obra completa - animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

116
ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO A A N N I I M M A A I I S S S S I I L L V V E E S S T T R R E E S S E E O O P P R R O O P P Ó Ó S S I I T T O O D D E E E E S S T T I I M M A A Ç Ç Ã Ã O O GUARULHOS, 2001 Edição revisada em 2013

Upload: franco-nassaro

Post on 06-Jul-2015

2.212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Escrevi essa monografia jurídica em 2001, para obtenção do título de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (Curso Superior de Direito) nas FIG, em Guarulhos. Em 2013, atualizei por completo o texto e sua apresentação (revisão) e, agora, disponibilizo-a em formato e-book (pdf) para livre acesso (visualização e também para download - tecla save). A tese e as ideias apresentadas são originais. A pesquisa continua inédita. Tenho orgulho dessa obra. Críticas e sugestões são bem-vindas.

TRANSCRIPT

Page 1: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

1

ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO

AANNIIMMAAIISS SSIILLVVEESSTTRREESS EE OO PPRROOPPÓÓSSIITTOO DDEE EESSTTIIMMAAÇÇÃÃOO

GUARULHOS, 2001 Edição revisada em 2013

Page 2: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

2

ANIMAIS SILVESTRES E O PROPÓSITO DE ESTIMAÇÃO

Monografia apresentada às Faculdades Integradas de Guarulhos (FIG),

como Trabalho de Conclusão do Curso de Direito e obtenção do título de

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais.

Ano: 2001

ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO

Guarulhos

Edição revisada em 2013

Page 3: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

3

DEDICATÓRIA

Ao Pietro Augusto Nassaro, meu filho.

Que ele possa conhecer os animais silvestres

no seu ambiente natural ou, porventura,

em algum cativeiro preservacionista.

Que ele possa ser beneficiário

de toda a riqueza ambiental

de que dispomos.

Page 4: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

4

AGRADECIMENTOS

Aos dedicados integrantes do Comando de Policiamento Ambiental

(CPAmb) e seus batalhões, órgão fiscalizador do aproveitamento dos recursos

naturais e pioneiro na defesa do meio ambiente de São Paulo. O trabalho junto ao

CPAmb despertou o interesse do autor pelo estudo da legislação aplicada à fauna.

Ao Des. Álvaro Lazzarini, pelas preciosas lições de Direito Administrativo.

A cada dia seus ensinamentos revelam-se atuais e imprescindíveis ao bom trabalho

do administrador público.

Ao Des. Celso Luis Limongi, que gentilmente ofereceu a correção da

obra, valorizando a sua apresentação.

A João Daniel Rassi, brilhante Professor de Direito Penal, pela orientação

e acompanhamento do trabalho de pesquisa.

A Vander Ferreira de Andrade, companheiro de profissão e Professor

talentoso, pelas valiosas sugestões apresentadas.

A Marcelo Robis Francisco Nassaro, estudioso da matéria ambiental, pelo

fornecimento de material bibliográfico. Sua mais enriquecedora contribuição foi o

incentivo que um irmão é capaz de dar.

Page 5: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

5

“Deus disse: ‘Produza a terra seres

vivos segundo a sua espécie: animais

domésticos, répteis e animais selvagens,

segundo a sua espécie’.

E assim se fez. Deus fez os animais

selvagens segundo a sua espécie, os

animais domésticos igualmente e, da mesma

forma, todos os animais que se arrastam

sobre a terra. E Deus viu que isto era bom.

Então Deus disse: ‘Façamos o homem

à nossa imagem e semelhança. Que ele

reine sobre os peixes do mar, sobre aves

dos céus, sobre os animais domésticos e

sobre a terra, e sobre todos os répteis que se

arrastam sobre a terra’.”

Livro do Gênesis, capítulo I, “A criação”,

versículos 24-26

Page 6: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

6

SUMÁRIO

1.

(INTRODUÇÃO).......................................................................................................08

2. CONCEITOS E CLASSIFICAÇÃO DOS ANIMAIS....................................................11

2.1 Conceitos Básicos..................................................................................................12

2.1.1 Espécie..............................................................................................................12

2.1.2 Espécime...........................................................................................................15

2.1.3 Animal................................................................................................................15

2.1.4. Fauna................................................................................................................16

2.1.5 Espécie nativa e espécime natural...................................................................17

2.2 Como se classificam os animais..............................................................................19

2.2.1 Fauna silvestre..................................................................................................19

2.2.2 Fauna doméstica: os utilitários e os de estimação............................................22

2.2.3 Domesticados....................................................................................................26

2.2.4 Fauna exótica....................................................................................................27

2.2.5 Animais em cativeiro..........................................................................................31

2.2.6 Animais em liberdade........................................................................................33

3. EVOLUÇÃO DA TUTELA LEGAL DA FAUNA NO BRASIL......................................35

3.1 Legislação anterior à Constituição Federal de 1988............................................36

3.1.2 A Lei 5.197/67 e a interpretação do vocábulo “utilização”..............................38

3.2 A mudança do tratamento jurídico da fauna, do início do século XX

até a Constituição de 1988.................................................................................42

3.3 A mobilização mundial a partir da segunda metade do século XX.....................44

3.4 A fauna silvestre como bem público de interesse difuso....................................47

3.5 Inovações da Lei 9.605/98 em relação à proteção da fauna..............................52

A MANTENÇA DE ANIMAL SILVESTRE A PROPÓSITO DE ESTIMAÇÃO

Page 7: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

7

4. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 29 DA LEI 9.605/98..............................................54

4.1 Os quatro enfoques do artigo 29 da Lei 9.605/98..................................................55

4.1.1 Proteção da integridade dos animais silvestres................................................56

4.1.1.1 Os atos de caça e a integridade dos animais silvestres..............................60

4.1.2 Proteção da capacidade de reprodução da fauna...........................................65

4.1.3 Proteção da integridade dos ninhos, abrigos e criadouros naturais................67

4.1.4 Restrição da exploração econômica do animal silvestre e de seus

subprodutos.....................................................................................................69

4.2 A guarda doméstica e a hipótese de perdão judicial............................................73

5. O APROVEITAMENTO DOS RECURSOS DA FAUNA SILVESTRE......................77

5.1 Custo ambiental e intervenção humana no meio natural......................................78

5.2 O aproveitamento privado do animal silvestre......................................................83

5.3 Conceito de posse aplicado ao animal silvestre...................................................86

6. EXERCÍCIO IRREGULAR DA MANTENÇA, SANÇÃO E APREENSÃO................91

6.1 A posse injusta de animais silvestres e a necessidade de incentivo ao comércio

legal.....................................................................................................................92

6.2 A preferência popular pelo papagaio e a devida preservação das espécies

da fauna silvestre................................................................................................95

6.3 Eventual sanção para a posse injusta na mantença de animal silvestre a

propósito de estimação......................................................................................99

6.4 A questão da apreensão do animal silvestre.....................................................104

7. CONCLUSÕES......................................................................................................110

Page 8: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

8

1. A MANTENÇA DE ANIMAL SILVESTRE A PROPÓSITO DE ESTIMAÇÃO

(INTRODUÇÃO)

A conduta de mantença de animal silvestre a propósito de estimação é

comum no Brasil, tanto no meio rural quanto no meio urbano. Espécimes diversos

como papagaios, araras, macacos e tartarugas, integrantes da fauna silvestre, são

mantidos em ambiente doméstico sem autorização ou licença devida1. Apesar da

irregularidade dessa situação, muitos cidadãos mantêm animais bem cuidados,

submetidos à condição de ente de estimação.

O vocábulo “mantença” ora adotado significa, exatamente, provimento de

sustento, ou mantenimento. Portanto, o seu emprego é adequado para identificar a

conduta do possuidor que trata do espécime simplesmente para o propósito de

estimação e nunca para finalidade comercial ou de utilização, em sentido estrito.

Manter simplesmente um animal silvestre em ambiente doméstico a

propósito de estimação não representa um mal em si e não constitui ação moralmente

reprovável; aliás, diversas espécies foram salvas da extinção em razão de que foram

preservados espécimes representativos em cativeiro. Todavia, a conduta tolerada pode

estimular a retirada ilegal de espécimes do meio natural e o seu comércio clandestino,

comprometendo a perpetuação das espécies e o equilíbrio ecológico; esta é a grande

preocupação dos ambientalistas e estudiosos das questões da fauna.

No Brasil, a Lei 9.605/98 que trata dos crimes ambientais deu margem a

algumas interpretações, menos ou mais rigorosa, sobre o tema proposto. Afinal, a

mantença de animal silvestre é crime ou não? Em que condições é possível identificar

1 A legislação brasileira admite a compra e a venda de animais silvestres a títulos diversos, como se observa no artigo 19 da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais), em que se nota a excludente de ilicitude do crime relacionado ao comércio, transporte e depósito de animal silvestre, entre outras condutas, quando o espécime é proveniente de criadouros autorizados ou mediante a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. Já a Portaria do IBAMA nº 117, de 15 de outubro de 1997, que regulou a compra e venda de animais silvestres, estabeleceu em seu artigo. 10: “Os animais vivos da fauna silvestre brasileira poderão ser comercializados por criadouros comerciais, jardins zoológicos devidamente registrados no IBAMA e por pessoas jurídicas que intencionem adquirir animais e revendê-los a particulares para dar inicio à criação

comercial ou conservacionista ou para aqueles que pretendam mantê-los como animais de

estimação” (grifo nosso).

Page 9: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

9

o propósito de estimação? E como distinguir o propósito de estimação do propósito de

utilização? Pois bem, estima-se que mais de 500.000 espécimes da fauna silvestre

são mantidos no interior de casas e em quintais, apenas no Estado de São Paulo, na

condição de bichos de estimação2. Qualquer um de nós conhece um vizinho, um

parente, ou um amigo que possui animal silvestre em casa e quase todos não têm

licença ou autorização para tanto. Essa é a realidade.

Todos os mantenedores em situação irregular são criminosos? Qual o

grau de lesividade da conduta ao meio ambiente? Quais os mecanismos legais

eficazes para desestimular a posse injusta do animal silvestre? É possível

compatibilizar a vontade popular de se manter, por exemplo, um papagaio em casa e

ao mesmo tempo perpetuar a espécie silvestre especialmente protegida em lei?

São estas as indagações que motivaram o esforço de pesquisa e o

exercício de raciocínio sobre os dispositivos legais aplicáveis ao tema, que se revela de

interesse multidisciplinar, razão pela qual foi ele explorado no âmbito de diversos

ramos do Direito, especialmente o Penal, o Administrativo, o Constitucional, o Civil e o

mais recente Direito Ambiental, que vem conquistando um espaço de destaque.

Mas a pesquisa não se limitou ao campo jurídico. Trata-se de assunto

complexo e raramente explorado na literatura, circunstância que exigiu prévia análise de

conceitos ambientais e reflexões sobre os aspectos histórico, social, cultural e ecológico

que influenciam decisivamente a correta interpretação da norma legal. Diante disso,

impôs-se a produção de um capítulo especialmente para a apresentação do resultado de

uma preliminar análise conceitual que abre o desenvolvimento do trabalho.

2 O Boletim Técnico n. 2, Ano I, de 15 de agosto de 2000, do Comando de Policiamento Florestal e de Mananciais, atual Comando de Policiamento Ambiental de São Paulo, sob o título: “Guarda Doméstica de Espécie Silvestre a Título de Estimação”, registrou: “Estima-se que há hoje mais de 500 mil animais silvestres vivendo em cativeiro em todo o estado de São Paulo, na condição de animais de estimação, recebendo tratamento razoável, não havendo qualquer possibilidade de dar-lhes outra destinação melhor e mais adequada, por falta de estrutura ou de acompanhamento técnico especializado, até porque o animal silvestre, depois de domesticado, perde suas características naturais de sobrevivência, não podendo mais ser reintegrado ao seu habitat natural”. Mesmo diante da inexistência de dados estatísticos confiáveis, mas levando-se em conta a totalização de apreensões ou simples constatações de animais silvestres em cativeiro na sequência dos anos seguintes, acredita-se que a estimativa estava correta no ano 2000 e continua hoje próxima do real.

Page 10: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

10

A verificação da evolução da tutela ambiental, em especial a tutela da

fauna no Brasil, mereceu destaque em vista de que não é possível compreender a

legislação atual referente a assunto tão específico sem conhecer o desenvolvimento,

no curso da história, do esforço legal de preservação dos recursos ambientais,

particularmente os da fauna silvestre.

A interpretação do artigo 29, da Lei 9.605/98, com todas as suas

previsões de condutas criminosas contra a fauna, subsidia o estudo centrado na

abordagem da teoria da posse aplicada ao animal silvestre. Parte-se do princípio de

que, por disposição legal, a fauna silvestre é propriedade da União e que é possível o

aproveitamento privado, mediante autorização para a mantença de animal silvestre a

propósito de estimação.

Buscou-se uma abordagem prática da questão, sem omissão das

características do contexto atual, a fim de que a interpretação dos dispositivos legais

viabilize a adoção de medidas coerentes, não somente subordinadas ao princípio da

legalidade, mas também ao da razoabilidade e ao da realidade. Nessa linha, foram

analisados o problema da apreensão dos espécimes mantidos em ambiente doméstico

e suas consequências, bem como a forma de atuação do órgão de fiscalização

ambiental estadual de São Paulo.

Enfim, o tema desenvolvido abre espaço para amplo debate sobre a

compatibilização dos interesses sociais, primeiro, quanto à necessidade de

perpetuação das espécies da fauna silvestre, para que possam desempenhar sua

função ecológica no meio natural e, segundo, quanto à possibilidade de exercício da

mantença de animais silvestres em ambiente doméstico, questão para a qual se

propõe solução que viabilize a sadia qualidade de vida humana, em amplo e irrestrito

sentido, e o respeito à integridade das demais formas de vida, mediante um justo

aproveitamento dos recursos da fauna disponibilizados ao homem.

Page 11: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

11

2. CONCEITOS E CLASSIFICAÇÃO DOS ANIMAIS

Antes do estudo da legislação vigente voltada às questões da fauna e

suas implicações, faz-se imprescindível a análise dos significados de vocábulos e

expressões básicas nela empregados com frequência, além da verificação da própria

classificação dos animais para efeitos jurídicos e operacionais.

Ao mesmo tempo em que são desenvolvidos os conceitos, é abordada a

questão da imprescindibilidade da integridade da fauna para a preservação do

equilíbrio ambiental, possibilitando a relação entre as diversas normas vigentes, o que

favorece a compreensão dos dispositivos legais em destaque.

Tal providência é justificável em virtude de que o assunto apresenta

peculiaridades e há escassez de literatura especializada na área do direito aplicado à

fauna. De fato, são poucos os doutrinadores que se aventuram em tecer comentários

sobre o tema proposto, mormente com uma abordagem prática que tanto interessa aos

operadores do direito e aos estudiosos da fauna.

Importante salientar que semelhantes expressões podem apresentar

diferentes significados do mesmo objeto, em normas que tratam de assuntos

correlatos, algumas indicando seu sentido mais amplo, outras indicando seu sentido

mais estrito, o que aumenta a necessidade de cautela na avaliação dos conceitos

utilizados. Comum, inclusive, o registro de definições no próprio texto legal com o

evidente propósito de evitar interpretações que não correspondam à expectativa do

legislador quanto à proteção da fauna.

Assim, a verificação do vocabulário básico e a assimilação de

conhecimentos fundamentais permitem ao pesquisador situar-se no contexto das

normas ambientais aplicáveis à fauna, garantindo-lhe a capacidade de identificação

dos seus principais elementos e, principalmente, a percepção de seu real significado,

que sempre se revela em favor do meio ambiente ecologicamente equilibrado, pois é

este exatamente o objetivo da tutela jurídica dos animais.

Page 12: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

12

2.1 Conceitos básicos

2.1.1 Espécie

Espécie é a unidade biológica fundamental. Sem ingressar em debate

teórico no campo das classificações científicas - de taxonomia - pode-se afirmar que,

basicamente, espécie é um conjunto de indivíduos que possuem várias características

semelhantes entre si e em relação aos seus ancestrais e que, além dessas

semelhanças, ainda se entrecruzam. O entendimento inicial evoluiu para um conceito

biológico, como explica Mayr:

Desse critério que leva em conta o não cruzamento veio o chamado

conceito biológico de espécie. Uma espécie, de acordo com esse conceito, é um grupo de populações naturais, que se cruzam entre si que é reprodutivamente (geneticamente) isolado de outros grupos semelhantes por causa de barreiras fisiológicas ou de comportamento

3.

A tradicional estrutura hierárquica de classificação usada em biologia, do

nível maior para o menor, é o seguinte: vida, domínio, reino, filo ou divisão, classe,

ordem, família, gênero, espécie (baseado na taxonomia de Linnaeus). No propósito de

análise ora apresentado, serão abordados os níveis espécie, gênero e família,

levando-se em conta o critério do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica

adotado pelo XV Congresso Internacional de Zoologia, Londres, em julho de 1958. Por

essa convenção, a nomenclatura zoológica definida como “sistema de nomes

científicos aplicados a unidades taxonômicas de animais (táxons; singular: táxon) que

se sabe existirem na natureza, vivos ou extintos” (artigo 1º), definem-se critérios para

identificação e denominação exatamente desses três grupos básicos, padronizando-se

o emprego dos respectivos nomes4.

Levando-se em conta que várias espécies constituem um gênero e vários

gêneros constituem uma família, observaremos a seguinte sequência lógica dos

3 MAYR, Ernst. Isto é Biologia: a ciência do mundo vivo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 179.

4 PAPAVERO, Nelson, org. Fundamentos práticos de taxonomia zoológica: coleções, bibliografia,

nomenclatura. 2. ed. ver. e ampl. São Paulo: UNESP, 1994, p. 193.

Page 13: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

13

conceitos, tendo por base o emprego dos termos na legislação vigente, em harmonia

com os critérios de fundamento biológico (do menor para o maior nível): o indivíduo:

unidade distinta, espécime, exemplar de uma espécie; a espécie: conjunto de

indivíduos, na condição já apresentada; gênero: espécie ou espécies que integram

uma categoria natural e a família: congregação de gêneros.

Ainda que os dispositivos legais tratem sempre da “espécie” como nível

básico, convém observar que ela pode tecnicamente ser dividida em subespécies e

estas ainda em variedades, ou seja, grupos de indivíduos com pequenas variações

uniformes em suas características, mantendo, todavia, semelhanças em comum que

definem a mesma espécie a que pertencem. Essa mínima variedade uniforme

observada consiste em uma chave que demonstra a dinâmica da natureza, em um

argumento importante para as ideias de Darwin, defendidas na sua obra clássica A

Origem das Espécies, em 1859:

Até o presente não se conseguiu traçar um limite entre as espécies e as subespécies, isto é, entre as formas que, na opinião de alguns naturalistas, podiam ser consideradas quase como espécies sem o merecerem totalmente. Não se conseguiu, além disso, traçar uma linha de demarcação entre as subespécies e as variedades bem características, ou entre as variedades apenas sensíveis e as diferenças individuais. Estas diferenças incorporam-se uma na outra por graus insensíveis, constituindo em verdadeira série; ora, a noção de série implica as ideias de uma transformação real

5.

O gênero pode ser constituído de apenas uma espécie, por exemplo, o

próprio gênero humano, que é composto tão somente da espécie humana6. Em regra,

porém, na organização dos seres vivos proposta pela biologia, são verificadas

coleções de grupos que congregam características físicas e comportamentais

marcantes, obedecendo-se critérios objetivos para tal classificação, o que caracteriza o

coletivo “espécies” vinculadas a um gênero.

5 DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 67.

6 O Homo sapiens é espécie pertencente ao gênero Homo, da família Hominidae (taxonomicamente: Homo sapiens; tem por significado em latim: "homem sábio"). Sua capacidade mental associada às características físicas (corpo ereto e uso dos braços) proporcionou-lhe a capacidade de alterar o ambiente ao seu redor e dominar outras espécies de forma única.

Page 14: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

14

Identificam-se as espécies, particularmente, em virtude das qualidades do

seu hábitat natural, ou seja, do ecossistema em que naturalmente são encontrados os

seus representantes. Aliás, as próprias características das espécies também decorrem

da influência do meio em que evoluíram, em razão da somatória de mínimas variações

genéticas, verificadas nos ciclos da vida animal.

Podem as espécies, portanto, serem classificadas como próprias de uma

região ou de um país, em razão do local em que se encontra seu meio natural. Assim,

para aplicação da legislação pertinente, é fundamental observar que existem espécies

brasileiras, também denominadas próprias da fauna brasileira, e aquelas que não

integram a fauna nacional. Importante tal divisão para se verificar, por exemplo, o valor

ecológico de um animal em determinado espaço natural, definindo-se sua condição de

parte, ou não, essencial ao equilíbrio do ecossistema local.

Ainda sobre a distribuição geográfica das espécies, convém observar que

um animal introduzido em ecossistema diverso do seu, em contato com animais de

espécies distintas, pode trazer prejuízos ao equilíbrio ecológico da região, interferindo

na ocupação dos espaços naturais, na cadeia alimentar ou, ainda, disseminando

doenças contra as quais os animais locais não possuem defesas orgânicas

desenvolvidas.

Evidentemente as fronteiras dos países não são respeitadas pelas

espécies animais - que têm os seus próprios critérios de ocupação de espaço -,

exatamente porque o seu hábitat natural pode estender-se por mais de um território

geograficamente identificado pelo homem, em áreas contínuas ou não. Por exemplo, o

ecossistema conhecido como Pantanal encontra-se em grande parte no território

brasileiro (dois terços do seu total) estendendo-se aos territórios da Bolívia e do

Paraguai e isso faz com que as mesmas espécies consideradas brasileiras, que

povoam a região, também sejam consideradas nativas (próprias) da Bolívia e do

Paraguai.

Page 15: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

15

2.1.2 Espécime

Como visto, a palavra “espécime” possui um sentido totalmente diferente

da palavra “espécie”, mas, devido à semelhança de grafia dos dois vocábulos, tem sido

notada imprecisão em relação ao seu emprego, mesmo na redação das leis. A

distinção é simples: espécime é um indivíduo representativo de um grupo (espécie,

gênero ou família), ou seja, qualquer animal ou planta - aqui compreendidos como

representantes do reino animal ou do reino vegetal -, ao contrário da espécie, que é

um conjunto de espécimes com características comuns. Também o animal morto é

considerado juridicamente um espécime, desde que não tenha passado o seu corpo

por processo de modificação para se chegar ao “produto” ou deste para o

“subproduto”7.

Oportuno destacar que o vocábulo “espécime” é um substantivo

masculino, devendo ser precedido do artigo “o” para referir-se tanto a exemplar macho

quanto a exemplar fêmea (“o espécime”), em oposição à “espécie”, que é um

substantivo feminino que representa, no âmbito da fauna, determinado coletivo de

animais.

Na sua forma plural - “espécimes” - o vocábulo é utilizado para descrever

indivíduos que podem pertencer ou não à mesma espécie.

2.1.3 Animal

O vocábulo “animal” possui dois sentidos principais encontrados nos

dicionários; o primeiro, mais amplo e originado na zoologia, corresponde à: “ser

organizado, com a forma do corpo relativamente constante, órgãos na maioria internos,

tecidos banhados em solução que contém cloreto de sódio, células revestidas de

membranas delicadas, com crescimento limitado, e provido de irritabilidade ou sistema

7 Por exemplo, as penas de uma ave silvestre multicolor podem ser compreendidas como um “produto”

da fauna silvestre, enquanto que um trabalho de decoração ou artesanato mediante uso desse mesmo material é considerado um “subproduto”.

Page 16: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

16

nervoso, que lhe permite responder prontamente aos estímulos”; o segundo, que exclui

o ser humano, indica: “qualquer animal que não o homem; o animal irracional” 8.

Objetivamente, quando a legislação utiliza a palavra “animais”, sem

qualquer adjetivo que a qualifique, pretende representar o conjunto de seres vivos

excluindo-se os integrantes da flora (Reino Vegetal ou Reino Plantae) e o ser humano.

O sentido jurídico da palavra, portanto, é o segundo, ou seja, diz respeito a ser vivo, do

Reino Animal (Reino Animalia), exceto o homem.

O homem, coletivo, apesar de também constituir uma espécie animal no

sentido amplo da palavra em análise, coloca-se acima de todos os integrantes das

outras espécies e racionalmente dita normas de aproveitamento, ou de convivência,

em relação a elas. Por isso, a maior parte dos doutrinadores defende que somente o

ser humano é considerado sujeito de direitos, enquanto que os “animais”, em sentido

estrito, são considerados objetos jurídicos por ele tutelados9.

2.1.4 Fauna

A palavra fauna refere-se a um amplo conjunto de animais. No texto legal,

tal como na linguagem comum, quase sempre ela é acompanhada de adjetivo que

determina sua abrangência, como por exemplo, silvestre, doméstica, exótica (de outros

países), ictiológica (dos animais que têm na água o seu principal meio de vida) etc.

Algumas vezes, inclusive, verifica-se a combinação desses adjetivos, o que reduz

ainda mais o conjunto de espécies animais representadas, como no inciso II, do artigo

2o da portaria do IBAMA nº 93, de 07.07.98, que estabeleceu normas para importação

8 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova

Fronteira, 1996. 9 Mesmo os estudiosos do Direito Ambiental, novo ramo do Direito Público, resistem à ideia de que os

animais seriam “sujeitos de direito” e, de outra forma, a maior parte defende que os animais são “objetos de direito” cuja titularidade pertence sempre ao homem em uma visão tradicionalmente antropocêntrica e dominante nas Ciências Jurídicas. Nesse sentido, cita-se: “Os animais são bens sobre os quais incide a ação do homem. Com isso, deve-se frisar que animais e vegetais não são sujeitos de direitos, porquanto a proteção do meio ambiente existe para favorecer o próprio homem e somente por via reflexa para proteger as demais espécies” (FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 89). .

Page 17: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

17

e exportação de animais vivos, além de produtos e subprodutos da “fauna silvestre

exótica”, ou seja, das espécies não domésticas próprias de outros países, salvo

aquelas que naturalmente passam parte do ciclo de sua vida nos limites do território

brasileiro.

Quando empregada isoladamente, a palavra “fauna” representa todas as

espécies animais exceto a espécie humana. Assim, por exemplo, o título “Crimes

Contra a Fauna”, dado à Seção I, do Capítulo V, da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes

Ambientais) propõe abranger todos os delitos praticados contra animais de qualquer

espécie - menos obviamente o homem -, seja ela integrante da fauna silvestre,

doméstica, exótica, ou de qualquer outra categoria de animais.

Sendo a fauna o conjunto dos animais próprios de uma região, de um

ecossistema, ou de um dado período geológico, é correto tanto afirmar que ela é

integrada por espécies quanto afirmar que é integrada por espécimes. Quando se diz

que fauna é um conjunto de espécies, considera-se a soma dos grupos de animais

existentes; quando se diz que fauna é um conjunto de espécimes, considera-se a

soma dos indivíduos existentes, independentemente das espécies à que pertencem.

2.1.5 Espécie nativa e espécime natural

A variada utilização dos adjetivos “nativo” e “natural”, qualificando um

espécime ou espécie animal nos textos da jurisprudência e da doutrina gera conflitos

de interpretação. Os dicionários trazem vários significados para esses dois vocábulos,

e é possível concluir que são mesmo sinônimos na linguagem comum. Porém, no

campo jurídico, o critério para utilizá-los com coerência deve ser o mesmo adotado na

lei, que é o principal objeto e também a fonte primária do trabalho de interpretação no

estudo do Direito.

Propõe-se, portanto, uma uniformização do uso das expressões,

respeitando-se o seu significado conforme expresso no texto legal hierarquicamente

superior, o mesmo que será adotado no desenvolvimento desse estudo.

Page 18: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

18

O parágrafo 3o, do artigo 29, da Lei 9.605/98 estabelece que: “São

espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas,

migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de

seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas

jurisdicionais brasileiras” (grifo nosso). O sentido adotado na legislação brasileira,

portanto, é o seguinte: espécies nativas são grupos de animais cujo hábitat natural

permanente ou mesmo transitório consiste em ecossistema encontrado no território

nacional, ainda que sem exclusividade. Então, para efeitos legais, a capivara, o

tamanduá-bandeira, o lobo-guará e tantos outros animais característicos do território

nacional, integram as “espécies nativas”, mesmo que venham a ser encontrados em

outros ecossistemas ou criadouros no território estrangeiro.

Em contrapartida, “natural” tem o sentido próprio de lugar de nascedouro

de determinado animal. Assim, o espécime natural do Brasil - também denominado

“oriundo” do Brasil - é aquele nascido no território nacional, mesmo não pertencente à

espécie nativa.

É preciso ter muita cautela para utilizar a expressão “espécie natural

de...”, pois ela traz a compreensão, em sentido estrito, de que todos os animais

existentes de determinada espécie nasceram em uma mesma região. Isso pode

acontecer no caso das espécies endêmicas, ou seja, aquelas cujos espécimes vivos

são encontrados em apenas uma região, em determinado ecossistema, como por

exemplo, algumas espécies nativas de aves e macacos cujos espécimes - todos - são

encontrados apenas na Mata Atlântica, no Brasil10

. Em sentido amplo, a expressão

“espécie natural de...” também já foi utilizada para identificar os grupos de animais que,

no processo de evolução, surgiram em determinada região.

10

O Sabiá-pimenta, também conhecido por cocho ou crocoió (Carpornis melanocephala - Wied, 1820) é exemplo de espécie endêmica da Mata Atlântica brasileira, ocorrendo localmente em Alagoas, e no sul da Bahia a Santa Catarina. Sua distribuição é restrita à mata litorânea e de encosta; vive em áreas de floresta não alterada, com presença de palmito. De acordo com a BirdLife International (2008), sua população é estimada entre 2.500 e 10 mil indivíduos e se encontra em declínio. Por esse motivo, foi classificada como espécie ameaçada de extinção, na condição Vulnerável (VU), o que significa que enfrenta um risco alto de extinção na natureza (BRESSAN, Paulo Magalhães, KIERULFF, Maria Cecília Martins, SUGIEDA, Angélica Midori: coordenação geral. Fauna ameaçada de extinção no estado de São Paulo. São Paulo: Fundação Parque Zoológico de São Paulo: Secretaria do Meio Ambiente, 2009, p. 231).

Page 19: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

19

Não é conveniente o uso da expressão “espécime nativo”, pois tal

adjetivação aplicada a um determinado espécime animal pode apresentar dois

sentidos distintos: que esse exemplar pertence à espécie própria de um país, ou que

ele tenha nascido nesse mesmo país (onde está o referido espécime), dificultando

sobremaneira a compreensão do texto. Melhor utilizar as construções: “animal de

espécie nativa” e/ou “espécime natural de...”, dependendo da ideia que se deseja

exprimir.

Em síntese, para evitar a duplicidade de sentidos dos adjetivos e não cair

na armadilha das expressões que também podem indicar mesmos significados é

aconselhável utilizar sempre as expressões: espécies nativas, para indicar espécies

próprias ou características de um país (ou em mais de um) em razão do local onde se

encontra o seu hábitat natural; e espécime natural, para indicar o local de nascimento

de determinado espécime animal (do mesmo modo, não empregamos a palavra

origem para evitar duplo sentido).

2.2. Como se classificam os animais

2.2.1 Fauna silvestre

No ordenamento jurídico brasileiro, as duas principais leis federais em

vigor que tratam da proteção da fauna, Lei 5.197/67 e Lei 9.605/98, trazem definições

que se complementam quando procuram delimitar o universo de abrangência das suas

normas aplicadas aos animais da denominada fauna silvestre.

O artigo 1o da Lei 5.197/67 estabelece o critério geral de qualificação da

fauna silvestre: “Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase de seu

desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna

silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade

do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”

(grifo nosso). Já o parágrafo 3o, do artigo 29, da Lei 9.605/98 ampliou o conceito de

Page 20: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

20

fauna silvestre para abranger também os animais que, apesar de não serem próprios

do Brasil, nascidos ou não no país, têm ao menos parte do seu ciclo natural de vida no

território nacional (como visto, “São espécimes da fauna silvestre todos aqueles

pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou

terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites

do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras”).

Sendo assim, por exemplo, nos limites do território nacional, os animais

que pertencem a espécies migratórias, oriundos de outros países, têm tratamento legal

especial, pois são reconhecidos como integrantes do conjunto da fauna silvestre

(nacional). Há interesse do Estado na sua preservação, eis que, em tese, desenvolvem

relações de interdependência com outras formas de vida locais, durante essa

permanência ou período de trânsito.

Exemplo de espécie migratória é a pequena ave conhecida como

maçarico, que vem buscar no verão brasileiro condições propícias para a sua

reprodução. Proveniente do extremo norte do Continente Americano, passa até cinco

dias voando, sem se alimentar, e pode ser encontrada em grupos no litoral do Brasil. A

presença dessa ave no território nacional é significativa e, em Pernambuco, no litoral

próximo de sua capital, Recife, exatamente na Praia de Coroa do Avião, foi instituída

uma Base de Pesquisa de Aves Migratórias administrada pela Universidade Federal

Rural de Pernambuco, que dispensa especial atenção ao seu estudo; a ave já é

considerada característica da região e por isso são pesquisadas melhores condições

de preservá-la.

Na verdade, a palavra “silvestre”, é um adjetivo que significa na

linguagem comum “próprio das selvas” e por isso é aplicada inclusive ao animal que,

mesmo não pertencente a espécies brasileiras, reúne características que o qualificam

como naturalmente selvagem. Esta é a razão pela qual os dispositivos legais apontam,

quando necessário à clareza da exposição, se a fauna silvestre a que se referem é a

nacional ou não, como é o caso da portaria do IBAMA nº 93, de 07.07.98, que no

Page 21: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

21

inciso I e II, respectivamente, do seu artigo 2o, trouxe a definição de “fauna silvestre

brasileira” (a mesma do parágrafo 3o, do artigo 29, da Lei 9.605/98) e a definição de

“fauna silvestre exótica”.

Realmente, o critério básico é a condição de viver naturalmente fora do

cativeiro, em outros termos, é animal silvestre aquele que pelas suas características

físicas e comportamentais vive naturalmente sem qualquer relação de dependência

com o homem. Esta é uma norma em branco, ou seja, que exige complementação de

outra fonte para a sua exata compreensão e justa aplicação. Assim, o Poder Público

deveria apresentar regulamentação da matéria, estabelecendo quais são efetivamente

as espécies silvestres, particularmente as brasileiras, no plano da classificação geral

das espécies proposta pela biologia; no entanto, essa é uma tarefa extremamente

difícil, em razão da quantidade e da mutabilidade das espécies existentes, muitas

delas ainda desconhecidas.

Atualmente são conhecidas mais de um milhão de espécies animais no

mundo e todos os anos este número cresce com a descoberta de novos organismos.

Na dinâmica da natureza, a própria evolução das espécies faz com que umas se

extingam e outras apareçam, com ou sem a interferência do homem, como resultado

das transformações a que estão sujeitas ao longo do tempo. A título de ilustração,

durante a elaboração da primeira versão desta pesquisa, reconheceu-se

cientificamente a existência de uma nova espécie de camelo, conforme noticiado em

revista de circulação nacional:

Reconhecida oficialmente a existência de uma nova espécie animal. O camelo selvagem de Lop Nur, na China, tem capacidade de sobreviver em um deserto usado para testes nucleares ingerindo apenas água salgada. O DNA apresenta diferença de 3% em relação à espécie domesticada. A variação do DNA do homem para o chipanzé, por exemplo, é de 5%

11.

Como tecnicamente é inviável relacionar em regulamentação quais as

espécies que naturalmente vivem fora do cativeiro - e por isso integram a fauna

11

Revista Época, nº 143, ano III, ed. Globo, 12.02.2001, p. 33.

Page 22: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

22

silvestre -, o que abrangeria a maior parte delas, os animais silvestres são legalmente

considerados como tal por processo de exclusão, na seguinte fórmula: são animais da

fauna silvestre todos aqueles que não são classificados como animais da fauna

doméstica.

2.2.2 Fauna doméstica: os utilitários e os de estimação

O conceito de fauna doméstica foi apresentado no inciso III, do artigo 2o,

da portaria do IBAMA nº 93/98 com a seguinte redação:

Fauna Doméstica: todos aqueles animais que através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou melhoramento zootécnico tornaram-se domésticos, apresentando características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo apresentar fenótipo variável, diferente da espécie silvestre que os originou.

O anexo I da mesma portaria apresentou uma “listagem de fauna

considerada doméstica para fins de operacionalização do IBAMA”, que traz o nome

comum, além do nome científico das espécies (nome composto, em latim). Constavam

nessa relação cinquenta e quatro animais como: abelhas, cabra, cavalo, ovelha,

coelho, cachorro, gato, gado bovino etc. e alguns deles com variações nominadas.

Notadamente é bem mais fácil relacionar e nominar os domésticos que os integrantes

da fauna silvestre, que é constituída da grande maioria das espécies do reino animal.

Ao contrário dos animais da fauna silvestre, o animal doméstico já se

encontra adaptado para a vida em cativeiro, apresentando características físicas e

comportamentais que indicam dependência do ser humano para a sua sobrevivência.

Isso em razão de que diversas gerações de determinadas espécies viveram em

contato direto com o homem desde tempos remotos, impondo-se gradativa alteração

do fenótipo dos indivíduos (característica determinada pelo seu genótipo e pelas

condições ambientais locais) que, ao longo do tempo, muito lentamente foi incorporada

às características do respectivo grupo animal. O processo de seleção provocado pelo

Page 23: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

23

homem em relação aos espécimes para fins de cruzamento, em um segundo

momento, fez acelerar as mudanças12

.

Darwin dedicou todo o primeiro capítulo de sua obra A Origem das

Espécies para demonstrar as evidências da “Variação sob domesticação”, tendo por

laboratório sua criação de pombos de diversas espécies. Abordou temas como as

causas de variabilidade, a origem das variedades domésticas a partir de uma ou mais

espécies, os princípios de seleção anteriormente aplicados e seus efeitos, a questão

da seleção inconsciente e as circunstâncias favoráveis à capacidade de seleção do

homem, entre outros aspectos relevantes de sua revolucionária pesquisa. Quanto aos

efeitos dos hábitos e do uso ou desuso de partes do corpo do animal, partindo de suas

observações registrou, a propósito de exemplificação das variações constatadas:

(...) descobri que, comparados com os patos selvagens e proporcionalmente ao peso total do esqueleto, os patos domesticados têm os ossos das asas mais leves e os das pernas mais pesados, o que se pode atribuir com segurança ao fato de os patos domésticos voarem muito menos e andarem mais que os seus antepassados selvagens. Outro exemplo possível dos efeitos do uso é o grande desenvolvimento, adquirido por herança, dos úberes nas vacas e das tetas das cabras nos locais em que se ordenham estes animais, desenvolvimento que não se observa onde não se registra esta prática. E um exemplo do desuso será o fato de todos os animais em estado doméstico terem, nalgumas regiões, orelhas mais caídas que os seus congêneres selvagens, muito provavelmente porque vivem num estado de alerta inferior e, consequentemente, dão menos uso aos músculos das orelhas

13.

As espécies hoje consideradas integrantes da fauna doméstica são o

provável resultado de um processo histórico em que o homem elegeu, desde tempos

remotos, alguns animais - que naturalmente já ofereciam menor resistência ao cativeiro

- para viverem sob sua custódia, como uma garantia de provisão quando lhe faltasse a

caça habitual; deles poderia facilmente obter alimentos (carne e ovos) e matérias para

atender outras necessidades (peles para proteger-se do frio, ossos e chifres para

12

A Medida Provisória 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, com repartição de benefícios, define “espécie domesticada” no inciso IX, do seu artigo 7º, como: “aquela em cujo processo de evolução influiu o ser humano para atender às suas necessidades”. 13

DARWIN, op. cit., p. 36.

Page 24: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

24

construção de armas etc.). Também se cogita que algumas espécies se aproximaram

do homem pela maior facilidade de, nessa condição, obterem alimentos, como restos

de comida e carcaças de outros animais.

Paulatinamente, o homem da Antiguidade percebeu que era mais fácil

manter em cativeiro animais capturados, que caçar a cada vez que precisasse dos

recursos deles advindos. Descobriu e aperfeiçoou, como método, a criação de

espécies e não abandonou tão cedo a prática da caça, que continuou utilizando como

forma de complementação, para obter o que ainda lhe faltasse do reino animal.

No compasso dessa ligação de sobrevivência entre o ser humano e as

demais espécies, alguns animais que, por uma razão ou outra, viviam próximo do

homem - dentro ou fora do cativeiro - foram desenvolvendo com ele intensa relação de

dependência e, em razão das características comportamentais das espécies em

constante evolução junto ao homem, passaram a oferecer-lhe outro tipo mais

sofisticado de recurso: a companhia.

Gradualmente, o homem descobriu outras formas de aproveitamento dos

animais, em razão da sua proximidade e a decorrente adaptação das espécies ao

hábitat em comum (com o ser humano). Os animais passaram a ser utilizados como

instrumento de locomoção e transporte de objetos (por exemplo, cavalo com rédeas,

cavalos ou bois atrelados a carros ou charretes), como meio de prover segurança ou

recurso de caça para captura de outros animais (cães treinados para defesa,

farejadores e cães de caça), como meio de obtenção de medicamento (abelha, na

produção de mel e própolis), como meio de esporte e recreação (corridas, competições

diversas envolvendo os próprios animais em disputas), como guia (no caso de cão

treinado utilizado por deficiente visual) e tantas outras formas de aproveitamento que

foram incorporadas à cultura dos diversos povos, de tal modo, que atualmente é quase

impossível imaginar a vida do ser humano sem a presença do animal doméstico.

Hoje em dia, aliás, quando se fala em animal doméstico, remete-se

automaticamente àqueles bichos tais como cães, gatos e pássaros que, apesar de não

Page 25: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

25

serem utilizados economicamente ou como meio de obtenção de qualquer vantagem,

desempenham uma exata função junto ao seu mantenedor, a de simples companhia, e

são recipiendários de gestos de afeto, o que proporciona ao homem contemporâneo

um grande bem estar sobre o qual ele quase sempre desconhece a razão. Pois o que

lhe faz bem é o próprio contado com outra forma de vida animal, que passou a

denominar “de estimação” em vista de sua afeição e apreço desenvolvidos por ela. No

meio urbano, onde atualmente habita a maior parte das pessoas, é o animal de

estimação quase sempre a ligação mais forte, tanto quanto primitiva, do homem com a

própria natureza.

A relação que se estabelece, por vezes é tão intensa que o animal de

estimação passa a ser considerado um integrante da família de seu mantenedor.

Sobre esse tema, discorreu interessante matéria publicada em revista de circulação na

Grande São Paulo, com o título “Adeus, bichinho”:

Calcula-se que os paulistanos criem cerca de 1,4 milhão de cães e 600.000 gatos, entre outros bichos de estimação. Muitos são tratados como se fizessem parte da família e chegam a dormir no próprio quarto do dono. Quando um animalzinho desses adoece e morre, seu proprietário às vezes chega ao desespero. ‘O animal torna-se um companheiro de rotina. Supre as necessidades afetivas de pessoas com dificuldades de se relacionar ou que vivem sozinhas’, diz a psicóloga Fabiana Rossi Vallejo, especializada no tratamento de traumas, como a perda de um ente querido. (...) Inaugurado em junho, em São Bernardo do Campo, o crematório Pet Memorial oferece duas salas para velório, uma capela e apoio psicológico para os donos. Foi lá que a família Maeda deu adeus ao seu cocker spaniel ‘Bruno Shien Le Rochelle’, morto em setembro. ‘Ele chegou num momento difícil para nós e nos trouxe muita alegria’, diz Yoko Maeda, com lágrimas nos olhos. As cinzas do cachorro foram depositadas em uma urna que é uma réplica de um cocker

14.

Diante das peculiaridades dessa forma de relacionamento do homem

com os animais, que denominamos “mantença a propósito de estimação”, torna-se

mesmo difícil reconhecer o aspecto de “aproveitamento” do recurso ambiental,

enquanto os termos “exploração”, ou “utilização”, revelam-se absolutamente

inadequados para adjetivá-lo. O homem estaria se aproveitando do animal ao suprir

14

Revista Veja São Paulo, suplemento da revista Veja, edição 1677, ano 33, ed. Abril, 29.11.2000, p. 47

Page 26: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

26

com ele sua carência afetiva? Antes disso, verifica-se propriamente uma troca de

“favores” entre dois seres vivos. Com efeito, o mantenedor aproveita-se tanto da

companhia do animal, quanto este se beneficia da sua relação de dependência do ser

humano, para sua sobrevivência e conforto, encontrando-se a ele sujeito.

Apesar dessas considerações, raciocinando no sentido de que a opção

normalmente não é do animal estimado, mas ao contrário, do homem, que por sua

iniciativa submete-o à condição de objeto de “estimação”, dá-se tratamento a tal

conduta como uma das modalidades de aproveitamento da fauna, evidentemente, com

a ressalva de que não se considera um caso de “utilização”, conduta dirigida aos

animais domésticos utilitários.

Portanto, os animais domésticos podem ser classificados em duas

grandes categorias, sob o critério da forma de relacionamento com o ser humano, o

que implica em diferentes modalidades de seu aproveitamento: os animais domésticos

utilitários e os animais domésticos mantidos a propósito de estimação.

2.2.3 Animais domesticados

Alguns espécimes integrantes da fauna silvestre que mantêm intenso

contato com o ser humano, em especial aqueles que ainda filhotes foram colocados

em cativeiro - por exemplo, papagaios, araras ou macacos - deixam com o tempo de

apresentar características selvagens. O animal nessa condição, apesar de seu

comportamento já se assemelhar muito ao dos domésticos, não será classificado como

tal, ainda que mantido a título de estimação; continuará identificado como espécime da

fauna silvestre, pois pertence à espécie que não é considerada doméstica para fins

legais. O espécime nessa situação é considerado animal silvestre domesticado, ou

simplesmente animal domesticado.

As espécies domésticas têm normalmente o seu paralelo na fauna

silvestre, pois, na linha evolutiva em que surge a influência do homem, são as espécies

Page 27: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

27

silvestres que dão origem às domésticas, o que não significa que todos os espécimes

tenham passado pelas mesmas transformações (as mudanças provocadas apenas

pelo meio natural são bem mais lentas, no raciocínio darwiniano sobre a variabilidade

doméstica). De fato, um espécime silvestre ora identificado como “paralelo” ao

doméstico é classificado pela zoologia como de espécie distinta, não obstante

apresentar semelhanças biológicas com os correspondentes domésticos. Por esse

motivo, interpreta-se que o espécime retirado do meio natural, continuará classificado

como integrante da fauna silvestre, mesmo que tenha sido domesticado.

Assim, quando se faz referência ao espécime ou animal domesticado,

compreende-se a sua condição de silvestre.

2.2.4 Animais da fauna exótica

Os chamados animais da fauna exótica no Brasil (ou da fauna

alienígena), por exemplo, o elefante, o leão e o canguru, são animais próprios de

outros países que comportam ecossistemas com características diversas dos

ecossistemas locais. Outros espaços territoriais congregam hábitat de permanência de

espécies que naturalmente não seriam encontradas no Brasil.

Nessa interpretação, os espécimes em rota migratória que possuem

como hábitat transitório localidade do território brasileiro, nos meios aéreo, terrestre ou

aquático, constituem exceção, pois, na ordem natural, participam do equilíbrio do

ambiente local durante parte de seu ciclo de vida.

Os animais da fauna exótica também são classificados como silvestres ou

domésticos. A definição de fauna silvestre exótica é trazida pelo inciso II, do artigo 2o,

da portaria IBAMA nº 93/98 com a seguinte redação:

São todos aqueles animais pertencentes às espécies ou subespécies cuja distribuição geográfica não inclui o Território Brasileiro e as espécies ou subespécies introduzidas pelo homem, inclusive domésticas em estado asselvajado ou alçado. Também são consideradas exóticas as espécies ou subespécies que tenham sido introduzidas fora das fronteiras brasileiras e suas águas jurisdicionais e que tenham entrado em Território Brasileiro.

Page 28: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

28

A “distribuição geográfica” inicialmente aludida, diz respeito evidentemente

à ordem natural de distribuição das espécies em razão do seu hábitat original de

permanência, sem a intervenção humana. Na sequência, é abordada a situação da

“introdução de espécies e subespécies”, ou seja, são qualificados como animais

silvestres exóticos também os espécimes silvestres pertencentes a espécies não

brasileiras (espécies que não são próprias do Brasil) e os espécimes domésticos em

estado selvagem pertencentes a espécies não brasileiras, trazidos diretamente ao

Brasil e, também, aqueles já nascidos no território nacional e pertencentes às espécies

silvestres não brasileiras, pois todos estes animais integram, de qualquer forma,

espécies que foram introduzidas no país e não fazem parte da fauna silvestre

nacional. Ao final, ainda são enquadrados como animais silvestres exóticos aqueles de

espécies silvestres não brasileiras que foram introduzidas em outros países e que

entram por qualquer meio em território brasileiro.

Já a fauna doméstica exótica é integrada por todos os animais que

pertencem a espécies não brasileiras e apresentam características físicas e

comportamentais que os qualificam como domésticos, nos termos do inciso III, do

artigo 2o da mesma portaria IBAMA nº 93/98 (“Fauna Doméstica: todos aqueles

animais que através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou

melhoramento zootécnico tornaram-se domésticos, apresentando características

biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo

apresentar fenótipo variável, diferente da espécie silvestre que os originou”).

Os animais exóticos de pequeno porte, por sinal, durante a década de

1990 foram preferidos por diversos moradores da Grande São Paulo, especialmente

os adolescentes, para a mantença a propósito de estimação. Tal modismo surgiu

provavelmente como reflexo da intensa divulgação com vistas à proteção aos animais

silvestres brasileiros, a partir da vigência da Lei 7.653, de 12 de fevereiro de 1988, que

impôs severas sanções aos atos de caça ilegal, classificando-os inclusive como crimes

Page 29: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

29

inafiançáveis, o que pode ter diminuído a oferta de animais silvestres no mercado

clandestino. Como efeito da lei que recebeu várias críticas pelo desproporcional

tratamento jurídico, alguém que fosse detido matando um animal silvestre

permaneceria preso para responder ao processo crime (inafiançabilidade), enquanto

um réu primário com residência fixa poderia responder em liberdade pela prática de

homicídio, com o benefício da liberdade provisória15

.

Adquiria-se nessa época, por exemplo, um lagarto water dragon do

sudeste asiático, uma cobra píton indiana, ou uma cobra corn slake norte americana.

Esse fenômeno teve breve duração, conforme relatado com precisão em revista de

circulação na cidade de São Paulo, em matéria sob o título: “o efeito colateral daquela

moda de criar cobras, lagartos, aranhas e outros bichos esquisitos: muitos desses

animais estão sendo abandonados em parques e praças da cidade”:

Para os funcionários do Instituto Butantan não é mais surpresa ver que deixaram à sua porta uma caixa de madeira com uma cobra dentro. ‘Já recebemos algumas raridades assim’, diz o biólogo Marcelo Duarte, do laboratório de herpetologia. A maioria, no entanto, é figurinha repetida. ‘No ano passado, vinha pelo menos uma píton bola por mês’, recorda. Não por acaso, essa cobra originária da África era umas mais preferidas entre os colegiais

16.

Esse episódio demonstra bem, de um lado, o fascínio das pessoas pelo

caráter de exotismo das espécies silvestres (tanto as nacionais quanto as estrangeiras)

e, de outro, o fato de que nem todos os animais silvestres se adaptam bem ao

ambiente doméstico e também o mantenedor não se adapta bem ao animal escolhido

para a mantença a propósito de estimação sem critério adequado.

Existe, evidentemente, o aspecto sanitário também a ser preservado,

diante do perigo de transmissão de doenças que podem ser trazidas por espécimes do

exterior e que causam danos à saúde humana e, igualmente, à saúde dos animais

15

Essa realidade mudou. A maior parte dos crimes contra a fauna silvestre prescritos na Lei 9.605/98 trouxe como pena a detenção de 6 meses a 1 ano e multa. Portanto, são consideradas infrações penais de menor potencial ofensivo e, por isso, processados nos termos da Lei 9.099/95, que possibilita a transação penal e a conversão da pena de privação de liberdade para a restrição de direitos. 16

Revista Veja São Paulo, integrante da revista Veja, nº 37, ano 33, ed. Abril, 11.09.2000, p. 12.

Page 30: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

30

locais, que são geralmente as primeiras vítimas. Ainda, deve ser coibida a introdução

irregular de espécimes no hábitat natural da fauna silvestre brasileira, especialmente

em seus ecossistemas legalmente protegidos (áreas remanescentes), pois ela pode

desencadear grandes baixas na fauna local, pelo desequilíbrio da cadeia alimentar e a

concorrência entre os espécimes da fauna silvestre nacional e os da fauna exótica pelo

mesmo espaço.

Continua o relato na mesma matéria, ilustrando bem a questão do

comércio ilegal, das doenças transmissíveis e a inadequabilidade da mantença de

determinados animais silvestres em ambiente doméstico:

Doenças também são outro motivo que pode transformar o mascote em estorvo. A incidência é alta, sobretudo por causa das más condições em que os animais são transportados e mantidos nos fundos das ‘pet shops’. Para driblar a fiscalização alfandegária, os importados vêm em bolsos de casacos ou embolados às centenas dentro de malas quase sem oxigênio. Recentemente, um homem foi preso com cerca de 500 pererecas ‘Dendrobates’ em tubos de filme fotográfico. Algumas pessoas consideram que a raiz do problema é querer tratar como animais domésticos bichinhos que estão longe de se prestar a esse fim. ‘É uma estupidez ter em casa esses bichos que não são sociais. Que relação pode estabelecer um homem com uma espécie de lagartixa?’, questiona Paulo Emílio Vanzolin, ex-diretor do Museu de Zoologia da USP

17.

Por isso, impõe-se como necessário um controle rigoroso aos atos de

comércio, mediante cumprimento de normas para importação e exportação de

espécimes vivos, produtos e subprodutos da fauna silvestre exótica. A esse propósito,

configura-se crime, nos termos do artigo 31 da Lei 9.605/98, a conduta de introduzir

espécime animal no País, sem parecer técnico oficial favorável e licença expedida por

autoridade competente.

Em nível internacional, a questão do comércio ilegal de animais silvestres

é um grande mal que deve ser combatido para o bem do equilíbrio ecológico do

planeta. Da mesma forma que animais da fauna exótica são transportados

irregularmente pelas fronteiras, ingressando eventualmente no Brasil, vários espécimes

17

Ibid., p. 12.

Page 31: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

31

da fauna silvestre nacional (considerados exóticos em outros países) saem

irregularmente das fronteiras brasileiras, para suprir a demanda do comércio

clandestino no exterior.

Em síntese, os animais da fauna exótica também têm sido aproveitados

na modalidade de mantença a propósito de estimação, em pese os aspectos negativos

registrados, que indicam prejuízos ambientais em relação a tal prática quando não

observadas as condições impostas pela legislação pertinente, que regula o ingresso

dos espécimes naturais de outros países no território nacional.

2.2.5 Animais em cativeiro

O “cativeiro” citado na legislação de proteção da fauna significa

aprisionamento ou retenção em espaço limitado, para submissão do animal à condição

de dependência do ser humano. Por implicar em relativo cerceamento de locomoção

do espécime, o termo traz conotação negativa; porém, em muitos casos, o cativeiro é o

único meio de se preservar uma espécie que teve dizimados os espécimes que a

integram ou descaracterizado o seu hábitat natural.

Os zoológicos, que constituem principal exemplo de manutenção de

espécimes em cativeiro, desempenham uma função de difusão cultural quando

mantêm em exposição espécimes raros, possibilitando ao público conhece-los

fisicamente, ainda que afastados de seu ambiente natural. Afora esse aspecto,

também é comum a tentativa de preservação, em ambiente artificial, de espécies em

risco de extinção, o que importa na manutenção de espécimes em cativeiro conforme

relatado.

Quando são detectados sinais de iminente extermínio de determinada

espécie animal, em razão dos cálculos de quantidade de espécimes vivos no meio

selvagem, as organizações preservacionistas - públicas ou privadas - mediante heroico

Page 32: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

32

trabalho de seus biólogos, procuram adaptar no cativeiro casais remanescentes, a fim

de que possam ser perpetuadas as espécies por meio de sua reprodução, ainda que

se perca a chamada “memória selvagem” que caracteriza o comportamento dessas

espécies no meio natural. Ao menos se resguarda, em última análise, o seu valor

genético na condição atual.

O cativeiro, nessa hipótese, corresponde a uma verdadeira “Arca de Noé”

do tempo contemporâneo, uma forma derradeira de salvar espécies da degradação do

meio natural e da dizimação de exemplares vivos por motivos diversos, particularmente

a ocupação humana de áreas protegidas e a caça ilegal, que provocam suas

extinções.

Existem hoje, por exemplo, algumas poucas dezenas de espécimes da

ararinha-azul, mantidos em cativeiro. O valor desses espécimes é incalculável, mesmo

vivendo em ambiente artificial, pois ainda não se conhece o potencial de recurso que

cada espécie animal, em sua exclusiva forma de vida, pode apresentar.

Trata-se de belíssima ave que possuía na caatinga o seu hábitat natural.

Em 1985, na região de Curaça, cidade do sertão da Bahia, foram localizados os

últimos exemplares que viviam no meio selvagem. Apesar do ecossistema não ter sido

degradado, a ação de traficantes de aves - com colaboração de caçadores da região -,

acabou com os poucos exemplares que viviam no meio natural e o último espécime,

que já era monitorado por biólogos, também desapareceu, conforme noticiou revista de

circulação nacional18

.

Porém, a simples manutenção da vida em cativeiro não corresponde à

recuperação de uma espécie da fauna silvestre, pois ela tem o seu valor ecológico

vinculado ao meio natural de origem, que determina padrões comportamentais e

reflete, no processo de evolução, características de ordem física. Se os espécimes

sobreviventes continuarem apenas em total dependência do homem, será

18

Revista Veja, Ed. Abril, nº 06, ano 34, ed. Abril, 14.02.2001, p. 81.

Page 33: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

33

desenvolvida, com o tempo, uma nova espécie de animal doméstico. Fazendo-se uma

projeção, com sucessivas gerações nascidas em cativeiro, a ararinha-azul passará a

ter, por exemplo, atrofiados músculos e modificadas características do bico, garras e

pelagem, além da perda do instinto que possibilita sua defesa contra os predadores,

tornando inviável a sobrevivência no meio natural. Perde-se primeiramente a memória

selvagem da espécie; na sequência, perdem-se também as características físicas

originais, resultado da adaptação em novo ambiente, o artificial.

A reintrodução das espécies nativas no meio selvagem é a fórmula

buscada para a verdadeira preservação da biodiversidade comprometida pela ação do

próprio homem; porém, não é tarefa tão fácil quanto retirar os animais da natureza. Os

espécimes nascidos em cativeiro têm que aprender a sobreviver de forma

independente do homem (busca de alimentos, abrigo, defesa etc.) o quanto antes, e

são submetidos a estágios em viveiros cada vez maiores, com condições próximas às

do meio natural, mediante constante monitoramento de especialistas.

No entanto, a experiência tem demonstrado que, mesmo com os recursos

técnicos hoje disponíveis, a reintrodução de espécies nem sempre é missão possível.

O valor que deve ser pago como preço da desmedida intervenção humana no meio

natural ainda é muito alto.

2.2.6 Animais em liberdade

Animal da fauna silvestre, no sentido genérico, pela própria classificação

legal, é o que vive naturalmente fora do cativeiro. Animal em liberdade é aquele que

vive efetivamente fora do cativeiro, sendo ele integrante da fauna silvestre ou da

fauna doméstica. A vida em liberdade (ou fora do cativeiro), em situação de

independência do homem, faz parte da característica original das espécies silvestres.

Page 34: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

34

Por isso, na ordem natural, os animais silvestres devem ser encontrados,

em maior número, soltos nos ecossistemas que caracterizam seu hábitat original. Já os

animais domésticos, em razão de sua dependência do homem, serão encontrados fora

do cativeiro proporcionalmente em menor número, como é o caso dos animais

domésticos abandonados ou fugidios.

Mas, afinal, por que os animais silvestres devem ser mantidos em

liberdade no seu hábitat natural? Possível responder essa indagação lembrando que

as complexas combinações da natureza e o emaranhado de relações físicas e

químicas que se processam entre todos os elementos dos ecossistemas, muitas ainda

desconhecidas, em seu conjunto, possibilitam o equilíbrio ecológico nos diversos níveis

na biosfera. O próprio ciclo da vida impõe que cada espécime - vegetal ou animal - tem

o seu papel bem definido nessas relações. A cadeia alimentar no reino animal é um

exemplo desse sistema de necessário equilíbrio.

Existe uma interdependência entre todos os elementos da natureza e, no

meio artificial - onde invariavelmente habita o homem -, as relações dessa rede não

são processadas com a mesma intensidade (quando possível que ocorram). Portanto,

para a preservação da biodiversidade é fundamental manter intactas algumas áreas,

notadamente nos locais em que se encontram significativos ecossistemas naturais tais

como florestas remanescentes, áreas com cobertura vegetal primária de diversas

categorias, mangues, rios etc. em espaços limitados geograficamente pelo Poder

Público, que serão preservados da interferência humana.

São as várias Reservas, as Estações Ecológicas, as Áreas de

Preservação Permanente previstas em lei. Nesses locais racionalmente protegidos

pelo homem, sobreviventes da degradação que já atingiu a maior parte de extensas

áreas consideradas de relevante interesse ambiental, os animais silvestres

naturalmente em liberdade podem desempenhar sua função ecológica.

Page 35: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

35

3. EVOLUÇÃO DA TUTELA LEGAL DA FAUNA NO BRASIL

Para entendimento amplo dos dispositivos legais contemporâneos que

tratam da proteção da fauna e que também regulam a convivência do homem e

espécies diversas, destacadamente as da fauna silvestre no Brasil, é importante uma

análise detalhada da evolução das normas legais que, ao longo do tempo, cuidaram da

matéria em estudo.

No mundo todo, a maior parte das leis que trouxeram dispositivos de

proteção aos animais surgiu como reflexo do reconhecimento da imprescindibilidade

de um meio ambiente equilibrado, de que são partes indissociáveis a fauna e a flora

em sua grande diversidade; o ser humano, como espécie animal, integra esse meio

físico, evidenciada sua condição de principal agente modificador do ambiente.

Concorreu para tal entendimento, forçosamente, a constatação de que os

recursos naturais não são inesgotáveis, como se chegou a pensar. Quando a

intervenção humana no meio ambiente natural atingiu proporções que impediam a

espontânea regeneração da camada de cobertura vegetal devassada, muitas espécies

passaram a se extinguir em virtude da incapacidade de adaptação, diante da abrupta

alteração do seu meio natural e também em razão da impossibilidade técnica de

manutenção de formas sensíveis de vida em ambiente artificial.

O homem avançou no sentido de reconhecer a importância da integridade

das variadas formas de vida, como condição de sua própria sobrevivência. Em

consequência, passou o Estado a tutelar efetivamente a fauna, por meio de legislação

específica, sob o enfoque da preservação do valor ecológico da vida animal. Outro

avanço que se encontra em curso, em manifestações cada vez mais evidentes, é o

reconhecimento de que o animal também pode ser encarado como um “sujeito de

direitos”, e não apenas um “objeto voltado ao bem estar do homem” em condições

especiais e inovadoras, pela tutela de sua integridade física por via reflexa da

preservação da dignidade da pessoa humana.

Page 36: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

36

3.1 Legislação anterior à Constituição Federal de 1988

Vigeram no Brasil, enquanto colônia de Portugal, as nominadas

Ordenações, ou “leis da Corte”. Foram três as Ordenações: Afonsinas, Manoelinas e

Filipinas e elas já traziam normas voltadas ao uso dos recursos naturais.

Especificamente em relação à fauna, os dispositivos legais então modestos

incriminavam condutas lesivas a algumas espécies consideradas por seu valor material

ou por serem particularmente reconhecidas como benéficas ao ser humano; também,

incriminavam condutas que prejudicassem a reprodução das espécies de vida

aquática, então principal fonte de proteína na alimentação local.

Como registrou Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado:

Nas Ordenações Filipinas, em seu Livro V, o Título LXXV descrevia o crime de corte de árvores, ao longo de determinados rios. Ainda que de forma indireta e fragmentária, a proteção do meio ambiente também era vislumbrada, quando alguns animais, por seu valor medicinal (assim, aquele que comprasse colmeias para aproveitar-se da cera e matar as abelhas era punido com açoite ou degredo, a depender da pessoa, além de multa – Título LXXVIII) ou econômico (bestas, boi ou vaca – Título LXXVIII) eram objeto material do crime

19.

Não obstante a previsão legal, a cultura de exploração suplantava

qualquer ideia preservacionista. A grande quantidade de recursos naturais disponíveis,

que parecia inesgotável também no que se refere aos animais silvestres, serviu como

pretexto, durante longo tempo, para certa despreocupação quanto à necessidade de

adequação dos instrumentos legais para a preservação do meio ambiente, inclusive

após a independência política do Brasil.

Entre as formas de exploração das riquezas naturais do Brasil, proliferou

a figura do “caçador profissional”, aquele que vivia da negociação da caça - animal

abatido ou a sua carne - por ele capturada e de seus subprodutos (peles curtidas,

garras e dentes artesanalmente trabalhados, troféus para decoração etc.); isso porque,

19

PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Proteção Penal do Meio Ambiente, Fundamentos. São Paulo: Atlas, 2000, p. 38.

Page 37: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

37

de um modo geral, o animal silvestre pertencia a quem o capturasse, inexistindo

mecanismo de eficaz proteção às espécies.

Em grande escala de exploração, os ciclos econômicos no país foram

sucedendo-se até o início do processo de industrialização e este, somado ao aumento

populacional e à ocupação desordenada dos espaços naturais, trouxe maior nível de

impacto ao meio ambiente, atingindo principalmente as espécies mais sensíveis da

fauna silvestre.

Sobre a evolução histórica da tutela ambiental, destacou João Leonardo

Mele:

Em 1551, Ordenações Manuelinas (Dom Manoel) continham proibição de usos de armadilhas que provocassem sofrimentos nos animais e ainda uma reparação de dano para aquele que abatesse determinados tipos de árvores. As Ordenações Filipinas (Dom Felipe II), de 1603, proibiam, por sua vez, uso de redes em lagos ou rios, bem como lançar nas águas substâncias que matassem os peixes. (...) Demonstra-se a timidez dos instrumentos legais adequados para conter uso indiscriminado de fauna e flora, que, apesar de extremamente preciosos, foram sistematicamente trocados ao longo dos séculos por ciclos agrícolas, de mineração e urbanização. Neste século, a tecnologia no país serviu para depredar o ambiente com maior velocidade

20.

O Decreto 24.645, de 10.07.34, conhecido como Lei de Proteção dos

Animais, estabeleceu medidas de proteção não somente voltadas aos animais da

fauna silvestre, mas a todas as espécies, indistintamente. Houve necessidade de

criação desse instrumento legal específico em vista de que, naquela época (década de

1930), os animais eram intensamente usados, por exemplo, para tração de carga, para

transporte e para recreação, sendo submetidos a diversas condições de sobrecarga

em sua utilização.

Assim, foi tipificada a contravenção de maus tratos aos animais (artigo 2o,

caput) e, para tanto, foram descritas detalhadamente trinta e uma ações que

20

MELE, João Leonardo. Ordenamento Histórico-Jurídico da Legislação de Proteção do Meio Ambiente Natural. Centro de Aperfeiçoamento e de Estudos Superiores da Polícia Militar do Estado de São Paulo (CAES) - Curso Superior de Polícia. São Paulo, edição interna, 1999. p. 61.

Page 38: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

38

caracterizavam a infração penal (artigo 3o, I a XXXI). Esse mesmo diploma legal criou

importantes mecanismos que sustentaram novas legislações, tornando-se

basicamente os primeiros fundamentos da proteção legal da fauna, entre eles: a tutela

do Estado sobre todos os animais e a imputação de pena e multa àquele que praticar

maus tratos contra animal, sendo seu proprietário ou não, sem prejuízo da ação civil.

Seis anos mais tarde, o Decreto-Lei 3.688/41 (Lei das Contravenções

Penais), definiu em seu artigo 64, como contravenção penal, a crueldade praticada,

como o Decreto 24.645/34 previa, contra quaisquer animais (domésticos ou silvestres),

observada a seguinte redação do seu caput: “Tratar animal com crueldade ou

submetê-lo ao trabalho excessivo”. Durante as mais de cinco décadas seguintes foi

aplicado este artigo (até 1998, com o advento da Lei dos Crimes Ambientais),

enquadrando-se todas as práticas de maus tratos contra animais na condição de

contravenção penal. A definição de maus tratos, porém, continuou a ser buscada no

Decreto 24.645/34, dada à específica conceituação constante do seu artigo 2o,

dispositivo recepcionado pelas legislações posteriores.

3.1.2 A Lei 5.197/67 e a interpretação do vocábulo “utilização”

Na evolução da tutela legal da fauna no Brasil, a Lei 5.197, de 03.01.67,

conhecida como “Lei de Proteção à Fauna” e também como “Código de Caça”, veio

substituir o antigo Código de Caça de 1943 (Decreto-Lei 5.894/43) e trouxe uma

novidade logo em seu artigo 1o, estabelecendo que: “os animais de quaisquer

espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do

cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros

naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição,

destruição, caça ou apanha”. O Estado aqui mencionado é o ente federal, ou seja, a

União.

Page 39: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

39

Nota-se que essa Lei tratou somente dos animais silvestres, partindo de

sua definição no artigo 1o, salvo quando se refere aos animais domésticos “que se

tornem selvagens ou ferais” (por abandono) oportunidade em que autoriza, nesse

caso, sua utilização, caça, perseguição ou apanha (parágrafo único, do artigo 8o).

Protegeu, assim, especificamente os animais silvestres em razão de sua maior

fragilização, decorrente da ocupação humana dos seus ecossistemas em momento de

grande expansão e desenvolvimento no país. Também, proibiu definitivamente a caça

profissional, que durante séculos dizimou espécimes da fauna silvestre brasileira,

estabelecendo condições para a caça amadora praticada em alguns Estados da

Federação.

Assim, conforme previa o texto legal, deu-se o tratamento de

contravenção penal às condutas contrárias à Lei de Proteção à Fauna; e isso ocorreu

até 1988. A Lei 7.653, de 12 de outubro de 1988, que surgiu com o objetivo de

prontamente coibir o escandaloso comércio e matança de animais silvestres no Brasil,

particularmente os jacarés no Pantanal Mato-Grossense, alterou substancialmente a

Lei de Proteção à Fauna e criminalizou as condutas irregulares da caça propriamente

dita, abrangendo a perseguição, destruição, apanha, além da utilização e outras

condutas relacionadas aos animais silvestres e seus subprodutos, definidas nos

diversos artigos da referida Lei.

A aplicação da Lei de Proteção à Fauna, com as inovações da Lei

7.653/88, tornou-se particularmente difícil, pois as condutas irregulares foram

incriminadas com gravosa previsão de penas de reclusão e mais, os crimes descritos

foram definidos como inafiançáveis, conforme redação de seu novo artigo 34. Então,

como todos os animais silvestres se encontravam tutelados mediante severa

imposição legal, a pena passou a ser visivelmente desproporcional à conduta

considerada lesiva à fauna silvestre, causando notáveis distorções na aplicação da

legislação penal. Dessa forma, por exemplo, um morador da área rural que fosse

Page 40: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

40

surpreendido pela autoridade policial nos limites de sua propriedade caçando um tatu

para alimentar-se, seria preso em flagrante (prisão inafiançável) e poderia ser

condenado de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão, na interpretação do artigo 1o

combinado com o parágrafo 1o, do artigo 27 e artigo 34 da Lei 5.197; se, porém, o

mesmo indivíduo, com bons antecedentes e residência fixa, não tivesse caçado o tatu

e sim praticado um homicídio, poderia responder a ação penal em liberdade.

Outro problema encontrado durante a vigência plena da Lei 5.197/67 era a

compreensão do vocábulo “utilização”. Para a mais restrita interpretação, a conduta

criminosa de utilização consistia em fazer uso do animal da fauna silvestre com o

objetivo de obtenção de real vantagem, excluindo-se da tipificação legal a conduta de

simples mantença, também denominada manutenção ou mantenimento de animal

silvestre a propósito de estimação.

Nesse entendimento, não praticaria crime quem mantivesse um

papagaio, uma arara, ou um macaco em seu quintal, na condição de animal de

estimação e sim, por exemplo, quem expusesse uma arara em estabelecimento

comercial para atrair transeuntes, utilizando-a como chamariz, quem mantivesse um

papagaio ou um macaco preso a um realejo para fazer sorteio de bilhetes vendidos ao

público, ou, ainda, um artista que exibisse uma onça-pintada, utilizando-a em seu

espetáculo.

A corrente mais radical, no entanto, entendia que a própria relação de

afetividade desenvolvida pelo homem em relação ao animal silvestre no seu convívio

doméstico caracterizava a utilização, eis que o mantenedor dela tiraria proveito, aliado

ao fato de que, exercendo a posse injusta de propriedade da União, mantinha

irregularmente o animal como se doméstico fosse e, portanto, indevidamente integrado

ao seu patrimônio.

Com o passar do tempo, a primeira interpretação acabou por se revelar

mais coerente e a maioria absoluta dos julgados veio confirmar a posição de que a

Page 41: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

41

mantença de animais silvestres em cativeiro a propósito de estimação não configurava

crime sob a forma de utilização, nos termos da Lei 5197/67.

Nesse mesmo sentido, como ilustração, transcrevemos as ementas de

quatro acórdãos, de recursos julgados no âmbito da Justiça Federal:

1) Não é fato típico o mantenimento de aves silvestres em cativeiro para lazer, bem cuidadas, sem que se prove tenham sido caçadas ou venham a ser utilizadas ilicitamente (TRF 3

a Região – 1

a T. – AC –

Rel. Ramza Tartuce – DJU 22.03.1994 – RJ 200/131); 2) 1. A mera conduta de possuir animal silvestre não configura crime

contra a Lei de Proteção à Fauna, salvo se o próprio agente o tiver caçado ou apanhado, sem que para tal haja sido legalmente autorizado. 2. A utilização a que se refere o artigo 1

o, caput, da Lei

5.197, de 03.01.67, é de ser entendida como a atividade através da qual alguém obtém relevante proveito pelo efetivo emprego ou pela exibição de animal silvestre (TRF 1

a Região – 3

a T. – Rec. – Rel.

Tourinho Neto – RJ 196/98); 3) I - A Lei 5.197/67 tutela a fauna silvestre e sua preservação, bem com

o equilíbrio ecológico, coibindo a utilização e a exploração comercial das espécies. II - a mantença de aves em cativeiro, para lazer, é penalmente irrelevante se não demonstra o dano ao equilíbrio ecológico e a preservação da espécie (TRF 3

a Reg., Acr.

03006148/SP), 2a T., relator Juiz Célio Benevides, julgado em

10.12.1996); 4) I - É atípica a conduta do detentor que mantém em cativeiro

espécimes da fauna silvestre nacional. II - As Leis 5197/67 e 7653/88 objetivam coibir a utilização ou a exploração comercial de animais silvestres, o que inocorreu in casu (TRF 3

a Reg., Acr. 03057749/SP,

2a T., relator Juíza Sílvia Steiner, julgado em 19.11.1996).

Condicionou-se, então, no âmbito da fiscalização, o enquadramento da

conduta “utilização” - na área criminal - como decorrência da constatação de obtenção

de real vantagem tendo por instrumento, ou meio, o animal silvestre, compreendendo-

se atípica a prática de simples mantença para o fim de estimação21

.

21

No ano de 2000, o Comando de Policiamento Florestal e de Mananciais de São Paulo (atual Comando de Policiamento Ambiental) divulgou o Boletim Técnico 2 (ano I, 15.08.2000), sob o título: “Guarda Doméstica de Espécie Silvestre a Título de Estimação”, com as conclusões de um grupo técnico que desenvolveu pesquisa e debates, sob responsabilidade do então Capitão PM Nilson Odair dos Prazeres, confirmando a interpretação majoritária e, com isso, firmou-se doutrina interna aplicável à fiscalização do policiamento ambiental paulista.

Page 42: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

42

3.2 A mudança do tratamento jurídico da fauna, do início do século XX até a

Constituição de 1988.

A efetiva proteção legal da fauna no Brasil, influenciada pela doutrina

civilista do começo do século XX, partiu de uma noção privatista da relação existente

entre o homem e os animais. Nessa fase, o legislador preocupou-se em coibir

condutas lesivas aos semoventes, objetivando protegê-los enquanto bens jurídicos

incorporados ou passíveis de incorporação ao patrimônio particular. Para tanto,

classificou-os materialmente como bens móveis, com a característica de “bens

suscetíveis de movimento próprio”, na precisa definição do artigo 47 do Código Civil de

191622

.

O Poder Público protegia o valor econômico agregado ao animal,

defendendo a sua propriedade particular, ou mesmo a expectativa de propriedade do

criador, do pescador ou do caçador. Tal como a água, por exemplo, o animal sem

dono constituía res nullius; assim, na condição de bem que não estava integrado ao

patrimônio de alguém, poderia vir a pertencer àquele que o caçasse, em razão do

próprio sentido primitivo da ocupação.

Se existia alguma preocupação em relação à proteção ao meio ambiente,

era ela notoriamente secundária em relação à prioritária garantia do direito de

propriedade da fauna. Da mesma forma, os outros bens oriundos da natureza não

eram tutelados por seu valor ambiental como parte essencial ao equilíbrio dos

ecossistemas, mas em razão do seu potencial econômico individual, como evidente

manifestação de uma cultura de economia eminentemente extrativista, comum no país

na medida em que os recursos naturais eram encontrados ainda em abundância.

22

O “Código Civil de 1916” que entrou em vigência em 01 de janeiro de 1917 (com texto integral aprovado e consignado na Lei nº 3.071, de 01 de janeiro de 1916), permaneceu em vigência por 86 anos. Em 10 de janeiro de 2003 foi revogado em razão do início da vigência do novo Codex (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002). O objetivo do Código longevo estava previsto logo no seu artigo 1º: “Este código regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações”.

Page 43: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

43

Essa forma de “proteção” à fauna, vinculada ao aspecto patrimonial, era

caracterizada pela sua função apenas repressiva e imediatista, ignorando-se o valor do

conjunto dos animais, para o equilíbrio e a preservação do meio ambiente natural. Com

o passar dos anos, porém, ocorreu a expressiva diminuição das áreas verdes, como

resultado da desenfreada ocupação humana em quase todo o território do país, além

da prática extrativista dos recursos naturais sem sustentabilidade e o processo de

industrialização associado ao crescimento populacional, o que tornou impossível a

manutenção da exploração indiscriminada da fauna. O novo quadro exigiu do Estado

a regulação do aproveitamento desse bem ambiental, sob pena de seu esgotamento e

de outros a ele vinculados em condição de interdependência (característica básica dos

ecossistemas).

A concepção individualista foi forçosamente substituída pela noção de

que os bens da natureza, entre eles os animais, devem ser considerados e valorados

em seu conjunto e a legislação foi aprimorada nesse sentido, reconhecendo

gradativamente a participação da fauna na formação do equilíbrio ecológico, essencial

para a sobrevivência de todas as espécies, entre elas a do próprio homem.

A evolução dos textos legais fez surgir, então, o moderno conceito de

bem ambiental, como novo tratamento jurídico aplicado à fauna, cujos titulares são

indeterminados - em oposição ao antigo res nullius -, vez que, teoricamente, todos os

homens têm interesse em relação ao meio ambiente, ou seja, há o interesse difuso,

sendo reconhecida a função ecológica do animal, que é anterior ao seu valor individual

observado na esfera econômica.

Como registrou Celso Antonio Pacheco Fiorillo:

Buscando resguardar as espécies, porquanto a fauna, através da sua função ecológica, possibilita a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas, é que se passou a considerá-la como um bem de uso comum do povo, indispensável à sadia qualidade de vida. Com isso, abandonou-se no seu tratamento jurídico o regime privado de propriedade, verificando-se que a importância das suas funções reclamava uma tutela jurídica adequada à sua natureza. Dessa forma,

Page 44: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

44

em razão de suas características e funções, a fauna recebe a natureza

jurídica de bem ambiental23

.

A abordada mudança do enfoque, que ao longo do tempo foi estabelecida

nas relações entre o homem e os animais, culminou com o texto da Constituição

Federal de 1988, no seu artigo 225, parágrafo 1o, inciso VII, que estabeleceu como

tarefa do Poder Público: “Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as

práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de

espécies ou submetam os animais a crueldade”. Assim, no plano da tutela da fauna, a

dimensão completa desse dispositivo pode ser estabelecida mediante análise das

normas infraconstitucionais que descreveram condutas classificadas em três classes

distintas: 1) que coloquem em risco a função ecológica das espécies; 2) que

provoquem a extinção de espécies; e, ainda, 3) que submetam os animais a

crueldade.

Evidentemente, o legislador constitucional não quis delimitar a proteção

do Estado em relação à fauna silvestre; ao contrário, pretendeu tutelar todos os

animais, porque se considerarmos que o animal doméstico não tem propriamente

função ecológica e não corre o risco de extinção, ainda assim será protegido contra a

prática de atos cruéis, pois é integrante do coletivo “fauna”.

3.3 A mobilização mundial a partir da segunda metade do século XX

A proteção do meio ambiente veio a merecer destaque no ordenamento

jurídico brasileiro também como reflexo de uma postura internacional, especialmente a

partir da década de 1970. Isso ocorreu pela rápida evolução da densidade demográfica

do planeta, que ampliou o impacto da ocupação humana na superfície terrestre, junto à

exploração desenfreada dos recursos naturais.

A escassez dos recursos fez com que o meio ambiente passasse a ser

observado sobre o enfoque da economia. Constatou-se que o homem deveria

23

FIORILLO, op. cit., p. 86.

Page 45: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

45

preocupar-se com a preservação dos valores ambientais, cada vez mais escassos, o

que exigiria mobilização de todos os países na busca de soluções para as questões

ambientais emergentes.

Em 1972, foi realizada uma reunião promovida pela Organização das

Nações Unidas (ONU), em Estocolmo, na Suécia, com representações de diversos

países, para tratar do problema ambiental já apresentado como uma realidade mundial

incontestável. Essa reunião despertou a atenção dos países no sentido de que o

ambiente é o mesmo para todo o planeta, sendo a Terra o grande ecossistema onde

habita o ser humano. Concluiu-se pela necessidade de ações - por parte de todos os

países - que minimizassem o impacto sobre os recursos naturais disponíveis, com a

observação de que o meio ambiente não possui divisa natural, sendo as fronteiras dos

territórios uma convenção humana, mesmo porque problemas ambientais de um país

afetam diretamente outro.

Nessa primeira reunião mundial considerou-se que o ambiente não era

apenas o natural, onde se encontravam intactos os valores da fauna e da flora, mas

também o ambiente artificial, caracterizado pelas inovações do homem, e que o ser

humano necessita de qualidade de vida no meio onde vive. A partir dessa análise, foi

enfocada também a necessidade de aproveitamento racional dos recursos naturais e o

relacionamento entre os dois ambientes (natural e artificial) tendo como elo o homem e

as suas intervenções que deveriam ser pautadas pela preservação dos valores

ambientais essenciais à sua própria sobrevivência.

O Brasil, que na época vivia e comemorava o “milagre econômico”,

deixou de atender ao apelo internacional por interpretar, em um primeiro momento (tal

como outros países não desenvolvidos), que os países mais ricos promoviam a

mobilização mundial como forma de frear o avanço dos países em processo de

desenvolvimento, restringindo-lhes a capacidade de exploração dos recursos naturais

necessários ao seu crescimento econômico.

Page 46: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

46

Especificamente sobre as questões da fauna, em 27 de janeiro de 1978,

foi proclamada pela UNESCO, em sessão realizada em Bruxelas, a Declaração

Universal dos Direitos dos Animais, contendo treze artigos que descreveram direitos

naturais que devem ser respeitados pelo homem na sua relação com os animais. Uma

das justificativas constantes do preâmbulo dessa Declaração diz respeito ao

desconhecimento e o desprezo dos “direitos dos animais” que levaram o homem a

cometer crimes contra a natureza e contra os animais.

A mobilização mundial continuou e, na década de 1980 os movimentos

ambientalistas exerceram papel fundamental na conscientização da necessidade de

preservação dos valores ambientais, de aperfeiçoamento da legislação ambiental e

adoção de medidas eficazes para fiscalização do aproveitamento dos recursos

naturais, entre eles os da fauna silvestre. Nessa fase, surgiram várias Organizações

Não-Governarmentais (ONG) que se popularizaram no Brasil, voltadas à defesa do

meio ambiente.

Reflexo dessa movimentação em nível internacional foi o já citado texto

da Constituição Federal de 1988, que reservou um Capítulo exclusivo para abordar o

tema “Do Meio Ambiente” (Capítulo VI), além de diversas leis que surgiram, tais como

a Lei 7.653, de 12 de outubro de 1988, que impôs graves sanções às infrações

ambientais, no caso, praticadas contra a fauna.

Já na última década do século XX, a atenção do mundo voltou-se ao

Brasil com a realização da “ECO-92” (ou “Rio-92”), reunião promovida pela ONU, em

1992, na cidade do Rio de Janeiro. Dessa vez, objetivou-se traçar uma estratégia de

aproveitamento dos recursos naturais de forma compatível com as necessidades

sociais, para a garantia da qualidade de vida humana, e também coerente com a

manutenção dos valores ambientais, encerrada no amplo conceito de conservação,

almejando-se um desenvolvimento sustentável das nações.

Page 47: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

47

Com o avanço da tecnologia, os bancos genéticos naturais despertaram o

interesse econômico em nível mundial, diante da possibilidade de aproveitamento

desses recursos (matrizes) como material para pesquisa e desenvolvimento científico,

na busca de soluções medicinais e de inovações na área da produção de bens

diversos que propiciem melhor qualidade de vida ao ser humano. A riqueza da fauna

silvestre do Brasil, que possui várias espécies endêmicas, vem atraindo pesquisadores

e grupos empresariais de diversas partes do mundo, ensejando ações de iniciativa

governamental, e mesmo privada, para a preservação das espécies nativas brasileiras.

3.4 A fauna silvestre como bem público de interesse difuso

Sob o prisma do direito natural, é razoável defender que todos os

animais, sem exceção, possuem “direitos” na condição de seres vivos que dividem o

mesmo espaço ambiental. Porém, no direito positivo brasileiro, que é o campo deste

estudo, somente o ser humano é sujeito de direitos - e também de deveres -, pelo

menos por enquanto. As demais espécies, materializadas nos espécimes que as

integram, são objetos de tutela legal, considerados os seus representantes entes

protegidos contra crueldade, contra o risco de extinção da espécie a que pertencem e

contra práticas que coloquem em risco sua função ecológica.

Todas as leis criadas para a defesa do meio ambiente existem para

beneficiar o próprio homem; é ele o favorecido e, secundariamente, as demais

espécies. Objetivamente, os animais que integram a fauna são bens sobre os quais

direta ou indiretamente a ação humana se faz incidente, motivo pelo qual possuem

relevância jurídica e recebem tratamento legal adequado a essa característica; são,

portanto, bens jurídicos.

O homem exerce a condição de sujeito de direitos de forma individual ou

coletiva. Algumas leis brasileiras da segunda metade do século XX destacaram a

Page 48: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

48

proteção de interesses transindividuais, ou seja, que transcendem o indivíduo,

alcançando uma dimensão maior, o interesse de uma coletividade. O gênero

interesses transindividuais dividiu-se em duas espécies: os interesses coletivos,

que dizem respeito às pretensões ou valores de um dado grupo de pessoas, de uma

parcela da sociedade, como por exemplo, os interesses das associações; e os

difusos, que são interesses de um número indeterminado de pessoas e, assim, o

interesse de toda a sociedade.

Exemplo dessa nova disposição é a Lei 8.078/90 (Código de Defesa do

Consumidor), que em seu artigo 81 estabelece que:

A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam Titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.

Entre as inovações trazidas na Constituição de 1988 para a proteção dos

interesses difusos, registrou-se um Capítulo específico para tratar do meio ambiente

(Título VIII – Da ordem social, Capítulo VI – Do Meio Ambiente), em que foi

reconhecido o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,

classificado como “bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida” (artigo

225, caput). Tendo o legislador considerado a função ecológica da fauna silvestre

(artigo 225, parágrafo 1o, inciso VII), admitiu-a como bem ambiental, em vista de sua

imprescindibilidade, face o almejado equilíbrio ecológico do meio ambiente.

A questão que se apresenta, então, é qual o regime de titularidade da

fauna silvestre, enquanto bem que desempenha uma função ecológica. Devemos

inicialmente aceitar que os animais domésticos têm regime diverso dos silvestres, pois

os primeiros compreendem indiscutível propriedade particular de quem legitimamente

sobre eles exerce domínio, com as limitações impostas pela lei, constituindo bens

privados; já os segundos, os silvestres, por possuírem função ecológica, são

Page 49: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

49

considerados bens ambientais e, portanto, indisponíveis. Não obstante, o Estado, que

administra esses bens, possibilita sua exploração mediante autorização, concessão ou

licença, nos termos da lei, objetivando o bem comum.

Nesse contexto, alguns autores defendem que a fauna silvestre,

enquanto bem ambiental, constitui bem difuso e não um bem público, considerando

superada a visão de simples separação dos bens jurídicos em dois grandes grupos: os

bens privados e os bens públicos. Sob esse enfoque, propõe-se a seguinte

diferenciação: o bem público é aquele pertencente ao patrimônio público, tendo como

titular o Estado e o bem difuso é aquele que pertence à coletividade, possuindo

características de indivisibilidade e tendo por titulares pessoas indeterminadas e

ligadas por circunstâncias de fato.

No entanto, o Código Civil (de 1916), em seu artigo 66, inciso I, já

considerava como uma das modalidades de bem público o “de uso comum do povo,

tais como mares, rios, estradas, ruas e praças” e esta foi evidentemente a fonte da

expressão utilizada no Texto Constitucional, observada a sua mesma redação. Assim,

a classificação de bem difuso aplicada ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,

que implica na aceitação da coletividade como titular desse bem jurídico no seu mais

amplo sentido, é justa na medida em que o nominado meio ambiente reúne

características de indivisibilidade e constitui exatamente bem de uso comum do povo;

ademais, a própria evolução da legislação brasileira indica um desmembramento do

bem público, ao considerar o bem difuso de forma autônoma. Não é tão simples,

porém, a classificação da fauna silvestre sob esses mesmos critérios. Vejamos.

O conjunto dos animais que compõem a fauna silvestre é um bem

ambiental tanto quanto cada espécime, em sua individualidade, por seu valor ecológico

agregado ou potencial. O aproveitamento desse ou desses bens ambientais, porém,

dá-se de modo diverso do chamado “uso comum do povo”, expressão que a

Constituição empregou para descrever o direito de aproveitamento do meio ambiente

Page 50: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

50

(ecologicamente equilibrado) como um todo indivisível. Tanto que, quando o Poder

Público permite a utilização da fauna silvestre, delimita sua autorização exatamente

pela quantidade de animais que sofrerão a interferência humana, considerando-os em

sua individualidade; por exemplo, um cidadão poderá obter licença para manter em

seu plantel de passeriformes silvestres um número definido de espécimes, devendo

restringir o seu aproveitamento da fauna silvestre ao número de indivíduos pré-

determinado, sob pena de responder criminalmente por abuso de licença.

Assim, diferentemente do ar atmosférico, ou da água corrente, que são

bens indivisíveis, o bem ambiental “fauna silvestre” é um conjunto de animais, que

também são bens ambientais em sua individualidade, e pode ser fisicamente dividido

levando-se em conta as espécies que o integram e a quantidade de espécimes (ou

exemplares) existentes. Evidentemente que a intervenção humana na fauna silvestre,

sem planejamento, pode importar até mesmo na extinção de espécies, tanto quanto a

intervenção humana planejada pode salvar espécies ameaçadas de extinção, como já

ocorreu em vários casos registrados na literatura científica.

Levando em conta que a Constituição garantiu a proteção dos animais,

impondo como tarefa do Poder Público: “Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma

da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção

de espécies ou submetam os animais a crueldade”, verifica-se que esta acabou por

recepcionar a Lei 5.197/67 (Lei de Proteção à Fauna), que já previa em seu artigo 1o

que “Os animais de quaisquer espécies em qualquer fase do seu desenvolvimento que

vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus

ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade do Estado, sendo proibida a sua

utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”.

Na verdade, a Lei 5.197/67 refletiu a preocupação social da época em

que foi concebida, diante da esgotabilidade do recurso natural “fauna silvestre” e de

sua importância no equilíbrio ambiental, tornando indisponível a apropriação desse

Page 51: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

51

bem jurídico e tutelando-o na condição de bem público, pertencente à União. Aliás, leis

posteriores continuaram a estabelecer como condição de exploração da fauna silvestre

a obtenção de autorização, licença e concessão expedidas pelo órgão público

competente, em consonância com a interpretação de titularidade do Estado, como ente

federal, em relação a esse bem jurídico.

No plano da competência legal para julgamento dos crimes contra a

fauna, vale destacar que até o final do ano 2000 era aplicada a Súmula 91 do STJ, de

1993, que estabelecia: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes

praticados contra a fauna”. Essa súmula já era alvo de críticas, pois, curiosamente,

nela não fora especificada a fauna silvestre, o que seria razoável em face da

titularidade do bem jurídico da União que exclui, evidentemente, os animais

domésticos, estes de propriedade privada. A questão foi finalmente superada com o

cancelamento da súmula (DJU 23.11.2000) e, portanto, não há mais conflito de

competência entre a Justiça Estadual e a Justiça Federal, em matéria de crimes contra

a fauna. Os crimes praticados tanto em relação à fauna doméstica, como em relação à

fauna silvestre, são levados ao conhecimento da Justiça Estadual, salvo se

envolverem tráfico internacional ou interestadual, ou se ocorridos em propriedades da

União, tal como nos crimes que envolvem exploração de outros bens ambientais.

Podemos então concluir que, entre os bens ambientais, a fauna silvestre

é um bem público, de propriedade da União, podendo ser interpretado como de

interesse difuso, diferentemente do ar atmosférico ou à água corrente, por exemplo,

que são exatamente bens difusos. A diferença, sutil, implica na observação da

titularidade do bem jurídico que, em relação ao ar respirável ou à água corrente, por

exemplo, é indeterminável, enquanto que em relação à fauna silvestre é propriamente

do Estado, conforme estabeleceu o artigo 1o da Lei 5.197/67 (Lei de Proteção à

Fauna) recepcionado pela Constituição de 1988. No caso dos crimes praticados contra

a fauna silvestre, o sujeito passivo é a coletividade, em face do resultante dano trazido

Page 52: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

52

ao meio ambiente (este um bem difuso), e a União, na condição de titular do bem

especialmente tutelado, a fauna silvestre.

3.5 Inovações da Lei 9.605/98 em relação à proteção da fauna

A Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 consolidou, em parte, vários

textos legais que tratavam de crimes ambientais, entre eles a Lei 4.771/67 (Lei de

Proteção à Fauna), com as modificações da Lei 7.804/89 e o Decreto-Lei 221/67

(Código de Pesca). Por essa razão é ela conhecida como Lei dos Crimes Ambientais.

Além da novidade de atribuição de sanções penais e administrativas à

pessoa jurídica, sem exclusão da responsabilidade das pessoas físicas, a Lei dos

Crimes Ambientais abordou aspectos de direito processual e trouxe novas definições

aos delitos contra o meio ambiente, abrangendo os crimes contra a fauna silvestre.

Nas tipificações das condutas, previstas na Seção I: “Dos Crimes Contra a Fauna”, do

Capítulo V: “Dos Crimes Contra o Meio Ambiente”, considerou conjuntamente a fauna

silvestre, que era autonomamente protegida mediante a Lei 5.197/67, e a ictiológica,

que era autonomamente regulada pelo Decreto-Lei 221/67 (diploma legal conhecido

como Código de Pesca).

A Lei 9.605/98 tutelou, além dos animais silvestres, os animais

domésticos e os exóticos, na mesma Seção I, do Capítulo V, em artigos específicos

aplicáveis a um ou a outro grupo ou a todos indistintamente; exemplo disso é o artigo

32, que define o crime de “crueldade e maus tratos”, previsto em relação a todos os

animais, observando-se que a conduta anteriormente era considerada contravenção

penal na superada redação do artigo 64 da Lei de Contravenções Penais. Também, a

Lei estabeleceu como causa de exclusão de ilicitude o fato de o agente abater o

animal - de qualquer espécie - para saciar sua fome ou de sua família (artigo 37, inciso I).

Page 53: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

53

Revogando disposição processual penal anterior, os crimes contra a

fauna deixaram de ser inafiançáveis e corrigiu-se, desse modo, distorção

anteriormente observada no conjunto da legislação penal de proteção dos animais, que

durante mais de uma década (a partir da Lei 7.653/88) provocou impasses em face do

excesso de rigor imposto na sua aplicação.

Em contrapartida, ao serem estabelecidas sanções compatíveis à

gravidade dos delitos, favoreceu-se, em tese, a eficiência da norma repressiva; isso

por que a maior parte dos delitos praticados contra a fauna passou a ter as respectivas

ações processadas pelo rito especial da Lei 9099/95, mais simples e célere que o rito

ordinário.

Page 54: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

54

4. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 29 DA LEI 9.605/98

Entre os artigos que preveem condutas criminosas contra a fauna na Lei

9.605/98 destaca-se o 29 (não aplicável aos atos de pesca, conforme estabelecido em

seu próprio parágrafo 6o), que relaciona diversas ações penalmente relevantes sob as

circunstâncias nele especificadas, particularmente em seu caput e nos três incisos do

parágrafo primeiro.

É ele o primeiro de uma série de artigos que integram a Seção I, do título

“Dos Crimes contra a Fauna” e traz, basicamente, as ações criminosas de maior

incidência na relação de exploração entre o homem e os animais e que, por conta

disso, apresentam maior potencial ofensivo ao equilíbrio do meio ambiente.

Art. 29: Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:

Pena – detenção de seis meses a um ano, e multa. § 1

o. Incorre nas mesmas penas:

I – quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a obtida; II – quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural; III – quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. § 2

o. ( .....)

Trata-se de crime de conteúdo variado, ou de ação múltipla, pois o tipo é

misto ao descrever várias condutas, consumando-se o crime com a prática de qualquer

uma delas. Ainda, quem pratica duas ou mais dessas condutas descritas comete um

só crime; por exemplo, quem apanha um sabiá-laranjeira com o auxílio de uma

arapuca, destrói o seu ninho e, após alguns meses em que o mantém em uma gaiola

em seu quintal, mata o referido animal, pratica somente um crime, cuja pena de

Page 55: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

55

detenção varia de seis meses a um ano, além de multa, se não houver circunstância

qualificadora do delito; em um segundo exemplo, também responde pelo mesmo crime

quem com uma só conduta mata outro pássaro silvestre, por exemplo, mediante

arremesso de pedra com propulsão de um bodoque.

4.1 Os quatro enfoques do artigo 29 da Lei 9.605/98

Detemo-nos particularmente no caput e nos três incisos do parágrafo

primeiro, do artigo 29, da Lei 9.605/98, para destacar que foram relacionadas condutas

anteriormente não consideradas criminosas. O texto legal objetivou claramente

alcançar não somente a proteção da integridade dos animais silvestres, projetada

no texto do caput desse artigo, mas também, nos seu parágrafo 1º, a proteção da

capacidade de reprodução da fauna (inciso I) e a proteção da integridade dos

ninhos, abrigos e criadouros naturais (inciso II), além da restrição da exploração

econômica do animal silvestre e de seus subprodutos (inciso III), mediante

imposição de igual sanção penal às práticas criminosas, ou seja, na forma simples, a

detenção de seis meses a um ano, e multa.

Na busca da mais clara e objetiva interpretação da norma penal, verifica-

se que o legislador abordou, na estruturação do artigo 29, as condutas criminosas

relativas à exploração da fauna, especialmente a silvestre, sob quatro pontos de vista

distintos. Foram organizadas, dessa forma, as principais ações humanas prejudiciais à

fauna em quatro grupos de condutas, justificando-se o estudo particular de cada um

deles, com análise de suas características próprias, para a melhor compreensão e

aplicação do texto legal.

Page 56: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

56

4.1.1 Proteção da integridade dos animais silvestres

Observa-se, em princípio, que o caput do artigo 29 da Lei 9.605/98

manteve basicamente o mesmo conjunto de ações já previstas no artigo 1o da Lei

5.197/67, constituindo-se, à evidência, em um aperfeiçoamento da norma legal.

Como a Lei de 1967 abordava a proteção da fauna sob o prisma da

prática de caça, já estipulara cinco ações proibidas em circunstâncias especificadas,

enfocando os atos relacionados à caça (utilização, perseguição, destruição, caça

propriamente dita ou apanha).

A palavra “caça”, aliás, tem dois sentidos básicos; o primeiro: animais

efetivamente caçados ou animais que podem ser caçados (por isso a expressão “carne

de caça”) e o segundo: conduta tendente à captura ou a provocar morte ou lesão de

animal em estado selvagem, sendo este o sentido empregado pela legislação em

estudo. Para melhor descrição e análise dessa primitiva prática, dá-se uso à

expressão: “atos de caça”.

Convém lembrar que, no meio natural, a atividade de caça não é exclusiva

do homem. Desde que não envolva o ser humano, inexiste relevância jurídica, pois,

nesse caso, encontrar-se-á a caça inserida no contexto do equilíbrio necessário entre

os animais, face o sistema da cadeia alimentar ou face qualquer outro processo natural

de confronto entre espécimes, em seu instintivo comportamento no mundo selvagem.

Estuda-se, portanto, aquilo que interessa ao Direito, ou seja, o envolvimento do

homem na atividade de caça.

Os “atos de caça” são condutas consideradas altamente prejudiciais à

integridade do conjunto dos animais silvestres, quando ausentes permissão, licença ou

autorização expedidas por competente órgão do Poder Público, no Brasil o IBAMA

(autarquia federal que é órgão licenciador e fiscalizador do uso do meio ambiente).

Sem o instrumento permissivo legal, presume-se a inexistência de manejo da fauna e,

Page 57: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

57

portanto, seu aproveitamento irracional. Por outro lado, se verificada a expedição do

instrumento público que legitima as atividades em estudo, nas condições impostas

pela Lei, restará excluída a prática criminosa e caracterizada a caça legal, ou seja, o

agente encontrar-se-á no exercício regular de direito, que é causa de exclusão de

ilicitude, conforme inciso III, do artigo 23, do Código Penal.

Conforme mencionado, as modalidades de condutas criminosas

anteriormente relacionadas como: utilização, perseguição, destruição, caça ou

apanha (atos de caça previstos na Lei 5.197/67), sofreram pequeno ajuste e passaram

a constar na Lei 9.605/98 (artigo 29), como condutas de: matar, perseguir, caçar,

apanhar e utilizar. Poderia, nesse momento, o legislador ter suprimido a conduta de

utilizar, para mante-la apenas no inciso III, do parágrafo primeiro, do artigo 29

(observando-se que também lá incluiu tal conduta), vez que o enfoque do

aproveitamento econômico - previsto no inciso III -, é predominante em relação à rara

“utilização” de animal silvestre como ato decorrente de caça, que compreenderia, por

exemplo, o aproveitamento de um animal silvestre como isca para capturar outro ou,

ainda, a sua exibição em uma exposição de troféus.

Além da alteração na sequência da relação das ações e a exposição dos

vocábulos em forma de verbos, o que dá maior coerência na apresentação do tipo

penal, nota-se que a única efetiva mudança registrada nessa primeira parte do artigo

29, em relação ao artigo 1o da Lei 5.197/67, refere-se à substituição da modalidade

“destruição” pela conduta de “matar”. Vale nesse ponto uma breve exposição.

Plenamente aceitável tal modificação em virtude de que quem destrói

necessariamente mata e o que a Lei protege em primeiro lugar, logo no caput do artigo

29, ao defender a integridade da fauna silvestre, é propriamente a vida do animal

tutelado, pois, sem vida, o espécime não desempenha função ecológica.

Também é interessante observar que provavelmente o legislador utilizou

a palavra “destruição” no parágrafo 1o da Lei 5.197/67, pois não teria encontrado no

Page 58: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

58

vernáculo outra palavra, na forma substantiva, mais adequada para classificar com

precisão a modalidade referente ao ato de matar (“matação” não consta no dicionário,

por enquanto). Na tentativa de substantivar o verbo “matar”, poderia até ter empregado

a palavra “matança”, porém, essa seria aplicada somente em relação a um coletivo de

animais silvestres, diferentemente do sentido de número indefinido das outras quatro

modalidades, eis que aplicáveis para um ou mais animais. Ainda, ao que tudo indica, o

legislador fez constar a palavra “destruição” pela compreensão imediata do seu sentido

quando aplicada em relação aos ninhos, abrigos e criadouros naturais que, apesar de

não constituírem fauna silvestre, são propriedades do Estado e também protegidos,

como o são os animais silvestres que deles fazem uso, conforme redação do caput do

próprio artigo 1o, da Lei 5197/67.

De qualquer forma, a utilização do vocábulo “destruição” na Lei 5.197/67

acabou por alcançar o objetivo da norma legal, em todos os sentidos, levando-se em

consideração que, na prática, quem mata um animal silvestre acaba com a vida do

espécime; já, quem destrói um animal silvestre, vai mais longe, além de matar o

espécime, ainda aniquila o seu corpo. Inclusive, também a circunstância “destruição”

(quando atinge vários espécimes) foi prevista como qualificadora das condutas do

artigo 29, da Lei 9.605/98, na redação do inciso VI, do parágrafo 4o, do próprio artigo,

para aumentar a pena de metade quando o crime é praticado “com emprego de

métodos ou instrumentos capazes de provocar destruição em massa”. Sob essa nova

perspectiva, portanto, a destruição é ação qualificada referindo ao aniquilamento de

um coletivo de indivíduos, mais grave do que, por exemplo, o ato de matar um ou dois

animais silvestres.

Portanto, o sentido das condutas típicas alternativas relacionadas no

caput do artigo 29 diz respeito às atividades próprias de caça. Assim, matar

corresponde a abater, tirar a vida do animal silvestre, com as próprias mãos ou

Page 59: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

59

mediante auxílio de instrumentos tais como lanças, dardos, atiradeiras, armas de fogo,

armadilhas etc.; perseguir significa correr atrás, ir no encalço, seguir de perto, acossar

com o propósito de importunar, incomodar o animal silvestre; caçar corresponde à

prática de atos tendentes à provocar a morte ou a captura com vida do animal silvestre

(preparar armadilhas, disparar arma contra animal silvestre, aguardar a chegada do

animal em tocaia para poder capturá-lo etc.); apanhar significa recolher, colher o

animal silvestre que não oferece resistência; e utilizar tem o sentido de tirar proveito,

obter vantagem (ainda no contexto da caça).

Fecha-se o ciclo com o verbo utilizar para que sejam abarcadas todas as

ações de um caçador, imagináveis e, por isso, possíveis. Assim, por exemplo, um

indivíduo que se encontra em uma floresta, a noite, com uma espingarda de caça e

petrechos apropriados, preparando armadilhas, ou simplesmente em tocaia,

aguardando sua presa, está praticando atos tendentes a provocar a morte ou a captura

com vida de animal silvestre, ou seja, está configurada a conduta de caçar; isso

porque o crime é de dano, ou de perigo, não sendo necessário o real prejuízo ao bem

ambiental, bastando o potencial ofensivo da conduta tipificada. Se esse mesmo

indivíduo atirar e, como resultado, abater um animal silvestre, estará configurada

também a conduta de matar. Em outro exemplo, se um indivíduo vai ao encalço do

animal silvestre e, acossando-o, dispara a arma sem conseguir capturá-lo, pratica as

condutas de perseguir e caçar. Se, ainda, em último exemplo, o mesmo caçador, ao

invés de disparar a arma, captura o animal silvestre sem que este ofereça qualquer

resistência e, após, mata-o e usa-o (o corpo) como isca em uma armadilha, atraindo

outro animal, pratica as condutas de apanhar, matar e utilizar (além de “caçar” em

relação ao segundo animal).

Page 60: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

60

4.1.1.1 Os atos de caça e a integridade dos animais silvestres

O fato de cinco verbos (matar, perseguir, caçar, apanhar e utilizar)

terem sido relacionados logo no início do caput do artigo 29 da Lei 9.605/98 como

ações criminosas desde que “sem a devida permissão, licença ou autorização da

autoridade competente, ou em desacordo com a obtida”, constitui clara indicação do

elevado nível de prejuízo à integridade da fauna silvestre decorrente dessas condutas,

em circunstâncias ilegais, ou seja, quando caracterizada a caça ilegal.

A anterior Lei 5197/67, conhecida tanto como “Lei de Proteção à Fauna”

quanto “Código de Caça”, ainda em vigor no que se refere aos atos de caça,

estabeleceu logo no parágrafo 1o, do seu artigo 1

o, que: “Se peculiaridades regionais

comportarem o exercício da caça, a permissão será estabelecida em ato

regulamentador do Poder Público Federal”. O Estado do Rio Grande do Sul, por

exemplo, que já possuía tradição de prática de caça - por influência da cultura de

imigrantes europeus ali fixados -, permitiu a prática da caça amadorística, regulada

pela Portaria do IBAMA nº 480/90, respeitando-se as fórmulas rígidas estabelecidas na

Lei 5197/67. Em contrapartida, imediatamente no artigo 2o

da mesma Lei 5197/67, foi

vedada a prática da caça profissional (“É proibido o exercício da caça profissional”).

Para melhor elucidação do assunto, é bom observar que as modalidades

de caça apresentam-se em dois grandes grupos, o da caça predatória, absolutamente

ilegal no país e o da caça não predatória. Sendo classificado o exercício da caça

neste último grupo, dependendo das circunstâncias, será admitido como ato regular

(legal). Classificam-se no primeiro grupo, absolutamente proibidas, a caça

profissional e a caça sanguinária, ou de sangue, que são, respectivamente, a caça

como meio de obtenção de lucro e a caça pelo mórbido prazer de acabar com um ou

outro animal, ou de provocar-lhe lesões; esta, uma forma primitiva de demonstração da

superioridade do homem, felizmente hoje pouco comum e não melhor qualificada do

que maldade.

Page 61: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

61

Classificam-se no segundo grupo: a caça de controle, a caça esportiva,

a caça científica e a caça de subsistência. Para as três primeiras modalidades é

possível a obtenção de permissão, licença ou autorização, na forma de instrumento

escrito expedido pelo órgão público competente.

A caça de controle é a destruição de animais silvestres considerados

nocivos à agricultura ou à saúde pública, conforme previsto no artigo 3o, parágrafo 2

o,

da Lei 5.197/67 e também nos incisos II e IV do artigo 37 da Lei 9.605/98, autorizada

em situações extraordinárias, mediante rigorosa motivação, para se evitar um mal

maior.

A caça esportiva ou amadorística é aquela praticada com o propósito

recreativo, sendo inclusive estimulada pela Lei 5.197/67 (letra “b”, do artigo 5o), que

previu a criação de parques de caça federais, estaduais e municipais, onde o exercício

da caça seria permitido; evidentemente que a licença para caça esportiva não autoriza

a gratuita crueldade contra animais silvestres (prática que configuraria a caça

sanguinária), tanto que a própria Lei 5.197/67 estabeleceu condições para o exercício

da caça amadorística, em seu artigo 10, proibindo, por exemplo, armadilhas que

maltratam a caça.

A caça científica é aquela perpetrada por estudiosos ou cientista, na

forma de coleta de animais silvestres, mediante especial licença do Poder Público,

dentro de períodos e outras condições estabelecidas, conforme artigo 14 da Lei

5.197/67.

Finalmente, a caça de subsistência é aquela habitualmente praticada

para a própria alimentação e consequente sobrevivência de um grupo, sendo aceita

como prática dos povos indígenas, respeitada a sua identidade cultura e dentro dos

limites de suas terras demarcadas pelo Poder Público, desde que, evidentemente, o

produto da caça não seja direcionado ao comércio (quando restaria identificada a caça

Page 62: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

62

profissional), pois a sobrevivência que caracteriza a caça de subsistência não diz

respeito à sobrevivência econômica do caçador ou de integrantes do seu grupo.

A caça em estado de necessidade não constitui propriamente uma

modalidade e sim uma situação excepcional, prevista no inciso I, do artigo 37, da Lei

9.605/98, que estabelece excludente de ilicitude, qual seja, não pratica crime quem,

em estado de necessidade, abate animal para saciar a fome (do próprio agente ou de

sua família). Na previsão legal, não pode ter a característica de habitualidade e, por

conta disso, não se confunde com a caça de subsistência, constituindo-se exceção

que a Lei indicou em razão do maior valor atribuído à vida humana, como bem jurídico

que está acima da integridade da vida de um animal silvestre.

Voltando ao assunto da caça profissional, modalidade que pressupõe a

obtenção de lucro, destaca-se que, além dela já de ter sido explicitamente proibida no

Brasil, conforme fora determinado no artigo 2o

da Lei 5197/67, tornou-se qualificadora

das condutas criminosas do artigo 29 da Lei 9605/98, mediante previsão do parágrafo

5o, do mesmo artigo, ou seja: “A pena é aumentada até o triplo, se o crime decorrer do

exercício de caça profissional”. Por sinal, como observa Luiz Regis Prado, encontra-se

na exposição de motivos da própria Lei 5197/67 a justificativa para a expressa vedação

a essa prática, que durante muitos anos devastou espécimes da fauna silvestre

brasileira: “A caça profissional deve ser rigorosamente proibida e por outro lado deve

ser encorajado o estabelecimento de criadouros de animais silvestres. O caçador

nativo e o caçador furtivo não causam uma fração do mal por que é responsável o

caçador profissional, que tudo dizima, visando o lucro fácil” 24

.

Outra questão interessante é a posição radical adotada no Estado de São

Paulo no final da década de 1980, tal como em outros Estados da Federação, para

coibir a prática de caça. Verifica-se que o artigo 204 da Constituição do Estado de São

Paulo, de 1989, concebida na sequência da Constituição Federal, estabeleceu que:

24 PRADO, Luiz Regis. Crimes Contra a Natureza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 41.

Page 63: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

63

“fica proibida a caça, sob qualquer pretexto, em todo o Estado”. Ora, será que o

legislador pretendeu incluir nessa proibição as modalidades de caça de controle,

científica e de subsistência? Certamente que não, pois, contrário senso, em São

Paulo o indígena não poderia caçar para sua sobrevivência, biólogos não conseguiriam

licença válida para coletar material zoológico objetivando estudos, nem poderiam

capturar espécimes para acasalamento e perpetuação de espécies em extinção e,

ainda, não seria possível o controle de pragas causadas por espécies nocivas à saúde

humana ou a simples remoção de espécimes em locais com superpopulação.

No ardor da campanha pela preservação das espécies silvestres, os

movimentos ambientalistas conseguiram êxito na previsão de proibição da caça no

Estado de São Paulo, de forma genérica, tendo a seu favor a comoção popular

daquele período, que já tornara possível, em nível federal, a imposição de severas

sanções aos atos de caça ilegal previstos na Lei 5197/67, mediante as inovações da

Lei 7.653/88, que classificou os atos de caça ilegal inclusive como crimes

inafiançáveis. Tudo isso porque, naquela fase, quando se falava em caça no Brasil,

lembrava-se automaticamente da caça predatória ao jacaré no Pantanal Mato-

Grossense, situação que realmente merecia imediata repressão do Poder Público e

que motivou grande divulgação na imprensa. De fato, provocada por um problema

regional que acabou afligindo todo o povo brasileiro, a referida mudança da legislação

federal - acompanhada de vigorosa atuação dos órgãos de fiscalização - reverteu o

quadro a tal ponto que, duas décadas depois, o grande número de jacarés no Pantanal

passou a representar verdadeiro risco de vida às populações locais. Pois bem, essa

nova condição é capaz de justificar outra intervenção do Poder Público, desta vez para

estabelecer condições de habitabilidade, que podem ser alcançadas mediante adoção

da caça de controle ou mesmo pela regulamentação de caça amadorística, em face da

superpopulação de espécie da fauna silvestre na região.

Page 64: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

64

Finalmente, para boa compreensão do artigo 204 da Constituição do

Estado de São Paulo, faz-se fundamental verificar o texto da Emenda 360 do Projeto

da Constituição Estadual de 1989, de autoria de Oswaldo Bettio, deputado estadual

que combateu duramente a prática da caça amadorística com o seguinte argumento:

(...) Fica proibida a caça, sob qualquer pretexto, em todo o Estado.

Justificativa

Amadorística ou profissional, apresentada sob qualquer disfarce, como

chamado “manejo de fauna”, a caça é uma atividade que não pode ser

permitida, pelos danos irreparáveis que causa a ecologia.

Só no Rio Grande do Sul os predadores da natureza obtiveram

proteção aos seus objetivos, através de um convênio que vem sendo

questionado pelas entidades ecológicas.

O Estado de São Paulo deve firmar uma posição que não admita

dúbias interpretações, mantendo a rigorosa proibição de qualquer tipo

de caça, única forma de se proteger a nossa fauna das ambições

desmedidas de caçadores irresponsáveis.

Sala das Sessões, em 28-7-89.

Evidentemente, em São Paulo, o que restou absolutamente proibido,

mediante imposição do artigo 204 da Constituição do Estado, foi a caça amadorística,

levando-se em conta que a caça predatória (profissional ou sanguinária) já eram

proibidas em razão da legislação federal em vigor. Por outro lado, caça de controle, a

científica e a de subsistência, por se tratarem de situações extraordinárias, não foram

objeto de abordagem no texto da Constituição do Estado de São Paulo e encontram

respaldo na legislação federal; a prática dessas modalidades de caça, como já

defendido, é necessária em certas circunstâncias e deve ser admitida para a garantia

da saúde pública (controle), da própria perpetuação das espécies animais (científica) e

para a preservação da cultura indígena reconhecida na Lei Maior, inclusive quanto ao

exercício dos direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente

ocupam (artigo 231, da Constituição Federal).

Page 65: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

65

4.1.2 Proteção da capacidade de reprodução da fauna

Tendo assegurado a proteção dos animais silvestres contra as condutas

humanas mais gravosas à sua integridade, ou seja, dos atos de caça ilegal previstos

no caput do artigo 1o, a Lei 9605/98 passou a descrever condutas ofensivas à

preservação das espécies silvestres nos três incisos do parágrafo 1o, do artigo 29,

abordando todas as fases do seu desenvolvimento, e organizou tais condutas em mais

três grupos. Mesmo que não relacionadas propriamente ao exercício da caça, tais

condutas trazem também graves prejuízos à fauna silvestre, atingindo diretamente os

espécimes que a integram e a expectativa de continuidade das espécies, como formas

de vida que possuem características singulares. Acompanhando o raciocínio do

legislador, verifica-se que, em destaque, o primeiro inciso do parágrafo 1o, do artigo 29,

diz respeito à proteção da capacidade de reprodução da fauna.

Se as graves condutas relacionadas à caça dizimam os animais silvestres

existentes, trazendo dano imediato ao equilíbrio ecológico, as ações que impedem a

sua procriação obstam o esperado surgimento de animais silvestres que renovariam o

grupo a que pertencem seus geradores, prejudicando o meio ambiente no tempo que

há de vir. Portanto, a atual previsão de crime para tais condutas, anteriormente não

tipificadas na área ambiental, apresenta-se em sintonia com o Texto Constitucional

que, em seu artigo 225, estabeleceu que: “todos têm direito ao meio ambiente

ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de

vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo

para as presentes e futuras gerações” (grifo nosso).

De fato, a preservação das espécies está intimamente relacionada com a

capacidade de reprodução dos seus respectivos exemplares, levando-se em conta que

as forma de vida no Planeta têm duração limitada. Ainda, a reprodução dos animais é

o mecanismo estabelecido na natureza para que as características genéticas de cada

grupo de animais sejam perpetuadas, mediante sua transmissão de uma geração à

Page 66: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

66

outra, em uma forma de corrente, mais especificamente um encadeamento de

informações da identidade de cada espécie em plena evolução.

Como o artigo 29 está inserido na Seção I, sob o título “Dos Crimes

Contra a Fauna” e o inciso I não especifica a condição de silvestre para a fauna que

seria objeto da conduta descrita, compreende-se que a capacidade de reprodução de

todos os animais, indistintamente, está penalmente protegida. Comprova tal

interpretação o fato de que, no mesmo artigo 29, quando a conduta é contrária

exclusivamente à fauna silvestre (exemplo do inciso III, do parágrafo 1o), esta é

especificada na redação do mesmo dispositivo.

Aliás, o método mais conhecido de se evitar a procriação da fauna é a

castração, com maior frequência praticada nos animais domésticos, ou domesticados,

exatamente porque é necessário o contato com o animal para que seja possível a

direta intervenção no seu órgão reprodutor. Antes da vigência da Lei 9605/98, tal

conduta seria penalmente relevante apenas se restasse caracterizada a prática de

crueldade contra o animal de qualquer categoria, configurando, nessa hipótese,

simples contravenção penal. O que a Lei atualmente protege vai muito além da

simples integridade física de um espécime; o referido dispositivo legal tem por objetivo

garantir a própria perpetuação da espécie representada pelo animal (nesse caso,

entende-se, silvestre) na condição de seu potencial reprodutor.

A castração, no entanto, apesar de constituir a forma mais comum, não é

o único método capaz de impedir a procriação da fauna:

Impedir a procriação da fauna é conduta criminosa que poderá ser verificada, por exemplo, quando o infrator utiliza meios químicos, alocando-os em locais propícios de alimentação, impedindo deliberadamente a reprodução de determinadas espécies animais. É o caso de um fazendeiro que para diminuir a incidência de capivaras em sua propriedade distribui fartamente ração contendo anticoncepcionais. A prova deste crime deverá ser atestada por pessoa habilitada, normalmente um médico veterinário

25.

25

NASSARO, Marcelo Robis Francisco. Direito Ambiental Aplicado à Proteção da Fauna. Apostila do Curso de Especialização de Oficiais da Polícia Militar Florestal de São Paulo. Edição interna, 2000.

Page 67: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

67

O inciso I, do artigo 1o, do artigo 29, descreve: “quem impede a

procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a obtida” (grifo

nosso). Assim, o destacado elemento normativo do tipo refere-se à ausência de uma

causa de justificação que caracterizaria a legalidade da intervenção humana em

prejuízo da capacidade de reprodução da fauna, nos limites bem definidos no

instrumento público que é expedido por motivo relevante.

Como ocorre na caça de controle, se existente licença ou autorização

para o impedimento de procriação da fauna, e agindo de acordo com as condições

impostas, encontrar-se-á o agente escudado no exercício regular de direito, que é

causa de exclusão de ilicitude, conforme inciso III, do artigo 23, do Código Penal.

4.1.3 Proteção da integridade dos ninhos, abrigos e criadouros naturais.

O inciso II, do parágrafo 1o, do artigo 29 da Lei 9605/98, estabeleceu que

também pratica crime, punível com a mesma sanção aplicável à conduta do caput do

artigo (detenção de seis meses a um ano, e multa), quem modifica, danifica ou destrói

ninho, abrigo ou criadouro natural. A tutela dessas bases físicas que possibilitam a

reprodução das espécies, ou protegem os espécimes e seus filhotes de intempéries e

do ataque de predadores, já era prevista no artigo 1o da Lei 5197/67, que também os

classificava como bens da União: “Os animais de quaisquer espécies, em qualquer

fase de seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo

a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são

propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça

ou apanha” (grifo nosso).

Sob a nova disposição legal, a única alteração constatada foi a inclusão

das condutas “modifica” e “danifica”, pois a modalidade de destruição já era prevista na

Lei 5197/67 aplicável também em relação aos ninhos, abrigos e criadouros naturais.

Page 68: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

68

Na interpretação literal do inciso II, do parágrafo 1o, do artigo 29 da Lei

9605/98, pratica o crime quem modifica (altera, muda as características), danifica

(causa dano ou prejuízo à função, descaracteriza), ou, destrói (reduz a nada, estraga

completamente, decompõe) ninho (habitação produzida por ave para a finalidade de

postura de ovos e criação de filhotes), abrigo (refúgio, asilo, local de habitação onde o

animal pode proteger-se das condições do tempo ou de outros animais), ou criadouro

natural (espaço natural onde se dá a reprodução e procriação de espécies, como por

exemplo: mangues, banhados, terrenos que permanecem alagados durante parte do

ano, enfim, locais que devido às suas características particulares acabam por atrair

grande número de exemplares de determinadas espécies com o intuito de ali se

reproduzirem, favorecendo essa área, inclusive, o crescimento seguro dos filhotes).

A garantia legal da integridade do hábitat e da progenitura dos animais

(especialmente os silvestres) é uma proteção necessária para que as espécies possam

se perpetuar. As interferências humanas mais comuns e extremamente prejudiciais à

reprodução das espécies silvestres, referem-se à remoção de ninhos bem trabalhados

de pássaros para exposição, como objeto de decoração, ou à simples destruição

desses mesmos ninhos nos próprios locais em que foram construídos, quase sempre

fixos em galhos de árvores, mediante arremesso de pedra ou disparo de arma como

inconsequente meio de diversão. Comum, também, a destruição de ninhos quando o

agente deseja diminuir o número de indivíduos de determinada espécie em uma

localidade, por considerá-los prejudiciais, por exemplo, para a agricultura.

Não há previsão legal de expedição de autorização ou licença para a

prática dessas condutas; ao contrário do que ocorre no caso de necessária ação de

impedimento de procriação da fauna. Aliás, não se confunde esta última conduta com

as previstas no inciso II, do parágrafo 1o, do artigo 29, ora analisadas, pois o que se

protege fisicamente nestes dois incisos é a própria “moradia” do animal silvestre,

constituindo-se ela seu abrigo inviolável.

Page 69: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

69

Por derradeiro, não se pode também confundir as condutas criminosas

que trazem prejuízo a ninhos, abrigos e criadouros naturais com atos de caça de

controle. Em primeiro lugar porque, como já observado, para aquelas não há previsão

de expedição de autorização ou licença, ao contrário do que ocorre com os atos de

caça de controle. Em segundo lugar, porque eventual autorização (caça de controle)

pode permitir somente o abate do próprio animal, ou animais considerados prejudiciais

ao homem, para dar proteção às lavouras, pomares e rebanhos de sua ação

predatória ou destruidora, ou, ainda, por serem nocivos, desde que assim

caracterizados pelo órgão competente, nos termos do inciso II e IV, do artigo 37, da Lei

9605/98, não alcançando, portanto, o hábitat dos espécimes (ninho, abrigo e criadouro

natural), que deve permanecer intacto.

4.1.4 Restrição da exploração econômica do animal silvestre e de seus subprodutos

Após ter coibido os atos de caça considerados prejudiciais ao meio

ambiente, protegendo a integridade da fauna silvestre e ter defendido a capacidade de

procriação das espécies, bem como seu hábitat, cuida o artigo 29 da Lei 9605/98, no

inciso III do seu parágrafo 1o, de restringir a exploração econômica dos animais

silvestres e respectivos subprodutos.

Fecha-se o ciclo das ações humanas básicas que causam dano ou

potencial prejuízo (perigo) à fauna com a enumeração de condutas que indicam a

prática de comércio irregular, ou caracterizam atos tendentes à sua prática, como

atividades criminosas. A Lei 5197/67 permitiu o aproveitamento econômico da fauna

silvestre em seus artigos 8o e 16, exigindo, para tanto, a obtenção de licença mediante

registro das pessoas físicas ou jurídicas que negociem animais silvestres e seus

subprodutos.

Page 70: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

70

Com efeito, os atos de comércio devem ser rigorosamente fiscalizados,

pois, compreende-se, somente o aproveitamento racional e licenciado do bem jurídico

tutelado não causará prejuízo ao equilíbrio ambiental. Impõe-se, dessa forma, o

cumprimento das condições estabelecidas para a garantia da sustentabilidade dos

recursos naturais economicamente aproveitados, mediante manejo das espécies

exploradas. Nessa linha, a Portaria do IBAMA nº 117-N, de 15.10.97 regulamentou os

atos de comércio, estabelecendo condições para o seu exercício, bem como o

funcionamento dos criadouros regularmente autorizados para essa finalidade.

Confirmam o nítido enfoque da exploração econômica do animal silvestre

e de seus subprodutos no dispositivo legal em estudo Vladimir Passos de Freitas e

Gilberto Passos de Freitas26

:

O inciso III refere-se ao comércio de espécimes da fauna silvestre, em diversas modalidades, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença, ou autorização da autoridade competente. Lei 5.197/67 previa esse delito no artigo 3

o, com redação

direta e simples, sancionando-o com pena de reclusão de 2 a 5 anos. O tipo penal, agora, utiliza várias formas de conduta (vender, expor à venda, exportar, adquirir, ter em cativeiro ou depósito, utilizar ou transportar). Visou o legislador evitar qualquer tipo de justificativa para o mais condenável dos atos, que é o comércio de animais.

Sendo assim, pratica o delito, com o objetivo de exploração econômica,

quem vende (negocia, aliena por certo preço, comercializa, cede a outrem mediante

vantagem pecuniária, entrega mediante remuneração ou compensação), expõe a

venda (exibe para venda, põe à vista para atrair freguês; mostra, apresenta ou oferece

para o propósito de venda), exporta (envia para o exterior, envia para outro estado ou

município) ou adquire (recebe gratuita ou onerosamente, obtém, compra), guarda

(retém sob seus cuidados para outro, ou para si próprio, com o propósito de negociar;

toma conta, conserva, oculta para outrem), tem em cativeiro ou depósito (retém para

si mesmo, com propósito mercantil, em local fora do hábitat natural ou guarda para

26

FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes Contra a Natureza. 6a ed. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2000, p. 80.

Page 71: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

71

outrem, como depositário, o que será ou já foi negociado); utiliza (aproveita), ou

transporta (remove, conduzindo de um lugar para outro) ovos, larvas ou espécime da

fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela

oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão,

licença ou autorização da autoridade competente.

Observa-se que, nessa disposição, além de proteger no território

brasileiro os espécimes da fauna silvestre, nativas ou em rota migratória, da

exploração comercial desautorizada, a Lei estendeu a tutela para os seus ovos, que

são corpos naturalmente herméticos onde se forma o produto da alogamia (ou

fecundação) do óvulo; para as larvas, que constituem o primeiro estágio de vida de

parte dos animais, depois que estes saem dos ovos; para os produtos dela oriundos

(da fauna silvestre ou em rota migratória), que são o resultado de fabricação ou

manufatura, tendo como matéria-prima o próprio corpo do animal ou partes dele, por

exemplo, casacos e bolsas de peles, artigos de decoração, alimentos alimentares etc.;

e para os objetos também dela oriundos, aqui interpretados como materiais que,

apesar de ainda não terem sido submetidos a processo de industrialização ou

manufatura, foram extraídos do animal silvestre, tais como guizo (de cobra), chifres,

casco, pena etc.

Constata-se nesse inciso certa semelhança com a sequência de condutas

do artigo 12 da anterior Lei 6.736/76 (que dispôs sobre os crimes relacionados ao

tráfico de entorpecentes), o que serve como referência para o estudo da Lei dos

Crimes Ambientais. Objetivando coibir o comércio ilícito de entorpecentes, aquele

dispositivo apresentou diversas ações que podem ser comparadas com as que foram

previstas na Lei 9.605/98 para restringir o comércio de espécimes da fauna silvestre e

outros bens a ele relacionados. O artigo 12 da Lei 6.736/76 apresentou, entre outras,

as condutas de vender, expor à venda, exportar, adquirir, guardar, ter em depósito e

transportar.

Page 72: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

72

A semelhança não é gratuita. O legislador em 1998 teve como evidente

referência e fonte de vocabulário a Lei 6.736/76, pois, tal como o tráfico de

entorpecentes, o tráfico de animais silvestres passou a representar um desafio para o

Poder Público a partir do momento em que se constatou o grave prejuízo que tal

prática causava à sociedade. Mesmo com as similaridades indicadas, curiosamente a

Lei dos Crimes Ambientais não empregou a expressão “tráfico” para denominar o

comércio ilegal de animais silvestre; apesar disso, a sociedade em geral e os próprios

operadores do direito adotaram a expressão que já vinha sendo amplamente utilizada

nesse contexto.

Por ocasião do surgimento da Lei 9.605/98, tinha-se notícia de que na

área dos negócios ilegais, em rota internacional, a venda de animais silvestres

somente perdia apenas para o tráfico de drogas e para o comércio de armas, em razão

do cálculo de que 10 bilhões de dólares eram movimentados nesse mercado por ano,

sendo um décimo desse valor apenas no Brasil27

. Exigiu-se, portanto, tal como na Lei

de Tráfico de Entorpecentes, uma abordagem ampla de todas as condutas

relacionadas à abominável prática de comércio de animais silvestres, na descrição do

inciso III do parágrafo 1o, da Lei 9.605/98, sob o enfoque da exploração econômica

desautorizada desses recursos.

Entre as condutas do analisado inciso III, destacam-se duas que podem

gerar certa polêmica: guardar e ter em cativeiro ou depósito. Pode parecer que se

quis, nesse momento, coibir a mantença de animais silvestres a propósito de

estimação, pois esta é a primeira imagem que vem à mente quando se refere ao

animal silvestre “guardado ou mantido em cativeiro”. Defende-se, todavia, que sua

proibição não é o objetivo do dispositivo em questão.

27

LIMA, Pedro C. de; SIDNEI, Sampaio dos Santos. Cetas: an important tool to fight Illegal traffic of sylvan animals and reintroduction of species in protected habitats in light of eco-tourism activities. In: WORLD ECOTOUR, 2., 2000, Salvador. Annals... Salvador: Biosfera, 2000. p. 29-33.

Page 73: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

73

Conforme demonstrado, buscou-se no inciso III abarcar todas as formas

possíveis de atos de comércio ou atos a ele relacionados, entre os quais a guarda

(doméstica ou não) e a conduta de ter em cativeiro ou depósito (em casa, no quintal

ou em qualquer outro local) o bem jurídico em questão com finalidade mercantil e não

a simples manutenção do animal para o propósito de estimação. Portanto, nesse ponto

da legislação, a conduta criminosa é caracterizada pela indevida obtenção, ou procura

de obtenção de vantagem econômica.

4.2 A guarda doméstica e a hipótese de perdão judicial

Imediatamente na sequência do inciso III, do parágrafo 1o, da Lei

9.605/98, apresenta-se o parágrafo 2o, que trata de hipótese de perdão judicial:

Parágrafo 2

o. No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não

considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.

A Lei, nesse momento, apresenta imprecisão. Correto seria o uso do

vocábulo “espécimes” e não espécie, que foi equivocadamente empregado. Talvez o

legislador buscasse transmitir a ideia de número não definido de animais guardados

(um ou mais); porém, nesse sentido, deveria ter utilizado a expressão “espécime ou

espécimes”. De fato, porque é quase impossível alguém conseguir guardar em casa,

ou em seu quintal, toda uma “espécie” da fauna silvestre. Portanto, o vocábulo

“espécie”, utilizado no parágrafo 2o, deve ser compreendido pelo significado de

“espécime” ou “espécimes”.

Na esteira da interpretação do “caput” do artigo 29 e dos incisos do seu

parágrafo 1o, entende-se que, se o infrator for surpreendido guardando em sua

residência ou quintal (guarda doméstica) espécime da fauna silvestre, no sentido da

guarda já abordada no inciso III, do parágrafo 1o - ou seja, com propósito mercantil - e,

desde que não integrante de espécie ameaçada de extinção, poderá o juiz deixar de

Page 74: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

74

aplicar a pena correspondente, considerando as circunstâncias do caso concreto. Por

interpretação lógica, o parágrafo 2o só pode ser relacionado à conduta prevista no

inciso III, do parágrafo 1o

(a nosso ver, guarda com finalidade comercial), pois em

nenhum outro momento, no artigo 29, foi utilizado o vocábulo “guarda”, destacada a

extensa e minuciosa descrição de atos lesivos ao meio ambiente verificada nesse

artigo, em face do aproveitamento irregular do precioso recurso natural “fauna

silvestre”.

Motivo da ressalva é a resposta ao menor potencial de lesividade da

conduta em relação ao meio ambiente. O infrator, individualmente identificado, que

responde criminalmente pela guarda doméstica de animal ou animais silvestres, pode

ser beneficiado com o perdão judicial - quando o objeto de sua empreitada não integra

espécie ameaçada de extinção - pois, agindo no âmbito de suas relações particulares,

dá causa a prejuízo ambiental menor em relação àquele decorrente da atividade de

traficantes especializados, vários em organizações criminosas que promovem

comércio de animais silvestres em quantidades e proporções muito superiores, para

interessados dentro e fora do país.

Nessa interpretação, a guarda doméstica de espécime (ou espécimes) da

fauna silvestre é a conduta do cidadão que possui em seu quintal um viveiro onde

guarda, sem licença, canários-da-terra, pintassilgos e araçaris para serem negociados

com sua vizinhança, ou com qualquer pessoa que a ele recorra para adquirir, mediante

pagamento, um desses espécimes. O seu propósito evidentemente não é a

manutenção para a estima, pois aquele que mantém um animal a título de estimação

(doméstico ou silvestre), não o aliena; pelo contrário, esforça-se por mantê-lo sob seus

cuidados em virtude do vínculo afetivo que se estabeleceu entre ele (o mantenedor) e

o animal de estimação.

Cabe, aliás, a análise da sutil diferença da aplicação dos verbos “ter" e

“manter” no texto legal. Mesmo que não constitua propriedade particular (pois é

propriedade da União), o animal silvestre nas mãos do comerciante irregular é tratado

Page 75: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

75

como se o fosse, é avaliado como objeto de venda, é ele negociado tal como um

eletrodoméstico. Já nas mãos do mantenedor, a título de estimação, o animal silvestre

é destinatário de um esforço pessoal de quem se sente responsável pela manutenção

de sua vida, e mesmo de seu bem-estar. Ao contrário do comerciante, o mantenedor

não deseja desfazer-se do animal e sim preservá-lo. Sob os cuidados do mantenedor,

o animal desempenha uma função que vai muito além do benefício produzido por um

simples objeto; por isso é mantido como forma de vida.

A quantidade de espécimes presentes em determinado ambiente

doméstico, além do espaço em que são guardados e a própria forma como são

tratados, pode evidenciar o propósito mercantil. Em princípio, quem mantém animais a

propósito de estimação o faz, normalmente, em relação a um, dois ou três espécimes,

e estes quase sempre são muito bem cuidados. Ao contrário, o particular que pretende

auferir lucros, por menor que seja a expectativa de ganho, guarda ou tem em depósito

vários espécimes no seu ambiente doméstico, para si ou para outrem, em quantidade

suficiente para que as eventuais perdas do seu objeto de comercialização - próprias da

guarda em cativeiro -, não constituam obstáculo para a obtenção de vantagem

pecuniária advinda das transações que serão realizadas; o bem estar desses animais

é o que menos importa ao comerciante irregular, nos limites de sua residência.

Importante destacar que somente poderá ser concedido o perdão judicial

se os espécimes guardados, no âmbito doméstico, não pertencerem a qualquer das

espécies classificadas pelo Poder Público como “em extinção”. A preocupação primeira

é evitar o irreparável desaparecimento de parcela única do reino animal, ou seja, a

extinção de espécie (ou de espécies), motivo pelo qual não pode ser concedido

qualquer benefício legal para quem concorre, mesmo que indiretamente, para tamanho

prejuízo ecológico.

Não é coerente, por outro lado, relacionar a hipótese de perdão judicial

com as condutas do caput do artigo 29: matar, perseguir, caçar, apanhar ou utilizar -

mesmo levando-se em consideração que o benefício legal está consubstanciado em

Page 76: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

76

um dos parágrafos do artigo (parágrafo 2o) -, pois o vocábulo “guarda” não se coaduna

com qualquer dessas condutas, que são doutrinariamente classificadas como

atividades próprias de caça. Quando muito, em relação às condutas do caput, a

“guarda” poderia ser associada ao ato de “utilizar”; porém, se tal fosse o propósito, a

Lei teria previsto para hipótese de perdão judicial a “utilização doméstica” de animal

silvestre e, mesmo que fosse empregada tal expressão, haveria ser observado que a

jurisprudência entende, de longa data, que somente se configura a utilização (já

prevista na Lei 5.197/67) quando verificada a obtenção de real vantagem, lembrando

que não é nela compreendida a simples mantença de animal a propósito de estimação.

No entanto, o cidadão que mantém em casa, bem cuidado, porém sem

autorização, um animal silvestre para o fim de estimação, encontra-se objetivamente

em situação irregular, em que pese sua conduta não ser tipificada na Lei dos Crimes

Ambientais, na apresentada interpretação. Na verdade, a responsabilização penal é o

último mecanismo de controle do Poder Público para coibir os atos prejudiciais à vida

em sociedade, por isso é ela destinada às condutas mais gravosas tais como a caça

proibida e o comércio ilegal de animais silvestres que trazem incalculável prejuízo ao

equilíbrio ecológico.

A simples mantença doméstica de animal silvestre (que não pertence à

espécie em extinção) é conduta socialmente aceita e não representa um mal em si,

tanto que o IBAMA autoriza, mediante sério controle, a criação de espécimes para

venda como animal de estimação e já é possível hoje comprar legalmente, por

exemplo, uma arara, para mantê-la no quintal.

Portanto, na ausência da autorização exigida, desde que o animal

silvestre não esteja submetido a maus tratos (quando seria configurado o crime do

artigo 32 da Lei 9.605/98), a solução pela via administrativa, para a mantença de

animal silvestre a propósito de estimação, é a adequada, mediante imposição de

multas cujos valores deverão inibir a aquisição e o mantenimento de espécime sem

procedência de criadouro legalizado.

Page 77: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

77

5. O APROVEITAMENTO DOS RECURSOS DA FAUNA SILVESTRE

Conforme estabelecido no artigo 225 da Constituição Federal, “todos têm

direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e

essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o

dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Portanto, todos são titulares do direito de usufruto do meio ambiente

ecologicamente equilibrado, melhor definido como um conjunto de condições físicas

apropriadas à vida humana. E no complexo harmonioso que constitui o ambiente

próprio à sadia qualidade de vida do homem, os animais silvestres desempenham

relevante papel, tanto quanto qualquer forma de vida, como partes integrantes de um

conjunto natural marcado por estreitas relações físicas e químicas de

interdependência.

O aproveitamento econômico do meio ambiente ecologicamente

equilibrado ocorre de modo coletivo (uso indireto), ou individual (uso direto). No que diz

respeito à fauna silvestre, o homem compartilha dos benefícios gerais dela advindos

no seu conjunto, no modo indireto, mantendo-se em posição de mínima interferência

em relação ao meio natural preservado; por outro lado, no modo direto, é beneficiário

individual do potencial particular de um ou mais espécimes silvestres, mediante uso

privado desse recurso, aumentando, nessa condição o seu nível de interferência no

meio natural.

Reconhecida a propriedade do Estado sobre a fauna silvestre e a

possibilidade do aproveitamento privado dos espécimes que a integram, mediante

criteriosa outorga de instrumento de autorização, como forma de racional intervenção

no meio natural, depara-se com duas situações distintas, que devem ser analisadas: a

posse justa e a posse injusta do animal silvestre.

Page 78: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

78

5.1 Custo ambiental e intervenção humana no meio natural

Ao longo do tempo, o homem foi ocupando quase todos os espaços com

superfície terrestre no planeta e modificando a camada original para as adaptações

necessárias à sua sobrevivência e conforto. Para poder plantar, na proporção que o

crescimento populacional lhe foi impondo - e diante dos meios técnicos disponíveis -,

retirou boa parte da cobertura vegetal nativa, vindo a modificar, nessas áreas,

substancialmente o meio ambiente natural que constituía o hábitat original dos animais

silvestres.

Formou-se nitidamente uma divisão entre os espaços de vegetação nativa

remanescente, verdadeiras ilhas que passaram a ser preservadas pelo interesse

público (“áreas verdes”), e as áreas de ambiente artificial, caracterizadas pela

interferência humana (“áreas cinzas”). Enfim, restaram destacados o meio natural e o

meio artificial.

Seguindo-se, no Brasil, o modelo norte-americano da criação de parques

(o primeiro deles, o emblemático Parque Nacional de Yellowstone, de 1831), os três

primeiros parques nacionais foram criados, em sequência, na mesma década: o

Parque Nacional de Itatiaia, na divisa entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais, em

193728

e, dois anos depois, o Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, e o Parque

Nacional da Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro, em 1939. Esses parques e outros

posteriores, onde se proibiu o exercício de qualquer atividade contra a flora e a fauna,

foram estabelecidos com base no artigo 9º do Código Florestal vigente, que trazia a

primeira referência legal aos parques nacionais, estaduais e municipais, com a

definição em sua redação original de “monumentos publicos naturaes, que perpetuam

em sua composição floristica primitiva, trechos do paiz, que, por circumstancias

peculiares, o merecem”.

28

Criado pelo Decreto Federal 1.713, de 14 de junho de 1937.

Page 79: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

79

As áreas verdes, legalmente preservadas, deveriam ser, em princípio, os

únicos lugares para permanência dos animais silvestres preservados junto a toda

beleza cênica desses espaços naturais. Essa era a ideia original para preservar a

natureza remanescente. Em áreas verdes, os animais desempenhariam sua função

ecológica, ao menos no espaço limitado da reserva ambiental, participando das

relações de interdependência que a natureza originalmente estabeleceu ao longo de

milênios.

O homem contemporâneo vem percebendo, porém, que não pode dar-se

ao luxo de assistir passivamente as transformações resultantes de sua histórica e

radical interferência no meio natural e, após confinar espécimes em áreas protegidas,

permanecer tão somente aguardando que espécies não se extingam ou não se

proliferem de modo nocivo ou particularmente ameaçador à sua existência.

Sobre esse raciocínio, é oportuno o comentário sobre os impactos de

decisões na área ambiental que ensejam constante monitoramento e inevitáveis novas

interferências:

Com a proibição de sua caça, os crocodilos da Flórida estão começando a aparecer nos quintais. Os gigantescos ursos cinza começam a fazer footing em alguns vilarejos no Alasca. Com a matança de lobos, lá pelo princípio do século, houve uma explosão demográfica nos veados do Colorado. Como nada se fez para contê-la, os bichos comeram até a raiz do capim, destruindo o seu hábitat. O resultado foi o seu desaparecimento completo. A lição é clara. Depois que o homem alterou o equilíbrio original da natureza, foi-se a ideia de que é possível parar de interferir. Certamente, se não bulir mais, a natureza vai chegar a algum equilíbrio. Mas esse equilíbrio bem pode ser um deserto, como parece haver sido o caso no Oriente Médio. Ou pode ser a invasão dos coelhos na Austrália, ou a dos gafanhotos na África. A floresta virgem está em equilíbrio. Mas, depois que interferimos, ou administramos um novo equilíbrio, ou o equilíbrio que espreita pode ser altamente indesejável. Como já bulimos em quase tudo, nada nos resta senão a alternativa de bulir mais, de forma inteligente e bem informada

29.

29

CASTRO, Cláudio de Moura. Artigo Proteger ou Arruinar o Meio Ambiente? Revista Veja, ed. Abril, 12.03.1997, p. 134.

Page 80: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

80

Ao contrário de “congelar” florestas com todos os seres vivos ali mantidos

e esperar os resultados, a alternativa de continuar interferindo no meio natural, de

forma inteligente, planejada e bem informada, é o exato preço que o ser humano deve

pagar em razão do nível de modificações já impostas no equilíbrio natural. Para tal

propósito, o denominado manejo de animais tem um custo técnico elevado; não

obstante, é quase sempre a única forma de reconciliação entre o homem e espécies

que tiveram seus hábitats quase completamente devastados.

Oportuno destacar, nessa linha de raciocínio, a diferença entre

“preservação”, que é baseada na intocabilidade da área preservada (inicialmente

adotada como solução às questões ambientais) e a “conservação”, moderna

concepção baseada na sustentabilidade, mediante uso racional dos recursos naturais,

na lição de João Leonardo Mele:

A preservação é um conceito classicamente fechado, envolve o raciocínio de não se usar o bem ambiental, em especial o de fauna e flora, de nenhuma forma. O bem fica preservado, produzindo seus valores indiretos, entre os quais relacionamos a manutenção das florestas, a consequente estabilização dos lençóis freáticos, a contenção da erosão, o abrigo de espécies de fauna e flora, a manutenção da biodiversidade etc. O conceito de preservação consiste em que as áreas declaradas preservadas devam permanecer intocáveis, fornecendo então os bens de uso indireto. (...). O conceito de conservação faz uma junção do interesse ambiental com o interesse social. O ser humano necessita dos recursos ambientais para sua vida. O conceito de conservação admite tanto o uso indireto quanto o uso direto, ou seja, a retirada de plantas, árvores e outros bens ambientais, que são transformados em bens de interesse do homem. Esta retirada é feita de forma técnica, seletiva e racional. Ficam compatibilizados os valores ambientais e sociais, encerrando um conceito moderno conhecido como sustentabilidade. A sustentabilidade internaliza o raciocínio de manter os bens ambientais indefinidamente para o uso do homem, com a sua reposição ou com o seu manejo de forma que suas necessidades possam ser atendidas com qualidade de vida

30.

Impõe-se hoje a necessidade do ser humano monitorar a evolução das

espécies e interferir racionalmente na sua relação com as outras formas de vida,

30

MELE, op. cit., p. 36.

Page 81: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

81

observando desde os microorganismos mutantes que o atingem por vias aéreas até os

jacarés e outros animais que, com sua superpopulação, podem ameaçar a integridade

física de moradores nas proximidades de uma área protegida. Mesmo assim, a sua

influência no meio ambiente deve restringir-se ao mínimo, para evitar danos maiores

ao equilíbrio natural.

Passaremos agora a abordar outro aspecto da intervenção humana na

fauna silvestre: a vulnerabilidade dos ecossistemas.

Muito já se afirmou que a extinção de uma espécie animal pode trazer

grande prejuízo, até inimaginável, em função da irreparável perda de informações

genéticas a ela vinculadas e o potencial de benefício que determinado grupo animal

extinto deixaria de trazer ao homem. Chegou-se, em alguns estudos, a estabelecer

valor monetário aos bens ambientais, entre eles diversos espécimes animais, para

facilitar a atividade de administração do recurso natural ainda disponível, de forma que

o agente poluidor (poluição aqui compreendida no atual conceito de qualquer

interferência prejudicial ao meio ambiente e não simplesmente produção de sujeira)

pudesse compensar o mal causado – sob o argumento da necessidade de

desenvolvimento -, mediante pagamento de valores que seriam revertidos para a

preservação de hábitats naturais em reservas delimitadas. No entanto, o problema

ambiental voltado à preservação das espécies é mais complexo do que aparenta ser.

Diante do desaparecimento de espécies da fauna silvestre, o maior

prejuízo econômico advém do consequente aumento da vulnerabilidade dos

ecossistemas, no fator denominado “resiliência”, de custo absolutamente imensurável:

Quando se evoca a necessidade de conservar a biodiversidade pensa-

se em geral nas espécies ameaçadas de extinção e nas consequentes perdas de informação genética. Mas esse, além de não ser o único prejuízo econômico imposto pela redução da biodiversidade, pode nem sequer ser o principal. Bem pior pode ser um tipo de enfraquecimento dos ecossistemas que os torna mais vulneráveis aos choques. Isto é, uma diminuição de sua capacidade de enfrentar calamidades naturais ou súbitas destruições provocadas pela sociedade sem que desapareça seu potencial de auto-organização. É o que em linguagem científica se

Page 82: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

82

chama de resiliência: a capacidade de superar o distúrbio imposto por um fenômeno externo (...) Se já era difícil engolir a ideia de que a perda de um mico-leão-dourado pode ter um preço monetário razoavelmente calculado, o que dizer, por exemplo, da resiliência dos fragmentos florestais onde ele ainda não foi extinto? Seria seu preço comparável ao da redução da resiliência da caatinga nordestina?

31

Não há, portanto alternativa. Diante da irremediável interferência no

padrão de equilíbrio da natureza, o homem deve doravante administrar de modo

inteligente as relações entre as diversas formas de vida, também mantendo as áreas

remanecentes protegidas. E talvez seja este o seu destino histórico, pois, ao mesmo

tempo em que constitui o principal agente modificador do meio natural, também é ele o

único ser vivo - de que se tem conhecimento -, capaz de se organizar e encontrar as

soluções para os complexos problemas ambientais causados pela sua intervenção.

O chamado “custo ambiental” do desenvolvimento humano na biosfera

impõe a necessidade de intensa pesquisa para que se processe o racional

aproveitamento das espécies, além de indispensáveis ações na área da educação

ambiental, desenvolvimento da reciclagem de materiais extraídos do meio natural,

medidas para a adequada distribuição populacional e ocupação de espaço territorial,

controle dos níveis de poluição, gerenciamento das áreas legalmente protegidas -

mediante estabelecimento de níveis de acesso aos seus recursos - e, finalmente, a

efetiva fiscalização do aproveitamento dos bens naturais, tendo por base todo o

conjunto de normas que regem o novel Direito Ambiental.

Enfim, a concepção de que todos os animais selvagens sobreviventes às

modificações impostas ao meio ambiente devem ser mantidos intactos é hoje

ultrapassada, pois não será dessa forma que se alcançará o equilíbrio desejado e

necessário à vida humana.

Os animais em liberdade devem ser objeto de estudo e

acompanhamento, mediante planejada e positiva interferência humana - que os

31

VEIGA, José Eli da. Artigo intitulado Biodiversidade e Resiliência, publicado no jornal O Estado de São Paulo, Caderno Economia, p. B2, 31.01.98.

Page 83: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

83

recursos de tecnologia e informação hoje permitem - a fim de que possam ser

perpetuadas as espécies silvestres ao mesmo tempo que se controla o nível do seu

crescimento populacional, em razoável proporção ao crescimento das demais espécies

locais (também em proporção à espécie humana). Somente assim, preservando-se à

biodiversidade e seu nível de representatividade nas áreas verdes e cinzas, será

possível usufruir todos os benefícios que a fauna pode trazer. Esta é a atual

responsabilidade do homem, na contemporânea busca do meio ambiente

ecologicamente equilibrado.

5.2 O aproveitamento privado do animal silvestre

Além da propalada função ecológica naturalmente desenvolvida pelos

animais em seu conjunto - e tutelada pela Constituição Federal -, podem os espécimes

particularmente ser úteis ao homem para finalidades diversas, tais como: científicas,

medicinais, culturais, recreativas, motrizes, alimentares e tantas outras. Porém, o

aproveitamento dos espécimes, integrantes da fauna silvestre ou doméstica, está

sujeito a restrições legais na medida em que devem ser evitadas condutas que

coloquem em risco sua função ecológica, que provoquem a extinção de espécies ou

submeta-os à crueldade, conforme estabeleceu a Constituição Federal, no seu artigo

225, parágrafo 1o, inciso VII.

O acesso particular ao animal integrante da fauna doméstica é simples,

pois ele se reproduz em cativeiro normalmente em quantidade suficiente para os fins a

que são destinados, ensejando um melhor aproveitamento comercial. Já os animais

integrantes de espécies silvestres, que vivem normalmente livres no meio selvagem,

não se reproduzem com a mesma facilidade quando submetidos ao cativeiro; faz-se

necessário um longo período de adaptação, o que acaba impondo a domesticação do

Page 84: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

84

espécime e o inevitável surgimento de transformações de ordem física e

comportamental observadas nas gerações seguintes, nascidas em criadouro.

Existe nesse ponto uma questão de ordem econômica a ser solucionada:

espécimes integrantes da fauna silvestre, legalmente comercializados, custam muito

mais caro porque são raros; são raros porque não se reproduzem com a mesma

facilidade que os domésticos no cativeiro; não podem ser retirados do meio natural

(caçados), para aproveitamento por clara disposição legal; e, finalmente, o valor

alcançado na venda de espécimes silvestres raros no mercado clandestino é incentivo

ao tráfico ilegal - nacional e internacional - e à caça proibida que o abastece. Por outro

lado, a fascinação das pessoas pelos animais silvestres em razão do seu caráter

exótico, também porque é raro, faz com que sua procura seja grande, inversamente

proporcional a quantidade de espécimes legalmente disponíveis.

Sobre a importância do aspecto econômico e a busca de soluções viáveis

para a preservação das espécies silvestres, é esclarecedor o estudo “Problemas

Ambientais, Soluções de Direitos sobre a Propriedade Privada”, de Walter E. Block,

que traz a seguinte reflexão:

A esse respeito, considere o búfalo e a vaca. Biologicamente, são animais muito similares, e ainda assim é apenas um fato casual que o búfalo – ao qual foi permitido por muitos anos correr livremente, sem ser possuído pelo homem – tenha sido salvo da extinção. Em contraste gritante, as vacas têm sido domesticadas há milênios e têm sido apropriadas e criadas por fazendeiros desde os tempos bíblicos, e mesmo antes. O que aconteceu com o búfalo e está a agora acontecendo com o rinonceronte também é, mais uma vez, um caso de tragédia da propriedade pública. Se a ninguém é concedido o direito de propriedade sobre o búfalo, então não compensa para ninguém protegê-lo ou cuidar para que ele não seja caçado até a extinção. Quando um búfalo morria nos dias em que a propriedade privada do “lar, nas pastagens” não existia, ninguém perdia nenhum dinheiro. Pode-se supor que ninguém agiu para prevenir essas ocorrências. Em contraste, quando uma vaca morre, o dono sofre

32.

32

MCFETRIDGE et alii. Economia e Meio Ambiente, a Reconciliação. Porto Alegre: Ortiz, 1992, p. 260.

Page 85: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

85

Não defendemos, nesse ponto, a propriedade privada do animal silvestre,

mas sim a plena possibilidade de seu aproveitamento comercial e privado, inclusive

como forma de preservação da continuidade das espécies. Permitindo e viabilizando o

aproveitamento privado do animal silvestre, mediante expedição de instrumentos

públicos competentes, o Estado acaba promovendo a perpetuação das espécies em

razão do aumento do número de animais procedentes de cativeiro legalizado, o que

diminui a pressão sobre os animais que se encontram no meio selvagem. Estes

instrumentos encontram-se previstos nas leis de proteção à fauna, por exemplo, no

inciso III, do parágrafo 1o, do artigo 29, da Lei 9605/98, e classificados em três

espécies: a permissão, a licença, ou a autorização.

A permissão, na definição de Maria Sylvia Zanella di Pietro33

, é “o ato

administrativo unilateral, discricionário e precário, gratuito ou oneroso, pelo qual a

Administração Pública faculta a utilização privativa de bem público, para fins de

interesse público”. A licença, para Hely Lopes Meirelles34

, é “o ato administrativo

vinculado e definitivo, pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu

a todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização

de fatos materiais antes vedados ao particular (...) resulta de um direito subjetivo do

interessado, razão pela qual a Administração não pode negá-la quando o requerente

satisfaz a todos os requisitos legais para sua obtenção, e, uma vez expedida, traz a

presunção de definitividade”. Por fim, a autorização, no conceito de Cid Tomanik

Pompeu35

, é “o ato administrativo discricionário, pelo qual se faculta a prática de ato

jurídico ou de atividade material, objetivando atender diretamente a interesse público

ou privado, respectivamente, de entidade estatal ou particular, que sem tal outorga

seria proibida”.

33

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 5a ed., São Paulo: Atlas, 1995.

34 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16

a ed., São Paulo: RT, 1991.

35 POMPEU, Cid Tomanik. Autorização Administrativa. São Paulo: RT, 1992.

Page 86: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

86

Além da permissividade do aproveitamento econômico da fauna silvestre,

o incentivo público direcionado à iniciativa privada, nessa disposição, deve ser

suficiente para compensar as maiores dificuldades encontradas para reprodução de

espécimes da fauna silvestre em cativeiro (enquanto existirem) e desestimular o

aproveitamento privado ilegal. O Poder Público deve intensificar o combate à caça e

ao comércio ilegal de espécimes silvestres e, ao mesmo tempo, incentivar o

surgimento de criadouros legalizados.

Como reflexo da gestão racional dos bens ambientais, que vem

timidamente sendo observada no Brasil, com o tempo se tornará acessível, por

exemplo, a aquisição de um papagaio ou uma arara, para fins de estimação, nascidos

em criadouro legalizado. Suprindo-se a carência do mercado com espécimes

reproduzidos em cativeiro, é possível, com o trabalho de fiscalização e combate à caça

e ao tráfico, preservar verdadeiramente os espécimes remanescentes da vida

selvagem e todas as suas qualidades físicas e comportamentais.

5.3 Conceito de posse aplicado ao animal silvestre

Existem duas teorias que muito influenciaram as leis e doutrinas, cujos

autores buscaram estabelecer a exata noção de posse: Savigny, com sua teoria

subjetiva e, em oposição, R. Von Ihering, com sua teoria objetiva.

Para a primeira, subjetiva, que é basicamente uma reconstrução do

sistema de posse no Direito Romano, a posse dependeria de dois elementos: o

“corpus” e o “animus”. O “corpus” é o elemento material, o poder físico exercido sobre

a coisa e o “animus”, o elemento intelectual, ou subjetivo, que representa a vontade do

agente em ter a coisa como sua. Ausente esse elemento subjetivo, estaria

caracterizada a simples “detenção” e não a posse.

Page 87: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

87

Para a segunda teoria, a objetiva, defendida posteriormente por Ihering, é

estabelecida uma distinção entre propriedade e posse, da seguinte forma:

propriedade é o poder de direito sobre a coisa e a posse é o poder de fato exercido

sobre ela. O Código Civil brasileiro de 1916 adotou a teoria objetiva, em seu artigo 485:

“considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno, ou não, de

algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade” 36

.

Seguindo a linha de raciocínio da teoria objetiva, a posse se apresenta

como exteriorização de um direito real sobre coisa própria, ou alheia, e importa, para

sua caracterização, a utilização econômica da coisa (que pressupõe algum lucro ou

vantagem). A posse é exercida de forma legítima ou ilegítima e, portanto, pode ser

classificada em posse justa, ou injusta. Nesse sentido, destacou Orlando Gomes:

De um lado, o direito; do outro, o fato; tal é, segundo Ihering, a antítese a que se reduz a distinção entre a posse e a propriedade. A posse é o poder de fato; a propriedade, o poder de direito sobre a coisa. Esses dois poderes se enfeixam geralmente nas mãos do proprietário. Nem sempre, porém, a separação ocorre em consequência de subtração da coisa, que é arrebatada ao proprietário, contra a sua vontade. Ao contrário, normalmente é o proprietário mesmo que transfere a outrem o seu poder de fato sobre a coisa. No primeiro caso, aquele que subtrai a coisa tem sobre ela posse injusta. No segundo, posse justa, isto é, direito de possuir, tendo a posse, neste caso, o caráter de uma relação jurídica

37.

Justa é a posse que se adquiriu conforme o direito, aquela de algum

modo admitido na lei. Injusta é a posse que se adquiriu de modo contrário ao direito,

da qual se teve acesso por modo proibido; subdivide-se, de acordo com as

circunstâncias da sua irregular forma de aquisição, em: posse violenta (adquirida pela

força); posse clandestina (adquirida às ocultas); e posse precária (adquirida por

abuso de confiança) 38

.

36

O novo Código Civil brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que substituiu o antigo, de 1916, manteve a base da teoria objetiva, como se confirma no seu artigo 1.196: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. 37

GOMES, Orlando. Direitos Reais. 15a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 20.

38 Artigo 1.200, do novo Código Civil: “É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária”.

Page 88: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

88

Aplicando o estudo da posse à questão da fauna silvestre, teremos que o

Estado (União) detém a propriedade dos animais silvestres, nos termos do artigo 1o, da

Lei 5197/65, enquanto que aqueles que se beneficiam de forma particular - ou direta -

de espécimes integrantes da fauna silvestre detêm a sua posse (justa ou injusta).

Assim, por exemplo, aquele que adquire a posse de animal silvestre por

meio de um criadouro legalizado, pagando o preço da preservação das espécies, tem

sobre ele a posse justa; também aquele que obtém licença para criação tem a posse

justa sobre os animais silvestres de seu plantel. Quem, em contrapartida, ainda a título

de exemplo, subtrai animal silvestre mediante violência ou grave ameaça dirigida à

quem exercia sobre ele a posse justa, terá sobre o animal - objeto do roubo - a posse

injusta (na forma violenta); quem obtém um animal silvestre, comprando-o de alguém

que o tenha caçado ou o tenha adquirido de outra forma irregular, exercerá sobre ele

igualmente a posse injusta (na forma clandestina); e, finalmente, quem recebe animal

silvestre, adquirido por terceiro de criadouro legalizado, a título de empréstimo ou de

guarda, ou é nomeado fiel depositário de animal silvestre apreendido e, a partir do

momento em que deve restituir o animal recebido, o retém indevidamente, passa a

exercer sobre o animal também a posse injusta (na forma precária).

Já o animal silvestre que vive em liberdade no meio natural não poderá

ser objeto de posse, salvo exceções legalmente previstas (como, por exemplo, o índio

que se utiliza de animal silvestre capturado no limite de sua área demarcada,

exercendo sobre ele a posse). Para o propósito do bem estar comum, o Estado tornou

o animal que vive no meio selvagem indisponível, em regra, preservando-o do

exercício da posse particular, a fim de viabilizar o meio ambiente ecologicamente

equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

Em relação ao animal silvestre caçado, enquanto nas mãos do caçador,

será objeto de posse injusta clandestina, e não violenta, mesmo que o espécime tenha

Page 89: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

89

sofrido violência por ocasião de sua captura (no ato de caça). Isso porque a posse

injusta violenta é aquela adquirida mediante força dirigida a quem detém a posse

original, a fim de que dele seja arrebatado o seu objeto. O Estado-proprietário não

sofre, evidentemente, a força física do caçador, que é dirigida exclusivamente contra a

caça (o espécime). Nessa condição, em relação ao proprietário, a subtração do animal

mediante caça é clandestina e pode mesmo ser classificada como espécie de furto.

Outro aspecto interessante no estudo da posse, aplicada à fauna, refere-

se ao fato de que o exercício da posse justa de um animal não tem as mesmas

características do pleno exercício da posse sobre um bem inanimado e desprovido de

especial proteção legal.

A busca da harmonia na vida em sociedade faz com a lei imponha

reservas no exercício da posse sobre alguns bens como, por exemplo, o papel-moeda

e a bandeira nacional, que não podem ser destruídos por conveniência ou satisfação

pessoal do possuidor, nas circunstâncias em que sua vontade determina. Todavia,

nenhum bem recebeu, para efeito do exercício de posse, tantas restrições legais, ou,

sobre outro ponto de vista, garantias de tutela, quanto os animais que, em razão de

suas qualidades intrínsecas e de seu potencial de benefício ao homem, são

especialmente protegidos contra práticas que coloquem em risco sua função ecológica,

que provoquem a extinção de espécies ou submeta-os à crueldade.

Uma pessoa que possui uma bola de futebol pela qual não mais tem

interesse poderá furá-la, destruí-la e jogá-la fora; o mesmo, porém, não poderá fazer,

por exemplo, com o gato que mantém a propósito de estimação, sendo este também

um "objeto" de sua posse que deixou de interessá-lo. Aliás, não poderá fazer o mesmo

- furar, destruir e jogar fora - em relação a qualquer animal sobre o qual exerça ou não

a posse, seja qual for a espécie, pois tal conduta será classificada como criminosa, na

interpretação do artigo 32 da Lei 9.605/98 (crueldade e maus tratos contra animais).

Page 90: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

90

Podemos, então, afirmar que o animal, em especial o silvestre, é um

“objeto especial” ou, sob outro enfoque, um “objeto gravado” de responsabilidades

inerentes àqueles que exercem sobre ele a posse, direito de propriedade, ou ao menos

têm com ele qualquer relação. Na verdade, em face da tutela legal que vem sendo

dispensada ao animal, já não é confortável classificá-lo como “objeto”, mesmo levando

em conta sua condição jurídica de “bem móvel” 39

.

Portanto, em razão das peculiares características dos semoventes40

,

como entes que possuem vida própria, a lei lhes confere particular proteção. Restringe,

portanto, o exercício da posse, especialmente no que se refere ao uso e gozo desses

bens.

39

Os animais em geral são considerados bens móveis, “bens suscetíveis de movimento próprio”, na definição precisa do artigo 47 do Código Civil de 1916, em redação atribuída a Clóvis Bevilacqua, reproduzida no início do artigo 82 do Código Civil de 2001: “são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”. 40

Semoventes: “que se move por si próprio” (BORBA, Francisco S. (Org.). Dicionário UNESP de Português Contemporâneo. São Paulo: Editora UNESP, 2004, p. 1270). Termo empregado tradicionalmente, inclusive no meio jurídico, para indicar os animais em geral.

Page 91: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

91

6. EXERCÍCIO IRREGULAR DA MANTENÇA E ASPECTOS DE SANÇÃO E

APREENSÃO41

Não se pode ignorar a realidade do irregular exercício da mantença de

animais silvestres a propósito de estimação. Todavia, é preciso analisar as origens

históricas e estudar os aspectos culturais de tal conduta, buscando-se soluções legais

que viabilizem uma compatibilização entre o direito à sadia qualidade de vida que o

meio ambiente permite e a espontânea aproximação entre o homem e espécimes da

fauna silvestre.

Reconhecida a ilegalidade da prática da simples mantença, ainda que

afastada a hipótese de conduta criminosa, o que segue é a investigação do meio eficaz

para coibi-la. Evidentemente, a sanção deve ser sempre razoável e proporcional à

lesividade causada ao meio ambiente, como medida consequência da irregular

intervenção humana no bem público especialmente protegido.

Em seguida, o estudo recai sobre a delicada questão da apreensão do

animal silvestre indevidamente submetido à condição de ente de estimação. Se há

ilegalidade na conduta do possuidor, na esfera penal ou administrativa, o animal

deverá ser apreendido em face de dispositivo legal; porém, na prática, a retirada do

animal do meio doméstico em que já se encontra adaptado pode representar a sua

morte e, portanto, um prejuízo ambiental ainda maior do que aquele que, em tese, já

teria ocorrido em razão de sua ausência no meio natural.

41 O presente estudo, que não esgota o assunto, defendeu a atipicidade da conduta e a necessidade de

regulamentação para a hipótese de “mantença de animal silvestre a propósito de estimação”, com foco em possível sanção e apreensão na esfera administrativa. A reflexão sobre o tema motivou aprofundada análise, sob o ponto de vista histórico (História e Meio Ambiente) na dissertação de mestrado defendida pelo autor, em 2013, em capítulo próprio intitulado: “O Argumento da Mantença a Propósito de Estimação”, que relata a atuação do Policiamento Ambiental no período, a partir da vigência da Lei dos Crimes Ambientais, diante das constatações de cativeiro de animais silvestres a título de estimação, com base na legislação específica e na regulamentação observadas [NASSARO, Adilson Luís Franco. Policiamento ambiental: políticas públicas de meio ambiente e tráfico de animais silvestres (oeste do Estado de São Paulo, 1998 a 2012). Dissertação de mestrado em História. Universidade Estadual Paulista - UNESP, Assis, 2013, p. 99].

Page 92: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

92

São circunstâncias que devem ser avaliadas em conjunto, sob o prisma

da legislação em vigor, sem olvidar-se da realidade que, por vezes, o teórico sufocado

em exacerbado academicismo ignora.

6.1 A posse injusta de animais silvestres e a necessidade de incentivo ao

comércio legal

Existem no Estado de São Paulo mais de 500.000 animais da fauna

silvestre brasileira mantidos a propósito de estimação, quase todos bem cuidados, no

interior de residências e quintais, ou seja, em ambiente doméstico. A grande maioria

dos cidadãos que os possuem encontra-se em situação irregular, desprovidos que

estão de permissão, licença, ou autorização para o aproveitamento privado do bem

ambiental.

Os animais preferidos são: papagaios, araras, pássaros diversos

(normalmente canoros, em razão do canto), macacos, tartarugas e outros. Por uma

questão cultural, ou por puro hábito, diversas famílias preferem manter em casa um

papagaio a um cachorro, um macaco a um gato.

Ao refletirmos sobre a razão dessa preferência, podemos concluir que

particularmente alguns animais silvestres são muito desejados porque são mais

vistosos e chamativos que os domésticos tradicionais, o que valoriza sua função

decorativa no ambiente doméstico, afora as habilidades exclusivas de algumas

espécies no que se refere ao canto. Como se não bastassem tantos atrativos,

determinados animais, como o papagaio e algumas araras, têm também a

extraordinária capacidade de repetir, com voz semelhante à humana, o que ouvem à

sua volta, além, é claro, de travar com seu possuidor dedicada relação afetiva.

Nenhum brinquedo alcançaria tamanha eficiência; e, se tal fosse possível, não seria

vendido por menor preço que um papagaio.

Page 93: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

93

A realidade do gosto popular pelo animal silvestre mantido principalmente

em ambiente doméstico não é apenas contemporânea. Desde há muito tempo cultiva-

se o hábito de possuir animal silvestre na condição de ente de estimação, exercendo

ele função de companhia ao mantenedor. Tal prática evidenciou-se no Brasil, onde a

diversidade e a quantidade de animais silvestre ao longo dos séculos ensejou um nível

de exploração e aproveitamento privado maior do que o verificado em outros países;

também influenciou esse costume o aspecto de ocupação colonial no primeiro período

de sua história, quando se entendia como de direito dos desbravadores e ocupadores

das terras a simples retirada de todas as riquezas naturais sem qualquer preocupação

com o seu esgotamento, em um território com dimensões continentais.

Hoje, normalmente não é o próprio mantenedor que captura o espécime

na área protegida. Ele o adquire irregularmente do caçador profissional, do criador

ilegal, ou do agenciador, que abastecem o mercado clandestino, operante dentro e

fora das fronteiras do país. Nota-se, por oportuno, que o mercado negro de animais da

fauna silvestre brasileira, que viabiliza a aquisição de boa parte dos espécimes (quase

sempre filhotes), que serão irregularmente mantidos a propósito de estimação, ou para

qualquer outra finalidade, se manifesta em três níveis, mediante ações normalmente

dissimuladas:

1) O vendedor que negocia, em pequena escala, em sua própria casa os

animais que caça, ou cria sem licença, normalmente para a vizinhança ou pessoas

conhecidas.

2) O vendedor que negocia fora de casa, em média escala, animais que

caça, adquire de terceiros ou cria sem licença, vendendo-os para particulares,

discretamente, quase sempre em feiras livres, em locais afastados, ou nos fundos de

lojas que comercializam animais domésticos (pet shops).

3) O vendedor que agencia caçadores e criadores ilegais para abastecer

o mercado clandestino internacional de animais silvestres, comercializando em grande

Page 94: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

94

escala e sendo responsável pelo expressivo volume de tráfico ilegal de animais, face à

valorização do caráter de exotismo da fauna silvestre brasileira, especialmente no

exterior.

A irregular mantença de animal silvestre a propósito de estimação,

caracterizada pela posse injusta do espécime, como conduta, não constitui um mal em

si, tal como, por exemplo, o uso de entorpecentes; tanto é verdade que, durante muito

tempo, ninguém questionou o costume da mantença, fortemente enraizado na cultura

de diversas gerações. Por sinal, é possível observar que muitas espécies perpetuaram-

se ao longo tempo justamente por terem sido mantidos espécimes representativos em

cativeiro.

O problema da conduta cinge-se às consequências danosas ao meio

ambiente. Isso porque as áreas preservadas, hoje diminutas em relação às áreas

ocupadas pelo homem, não têm a mesma capacidade de outrora para prover

espécimes ao ambiente doméstico, em razão de tantos interessados que ainda não

podem adquirir o espécime desejado de um criadouro legalizado.

Enfim, a evidente razão pela qual a grande maioria dos mantenedores de

animais silvestres a propósito de estimação encontra-se hoje em situação irregular,

exercendo a posse injusta do bicho, em casa ou em seu quintal, reside no fato de que

o Poder Público demorou a liberar a criação de animais de espécies silvestres

populares para a venda. Se hoje um animal silvestre, nascido em criadouro legalizado

e comercializado para a finalidade de estimação, custa de 10 a 20 vezes mais que um

negociado no mercado clandestino, em passado recente sequer havia disponível

espécime silvestre para comércio legal.

Apesar de ainda incipiente no Brasil, o negócio de criadouro legalizado

felizmente dá sinais de crescimento e já vem colaborando para com a preservação das

espécies silvestres:

Page 95: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

95

O comércio ilegal de animais silvestres dá cadeia. Mas já é possível degustar um tenro filé de tartaruga ou manter um tucano engaiolado dentro de casa sem nenhum risco. (...) A primeira espécie silvestre liberada para o manejo comercial foi a tartaruga-da-amazônia, há quase dez anos. Naquela época, o animal estava ameaçado de extinção. A principal causa era a caça ilegal. ‘Apenas a proibição do comércio não ia resolver o problema’, diz o biólogo Francisco Neo, do Departamento de Vida Silvestre do IBAMA. ‘Era preciso criar uma saída para as pessoas que sobreviviam das tartarugas ganharem dinheiro’. Deu certo. Cerca de 700.000 tartarugas serão criadas em cativeiro neste ano, e a espécie agora está longe de qualquer risco. (...) A última fase, iniciada há três anos, começou com a liberação de espécies para venda como animais de estimação. O IBAMA já autorizou a abertura de cinquenta criadouros de aves para esse fim

42.

Finalmente, mesmo compreendendo-se não haver tipificação penal para a

conduta de simples mantença de animal silvestre a propósito de estimação, quando

em situação desautorizada, tal posse injusta de espécime silvestre constitui

aproveitamento privado irregular, objetivamente considerado prejudicial ao ambiente.

Portanto, essa condição enseja ação do Poder Público para a preservação das

espécies animais silvestres e o equilíbrio ecológico; além de incentivos institucionais

para ampliação do comércio regular (para viabilizar a posse justa), devem ser

empenhados instrumentos legais disponíveis no ordenamento jurídico de tutela

ambiental, particularmente na esfera administrativa.

6.2 A preferência popular pelo papagaio e a devida preservação das espécies

da fauna silvestre

O papagaio, em especial, há séculos está associado ao exercício da

companhia, apesar de não ser considerado legalmente animal doméstico. É aquele

que está sempre nos ombros ou próximo do seu possuidor, com ele interagindo graças

à original capacidade de articular palavras, mesmo somente repetindo o que seu

mantenedor diz, ou canta. A partir dessa sua qualidade, forjou-se a imagem do

“papagaio companheiro”, do “papagaio de pirata”, entre outros.

42

COUTINHO, Leonardo de. Bicharada Legal. Revista Veja, nº 08, ano 34, de 28.02.2001, ed. Abril, p. 72.

Page 96: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

96

Esse animal, carismático, está presente no imaginário popular de tal

modo que o desenhista norte-americano Walt Disney criou um personagem universal -

carregado de brasilidade - partindo da figura do papagaio, para seus desenhos de

animação, o “Zé Carioca”.

Muitas das pessoas que habitam nas cidades do Brasil se rendem à

graça do animal, sentindo-se bem na companhia de um espécime que traz consigo a

imagem das florestas brasileiras, sendo ele próprio um símbolo da área verde. Esse é

um paradoxo, na medida em que se valoriza sua presença no meio doméstico,

lembrando-se o valor do meio natural de onde ele próprio muitas vezes foi retirado.

Enfim, contrastam a sua forma e suas cores silvestres no ambiente artificial urbano,

nos quintais e espaços reservados ao convívio familiar.

Não gratuitamente nos referimos a esse psitacídeo: é possível observar

que mais da metade dos animais silvestres mantidos por particulares, de forma regular

ou irregular, para o propósito de estimação no Brasil são exatamente papagaios43

.

Mesmo diante do princípio de que a ninguém é dado escusar-se pelo não

cumprimento da lei, alegando desconhecê-la, a verdade é que grande parte dos

adquirentes de papagaios, pouco esclarecidos, não agem de má-fé: faz parte de sua

cultura a convivência doméstica com esses animais silvestres. Na sua concepção, o

espécime que mantém em casa é um animal doméstico simplesmente em razão do

local em que se encontra, ou seja, no ambiente doméstico, e não em razão da

procedência ou classificação da espécie do bicho; ainda, deduzem os mantenedores

que, por se tratar o animal “de estimação”, e bem cuidado, é ele doméstico.

43 Psitacídeos (Psittacidae): conjunto de aves da ordem psittaciformes, como araras, maracanãs,

periquitos, papagaios e afins (família psittacidae). Distribuídas pela zona tropical do globo, de onde se irradiaram a áreas subtropicais e até frias como a Patagônia. O Brasil é o país mais rico do mundo em Psittacidae. Nos primeiros mapas, de 1500 em diante, esta riqueza já era plenamente evidenciada, sendo o país designado como “Terra dos Papagaios” (Brasilia sive terra papagallorum). Quanto à morfologia, destaca-se o bico alto e recurvado lembrando o das rapineiras, tendo até uma cera na base (SICK, Helmut. Ornitologia Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 351).

Page 97: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

97

Vale, nesse momento, uma breve exposição sobre a visão popular do

animal doméstico e do animal silvestre, e suas implicações face à necessidade de

preservação das espécies, colocando-se como exemplo o papagaio.

Não obstante o preceito legal que qualifica juridicamente algumas

espécies animais como integrantes da fauna doméstica, o próprio adjetivo “doméstico”

é habitualmente empregado para considerar tudo aquilo se refere à própria casa, à

vida familiar, ao lar, ou, ainda, à saúde e também ao conforto de seus moradores. No

senso comum, doméstico é o que se encontra nos limites da casa ou do quintal,

inclusive os animais que vivem, ou são criados nesse espaço, pouco importando a sua

espécie.

O possuidor desses bens, nos limites de sua residência, considera-os

intocáveis pelo simples fato de se encontrarem sob sua guarda naquele local de

privacidade garantida em lei, sem que qualquer outra pessoa ofereça resistência a tal

domínio e, finalmente, em concessiva disposição, por que mantém o animal bem

cuidado. Nessa linha de entendimento, o raciocínio dele é o seguinte: “O animal é meu

porque está comigo, na minha casa e estou cuidando bem dele”: uma visão

patrimonialista, de simples acumulação de bens.

Para o cidadão pouco esclarecido, o papagaio que mantém em casa é

um “animal doméstico” e de sua propriedade. Está errado. Quando muito o bicho se

encontra “domesticado” e ainda é silvestre porque a lei assim o qualifica (aliás, por

exclusão, porque existem tão somente dispositivos legais que especificam quais são as

espécies domésticas). Esse papagaio, então, é integrante da fauna silvestre nacional,

propriedade do Estado, e está sendo mantido por particular a propósito de estimação.

E a posse pode ser justa ou injusta, dependendo da existência, ou não, do instrumento

de permissão, licença, ou autorização para a finalidade de aproveitamento privado do

bem ambiental.

Page 98: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

98

O exemplo do papagaio é bem ilustrativo da problemática que envolve a

mantença de animal silvestre a propósito de estimação no Brasil, destacadamente

sobre dois pontos de observação:

1) A sociedade, de uma forma geral, insiste em manter no seio doméstico

um animal silvestre, por suas qualidades físicas e comportamentais sem similar no

conjunto da fauna identificada como doméstica, comprovando a força do costume, em

pese o caráter irregular de tal conduta quando desprovida do instrumento legal

permissivo. A espécie em análise foi eleita por diversas gerações para o desempenho

de uma das funções da fauna, qual seja, a companhia ao homem e, de fato, exerce-a

muito bem.

2) A simples mantença a propósito de estimação não constitui um mal em

si e o prejuízo ambiental é decorrente propriamente da retirada de espécimes

selvagens do meio natural (usualmente quando ainda filhotes). É preciso preservar os

espécimes selvagens remanescentes nas áreas protegidas para que seja possível a

perpetuação da espécie, com todas as suas características físicas e comportamentais

originais.

3) Enfim, timidamente, surgem criadouros devidamente legalizados, que

ainda não são capazes de atender à demanda, em razão da pouca oferta e do preço

elevado do seu produto, que carrega o selo da preservação ambiental.

De fato, hoje um filhote de papagaio é adquirido por R$ 50,00 no

mercado clandestino (equivalente a 25 dólares), ao passo que no mercado legal um

filhote da mesma espécie (quando disponível) é vendido ao preço de R$ 500,00 à R$

1.000,00 (equivalente de 250 a 500 dólares). Portanto, os criadouros legalizados

atendem apenas parcela da sociedade brasileira, ou seja, as classes média e alta, eis

que, obviamente, o interessado de parcos recursos precisaria de um financiamento

para adquirir um animal silvestre para estimação, o que se apresenta absurdo ao

senso comum.

Page 99: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

99

Voltamos, então, a uma questão de ordem econômica à ser solucionada;

um problema de oferta e procura que deverá ser resolvido na medida em que se

demonstrar real interesse político na preservação ambiental. Como alternativa, os

criadores legais poderão receber, por exemplo, incentivos fiscais em iniciativa do

Estado fundamentada no interesse comum, que é a perpetuação das espécies

silvestres. A fórmula a ser alcançada, simples, é a seguinte: “nós queremos ter um

papagaio em casa”; e mais, “nós precisamos preservar o papagaio na área

verde”; e o resultado, “nós podemos e vamos pagar por um papagaio oriundo de

criadouro legalizado”.

Por fim, diante do processo de evolução das espécies animais, em futuro

não muito distante, o papagaio que encontrarmos nos poleiros dos quintais pertencerá

a mais uma espécie doméstica, reconhecida como tal e reproduzida em quantidade e

preços compatíveis com a expectativa da sociedade quanto ao seu aproveitamento

privado. Tal mudança, com efeito vislumbrada pela gestão racional dos bens

ambientais, será a própria garantia de que a espécie equivalente, no meio selvagem,

será perpetuada junto às áreas protegidas com todas as suas características físicas e

comportamentais originais.

6.3 Eventual sanção para a posse injusta na mantença de animal silvestre a

propósito de estimação.

O parágrafo 3o, do inciso VII, do artigo 225, da Constituição Federal,

estabelece que “as condutas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores,

pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente

da obrigação de reparar os danos causados”.

Logo na sequência da Lei dos Crimes Ambientais (de 1998), o Decreto

3.179/99 (federal) regulamentou a aplicação das sanções às infrações ambientais, na

esfera administrativa, especificando as sanções às infrações administrativas (desde

Page 100: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

100

advertência, até a reparação dos danos causados). Esse Decreto veio a ser revogado

em 2008 por outro, o Decreto (federal) 6.514/08 (que teve mudanças em sua redação

no mesmo ano pelo Decreto 6.686/08). O novo Decreto manteve a estrutura de

regulamentação das providências administrativas na mesma sequência dos

enquadramentos possíveis a partir do texto da Lei dos Crimes Ambientais, sem

grandes alterações.

Destaca-se o artigo 24 do Decreto 6.514/08, sobre as providências

administrativas para as condutas do art. 29 da Lei dos Crimes Ambientais. Os seus

parágrafos 4º e 5º trataram da chamada “guarda doméstica”, flexibilizando a aplicação

de multa, com base no texto da Lei dos Crimes Ambientais e proibindo a aplicação de

sanções no caso de entrega voluntária de animais, como segue:

§ 4º No caso de guarda doméstica de espécime silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode a autoridade competente, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a multa, em analogia ao disposto no § 2o do art. 29 da Lei no 9.605, de 1998

44.

§ 5º No caso de guarda de espécime silvestre, deve a autoridade competente deixar de aplicar as sanções previstas neste Decreto, quando o agente espontaneamente entregar os animais ao órgão ambiental competente

45.

Se considerarmos a atipicidade da conduta de “mantença a propósito de

estimação” (que defendemos), o referido parágrafo 2º do artigo 29 da Lei dos Crimes

Ambientais (citado para analogia) deve ser relacionado à guarda em ambiente

doméstico para fins de obtenção de alguma vantagem pessoal, econômica, ou para

utilização indevida, em qualquer finalidade diversa da simples mantença. Se para

esses casos a lei já permite deixar de aplicar a multa (em analogia ao perdão judicial

do crime correspondente), então, caberá igualmente, para a conduta de simples

mantença (de menor gravidade), a possibilidade de o agente fiscalizador não aplicar a

44

“No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena”. 45

O Decreto anterior, 3.179/99 (revogado), já havia previsto as mesmas disposições no seu artigo 11, parágrafos 2º e 3º.

Page 101: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

101

multa quando a espécie silvestre respectiva - do animal em mantenimento - não estiver

ameaçada de extinção (pressupondo-se, ainda, o bom trato ao animal para o

reconhecimento da mantença); todavia, não resolvemos, ainda, a questão do

enquadramento administrativo da conduta de mantença.

No Estado de São Paulo, as especificações de enquadramentos

administrativos para imposição do Auto de Infração Ambiental foram estabelecidas em

sucessivas Resoluções da Secretaria do Meio Ambiente (SMA), órgão criado em 1986,

com fundamento nos incisos VI e VII, do artigo 23, da Constituição Federal46

e no

inciso VI, do artigo 24, também da Constituição Federal47

.

A sequência é a seguinte: a Resolução SMA 27, de 1990, instituiu o Auto

de Infração Ambiental (AIA) e estabeleceu normas e procedimentos referentes à sua

aplicação e controle (alterada pela Resolução SMA nº 82, de 1998); já a Resolução

SMA 28, também de 1990 (alterada pela Resolução SMA nº 83, de 1998), instituiu as

tabelas de valores de multas para aplicação dos AIA; as duas Resoluções foram

revogadas pela Resolução SMA 37, de 2005, que, de modo consolidado, dispôs sobre

as responsabilidades administrativas e infrações ambientais no Estado de São Paulo.

Na sequência, passou a vigorar a Resolução SMA 32, de 2010, revogando a anterior

(37, de 2005), com alterações posteriores em seus dispositivos48

.

Ocorre que, entre as atividades irregulares listadas nas Resoluções, não

foi prevista a “mantença”, “manutenção” ou “posse injusta” de animal silvestre para o

propósito de estimação. Dos enquadramentos existentes nos seus dispositivos, o que

46

“É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. VII- preservar as florestas, a fauna e a flora”. 47

“Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...) VI – florestas, caça, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição”. 48

O parágrafo 5º do artigo 21 da Resolução SMA 32, de 2010, alterada pela Resolução SMA 78, de 2010 e Resolução SMA 23, de 2012, permitiu à autoridade policial militar ambiental que deixe de multar os possuidores irregulares, observadas as circunstâncias, no caso de se constatar guarda doméstica de animal silvestre de espécie não considerada ameaçada de extinção.

Page 102: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

102

mais se aproxima é a “guarda”, ou “tem em cativeiro ou depósito” (referente às

condutas do inciso III, do parágrafo 1º, do artigo 29 da norma penal); todavia,

defendemos que para essas condutas a finalidade é a econômica (não a estimação),

tal como as demais previstas no mesmo dispositivo, todas relacionadas ao comércio

ilegal.

Ainda, alguns intérpretes sugerem o enquadramento na conduta

“utilização”, para fins administrativos, referente ao caput do mesmo artigo 29 da norma

penal; porém, conforme já amplamente discutido e, enfim, reconhecido pela

jurisprudência, o aproveitamento privado na modalidade “mantença a propósito de

estimação” não configura a utilização (TRF, 3a Região – 1

a T. – AC – Rel. Ramza

Tartuce – DJU 22.03.1994 – RJ 200/131 / TRF 1a Região – 3

a T. – Rec. – Rel.

Tourinho Neto – RJ 196/98 / TRF 3a Reg., Acr. 03006148/SP 2

a T., relator Juiz Célio

Benevides, julgado em 10.12.1996 / TRF 3a Reg., Acr. 03057749/SP, 2

a T., relator

Juíza Sílvia Steiner, julgado em 19.11.1996).

No nosso entender, a matéria poderia ainda ser regulamentada para

fundamentar uma atuação preventiva e eficaz, mediante fiscalização do

aproveitamento privado do recurso ambiental fauna silvestre, na modalidade estudada,

reconhecida a falta de tipicidade na esfera criminal. Desse modo, poderia o agente

fiscalizador, “considerando as circunstâncias”, deixar de aplicar a multa, conforme o

caso.

A conduta lesiva ao meio ambiente pode não configurar crime, mas

somente infração administrativa, tal como, por exemplo, a prática de pesca profissional

ou de pesca amadora sem as licenças específicas para tais atividades. Para tanto, há

que existir regulamentação adequada a esse fim.

Da mesma forma como o exercício da pesca, que é autorizada mediante

licença expedida pelo órgão público competente (IBAMA), para o aproveitamento

Page 103: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

103

privado de recursos da fauna ictiológica, a posse justa do animal silvestre, para o

propósito de estimação, é obtida mediante instrumento público permissivo, no caso de

animal oriundo de criadouro legalizado. Ainda na comparação com as regras proibitivas

e permissivas no que diz respeito à pesca, observa-se que o aproveitamento irregular

da fauna ictiológica (que, aliás, também é integrante da fauna silvestre, porém, com

normatização específica) pode também constituir crime, como por exemplo, a pesca

em período proibido ou em lugares interditados por órgão competente e a pesca

mediante uso de explosivos ou substâncias tóxicas (respectivamente artigos 34 e 35,

da Lei 9.605/98).

Assim, dependendo do nível de dano (ou perigo de dano) ao meio

ambiente, compreende-se que a conduta irregular deve ser coibida na esfera

administrativa ou, cumulativamente, na esfera administrativa e penal (sem prejuízo da

reparação de danos eventualmente causados), com fundamento nas disposições

legais e regulamentares que disciplinam o aproveitamento privado do bem ambiental49

.

49

Apesar da tese defendida no presente estudo e a continuidade da atuação do Policiamento Ambiental em São Paulo aplicando por mais de uma década os termos do Boletim Técnico 2, de 2000, já referido (com a lavratura de Termo ou Boletim de Constatação, no caso de boas condições de “guarda doméstica” de animal silvestre de espécie não ameaçada de extinção), no ano de 2012 houve mudança na postura institucional do órgão de fiscalização, harmonizando-a com os termos da Resolução CONAMA 384, de 2006, que, ao tratar da possibilidade de “depósito doméstico provisório de animais silvestres”, determinou também a imposição de Auto de Infração Ambiental e respectivo procedimento penal (nos termos do parágrafo 2º, do artigo 5º, da mesma Resolução). Nota-se que a edição de Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA obriga os órgãos do Sistema Nacional de Meio Ambiente - SISNAMA e, por consequência, o Sistema Estadual de Administração de Qualidade Ambiental, Proteção, Controle e Desenvolvimento do Meio Ambiente e Uso Adequado dos Recursos Naturais – SEAQUA e, por decorrência, à Polícia Militar Ambiental, nos termos do parágrafo único do artigo 195 da Constituição do Estado de São Paulo e do Termo de Cooperação SSP/SMA de 2010, no que concerne aos atos administrativos em face de infrações administrativas ambientais. Assim, sobreveio a Ordem de Serviço nº CPAmb-136/30.2/12, de 26 de junho de 2012, revogou o Boletim Técnico 2, de 2000, e determinou a padronização de posturas dos policias militares ambientais nas ocorrências de animal silvestre em cativeiro; no caso de verificação de manutenção para “finalidade exclusiva de estimação e o(s) animal(ais) não está(ão) em listas de ameaçados de extinção e/ou maltratado e/ou em local inseguro” (subitem 11.9), é lavrado Auto de Infração Ambiental, impondo as sanções de advertência em termo próprio e apreensão do(s) animal(ais) silvestre(s) com sua destinação formal ao próprio possuidor mediante Termo de Destinação de Animais, Materiais e/ou Produtos Apreendidos, além da lavratura de Boletim de Ocorrência Ambiental e remessa de ofício à autoridade de polícia judiciária local (Distrito de Polícia Civil) comunicando a infração penal para providências cabíveis na sua esfera de atribuições (“procedimento penal”).

Page 104: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

104

6.4 A questão da apreensão do animal silvestre

Um grande problema que se apresenta ao órgão fiscalizador é

exatamente a destinação do animal silvestre, que deverá ser apreendido quando a

conduta do possuidor configure infração penal, ou mesmo simples infração

administrativa.

A Lei 9605/98 prevê, no Capítulo “Da apreensão do produto e do

instrumento de infração administrativa ou de crime”, que:

Art. 25. Verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos. § 1

o. os animais serão libertados em seu ‘habitat’ ou entregues a

Jardins Zoológicos, Fundações ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados.

Para o caso de infração administrativa, o Decreto 3.179/99 estabelece,

nos incisos I e II, do parágrafo 6o, do seu artigo 2

o, que:

I – os animais, produtos, subprodutos, instrumentos, petrechos,

equipamentos, veículos e embarcações de pesca, objeto de infração administrativa serão apreendidos, lavrando-se os respectivos termos.

II – Os animais apreendidos terão a seguinte destinação:

a) libertados em seu hábitat natural, após verificação da sua adaptação às condições de vida silvestre; b) entregues a jardins zoológicos, fundações ambientalistas ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados; ou c) na impossibilidade de atendimento imediato das condições previstas nas alíneas anteriores, o órgão ambiental autuante poderá confiar os animais a fiel depositário na forma dos arts. 1.265 e 1.282 da Lei 3.071, de 1

o de janeiro de 1916, até implementação dos termos antes

mencionados.

Ocorre que, quando constatada a posse injusta de animal silvestre na

situação comum de simples mantença a propósito de estimação - irregularidade que no

nosso entendimento deve ser tratada na esfera administrativa e não na esfera penal -,

quase sempre o espécime já se encontra domesticado. Nessa circunstância, torna-se

inviável a soltura do animal em seu hábitat natural. Domesticado, o espécime não

possui mais características comportamentais que tornem possível sua vida no meio

Page 105: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

105

selvagem; não conseguirá mais disputar alimentação ou espaço com outros animais no

ambiente selvagem, nem conseguirá abrigar-se ou agrupar-se com outros de sua

espécie e, portanto, não poderá reproduzir-se.

A segunda opção, de entrega do animal apreendido para jardins

zoológicos, fundações ambientalistas ou entidades assemelhadas, é quase sempre

impraticável, pois essas organizações já se encontram com grande número de

indivíduos das espécies que normalmente são escolhidas para o ambiente doméstico;

não possuem espaço adequado para a acomodação ou meios suficientes para manter

os animais apreendidos e, com essa justificativa, recusam-se a receber, por exemplo,

mais um papagaio ou um macaco-prego domesticado.

A “entrega” do animal pressupõe a aceitação da entidade, pois o objetivo

da legislação ambiental é preservar a integridade do animal silvestre apreendido e tal

certamente não ocorrerá, inexistindo voluntariedade por parte de quem o recebe.

Evidentemente que a entrega de um animal silvestre apreendido, pertencente à

espécie ameaçada de extinção, para zoológico, fundação ambientalista ou entidade

assemelhada é bem mais fácil, em razão da sua raridade e o interesse que ele

desperta.

A terceira e opção é a de designar como depositário fiel do animal

silvestre apreendido um particular que possa mantê-lo, o que implica em que este

assuma a responsabilidade de assistência, de providenciar espaço em cativeiro e

alimentação adequados, entre outras condições necessárias ao bem estar do

espécime. Quase sempre quem pode cuidar adequadamente do animal, nessas

circunstâncias, é o próprio possuidor que, até então, vinha exercendo sobre ele a

posse injusta (desde que bem cuidado, insiste-se).

Vislumbra-se, portanto, a possibilidade de deixar com o mantenedor o

animal apreendido, para ele assumir a condição de depositário fiel, dando continuidade

ao bom cuidado dispensado ao animal, agora em atendimento ao interesse público e

sem prejuízo de eventual sanção administrativa. Entendemos que essa é a melhor

Page 106: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

106

solução para o problema da destinação do animal silvestre apreendido, desde que

constatado que o espécime está bem cuidado e não integra espécie ameaçada, ou em

vias de extinção. Diferentemente, o animal silvestre raro (pertencente à espécie

ameaçada de extinção), após ser apreendido, deverá ser colocado sob os cuidados

especializados de entidade que possa, em nível ideal, eventualmente aproximá-lo de

outro espécime de sexo oposto, do mesmo grupo animal, para a tentativa de

reprodução.

Para ilustrar a difícil questão da apreensão do animal silvestre, diante dos

diversos aspectos já abordados, citamos trecho do Boletim Técnico 2, “Guarda

Doméstica de Espécie Silvestre a Título de Estimação”50

, do Comando de Policiamento

Florestal e de Mananciais do Estado de São Paulo, em 2000, atual Comando de

Policiamento Ambiental:

É preciso aplicar a legislação ambiental de forma coerente e consciente, senão vejamos: ocorreu no litoral do Estado de São Paulo em 1988, após a divulgação de que a nova Lei de Crimes Ambientais estava em vigor, centenas de pessoas portando seus animaizinhos de estimação dirigiram-se ao Orquidário de Santos (pequeno zoológico) na tentativa de se livrarem de seus bichinhos ou de receber orientação sobre o que fazer, ‘pois não pretendiam ir para cadeia ou responder a processo criminal’. A Diretora do estabelecimento municipal, que já não possuía mais espaço para novas aquisições de animais silvestres, apenas orientou que voltassem para suas casas e permanecessem com seus animais, uma vez que lá recebiam carinho, alimento, dedicação e segurança. Disse ela que não se cogitava, de nenhuma forma, a hipótese de se tentar uma reintrodução ou relocação dos animais em ambiente selvagem, pois eles morreriam. Estima-se que hoje existem mais de meio milhão de animais silvestres vivendo em cativeiro em todo o Estado de São Paulo, na condição de animal de estimação, recebendo tratamento razoável, não havendo qualquer possibilidade de dar-lhes outra destinação melhor e mais adequada, por falta de estrutura ou de acompanhamento técnico especializado, até porque o animal silvestre depois de domesticado, perde suas características naturais de sobrevivência, não podendo mais ser reintegrado ao seu hábitat natural.

Existe, também, a preocupação de não submeter o animal silvestre a

condições que possam causar prejuízo à sua integridade física ou levá-lo a morte em

50

BOLETIM TÉCNICO 2, op. cit., p. 03.

Page 107: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

107

razão da mudança brusca de sua rotina. Por maior cuidado que se dedique ao

transporte, são comuns casos em que o animal apreendido morre estressado, pouco

tempo depois de ter sido retirado do possuidor irregular, resultando, então, inútil o

esforço de preservar o bem ambiental, objetivo principal de todo o trabalho preventivo

e repressivo dos órgãos de fiscalização ambiental.

Na esteira dessa preocupação, vem, ainda, a auto-avaliação inquietante

que a autoridade fiscalizadora faz em razão de sua conduta (nem sempre em

condições favoráveis, é bom destacar), buscando a forma correta de agir, sem cometer

arbitrariedade, levando em conta que pela eventual prática de excesso poderá ser

responsabilizado tanto quanto pela sua omissão. A respeito dessa difícil situação, de

inquietante dúvida sobre quando termina o discricionário e quando começa o arbitrário,

cita-se a preciosa observação de Álvaro Lazzarini, registrada em seu estudo “Direito

Administrativo Aplicado ao Meio Ambiente”:

Essa, na realidade do dia-a-dia, a tormentosa questão com que se defrontam os operadores do direito público, sejam juristas ou simples policiais que desempenham suas ingratas missões nas ruas, nas matas e florestas, em locais de difícil acesso, sem falar no transtorno representado pelo transporte e guarda de animais e aves apreendidos, colocando-lhes a incolumidade física em risco. Essas missões policiais são desempenhadas fora do recesso dos gabinetes acarpetados e refrigerados, longe dos manuais de Direito Administrativo ou de Direito Processual Penal e, no caso do meio ambiente, sem tempo de pedir ao infrator oportunidade de verificar a completa legislação ambiental

51.

Assim, na prática, a apreensão do animal silvestre é uma grande

dificuldade enfrentada na área de fiscalização ambiental e a autoridade responsável se

vê obrigada a decidir rapidamente pela apreensão, ou não, o que implica

necessariamente no reconhecimento, ou não, de prática criminosa e/ou infração

administrativa.

Nessa linha de interpretação, é oportuno trazer a observação de João

Leonardo Mele, sobre os princípios administrativos aplicados à polícia de proteção

ambiental:

51

LAZZARINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo. 2a edição. São Paulo: RT. 1999, p. 294.

Page 108: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

108

Quando não estamos diante de um crime no qual a polícia administrativa efetua a repressão imediata, detendo os autores do fato e apresentando os instrumentos da prática da irregularidade, a polícia administrativa, representada no caso do meio ambiente, pela Polícia Militar, através dos Batalhões Florestais, executa a repressão administrativa. A repressão administrativa, que busca salvaguardar o interesse coletivo, sobrepondo-o sobre os interesses individuais, pode ser levada a efeito com aplicação de multas, interdição de atividades, apreensão de bens ambientais, de instrumentos utilizados na prática da infração etc. Nesse caso, o agente do Estado usa o Poder de Polícia

52.

No âmbito do Estado de São Paulo, foi adotada em 1998 uma

padronização na atuação dos policiais militares especializados em polícia ambiental,

reforçada em 2000 com o advento do referido Boletim Técnico 2, para uma maior

segurança no desempenho de suas funções e efetivação de uma doutrina institucional

de uniformização de procedimentos, como observou Marcelo Robis Francisco Nassaro:

Foi editada a Nota de Instrução N° CPFM 007/30, em 1998, através da qual é determinado ao contingente do Policiamento Florestal e de Mananciais quando em ocorrências envolvendo animais da fauna silvestre nacional mantidos em cativeiro, adotar os seguintes procedimentos operacionais: 1. Verificar se é animal da fauna silvestre nacional. 2. Verificar se o animal está bem tratado, observando para tanto água, alimentação, higiene, espaço adequado, segurança, entre outros e, 3. Verificar se é animal considerado ameaçado de extinção, não só através da Lista Nacional de Animais Ameaçados de Extinção, editada

através da Portaria IBAMA N 1.522/89, mas também a editada através

da Lei Estadual N 42.838/98. Sendo animal da fauna silvestre nacional, estando ele bem alimentado, não sendo ameaçado de extinção e não havendo mínimos indícios de comércio o animal deverá ser deixado com seu possuidor, sendo elaborado um Boletim de Ocorrência do Policiamento Florestal e de Mananciais que relate o acontecimento e o atendimento da denúncia ambiental. Caso a animal esteja mal tratado, sendo a constatação verificada através de um laudo expedido por pessoa competente, o infrator deverá ser conduzido ao Distrito Policial pelo incurso no artigo 32 da lei de Crimes Ambientais. E, por último, sendo o animal considerado ameaçado de extinção também deverá ser retirado de seu possuidor, porque neste caso em específico a permanência desse animal em cativeiro poderá representar a extinção da espécie, que por não estar em Instituições (Zoológicos) não podem ser reproduzidos.

52

MELE, op. cit., p. 174.

Page 109: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

109

Perceba-se que há uma lógica nesta postura do Policiamento Florestal e de Mananciais do Estado de São Paulo que parece a mais adequada e a mais sensível diante da realidade que se apresenta

53.

Torna-se claro que essa coerente linha de atuação de Polícia Ambiental,

no exemplo do Estado de São Paulo (que basicamente perdurou até 2012), teve seu

fundamento no exercício discricionário do Poder de Polícia, que por sua vez é limitado

por três conjuntos de regras de avaliação, que constituem fatores para valoração do

ato administrativo, doutrinariamente conhecidos como princípios: o da legalidade, o da

razoabilidade e o da realidade.

Positivamente, devem ser analisados: o grau da lesividade imposta ao

meio ambiente em face dos atos praticados, relativos à posse injusta do animal

silvestre, em confronto com a legislação vigente (legalidade); a relação de coerência

entre a finalidade da prescrição legal e os atos praticados pelo órgão fiscalizador, no

empenho do Poder Público pela preservação do ambiente ecologicamente equilibrado

(razoabilidade); e, finalmente, a adoção de medidas plausíveis, compatíveis com a

situação fática, levando-se em conta a possibilidade de realização de consequências

positivas à preservação dos valores ambientais protegidos (realidade)54

.

53

NASSARO, op. cit., p. 48. 54

Como explicado na nota 49, apesar da tese defendida no presente estudo e a continuidade da atuação do Policiamento Ambiental em São Paulo aplicando por mais de uma década os termos do Boletim Técnico 2, de 2000 (com a lavratura de Termo ou Boletim de Constatação, no caso de boas condições de “guarda doméstica” de animal silvestre de espécie não ameaçada de extinção), no ano de 2012 houve mudança na postura institucional do órgão de fiscalização, harmonizando-a com os termos da Resolução CONAMA 384, de 2006, que, ao tratar da possibilidade de “depósito doméstico provisório de animais silvestres”, determinou também a imposição de Auto de Infração Ambiental e respectivo procedimento penal (nos termos do parágrafo 2º, do artigo 5º, da mesma Resolução). Assim, sobreveio a Ordem de Serviço nº CPAmb-136/30.2/12, de 26 de junho de 2012, que revogou o Boletim Técnico 2, de 2000, e determinou a padronização de posturas dos policias militares ambientais nas ocorrências de animal silvestre em cativeiro; no caso de verificação de manutenção para “finalidade exclusiva de estimação e o(s) animal(ais) não está(ão) em listas de ameaçados de extinção e/ou maltratado e/ou em local inseguro” (subitem 11.9), é lavrado Auto de Infração Ambiental (inciso III, do parágrafo 3º do art. 21 da Resolução SMA 032/2010), independentemente da quantidade de animais encontrados, impondo as sanções de advertência em termo próprio e de apreensão do(s) animal(ais) silvestre(s) com sua destinação formal ao próprio possuidor mediante Termo de Destinação de Animais, Materiais e/ou Produtos Apreendidos, além da lavratura de Boletim de Ocorrência Ambiental e remessa de ofício à autoridade de polícia judiciária local (Distrito de Polícia Civil) comunicando a infração penal para providências cabíveis na sua esfera de atribuições (“procedimento penal”).

Page 110: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

110

7. CONCLUSÕES

A evolução da tutela dos recursos da fauna tem sido verificada pela

compreensão de que esse bem ambiental é esgotável, tanto quanto o são todos os

outros. O expressivo crescimento populacional na segunda metade do século XX e a

ocupação desorganizada da superfície terrestre, entre outros fatores, colocou em risco

a perpetuação de espécies silvestres, hoje preservadas em áreas protegidas e até em

cativeiros.

Grande parte das leis que trouxeram dispositivos de proteção aos animais

surgiu como reflexo da visão de meio ambiente equilibrado, de que são partes

indissociáveis a fauna e a flora na sua total diversidade, colocando-se o ser humano

como integrante desse meio físico, destacada a sua condição de principal agente

modificador do ambiente.

No Brasil, a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, consolidou textos

legais que tratavam de crimes ambientais, entre eles a Lei 4.771/67 (Lei de Proteção à

Fauna), com as modificações da Lei 7.804/89 e o Decreto-Lei 221/67 (Código de

Pesca). A “Lei dos Crimes Ambientais”, como passou a ser conhecida, trouxe

disposições na esfera penal (pela previsão de crimes) e também na esfera

administrativa (pela previsão de infrações administrativas).

Abordou a lei, também, aspectos processuais e apresentou novas

definições aos delitos, entre eles os crimes contra a fauna silvestre, considerando

conjuntamente a fauna silvestre, que era autonomamente protegida mediante a Lei

5.197/67, e a ictiológica, que era autonomamente regulada pelo Decreto-Lei 221/67

(Código de Pesca).

Especificamente o artigo 29 dessa lei pode suscitar a interpretação de

que a conduta de simples mantença de animal silvestre a propósito de estimação

constitui crime. Porém, as características peculiares dessa modalidade de

aproveitamento da fauna silvestre impõem uma avaliação menos rigorosa da conduta

irregular, longe da esfera de responsabilidade penal. E o texto da Lei dos Crimes

Page 111: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

111

Ambientais não traz tipificação para a conduta em estudo, como é possível

demonstrar.

O aproveitamento do recurso ambiental na modalidade de mantença de

animal silvestre a propósito de estimação não constitui forma de “utilização” da fauna

(conduta relacionada no caput do artigo 29), como já reconhecido nos Tribunais. Já o

parágrafo 2o, do artigo 29, quando estabelece a hipótese de perdão judicial, reporta-se

à conduta do infrator que guarda em sua residência ou quintal (por isso guarda

doméstica) espécime da fauna silvestre, exatamente com propósito mercantil, no

mesmo sentido da guarda citada no inciso III, do parágrafo 1o.

Reforça tal interpretação, a verificação de que há semelhanças entre o

artigo 29 da Lei dos Crimes Ambientais e o artigo 12 da Lei 6.736/76 (que,

anteriormente, dispôs sobre os crimes relacionados ao tráfico de entorpecentes). O

legislador em 1998 teve como evidente referência e fonte de vocabulário a Lei

6.736/76, pois, tal como o tráfico de entorpecentes, o tráfico de animais silvestres

passou a representar um desafio para o Poder Público. Da mesma forma, exigiu-se

uma abordagem ampla de todas as condutas relacionadas à abominável prática de

comércio do bem ambiental, quando o legislador se propôs a descrever no inciso III do

parágrafo 1o, da Lei 9.605/98, o crime contra a fauna silvestre sob o específico enfoque

da exploração econômica desses recursos.

Existe substancial diferença nos significados dos verbos “ter" e “manter”.

Apesar de classificado como propriedade da União, nos termos da Lei 4.771/67, o

comerciante irregular tem o animal silvestre nas mãos como simples objeto de venda e

o negocia como um eletrodoméstico ou qualquer outro bem móvel. Já o mantenedor, a

propósito de estimação, destina ao animal silvestre um esforço pessoal de quem se

sente responsável pela manutenção de sua vida e mesmo de seu bem-estar. Ao

contrário do comerciante, o mantenedor não age para desfazer-se do animal e auferir

lucro, e, sim, para preservá-lo.

Page 112: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

112

A simples mantença doméstica de animal silvestre (que não pertence à

espécie em extinção) não representa um mal em si e muitas espécies perpetuaram-se

ao longo do tempo justamente por terem sido mantidos espécimes representativos em

cativeiro. Por sinal, o IBAMA vem liberando, mediante rigoroso controle, a criação de

espécimes para venda como animal de estimação e já é possível hoje manter

regularmente um animal em ambiente doméstico.

O exemplo do papagaio, animal que representa mais da metade dos

silvestres possuídos irregularmente, é bem ilustrativo da questão da mantença a

propósito de estimação no Brasil. A sociedade, de uma forma geral, insiste em manter

no meio doméstico um animal silvestre, por suas qualidades sem similar, apesar do

caráter irregular de tal conduta quando desprovida do instrumento legal permissivo.

Não obstante, impõe-se a necessidade de preservar os espécimes selvagens

remanescentes nas áreas protegidas. Como solução, surgem criadouros devidamente

legalizados, porém, ainda sem capacidade para atender à demanda, em razão da

pouca oferta e do preço elevado do seu produto.

A questão de ordem econômica deve ser resolvida, a fim de que seja

possível compatibilizar o interesse social e a necessidade de preservação ambiental.

Diante do processo de evolução das espécies animais, o “papagaio caseiro” será mais

uma espécie doméstica, reconhecida e reproduzida em quantidade e preços

compatíveis com a expectativa da sociedade quanto ao seu aproveitamento privado e

essa inovação garantirá a perpetuação da espécie equivalente, nas áreas protegidas.

Por outro lado, na esfera administrativa pode haver a imposição de

adequada sanção, que coibirá a posse injusta do animal silvestre, porque a conduta

lesiva ao meio ambiente pode não configurar crime, mas somente infração

administrativa, tal como, por exemplo, a prática de pesca profissional ou de pesca

amadora sem as licenças específicas para tais atividades. Caso seja constatada

conduta criminosa (comércio ilegal, utilização, maus tratos, entre outras), o

procedimento será a prisão em flagrante delito do infrator ou a elaboração do Termo

Page 113: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

113

Circunstanciado (para os crimes com rito processual estabelecido na Lei 9.099/95),

além da responsabilização administrativa cabível.

Note-se que, em ambos os casos (crime ou infração administrativa),

haverá apreensão do animal (artigo 25 da Lei 9.605), mas se discute a possibilidade,

no caso específico da mantença a propósito de estimação (se admitida essa conduta

como infração), de designação do autuado como depositário fiel (com o animal bem

cuidado e não pertencente à espécie em risco de extinção).

Defende-se como viável a solução do depósito com o autuado, para os

casos sem a configuração de crime, também em razão de que a legislação não a

proíbe. Devem ser levadas em conta: a impossibilidade de soltura no hábitat natural

pela ausência de comportamento asselvajado e as dificuldades para colocação de

animais apreendidos em jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas

(sob a responsabilidade de técnicos habilitados), sempre em número e capacidade

aquém do necessário, especialmente em relação às espécies apreendidas em maior

quantidade, que são as mais comuns e sem risco de extinção.

Finalmente, a liberdade do animal silvestre deve ser preservada a todo

custo enquanto ele ainda se encontra no meio natural, em seu estado selvagem. De

nada adiantará tirar um animal silvestre de um cativeiro - encontrando-se ele já

domesticado - e, a pretexto de dar-lhe liberdade, lançá-lo na floresta à própria sorte;

ele simplesmente não sobreviverá. Por outro lado, a readaptação ao meio selvagem

constitui processo complexo e extremamente custoso, sem garantia de sucesso. Por

isso, todos os mecanismos legais e regulamentares devem privilegiar a preservação do

animal silvestre enquanto ele ainda vive em situação de interdependência junto aos

elementos do seu ecossistema natural, impedindo-se que de lá seja retirado

indevidamente e negociado. A liberdade do animal silvestre é garantida mediante

rigoroso combate ao tráfico de espécimes e à caça ilegal, que abastece o mercado

clandestino de animais silvestres dentro e fora do país.

Page 114: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

114

BIBLIOGRAFIA

BORBA, Francisco S. (Org.). Dicionário UNESP de Português Contemporâneo. São

Paulo: Editora UNESP, 2004.

BRESSAN, Paulo Magalhães, KIERULFF, Maria Cecília Martins, SUGIEDA, Angélica

Midori: coordenação geral. Fauna ameaçada de extinção no estado de São Paulo. São

Paulo: Fundação Parque Zoológico de São Paulo: Secretaria do Meio Ambiente, 2009.

COSTA JR., Paulo José da. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 4. ed. 1997.

_______. Direito Penal Ecológico. São Paulo: Forense Universitária, 1996.

DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

DI PIETRO Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1995.

FERREIRA Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. São

Paulo: Nova Fronteira, 1996.

FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo:

Saraiva, 2000.

FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes Contra a

Natureza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

GOMES, Orlando. Direitos Reais. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

LAZZARINI Álvaro. Estudos de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais. 1999.

LIMA, Pedro C. de; SIDNEI, Sampaio dos Santos. Cetas: an important tool to fight

Illegal traffic of sylvan animals and reintroduction of species in protected habitats in light

of eco-tourism activities. In: WORLD ECOTOUR, 2., 2000, Salvador. Annals...

Salvador: Biosfera, 2000. p. 29-33.

MASCARENHAS PRADO, Alessandra Rapassi. Proteção Penal do Meio Ambiente –

Fundamentos. São Paulo: Atlas, 2000.

Page 115: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

115

MAYR, Ernst. Isto é Biologia: a ciência do mundo vivo. São Paulo: Companhia das

Letras. 2008.

MCFETRIDGE, Donald G. et alii. Economia e Meio Ambiente, a Reconciliação. Porto

Alegre: Ortiz. 1992.

MEIRELLES Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 1991.

MELE, João Leonardo. Ordenamento Histórico-Jurídico da Proteção do Meio Ambiente

Natural e Criação do Manual de Fiscalização dos Recursos Naturais. Centro de

Aperfeiçoamento e Estudos Superiores – Curso Superior de Polícia. São Paulo: Edição

interna, 1999.

NASSARO, Adilson Luís Franco. Policiamento ambiental: políticas públicas de meio

ambiente e tráfico de animais silvestres (oeste do Estado de São Paulo, 1998 a 2012).

Dissertação de mestrado em História. Universidade Estadual Paulista - UNESP, Assis,

2013.

NASSARO, Marcelo Robis Francisco. Direito Ambiental Aplicado à Proteção da Fauna.

Apostila do Curso de Especialização de Oficiais da Polícia Militar Florestal de São

Paulo. Edição interna, 2000.

PAPAVERO, Nelson, org. Fundamentos práticos de taxonomia zoológica: coleções,

bibliografia, nomenclatura. 2. ed. ver. e ampl. São Paulo: UNESP. 1994.

POMPEU Cid Tomanik. Autorização Administrativa. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1992.

PRADO, Luiz Regis Prado. Crimes Contra o Ambiente. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1998.

SICK, Helmut. Ornitologia Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo:

Saraiva, 1994.

Page 116: Obra completa - Animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013

116

OUTRAS PUBLICAÇÕES

CASTRO, Cláudio de Moura. Proteger ou Arruinar o Meio Ambiente? Revista Veja, ed.

Abril, 12.03.1997.

COUTINHO, Leonardo de. Bicharada Legal. Revista Veja, ed. Abril, nº 08, ano 34, de

28.02.2001.

Revista Época, edição nº 143, ano III, ed. Globo, de 12.02.2001.

Revista Veja, edição nº 06, ano 34, ed. Abril, de 14.02.2001.

Revista Veja São Paulo, integrante da revista Veja, edição nº 37, ano 33, ed. Abril, de

11.09.2000.

_______. edição nº 1677, ano 33, ed. Abril, de 29.11.2000.

VEIGA, José Eli da. Biodiversidade e Resiliência. Jornal O Estado de São Paulo,

Caderno Economia, p. B2, 31.01.98.