 20)

    2. Que faces da Ironia?

    Com o intuito de tentar alcançar o carácter imperscrutável da tensão entre

    quem pergunta e quem responde, quem sabe (o que pergunta) e quem não sabe (o que

    tenta responder), Pascoaes utiliza a loucura de uma forma irónica. Mas o que podemos

    nós entender aqui por “ironia”?

    Entre a abundante bibliografia sobre o assunto (e não podendo citar tudo sob pena

    de nos perdermos em tipologias pouco abrangentes e/ou pouco consensuais, contrárias

    entre si), pareceu-nos importante, uma obra de Pierre Schoentjes sobre a ironia,

    Poétique de l’Ironie, de 2001. Trata-se, segundo Marie de Gandt (2002: s. p.), de um

    estudo fundamental que acaba por preencher muitas das lacunas dos estudos parcelares

    sobre o tema. Marie de Gandt não encontra outras obras teóricas com maior

    abrangência de definições do termo. Com efeito, simplificando algumas considerações

    de ordem histórica, são elencados, no quadro definido por Pierre Schoentjes, quatro

    tipos distintos de ironia:

    a) a ironia socrática, centrada na estratégia filosófica, em geral

    exemplificada pela maiêutica de Sócrates. Trata-se de uma ironia de comportamento,

    em que o orador toma a palavra num diálogo, diminuindo o valor da sua declaração,

    mas colocando-se num nível humilde, em que pergunta ao outro interlocutor o que o

    outro afirma saber, para acabar por contestar a certeza desse saber. O orador é um

    Sophos eirôn, definido por Aristóteles como um “sábio que pergunta”.

  • 19

    b) a ironia de situação, centrada no contexto, em geral exemplificada pela

    situação trágica. Na ironia de situação, a narrativa acaba (por reconhecimento/

    anagnórisis da verdade por parte do protagonista), por dar visibilidade ao que é

    ocultado ou negado ao longo da sua construção.

    c) a ironia aqui dita “verbal” (talvez a mais conhecida como figura de

    retórica), existente numa afirmação que é a negação do que é dito. Esta ironia retórica

    é, obviamente, a que mais cumplicidade exige entre os interlocutores pois, não

    existindo ela, a comunicação não se verifica nos termos em que é projetada pelo

    falante.

    d) a ironia romântica, identificada desde F. Schlegel com o pensamento

    filosófico-literário do século XIX, e muito especialmente com o conceito de “ironia

    romântica”. Segundo Schoentjes, é ainda uma releitura da ironia socrática, agora

    centrada na arte, muito especificamente na arte literária. O autor romântico, que

    frequentemente toma a voz de um narrador, intromete-se na narrativa comentando-a,

    minando a convenção literária, que tende a apresentar como verdadeiro o que é

    narrado, levando o leitor a repensar a ilusão que para ele foi criada.

    Demonstraremos, ou tentaremos demonstrar, que esta poliédrica visão irónica

    da loucura de Teixeira de Pascoaes é suficientemente problemática para considerar na

    sua obra estas quatro definições de ironia, sustentando a pertinência do nosso ponto de

    vista crítico nesta dissertação. A loucura em Pascoaes inscrever-se-ia numa tetralogia

    irónica: de índole filosófica, trágica, verbal/discursiva e ainda romântica.

    A ironia socrática ou filosófica está presente quando a personagem faz

    perguntas segundo o modelo de Sócrates. A ironia dos fracos expressa-se pela boca de

  • 20

    uma criança, de um estrangeiro, de um louco. Como sucede em O Pobre Tolo, de

    Teixeira de Pascoaes, a loucura pode exemplificar uma ironia filosófica. Considerando

    o contacto pessoal e intelectual de Teixeira de Pascoaes com o fenómeno da Loucura,

    consideraremos a sua potencialidade como Interrogação, e dela trataremos no capítulo

    I desta dissertação: “Loucura e Interrogação: reflexões biográficas”.

    De notar que a loucura é também, muitas vezes, uma ironia trágica: quando

    as personagens se confrontam a si próprias e, ao julgar os outros, se tornam nos seus

    próprios carrascos. Por exemplo, em Pascoaes, o louco exibe uma ironia trágica em O

    Doido e a Morte: nota-se a ironia trágica onde alguém despreocupadamente e, sem

    saber, está exatamente na situação oposta à que julga estar (a Morte). A Loucura é um

    Reconhecimento. Essa dimensão da ironia será objeto do nosso segundo capítulo:

    “Loucura e Reconhecimento: a voz da razão”.

    Mas também a ironia verbal, ainda que não nos pareça dominante, vai marcar

    a imagem da loucura: o leitor deve procurar entender o que quer o autor dizer, quando

    diz o contrário do que ele espera ouvir-lhe. A loucura diz e desdiz o que diz, num

    discurso do paradoxo que sempre seduziu leitores de Pascoaes tão distantes da sua

    poética como, por exemplo, Mário de Cesariny. A Loucura é ainda um jogo de

    aparências. Tentaremos compreender esta definição em Teixeira de Pascoaes

    sobretudo no nosso terceiro capítulo, “Loucura e Aparência: da loucura física à

    metafísica”.

    Resta-nos, até na consequência das anteriores, a imagem da loucura como

    ironia romântica. Poderemos nós entender a sua poética do Saudosismo como uma

    questão retórica, em que a “saudade” é a melhor palavra para, no seu entender, criar

  • 21

    uma perceção da ilusão, criada desde logo pela literatura? Pode a Loucura ser a

    estratégia da Ausência? A estas questões procuramos responder no quarto e último

    capítulo desta tese, “Loucura e Ausência: a ilusão da linguagem”.

    Parece-nos que Teixeira de Pascoaes é um dos poetas mais ricos da nossa

    literatura que filosoficamente melhor justifica e alimenta a pertinência desta estratégia

    retórica da loucura. As palavras do louco, registadas pelo autor de Sempre, são a sua

    forma de sabedoria: ensinam a consciência do Amor e da Morte, entidades que se

    fundem e confundem. Pretendemos refletir sobre a universalidade desta estratégia e

    perceber como Teixeira de Pascoaes a encara e transforma numa gigantesca orquestra

    cósmica.

    Não temos conhecimento de que haja estudos neste sentido ou perspetiva,

    incidindo sobre a obra de Teixeira de Pascoaes. Se existem, não as detetámos na nossa

    pesquisa e disso nos penalizamos. Mas se existem, com eles pretendemos, com mais

    tempo, revisitar o que escrevemos.

  • 22

    Capítulo 1 - LOUCURA E INTERROGAÇÃO

    Algumas reflexões biográficas

    “Pascoaes foi sempre um homem, nunca foi criança,

    tanto a falar como a brincar. [...] Pascoaes era diferente de

    todos nós, em todos os aspetos de menino e de homem.”

    (Maria da Glória Vasconcellos, Olhando para trás

    vejo Pascoaes)

    Há na obra, e desde logo no nome de Teixeira de Pascoaes, um declarado

    indício da ligação ao local que mais amou: Pascoaes é uma toponímia, o sítio do solar

    que ele habitou durante a maior parte da sua vida. Tendo por nome de batismo

    Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, assinava Teixeira “de Pascoaes”. Ainda que

    tivesse nascido na vila de Amarante, supostamente a 2 de novembro de 1877, o solar

    de Pascoaes proporcionar-lhe-ia uma infância marcadamente rural e aristocrática, entre

    a proximidade da natureza e a proximidade das gentes humildes que na casa viam um

    centro protetor.

    “Vários incidentes da minha infância revelam-se numa luz misteriosa; adquirem um

    significado transcendente, aquela alma, aquele nimbo remoto em que as mais pequenas coisas se

    ampliam no vago e no infinito [...].” (Pascoaes, 2001: 41)

  • 23

    A crer nas considerações de uma das suas irmãs que sobre ele escreveu,

    Maria da Glória Teixeira de Vasconcelos, o poeta Teixeira de Pascoaes teria tido,

    desde tenra idade, uma postura introvertida, ensimesmada, com forte tendência para a

    observação da natureza e dos seres humanos. O dia em que nasceu acabaria também

    por marcá-lo. Celebrava-se o seu aniversário no dia dos Defuntos, a 2 de novembro,

    entre as idas ao cemitério e os festejos da casa, entre a celebração dos que tinham já

    deixado a vida terrena e dos que entravam nela. Escreverá vários poemas em que a

    simbologia deste dia é tida como indício daquele poeta em que se tornará. Em “Poeta”,

    publicado em Sempre (1898), é possível ler-se explicitamente no seu nascimento a

    celebração melancólica da morte:

    “Quando a primeira lágrima aflorou

    Nos meus olhos, divina claridade

    A minha pátria aldeia alumiou

    Duma luz triste, que era já saudade.”

    (Pascoaes, 1997: 104)

    Maria da Glória recorda, já depois da morte do irmão (a 14 de dezembro de

    1952, ainda no solar de Pascoaes, em Gatão), o espírito curioso de Joaquim. E como

    em criança costumava pedir à empregada Lucrécia que ela lhe narrasse um conto de

    fantasmas, ora um que lhe suscitasse interesse, ora outro que lhe tolhesse a coragem:

    “Foi nesta casa sombria, com o seu ar de abandono e as histórias trágicas da Lucrécia, que se

    formou a alma de um grande poeta.” (Vasconcellos, 1996: 18)

  • 24

    Nas suas palavras, Teixeira de Pascoaes “foi sempre um contemplativo”,

    voltado tanto para o passado como para o futuro:

    “Não era triste, era um silencioso. [...] Meu irmão não gostava – mesmo como criança – de

    ouvir berrar, rir alto, nem sequer o atraía o ruído cantante da filarmónica [...] os ruídos metálicos

    irritavam-no. Talvez para não despertar o sonho que já vivia na sua alma…” (Vasconcellos, 1996: 18)

    Com cinco irmãos, imagina-se que nem sempre o silêncio fosse tarefa fácil.

    Talvez por isso a índole introspetiva de Pascoaes fosse ainda mais notória. O próprio,

    no Livro de Memórias, refere:

    “Conviver com os mortos, divagar entre ruínas, é tudo para mim. Divago e reconstruo.

    Disponho de uma substância da qual se extraem todos os materiais da Criação: a palavra, uma vibração

    no ar e uma luz que reflete, em nós, a imagem das coisas e dos seres. Convivo e reconstruo, na solidão.”

    (Pascoaes, 2001: 43)

    Maria da Glória refere-se ao irmão mais velho como “Poeta”, com letra

    maiúscula, como se, até para ela, este estatuto continuasse a criança diferente que ele

    tinha sido e o adulto estranho em que se tornaria. Também em Amarante todos o

    tratavam assim, para todos ele era “o Poeta”. Este estatuto acentuaria a sua

    excecionalidade, que é também, inevitavelmente, uma forma de marginalidade:

    “Nunca teve a nossa idade. Diferentes eram, pois, as suas brincadeiras. Caminhou sempre

    sozinho. Primeiro em casa e depois no mundo.” (Vasconcellos, 1996: 22)

  • 25

    O Poeta, porém, não gostava da cor preta, nem de tons escuros. Mesmo as

    situações de enterros ou outras celebrações ligadas à morte, era com o encarnado e o

    azul que as festejava. Em vez da perspetiva da morte como lugar/tempo sombrio e

    sorumbático, a morte era tida por ele como animada e colorida, oportunidade para

    apreciar contrastes e deles fazer uma festa. A morte mergulhava, por um momento, na

    sombra do esquecimento, mas através da lembrança e da memória Pascoaes

    recuperava, como numa vitória, a ressurreição do ido.

    “Vejo-te, minha aldeia, através do sorriso de Jesus e ouço zumbidos de insetos, cantos de

    pássaros e um bulir de folhas verdes. [...] Vejo-a através dos mortos que eu amei e lhe emprestaram a

    própria imagem transcendente, que se amoldou, por assim dizer, à configuração dos seus outeiros.”

    (Pascoaes, 2001: 45)

    No prefácio que escreveu a Olhando Para Trás Vejo Pascoaes de Maria da

    Glória Teixeira de Vasconcellos, um dos principais investigadores de Pascoaes,

    António Cândido Franco, refere-se igualmente a Pascoaes como alguém que vivia de

    saudade e lembrança. Este apego à memória (da morte como da vida, sem que haja

    entre elas uma fronteira distinta) é como que um instrumento que dá ânimo ao seu

    pensamento, na medida em que a memória chega para trazer de novo à vida aqueles de

    que se fazia o luto. A morte, assim lida como festa de aniversário, não seria um fim,

    mas um acidente de percurso, sem carácter de finitude, mas antes de transição porque

    “a lembrança ressuscitava tudo” e por vezes até com mais vivacidade. Memorizar

    encerra em si a ação do desejo voltado para o futuro. Olhar, ver além do que é o

    concreto, implicava passar para um outro nível visual ou, por outro lado, de cegueira.

    Reconhecer o mundo, e assimilá-lo, acarretava ultrapassar o seu carácter concreto: isto

    será o pano base onde se estenderá a saudade pelo não existe neste plano imediato:

    uma memória do que foi e do que quer dizer, além do que é. O mesmo poema de

    Sempre continua assim:

  • 26

    “Humildes, pobres cousas, como eu sou

    Dor acesa na vossa escuridade…

    Sou, em futuro, o tempo que passou

    Em num, o antigo tempo é nova idade.”

    (Pascoaes, 1997: 104)

    A constante vontade do Poeta em divinizar o humano e humanizar o divino

    seria também tida como herança de família, com relação direta a seu avô paterno,

    médico da Casa Real, com o qual partilhava a mesma índole telúrica:

    “Consigo ver-te e ouvir a tua voz, meu avô; mas a tua figura é uma quimera que só tem

    realidade perante os deuses. [...] O corpo é que é tudo, embora sujeito à corrupção e a necessidades

    ridículas, de envergonhar o Criador.” (Pascoaes, 2001: 39)

    No primeiro terceto do mesmo soneto de Sempre, Teixeira de Pascoaes diz-se

    já um ser plástico, húmus, misto de restos em deterioração que alimentam e dão forma

    ao homem:

    “Sou fraga da montanha, névoa astral,

    Quimérica figura matinal,

    Imagem de alma em terra modelada.”

    (Pascoaes, 2001: 104)

  • 27

    No seu Livro de Memórias, ao narrar a permanência em Coimbra para estudar

    Direito, ilustraria bem o encontro do seu lado sensível com os rituais do mundo da

    ciência e da vida universitária:

    “Neste meio académico e ruidoso, eu era um ser inverosímil. Não sabia as lições, nem traçar

    a capa, nem trilhar as ruas da vila. O estudante metera-se em mim, como um intruso. Nunca me

    conformei com ele, com essa capa e batina talhadas para outro corpo. [...] É o momento em que nos

    separámos da natureza e nos adaptámos à sociedade. Essa transição do natural para o artificial é uma

    tragédia em certos temperamentos enraizados no âmago da terra. É uma tragédia que vai até à morte.”

    (Pascoaes, 2001: 87)

    Não tendo sido um aluno brilhante, cedo intuiu os tópicos que mais tarde

    seriam trazidos para o plano material, onde as premissas podem ser provadas e

    testadas. Como prova dessa consciência, temos as palavras do próprio Teixeira de

    Pascoaes. Apontamos estes versos do poema “Quinta da Paz”, dedicado a Guerra

    Junqueiro:

    “A minha infância!

    Claridades misteriosas,

    Recordações saudosas,

    Tomam figura – vede! – na distância…”

    (Pascoaes, 1997: 156)

  • 28

    Forma-se nele muito cedo a ideia da relatividade. Ver algo no presente, com

    distância cronológica através da memória, reanima o evento. Ainda n’O Livro de

    Memórias:

    “Existo neste corpo que pesa sobre o mundo, e é um desafio do sonho à realidade; e vivo na

    minha infância, que é uma lembrança original, a persistir, e um retrato defunto, num velho álbum

    sepulcral. [...] Vejo, num outeiro florido, cabras e ovelhas. Pastam, há mais de trinta anos, uma erva

    tenra e verde, à luz do Sol. E a pastora sentou-se, para sempre, naquela pedra, a fazer meia. É uma

    rapariga de quinze anos.” (Pascoaes, 2001: 77)

    A individualidade do Poeta assenta precisamente neste modelo material, “um

    corpo que pesa sobre o mundo”, definido como dimensão espaciotemporal onde as

    alusões a um certo evento, ou paisagem ou mesmo personagem, parecem já

    purificadas, sancionadas, por um modo de olhar adquirido na infância e perseguido/

    prosseguido na idade adulta, entendido como o único modo de olhar e receber o

    mundo:

    “A infância é uma recordação de Deus a materializar-se em jogos e brinquedos. [...] A

    infância é uma recordação de Deus, e tão viva, que anima todas as coisas.” (Pascoaes, 2001: 65)

    Ao invocar cada objeto, cada personagem, cada gesto, casa, parente ou riso,

    o autor retoma a posse do mais íntimo de si, e em todas estas invocações está

    subjacente um significado religioso e sagrado. É como se a sua própria infância

    equivalesse à infância do mundo onde todas as coisas voltam à Luz Originária, onde

    os deuses se manifestaram e criaram. No imaginário do Poeta, o Marão, a serra do seu

    tempo de menino, é o lugar central, místico e mítico, a partir do qual se desdobram

    outros lugares, reiterações dessa montanha divinizada. O caráter universal e as

    preocupações filosóficas de Pascoaes estão presentes pela sua poesia fora. O poeta

  • 29

    parece-nos ter o dom de conseguir exprimir de uma forma potenciada todas as

    qualidades sentimentais e intelectuais do ser humano. E de entre todos os homens, diz

    que o poeta é o mais habilitado para exprimir o drama humano, tanto na vertente

    religiosa como sentimental, sempre saudosa. O poeta é tido, seja ele vate clássico ou

    romântico, como se fosse uma espécie de guia, um eleito que apreende o real melhor

    que ninguém:

    “Mas o drama da vida, através da sua aparência social, é profundamente religioso. O destino

    do homem é ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus.” (Pascoaes, 1993: 5)

    A cosmogonia universal é um paradigma para o próprio ato de criação

    poético: inicia-se com um esforço, intermitentemente realizado, com intenção de

    convergir nesse illud tempus, num excesso de força e poder divinos. A Saudade de

    voltar à origem é por isso uma saudade que podemos dizer “religiosa”: a aspiração de

    poder voltar a viver num Mundo puro e virginal, em que fossem sensíveis as ligações

    entre todas as coisas, religando-as a Criatura tal como tinham sido concebidas pelas

    mãos do Criador. A nostalgia da Perfeição está na base do desejo de voltar ao Paraíso

    e recuperar assim, pela Saudade, um passado mítico. Reviver esse Passado, seja a

    nível individual ou cósmico, recuperando o peso simbólico nele implicado, é um ato

    de construção de um Novo Mundo, de uma Nova Realidade, tão mítica e poderosa

    como a existente no “passado”.

    O conhecimento íntimo das coisas vem da intuição, não da razão. Como

    Pascoaes escreve em O Homem Universal:

    “A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica.

    Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão.” (Pascoaes, 1993: 7)

  • 30

    E a sua poesia segue da própria experiência pessoal. Como recetor ativo e

    passivo, ponte e abismo, o Poeta dialoga com a Natureza que o rodeia, e esse instante

    de comunicação fica incorporado no Poeta, e ele passa a sê-lo.

    “Na composição da minha obra, recorri sempre às minhas experiências emotivas. Fui

    sincero.” (Pascoaes, 1993: 68)

    Mas não basta sentir. Pascoaes gostava de cismar. Será esta a única forma de

    aceder a esse núcleo, o longínquo profundo da essência das coisas. Desta forma se

    entende que a poesia fosse para o escritor filosofia, conhecimento, religião, profecia. O

    seu mundo poético é composto por uma multiplicidade de forças que muitas vezes se

    mostram antagónicas. A busca contínua pela perfeição obrigava-o a trabalhar no duplo

    ou triplo ou quádruplo sentido das coisas. Como diria Pedro Sinde, em O Velho da

    Montanha:

    “Eis o núcleo, o ponto central, o trono em torno do qual todas as paisagens se ordenam e

    aquilo que era misto passa a ter uma hierarquia, aquilo que ocultava agora desvela: esta é a primeira

    separação das águas em subtil e espesso.” (Sinde, 2000: 22)

    A poesia de Pascoaes vive dessa oscilação, essa simultaneidade de universos

    que lhe permite ir caminhando adiante, como que a seguir pistas, em direção à

    verdade, sem nunca a ter por ponto de chegada. Assim, mais do que o poeta da

    Saudade, ou da noite, ou das trevas, Pascoaes é o poeta da sombra, onde tudo se

    define pela sua indefinição. É o que medeia entre o tudo e o nada, sem alternância,

  • 31

    mas sempre coexistindo. Por isso, é comum receber da sua obra imagens que refletem

    a indefinição e incerteza: enuncia as horas do crepúsculo como a aurora, a bruma e o

    nevoeiro, as estações de transição como o Outono e a Primavera. Tal como a sombra,

    estes são espaços indefinidos onde coincidem os contrários. Também na poesia de

    Pascoaes se fazem sentir essas indefinições entre fronteiras de opostos, lugar onde

    concorrem forças antagónicas que se tocam e se chegam a equivaler, tornando-se no

    seu limite indiferenciadas. Deste jogo de contrastes, desprende-se um significado

    simbólico que, muitas vezes, é paradoxal. Não é uma escolha inocente: o escritor,

    recusando aceitar as questões interiores que o dilaceram, opta por fazer uma

    representação plástica de coisas que se diluem e desfazem no espaço e no tempo, não

    para se extinguirem, mas para, desta forma, prolongando-se e fundindo-se, lhes possa

    proporcionar a imagem, a visibilidade, de uma continuidade, de algo que se há-de

    transformar noutra coisa nova. Uma nova realidade que possa, quem sabe, responder à

    espiral de dúvidas que fervem dentro de si.

    Talvez seja por isso que o universo lexical do escritor está povoado de verbos

    da mesma área semântica, do gasoso e do líquido, estados em que as coisas perdem

    uma forma e passam a ter, quando muito, a do continente em que estão contidas:

    esfumar, esbater, desvanecer, dissolver… Em “Canção Crepuscular”, inserido em

    Terra Proibida, escreverá:

    “Quando a tarde vem dos céus,

    Rezemos então a Deus

    A nossa melancolia:

    Este vago sentimento

    De abandono e sofrimento

    Que o nosso ser anuvia…

  • 32

    E, todo enevoado, cisma,

    E, no seu nada, se abisma…”

    (Pascoaes, 1997: 206)

    A loucura não se pode ler sem realçar antes nela este jogo de dualidade.

    Reconhece-a em algumas personagens que dependem das atenções da Casa. Conhece

    também o desespero extremo, por que se mata aquele seu irmão, depois de humilhado

    injustamente por um professor da Universidade.

    Ele, que ciente já de algumas dúvidas, por volta dos dezassete anos, se separa

    da família e ruma a Coimbra para estudar Direito, nunca vai ganhar verdadeiro gosto

    pela vida boémia ou académica. Compõe a coletânea de poemas Sempre ainda em

    Coimbra (1898), resultado de uma paixão frustrada que aí lhe acontece. Atinge neles

    uma maturidade maior que em Embriões (1895), obra que renega, ou Belo (1896 e

    1897). Em 1901, termina a Faculdade, certamente cumprindo o que é expectável.

    Estabelece-se inicialmente como advogado em Amarante, e continua depois a sua

    carreira judicial como juiz substituto em Amarante. Mas não tarda a abandonar a

    profissão, pois usufruía de alguma liberdade financeira que lhe permitia viver sem

    trabalhar. É possível antever que um género de vida mensurável, mundana, rotineira,

    lhe causaria algum tipo de insatisfação. Não lhe bastaria esta escolha: salienta-se pela

    verve retórica em causas perdidas: salva quem não espera já ser salvo, porque estava já

    julgado em público e a lei obedece mais vezes do que parece à justiça medida pelos

    conformes. A vida parece-lhe uma coisa fugidia, que não se apanha na lei física ou

    jurídica. A vida não é, consonante as suas próprias palavras, apreensível nos

    compêndios, mas por uma “experiência direta”, uma “sensibilidade vibrátil e

    penetrante”. Os fenómenos são “tradução” da essência do mundo:

  • 33

    “Certos cientistas de carreira julgam apreendê-la (a vida) nos compêndios; [...] Apenas

    sabem ler nos livros, e os que sabem! São incapazes duma experiência direta, por míngua de

    sensibilidade vibrátil e penetrante dos fenómenos em que a essência do mundo se traduz.” (Pascoaes,

    1993: 8)

    Recolhe ao solar de família em São João de Gatão, onde um regrado

    isolamento lhe permite percecionar a realidade que o circunda e retirar dela o lado

    mais abstrato e metafísico que lhe alimenta a inspiração. No casarão, recebe os fiéis

    companheiros de ideais, como Raul Brandão, amigo de longa data, ou ainda os novos

    poetas da segunda metade do século XX: Eugénio de Andrade, ou Mário Cesariny, já

    referido. Com seus hóspedes perpetua o hábito contemplativo de admirar a serra do

    Marão. Almada Negreiros, Federico Garcia Llorca, foram alguns dos poetas que

    privaram com Pascoaes. Porém, o nosso autor recebia com agrado todos os

    admiradores que o procurassem.

    Em Na Sombra de Pascoaes, Maria José Teixeira de Vasconcelos, sua

    sobrinha e secretária, refere-se à mãe do Poeta como sendo toda doçura. Foi talvez

    através desta fonte, que Pascoaes bebeu a religiosidade e o espírito de religação

    presentes na sua obra. Mas o carácter altruísta e religioso de Teixeira de Pascoaes

    parece também ter sido bebido no exemplo da velha Tabarda, a ama do Poeta. E uma

    ideia geral de fraternidade parece instalar-se no solar, diluindo as distinções entre

    senhores e criados, ricos e pobres.

    “Esta boa mulher deixou um filho, mendigo de profissão, a quem Pascoaes sempre tratou por

    irmão e a quem dava uma boa mesada. Mas não queria que se soubesse para não prejudicar o pobre

    homem, porque apesar de não precisar, ele não desistia de pedir esmola.” (Vasconcelos, 1993: 24)

    Estas personagens que povoaram a infância de Teixeira de Pascoaes

  • 34

    marcaram a sua escrita indelevelmente. Nas suas memórias, frequentemente, relaciona

    cada personagem que reanima com estímulos do quotidiano:

    “[...] mas quem aparece realmente não és tu, Maria; é uma luz que te surpreendi na face

    magoada. Não és tu que aparece, ó Couta centenária; mas outra imagem, emanada do teu vulto, que me

    cheira a côdea de milho e a cinza da lareira.” (Pascoaes, 2001: 55)

    De entre estas personagens citadas, chama-nos a atenção as que de certa

    forma estão relacionadas com a loucura. Além deste mendigo de profissão, filho da

    ama do escritor, Maria José refere também o seu tio António, o irmão do poeta, que se

    suicidou ainda tão jovem, com um tiro na cabeça.

    Os livros que vai publicando têm uma sequência quase anual: Jesus e Pã

    (1903), Para a Luz (1904), Vida Etérea (1906), As Sombras (1907), Senhora da Noite

    (1909), a sua obra mais célebre, Marânus (1911), ou Regresso ao Paraíso (1912). A

    bibliografia é conhecida e vasta, alarga-se a textos mais ensaísticos a partir de 1915

    (ano em que publica A Arte de Ser Português) e até a algumas experiências

    dramáticas, como as que partilhou com Raúl Brandão (como Jesus Cristo em Lisboa,

    de 1926). Mas vai mudando de temas e formas. Com uma liberdade que muitas vezes

    não é compreendida. A qualquer momento de vida, a loucura aflora e num momento,

    se anula toda uma vida racional, com o insulto fácil de se ter alguém por louco.

    Também Teixeira de Pascoaes foi apupado de louco quando colaborou com Raúl

    Brandão na feitura do texto de Jesus Cristo em Lisboa, em 1927, e, no entanto, não lhe

    bastou uma vida inteira dedicada à poesia e à busca pela Verdade Suprema. Viver é

    estar sujeito a padecer mais que uma vez. A ironia da vida é a loucura ser, ela própria,

    uma forma de vida.

  • 35

    Sabe-se que Pascoaes, a determinada altura da vida, quase parou de escrever

    versos para se dedicar à prosa. Escreveria ele:

    “O Poeta morreu, a idade de ser Poeta passou. Voltei-me para a prosa, vingando-me,

    massacrando-me os meus biografados.” (Vasconcellos, 1996: 53)

    Nas “biografias” a que se dedicou, transparece ainda o seu génio apaixonado

    reforçado pela sensibilidade que o acompanhou em todos as formas literárias a que se

    entregou. A paixão toldava-lhe as sensações e tanto se apaixonava pela beleza de uma

    mulher desconhecida, como pela personalidade da sua sobrinha afilhada. Se alguém

    que admirava profundamente ou o surpreendia, é miticamente que a trata, sejam as

    mulheres por que se apaixona sejam as vidas de São Paulo (1934), São Jerónimo e a

    Trovoada (1936), Napoleão (1940) ou Camilo Castelo Branco, em O Penitente (1942).

    Voltamos significativamente ainda ao último terceto do soneto incluído em Sempre, no

    longínquo ano de 1898, relembrando esta loucura diluída com o conhecimento, desde

    a sua raiz divina:

    “Sou o homem de si mesmo fugitivo;

    Fantasma a delirar, mistério vivo,

    A loucura de Deus, o sonho e o nada.”

    (Pascoaes, 1997: 104)

    O tema da Loucura ‒ ainda que vá tendo espaçadas referências em toda a sua

    obra, em verso ou em prosa ‒ parece-nos mais evidente a partir da publicação de O

    Doido e a Morte, de 1913, estendendo-se até à biografia de Camilo, em 1942, e

    passando pela publicação de O Pobre Tolo (de 1924).

  • 36

    Pascoaes parece pelo menos intuir, de forma mais ou menos consciente, o que

    o universo científico da época, com a emergência da psicanálise, procura demonstrar

    racionalmente: que o mundo interno do homem, de uma forma generalizada, é

    propício ao desenvolvimento da loucura. Não temos conhecimento das suas leituras

    científicas, mas constatamos a sua obsessão pelo tema. Pascoaes não conseguirá talvez

    conhecer essa loucura, estudá-la ou medi-la simplesmente, através da evolução das

    ciências. Mas certamente crê na eficácia dos meios sensíveis. No entanto, o diálogo

    entre a obra de Pascoaes e a ciência sobre essa imanente loucura no ser humano tem,

    na sua época, possíveis interlocutores. Se consultarmos alguns escritos científicos

    publicados na sua época, verificamos que, por exemplo, segundo E. Krestschmer,

    autor de um livro sobre a estrutura do corpo e o carácter (1930), o estado de loucura

    deve ser compreendido como “forma extrema de um temperamento e de um caráter

    que se encontra na zona normal” (cf. Baudet, Péan, Gauquelin, 1970: 42). Outros

    psicólogos e antropólogos das primeiras décadas do século XX procuraram também

    entender essa passagem do estado “normal” (aceite pela sociedade) e um estado de

    “loucura” (que não permitia a convivência social e levava ao internamento em

    hospício) como processo evolutivo/ degenerativo que se viriam depois a revelar em

    dois tipos de comportamento doentio: as psicoses maníaco-depressivas e as

    esquizofrenias, delineadas, no final do século XIX, por Kraepelin. É sabida a

    influência que nesses estudos teve a guerra química usada em grande escala na Grande

    Guerra (1914-1918): os gaseados apresentavam, de forma mais ou menos permanente,

    linguagens e comportamentos erráticos, identificados somente pelo conceito de

    “loucura”. Ao longo do século XX, apesar das alterações das suas tipologias e dos

    respetivos métodos terapêuticos, permaneceu nos estudos científicos essa divisão

    básica de Kraepelin. Ainda que associada claramente a uma “doença” mais ou menos

    incurável, a loucura passa a classificar duas situações tipificadas, entre a

    “normalidade” da vida social e a sua impossibilidade total, que leva ao hospício-

    prisão.

  • 37

    Nos estados bipolares das psicoses maníaco-depressivas, o doente alterna, ao

    nível do comportamento, entre estados de abatimento e euforia e, ao nível do discurso,

    entre a dispersão argumentativa e o silêncio. Nestes casos, a loucura é detetada entre a

    extravagância dos gestos e das palavras e a ruminação de ideias pessimistas sobre o ser

    humano e a vida em sociedade. Entre dois episódios consecutivos, o doente pode

    apresentar um “comportamento normal” (Ibid: 43).

    Só em casos mais extremos a loucura se apresenta como uma cisão entre o eu

    e o mundo exterior. Mas, ainda nestes casos, de uma forma mais ou menos difusa. A

    situação de “esquizofrenia”, derivada etimologicamente do verbo grego “skizein”

    (fender), abarca um largo leque de sintomas e graus (Ibidem). O indivíduo encontra-se

    dividido entre o amor e o ódio aos seus semelhantes, ainda mais claramente aos que

    lhe são próximos. Vive para dentro, convencido da realidade dos seus sonhos e

    fantasmas.

    Torna-se assim possível, entre os finais do século XIX e o século XX,

    classificar como “loucura”, ou atos de um “louco”, uma dilatada e difusa sensibilidade

    aos estados ditos “não normais”, num indivíduo melancólico ou em rutura com o

    mundo social. Passa a não existir um hiato claro entre o dito “louco” e o indivíduo dito

    “normal”: “Indivíduos normais aparentavam-se então, nitidamente, pela sua maneira

    de ser, a indivíduos que têm uma psicose” (Ibid: 45). A oscilação entre os dois mundos

    (o interior e o exterior) criaria estados de tensão, mais ou menos conscientes pelo

    próprio, que acabariam por desequilibrar o seu comportamento em sociedade, desde

    logo porque esta identificaria melhor (ou exclusivamente) os sinais da sua doença, as

    suas bizarrias mais ou menos graves.

    A questão torna-se especialmente sensível para o retrato social que é feito dos

    intelectuais, e muito especialmente para a imagem que é feita dos artistas, e também

    pelos artistas. O Romantismo (sobretudo nas versões mais ultrarromânticas de finais

    do séc. XIX) é uma corrente que dá particular relevo ao individualismo, valorizando a

    rutura entre o poeta, criador de mundos próprios, e a sociedade, que o limita e

  • 38

    despreza. Sobre este tópico do Romantismo, na edição revista da História da

    Literatura Portuguesa de Óscar Lopes e A. J. Saraiva, refere-se:

    “Como principais facetas literárias deste individualismo mencionam-se o culto da

    originalidade pessoal, em oposição à teoria clássica da imitação emuladora; o tema da insaciedade

    humana, da aspiração indefinida, a dor «cósmica» de simplesmente existir, a obsessão da morte, o

    autobiografismo direto ou velado, a apologia do herói insociável e amoral ou fora da lei (o pirata, o

    bandido, o proscrito, etc.). Este individualismo pode ir até ao extremo da autonegação, que se manifesta

    no gosto do sonho ou devaneio passivos, ou de qualquer evasão imaginativa para alhures no tempo e no

    espaço (historicismo, exotismo); no sentimentalismo amoroso indizível e irrealizável; [...] no

    encarecimento de valores poéticos inerentes às lendas cristãs, ao culto católico e ao mais antigo viver

    aristocrático feudal. [...] É típico sobretudo do romantismo alemão o senso de incomensurabilidade do

    indivíduo: a dor cósmica (Weltschmerz) e uma ironia de algo que, em nós, se sente transcendente ao

    mundo e, até, a qualquer expressão poética possível.” (Saraiva; Lopes, 2000: 654-655)

    Na sua herança cultural e histórica, dentro do contexto psicossocial do

    ambiente finissecular em que nasceu, Teixeira de Pascoaes é possuidor das

    características românticas supracitadas: o Poeta pode assim ser lido como um produto

    típico do seu tempo finissecular. Também por isso traz consigo um conflito inerente,

    pois se, por um lado, o final do século XIX foi profícuo em descobertas científicas,

    sendo nele inegável uma mitificação da Máquina e um endeusamento da Ciência, por

    outro, está imbuído da descrença nesses mesmos valores, sendo igualmente inegável a

    reação idealista do fim do séc. XIX. A Ciência não conseguia responder, pelo

    esvaziamento de conteúdo humano que implicava, às mais íntimas questões do ser

    humano subitamente afastado da Mãe-Natureza, o espaço onde, até à data, ele poderia

    absolutamente ser. O poeta romântico exila-se nessa natureza bruta e também a

    marginalidade de Pascoaes se revê na marginalidade do espaço rústico que ele habita,

    como ele agreste e indomável:

  • 39

    “Contemplar este espaço, é contemplar-me; é apropriar-me do meu ser, composto de alma e

    terra – uma paisagem. A paisagem funde-se, por fim, nesse Marão fantasma, em altos píncaros

    esquecidos.” (Pascoaes, 2001: 77)

    Também Teixeira de Pascoaes defende o regresso à Natureza como meio de

    colmatar o vazio a que o excesso de civilização levara o Homem a mergulhar. Não que

    se oponha à razão científica, mas porque a crê limitada quando exclusiva. Pascoaes

    releva no seu pensamento o papel da intuição, do inconsciente, o poder das forças

    vitais, espirituais e morais. Não será o único, longe disso. É com valores similares que

    o chamado neogarrettismo ou neorromantismo se afirma. Não lhe é alheio a

    experiência lírico-espiritual de Antero de Quental (1842-1891) que espelha o

    aperfeiçoamento moral e sistemático do Universo em constante aspiração ao Absoluto.

    De Guerra Junqueiro (1850-1923) bebe a retórica declamatória, o panteísmo místico e

    o evolucionismo espiritualista que transparece em Oração à Luz. De António Nobre

    tem em comum o nacionalismo decadente e fatalista onde encontra o sentido que o faz

    querer reavivar a memória de um antigo Portugal vigoroso. Em Verbo Escuro (1914),

    Pascoaes salientou em António Nobre a “graça do dizer”, referindo-se a um jeito não

    tão profundo e com um tom mais familiar e lúdico com metáforas extremamente

    próximas da realidade material e psicológica. A este respeito escreveu Pascoaes sobre

    Nobre:

    “Moreno coveiro, tocando viola,

    A rir e a cantar!

    Empresta, bom homem, a tua sachola,

    Eu quero cavar:

    E o vento mia! e o vento mia!

  • 40

    Que irá no mar!”

    (cf. Nobre, 2000: 39)

    Jacinto do Prado Coelho declara, no Preâmbulo de A Poesia de Teixeira de

    Pascoaes, que Pascoaes acusava a influência da atualidade literária à época. Refere,

    como seu principal modelo, António Nobre e “nas suas queixas de criança

    envelhecida”, no seu apego à melancolia, na proximidade ao desejo de retorno à

    infância, a espaços associados com as coisas simples da vida infantil e cristã, como se

    nelas se guardasse o Jardim perdido. O poeta de Só tinha em comum com Pascoaes a

    busca pela clausura desse Paraíso, etimologicamente esse “jardim fechado”, em que é

    possível evitar o confronto violento com a vida urbana, levando-o a habitar em

    espaços de ilusão alimentados pela memória da infância perdida. Também lhes era

    comum, a Nobre e ao nosso poeta, aquele estar só rodeado de pessoas: preferiam a

    solidão, a tristeza, o mundo ficcionado. Mas se António Nobre pode ter-se afastado da

    vida social por motivo de doença (de resto demonstra na sua obra este desespero de

    tentar e nunca conseguir alcançar a vida mundana), o mesmo não se passa com

    Pascoaes. O autor de Sempre cultiva amorosamente este modus vivendi.

    “Como eu vos amo, ó tardes de abandono

    A vossa mágoa é irmã da minha mágoa.

    Eu sou talvez – quem sabe? – um outro Outono,

    Folhas mortas caindo… charcos de água...”

    (Pascoaes, 1997: 107)

  • 41

    A origem destes pensamentos é elucidativa da vontade egocêntrica de se

    querer colocar no cerne da vida sem se querer mostrar. Pascoaes não estava preso ao

    mundo dos prazeres terrenos. Humano em si seria quase apenas o amor pela sua terra

    natal. Amaria, apesar de todos os seus esforços, não uma mulher real, mas uma

    “sombra de rapariga”.

    “O verdadeiro amor de Pascoaes dirigia-se à natureza, ao silêncio, ao mistério, às alegrias do

    inefável, aos mortos, aos fantasmas. O mundo fantástico era o seu mundo.” (Prado Coelho, 1945: 12)

    É neste contexto, e co-texto, que Pascoaes, diretor da revista A Águia, foi

    precursor do movimento literário denominado Saudosismo. Nesta revista, juntam-se-

    lhe outros nomes de comum afeição: Lopes Vieira (1878-1946), Correia de Oliveira

    (1879-160), Jaime Cortezão (1884-1960), com quem partilha algum apego ao valor

    deste “casticismo” guardado nas lendas de moiras, nas histórias de fantasmas, nos

    ditos populares, num mundo particular que por vezes não deixa ver a sua

    universalidade. Em tempos de mudança, influenciados pelo contexto sociopolítico que

    se sentia na altura, o tema da loucura é, por arrasto, revisitado. As particularidades dos

    indivíduos, como as particularidades dos povos, parecem ficar abafadas por uma

    globalização dos conflitos. Para isso, vimos já, contribuiu a Primeira Guerra Mundial

    (1914-1918), quando os avanços tecnológicos potenciaram a letalidade das armas

    químicas pela primeira vez utilizadas de uma forma maciça. Para além das mazelas

    nos comportamentos ou na linguagem, este tipo de armas químicas deixou um novo

    género de estropiados: os de alma. Muitos dos soldados gazeados desenvolveram

    formas de demência, de exclusão ou de auto-exclusão, provocadas pela violência de

    uma guerra que se tornou inesperadamente longa, até por causa dos químicos usados

    nas lutas de trincheira, de lenta progressão. Apollinaire, na guerra, interessou-se por

    estes fenómenos. Emanava deles uma espécie de linguagem desordenada segundo as

    regras gramaticais, mas verosímil do ponto de vista simbólico. O espírito de cada

  • 42

    indivíduo, o espírito de cada nação, onde ficam elas agora? Que fazer delas, quando

    parecem frágeis, inúteis?

    O início do século XX constituiu assim um meio propício ao

    desenvolvimento das tipologias da loucura e à reflexão de que eram causa e efeito. Por

    um lado, a evolução das ciências veio minimizar o erro; por outro lado, favoreceu o

    estudo fervoroso das relações sensíveis, nem sempre eram tidas em conta.

    Em que medida não é isto ainda a continuação de um pensamento romântico

    finissecular? O nosso Poeta procurava encontrar os outros em si. O eu é um reflexo de

    toda a humanidade. E o Marão, a sua aldeia, são o símbolo de Portugal e do Universo.

    É nos outros que ele se descobre e desvenda. E o tópico da loucura, sob este aspeto, é

    agora uma perceção da universalidade do particular, já não exclusiva do Poeta. Como

    lemos no poema “Quinta da Paz”, o que interessa ao louco comum e ao Poeta é o

    percurso, inconsciente ou consciente, por entre arquétipos e símbolos partilháveis:

    “[…] a Doida que ficou sozinha, neste mundo,/ Julgando ver em todas as crianças,/ Os filhos

    que perdeu…” (Pascoaes, 1997: 152)

    Conhecemos assim pela sua pena muitas personagens que vivem a loucura

    com a intenção de caminhar em busca da verdade. Na boca de um doido, a razão é

    ameaçada e tudo conspira para alcançar o verdadeiro. Por isso, Pascoaes recusa a

    distância ética concedida à loucura: ao contrário, ele aproxima-se dela porque a razão

    já não se distingue da loucura. Reconhece-se nela, porque é anterior a ela. A loucura é

    o cenário que distrai a consciência tranquila de uma razão segura de si mesma.

    Foucault recorda aqueles tempos não muito longínquos da História da Loucura, em

    que a loucura era interessante, porque reveladora de verdades ocultas:

  • 43

    “Até o começo do século XIX, e até a indignação de Royer-Collard, os loucos continuam a

    ser monstros — isto é, seres ou coisas que merecem ser mostrados.” (Foucault,1972: 158)

    A partir do século XVIII, os loucos passaram a ser dirigidos para

    estabelecimentos que se aproximavam da categoria de hospitais. De certa forma, isso

    aproximava-os já da condição de doentes que a psicologia/ psicanálise vai acentuar.

    Em A História da Loucura, Michel Foucault refere:

    “Alguns hospitais irão testemunhar sobre a existência desse estatuto, através da era clássica e

    até a época da grande Reforma. [...] é uma maneira, ainda de todo exterior, de abordar uma experiência

    bastante positiva da loucura ‒ experiência que, retirando do louco a precisão de uma individualidade e

    de uma estatura com as quais a Renascença o caracterizara, engloba-o numa nova experiência e lhe

    prepara, para além do campo de nossa experiência habitual, um novo rosto: exatamente aquele em que a

    ingenuidade de nosso positivismo acredita reconhecer a natureza de toda loucura.” (Foucault, 1972:

    138)

    Em Portugal, no século XIX, na aldeia em que cresce Teixeira de Pascoaes,

    há vários tempos no tempo: a loucura não se esconde inteiramente e há ainda qualquer

    coisa de profético no louco: a memória popular guarda melhor estes saberes que a

    erudita. É algo para ser visto e ouvido com atenção. O louco já não é um monstro que

    sobe do fundo de si mesmo, e a loucura é entendida como um conjunto de mecanismos

    incompreensíveis que, por usufruírem de uma certa liberdade, dessa hesitação

    racional, pode vagar para um universo verdadeiro, ainda que essa verdade seja do

    domínio do fantástico. No período clássico, a razão nascia no espaço da ética. A ética,

    como pensamento ordenado, funcionaria como oposição ao desatino. Mas entre a

    loucura e a razão, há um movimento de escolha, de liberdade: para alcançar a razão, a

    loucura tem de ser livremente excluída. Deixa, contudo, a sua sombra durante todo o

    processo, uma espécie de perigo, pronto a reacender a qualquer momento. No Século

  • 44

    XIX, frente à loucura, a razão tenderá a posicionar-se como uma necessidade positiva,

    e não mais no espaço livre de uma escolha (cf. Foucault, 1972: 58). E todavia, a visão

    de Teixeira de Pascoaes sobre a loucura permite-nos uma visão que uns poderão dizer

    mais antiga, outros mais romântica, outros permanente, sem tempo:

    “Cipriano, o doido que falava,/ Além do entendimento…/ Às vezes, com furor, gesticulava,/

    cabelo desgrenhado e solto ao vento…/ E falando, lá ia, a sós, pelos caminhos,/ Cheios de sol e de

    orações de pobrezinhos…” (Pascoaes, 1997: 153)

  • 45

    Capítulo 2. – LOUCURA E RECONHECIMENTO

    A voz da razão

    “Jesus foi divinizado pela morte e D. Quixote

    pelo ridículo. Não haverá parentesco entre a

    morte e o ridículo? […] Deus criou o mundo

    por ironia e ri nas estrelas da noite e nas

    lágrimas da nossa dor.”

    (Pascoaes, Livro de Memórias)

    A hiperconsideração do Eu é a primeira marca de loucura esquizofrénica. É

    devido a esta elevada autoconsideração que ele abraça o erro como verdade e vê a

    mentira como sendo uma realidade. A loucura é consequentemente uma espécie de

    sonho cujo acordar se receia, por se rebaixar a “auto-estima”. Esse pensamento

    centrado na autoconsideração, quando levada ao seu limite, parece não ser compatível

    com o pensamento filosófico, que metodicamente duvida das conclusões que lhe são

    apresentadas, mas também daquelas a que o pensamento vai chegando. Michel

    Foucault sintetiza:

    “No percurso da dúvida, é possível desde logo pôr de lado a loucura, pois a dúvida, na

    própria medida em que é metódica, é envolvida por essa vontade de despertar que, a todo momento, é

    um desgrudar voluntário das complacências da loucura. Assim como o pensamento que duvida implica

    o pensamento e aquele que pensa, a vontade de duvidar já excluiu os encantamentos involuntários do

    desatino e a possibilidade nietzschiana do filósofo louco. Bem antes do Cogito, existe a arcaica

    implicação da vontade e da opção entre razão e desatino.” (Foucault, 1972: 158)

  • 46

    Para compreender as funções da loucura no pensamento de Teixeira de

    Pascoaes, é importante perceber até que ponto existe algum tipo de colisão ou

    interseção entre a dúvida e a certeza, ou alguma coincidência irónica entre o autor e a

    personagem que se move no mundo imaginário do autor. Haverá algum diálogo entre

    o enunciado do sujeito e a consciência distanciada da sua posição? Tal parece ocorrer

    na criação literária, em que o autor se recria através de um intermediário, a

    personagem. No texto literário, loucura e pensamento ficam colocados num plano de

    equivalência, como se se validassem mutuamente. O pensamento de Foucault aponta

    para uma assincronia cultural na história do Ocidente: a separação entre o logos e o

    pathos, entre a filosofia e a literatura. Por ser retoricamente mais abrangente, por

    existir numa posição de excesso pode inclui as estratégias excluídas pelo discurso da

    filosofia. Por isso, em La Folie et la Chose Littéraire, Shoshana Felman escreve:

    “La folie, c’est dès lors l’excédent: la littérature moins la philosophie. Sans qu’elle se

    définisse elle-même en ces termes, l’histoire de la folie se dégage comme l’histoire de cet excédent, ou

    de ce résidu littéraire.” (Felman, 1977: 50)

    No entanto, em geral, o conhecimento filosófico ou psicológico da loucura,

    continua a não aceitar esse contributo literário: a literatura funda-se numa catarse, num

    espaço/ momento emotivo, em que um sujeito se apresenta como um outro, que é o

    seu prolongamento e o seu antagonista, identidade em diálogo. A filosofia e a ciência

    não aceitam a experiência lírica (mas também narrativa e dramática) que a literatura

    pressupõe. Exaltando somente o poder do logos, elaboram numa rejeição desse

    espaço/ momento em que a literatura se excede, em que o pathos é evocado. Para

    Foucault, contar a história da loucura é contar a história desta obliteração do pathos. É

    contar o caminho da loucura passando pela definição exclusiva de doença mental até

    ao momento do alargamento de limites em que deixou de ser apenas o objeto mental

    doente.

  • 47

    “La folie, qui n’est pas maladie mentale, qui n’est pas objet, n’est rien d’autre que cet

    ‘éclatement lyrique’ et l’excès de ces ‘valeurs pathétiques’; cette capacité de déchirement, de

    souffrance, de vertige et d’émotion, cette impuissante puissance de fascination littéraire: la folie, pour

    Foucault, ne signifie rien d’autre que le pathos lui-même; la notion de folie est alors elle-même une

    métaphore du pathos: du reste impensé de la pensée, de son excédent littéraire.” (Felman, 1978: 52)

    Na literatura, a loucura serve de metáfora ao pathos. Como que o justifica.

    Curioso é a loucura, ela mesma, estar presa num movimento ou estado patético, que

    acaba por ser redundante ou de difícil validação. Por isso, falar de loucura, na

    literatura, não é falar de razão nem de filosofia. No debate teórico sobre o estatuto da

    loucura, vagamos entre o conceito da metáfora e entre a metáfora do conceito.

    “Peut-être qu’après tout la folie de la philosophie et la philosophie de la folie ne sont que

    figures l’un de l’autre? Ce qui ne veut nullement dire que les deux positions reviennent au même: mais

    bien plutôt que si elles sont, toutes les deux, en position excentrique l’une par rapport à l’autre, eles sont

    aussi, toutes les deux, en position excentrique par rapport à leur propre opposition, à la structure de leur

    alternative.” (Felman, 1978: 54)

    É o mesmo que dizer que a posição de quem diz (enunciador) não pode

    coincidir com a posição do sujeito (paradoxalmente, é o mesmo de quem diz). Na

    cultura popular: qual é o tolo que diz que é tolo? A loucura não pode ser lida como

    conceito metafórico, enquanto a metáfora excluir a linguagem da metáfora. Se, por um

    lado, a loucura tem de absorver o maior significado possível (como filosoficamente

    lhe é pedido), por outro, ela terá de se exceder, de sair fora do corpo que a contém,

    para “literariamente”, causar a maior ressonância possível. Esta indecisão do conceito

    de loucura parece ser para Foucault uma consequência retórico-teórica, em que é

    próprio da loucura não ser um conceito rigoroso e fechado:

  • 48

    “[...] métaphore de la métaphoricité radicale qui régit les concepts en tant que tels; métaphore

    de la littérature qui régit la philosophie à partir de son oblitération.” (Felman, 1978: 54)

    Foucault refere ainda que a loucura não é mais que a ausência da obra. A

    loucura produz obras que, no limite, sempre se transformam de forma a manterem-se

    incognoscíveis, sem que se consiga perceber os limites da definição. São limites

    incontroláveis porque estamos a falar num campo retórico e não temático. Quando a

    «loucura» é invocada, há uma excentrificação do lugar da loucura (por ser uma

    evocação retórica e não relativa ao seu centro conceptual rigoroso). A loucura é uma

    questão infinita, que se nega e reescreve continuamente. Haja discernimento para a

    saber ler, para a saber questionar mesmo quando, através do silêncio, somos nós os

    questionados. Mesmo quando falarmos dela, é de nós que estamos a falar. Esta é uma

    das mais irónicas vantagens da loucura.

    No poema narrativo de Pascoaes O Doido e a Morte (de 1912), a Morte, que

    cavalgava, a largo trote, numa noite fria de Natal, deparou-se com um estranho

    viandante que se ri dela num primeiro momento. Encara-a, inicialmente despreza-a.

    Perplexa, a Morte encanta-se pela loucura do Doido. Mas quando, no final do poema,

    as duas personagens se separam, percebem que têm uma nova perceção do Mundo. Já

    nada é como o sabiam. Diz a Morte:

    “– Que hei-de fazer? Cumprir o eu fadário.

    Antes de haver no mundo o teu delírio,

    Eu existia já, tu compreendes?”

    (Pascoaes, 1998: 288)

  • 49

    O Doido prossegue o canto, agora já não de desprezo, mas de júbilo:

    “Tive a morte nos braços, que alegria!

    Que loucura!

    Nas trevas encontrei a luz do dia,

    Nas pedras, a ternura.”

    (Pascoaes, 1998: 290)

    No final do poema, como que se abrem os segundos olhos, os da Morte e os

    do Doido: descobriram uma verdade que antes, à primeira vista, não conseguiam

    perscrutar. Diz o Doido:

    “E eu ri, de noite. E fiz mais:

    Bebi o riso na origem,

    Nesses lábios espectrais

    Da morte virgem!

    Vi o riso verdadeiro,

    O riso desmascarado;

    Não esse riso amortalhado

    Em nevoeiro…”

  • 50

    (Pascoaes, 1998: 291)

    E a Morte diz:

    “Ceifei; mas quero agora semear.

    E já não murcha as flores o meu beijo,

    Nem põe nódoas nos olhos das estrelas.”

    (Pascoaes, 1998: 287)

    Pascoaes, carregando a missão profética do Poeta, concentra-se em destapar

    as coisas pequenas, indícios, desvelando o seu nível extraordinário. No apego

    imaginário a si mesmo, tanto a Morte como o Doido fazem-se surgir, no final do

    poema, um cenário novo e improvável. Por trás do símbolo da loucura, o Doido reflete

    a imagem inicial do seu pressuposto. A loucura não tem tanto que ver com a verdade e

    com o mundo, mas está intimamente relacionada com a verdade que o mesmo acredita

    percecionar. A loucura está, portanto, conectada com o mundo moral:

    “A razão é irracional, Deus humano, e sobrenatural a Natureza.” (Pascoaes, 1993: 9)

    Não é por acaso que a cena se passa na noite de Natal. A ironia da situação

    reside no facto de as personagens perceberem a discrepância entre a intenção e o

    resultado da ação. Pascoaes define-se pelo desejo de recuperar o passado idílico,

    paradisíaco, sagrado. Um reencontro com Deus, quase sempre inominável afinal.

  • 51

    Talvez por isso, a poesia do autor tenha pontos em comum com as Sagradas

    Escrituras: interessa-lhes um significado simbólico, nunca literal, ainda que centradas

    nos aspetos concretos do real.

    Sobre este assunto, diz Pierre Schoentjes:

    “Les Évangiles aussi jouent régulièrement sur ce type de renversements et rebondissements et

    ils transforment même en maxime l’idée de justice que véhicule ce genre d’anecdotes. […] Dans un

    même ordre de pensée, tout le monde a en mémoire le principe de renversement selon lequel les

    premiers seront les derniers, principe qui permet au Christ d’organiser son discours sur les Béatitudes.”

    (Schoentjes, 2001: 51)

    Na história do conceito de “ironia”, a ironia de situação seria uma expressão

    bem mais recente que a utilização da ironia verbal. As palavras “irónico” e “ironia”

    estariam intimamente ligadas a casos de ironia de situação, ou vulgarmente chamadas

    “ironias do destino”. Na ironia de situação, o destino, o fatum não pode ser controlado,

    é imprevisível e desvia o resultado do expectável. Como refere Pierre Schoentjes em

    Poetique de l’Ironie:

    “Confronté à un agencement particulier des faits dans lequel ce qui se produit est en

    contradiction flagrante avec ce qu’il avait prévu ou avec ce qu’il considère comme l’ordre du monde,

    l’homme éprouve toujours une surprise.” (Schoentjes, 2001: 50)

    Schoentjes distingue as ironias de situação em duas categorias: as ironias

    pictóricas ou figurativas e as ironias de situação, narrativas.

    As ironias pictóricas ou figurativas encontram-se em situações mundanas e

  • 52

    comuns, onde elementos aparentemente opostos coexistem em harmonia, de forma

    íntima e inextrincável. Na Natureza, como na vida social, existem quadros onde a

    beleza se acha lado a lado com o grotesco (as flores por cima do caixão prestes a entrar

    na terra), ou o elemento ardente se conjuga com o gélido (o vulcão que explode para o

    mar). Talvez essa coincidentia oppositorum faça parte do processo de equilíbrio que o

    mundo precisa para se manter vivo, dinâmico. Mas as ironias de situação narrativas

    não operam apenas com dois elementos contraditórios. São processos de

    transformação de uma intriga que se desenrola durante um determinado período e que

    se desenvolve independentemente da atenção do leitor. Este pode ser vítima de um

    impedimento, não conseguindo visualizar por inteiro a situação, por não estar

    consciente do jogo entre o ser e o parecer, entre a verdade e as suas aparências. O nó

    está, por exemplo, no contexto: é ele que revela o que está ocultado. Ou na linguagem

    o engana. Também através da palavra (que, por excelência é o veículo primeiro de

    intercomunicação humana), a ironia se revela, com variabilidade e subtileza. A ironia

    está na expressão da pluralidade do que é dito: há falsas sinonímias, homonímias,

    imprevistas combinações possíveis de sons e sentidos. O pensamento fica dissimulado

    por entre as palavras. Se normalmente o significado se adequa ao significante,

    anormalmente, na ironia verbal, o corpo formal da palavra dissocia-se do seu

    conteúdo, criando “realidades” antitéticas ou incompatíveis. Esta dissociação atinge o

    seu extremo com a ironia, figura do discurso, quando a frase ‒ que deixou de exprimir

    diretamente o que o pensamento quer – passou a significar o contrário do que se deseja

    dizer. Na ironia, alcança-se a verdade pelo seu caminho negativo, virando-a do avesso.

    Por vezes, só pela intuição se consegue aperceber a sua presença. Falando nos indícios

    de ironia que o autor deixa ao leitor (nesse caso, na linguagem escrita), a ironia poderá

    intuir-se pelo uso do itálico. Quando falamos de um ouvinte, a ironia é intuída pela

    entoação. Mas, no limite, nenhum sinal é necessário.

    Na ironia, não há leitores passivos ou ingénuos: o leitor é obrigado a tomar

    uma posição ativa porque lhe é exigido um desdobramento lúdico para compreender

    algo que se opõe à expressão linear/ literal do pensamento. Como diria Jankélévitch: a

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    ironia não vem tanto para dizer mas mais para sugerir. Ou como diria Pascoaes: “há

    distâncias que aproximam”.

    Em todo o caso, a ironia assume-se como um discurso de rutura, e nisto se

    aproxima do discurso da loucura pois o discurso de um louco já vem desgarrado da

    realidade. Na loucura, há uma descontinuidade discursiva que é causa e efeito de

    alheamento do real pelo louco. E, no entanto, a sua linha de pensamento permanece

    presa por ténues fios de aranha à sua própria “verdade”, teia internamente coerente.

    Há, de facto, uma coerência íntima nos loucos que rodeiam Pascoaes desde a infância

    e que este faz questão de manter vivos, com a mesma idiotia, teimosia, retratada em

    Lucrécia ou no filho da Viscondessa de Tardinhade:

    “E o filho idiota do visconde, há mais de quarenta anos, a perseguir um inseto ideal que não

    existe?” (Pascoaes, 2001: 135)

    A ironia não se limita a sobrepor os princípios mais paradoxais. Ela interliga,

    num esforço aberrante, linguagens heterogéneas para que, deste modo, possa alcançar

    a imprevisibilidade, tirando partido do conflito entre significados e significantes.

    Um louco e um irónico podem ter o mesmo discurso. Mas o irónico necessita

    da consciência racional para formular a ironia porque domina o plano do real e possui

    com ele a capacidade de manipular e subverter a linguagem por forma a sugerir novas

    interpretações. Por outro lado, o louco não dispõe das mesmas armas (a dúvida, o

    distanciamento da sua própria visão) e por isso não consegue manusear o discurso por

    forma a dar-lhe uma nova intenção. O louco não tem domínio sobre a razão porque se

    mantém no plano da inocência (qual é o louco que diz que é louco?). Utilizando a

    ironia verbal, por exemplo, diz o falante irónico: Que bom violinista que ele é!

    querendo dizer exatamente o contrário. No entanto, o louco pode ter o mesmo

    discurso: Que belo som ele retira do seu violino!, quando na verdade, o som horrível

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    se lhe configura como uma realidade em que ele acredita. Não há segundo plano na

    intenção do seu discurso.

    Então, o louco e o irónico podem ter o mesmo discurso, mas o louco não pode

    ser irónico. Nem o irónico pode ser somente louco. É necessário na ironia haver um

    sentido de exagero (desde logo nos indícios deixados ao recetor, nos itálicos ou na

    entoação enfática): deve ser notável uma predisposição para hiperbolizar o que não é

    real. Exagera-se para salientar a margem de dúvida. Isto é, o discurso irónico só é

    certo quando não há margem de dúvida sobre o pensamento visado (quarenta anos a

    perseguir um inseto parece exagerado e, todavia, tal frase não poderia ser dita por um

    louco, que o consideraria um tempo normal). Na frase Que bom violinista!, o recetor

    subtil ou informado, atento ao jogo de dissimulação, percebe que o violinista é mesmo

    muito mau. Não é só um pouco mau, também pode não ser péssimo. A ironia é

    sobretudo uma forma de enfraquecer a rigidez do real. A ironia vem instalar uma

    dúvida entre o real e o exagerado. Poderá um louco ser irónico? Não cremos. Se um

    louco pudesse ser irónico, rasgar-se-ia toda a possibilidade de ironia, já que o peso

    ultrajante da ironia saindo da boca de um louco pressupõe a ponderação de uma

    fronteira dúbia entre a verdade e o seu exagero. O violinista tem de facto de ser muito

    mau para que até um louco se aperceba. Neste ponto,