obra completa - animais silvestres e o propósito de estimação - revisada em 2013
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Escrevi essa monografia jurídica em 2001, para obtenção do título de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (Curso Superior de Direito) nas FIG, em Guarulhos. Em 2013, atualizei por completo o texto e sua apresentação (revisão) e, agora, disponibilizo-a em formato e-book (pdf) para livre acesso (visualização e também para download - tecla save). A tese e as ideias apresentadas são originais. A pesquisa continua inédita. Tenho orgulho dessa obra. Críticas e sugestões são bem-vindas.TRANSCRIPT
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ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO
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GUARULHOS, 2001 Edição revisada em 2013
2
ANIMAIS SILVESTRES E O PROPÓSITO DE ESTIMAÇÃO
Monografia apresentada às Faculdades Integradas de Guarulhos (FIG),
como Trabalho de Conclusão do Curso de Direito e obtenção do título de
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais.
Ano: 2001
ADILSON LUÍS FRANCO NASSARO
Guarulhos
Edição revisada em 2013
3
DEDICATÓRIA
Ao Pietro Augusto Nassaro, meu filho.
Que ele possa conhecer os animais silvestres
no seu ambiente natural ou, porventura,
em algum cativeiro preservacionista.
Que ele possa ser beneficiário
de toda a riqueza ambiental
de que dispomos.
4
AGRADECIMENTOS
Aos dedicados integrantes do Comando de Policiamento Ambiental
(CPAmb) e seus batalhões, órgão fiscalizador do aproveitamento dos recursos
naturais e pioneiro na defesa do meio ambiente de São Paulo. O trabalho junto ao
CPAmb despertou o interesse do autor pelo estudo da legislação aplicada à fauna.
Ao Des. Álvaro Lazzarini, pelas preciosas lições de Direito Administrativo.
A cada dia seus ensinamentos revelam-se atuais e imprescindíveis ao bom trabalho
do administrador público.
Ao Des. Celso Luis Limongi, que gentilmente ofereceu a correção da
obra, valorizando a sua apresentação.
A João Daniel Rassi, brilhante Professor de Direito Penal, pela orientação
e acompanhamento do trabalho de pesquisa.
A Vander Ferreira de Andrade, companheiro de profissão e Professor
talentoso, pelas valiosas sugestões apresentadas.
A Marcelo Robis Francisco Nassaro, estudioso da matéria ambiental, pelo
fornecimento de material bibliográfico. Sua mais enriquecedora contribuição foi o
incentivo que um irmão é capaz de dar.
5
“Deus disse: ‘Produza a terra seres
vivos segundo a sua espécie: animais
domésticos, répteis e animais selvagens,
segundo a sua espécie’.
E assim se fez. Deus fez os animais
selvagens segundo a sua espécie, os
animais domésticos igualmente e, da mesma
forma, todos os animais que se arrastam
sobre a terra. E Deus viu que isto era bom.
Então Deus disse: ‘Façamos o homem
à nossa imagem e semelhança. Que ele
reine sobre os peixes do mar, sobre aves
dos céus, sobre os animais domésticos e
sobre a terra, e sobre todos os répteis que se
arrastam sobre a terra’.”
Livro do Gênesis, capítulo I, “A criação”,
versículos 24-26
6
SUMÁRIO
1.
(INTRODUÇÃO).......................................................................................................08
2. CONCEITOS E CLASSIFICAÇÃO DOS ANIMAIS....................................................11
2.1 Conceitos Básicos..................................................................................................12
2.1.1 Espécie..............................................................................................................12
2.1.2 Espécime...........................................................................................................15
2.1.3 Animal................................................................................................................15
2.1.4. Fauna................................................................................................................16
2.1.5 Espécie nativa e espécime natural...................................................................17
2.2 Como se classificam os animais..............................................................................19
2.2.1 Fauna silvestre..................................................................................................19
2.2.2 Fauna doméstica: os utilitários e os de estimação............................................22
2.2.3 Domesticados....................................................................................................26
2.2.4 Fauna exótica....................................................................................................27
2.2.5 Animais em cativeiro..........................................................................................31
2.2.6 Animais em liberdade........................................................................................33
3. EVOLUÇÃO DA TUTELA LEGAL DA FAUNA NO BRASIL......................................35
3.1 Legislação anterior à Constituição Federal de 1988............................................36
3.1.2 A Lei 5.197/67 e a interpretação do vocábulo “utilização”..............................38
3.2 A mudança do tratamento jurídico da fauna, do início do século XX
até a Constituição de 1988.................................................................................42
3.3 A mobilização mundial a partir da segunda metade do século XX.....................44
3.4 A fauna silvestre como bem público de interesse difuso....................................47
3.5 Inovações da Lei 9.605/98 em relação à proteção da fauna..............................52
A MANTENÇA DE ANIMAL SILVESTRE A PROPÓSITO DE ESTIMAÇÃO
7
4. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 29 DA LEI 9.605/98..............................................54
4.1 Os quatro enfoques do artigo 29 da Lei 9.605/98..................................................55
4.1.1 Proteção da integridade dos animais silvestres................................................56
4.1.1.1 Os atos de caça e a integridade dos animais silvestres..............................60
4.1.2 Proteção da capacidade de reprodução da fauna...........................................65
4.1.3 Proteção da integridade dos ninhos, abrigos e criadouros naturais................67
4.1.4 Restrição da exploração econômica do animal silvestre e de seus
subprodutos.....................................................................................................69
4.2 A guarda doméstica e a hipótese de perdão judicial............................................73
5. O APROVEITAMENTO DOS RECURSOS DA FAUNA SILVESTRE......................77
5.1 Custo ambiental e intervenção humana no meio natural......................................78
5.2 O aproveitamento privado do animal silvestre......................................................83
5.3 Conceito de posse aplicado ao animal silvestre...................................................86
6. EXERCÍCIO IRREGULAR DA MANTENÇA, SANÇÃO E APREENSÃO................91
6.1 A posse injusta de animais silvestres e a necessidade de incentivo ao comércio
legal.....................................................................................................................92
6.2 A preferência popular pelo papagaio e a devida preservação das espécies
da fauna silvestre................................................................................................95
6.3 Eventual sanção para a posse injusta na mantença de animal silvestre a
propósito de estimação......................................................................................99
6.4 A questão da apreensão do animal silvestre.....................................................104
7. CONCLUSÕES......................................................................................................110
8
1. A MANTENÇA DE ANIMAL SILVESTRE A PROPÓSITO DE ESTIMAÇÃO
(INTRODUÇÃO)
A conduta de mantença de animal silvestre a propósito de estimação é
comum no Brasil, tanto no meio rural quanto no meio urbano. Espécimes diversos
como papagaios, araras, macacos e tartarugas, integrantes da fauna silvestre, são
mantidos em ambiente doméstico sem autorização ou licença devida1. Apesar da
irregularidade dessa situação, muitos cidadãos mantêm animais bem cuidados,
submetidos à condição de ente de estimação.
O vocábulo “mantença” ora adotado significa, exatamente, provimento de
sustento, ou mantenimento. Portanto, o seu emprego é adequado para identificar a
conduta do possuidor que trata do espécime simplesmente para o propósito de
estimação e nunca para finalidade comercial ou de utilização, em sentido estrito.
Manter simplesmente um animal silvestre em ambiente doméstico a
propósito de estimação não representa um mal em si e não constitui ação moralmente
reprovável; aliás, diversas espécies foram salvas da extinção em razão de que foram
preservados espécimes representativos em cativeiro. Todavia, a conduta tolerada pode
estimular a retirada ilegal de espécimes do meio natural e o seu comércio clandestino,
comprometendo a perpetuação das espécies e o equilíbrio ecológico; esta é a grande
preocupação dos ambientalistas e estudiosos das questões da fauna.
No Brasil, a Lei 9.605/98 que trata dos crimes ambientais deu margem a
algumas interpretações, menos ou mais rigorosa, sobre o tema proposto. Afinal, a
mantença de animal silvestre é crime ou não? Em que condições é possível identificar
1 A legislação brasileira admite a compra e a venda de animais silvestres a títulos diversos, como se observa no artigo 19 da Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (Lei dos Crimes Ambientais), em que se nota a excludente de ilicitude do crime relacionado ao comércio, transporte e depósito de animal silvestre, entre outras condutas, quando o espécime é proveniente de criadouros autorizados ou mediante a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. Já a Portaria do IBAMA nº 117, de 15 de outubro de 1997, que regulou a compra e venda de animais silvestres, estabeleceu em seu artigo. 10: “Os animais vivos da fauna silvestre brasileira poderão ser comercializados por criadouros comerciais, jardins zoológicos devidamente registrados no IBAMA e por pessoas jurídicas que intencionem adquirir animais e revendê-los a particulares para dar inicio à criação
comercial ou conservacionista ou para aqueles que pretendam mantê-los como animais de
estimação” (grifo nosso).
9
o propósito de estimação? E como distinguir o propósito de estimação do propósito de
utilização? Pois bem, estima-se que mais de 500.000 espécimes da fauna silvestre
são mantidos no interior de casas e em quintais, apenas no Estado de São Paulo, na
condição de bichos de estimação2. Qualquer um de nós conhece um vizinho, um
parente, ou um amigo que possui animal silvestre em casa e quase todos não têm
licença ou autorização para tanto. Essa é a realidade.
Todos os mantenedores em situação irregular são criminosos? Qual o
grau de lesividade da conduta ao meio ambiente? Quais os mecanismos legais
eficazes para desestimular a posse injusta do animal silvestre? É possível
compatibilizar a vontade popular de se manter, por exemplo, um papagaio em casa e
ao mesmo tempo perpetuar a espécie silvestre especialmente protegida em lei?
São estas as indagações que motivaram o esforço de pesquisa e o
exercício de raciocínio sobre os dispositivos legais aplicáveis ao tema, que se revela de
interesse multidisciplinar, razão pela qual foi ele explorado no âmbito de diversos
ramos do Direito, especialmente o Penal, o Administrativo, o Constitucional, o Civil e o
mais recente Direito Ambiental, que vem conquistando um espaço de destaque.
Mas a pesquisa não se limitou ao campo jurídico. Trata-se de assunto
complexo e raramente explorado na literatura, circunstância que exigiu prévia análise de
conceitos ambientais e reflexões sobre os aspectos histórico, social, cultural e ecológico
que influenciam decisivamente a correta interpretação da norma legal. Diante disso,
impôs-se a produção de um capítulo especialmente para a apresentação do resultado de
uma preliminar análise conceitual que abre o desenvolvimento do trabalho.
2 O Boletim Técnico n. 2, Ano I, de 15 de agosto de 2000, do Comando de Policiamento Florestal e de Mananciais, atual Comando de Policiamento Ambiental de São Paulo, sob o título: “Guarda Doméstica de Espécie Silvestre a Título de Estimação”, registrou: “Estima-se que há hoje mais de 500 mil animais silvestres vivendo em cativeiro em todo o estado de São Paulo, na condição de animais de estimação, recebendo tratamento razoável, não havendo qualquer possibilidade de dar-lhes outra destinação melhor e mais adequada, por falta de estrutura ou de acompanhamento técnico especializado, até porque o animal silvestre, depois de domesticado, perde suas características naturais de sobrevivência, não podendo mais ser reintegrado ao seu habitat natural”. Mesmo diante da inexistência de dados estatísticos confiáveis, mas levando-se em conta a totalização de apreensões ou simples constatações de animais silvestres em cativeiro na sequência dos anos seguintes, acredita-se que a estimativa estava correta no ano 2000 e continua hoje próxima do real.
10
A verificação da evolução da tutela ambiental, em especial a tutela da
fauna no Brasil, mereceu destaque em vista de que não é possível compreender a
legislação atual referente a assunto tão específico sem conhecer o desenvolvimento,
no curso da história, do esforço legal de preservação dos recursos ambientais,
particularmente os da fauna silvestre.
A interpretação do artigo 29, da Lei 9.605/98, com todas as suas
previsões de condutas criminosas contra a fauna, subsidia o estudo centrado na
abordagem da teoria da posse aplicada ao animal silvestre. Parte-se do princípio de
que, por disposição legal, a fauna silvestre é propriedade da União e que é possível o
aproveitamento privado, mediante autorização para a mantença de animal silvestre a
propósito de estimação.
Buscou-se uma abordagem prática da questão, sem omissão das
características do contexto atual, a fim de que a interpretação dos dispositivos legais
viabilize a adoção de medidas coerentes, não somente subordinadas ao princípio da
legalidade, mas também ao da razoabilidade e ao da realidade. Nessa linha, foram
analisados o problema da apreensão dos espécimes mantidos em ambiente doméstico
e suas consequências, bem como a forma de atuação do órgão de fiscalização
ambiental estadual de São Paulo.
Enfim, o tema desenvolvido abre espaço para amplo debate sobre a
compatibilização dos interesses sociais, primeiro, quanto à necessidade de
perpetuação das espécies da fauna silvestre, para que possam desempenhar sua
função ecológica no meio natural e, segundo, quanto à possibilidade de exercício da
mantença de animais silvestres em ambiente doméstico, questão para a qual se
propõe solução que viabilize a sadia qualidade de vida humana, em amplo e irrestrito
sentido, e o respeito à integridade das demais formas de vida, mediante um justo
aproveitamento dos recursos da fauna disponibilizados ao homem.
11
2. CONCEITOS E CLASSIFICAÇÃO DOS ANIMAIS
Antes do estudo da legislação vigente voltada às questões da fauna e
suas implicações, faz-se imprescindível a análise dos significados de vocábulos e
expressões básicas nela empregados com frequência, além da verificação da própria
classificação dos animais para efeitos jurídicos e operacionais.
Ao mesmo tempo em que são desenvolvidos os conceitos, é abordada a
questão da imprescindibilidade da integridade da fauna para a preservação do
equilíbrio ambiental, possibilitando a relação entre as diversas normas vigentes, o que
favorece a compreensão dos dispositivos legais em destaque.
Tal providência é justificável em virtude de que o assunto apresenta
peculiaridades e há escassez de literatura especializada na área do direito aplicado à
fauna. De fato, são poucos os doutrinadores que se aventuram em tecer comentários
sobre o tema proposto, mormente com uma abordagem prática que tanto interessa aos
operadores do direito e aos estudiosos da fauna.
Importante salientar que semelhantes expressões podem apresentar
diferentes significados do mesmo objeto, em normas que tratam de assuntos
correlatos, algumas indicando seu sentido mais amplo, outras indicando seu sentido
mais estrito, o que aumenta a necessidade de cautela na avaliação dos conceitos
utilizados. Comum, inclusive, o registro de definições no próprio texto legal com o
evidente propósito de evitar interpretações que não correspondam à expectativa do
legislador quanto à proteção da fauna.
Assim, a verificação do vocabulário básico e a assimilação de
conhecimentos fundamentais permitem ao pesquisador situar-se no contexto das
normas ambientais aplicáveis à fauna, garantindo-lhe a capacidade de identificação
dos seus principais elementos e, principalmente, a percepção de seu real significado,
que sempre se revela em favor do meio ambiente ecologicamente equilibrado, pois é
este exatamente o objetivo da tutela jurídica dos animais.
12
2.1 Conceitos básicos
2.1.1 Espécie
Espécie é a unidade biológica fundamental. Sem ingressar em debate
teórico no campo das classificações científicas - de taxonomia - pode-se afirmar que,
basicamente, espécie é um conjunto de indivíduos que possuem várias características
semelhantes entre si e em relação aos seus ancestrais e que, além dessas
semelhanças, ainda se entrecruzam. O entendimento inicial evoluiu para um conceito
biológico, como explica Mayr:
Desse critério que leva em conta o não cruzamento veio o chamado
conceito biológico de espécie. Uma espécie, de acordo com esse conceito, é um grupo de populações naturais, que se cruzam entre si que é reprodutivamente (geneticamente) isolado de outros grupos semelhantes por causa de barreiras fisiológicas ou de comportamento
3.
A tradicional estrutura hierárquica de classificação usada em biologia, do
nível maior para o menor, é o seguinte: vida, domínio, reino, filo ou divisão, classe,
ordem, família, gênero, espécie (baseado na taxonomia de Linnaeus). No propósito de
análise ora apresentado, serão abordados os níveis espécie, gênero e família,
levando-se em conta o critério do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica
adotado pelo XV Congresso Internacional de Zoologia, Londres, em julho de 1958. Por
essa convenção, a nomenclatura zoológica definida como “sistema de nomes
científicos aplicados a unidades taxonômicas de animais (táxons; singular: táxon) que
se sabe existirem na natureza, vivos ou extintos” (artigo 1º), definem-se critérios para
identificação e denominação exatamente desses três grupos básicos, padronizando-se
o emprego dos respectivos nomes4.
Levando-se em conta que várias espécies constituem um gênero e vários
gêneros constituem uma família, observaremos a seguinte sequência lógica dos
3 MAYR, Ernst. Isto é Biologia: a ciência do mundo vivo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 179.
4 PAPAVERO, Nelson, org. Fundamentos práticos de taxonomia zoológica: coleções, bibliografia,
nomenclatura. 2. ed. ver. e ampl. São Paulo: UNESP, 1994, p. 193.
13
conceitos, tendo por base o emprego dos termos na legislação vigente, em harmonia
com os critérios de fundamento biológico (do menor para o maior nível): o indivíduo:
unidade distinta, espécime, exemplar de uma espécie; a espécie: conjunto de
indivíduos, na condição já apresentada; gênero: espécie ou espécies que integram
uma categoria natural e a família: congregação de gêneros.
Ainda que os dispositivos legais tratem sempre da “espécie” como nível
básico, convém observar que ela pode tecnicamente ser dividida em subespécies e
estas ainda em variedades, ou seja, grupos de indivíduos com pequenas variações
uniformes em suas características, mantendo, todavia, semelhanças em comum que
definem a mesma espécie a que pertencem. Essa mínima variedade uniforme
observada consiste em uma chave que demonstra a dinâmica da natureza, em um
argumento importante para as ideias de Darwin, defendidas na sua obra clássica A
Origem das Espécies, em 1859:
Até o presente não se conseguiu traçar um limite entre as espécies e as subespécies, isto é, entre as formas que, na opinião de alguns naturalistas, podiam ser consideradas quase como espécies sem o merecerem totalmente. Não se conseguiu, além disso, traçar uma linha de demarcação entre as subespécies e as variedades bem características, ou entre as variedades apenas sensíveis e as diferenças individuais. Estas diferenças incorporam-se uma na outra por graus insensíveis, constituindo em verdadeira série; ora, a noção de série implica as ideias de uma transformação real
5.
O gênero pode ser constituído de apenas uma espécie, por exemplo, o
próprio gênero humano, que é composto tão somente da espécie humana6. Em regra,
porém, na organização dos seres vivos proposta pela biologia, são verificadas
coleções de grupos que congregam características físicas e comportamentais
marcantes, obedecendo-se critérios objetivos para tal classificação, o que caracteriza o
coletivo “espécies” vinculadas a um gênero.
5 DARWIN, Charles. A Origem das Espécies. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004, p. 67.
6 O Homo sapiens é espécie pertencente ao gênero Homo, da família Hominidae (taxonomicamente: Homo sapiens; tem por significado em latim: "homem sábio"). Sua capacidade mental associada às características físicas (corpo ereto e uso dos braços) proporcionou-lhe a capacidade de alterar o ambiente ao seu redor e dominar outras espécies de forma única.
14
Identificam-se as espécies, particularmente, em virtude das qualidades do
seu hábitat natural, ou seja, do ecossistema em que naturalmente são encontrados os
seus representantes. Aliás, as próprias características das espécies também decorrem
da influência do meio em que evoluíram, em razão da somatória de mínimas variações
genéticas, verificadas nos ciclos da vida animal.
Podem as espécies, portanto, serem classificadas como próprias de uma
região ou de um país, em razão do local em que se encontra seu meio natural. Assim,
para aplicação da legislação pertinente, é fundamental observar que existem espécies
brasileiras, também denominadas próprias da fauna brasileira, e aquelas que não
integram a fauna nacional. Importante tal divisão para se verificar, por exemplo, o valor
ecológico de um animal em determinado espaço natural, definindo-se sua condição de
parte, ou não, essencial ao equilíbrio do ecossistema local.
Ainda sobre a distribuição geográfica das espécies, convém observar que
um animal introduzido em ecossistema diverso do seu, em contato com animais de
espécies distintas, pode trazer prejuízos ao equilíbrio ecológico da região, interferindo
na ocupação dos espaços naturais, na cadeia alimentar ou, ainda, disseminando
doenças contra as quais os animais locais não possuem defesas orgânicas
desenvolvidas.
Evidentemente as fronteiras dos países não são respeitadas pelas
espécies animais - que têm os seus próprios critérios de ocupação de espaço -,
exatamente porque o seu hábitat natural pode estender-se por mais de um território
geograficamente identificado pelo homem, em áreas contínuas ou não. Por exemplo, o
ecossistema conhecido como Pantanal encontra-se em grande parte no território
brasileiro (dois terços do seu total) estendendo-se aos territórios da Bolívia e do
Paraguai e isso faz com que as mesmas espécies consideradas brasileiras, que
povoam a região, também sejam consideradas nativas (próprias) da Bolívia e do
Paraguai.
15
2.1.2 Espécime
Como visto, a palavra “espécime” possui um sentido totalmente diferente
da palavra “espécie”, mas, devido à semelhança de grafia dos dois vocábulos, tem sido
notada imprecisão em relação ao seu emprego, mesmo na redação das leis. A
distinção é simples: espécime é um indivíduo representativo de um grupo (espécie,
gênero ou família), ou seja, qualquer animal ou planta - aqui compreendidos como
representantes do reino animal ou do reino vegetal -, ao contrário da espécie, que é
um conjunto de espécimes com características comuns. Também o animal morto é
considerado juridicamente um espécime, desde que não tenha passado o seu corpo
por processo de modificação para se chegar ao “produto” ou deste para o
“subproduto”7.
Oportuno destacar que o vocábulo “espécime” é um substantivo
masculino, devendo ser precedido do artigo “o” para referir-se tanto a exemplar macho
quanto a exemplar fêmea (“o espécime”), em oposição à “espécie”, que é um
substantivo feminino que representa, no âmbito da fauna, determinado coletivo de
animais.
Na sua forma plural - “espécimes” - o vocábulo é utilizado para descrever
indivíduos que podem pertencer ou não à mesma espécie.
2.1.3 Animal
O vocábulo “animal” possui dois sentidos principais encontrados nos
dicionários; o primeiro, mais amplo e originado na zoologia, corresponde à: “ser
organizado, com a forma do corpo relativamente constante, órgãos na maioria internos,
tecidos banhados em solução que contém cloreto de sódio, células revestidas de
membranas delicadas, com crescimento limitado, e provido de irritabilidade ou sistema
7 Por exemplo, as penas de uma ave silvestre multicolor podem ser compreendidas como um “produto”
da fauna silvestre, enquanto que um trabalho de decoração ou artesanato mediante uso desse mesmo material é considerado um “subproduto”.
16
nervoso, que lhe permite responder prontamente aos estímulos”; o segundo, que exclui
o ser humano, indica: “qualquer animal que não o homem; o animal irracional” 8.
Objetivamente, quando a legislação utiliza a palavra “animais”, sem
qualquer adjetivo que a qualifique, pretende representar o conjunto de seres vivos
excluindo-se os integrantes da flora (Reino Vegetal ou Reino Plantae) e o ser humano.
O sentido jurídico da palavra, portanto, é o segundo, ou seja, diz respeito a ser vivo, do
Reino Animal (Reino Animalia), exceto o homem.
O homem, coletivo, apesar de também constituir uma espécie animal no
sentido amplo da palavra em análise, coloca-se acima de todos os integrantes das
outras espécies e racionalmente dita normas de aproveitamento, ou de convivência,
em relação a elas. Por isso, a maior parte dos doutrinadores defende que somente o
ser humano é considerado sujeito de direitos, enquanto que os “animais”, em sentido
estrito, são considerados objetos jurídicos por ele tutelados9.
2.1.4 Fauna
A palavra fauna refere-se a um amplo conjunto de animais. No texto legal,
tal como na linguagem comum, quase sempre ela é acompanhada de adjetivo que
determina sua abrangência, como por exemplo, silvestre, doméstica, exótica (de outros
países), ictiológica (dos animais que têm na água o seu principal meio de vida) etc.
Algumas vezes, inclusive, verifica-se a combinação desses adjetivos, o que reduz
ainda mais o conjunto de espécies animais representadas, como no inciso II, do artigo
2o da portaria do IBAMA nº 93, de 07.07.98, que estabeleceu normas para importação
8 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Nova
Fronteira, 1996. 9 Mesmo os estudiosos do Direito Ambiental, novo ramo do Direito Público, resistem à ideia de que os
animais seriam “sujeitos de direito” e, de outra forma, a maior parte defende que os animais são “objetos de direito” cuja titularidade pertence sempre ao homem em uma visão tradicionalmente antropocêntrica e dominante nas Ciências Jurídicas. Nesse sentido, cita-se: “Os animais são bens sobre os quais incide a ação do homem. Com isso, deve-se frisar que animais e vegetais não são sujeitos de direitos, porquanto a proteção do meio ambiente existe para favorecer o próprio homem e somente por via reflexa para proteger as demais espécies” (FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 89). .
17
e exportação de animais vivos, além de produtos e subprodutos da “fauna silvestre
exótica”, ou seja, das espécies não domésticas próprias de outros países, salvo
aquelas que naturalmente passam parte do ciclo de sua vida nos limites do território
brasileiro.
Quando empregada isoladamente, a palavra “fauna” representa todas as
espécies animais exceto a espécie humana. Assim, por exemplo, o título “Crimes
Contra a Fauna”, dado à Seção I, do Capítulo V, da Lei 9.605/98 (Lei dos Crimes
Ambientais) propõe abranger todos os delitos praticados contra animais de qualquer
espécie - menos obviamente o homem -, seja ela integrante da fauna silvestre,
doméstica, exótica, ou de qualquer outra categoria de animais.
Sendo a fauna o conjunto dos animais próprios de uma região, de um
ecossistema, ou de um dado período geológico, é correto tanto afirmar que ela é
integrada por espécies quanto afirmar que é integrada por espécimes. Quando se diz
que fauna é um conjunto de espécies, considera-se a soma dos grupos de animais
existentes; quando se diz que fauna é um conjunto de espécimes, considera-se a
soma dos indivíduos existentes, independentemente das espécies à que pertencem.
2.1.5 Espécie nativa e espécime natural
A variada utilização dos adjetivos “nativo” e “natural”, qualificando um
espécime ou espécie animal nos textos da jurisprudência e da doutrina gera conflitos
de interpretação. Os dicionários trazem vários significados para esses dois vocábulos,
e é possível concluir que são mesmo sinônimos na linguagem comum. Porém, no
campo jurídico, o critério para utilizá-los com coerência deve ser o mesmo adotado na
lei, que é o principal objeto e também a fonte primária do trabalho de interpretação no
estudo do Direito.
Propõe-se, portanto, uma uniformização do uso das expressões,
respeitando-se o seu significado conforme expresso no texto legal hierarquicamente
superior, o mesmo que será adotado no desenvolvimento desse estudo.
18
O parágrafo 3o, do artigo 29, da Lei 9.605/98 estabelece que: “São
espécimes da fauna silvestre todos aqueles pertencentes às espécies nativas,
migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou terrestres, que tenham todo ou parte de
seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites do território brasileiro, ou águas
jurisdicionais brasileiras” (grifo nosso). O sentido adotado na legislação brasileira,
portanto, é o seguinte: espécies nativas são grupos de animais cujo hábitat natural
permanente ou mesmo transitório consiste em ecossistema encontrado no território
nacional, ainda que sem exclusividade. Então, para efeitos legais, a capivara, o
tamanduá-bandeira, o lobo-guará e tantos outros animais característicos do território
nacional, integram as “espécies nativas”, mesmo que venham a ser encontrados em
outros ecossistemas ou criadouros no território estrangeiro.
Em contrapartida, “natural” tem o sentido próprio de lugar de nascedouro
de determinado animal. Assim, o espécime natural do Brasil - também denominado
“oriundo” do Brasil - é aquele nascido no território nacional, mesmo não pertencente à
espécie nativa.
É preciso ter muita cautela para utilizar a expressão “espécie natural
de...”, pois ela traz a compreensão, em sentido estrito, de que todos os animais
existentes de determinada espécie nasceram em uma mesma região. Isso pode
acontecer no caso das espécies endêmicas, ou seja, aquelas cujos espécimes vivos
são encontrados em apenas uma região, em determinado ecossistema, como por
exemplo, algumas espécies nativas de aves e macacos cujos espécimes - todos - são
encontrados apenas na Mata Atlântica, no Brasil10
. Em sentido amplo, a expressão
“espécie natural de...” também já foi utilizada para identificar os grupos de animais que,
no processo de evolução, surgiram em determinada região.
10
O Sabiá-pimenta, também conhecido por cocho ou crocoió (Carpornis melanocephala - Wied, 1820) é exemplo de espécie endêmica da Mata Atlântica brasileira, ocorrendo localmente em Alagoas, e no sul da Bahia a Santa Catarina. Sua distribuição é restrita à mata litorânea e de encosta; vive em áreas de floresta não alterada, com presença de palmito. De acordo com a BirdLife International (2008), sua população é estimada entre 2.500 e 10 mil indivíduos e se encontra em declínio. Por esse motivo, foi classificada como espécie ameaçada de extinção, na condição Vulnerável (VU), o que significa que enfrenta um risco alto de extinção na natureza (BRESSAN, Paulo Magalhães, KIERULFF, Maria Cecília Martins, SUGIEDA, Angélica Midori: coordenação geral. Fauna ameaçada de extinção no estado de São Paulo. São Paulo: Fundação Parque Zoológico de São Paulo: Secretaria do Meio Ambiente, 2009, p. 231).
19
Não é conveniente o uso da expressão “espécime nativo”, pois tal
adjetivação aplicada a um determinado espécime animal pode apresentar dois
sentidos distintos: que esse exemplar pertence à espécie própria de um país, ou que
ele tenha nascido nesse mesmo país (onde está o referido espécime), dificultando
sobremaneira a compreensão do texto. Melhor utilizar as construções: “animal de
espécie nativa” e/ou “espécime natural de...”, dependendo da ideia que se deseja
exprimir.
Em síntese, para evitar a duplicidade de sentidos dos adjetivos e não cair
na armadilha das expressões que também podem indicar mesmos significados é
aconselhável utilizar sempre as expressões: espécies nativas, para indicar espécies
próprias ou características de um país (ou em mais de um) em razão do local onde se
encontra o seu hábitat natural; e espécime natural, para indicar o local de nascimento
de determinado espécime animal (do mesmo modo, não empregamos a palavra
origem para evitar duplo sentido).
2.2. Como se classificam os animais
2.2.1 Fauna silvestre
No ordenamento jurídico brasileiro, as duas principais leis federais em
vigor que tratam da proteção da fauna, Lei 5.197/67 e Lei 9.605/98, trazem definições
que se complementam quando procuram delimitar o universo de abrangência das suas
normas aplicadas aos animais da denominada fauna silvestre.
O artigo 1o da Lei 5.197/67 estabelece o critério geral de qualificação da
fauna silvestre: “Os animais de quaisquer espécies, em qualquer fase de seu
desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna
silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade
do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”
(grifo nosso). Já o parágrafo 3o, do artigo 29, da Lei 9.605/98 ampliou o conceito de
20
fauna silvestre para abranger também os animais que, apesar de não serem próprios
do Brasil, nascidos ou não no país, têm ao menos parte do seu ciclo natural de vida no
território nacional (como visto, “São espécimes da fauna silvestre todos aqueles
pertencentes às espécies nativas, migratórias e quaisquer outras, aquáticas ou
terrestres, que tenham todo ou parte de seu ciclo de vida ocorrendo dentro dos limites
do território brasileiro, ou águas jurisdicionais brasileiras”).
Sendo assim, por exemplo, nos limites do território nacional, os animais
que pertencem a espécies migratórias, oriundos de outros países, têm tratamento legal
especial, pois são reconhecidos como integrantes do conjunto da fauna silvestre
(nacional). Há interesse do Estado na sua preservação, eis que, em tese, desenvolvem
relações de interdependência com outras formas de vida locais, durante essa
permanência ou período de trânsito.
Exemplo de espécie migratória é a pequena ave conhecida como
maçarico, que vem buscar no verão brasileiro condições propícias para a sua
reprodução. Proveniente do extremo norte do Continente Americano, passa até cinco
dias voando, sem se alimentar, e pode ser encontrada em grupos no litoral do Brasil. A
presença dessa ave no território nacional é significativa e, em Pernambuco, no litoral
próximo de sua capital, Recife, exatamente na Praia de Coroa do Avião, foi instituída
uma Base de Pesquisa de Aves Migratórias administrada pela Universidade Federal
Rural de Pernambuco, que dispensa especial atenção ao seu estudo; a ave já é
considerada característica da região e por isso são pesquisadas melhores condições
de preservá-la.
Na verdade, a palavra “silvestre”, é um adjetivo que significa na
linguagem comum “próprio das selvas” e por isso é aplicada inclusive ao animal que,
mesmo não pertencente a espécies brasileiras, reúne características que o qualificam
como naturalmente selvagem. Esta é a razão pela qual os dispositivos legais apontam,
quando necessário à clareza da exposição, se a fauna silvestre a que se referem é a
nacional ou não, como é o caso da portaria do IBAMA nº 93, de 07.07.98, que no
21
inciso I e II, respectivamente, do seu artigo 2o, trouxe a definição de “fauna silvestre
brasileira” (a mesma do parágrafo 3o, do artigo 29, da Lei 9.605/98) e a definição de
“fauna silvestre exótica”.
Realmente, o critério básico é a condição de viver naturalmente fora do
cativeiro, em outros termos, é animal silvestre aquele que pelas suas características
físicas e comportamentais vive naturalmente sem qualquer relação de dependência
com o homem. Esta é uma norma em branco, ou seja, que exige complementação de
outra fonte para a sua exata compreensão e justa aplicação. Assim, o Poder Público
deveria apresentar regulamentação da matéria, estabelecendo quais são efetivamente
as espécies silvestres, particularmente as brasileiras, no plano da classificação geral
das espécies proposta pela biologia; no entanto, essa é uma tarefa extremamente
difícil, em razão da quantidade e da mutabilidade das espécies existentes, muitas
delas ainda desconhecidas.
Atualmente são conhecidas mais de um milhão de espécies animais no
mundo e todos os anos este número cresce com a descoberta de novos organismos.
Na dinâmica da natureza, a própria evolução das espécies faz com que umas se
extingam e outras apareçam, com ou sem a interferência do homem, como resultado
das transformações a que estão sujeitas ao longo do tempo. A título de ilustração,
durante a elaboração da primeira versão desta pesquisa, reconheceu-se
cientificamente a existência de uma nova espécie de camelo, conforme noticiado em
revista de circulação nacional:
Reconhecida oficialmente a existência de uma nova espécie animal. O camelo selvagem de Lop Nur, na China, tem capacidade de sobreviver em um deserto usado para testes nucleares ingerindo apenas água salgada. O DNA apresenta diferença de 3% em relação à espécie domesticada. A variação do DNA do homem para o chipanzé, por exemplo, é de 5%
11.
Como tecnicamente é inviável relacionar em regulamentação quais as
espécies que naturalmente vivem fora do cativeiro - e por isso integram a fauna
11
Revista Época, nº 143, ano III, ed. Globo, 12.02.2001, p. 33.
22
silvestre -, o que abrangeria a maior parte delas, os animais silvestres são legalmente
considerados como tal por processo de exclusão, na seguinte fórmula: são animais da
fauna silvestre todos aqueles que não são classificados como animais da fauna
doméstica.
2.2.2 Fauna doméstica: os utilitários e os de estimação
O conceito de fauna doméstica foi apresentado no inciso III, do artigo 2o,
da portaria do IBAMA nº 93/98 com a seguinte redação:
Fauna Doméstica: todos aqueles animais que através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou melhoramento zootécnico tornaram-se domésticos, apresentando características biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo apresentar fenótipo variável, diferente da espécie silvestre que os originou.
O anexo I da mesma portaria apresentou uma “listagem de fauna
considerada doméstica para fins de operacionalização do IBAMA”, que traz o nome
comum, além do nome científico das espécies (nome composto, em latim). Constavam
nessa relação cinquenta e quatro animais como: abelhas, cabra, cavalo, ovelha,
coelho, cachorro, gato, gado bovino etc. e alguns deles com variações nominadas.
Notadamente é bem mais fácil relacionar e nominar os domésticos que os integrantes
da fauna silvestre, que é constituída da grande maioria das espécies do reino animal.
Ao contrário dos animais da fauna silvestre, o animal doméstico já se
encontra adaptado para a vida em cativeiro, apresentando características físicas e
comportamentais que indicam dependência do ser humano para a sua sobrevivência.
Isso em razão de que diversas gerações de determinadas espécies viveram em
contato direto com o homem desde tempos remotos, impondo-se gradativa alteração
do fenótipo dos indivíduos (característica determinada pelo seu genótipo e pelas
condições ambientais locais) que, ao longo do tempo, muito lentamente foi incorporada
às características do respectivo grupo animal. O processo de seleção provocado pelo
23
homem em relação aos espécimes para fins de cruzamento, em um segundo
momento, fez acelerar as mudanças12
.
Darwin dedicou todo o primeiro capítulo de sua obra A Origem das
Espécies para demonstrar as evidências da “Variação sob domesticação”, tendo por
laboratório sua criação de pombos de diversas espécies. Abordou temas como as
causas de variabilidade, a origem das variedades domésticas a partir de uma ou mais
espécies, os princípios de seleção anteriormente aplicados e seus efeitos, a questão
da seleção inconsciente e as circunstâncias favoráveis à capacidade de seleção do
homem, entre outros aspectos relevantes de sua revolucionária pesquisa. Quanto aos
efeitos dos hábitos e do uso ou desuso de partes do corpo do animal, partindo de suas
observações registrou, a propósito de exemplificação das variações constatadas:
(...) descobri que, comparados com os patos selvagens e proporcionalmente ao peso total do esqueleto, os patos domesticados têm os ossos das asas mais leves e os das pernas mais pesados, o que se pode atribuir com segurança ao fato de os patos domésticos voarem muito menos e andarem mais que os seus antepassados selvagens. Outro exemplo possível dos efeitos do uso é o grande desenvolvimento, adquirido por herança, dos úberes nas vacas e das tetas das cabras nos locais em que se ordenham estes animais, desenvolvimento que não se observa onde não se registra esta prática. E um exemplo do desuso será o fato de todos os animais em estado doméstico terem, nalgumas regiões, orelhas mais caídas que os seus congêneres selvagens, muito provavelmente porque vivem num estado de alerta inferior e, consequentemente, dão menos uso aos músculos das orelhas
13.
As espécies hoje consideradas integrantes da fauna doméstica são o
provável resultado de um processo histórico em que o homem elegeu, desde tempos
remotos, alguns animais - que naturalmente já ofereciam menor resistência ao cativeiro
- para viverem sob sua custódia, como uma garantia de provisão quando lhe faltasse a
caça habitual; deles poderia facilmente obter alimentos (carne e ovos) e matérias para
atender outras necessidades (peles para proteger-se do frio, ossos e chifres para
12
A Medida Provisória 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado, com repartição de benefícios, define “espécie domesticada” no inciso IX, do seu artigo 7º, como: “aquela em cujo processo de evolução influiu o ser humano para atender às suas necessidades”. 13
DARWIN, op. cit., p. 36.
24
construção de armas etc.). Também se cogita que algumas espécies se aproximaram
do homem pela maior facilidade de, nessa condição, obterem alimentos, como restos
de comida e carcaças de outros animais.
Paulatinamente, o homem da Antiguidade percebeu que era mais fácil
manter em cativeiro animais capturados, que caçar a cada vez que precisasse dos
recursos deles advindos. Descobriu e aperfeiçoou, como método, a criação de
espécies e não abandonou tão cedo a prática da caça, que continuou utilizando como
forma de complementação, para obter o que ainda lhe faltasse do reino animal.
No compasso dessa ligação de sobrevivência entre o ser humano e as
demais espécies, alguns animais que, por uma razão ou outra, viviam próximo do
homem - dentro ou fora do cativeiro - foram desenvolvendo com ele intensa relação de
dependência e, em razão das características comportamentais das espécies em
constante evolução junto ao homem, passaram a oferecer-lhe outro tipo mais
sofisticado de recurso: a companhia.
Gradualmente, o homem descobriu outras formas de aproveitamento dos
animais, em razão da sua proximidade e a decorrente adaptação das espécies ao
hábitat em comum (com o ser humano). Os animais passaram a ser utilizados como
instrumento de locomoção e transporte de objetos (por exemplo, cavalo com rédeas,
cavalos ou bois atrelados a carros ou charretes), como meio de prover segurança ou
recurso de caça para captura de outros animais (cães treinados para defesa,
farejadores e cães de caça), como meio de obtenção de medicamento (abelha, na
produção de mel e própolis), como meio de esporte e recreação (corridas, competições
diversas envolvendo os próprios animais em disputas), como guia (no caso de cão
treinado utilizado por deficiente visual) e tantas outras formas de aproveitamento que
foram incorporadas à cultura dos diversos povos, de tal modo, que atualmente é quase
impossível imaginar a vida do ser humano sem a presença do animal doméstico.
Hoje em dia, aliás, quando se fala em animal doméstico, remete-se
automaticamente àqueles bichos tais como cães, gatos e pássaros que, apesar de não
25
serem utilizados economicamente ou como meio de obtenção de qualquer vantagem,
desempenham uma exata função junto ao seu mantenedor, a de simples companhia, e
são recipiendários de gestos de afeto, o que proporciona ao homem contemporâneo
um grande bem estar sobre o qual ele quase sempre desconhece a razão. Pois o que
lhe faz bem é o próprio contado com outra forma de vida animal, que passou a
denominar “de estimação” em vista de sua afeição e apreço desenvolvidos por ela. No
meio urbano, onde atualmente habita a maior parte das pessoas, é o animal de
estimação quase sempre a ligação mais forte, tanto quanto primitiva, do homem com a
própria natureza.
A relação que se estabelece, por vezes é tão intensa que o animal de
estimação passa a ser considerado um integrante da família de seu mantenedor.
Sobre esse tema, discorreu interessante matéria publicada em revista de circulação na
Grande São Paulo, com o título “Adeus, bichinho”:
Calcula-se que os paulistanos criem cerca de 1,4 milhão de cães e 600.000 gatos, entre outros bichos de estimação. Muitos são tratados como se fizessem parte da família e chegam a dormir no próprio quarto do dono. Quando um animalzinho desses adoece e morre, seu proprietário às vezes chega ao desespero. ‘O animal torna-se um companheiro de rotina. Supre as necessidades afetivas de pessoas com dificuldades de se relacionar ou que vivem sozinhas’, diz a psicóloga Fabiana Rossi Vallejo, especializada no tratamento de traumas, como a perda de um ente querido. (...) Inaugurado em junho, em São Bernardo do Campo, o crematório Pet Memorial oferece duas salas para velório, uma capela e apoio psicológico para os donos. Foi lá que a família Maeda deu adeus ao seu cocker spaniel ‘Bruno Shien Le Rochelle’, morto em setembro. ‘Ele chegou num momento difícil para nós e nos trouxe muita alegria’, diz Yoko Maeda, com lágrimas nos olhos. As cinzas do cachorro foram depositadas em uma urna que é uma réplica de um cocker
14.
Diante das peculiaridades dessa forma de relacionamento do homem
com os animais, que denominamos “mantença a propósito de estimação”, torna-se
mesmo difícil reconhecer o aspecto de “aproveitamento” do recurso ambiental,
enquanto os termos “exploração”, ou “utilização”, revelam-se absolutamente
inadequados para adjetivá-lo. O homem estaria se aproveitando do animal ao suprir
14
Revista Veja São Paulo, suplemento da revista Veja, edição 1677, ano 33, ed. Abril, 29.11.2000, p. 47
26
com ele sua carência afetiva? Antes disso, verifica-se propriamente uma troca de
“favores” entre dois seres vivos. Com efeito, o mantenedor aproveita-se tanto da
companhia do animal, quanto este se beneficia da sua relação de dependência do ser
humano, para sua sobrevivência e conforto, encontrando-se a ele sujeito.
Apesar dessas considerações, raciocinando no sentido de que a opção
normalmente não é do animal estimado, mas ao contrário, do homem, que por sua
iniciativa submete-o à condição de objeto de “estimação”, dá-se tratamento a tal
conduta como uma das modalidades de aproveitamento da fauna, evidentemente, com
a ressalva de que não se considera um caso de “utilização”, conduta dirigida aos
animais domésticos utilitários.
Portanto, os animais domésticos podem ser classificados em duas
grandes categorias, sob o critério da forma de relacionamento com o ser humano, o
que implica em diferentes modalidades de seu aproveitamento: os animais domésticos
utilitários e os animais domésticos mantidos a propósito de estimação.
2.2.3 Animais domesticados
Alguns espécimes integrantes da fauna silvestre que mantêm intenso
contato com o ser humano, em especial aqueles que ainda filhotes foram colocados
em cativeiro - por exemplo, papagaios, araras ou macacos - deixam com o tempo de
apresentar características selvagens. O animal nessa condição, apesar de seu
comportamento já se assemelhar muito ao dos domésticos, não será classificado como
tal, ainda que mantido a título de estimação; continuará identificado como espécime da
fauna silvestre, pois pertence à espécie que não é considerada doméstica para fins
legais. O espécime nessa situação é considerado animal silvestre domesticado, ou
simplesmente animal domesticado.
As espécies domésticas têm normalmente o seu paralelo na fauna
silvestre, pois, na linha evolutiva em que surge a influência do homem, são as espécies
27
silvestres que dão origem às domésticas, o que não significa que todos os espécimes
tenham passado pelas mesmas transformações (as mudanças provocadas apenas
pelo meio natural são bem mais lentas, no raciocínio darwiniano sobre a variabilidade
doméstica). De fato, um espécime silvestre ora identificado como “paralelo” ao
doméstico é classificado pela zoologia como de espécie distinta, não obstante
apresentar semelhanças biológicas com os correspondentes domésticos. Por esse
motivo, interpreta-se que o espécime retirado do meio natural, continuará classificado
como integrante da fauna silvestre, mesmo que tenha sido domesticado.
Assim, quando se faz referência ao espécime ou animal domesticado,
compreende-se a sua condição de silvestre.
2.2.4 Animais da fauna exótica
Os chamados animais da fauna exótica no Brasil (ou da fauna
alienígena), por exemplo, o elefante, o leão e o canguru, são animais próprios de
outros países que comportam ecossistemas com características diversas dos
ecossistemas locais. Outros espaços territoriais congregam hábitat de permanência de
espécies que naturalmente não seriam encontradas no Brasil.
Nessa interpretação, os espécimes em rota migratória que possuem
como hábitat transitório localidade do território brasileiro, nos meios aéreo, terrestre ou
aquático, constituem exceção, pois, na ordem natural, participam do equilíbrio do
ambiente local durante parte de seu ciclo de vida.
Os animais da fauna exótica também são classificados como silvestres ou
domésticos. A definição de fauna silvestre exótica é trazida pelo inciso II, do artigo 2o,
da portaria IBAMA nº 93/98 com a seguinte redação:
São todos aqueles animais pertencentes às espécies ou subespécies cuja distribuição geográfica não inclui o Território Brasileiro e as espécies ou subespécies introduzidas pelo homem, inclusive domésticas em estado asselvajado ou alçado. Também são consideradas exóticas as espécies ou subespécies que tenham sido introduzidas fora das fronteiras brasileiras e suas águas jurisdicionais e que tenham entrado em Território Brasileiro.
28
A “distribuição geográfica” inicialmente aludida, diz respeito evidentemente
à ordem natural de distribuição das espécies em razão do seu hábitat original de
permanência, sem a intervenção humana. Na sequência, é abordada a situação da
“introdução de espécies e subespécies”, ou seja, são qualificados como animais
silvestres exóticos também os espécimes silvestres pertencentes a espécies não
brasileiras (espécies que não são próprias do Brasil) e os espécimes domésticos em
estado selvagem pertencentes a espécies não brasileiras, trazidos diretamente ao
Brasil e, também, aqueles já nascidos no território nacional e pertencentes às espécies
silvestres não brasileiras, pois todos estes animais integram, de qualquer forma,
espécies que foram introduzidas no país e não fazem parte da fauna silvestre
nacional. Ao final, ainda são enquadrados como animais silvestres exóticos aqueles de
espécies silvestres não brasileiras que foram introduzidas em outros países e que
entram por qualquer meio em território brasileiro.
Já a fauna doméstica exótica é integrada por todos os animais que
pertencem a espécies não brasileiras e apresentam características físicas e
comportamentais que os qualificam como domésticos, nos termos do inciso III, do
artigo 2o da mesma portaria IBAMA nº 93/98 (“Fauna Doméstica: todos aqueles
animais que através de processos tradicionais e sistematizados de manejo e/ou
melhoramento zootécnico tornaram-se domésticos, apresentando características
biológicas e comportamentais em estreita dependência do homem, podendo
apresentar fenótipo variável, diferente da espécie silvestre que os originou”).
Os animais exóticos de pequeno porte, por sinal, durante a década de
1990 foram preferidos por diversos moradores da Grande São Paulo, especialmente
os adolescentes, para a mantença a propósito de estimação. Tal modismo surgiu
provavelmente como reflexo da intensa divulgação com vistas à proteção aos animais
silvestres brasileiros, a partir da vigência da Lei 7.653, de 12 de fevereiro de 1988, que
impôs severas sanções aos atos de caça ilegal, classificando-os inclusive como crimes
29
inafiançáveis, o que pode ter diminuído a oferta de animais silvestres no mercado
clandestino. Como efeito da lei que recebeu várias críticas pelo desproporcional
tratamento jurídico, alguém que fosse detido matando um animal silvestre
permaneceria preso para responder ao processo crime (inafiançabilidade), enquanto
um réu primário com residência fixa poderia responder em liberdade pela prática de
homicídio, com o benefício da liberdade provisória15
.
Adquiria-se nessa época, por exemplo, um lagarto water dragon do
sudeste asiático, uma cobra píton indiana, ou uma cobra corn slake norte americana.
Esse fenômeno teve breve duração, conforme relatado com precisão em revista de
circulação na cidade de São Paulo, em matéria sob o título: “o efeito colateral daquela
moda de criar cobras, lagartos, aranhas e outros bichos esquisitos: muitos desses
animais estão sendo abandonados em parques e praças da cidade”:
Para os funcionários do Instituto Butantan não é mais surpresa ver que deixaram à sua porta uma caixa de madeira com uma cobra dentro. ‘Já recebemos algumas raridades assim’, diz o biólogo Marcelo Duarte, do laboratório de herpetologia. A maioria, no entanto, é figurinha repetida. ‘No ano passado, vinha pelo menos uma píton bola por mês’, recorda. Não por acaso, essa cobra originária da África era umas mais preferidas entre os colegiais
16.
Esse episódio demonstra bem, de um lado, o fascínio das pessoas pelo
caráter de exotismo das espécies silvestres (tanto as nacionais quanto as estrangeiras)
e, de outro, o fato de que nem todos os animais silvestres se adaptam bem ao
ambiente doméstico e também o mantenedor não se adapta bem ao animal escolhido
para a mantença a propósito de estimação sem critério adequado.
Existe, evidentemente, o aspecto sanitário também a ser preservado,
diante do perigo de transmissão de doenças que podem ser trazidas por espécimes do
exterior e que causam danos à saúde humana e, igualmente, à saúde dos animais
15
Essa realidade mudou. A maior parte dos crimes contra a fauna silvestre prescritos na Lei 9.605/98 trouxe como pena a detenção de 6 meses a 1 ano e multa. Portanto, são consideradas infrações penais de menor potencial ofensivo e, por isso, processados nos termos da Lei 9.099/95, que possibilita a transação penal e a conversão da pena de privação de liberdade para a restrição de direitos. 16
Revista Veja São Paulo, integrante da revista Veja, nº 37, ano 33, ed. Abril, 11.09.2000, p. 12.
30
locais, que são geralmente as primeiras vítimas. Ainda, deve ser coibida a introdução
irregular de espécimes no hábitat natural da fauna silvestre brasileira, especialmente
em seus ecossistemas legalmente protegidos (áreas remanescentes), pois ela pode
desencadear grandes baixas na fauna local, pelo desequilíbrio da cadeia alimentar e a
concorrência entre os espécimes da fauna silvestre nacional e os da fauna exótica pelo
mesmo espaço.
Continua o relato na mesma matéria, ilustrando bem a questão do
comércio ilegal, das doenças transmissíveis e a inadequabilidade da mantença de
determinados animais silvestres em ambiente doméstico:
Doenças também são outro motivo que pode transformar o mascote em estorvo. A incidência é alta, sobretudo por causa das más condições em que os animais são transportados e mantidos nos fundos das ‘pet shops’. Para driblar a fiscalização alfandegária, os importados vêm em bolsos de casacos ou embolados às centenas dentro de malas quase sem oxigênio. Recentemente, um homem foi preso com cerca de 500 pererecas ‘Dendrobates’ em tubos de filme fotográfico. Algumas pessoas consideram que a raiz do problema é querer tratar como animais domésticos bichinhos que estão longe de se prestar a esse fim. ‘É uma estupidez ter em casa esses bichos que não são sociais. Que relação pode estabelecer um homem com uma espécie de lagartixa?’, questiona Paulo Emílio Vanzolin, ex-diretor do Museu de Zoologia da USP
17.
Por isso, impõe-se como necessário um controle rigoroso aos atos de
comércio, mediante cumprimento de normas para importação e exportação de
espécimes vivos, produtos e subprodutos da fauna silvestre exótica. A esse propósito,
configura-se crime, nos termos do artigo 31 da Lei 9.605/98, a conduta de introduzir
espécime animal no País, sem parecer técnico oficial favorável e licença expedida por
autoridade competente.
Em nível internacional, a questão do comércio ilegal de animais silvestres
é um grande mal que deve ser combatido para o bem do equilíbrio ecológico do
planeta. Da mesma forma que animais da fauna exótica são transportados
irregularmente pelas fronteiras, ingressando eventualmente no Brasil, vários espécimes
17
Ibid., p. 12.
31
da fauna silvestre nacional (considerados exóticos em outros países) saem
irregularmente das fronteiras brasileiras, para suprir a demanda do comércio
clandestino no exterior.
Em síntese, os animais da fauna exótica também têm sido aproveitados
na modalidade de mantença a propósito de estimação, em pese os aspectos negativos
registrados, que indicam prejuízos ambientais em relação a tal prática quando não
observadas as condições impostas pela legislação pertinente, que regula o ingresso
dos espécimes naturais de outros países no território nacional.
2.2.5 Animais em cativeiro
O “cativeiro” citado na legislação de proteção da fauna significa
aprisionamento ou retenção em espaço limitado, para submissão do animal à condição
de dependência do ser humano. Por implicar em relativo cerceamento de locomoção
do espécime, o termo traz conotação negativa; porém, em muitos casos, o cativeiro é o
único meio de se preservar uma espécie que teve dizimados os espécimes que a
integram ou descaracterizado o seu hábitat natural.
Os zoológicos, que constituem principal exemplo de manutenção de
espécimes em cativeiro, desempenham uma função de difusão cultural quando
mantêm em exposição espécimes raros, possibilitando ao público conhece-los
fisicamente, ainda que afastados de seu ambiente natural. Afora esse aspecto,
também é comum a tentativa de preservação, em ambiente artificial, de espécies em
risco de extinção, o que importa na manutenção de espécimes em cativeiro conforme
relatado.
Quando são detectados sinais de iminente extermínio de determinada
espécie animal, em razão dos cálculos de quantidade de espécimes vivos no meio
selvagem, as organizações preservacionistas - públicas ou privadas - mediante heroico
32
trabalho de seus biólogos, procuram adaptar no cativeiro casais remanescentes, a fim
de que possam ser perpetuadas as espécies por meio de sua reprodução, ainda que
se perca a chamada “memória selvagem” que caracteriza o comportamento dessas
espécies no meio natural. Ao menos se resguarda, em última análise, o seu valor
genético na condição atual.
O cativeiro, nessa hipótese, corresponde a uma verdadeira “Arca de Noé”
do tempo contemporâneo, uma forma derradeira de salvar espécies da degradação do
meio natural e da dizimação de exemplares vivos por motivos diversos, particularmente
a ocupação humana de áreas protegidas e a caça ilegal, que provocam suas
extinções.
Existem hoje, por exemplo, algumas poucas dezenas de espécimes da
ararinha-azul, mantidos em cativeiro. O valor desses espécimes é incalculável, mesmo
vivendo em ambiente artificial, pois ainda não se conhece o potencial de recurso que
cada espécie animal, em sua exclusiva forma de vida, pode apresentar.
Trata-se de belíssima ave que possuía na caatinga o seu hábitat natural.
Em 1985, na região de Curaça, cidade do sertão da Bahia, foram localizados os
últimos exemplares que viviam no meio selvagem. Apesar do ecossistema não ter sido
degradado, a ação de traficantes de aves - com colaboração de caçadores da região -,
acabou com os poucos exemplares que viviam no meio natural e o último espécime,
que já era monitorado por biólogos, também desapareceu, conforme noticiou revista de
circulação nacional18
.
Porém, a simples manutenção da vida em cativeiro não corresponde à
recuperação de uma espécie da fauna silvestre, pois ela tem o seu valor ecológico
vinculado ao meio natural de origem, que determina padrões comportamentais e
reflete, no processo de evolução, características de ordem física. Se os espécimes
sobreviventes continuarem apenas em total dependência do homem, será
18
Revista Veja, Ed. Abril, nº 06, ano 34, ed. Abril, 14.02.2001, p. 81.
33
desenvolvida, com o tempo, uma nova espécie de animal doméstico. Fazendo-se uma
projeção, com sucessivas gerações nascidas em cativeiro, a ararinha-azul passará a
ter, por exemplo, atrofiados músculos e modificadas características do bico, garras e
pelagem, além da perda do instinto que possibilita sua defesa contra os predadores,
tornando inviável a sobrevivência no meio natural. Perde-se primeiramente a memória
selvagem da espécie; na sequência, perdem-se também as características físicas
originais, resultado da adaptação em novo ambiente, o artificial.
A reintrodução das espécies nativas no meio selvagem é a fórmula
buscada para a verdadeira preservação da biodiversidade comprometida pela ação do
próprio homem; porém, não é tarefa tão fácil quanto retirar os animais da natureza. Os
espécimes nascidos em cativeiro têm que aprender a sobreviver de forma
independente do homem (busca de alimentos, abrigo, defesa etc.) o quanto antes, e
são submetidos a estágios em viveiros cada vez maiores, com condições próximas às
do meio natural, mediante constante monitoramento de especialistas.
No entanto, a experiência tem demonstrado que, mesmo com os recursos
técnicos hoje disponíveis, a reintrodução de espécies nem sempre é missão possível.
O valor que deve ser pago como preço da desmedida intervenção humana no meio
natural ainda é muito alto.
2.2.6 Animais em liberdade
Animal da fauna silvestre, no sentido genérico, pela própria classificação
legal, é o que vive naturalmente fora do cativeiro. Animal em liberdade é aquele que
vive efetivamente fora do cativeiro, sendo ele integrante da fauna silvestre ou da
fauna doméstica. A vida em liberdade (ou fora do cativeiro), em situação de
independência do homem, faz parte da característica original das espécies silvestres.
34
Por isso, na ordem natural, os animais silvestres devem ser encontrados,
em maior número, soltos nos ecossistemas que caracterizam seu hábitat original. Já os
animais domésticos, em razão de sua dependência do homem, serão encontrados fora
do cativeiro proporcionalmente em menor número, como é o caso dos animais
domésticos abandonados ou fugidios.
Mas, afinal, por que os animais silvestres devem ser mantidos em
liberdade no seu hábitat natural? Possível responder essa indagação lembrando que
as complexas combinações da natureza e o emaranhado de relações físicas e
químicas que se processam entre todos os elementos dos ecossistemas, muitas ainda
desconhecidas, em seu conjunto, possibilitam o equilíbrio ecológico nos diversos níveis
na biosfera. O próprio ciclo da vida impõe que cada espécime - vegetal ou animal - tem
o seu papel bem definido nessas relações. A cadeia alimentar no reino animal é um
exemplo desse sistema de necessário equilíbrio.
Existe uma interdependência entre todos os elementos da natureza e, no
meio artificial - onde invariavelmente habita o homem -, as relações dessa rede não
são processadas com a mesma intensidade (quando possível que ocorram). Portanto,
para a preservação da biodiversidade é fundamental manter intactas algumas áreas,
notadamente nos locais em que se encontram significativos ecossistemas naturais tais
como florestas remanescentes, áreas com cobertura vegetal primária de diversas
categorias, mangues, rios etc. em espaços limitados geograficamente pelo Poder
Público, que serão preservados da interferência humana.
São as várias Reservas, as Estações Ecológicas, as Áreas de
Preservação Permanente previstas em lei. Nesses locais racionalmente protegidos
pelo homem, sobreviventes da degradação que já atingiu a maior parte de extensas
áreas consideradas de relevante interesse ambiental, os animais silvestres
naturalmente em liberdade podem desempenhar sua função ecológica.
35
3. EVOLUÇÃO DA TUTELA LEGAL DA FAUNA NO BRASIL
Para entendimento amplo dos dispositivos legais contemporâneos que
tratam da proteção da fauna e que também regulam a convivência do homem e
espécies diversas, destacadamente as da fauna silvestre no Brasil, é importante uma
análise detalhada da evolução das normas legais que, ao longo do tempo, cuidaram da
matéria em estudo.
No mundo todo, a maior parte das leis que trouxeram dispositivos de
proteção aos animais surgiu como reflexo do reconhecimento da imprescindibilidade
de um meio ambiente equilibrado, de que são partes indissociáveis a fauna e a flora
em sua grande diversidade; o ser humano, como espécie animal, integra esse meio
físico, evidenciada sua condição de principal agente modificador do ambiente.
Concorreu para tal entendimento, forçosamente, a constatação de que os
recursos naturais não são inesgotáveis, como se chegou a pensar. Quando a
intervenção humana no meio ambiente natural atingiu proporções que impediam a
espontânea regeneração da camada de cobertura vegetal devassada, muitas espécies
passaram a se extinguir em virtude da incapacidade de adaptação, diante da abrupta
alteração do seu meio natural e também em razão da impossibilidade técnica de
manutenção de formas sensíveis de vida em ambiente artificial.
O homem avançou no sentido de reconhecer a importância da integridade
das variadas formas de vida, como condição de sua própria sobrevivência. Em
consequência, passou o Estado a tutelar efetivamente a fauna, por meio de legislação
específica, sob o enfoque da preservação do valor ecológico da vida animal. Outro
avanço que se encontra em curso, em manifestações cada vez mais evidentes, é o
reconhecimento de que o animal também pode ser encarado como um “sujeito de
direitos”, e não apenas um “objeto voltado ao bem estar do homem” em condições
especiais e inovadoras, pela tutela de sua integridade física por via reflexa da
preservação da dignidade da pessoa humana.
36
3.1 Legislação anterior à Constituição Federal de 1988
Vigeram no Brasil, enquanto colônia de Portugal, as nominadas
Ordenações, ou “leis da Corte”. Foram três as Ordenações: Afonsinas, Manoelinas e
Filipinas e elas já traziam normas voltadas ao uso dos recursos naturais.
Especificamente em relação à fauna, os dispositivos legais então modestos
incriminavam condutas lesivas a algumas espécies consideradas por seu valor material
ou por serem particularmente reconhecidas como benéficas ao ser humano; também,
incriminavam condutas que prejudicassem a reprodução das espécies de vida
aquática, então principal fonte de proteína na alimentação local.
Como registrou Alessandra Rapassi Mascarenhas Prado:
Nas Ordenações Filipinas, em seu Livro V, o Título LXXV descrevia o crime de corte de árvores, ao longo de determinados rios. Ainda que de forma indireta e fragmentária, a proteção do meio ambiente também era vislumbrada, quando alguns animais, por seu valor medicinal (assim, aquele que comprasse colmeias para aproveitar-se da cera e matar as abelhas era punido com açoite ou degredo, a depender da pessoa, além de multa – Título LXXVIII) ou econômico (bestas, boi ou vaca – Título LXXVIII) eram objeto material do crime
19.
Não obstante a previsão legal, a cultura de exploração suplantava
qualquer ideia preservacionista. A grande quantidade de recursos naturais disponíveis,
que parecia inesgotável também no que se refere aos animais silvestres, serviu como
pretexto, durante longo tempo, para certa despreocupação quanto à necessidade de
adequação dos instrumentos legais para a preservação do meio ambiente, inclusive
após a independência política do Brasil.
Entre as formas de exploração das riquezas naturais do Brasil, proliferou
a figura do “caçador profissional”, aquele que vivia da negociação da caça - animal
abatido ou a sua carne - por ele capturada e de seus subprodutos (peles curtidas,
garras e dentes artesanalmente trabalhados, troféus para decoração etc.); isso porque,
19
PRADO, Alessandra Rapassi Mascarenhas. Proteção Penal do Meio Ambiente, Fundamentos. São Paulo: Atlas, 2000, p. 38.
37
de um modo geral, o animal silvestre pertencia a quem o capturasse, inexistindo
mecanismo de eficaz proteção às espécies.
Em grande escala de exploração, os ciclos econômicos no país foram
sucedendo-se até o início do processo de industrialização e este, somado ao aumento
populacional e à ocupação desordenada dos espaços naturais, trouxe maior nível de
impacto ao meio ambiente, atingindo principalmente as espécies mais sensíveis da
fauna silvestre.
Sobre a evolução histórica da tutela ambiental, destacou João Leonardo
Mele:
Em 1551, Ordenações Manuelinas (Dom Manoel) continham proibição de usos de armadilhas que provocassem sofrimentos nos animais e ainda uma reparação de dano para aquele que abatesse determinados tipos de árvores. As Ordenações Filipinas (Dom Felipe II), de 1603, proibiam, por sua vez, uso de redes em lagos ou rios, bem como lançar nas águas substâncias que matassem os peixes. (...) Demonstra-se a timidez dos instrumentos legais adequados para conter uso indiscriminado de fauna e flora, que, apesar de extremamente preciosos, foram sistematicamente trocados ao longo dos séculos por ciclos agrícolas, de mineração e urbanização. Neste século, a tecnologia no país serviu para depredar o ambiente com maior velocidade
20.
O Decreto 24.645, de 10.07.34, conhecido como Lei de Proteção dos
Animais, estabeleceu medidas de proteção não somente voltadas aos animais da
fauna silvestre, mas a todas as espécies, indistintamente. Houve necessidade de
criação desse instrumento legal específico em vista de que, naquela época (década de
1930), os animais eram intensamente usados, por exemplo, para tração de carga, para
transporte e para recreação, sendo submetidos a diversas condições de sobrecarga
em sua utilização.
Assim, foi tipificada a contravenção de maus tratos aos animais (artigo 2o,
caput) e, para tanto, foram descritas detalhadamente trinta e uma ações que
20
MELE, João Leonardo. Ordenamento Histórico-Jurídico da Legislação de Proteção do Meio Ambiente Natural. Centro de Aperfeiçoamento e de Estudos Superiores da Polícia Militar do Estado de São Paulo (CAES) - Curso Superior de Polícia. São Paulo, edição interna, 1999. p. 61.
38
caracterizavam a infração penal (artigo 3o, I a XXXI). Esse mesmo diploma legal criou
importantes mecanismos que sustentaram novas legislações, tornando-se
basicamente os primeiros fundamentos da proteção legal da fauna, entre eles: a tutela
do Estado sobre todos os animais e a imputação de pena e multa àquele que praticar
maus tratos contra animal, sendo seu proprietário ou não, sem prejuízo da ação civil.
Seis anos mais tarde, o Decreto-Lei 3.688/41 (Lei das Contravenções
Penais), definiu em seu artigo 64, como contravenção penal, a crueldade praticada,
como o Decreto 24.645/34 previa, contra quaisquer animais (domésticos ou silvestres),
observada a seguinte redação do seu caput: “Tratar animal com crueldade ou
submetê-lo ao trabalho excessivo”. Durante as mais de cinco décadas seguintes foi
aplicado este artigo (até 1998, com o advento da Lei dos Crimes Ambientais),
enquadrando-se todas as práticas de maus tratos contra animais na condição de
contravenção penal. A definição de maus tratos, porém, continuou a ser buscada no
Decreto 24.645/34, dada à específica conceituação constante do seu artigo 2o,
dispositivo recepcionado pelas legislações posteriores.
3.1.2 A Lei 5.197/67 e a interpretação do vocábulo “utilização”
Na evolução da tutela legal da fauna no Brasil, a Lei 5.197, de 03.01.67,
conhecida como “Lei de Proteção à Fauna” e também como “Código de Caça”, veio
substituir o antigo Código de Caça de 1943 (Decreto-Lei 5.894/43) e trouxe uma
novidade logo em seu artigo 1o, estabelecendo que: “os animais de quaisquer
espécies, em qualquer fase do seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do
cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros
naturais são propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição,
destruição, caça ou apanha”. O Estado aqui mencionado é o ente federal, ou seja, a
União.
39
Nota-se que essa Lei tratou somente dos animais silvestres, partindo de
sua definição no artigo 1o, salvo quando se refere aos animais domésticos “que se
tornem selvagens ou ferais” (por abandono) oportunidade em que autoriza, nesse
caso, sua utilização, caça, perseguição ou apanha (parágrafo único, do artigo 8o).
Protegeu, assim, especificamente os animais silvestres em razão de sua maior
fragilização, decorrente da ocupação humana dos seus ecossistemas em momento de
grande expansão e desenvolvimento no país. Também, proibiu definitivamente a caça
profissional, que durante séculos dizimou espécimes da fauna silvestre brasileira,
estabelecendo condições para a caça amadora praticada em alguns Estados da
Federação.
Assim, conforme previa o texto legal, deu-se o tratamento de
contravenção penal às condutas contrárias à Lei de Proteção à Fauna; e isso ocorreu
até 1988. A Lei 7.653, de 12 de outubro de 1988, que surgiu com o objetivo de
prontamente coibir o escandaloso comércio e matança de animais silvestres no Brasil,
particularmente os jacarés no Pantanal Mato-Grossense, alterou substancialmente a
Lei de Proteção à Fauna e criminalizou as condutas irregulares da caça propriamente
dita, abrangendo a perseguição, destruição, apanha, além da utilização e outras
condutas relacionadas aos animais silvestres e seus subprodutos, definidas nos
diversos artigos da referida Lei.
A aplicação da Lei de Proteção à Fauna, com as inovações da Lei
7.653/88, tornou-se particularmente difícil, pois as condutas irregulares foram
incriminadas com gravosa previsão de penas de reclusão e mais, os crimes descritos
foram definidos como inafiançáveis, conforme redação de seu novo artigo 34. Então,
como todos os animais silvestres se encontravam tutelados mediante severa
imposição legal, a pena passou a ser visivelmente desproporcional à conduta
considerada lesiva à fauna silvestre, causando notáveis distorções na aplicação da
legislação penal. Dessa forma, por exemplo, um morador da área rural que fosse
40
surpreendido pela autoridade policial nos limites de sua propriedade caçando um tatu
para alimentar-se, seria preso em flagrante (prisão inafiançável) e poderia ser
condenado de 1 (um) a 3 (três) anos de reclusão, na interpretação do artigo 1o
combinado com o parágrafo 1o, do artigo 27 e artigo 34 da Lei 5.197; se, porém, o
mesmo indivíduo, com bons antecedentes e residência fixa, não tivesse caçado o tatu
e sim praticado um homicídio, poderia responder a ação penal em liberdade.
Outro problema encontrado durante a vigência plena da Lei 5.197/67 era a
compreensão do vocábulo “utilização”. Para a mais restrita interpretação, a conduta
criminosa de utilização consistia em fazer uso do animal da fauna silvestre com o
objetivo de obtenção de real vantagem, excluindo-se da tipificação legal a conduta de
simples mantença, também denominada manutenção ou mantenimento de animal
silvestre a propósito de estimação.
Nesse entendimento, não praticaria crime quem mantivesse um
papagaio, uma arara, ou um macaco em seu quintal, na condição de animal de
estimação e sim, por exemplo, quem expusesse uma arara em estabelecimento
comercial para atrair transeuntes, utilizando-a como chamariz, quem mantivesse um
papagaio ou um macaco preso a um realejo para fazer sorteio de bilhetes vendidos ao
público, ou, ainda, um artista que exibisse uma onça-pintada, utilizando-a em seu
espetáculo.
A corrente mais radical, no entanto, entendia que a própria relação de
afetividade desenvolvida pelo homem em relação ao animal silvestre no seu convívio
doméstico caracterizava a utilização, eis que o mantenedor dela tiraria proveito, aliado
ao fato de que, exercendo a posse injusta de propriedade da União, mantinha
irregularmente o animal como se doméstico fosse e, portanto, indevidamente integrado
ao seu patrimônio.
Com o passar do tempo, a primeira interpretação acabou por se revelar
mais coerente e a maioria absoluta dos julgados veio confirmar a posição de que a
41
mantença de animais silvestres em cativeiro a propósito de estimação não configurava
crime sob a forma de utilização, nos termos da Lei 5197/67.
Nesse mesmo sentido, como ilustração, transcrevemos as ementas de
quatro acórdãos, de recursos julgados no âmbito da Justiça Federal:
1) Não é fato típico o mantenimento de aves silvestres em cativeiro para lazer, bem cuidadas, sem que se prove tenham sido caçadas ou venham a ser utilizadas ilicitamente (TRF 3
a Região – 1
a T. – AC –
Rel. Ramza Tartuce – DJU 22.03.1994 – RJ 200/131); 2) 1. A mera conduta de possuir animal silvestre não configura crime
contra a Lei de Proteção à Fauna, salvo se o próprio agente o tiver caçado ou apanhado, sem que para tal haja sido legalmente autorizado. 2. A utilização a que se refere o artigo 1
o, caput, da Lei
5.197, de 03.01.67, é de ser entendida como a atividade através da qual alguém obtém relevante proveito pelo efetivo emprego ou pela exibição de animal silvestre (TRF 1
a Região – 3
a T. – Rec. – Rel.
Tourinho Neto – RJ 196/98); 3) I - A Lei 5.197/67 tutela a fauna silvestre e sua preservação, bem com
o equilíbrio ecológico, coibindo a utilização e a exploração comercial das espécies. II - a mantença de aves em cativeiro, para lazer, é penalmente irrelevante se não demonstra o dano ao equilíbrio ecológico e a preservação da espécie (TRF 3
a Reg., Acr.
03006148/SP), 2a T., relator Juiz Célio Benevides, julgado em
10.12.1996); 4) I - É atípica a conduta do detentor que mantém em cativeiro
espécimes da fauna silvestre nacional. II - As Leis 5197/67 e 7653/88 objetivam coibir a utilização ou a exploração comercial de animais silvestres, o que inocorreu in casu (TRF 3
a Reg., Acr. 03057749/SP,
2a T., relator Juíza Sílvia Steiner, julgado em 19.11.1996).
Condicionou-se, então, no âmbito da fiscalização, o enquadramento da
conduta “utilização” - na área criminal - como decorrência da constatação de obtenção
de real vantagem tendo por instrumento, ou meio, o animal silvestre, compreendendo-
se atípica a prática de simples mantença para o fim de estimação21
.
21
No ano de 2000, o Comando de Policiamento Florestal e de Mananciais de São Paulo (atual Comando de Policiamento Ambiental) divulgou o Boletim Técnico 2 (ano I, 15.08.2000), sob o título: “Guarda Doméstica de Espécie Silvestre a Título de Estimação”, com as conclusões de um grupo técnico que desenvolveu pesquisa e debates, sob responsabilidade do então Capitão PM Nilson Odair dos Prazeres, confirmando a interpretação majoritária e, com isso, firmou-se doutrina interna aplicável à fiscalização do policiamento ambiental paulista.
42
3.2 A mudança do tratamento jurídico da fauna, do início do século XX até a
Constituição de 1988.
A efetiva proteção legal da fauna no Brasil, influenciada pela doutrina
civilista do começo do século XX, partiu de uma noção privatista da relação existente
entre o homem e os animais. Nessa fase, o legislador preocupou-se em coibir
condutas lesivas aos semoventes, objetivando protegê-los enquanto bens jurídicos
incorporados ou passíveis de incorporação ao patrimônio particular. Para tanto,
classificou-os materialmente como bens móveis, com a característica de “bens
suscetíveis de movimento próprio”, na precisa definição do artigo 47 do Código Civil de
191622
.
O Poder Público protegia o valor econômico agregado ao animal,
defendendo a sua propriedade particular, ou mesmo a expectativa de propriedade do
criador, do pescador ou do caçador. Tal como a água, por exemplo, o animal sem
dono constituía res nullius; assim, na condição de bem que não estava integrado ao
patrimônio de alguém, poderia vir a pertencer àquele que o caçasse, em razão do
próprio sentido primitivo da ocupação.
Se existia alguma preocupação em relação à proteção ao meio ambiente,
era ela notoriamente secundária em relação à prioritária garantia do direito de
propriedade da fauna. Da mesma forma, os outros bens oriundos da natureza não
eram tutelados por seu valor ambiental como parte essencial ao equilíbrio dos
ecossistemas, mas em razão do seu potencial econômico individual, como evidente
manifestação de uma cultura de economia eminentemente extrativista, comum no país
na medida em que os recursos naturais eram encontrados ainda em abundância.
22
O “Código Civil de 1916” que entrou em vigência em 01 de janeiro de 1917 (com texto integral aprovado e consignado na Lei nº 3.071, de 01 de janeiro de 1916), permaneceu em vigência por 86 anos. Em 10 de janeiro de 2003 foi revogado em razão do início da vigência do novo Codex (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002). O objetivo do Código longevo estava previsto logo no seu artigo 1º: “Este código regula os direitos e obrigações de ordem privada concernentes às pessoas, aos bens e às suas relações”.
43
Essa forma de “proteção” à fauna, vinculada ao aspecto patrimonial, era
caracterizada pela sua função apenas repressiva e imediatista, ignorando-se o valor do
conjunto dos animais, para o equilíbrio e a preservação do meio ambiente natural. Com
o passar dos anos, porém, ocorreu a expressiva diminuição das áreas verdes, como
resultado da desenfreada ocupação humana em quase todo o território do país, além
da prática extrativista dos recursos naturais sem sustentabilidade e o processo de
industrialização associado ao crescimento populacional, o que tornou impossível a
manutenção da exploração indiscriminada da fauna. O novo quadro exigiu do Estado
a regulação do aproveitamento desse bem ambiental, sob pena de seu esgotamento e
de outros a ele vinculados em condição de interdependência (característica básica dos
ecossistemas).
A concepção individualista foi forçosamente substituída pela noção de
que os bens da natureza, entre eles os animais, devem ser considerados e valorados
em seu conjunto e a legislação foi aprimorada nesse sentido, reconhecendo
gradativamente a participação da fauna na formação do equilíbrio ecológico, essencial
para a sobrevivência de todas as espécies, entre elas a do próprio homem.
A evolução dos textos legais fez surgir, então, o moderno conceito de
bem ambiental, como novo tratamento jurídico aplicado à fauna, cujos titulares são
indeterminados - em oposição ao antigo res nullius -, vez que, teoricamente, todos os
homens têm interesse em relação ao meio ambiente, ou seja, há o interesse difuso,
sendo reconhecida a função ecológica do animal, que é anterior ao seu valor individual
observado na esfera econômica.
Como registrou Celso Antonio Pacheco Fiorillo:
Buscando resguardar as espécies, porquanto a fauna, através da sua função ecológica, possibilita a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas, é que se passou a considerá-la como um bem de uso comum do povo, indispensável à sadia qualidade de vida. Com isso, abandonou-se no seu tratamento jurídico o regime privado de propriedade, verificando-se que a importância das suas funções reclamava uma tutela jurídica adequada à sua natureza. Dessa forma,
44
em razão de suas características e funções, a fauna recebe a natureza
jurídica de bem ambiental23
.
A abordada mudança do enfoque, que ao longo do tempo foi estabelecida
nas relações entre o homem e os animais, culminou com o texto da Constituição
Federal de 1988, no seu artigo 225, parágrafo 1o, inciso VII, que estabeleceu como
tarefa do Poder Público: “Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as
práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de
espécies ou submetam os animais a crueldade”. Assim, no plano da tutela da fauna, a
dimensão completa desse dispositivo pode ser estabelecida mediante análise das
normas infraconstitucionais que descreveram condutas classificadas em três classes
distintas: 1) que coloquem em risco a função ecológica das espécies; 2) que
provoquem a extinção de espécies; e, ainda, 3) que submetam os animais a
crueldade.
Evidentemente, o legislador constitucional não quis delimitar a proteção
do Estado em relação à fauna silvestre; ao contrário, pretendeu tutelar todos os
animais, porque se considerarmos que o animal doméstico não tem propriamente
função ecológica e não corre o risco de extinção, ainda assim será protegido contra a
prática de atos cruéis, pois é integrante do coletivo “fauna”.
3.3 A mobilização mundial a partir da segunda metade do século XX
A proteção do meio ambiente veio a merecer destaque no ordenamento
jurídico brasileiro também como reflexo de uma postura internacional, especialmente a
partir da década de 1970. Isso ocorreu pela rápida evolução da densidade demográfica
do planeta, que ampliou o impacto da ocupação humana na superfície terrestre, junto à
exploração desenfreada dos recursos naturais.
A escassez dos recursos fez com que o meio ambiente passasse a ser
observado sobre o enfoque da economia. Constatou-se que o homem deveria
23
FIORILLO, op. cit., p. 86.
45
preocupar-se com a preservação dos valores ambientais, cada vez mais escassos, o
que exigiria mobilização de todos os países na busca de soluções para as questões
ambientais emergentes.
Em 1972, foi realizada uma reunião promovida pela Organização das
Nações Unidas (ONU), em Estocolmo, na Suécia, com representações de diversos
países, para tratar do problema ambiental já apresentado como uma realidade mundial
incontestável. Essa reunião despertou a atenção dos países no sentido de que o
ambiente é o mesmo para todo o planeta, sendo a Terra o grande ecossistema onde
habita o ser humano. Concluiu-se pela necessidade de ações - por parte de todos os
países - que minimizassem o impacto sobre os recursos naturais disponíveis, com a
observação de que o meio ambiente não possui divisa natural, sendo as fronteiras dos
territórios uma convenção humana, mesmo porque problemas ambientais de um país
afetam diretamente outro.
Nessa primeira reunião mundial considerou-se que o ambiente não era
apenas o natural, onde se encontravam intactos os valores da fauna e da flora, mas
também o ambiente artificial, caracterizado pelas inovações do homem, e que o ser
humano necessita de qualidade de vida no meio onde vive. A partir dessa análise, foi
enfocada também a necessidade de aproveitamento racional dos recursos naturais e o
relacionamento entre os dois ambientes (natural e artificial) tendo como elo o homem e
as suas intervenções que deveriam ser pautadas pela preservação dos valores
ambientais essenciais à sua própria sobrevivência.
O Brasil, que na época vivia e comemorava o “milagre econômico”,
deixou de atender ao apelo internacional por interpretar, em um primeiro momento (tal
como outros países não desenvolvidos), que os países mais ricos promoviam a
mobilização mundial como forma de frear o avanço dos países em processo de
desenvolvimento, restringindo-lhes a capacidade de exploração dos recursos naturais
necessários ao seu crescimento econômico.
46
Especificamente sobre as questões da fauna, em 27 de janeiro de 1978,
foi proclamada pela UNESCO, em sessão realizada em Bruxelas, a Declaração
Universal dos Direitos dos Animais, contendo treze artigos que descreveram direitos
naturais que devem ser respeitados pelo homem na sua relação com os animais. Uma
das justificativas constantes do preâmbulo dessa Declaração diz respeito ao
desconhecimento e o desprezo dos “direitos dos animais” que levaram o homem a
cometer crimes contra a natureza e contra os animais.
A mobilização mundial continuou e, na década de 1980 os movimentos
ambientalistas exerceram papel fundamental na conscientização da necessidade de
preservação dos valores ambientais, de aperfeiçoamento da legislação ambiental e
adoção de medidas eficazes para fiscalização do aproveitamento dos recursos
naturais, entre eles os da fauna silvestre. Nessa fase, surgiram várias Organizações
Não-Governarmentais (ONG) que se popularizaram no Brasil, voltadas à defesa do
meio ambiente.
Reflexo dessa movimentação em nível internacional foi o já citado texto
da Constituição Federal de 1988, que reservou um Capítulo exclusivo para abordar o
tema “Do Meio Ambiente” (Capítulo VI), além de diversas leis que surgiram, tais como
a Lei 7.653, de 12 de outubro de 1988, que impôs graves sanções às infrações
ambientais, no caso, praticadas contra a fauna.
Já na última década do século XX, a atenção do mundo voltou-se ao
Brasil com a realização da “ECO-92” (ou “Rio-92”), reunião promovida pela ONU, em
1992, na cidade do Rio de Janeiro. Dessa vez, objetivou-se traçar uma estratégia de
aproveitamento dos recursos naturais de forma compatível com as necessidades
sociais, para a garantia da qualidade de vida humana, e também coerente com a
manutenção dos valores ambientais, encerrada no amplo conceito de conservação,
almejando-se um desenvolvimento sustentável das nações.
47
Com o avanço da tecnologia, os bancos genéticos naturais despertaram o
interesse econômico em nível mundial, diante da possibilidade de aproveitamento
desses recursos (matrizes) como material para pesquisa e desenvolvimento científico,
na busca de soluções medicinais e de inovações na área da produção de bens
diversos que propiciem melhor qualidade de vida ao ser humano. A riqueza da fauna
silvestre do Brasil, que possui várias espécies endêmicas, vem atraindo pesquisadores
e grupos empresariais de diversas partes do mundo, ensejando ações de iniciativa
governamental, e mesmo privada, para a preservação das espécies nativas brasileiras.
3.4 A fauna silvestre como bem público de interesse difuso
Sob o prisma do direito natural, é razoável defender que todos os
animais, sem exceção, possuem “direitos” na condição de seres vivos que dividem o
mesmo espaço ambiental. Porém, no direito positivo brasileiro, que é o campo deste
estudo, somente o ser humano é sujeito de direitos - e também de deveres -, pelo
menos por enquanto. As demais espécies, materializadas nos espécimes que as
integram, são objetos de tutela legal, considerados os seus representantes entes
protegidos contra crueldade, contra o risco de extinção da espécie a que pertencem e
contra práticas que coloquem em risco sua função ecológica.
Todas as leis criadas para a defesa do meio ambiente existem para
beneficiar o próprio homem; é ele o favorecido e, secundariamente, as demais
espécies. Objetivamente, os animais que integram a fauna são bens sobre os quais
direta ou indiretamente a ação humana se faz incidente, motivo pelo qual possuem
relevância jurídica e recebem tratamento legal adequado a essa característica; são,
portanto, bens jurídicos.
O homem exerce a condição de sujeito de direitos de forma individual ou
coletiva. Algumas leis brasileiras da segunda metade do século XX destacaram a
48
proteção de interesses transindividuais, ou seja, que transcendem o indivíduo,
alcançando uma dimensão maior, o interesse de uma coletividade. O gênero
interesses transindividuais dividiu-se em duas espécies: os interesses coletivos,
que dizem respeito às pretensões ou valores de um dado grupo de pessoas, de uma
parcela da sociedade, como por exemplo, os interesses das associações; e os
difusos, que são interesses de um número indeterminado de pessoas e, assim, o
interesse de toda a sociedade.
Exemplo dessa nova disposição é a Lei 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor), que em seu artigo 81 estabelece que:
A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam Titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.
Entre as inovações trazidas na Constituição de 1988 para a proteção dos
interesses difusos, registrou-se um Capítulo específico para tratar do meio ambiente
(Título VIII – Da ordem social, Capítulo VI – Do Meio Ambiente), em que foi
reconhecido o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
classificado como “bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida” (artigo
225, caput). Tendo o legislador considerado a função ecológica da fauna silvestre
(artigo 225, parágrafo 1o, inciso VII), admitiu-a como bem ambiental, em vista de sua
imprescindibilidade, face o almejado equilíbrio ecológico do meio ambiente.
A questão que se apresenta, então, é qual o regime de titularidade da
fauna silvestre, enquanto bem que desempenha uma função ecológica. Devemos
inicialmente aceitar que os animais domésticos têm regime diverso dos silvestres, pois
os primeiros compreendem indiscutível propriedade particular de quem legitimamente
sobre eles exerce domínio, com as limitações impostas pela lei, constituindo bens
privados; já os segundos, os silvestres, por possuírem função ecológica, são
49
considerados bens ambientais e, portanto, indisponíveis. Não obstante, o Estado, que
administra esses bens, possibilita sua exploração mediante autorização, concessão ou
licença, nos termos da lei, objetivando o bem comum.
Nesse contexto, alguns autores defendem que a fauna silvestre,
enquanto bem ambiental, constitui bem difuso e não um bem público, considerando
superada a visão de simples separação dos bens jurídicos em dois grandes grupos: os
bens privados e os bens públicos. Sob esse enfoque, propõe-se a seguinte
diferenciação: o bem público é aquele pertencente ao patrimônio público, tendo como
titular o Estado e o bem difuso é aquele que pertence à coletividade, possuindo
características de indivisibilidade e tendo por titulares pessoas indeterminadas e
ligadas por circunstâncias de fato.
No entanto, o Código Civil (de 1916), em seu artigo 66, inciso I, já
considerava como uma das modalidades de bem público o “de uso comum do povo,
tais como mares, rios, estradas, ruas e praças” e esta foi evidentemente a fonte da
expressão utilizada no Texto Constitucional, observada a sua mesma redação. Assim,
a classificação de bem difuso aplicada ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
que implica na aceitação da coletividade como titular desse bem jurídico no seu mais
amplo sentido, é justa na medida em que o nominado meio ambiente reúne
características de indivisibilidade e constitui exatamente bem de uso comum do povo;
ademais, a própria evolução da legislação brasileira indica um desmembramento do
bem público, ao considerar o bem difuso de forma autônoma. Não é tão simples,
porém, a classificação da fauna silvestre sob esses mesmos critérios. Vejamos.
O conjunto dos animais que compõem a fauna silvestre é um bem
ambiental tanto quanto cada espécime, em sua individualidade, por seu valor ecológico
agregado ou potencial. O aproveitamento desse ou desses bens ambientais, porém,
dá-se de modo diverso do chamado “uso comum do povo”, expressão que a
Constituição empregou para descrever o direito de aproveitamento do meio ambiente
50
(ecologicamente equilibrado) como um todo indivisível. Tanto que, quando o Poder
Público permite a utilização da fauna silvestre, delimita sua autorização exatamente
pela quantidade de animais que sofrerão a interferência humana, considerando-os em
sua individualidade; por exemplo, um cidadão poderá obter licença para manter em
seu plantel de passeriformes silvestres um número definido de espécimes, devendo
restringir o seu aproveitamento da fauna silvestre ao número de indivíduos pré-
determinado, sob pena de responder criminalmente por abuso de licença.
Assim, diferentemente do ar atmosférico, ou da água corrente, que são
bens indivisíveis, o bem ambiental “fauna silvestre” é um conjunto de animais, que
também são bens ambientais em sua individualidade, e pode ser fisicamente dividido
levando-se em conta as espécies que o integram e a quantidade de espécimes (ou
exemplares) existentes. Evidentemente que a intervenção humana na fauna silvestre,
sem planejamento, pode importar até mesmo na extinção de espécies, tanto quanto a
intervenção humana planejada pode salvar espécies ameaçadas de extinção, como já
ocorreu em vários casos registrados na literatura científica.
Levando em conta que a Constituição garantiu a proteção dos animais,
impondo como tarefa do Poder Público: “Proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma
da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais a crueldade”, verifica-se que esta acabou por
recepcionar a Lei 5.197/67 (Lei de Proteção à Fauna), que já previa em seu artigo 1o
que “Os animais de quaisquer espécies em qualquer fase do seu desenvolvimento que
vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus
ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade do Estado, sendo proibida a sua
utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”.
Na verdade, a Lei 5.197/67 refletiu a preocupação social da época em
que foi concebida, diante da esgotabilidade do recurso natural “fauna silvestre” e de
sua importância no equilíbrio ambiental, tornando indisponível a apropriação desse
51
bem jurídico e tutelando-o na condição de bem público, pertencente à União. Aliás, leis
posteriores continuaram a estabelecer como condição de exploração da fauna silvestre
a obtenção de autorização, licença e concessão expedidas pelo órgão público
competente, em consonância com a interpretação de titularidade do Estado, como ente
federal, em relação a esse bem jurídico.
No plano da competência legal para julgamento dos crimes contra a
fauna, vale destacar que até o final do ano 2000 era aplicada a Súmula 91 do STJ, de
1993, que estabelecia: “Compete à Justiça Federal processar e julgar os crimes
praticados contra a fauna”. Essa súmula já era alvo de críticas, pois, curiosamente,
nela não fora especificada a fauna silvestre, o que seria razoável em face da
titularidade do bem jurídico da União que exclui, evidentemente, os animais
domésticos, estes de propriedade privada. A questão foi finalmente superada com o
cancelamento da súmula (DJU 23.11.2000) e, portanto, não há mais conflito de
competência entre a Justiça Estadual e a Justiça Federal, em matéria de crimes contra
a fauna. Os crimes praticados tanto em relação à fauna doméstica, como em relação à
fauna silvestre, são levados ao conhecimento da Justiça Estadual, salvo se
envolverem tráfico internacional ou interestadual, ou se ocorridos em propriedades da
União, tal como nos crimes que envolvem exploração de outros bens ambientais.
Podemos então concluir que, entre os bens ambientais, a fauna silvestre
é um bem público, de propriedade da União, podendo ser interpretado como de
interesse difuso, diferentemente do ar atmosférico ou à água corrente, por exemplo,
que são exatamente bens difusos. A diferença, sutil, implica na observação da
titularidade do bem jurídico que, em relação ao ar respirável ou à água corrente, por
exemplo, é indeterminável, enquanto que em relação à fauna silvestre é propriamente
do Estado, conforme estabeleceu o artigo 1o da Lei 5.197/67 (Lei de Proteção à
Fauna) recepcionado pela Constituição de 1988. No caso dos crimes praticados contra
a fauna silvestre, o sujeito passivo é a coletividade, em face do resultante dano trazido
52
ao meio ambiente (este um bem difuso), e a União, na condição de titular do bem
especialmente tutelado, a fauna silvestre.
3.5 Inovações da Lei 9.605/98 em relação à proteção da fauna
A Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 consolidou, em parte, vários
textos legais que tratavam de crimes ambientais, entre eles a Lei 4.771/67 (Lei de
Proteção à Fauna), com as modificações da Lei 7.804/89 e o Decreto-Lei 221/67
(Código de Pesca). Por essa razão é ela conhecida como Lei dos Crimes Ambientais.
Além da novidade de atribuição de sanções penais e administrativas à
pessoa jurídica, sem exclusão da responsabilidade das pessoas físicas, a Lei dos
Crimes Ambientais abordou aspectos de direito processual e trouxe novas definições
aos delitos contra o meio ambiente, abrangendo os crimes contra a fauna silvestre.
Nas tipificações das condutas, previstas na Seção I: “Dos Crimes Contra a Fauna”, do
Capítulo V: “Dos Crimes Contra o Meio Ambiente”, considerou conjuntamente a fauna
silvestre, que era autonomamente protegida mediante a Lei 5.197/67, e a ictiológica,
que era autonomamente regulada pelo Decreto-Lei 221/67 (diploma legal conhecido
como Código de Pesca).
A Lei 9.605/98 tutelou, além dos animais silvestres, os animais
domésticos e os exóticos, na mesma Seção I, do Capítulo V, em artigos específicos
aplicáveis a um ou a outro grupo ou a todos indistintamente; exemplo disso é o artigo
32, que define o crime de “crueldade e maus tratos”, previsto em relação a todos os
animais, observando-se que a conduta anteriormente era considerada contravenção
penal na superada redação do artigo 64 da Lei de Contravenções Penais. Também, a
Lei estabeleceu como causa de exclusão de ilicitude o fato de o agente abater o
animal - de qualquer espécie - para saciar sua fome ou de sua família (artigo 37, inciso I).
53
Revogando disposição processual penal anterior, os crimes contra a
fauna deixaram de ser inafiançáveis e corrigiu-se, desse modo, distorção
anteriormente observada no conjunto da legislação penal de proteção dos animais, que
durante mais de uma década (a partir da Lei 7.653/88) provocou impasses em face do
excesso de rigor imposto na sua aplicação.
Em contrapartida, ao serem estabelecidas sanções compatíveis à
gravidade dos delitos, favoreceu-se, em tese, a eficiência da norma repressiva; isso
por que a maior parte dos delitos praticados contra a fauna passou a ter as respectivas
ações processadas pelo rito especial da Lei 9099/95, mais simples e célere que o rito
ordinário.
54
4. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 29 DA LEI 9.605/98
Entre os artigos que preveem condutas criminosas contra a fauna na Lei
9.605/98 destaca-se o 29 (não aplicável aos atos de pesca, conforme estabelecido em
seu próprio parágrafo 6o), que relaciona diversas ações penalmente relevantes sob as
circunstâncias nele especificadas, particularmente em seu caput e nos três incisos do
parágrafo primeiro.
É ele o primeiro de uma série de artigos que integram a Seção I, do título
“Dos Crimes contra a Fauna” e traz, basicamente, as ações criminosas de maior
incidência na relação de exploração entre o homem e os animais e que, por conta
disso, apresentam maior potencial ofensivo ao equilíbrio do meio ambiente.
Art. 29: Matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida:
Pena – detenção de seis meses a um ano, e multa. § 1
o. Incorre nas mesmas penas:
I – quem impede a procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a obtida; II – quem modifica, danifica ou destrói ninho, abrigo ou criadouro natural; III – quem vende, expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente. § 2
o. ( .....)
Trata-se de crime de conteúdo variado, ou de ação múltipla, pois o tipo é
misto ao descrever várias condutas, consumando-se o crime com a prática de qualquer
uma delas. Ainda, quem pratica duas ou mais dessas condutas descritas comete um
só crime; por exemplo, quem apanha um sabiá-laranjeira com o auxílio de uma
arapuca, destrói o seu ninho e, após alguns meses em que o mantém em uma gaiola
em seu quintal, mata o referido animal, pratica somente um crime, cuja pena de
55
detenção varia de seis meses a um ano, além de multa, se não houver circunstância
qualificadora do delito; em um segundo exemplo, também responde pelo mesmo crime
quem com uma só conduta mata outro pássaro silvestre, por exemplo, mediante
arremesso de pedra com propulsão de um bodoque.
4.1 Os quatro enfoques do artigo 29 da Lei 9.605/98
Detemo-nos particularmente no caput e nos três incisos do parágrafo
primeiro, do artigo 29, da Lei 9.605/98, para destacar que foram relacionadas condutas
anteriormente não consideradas criminosas. O texto legal objetivou claramente
alcançar não somente a proteção da integridade dos animais silvestres, projetada
no texto do caput desse artigo, mas também, nos seu parágrafo 1º, a proteção da
capacidade de reprodução da fauna (inciso I) e a proteção da integridade dos
ninhos, abrigos e criadouros naturais (inciso II), além da restrição da exploração
econômica do animal silvestre e de seus subprodutos (inciso III), mediante
imposição de igual sanção penal às práticas criminosas, ou seja, na forma simples, a
detenção de seis meses a um ano, e multa.
Na busca da mais clara e objetiva interpretação da norma penal, verifica-
se que o legislador abordou, na estruturação do artigo 29, as condutas criminosas
relativas à exploração da fauna, especialmente a silvestre, sob quatro pontos de vista
distintos. Foram organizadas, dessa forma, as principais ações humanas prejudiciais à
fauna em quatro grupos de condutas, justificando-se o estudo particular de cada um
deles, com análise de suas características próprias, para a melhor compreensão e
aplicação do texto legal.
56
4.1.1 Proteção da integridade dos animais silvestres
Observa-se, em princípio, que o caput do artigo 29 da Lei 9.605/98
manteve basicamente o mesmo conjunto de ações já previstas no artigo 1o da Lei
5.197/67, constituindo-se, à evidência, em um aperfeiçoamento da norma legal.
Como a Lei de 1967 abordava a proteção da fauna sob o prisma da
prática de caça, já estipulara cinco ações proibidas em circunstâncias especificadas,
enfocando os atos relacionados à caça (utilização, perseguição, destruição, caça
propriamente dita ou apanha).
A palavra “caça”, aliás, tem dois sentidos básicos; o primeiro: animais
efetivamente caçados ou animais que podem ser caçados (por isso a expressão “carne
de caça”) e o segundo: conduta tendente à captura ou a provocar morte ou lesão de
animal em estado selvagem, sendo este o sentido empregado pela legislação em
estudo. Para melhor descrição e análise dessa primitiva prática, dá-se uso à
expressão: “atos de caça”.
Convém lembrar que, no meio natural, a atividade de caça não é exclusiva
do homem. Desde que não envolva o ser humano, inexiste relevância jurídica, pois,
nesse caso, encontrar-se-á a caça inserida no contexto do equilíbrio necessário entre
os animais, face o sistema da cadeia alimentar ou face qualquer outro processo natural
de confronto entre espécimes, em seu instintivo comportamento no mundo selvagem.
Estuda-se, portanto, aquilo que interessa ao Direito, ou seja, o envolvimento do
homem na atividade de caça.
Os “atos de caça” são condutas consideradas altamente prejudiciais à
integridade do conjunto dos animais silvestres, quando ausentes permissão, licença ou
autorização expedidas por competente órgão do Poder Público, no Brasil o IBAMA
(autarquia federal que é órgão licenciador e fiscalizador do uso do meio ambiente).
Sem o instrumento permissivo legal, presume-se a inexistência de manejo da fauna e,
57
portanto, seu aproveitamento irracional. Por outro lado, se verificada a expedição do
instrumento público que legitima as atividades em estudo, nas condições impostas
pela Lei, restará excluída a prática criminosa e caracterizada a caça legal, ou seja, o
agente encontrar-se-á no exercício regular de direito, que é causa de exclusão de
ilicitude, conforme inciso III, do artigo 23, do Código Penal.
Conforme mencionado, as modalidades de condutas criminosas
anteriormente relacionadas como: utilização, perseguição, destruição, caça ou
apanha (atos de caça previstos na Lei 5.197/67), sofreram pequeno ajuste e passaram
a constar na Lei 9.605/98 (artigo 29), como condutas de: matar, perseguir, caçar,
apanhar e utilizar. Poderia, nesse momento, o legislador ter suprimido a conduta de
utilizar, para mante-la apenas no inciso III, do parágrafo primeiro, do artigo 29
(observando-se que também lá incluiu tal conduta), vez que o enfoque do
aproveitamento econômico - previsto no inciso III -, é predominante em relação à rara
“utilização” de animal silvestre como ato decorrente de caça, que compreenderia, por
exemplo, o aproveitamento de um animal silvestre como isca para capturar outro ou,
ainda, a sua exibição em uma exposição de troféus.
Além da alteração na sequência da relação das ações e a exposição dos
vocábulos em forma de verbos, o que dá maior coerência na apresentação do tipo
penal, nota-se que a única efetiva mudança registrada nessa primeira parte do artigo
29, em relação ao artigo 1o da Lei 5.197/67, refere-se à substituição da modalidade
“destruição” pela conduta de “matar”. Vale nesse ponto uma breve exposição.
Plenamente aceitável tal modificação em virtude de que quem destrói
necessariamente mata e o que a Lei protege em primeiro lugar, logo no caput do artigo
29, ao defender a integridade da fauna silvestre, é propriamente a vida do animal
tutelado, pois, sem vida, o espécime não desempenha função ecológica.
Também é interessante observar que provavelmente o legislador utilizou
a palavra “destruição” no parágrafo 1o da Lei 5.197/67, pois não teria encontrado no
58
vernáculo outra palavra, na forma substantiva, mais adequada para classificar com
precisão a modalidade referente ao ato de matar (“matação” não consta no dicionário,
por enquanto). Na tentativa de substantivar o verbo “matar”, poderia até ter empregado
a palavra “matança”, porém, essa seria aplicada somente em relação a um coletivo de
animais silvestres, diferentemente do sentido de número indefinido das outras quatro
modalidades, eis que aplicáveis para um ou mais animais. Ainda, ao que tudo indica, o
legislador fez constar a palavra “destruição” pela compreensão imediata do seu sentido
quando aplicada em relação aos ninhos, abrigos e criadouros naturais que, apesar de
não constituírem fauna silvestre, são propriedades do Estado e também protegidos,
como o são os animais silvestres que deles fazem uso, conforme redação do caput do
próprio artigo 1o, da Lei 5197/67.
De qualquer forma, a utilização do vocábulo “destruição” na Lei 5.197/67
acabou por alcançar o objetivo da norma legal, em todos os sentidos, levando-se em
consideração que, na prática, quem mata um animal silvestre acaba com a vida do
espécime; já, quem destrói um animal silvestre, vai mais longe, além de matar o
espécime, ainda aniquila o seu corpo. Inclusive, também a circunstância “destruição”
(quando atinge vários espécimes) foi prevista como qualificadora das condutas do
artigo 29, da Lei 9.605/98, na redação do inciso VI, do parágrafo 4o, do próprio artigo,
para aumentar a pena de metade quando o crime é praticado “com emprego de
métodos ou instrumentos capazes de provocar destruição em massa”. Sob essa nova
perspectiva, portanto, a destruição é ação qualificada referindo ao aniquilamento de
um coletivo de indivíduos, mais grave do que, por exemplo, o ato de matar um ou dois
animais silvestres.
Portanto, o sentido das condutas típicas alternativas relacionadas no
caput do artigo 29 diz respeito às atividades próprias de caça. Assim, matar
corresponde a abater, tirar a vida do animal silvestre, com as próprias mãos ou
59
mediante auxílio de instrumentos tais como lanças, dardos, atiradeiras, armas de fogo,
armadilhas etc.; perseguir significa correr atrás, ir no encalço, seguir de perto, acossar
com o propósito de importunar, incomodar o animal silvestre; caçar corresponde à
prática de atos tendentes à provocar a morte ou a captura com vida do animal silvestre
(preparar armadilhas, disparar arma contra animal silvestre, aguardar a chegada do
animal em tocaia para poder capturá-lo etc.); apanhar significa recolher, colher o
animal silvestre que não oferece resistência; e utilizar tem o sentido de tirar proveito,
obter vantagem (ainda no contexto da caça).
Fecha-se o ciclo com o verbo utilizar para que sejam abarcadas todas as
ações de um caçador, imagináveis e, por isso, possíveis. Assim, por exemplo, um
indivíduo que se encontra em uma floresta, a noite, com uma espingarda de caça e
petrechos apropriados, preparando armadilhas, ou simplesmente em tocaia,
aguardando sua presa, está praticando atos tendentes a provocar a morte ou a captura
com vida de animal silvestre, ou seja, está configurada a conduta de caçar; isso
porque o crime é de dano, ou de perigo, não sendo necessário o real prejuízo ao bem
ambiental, bastando o potencial ofensivo da conduta tipificada. Se esse mesmo
indivíduo atirar e, como resultado, abater um animal silvestre, estará configurada
também a conduta de matar. Em outro exemplo, se um indivíduo vai ao encalço do
animal silvestre e, acossando-o, dispara a arma sem conseguir capturá-lo, pratica as
condutas de perseguir e caçar. Se, ainda, em último exemplo, o mesmo caçador, ao
invés de disparar a arma, captura o animal silvestre sem que este ofereça qualquer
resistência e, após, mata-o e usa-o (o corpo) como isca em uma armadilha, atraindo
outro animal, pratica as condutas de apanhar, matar e utilizar (além de “caçar” em
relação ao segundo animal).
60
4.1.1.1 Os atos de caça e a integridade dos animais silvestres
O fato de cinco verbos (matar, perseguir, caçar, apanhar e utilizar)
terem sido relacionados logo no início do caput do artigo 29 da Lei 9.605/98 como
ações criminosas desde que “sem a devida permissão, licença ou autorização da
autoridade competente, ou em desacordo com a obtida”, constitui clara indicação do
elevado nível de prejuízo à integridade da fauna silvestre decorrente dessas condutas,
em circunstâncias ilegais, ou seja, quando caracterizada a caça ilegal.
A anterior Lei 5197/67, conhecida tanto como “Lei de Proteção à Fauna”
quanto “Código de Caça”, ainda em vigor no que se refere aos atos de caça,
estabeleceu logo no parágrafo 1o, do seu artigo 1
o, que: “Se peculiaridades regionais
comportarem o exercício da caça, a permissão será estabelecida em ato
regulamentador do Poder Público Federal”. O Estado do Rio Grande do Sul, por
exemplo, que já possuía tradição de prática de caça - por influência da cultura de
imigrantes europeus ali fixados -, permitiu a prática da caça amadorística, regulada
pela Portaria do IBAMA nº 480/90, respeitando-se as fórmulas rígidas estabelecidas na
Lei 5197/67. Em contrapartida, imediatamente no artigo 2o
da mesma Lei 5197/67, foi
vedada a prática da caça profissional (“É proibido o exercício da caça profissional”).
Para melhor elucidação do assunto, é bom observar que as modalidades
de caça apresentam-se em dois grandes grupos, o da caça predatória, absolutamente
ilegal no país e o da caça não predatória. Sendo classificado o exercício da caça
neste último grupo, dependendo das circunstâncias, será admitido como ato regular
(legal). Classificam-se no primeiro grupo, absolutamente proibidas, a caça
profissional e a caça sanguinária, ou de sangue, que são, respectivamente, a caça
como meio de obtenção de lucro e a caça pelo mórbido prazer de acabar com um ou
outro animal, ou de provocar-lhe lesões; esta, uma forma primitiva de demonstração da
superioridade do homem, felizmente hoje pouco comum e não melhor qualificada do
que maldade.
61
Classificam-se no segundo grupo: a caça de controle, a caça esportiva,
a caça científica e a caça de subsistência. Para as três primeiras modalidades é
possível a obtenção de permissão, licença ou autorização, na forma de instrumento
escrito expedido pelo órgão público competente.
A caça de controle é a destruição de animais silvestres considerados
nocivos à agricultura ou à saúde pública, conforme previsto no artigo 3o, parágrafo 2
o,
da Lei 5.197/67 e também nos incisos II e IV do artigo 37 da Lei 9.605/98, autorizada
em situações extraordinárias, mediante rigorosa motivação, para se evitar um mal
maior.
A caça esportiva ou amadorística é aquela praticada com o propósito
recreativo, sendo inclusive estimulada pela Lei 5.197/67 (letra “b”, do artigo 5o), que
previu a criação de parques de caça federais, estaduais e municipais, onde o exercício
da caça seria permitido; evidentemente que a licença para caça esportiva não autoriza
a gratuita crueldade contra animais silvestres (prática que configuraria a caça
sanguinária), tanto que a própria Lei 5.197/67 estabeleceu condições para o exercício
da caça amadorística, em seu artigo 10, proibindo, por exemplo, armadilhas que
maltratam a caça.
A caça científica é aquela perpetrada por estudiosos ou cientista, na
forma de coleta de animais silvestres, mediante especial licença do Poder Público,
dentro de períodos e outras condições estabelecidas, conforme artigo 14 da Lei
5.197/67.
Finalmente, a caça de subsistência é aquela habitualmente praticada
para a própria alimentação e consequente sobrevivência de um grupo, sendo aceita
como prática dos povos indígenas, respeitada a sua identidade cultura e dentro dos
limites de suas terras demarcadas pelo Poder Público, desde que, evidentemente, o
produto da caça não seja direcionado ao comércio (quando restaria identificada a caça
62
profissional), pois a sobrevivência que caracteriza a caça de subsistência não diz
respeito à sobrevivência econômica do caçador ou de integrantes do seu grupo.
A caça em estado de necessidade não constitui propriamente uma
modalidade e sim uma situação excepcional, prevista no inciso I, do artigo 37, da Lei
9.605/98, que estabelece excludente de ilicitude, qual seja, não pratica crime quem,
em estado de necessidade, abate animal para saciar a fome (do próprio agente ou de
sua família). Na previsão legal, não pode ter a característica de habitualidade e, por
conta disso, não se confunde com a caça de subsistência, constituindo-se exceção
que a Lei indicou em razão do maior valor atribuído à vida humana, como bem jurídico
que está acima da integridade da vida de um animal silvestre.
Voltando ao assunto da caça profissional, modalidade que pressupõe a
obtenção de lucro, destaca-se que, além dela já de ter sido explicitamente proibida no
Brasil, conforme fora determinado no artigo 2o
da Lei 5197/67, tornou-se qualificadora
das condutas criminosas do artigo 29 da Lei 9605/98, mediante previsão do parágrafo
5o, do mesmo artigo, ou seja: “A pena é aumentada até o triplo, se o crime decorrer do
exercício de caça profissional”. Por sinal, como observa Luiz Regis Prado, encontra-se
na exposição de motivos da própria Lei 5197/67 a justificativa para a expressa vedação
a essa prática, que durante muitos anos devastou espécimes da fauna silvestre
brasileira: “A caça profissional deve ser rigorosamente proibida e por outro lado deve
ser encorajado o estabelecimento de criadouros de animais silvestres. O caçador
nativo e o caçador furtivo não causam uma fração do mal por que é responsável o
caçador profissional, que tudo dizima, visando o lucro fácil” 24
.
Outra questão interessante é a posição radical adotada no Estado de São
Paulo no final da década de 1980, tal como em outros Estados da Federação, para
coibir a prática de caça. Verifica-se que o artigo 204 da Constituição do Estado de São
Paulo, de 1989, concebida na sequência da Constituição Federal, estabeleceu que:
24 PRADO, Luiz Regis. Crimes Contra a Natureza. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 41.
63
“fica proibida a caça, sob qualquer pretexto, em todo o Estado”. Ora, será que o
legislador pretendeu incluir nessa proibição as modalidades de caça de controle,
científica e de subsistência? Certamente que não, pois, contrário senso, em São
Paulo o indígena não poderia caçar para sua sobrevivência, biólogos não conseguiriam
licença válida para coletar material zoológico objetivando estudos, nem poderiam
capturar espécimes para acasalamento e perpetuação de espécies em extinção e,
ainda, não seria possível o controle de pragas causadas por espécies nocivas à saúde
humana ou a simples remoção de espécimes em locais com superpopulação.
No ardor da campanha pela preservação das espécies silvestres, os
movimentos ambientalistas conseguiram êxito na previsão de proibição da caça no
Estado de São Paulo, de forma genérica, tendo a seu favor a comoção popular
daquele período, que já tornara possível, em nível federal, a imposição de severas
sanções aos atos de caça ilegal previstos na Lei 5197/67, mediante as inovações da
Lei 7.653/88, que classificou os atos de caça ilegal inclusive como crimes
inafiançáveis. Tudo isso porque, naquela fase, quando se falava em caça no Brasil,
lembrava-se automaticamente da caça predatória ao jacaré no Pantanal Mato-
Grossense, situação que realmente merecia imediata repressão do Poder Público e
que motivou grande divulgação na imprensa. De fato, provocada por um problema
regional que acabou afligindo todo o povo brasileiro, a referida mudança da legislação
federal - acompanhada de vigorosa atuação dos órgãos de fiscalização - reverteu o
quadro a tal ponto que, duas décadas depois, o grande número de jacarés no Pantanal
passou a representar verdadeiro risco de vida às populações locais. Pois bem, essa
nova condição é capaz de justificar outra intervenção do Poder Público, desta vez para
estabelecer condições de habitabilidade, que podem ser alcançadas mediante adoção
da caça de controle ou mesmo pela regulamentação de caça amadorística, em face da
superpopulação de espécie da fauna silvestre na região.
64
Finalmente, para boa compreensão do artigo 204 da Constituição do
Estado de São Paulo, faz-se fundamental verificar o texto da Emenda 360 do Projeto
da Constituição Estadual de 1989, de autoria de Oswaldo Bettio, deputado estadual
que combateu duramente a prática da caça amadorística com o seguinte argumento:
(...) Fica proibida a caça, sob qualquer pretexto, em todo o Estado.
Justificativa
Amadorística ou profissional, apresentada sob qualquer disfarce, como
chamado “manejo de fauna”, a caça é uma atividade que não pode ser
permitida, pelos danos irreparáveis que causa a ecologia.
Só no Rio Grande do Sul os predadores da natureza obtiveram
proteção aos seus objetivos, através de um convênio que vem sendo
questionado pelas entidades ecológicas.
O Estado de São Paulo deve firmar uma posição que não admita
dúbias interpretações, mantendo a rigorosa proibição de qualquer tipo
de caça, única forma de se proteger a nossa fauna das ambições
desmedidas de caçadores irresponsáveis.
Sala das Sessões, em 28-7-89.
Evidentemente, em São Paulo, o que restou absolutamente proibido,
mediante imposição do artigo 204 da Constituição do Estado, foi a caça amadorística,
levando-se em conta que a caça predatória (profissional ou sanguinária) já eram
proibidas em razão da legislação federal em vigor. Por outro lado, caça de controle, a
científica e a de subsistência, por se tratarem de situações extraordinárias, não foram
objeto de abordagem no texto da Constituição do Estado de São Paulo e encontram
respaldo na legislação federal; a prática dessas modalidades de caça, como já
defendido, é necessária em certas circunstâncias e deve ser admitida para a garantia
da saúde pública (controle), da própria perpetuação das espécies animais (científica) e
para a preservação da cultura indígena reconhecida na Lei Maior, inclusive quanto ao
exercício dos direitos originários dos índios sobre as terras que tradicionalmente
ocupam (artigo 231, da Constituição Federal).
65
4.1.2 Proteção da capacidade de reprodução da fauna
Tendo assegurado a proteção dos animais silvestres contra as condutas
humanas mais gravosas à sua integridade, ou seja, dos atos de caça ilegal previstos
no caput do artigo 1o, a Lei 9605/98 passou a descrever condutas ofensivas à
preservação das espécies silvestres nos três incisos do parágrafo 1o, do artigo 29,
abordando todas as fases do seu desenvolvimento, e organizou tais condutas em mais
três grupos. Mesmo que não relacionadas propriamente ao exercício da caça, tais
condutas trazem também graves prejuízos à fauna silvestre, atingindo diretamente os
espécimes que a integram e a expectativa de continuidade das espécies, como formas
de vida que possuem características singulares. Acompanhando o raciocínio do
legislador, verifica-se que, em destaque, o primeiro inciso do parágrafo 1o, do artigo 29,
diz respeito à proteção da capacidade de reprodução da fauna.
Se as graves condutas relacionadas à caça dizimam os animais silvestres
existentes, trazendo dano imediato ao equilíbrio ecológico, as ações que impedem a
sua procriação obstam o esperado surgimento de animais silvestres que renovariam o
grupo a que pertencem seus geradores, prejudicando o meio ambiente no tempo que
há de vir. Portanto, a atual previsão de crime para tais condutas, anteriormente não
tipificadas na área ambiental, apresenta-se em sintonia com o Texto Constitucional
que, em seu artigo 225, estabeleceu que: “todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de
vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações” (grifo nosso).
De fato, a preservação das espécies está intimamente relacionada com a
capacidade de reprodução dos seus respectivos exemplares, levando-se em conta que
as forma de vida no Planeta têm duração limitada. Ainda, a reprodução dos animais é
o mecanismo estabelecido na natureza para que as características genéticas de cada
grupo de animais sejam perpetuadas, mediante sua transmissão de uma geração à
66
outra, em uma forma de corrente, mais especificamente um encadeamento de
informações da identidade de cada espécie em plena evolução.
Como o artigo 29 está inserido na Seção I, sob o título “Dos Crimes
Contra a Fauna” e o inciso I não especifica a condição de silvestre para a fauna que
seria objeto da conduta descrita, compreende-se que a capacidade de reprodução de
todos os animais, indistintamente, está penalmente protegida. Comprova tal
interpretação o fato de que, no mesmo artigo 29, quando a conduta é contrária
exclusivamente à fauna silvestre (exemplo do inciso III, do parágrafo 1o), esta é
especificada na redação do mesmo dispositivo.
Aliás, o método mais conhecido de se evitar a procriação da fauna é a
castração, com maior frequência praticada nos animais domésticos, ou domesticados,
exatamente porque é necessário o contato com o animal para que seja possível a
direta intervenção no seu órgão reprodutor. Antes da vigência da Lei 9605/98, tal
conduta seria penalmente relevante apenas se restasse caracterizada a prática de
crueldade contra o animal de qualquer categoria, configurando, nessa hipótese,
simples contravenção penal. O que a Lei atualmente protege vai muito além da
simples integridade física de um espécime; o referido dispositivo legal tem por objetivo
garantir a própria perpetuação da espécie representada pelo animal (nesse caso,
entende-se, silvestre) na condição de seu potencial reprodutor.
A castração, no entanto, apesar de constituir a forma mais comum, não é
o único método capaz de impedir a procriação da fauna:
Impedir a procriação da fauna é conduta criminosa que poderá ser verificada, por exemplo, quando o infrator utiliza meios químicos, alocando-os em locais propícios de alimentação, impedindo deliberadamente a reprodução de determinadas espécies animais. É o caso de um fazendeiro que para diminuir a incidência de capivaras em sua propriedade distribui fartamente ração contendo anticoncepcionais. A prova deste crime deverá ser atestada por pessoa habilitada, normalmente um médico veterinário
25.
25
NASSARO, Marcelo Robis Francisco. Direito Ambiental Aplicado à Proteção da Fauna. Apostila do Curso de Especialização de Oficiais da Polícia Militar Florestal de São Paulo. Edição interna, 2000.
67
O inciso I, do artigo 1o, do artigo 29, descreve: “quem impede a
procriação da fauna, sem licença, autorização ou em desacordo com a obtida” (grifo
nosso). Assim, o destacado elemento normativo do tipo refere-se à ausência de uma
causa de justificação que caracterizaria a legalidade da intervenção humana em
prejuízo da capacidade de reprodução da fauna, nos limites bem definidos no
instrumento público que é expedido por motivo relevante.
Como ocorre na caça de controle, se existente licença ou autorização
para o impedimento de procriação da fauna, e agindo de acordo com as condições
impostas, encontrar-se-á o agente escudado no exercício regular de direito, que é
causa de exclusão de ilicitude, conforme inciso III, do artigo 23, do Código Penal.
4.1.3 Proteção da integridade dos ninhos, abrigos e criadouros naturais.
O inciso II, do parágrafo 1o, do artigo 29 da Lei 9605/98, estabeleceu que
também pratica crime, punível com a mesma sanção aplicável à conduta do caput do
artigo (detenção de seis meses a um ano, e multa), quem modifica, danifica ou destrói
ninho, abrigo ou criadouro natural. A tutela dessas bases físicas que possibilitam a
reprodução das espécies, ou protegem os espécimes e seus filhotes de intempéries e
do ataque de predadores, já era prevista no artigo 1o da Lei 5197/67, que também os
classificava como bens da União: “Os animais de quaisquer espécies, em qualquer
fase de seu desenvolvimento e que vivem naturalmente fora do cativeiro, constituindo
a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são
propriedades do Estado, sendo proibida a sua utilização, perseguição, destruição, caça
ou apanha” (grifo nosso).
Sob a nova disposição legal, a única alteração constatada foi a inclusão
das condutas “modifica” e “danifica”, pois a modalidade de destruição já era prevista na
Lei 5197/67 aplicável também em relação aos ninhos, abrigos e criadouros naturais.
68
Na interpretação literal do inciso II, do parágrafo 1o, do artigo 29 da Lei
9605/98, pratica o crime quem modifica (altera, muda as características), danifica
(causa dano ou prejuízo à função, descaracteriza), ou, destrói (reduz a nada, estraga
completamente, decompõe) ninho (habitação produzida por ave para a finalidade de
postura de ovos e criação de filhotes), abrigo (refúgio, asilo, local de habitação onde o
animal pode proteger-se das condições do tempo ou de outros animais), ou criadouro
natural (espaço natural onde se dá a reprodução e procriação de espécies, como por
exemplo: mangues, banhados, terrenos que permanecem alagados durante parte do
ano, enfim, locais que devido às suas características particulares acabam por atrair
grande número de exemplares de determinadas espécies com o intuito de ali se
reproduzirem, favorecendo essa área, inclusive, o crescimento seguro dos filhotes).
A garantia legal da integridade do hábitat e da progenitura dos animais
(especialmente os silvestres) é uma proteção necessária para que as espécies possam
se perpetuar. As interferências humanas mais comuns e extremamente prejudiciais à
reprodução das espécies silvestres, referem-se à remoção de ninhos bem trabalhados
de pássaros para exposição, como objeto de decoração, ou à simples destruição
desses mesmos ninhos nos próprios locais em que foram construídos, quase sempre
fixos em galhos de árvores, mediante arremesso de pedra ou disparo de arma como
inconsequente meio de diversão. Comum, também, a destruição de ninhos quando o
agente deseja diminuir o número de indivíduos de determinada espécie em uma
localidade, por considerá-los prejudiciais, por exemplo, para a agricultura.
Não há previsão legal de expedição de autorização ou licença para a
prática dessas condutas; ao contrário do que ocorre no caso de necessária ação de
impedimento de procriação da fauna. Aliás, não se confunde esta última conduta com
as previstas no inciso II, do parágrafo 1o, do artigo 29, ora analisadas, pois o que se
protege fisicamente nestes dois incisos é a própria “moradia” do animal silvestre,
constituindo-se ela seu abrigo inviolável.
69
Por derradeiro, não se pode também confundir as condutas criminosas
que trazem prejuízo a ninhos, abrigos e criadouros naturais com atos de caça de
controle. Em primeiro lugar porque, como já observado, para aquelas não há previsão
de expedição de autorização ou licença, ao contrário do que ocorre com os atos de
caça de controle. Em segundo lugar, porque eventual autorização (caça de controle)
pode permitir somente o abate do próprio animal, ou animais considerados prejudiciais
ao homem, para dar proteção às lavouras, pomares e rebanhos de sua ação
predatória ou destruidora, ou, ainda, por serem nocivos, desde que assim
caracterizados pelo órgão competente, nos termos do inciso II e IV, do artigo 37, da Lei
9605/98, não alcançando, portanto, o hábitat dos espécimes (ninho, abrigo e criadouro
natural), que deve permanecer intacto.
4.1.4 Restrição da exploração econômica do animal silvestre e de seus subprodutos
Após ter coibido os atos de caça considerados prejudiciais ao meio
ambiente, protegendo a integridade da fauna silvestre e ter defendido a capacidade de
procriação das espécies, bem como seu hábitat, cuida o artigo 29 da Lei 9605/98, no
inciso III do seu parágrafo 1o, de restringir a exploração econômica dos animais
silvestres e respectivos subprodutos.
Fecha-se o ciclo das ações humanas básicas que causam dano ou
potencial prejuízo (perigo) à fauna com a enumeração de condutas que indicam a
prática de comércio irregular, ou caracterizam atos tendentes à sua prática, como
atividades criminosas. A Lei 5197/67 permitiu o aproveitamento econômico da fauna
silvestre em seus artigos 8o e 16, exigindo, para tanto, a obtenção de licença mediante
registro das pessoas físicas ou jurídicas que negociem animais silvestres e seus
subprodutos.
70
Com efeito, os atos de comércio devem ser rigorosamente fiscalizados,
pois, compreende-se, somente o aproveitamento racional e licenciado do bem jurídico
tutelado não causará prejuízo ao equilíbrio ambiental. Impõe-se, dessa forma, o
cumprimento das condições estabelecidas para a garantia da sustentabilidade dos
recursos naturais economicamente aproveitados, mediante manejo das espécies
exploradas. Nessa linha, a Portaria do IBAMA nº 117-N, de 15.10.97 regulamentou os
atos de comércio, estabelecendo condições para o seu exercício, bem como o
funcionamento dos criadouros regularmente autorizados para essa finalidade.
Confirmam o nítido enfoque da exploração econômica do animal silvestre
e de seus subprodutos no dispositivo legal em estudo Vladimir Passos de Freitas e
Gilberto Passos de Freitas26
:
O inciso III refere-se ao comércio de espécimes da fauna silvestre, em diversas modalidades, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença, ou autorização da autoridade competente. Lei 5.197/67 previa esse delito no artigo 3
o, com redação
direta e simples, sancionando-o com pena de reclusão de 2 a 5 anos. O tipo penal, agora, utiliza várias formas de conduta (vender, expor à venda, exportar, adquirir, ter em cativeiro ou depósito, utilizar ou transportar). Visou o legislador evitar qualquer tipo de justificativa para o mais condenável dos atos, que é o comércio de animais.
Sendo assim, pratica o delito, com o objetivo de exploração econômica,
quem vende (negocia, aliena por certo preço, comercializa, cede a outrem mediante
vantagem pecuniária, entrega mediante remuneração ou compensação), expõe a
venda (exibe para venda, põe à vista para atrair freguês; mostra, apresenta ou oferece
para o propósito de venda), exporta (envia para o exterior, envia para outro estado ou
município) ou adquire (recebe gratuita ou onerosamente, obtém, compra), guarda
(retém sob seus cuidados para outro, ou para si próprio, com o propósito de negociar;
toma conta, conserva, oculta para outrem), tem em cativeiro ou depósito (retém para
si mesmo, com propósito mercantil, em local fora do hábitat natural ou guarda para
26
FREITAS, Vladimir Passos de; FREITAS, Gilberto Passos de. Crimes Contra a Natureza. 6a ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 80.
71
outrem, como depositário, o que será ou já foi negociado); utiliza (aproveita), ou
transporta (remove, conduzindo de um lugar para outro) ovos, larvas ou espécime da
fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela
oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão,
licença ou autorização da autoridade competente.
Observa-se que, nessa disposição, além de proteger no território
brasileiro os espécimes da fauna silvestre, nativas ou em rota migratória, da
exploração comercial desautorizada, a Lei estendeu a tutela para os seus ovos, que
são corpos naturalmente herméticos onde se forma o produto da alogamia (ou
fecundação) do óvulo; para as larvas, que constituem o primeiro estágio de vida de
parte dos animais, depois que estes saem dos ovos; para os produtos dela oriundos
(da fauna silvestre ou em rota migratória), que são o resultado de fabricação ou
manufatura, tendo como matéria-prima o próprio corpo do animal ou partes dele, por
exemplo, casacos e bolsas de peles, artigos de decoração, alimentos alimentares etc.;
e para os objetos também dela oriundos, aqui interpretados como materiais que,
apesar de ainda não terem sido submetidos a processo de industrialização ou
manufatura, foram extraídos do animal silvestre, tais como guizo (de cobra), chifres,
casco, pena etc.
Constata-se nesse inciso certa semelhança com a sequência de condutas
do artigo 12 da anterior Lei 6.736/76 (que dispôs sobre os crimes relacionados ao
tráfico de entorpecentes), o que serve como referência para o estudo da Lei dos
Crimes Ambientais. Objetivando coibir o comércio ilícito de entorpecentes, aquele
dispositivo apresentou diversas ações que podem ser comparadas com as que foram
previstas na Lei 9.605/98 para restringir o comércio de espécimes da fauna silvestre e
outros bens a ele relacionados. O artigo 12 da Lei 6.736/76 apresentou, entre outras,
as condutas de vender, expor à venda, exportar, adquirir, guardar, ter em depósito e
transportar.
72
A semelhança não é gratuita. O legislador em 1998 teve como evidente
referência e fonte de vocabulário a Lei 6.736/76, pois, tal como o tráfico de
entorpecentes, o tráfico de animais silvestres passou a representar um desafio para o
Poder Público a partir do momento em que se constatou o grave prejuízo que tal
prática causava à sociedade. Mesmo com as similaridades indicadas, curiosamente a
Lei dos Crimes Ambientais não empregou a expressão “tráfico” para denominar o
comércio ilegal de animais silvestre; apesar disso, a sociedade em geral e os próprios
operadores do direito adotaram a expressão que já vinha sendo amplamente utilizada
nesse contexto.
Por ocasião do surgimento da Lei 9.605/98, tinha-se notícia de que na
área dos negócios ilegais, em rota internacional, a venda de animais silvestres
somente perdia apenas para o tráfico de drogas e para o comércio de armas, em razão
do cálculo de que 10 bilhões de dólares eram movimentados nesse mercado por ano,
sendo um décimo desse valor apenas no Brasil27
. Exigiu-se, portanto, tal como na Lei
de Tráfico de Entorpecentes, uma abordagem ampla de todas as condutas
relacionadas à abominável prática de comércio de animais silvestres, na descrição do
inciso III do parágrafo 1o, da Lei 9.605/98, sob o enfoque da exploração econômica
desautorizada desses recursos.
Entre as condutas do analisado inciso III, destacam-se duas que podem
gerar certa polêmica: guardar e ter em cativeiro ou depósito. Pode parecer que se
quis, nesse momento, coibir a mantença de animais silvestres a propósito de
estimação, pois esta é a primeira imagem que vem à mente quando se refere ao
animal silvestre “guardado ou mantido em cativeiro”. Defende-se, todavia, que sua
proibição não é o objetivo do dispositivo em questão.
27
LIMA, Pedro C. de; SIDNEI, Sampaio dos Santos. Cetas: an important tool to fight Illegal traffic of sylvan animals and reintroduction of species in protected habitats in light of eco-tourism activities. In: WORLD ECOTOUR, 2., 2000, Salvador. Annals... Salvador: Biosfera, 2000. p. 29-33.
73
Conforme demonstrado, buscou-se no inciso III abarcar todas as formas
possíveis de atos de comércio ou atos a ele relacionados, entre os quais a guarda
(doméstica ou não) e a conduta de ter em cativeiro ou depósito (em casa, no quintal
ou em qualquer outro local) o bem jurídico em questão com finalidade mercantil e não
a simples manutenção do animal para o propósito de estimação. Portanto, nesse ponto
da legislação, a conduta criminosa é caracterizada pela indevida obtenção, ou procura
de obtenção de vantagem econômica.
4.2 A guarda doméstica e a hipótese de perdão judicial
Imediatamente na sequência do inciso III, do parágrafo 1o, da Lei
9.605/98, apresenta-se o parágrafo 2o, que trata de hipótese de perdão judicial:
Parágrafo 2
o. No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não
considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena.
A Lei, nesse momento, apresenta imprecisão. Correto seria o uso do
vocábulo “espécimes” e não espécie, que foi equivocadamente empregado. Talvez o
legislador buscasse transmitir a ideia de número não definido de animais guardados
(um ou mais); porém, nesse sentido, deveria ter utilizado a expressão “espécime ou
espécimes”. De fato, porque é quase impossível alguém conseguir guardar em casa,
ou em seu quintal, toda uma “espécie” da fauna silvestre. Portanto, o vocábulo
“espécie”, utilizado no parágrafo 2o, deve ser compreendido pelo significado de
“espécime” ou “espécimes”.
Na esteira da interpretação do “caput” do artigo 29 e dos incisos do seu
parágrafo 1o, entende-se que, se o infrator for surpreendido guardando em sua
residência ou quintal (guarda doméstica) espécime da fauna silvestre, no sentido da
guarda já abordada no inciso III, do parágrafo 1o - ou seja, com propósito mercantil - e,
desde que não integrante de espécie ameaçada de extinção, poderá o juiz deixar de
74
aplicar a pena correspondente, considerando as circunstâncias do caso concreto. Por
interpretação lógica, o parágrafo 2o só pode ser relacionado à conduta prevista no
inciso III, do parágrafo 1o
(a nosso ver, guarda com finalidade comercial), pois em
nenhum outro momento, no artigo 29, foi utilizado o vocábulo “guarda”, destacada a
extensa e minuciosa descrição de atos lesivos ao meio ambiente verificada nesse
artigo, em face do aproveitamento irregular do precioso recurso natural “fauna
silvestre”.
Motivo da ressalva é a resposta ao menor potencial de lesividade da
conduta em relação ao meio ambiente. O infrator, individualmente identificado, que
responde criminalmente pela guarda doméstica de animal ou animais silvestres, pode
ser beneficiado com o perdão judicial - quando o objeto de sua empreitada não integra
espécie ameaçada de extinção - pois, agindo no âmbito de suas relações particulares,
dá causa a prejuízo ambiental menor em relação àquele decorrente da atividade de
traficantes especializados, vários em organizações criminosas que promovem
comércio de animais silvestres em quantidades e proporções muito superiores, para
interessados dentro e fora do país.
Nessa interpretação, a guarda doméstica de espécime (ou espécimes) da
fauna silvestre é a conduta do cidadão que possui em seu quintal um viveiro onde
guarda, sem licença, canários-da-terra, pintassilgos e araçaris para serem negociados
com sua vizinhança, ou com qualquer pessoa que a ele recorra para adquirir, mediante
pagamento, um desses espécimes. O seu propósito evidentemente não é a
manutenção para a estima, pois aquele que mantém um animal a título de estimação
(doméstico ou silvestre), não o aliena; pelo contrário, esforça-se por mantê-lo sob seus
cuidados em virtude do vínculo afetivo que se estabeleceu entre ele (o mantenedor) e
o animal de estimação.
Cabe, aliás, a análise da sutil diferença da aplicação dos verbos “ter" e
“manter” no texto legal. Mesmo que não constitua propriedade particular (pois é
propriedade da União), o animal silvestre nas mãos do comerciante irregular é tratado
75
como se o fosse, é avaliado como objeto de venda, é ele negociado tal como um
eletrodoméstico. Já nas mãos do mantenedor, a título de estimação, o animal silvestre
é destinatário de um esforço pessoal de quem se sente responsável pela manutenção
de sua vida, e mesmo de seu bem-estar. Ao contrário do comerciante, o mantenedor
não deseja desfazer-se do animal e sim preservá-lo. Sob os cuidados do mantenedor,
o animal desempenha uma função que vai muito além do benefício produzido por um
simples objeto; por isso é mantido como forma de vida.
A quantidade de espécimes presentes em determinado ambiente
doméstico, além do espaço em que são guardados e a própria forma como são
tratados, pode evidenciar o propósito mercantil. Em princípio, quem mantém animais a
propósito de estimação o faz, normalmente, em relação a um, dois ou três espécimes,
e estes quase sempre são muito bem cuidados. Ao contrário, o particular que pretende
auferir lucros, por menor que seja a expectativa de ganho, guarda ou tem em depósito
vários espécimes no seu ambiente doméstico, para si ou para outrem, em quantidade
suficiente para que as eventuais perdas do seu objeto de comercialização - próprias da
guarda em cativeiro -, não constituam obstáculo para a obtenção de vantagem
pecuniária advinda das transações que serão realizadas; o bem estar desses animais
é o que menos importa ao comerciante irregular, nos limites de sua residência.
Importante destacar que somente poderá ser concedido o perdão judicial
se os espécimes guardados, no âmbito doméstico, não pertencerem a qualquer das
espécies classificadas pelo Poder Público como “em extinção”. A preocupação primeira
é evitar o irreparável desaparecimento de parcela única do reino animal, ou seja, a
extinção de espécie (ou de espécies), motivo pelo qual não pode ser concedido
qualquer benefício legal para quem concorre, mesmo que indiretamente, para tamanho
prejuízo ecológico.
Não é coerente, por outro lado, relacionar a hipótese de perdão judicial
com as condutas do caput do artigo 29: matar, perseguir, caçar, apanhar ou utilizar -
mesmo levando-se em consideração que o benefício legal está consubstanciado em
76
um dos parágrafos do artigo (parágrafo 2o) -, pois o vocábulo “guarda” não se coaduna
com qualquer dessas condutas, que são doutrinariamente classificadas como
atividades próprias de caça. Quando muito, em relação às condutas do caput, a
“guarda” poderia ser associada ao ato de “utilizar”; porém, se tal fosse o propósito, a
Lei teria previsto para hipótese de perdão judicial a “utilização doméstica” de animal
silvestre e, mesmo que fosse empregada tal expressão, haveria ser observado que a
jurisprudência entende, de longa data, que somente se configura a utilização (já
prevista na Lei 5.197/67) quando verificada a obtenção de real vantagem, lembrando
que não é nela compreendida a simples mantença de animal a propósito de estimação.
No entanto, o cidadão que mantém em casa, bem cuidado, porém sem
autorização, um animal silvestre para o fim de estimação, encontra-se objetivamente
em situação irregular, em que pese sua conduta não ser tipificada na Lei dos Crimes
Ambientais, na apresentada interpretação. Na verdade, a responsabilização penal é o
último mecanismo de controle do Poder Público para coibir os atos prejudiciais à vida
em sociedade, por isso é ela destinada às condutas mais gravosas tais como a caça
proibida e o comércio ilegal de animais silvestres que trazem incalculável prejuízo ao
equilíbrio ecológico.
A simples mantença doméstica de animal silvestre (que não pertence à
espécie em extinção) é conduta socialmente aceita e não representa um mal em si,
tanto que o IBAMA autoriza, mediante sério controle, a criação de espécimes para
venda como animal de estimação e já é possível hoje comprar legalmente, por
exemplo, uma arara, para mantê-la no quintal.
Portanto, na ausência da autorização exigida, desde que o animal
silvestre não esteja submetido a maus tratos (quando seria configurado o crime do
artigo 32 da Lei 9.605/98), a solução pela via administrativa, para a mantença de
animal silvestre a propósito de estimação, é a adequada, mediante imposição de
multas cujos valores deverão inibir a aquisição e o mantenimento de espécime sem
procedência de criadouro legalizado.
77
5. O APROVEITAMENTO DOS RECURSOS DA FAUNA SILVESTRE
Conforme estabelecido no artigo 225 da Constituição Federal, “todos têm
direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Portanto, todos são titulares do direito de usufruto do meio ambiente
ecologicamente equilibrado, melhor definido como um conjunto de condições físicas
apropriadas à vida humana. E no complexo harmonioso que constitui o ambiente
próprio à sadia qualidade de vida do homem, os animais silvestres desempenham
relevante papel, tanto quanto qualquer forma de vida, como partes integrantes de um
conjunto natural marcado por estreitas relações físicas e químicas de
interdependência.
O aproveitamento econômico do meio ambiente ecologicamente
equilibrado ocorre de modo coletivo (uso indireto), ou individual (uso direto). No que diz
respeito à fauna silvestre, o homem compartilha dos benefícios gerais dela advindos
no seu conjunto, no modo indireto, mantendo-se em posição de mínima interferência
em relação ao meio natural preservado; por outro lado, no modo direto, é beneficiário
individual do potencial particular de um ou mais espécimes silvestres, mediante uso
privado desse recurso, aumentando, nessa condição o seu nível de interferência no
meio natural.
Reconhecida a propriedade do Estado sobre a fauna silvestre e a
possibilidade do aproveitamento privado dos espécimes que a integram, mediante
criteriosa outorga de instrumento de autorização, como forma de racional intervenção
no meio natural, depara-se com duas situações distintas, que devem ser analisadas: a
posse justa e a posse injusta do animal silvestre.
78
5.1 Custo ambiental e intervenção humana no meio natural
Ao longo do tempo, o homem foi ocupando quase todos os espaços com
superfície terrestre no planeta e modificando a camada original para as adaptações
necessárias à sua sobrevivência e conforto. Para poder plantar, na proporção que o
crescimento populacional lhe foi impondo - e diante dos meios técnicos disponíveis -,
retirou boa parte da cobertura vegetal nativa, vindo a modificar, nessas áreas,
substancialmente o meio ambiente natural que constituía o hábitat original dos animais
silvestres.
Formou-se nitidamente uma divisão entre os espaços de vegetação nativa
remanescente, verdadeiras ilhas que passaram a ser preservadas pelo interesse
público (“áreas verdes”), e as áreas de ambiente artificial, caracterizadas pela
interferência humana (“áreas cinzas”). Enfim, restaram destacados o meio natural e o
meio artificial.
Seguindo-se, no Brasil, o modelo norte-americano da criação de parques
(o primeiro deles, o emblemático Parque Nacional de Yellowstone, de 1831), os três
primeiros parques nacionais foram criados, em sequência, na mesma década: o
Parque Nacional de Itatiaia, na divisa entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais, em
193728
e, dois anos depois, o Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná, e o Parque
Nacional da Serra dos Órgãos, no Rio de Janeiro, em 1939. Esses parques e outros
posteriores, onde se proibiu o exercício de qualquer atividade contra a flora e a fauna,
foram estabelecidos com base no artigo 9º do Código Florestal vigente, que trazia a
primeira referência legal aos parques nacionais, estaduais e municipais, com a
definição em sua redação original de “monumentos publicos naturaes, que perpetuam
em sua composição floristica primitiva, trechos do paiz, que, por circumstancias
peculiares, o merecem”.
28
Criado pelo Decreto Federal 1.713, de 14 de junho de 1937.
79
As áreas verdes, legalmente preservadas, deveriam ser, em princípio, os
únicos lugares para permanência dos animais silvestres preservados junto a toda
beleza cênica desses espaços naturais. Essa era a ideia original para preservar a
natureza remanescente. Em áreas verdes, os animais desempenhariam sua função
ecológica, ao menos no espaço limitado da reserva ambiental, participando das
relações de interdependência que a natureza originalmente estabeleceu ao longo de
milênios.
O homem contemporâneo vem percebendo, porém, que não pode dar-se
ao luxo de assistir passivamente as transformações resultantes de sua histórica e
radical interferência no meio natural e, após confinar espécimes em áreas protegidas,
permanecer tão somente aguardando que espécies não se extingam ou não se
proliferem de modo nocivo ou particularmente ameaçador à sua existência.
Sobre esse raciocínio, é oportuno o comentário sobre os impactos de
decisões na área ambiental que ensejam constante monitoramento e inevitáveis novas
interferências:
Com a proibição de sua caça, os crocodilos da Flórida estão começando a aparecer nos quintais. Os gigantescos ursos cinza começam a fazer footing em alguns vilarejos no Alasca. Com a matança de lobos, lá pelo princípio do século, houve uma explosão demográfica nos veados do Colorado. Como nada se fez para contê-la, os bichos comeram até a raiz do capim, destruindo o seu hábitat. O resultado foi o seu desaparecimento completo. A lição é clara. Depois que o homem alterou o equilíbrio original da natureza, foi-se a ideia de que é possível parar de interferir. Certamente, se não bulir mais, a natureza vai chegar a algum equilíbrio. Mas esse equilíbrio bem pode ser um deserto, como parece haver sido o caso no Oriente Médio. Ou pode ser a invasão dos coelhos na Austrália, ou a dos gafanhotos na África. A floresta virgem está em equilíbrio. Mas, depois que interferimos, ou administramos um novo equilíbrio, ou o equilíbrio que espreita pode ser altamente indesejável. Como já bulimos em quase tudo, nada nos resta senão a alternativa de bulir mais, de forma inteligente e bem informada
29.
29
CASTRO, Cláudio de Moura. Artigo Proteger ou Arruinar o Meio Ambiente? Revista Veja, ed. Abril, 12.03.1997, p. 134.
80
Ao contrário de “congelar” florestas com todos os seres vivos ali mantidos
e esperar os resultados, a alternativa de continuar interferindo no meio natural, de
forma inteligente, planejada e bem informada, é o exato preço que o ser humano deve
pagar em razão do nível de modificações já impostas no equilíbrio natural. Para tal
propósito, o denominado manejo de animais tem um custo técnico elevado; não
obstante, é quase sempre a única forma de reconciliação entre o homem e espécies
que tiveram seus hábitats quase completamente devastados.
Oportuno destacar, nessa linha de raciocínio, a diferença entre
“preservação”, que é baseada na intocabilidade da área preservada (inicialmente
adotada como solução às questões ambientais) e a “conservação”, moderna
concepção baseada na sustentabilidade, mediante uso racional dos recursos naturais,
na lição de João Leonardo Mele:
A preservação é um conceito classicamente fechado, envolve o raciocínio de não se usar o bem ambiental, em especial o de fauna e flora, de nenhuma forma. O bem fica preservado, produzindo seus valores indiretos, entre os quais relacionamos a manutenção das florestas, a consequente estabilização dos lençóis freáticos, a contenção da erosão, o abrigo de espécies de fauna e flora, a manutenção da biodiversidade etc. O conceito de preservação consiste em que as áreas declaradas preservadas devam permanecer intocáveis, fornecendo então os bens de uso indireto. (...). O conceito de conservação faz uma junção do interesse ambiental com o interesse social. O ser humano necessita dos recursos ambientais para sua vida. O conceito de conservação admite tanto o uso indireto quanto o uso direto, ou seja, a retirada de plantas, árvores e outros bens ambientais, que são transformados em bens de interesse do homem. Esta retirada é feita de forma técnica, seletiva e racional. Ficam compatibilizados os valores ambientais e sociais, encerrando um conceito moderno conhecido como sustentabilidade. A sustentabilidade internaliza o raciocínio de manter os bens ambientais indefinidamente para o uso do homem, com a sua reposição ou com o seu manejo de forma que suas necessidades possam ser atendidas com qualidade de vida
30.
Impõe-se hoje a necessidade do ser humano monitorar a evolução das
espécies e interferir racionalmente na sua relação com as outras formas de vida,
30
MELE, op. cit., p. 36.
81
observando desde os microorganismos mutantes que o atingem por vias aéreas até os
jacarés e outros animais que, com sua superpopulação, podem ameaçar a integridade
física de moradores nas proximidades de uma área protegida. Mesmo assim, a sua
influência no meio ambiente deve restringir-se ao mínimo, para evitar danos maiores
ao equilíbrio natural.
Passaremos agora a abordar outro aspecto da intervenção humana na
fauna silvestre: a vulnerabilidade dos ecossistemas.
Muito já se afirmou que a extinção de uma espécie animal pode trazer
grande prejuízo, até inimaginável, em função da irreparável perda de informações
genéticas a ela vinculadas e o potencial de benefício que determinado grupo animal
extinto deixaria de trazer ao homem. Chegou-se, em alguns estudos, a estabelecer
valor monetário aos bens ambientais, entre eles diversos espécimes animais, para
facilitar a atividade de administração do recurso natural ainda disponível, de forma que
o agente poluidor (poluição aqui compreendida no atual conceito de qualquer
interferência prejudicial ao meio ambiente e não simplesmente produção de sujeira)
pudesse compensar o mal causado – sob o argumento da necessidade de
desenvolvimento -, mediante pagamento de valores que seriam revertidos para a
preservação de hábitats naturais em reservas delimitadas. No entanto, o problema
ambiental voltado à preservação das espécies é mais complexo do que aparenta ser.
Diante do desaparecimento de espécies da fauna silvestre, o maior
prejuízo econômico advém do consequente aumento da vulnerabilidade dos
ecossistemas, no fator denominado “resiliência”, de custo absolutamente imensurável:
Quando se evoca a necessidade de conservar a biodiversidade pensa-
se em geral nas espécies ameaçadas de extinção e nas consequentes perdas de informação genética. Mas esse, além de não ser o único prejuízo econômico imposto pela redução da biodiversidade, pode nem sequer ser o principal. Bem pior pode ser um tipo de enfraquecimento dos ecossistemas que os torna mais vulneráveis aos choques. Isto é, uma diminuição de sua capacidade de enfrentar calamidades naturais ou súbitas destruições provocadas pela sociedade sem que desapareça seu potencial de auto-organização. É o que em linguagem científica se
82
chama de resiliência: a capacidade de superar o distúrbio imposto por um fenômeno externo (...) Se já era difícil engolir a ideia de que a perda de um mico-leão-dourado pode ter um preço monetário razoavelmente calculado, o que dizer, por exemplo, da resiliência dos fragmentos florestais onde ele ainda não foi extinto? Seria seu preço comparável ao da redução da resiliência da caatinga nordestina?
31
Não há, portanto alternativa. Diante da irremediável interferência no
padrão de equilíbrio da natureza, o homem deve doravante administrar de modo
inteligente as relações entre as diversas formas de vida, também mantendo as áreas
remanecentes protegidas. E talvez seja este o seu destino histórico, pois, ao mesmo
tempo em que constitui o principal agente modificador do meio natural, também é ele o
único ser vivo - de que se tem conhecimento -, capaz de se organizar e encontrar as
soluções para os complexos problemas ambientais causados pela sua intervenção.
O chamado “custo ambiental” do desenvolvimento humano na biosfera
impõe a necessidade de intensa pesquisa para que se processe o racional
aproveitamento das espécies, além de indispensáveis ações na área da educação
ambiental, desenvolvimento da reciclagem de materiais extraídos do meio natural,
medidas para a adequada distribuição populacional e ocupação de espaço territorial,
controle dos níveis de poluição, gerenciamento das áreas legalmente protegidas -
mediante estabelecimento de níveis de acesso aos seus recursos - e, finalmente, a
efetiva fiscalização do aproveitamento dos bens naturais, tendo por base todo o
conjunto de normas que regem o novel Direito Ambiental.
Enfim, a concepção de que todos os animais selvagens sobreviventes às
modificações impostas ao meio ambiente devem ser mantidos intactos é hoje
ultrapassada, pois não será dessa forma que se alcançará o equilíbrio desejado e
necessário à vida humana.
Os animais em liberdade devem ser objeto de estudo e
acompanhamento, mediante planejada e positiva interferência humana - que os
31
VEIGA, José Eli da. Artigo intitulado Biodiversidade e Resiliência, publicado no jornal O Estado de São Paulo, Caderno Economia, p. B2, 31.01.98.
83
recursos de tecnologia e informação hoje permitem - a fim de que possam ser
perpetuadas as espécies silvestres ao mesmo tempo que se controla o nível do seu
crescimento populacional, em razoável proporção ao crescimento das demais espécies
locais (também em proporção à espécie humana). Somente assim, preservando-se à
biodiversidade e seu nível de representatividade nas áreas verdes e cinzas, será
possível usufruir todos os benefícios que a fauna pode trazer. Esta é a atual
responsabilidade do homem, na contemporânea busca do meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
5.2 O aproveitamento privado do animal silvestre
Além da propalada função ecológica naturalmente desenvolvida pelos
animais em seu conjunto - e tutelada pela Constituição Federal -, podem os espécimes
particularmente ser úteis ao homem para finalidades diversas, tais como: científicas,
medicinais, culturais, recreativas, motrizes, alimentares e tantas outras. Porém, o
aproveitamento dos espécimes, integrantes da fauna silvestre ou doméstica, está
sujeito a restrições legais na medida em que devem ser evitadas condutas que
coloquem em risco sua função ecológica, que provoquem a extinção de espécies ou
submeta-os à crueldade, conforme estabeleceu a Constituição Federal, no seu artigo
225, parágrafo 1o, inciso VII.
O acesso particular ao animal integrante da fauna doméstica é simples,
pois ele se reproduz em cativeiro normalmente em quantidade suficiente para os fins a
que são destinados, ensejando um melhor aproveitamento comercial. Já os animais
integrantes de espécies silvestres, que vivem normalmente livres no meio selvagem,
não se reproduzem com a mesma facilidade quando submetidos ao cativeiro; faz-se
necessário um longo período de adaptação, o que acaba impondo a domesticação do
84
espécime e o inevitável surgimento de transformações de ordem física e
comportamental observadas nas gerações seguintes, nascidas em criadouro.
Existe nesse ponto uma questão de ordem econômica a ser solucionada:
espécimes integrantes da fauna silvestre, legalmente comercializados, custam muito
mais caro porque são raros; são raros porque não se reproduzem com a mesma
facilidade que os domésticos no cativeiro; não podem ser retirados do meio natural
(caçados), para aproveitamento por clara disposição legal; e, finalmente, o valor
alcançado na venda de espécimes silvestres raros no mercado clandestino é incentivo
ao tráfico ilegal - nacional e internacional - e à caça proibida que o abastece. Por outro
lado, a fascinação das pessoas pelos animais silvestres em razão do seu caráter
exótico, também porque é raro, faz com que sua procura seja grande, inversamente
proporcional a quantidade de espécimes legalmente disponíveis.
Sobre a importância do aspecto econômico e a busca de soluções viáveis
para a preservação das espécies silvestres, é esclarecedor o estudo “Problemas
Ambientais, Soluções de Direitos sobre a Propriedade Privada”, de Walter E. Block,
que traz a seguinte reflexão:
A esse respeito, considere o búfalo e a vaca. Biologicamente, são animais muito similares, e ainda assim é apenas um fato casual que o búfalo – ao qual foi permitido por muitos anos correr livremente, sem ser possuído pelo homem – tenha sido salvo da extinção. Em contraste gritante, as vacas têm sido domesticadas há milênios e têm sido apropriadas e criadas por fazendeiros desde os tempos bíblicos, e mesmo antes. O que aconteceu com o búfalo e está a agora acontecendo com o rinonceronte também é, mais uma vez, um caso de tragédia da propriedade pública. Se a ninguém é concedido o direito de propriedade sobre o búfalo, então não compensa para ninguém protegê-lo ou cuidar para que ele não seja caçado até a extinção. Quando um búfalo morria nos dias em que a propriedade privada do “lar, nas pastagens” não existia, ninguém perdia nenhum dinheiro. Pode-se supor que ninguém agiu para prevenir essas ocorrências. Em contraste, quando uma vaca morre, o dono sofre
32.
32
MCFETRIDGE et alii. Economia e Meio Ambiente, a Reconciliação. Porto Alegre: Ortiz, 1992, p. 260.
85
Não defendemos, nesse ponto, a propriedade privada do animal silvestre,
mas sim a plena possibilidade de seu aproveitamento comercial e privado, inclusive
como forma de preservação da continuidade das espécies. Permitindo e viabilizando o
aproveitamento privado do animal silvestre, mediante expedição de instrumentos
públicos competentes, o Estado acaba promovendo a perpetuação das espécies em
razão do aumento do número de animais procedentes de cativeiro legalizado, o que
diminui a pressão sobre os animais que se encontram no meio selvagem. Estes
instrumentos encontram-se previstos nas leis de proteção à fauna, por exemplo, no
inciso III, do parágrafo 1o, do artigo 29, da Lei 9605/98, e classificados em três
espécies: a permissão, a licença, ou a autorização.
A permissão, na definição de Maria Sylvia Zanella di Pietro33
, é “o ato
administrativo unilateral, discricionário e precário, gratuito ou oneroso, pelo qual a
Administração Pública faculta a utilização privativa de bem público, para fins de
interesse público”. A licença, para Hely Lopes Meirelles34
, é “o ato administrativo
vinculado e definitivo, pelo qual o Poder Público, verificando que o interessado atendeu
a todas as exigências legais, faculta-lhe o desempenho de atividades ou a realização
de fatos materiais antes vedados ao particular (...) resulta de um direito subjetivo do
interessado, razão pela qual a Administração não pode negá-la quando o requerente
satisfaz a todos os requisitos legais para sua obtenção, e, uma vez expedida, traz a
presunção de definitividade”. Por fim, a autorização, no conceito de Cid Tomanik
Pompeu35
, é “o ato administrativo discricionário, pelo qual se faculta a prática de ato
jurídico ou de atividade material, objetivando atender diretamente a interesse público
ou privado, respectivamente, de entidade estatal ou particular, que sem tal outorga
seria proibida”.
33
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 5a ed., São Paulo: Atlas, 1995.
34 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 16
a ed., São Paulo: RT, 1991.
35 POMPEU, Cid Tomanik. Autorização Administrativa. São Paulo: RT, 1992.
86
Além da permissividade do aproveitamento econômico da fauna silvestre,
o incentivo público direcionado à iniciativa privada, nessa disposição, deve ser
suficiente para compensar as maiores dificuldades encontradas para reprodução de
espécimes da fauna silvestre em cativeiro (enquanto existirem) e desestimular o
aproveitamento privado ilegal. O Poder Público deve intensificar o combate à caça e
ao comércio ilegal de espécimes silvestres e, ao mesmo tempo, incentivar o
surgimento de criadouros legalizados.
Como reflexo da gestão racional dos bens ambientais, que vem
timidamente sendo observada no Brasil, com o tempo se tornará acessível, por
exemplo, a aquisição de um papagaio ou uma arara, para fins de estimação, nascidos
em criadouro legalizado. Suprindo-se a carência do mercado com espécimes
reproduzidos em cativeiro, é possível, com o trabalho de fiscalização e combate à caça
e ao tráfico, preservar verdadeiramente os espécimes remanescentes da vida
selvagem e todas as suas qualidades físicas e comportamentais.
5.3 Conceito de posse aplicado ao animal silvestre
Existem duas teorias que muito influenciaram as leis e doutrinas, cujos
autores buscaram estabelecer a exata noção de posse: Savigny, com sua teoria
subjetiva e, em oposição, R. Von Ihering, com sua teoria objetiva.
Para a primeira, subjetiva, que é basicamente uma reconstrução do
sistema de posse no Direito Romano, a posse dependeria de dois elementos: o
“corpus” e o “animus”. O “corpus” é o elemento material, o poder físico exercido sobre
a coisa e o “animus”, o elemento intelectual, ou subjetivo, que representa a vontade do
agente em ter a coisa como sua. Ausente esse elemento subjetivo, estaria
caracterizada a simples “detenção” e não a posse.
87
Para a segunda teoria, a objetiva, defendida posteriormente por Ihering, é
estabelecida uma distinção entre propriedade e posse, da seguinte forma:
propriedade é o poder de direito sobre a coisa e a posse é o poder de fato exercido
sobre ela. O Código Civil brasileiro de 1916 adotou a teoria objetiva, em seu artigo 485:
“considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno, ou não, de
algum dos poderes inerentes ao domínio, ou propriedade” 36
.
Seguindo a linha de raciocínio da teoria objetiva, a posse se apresenta
como exteriorização de um direito real sobre coisa própria, ou alheia, e importa, para
sua caracterização, a utilização econômica da coisa (que pressupõe algum lucro ou
vantagem). A posse é exercida de forma legítima ou ilegítima e, portanto, pode ser
classificada em posse justa, ou injusta. Nesse sentido, destacou Orlando Gomes:
De um lado, o direito; do outro, o fato; tal é, segundo Ihering, a antítese a que se reduz a distinção entre a posse e a propriedade. A posse é o poder de fato; a propriedade, o poder de direito sobre a coisa. Esses dois poderes se enfeixam geralmente nas mãos do proprietário. Nem sempre, porém, a separação ocorre em consequência de subtração da coisa, que é arrebatada ao proprietário, contra a sua vontade. Ao contrário, normalmente é o proprietário mesmo que transfere a outrem o seu poder de fato sobre a coisa. No primeiro caso, aquele que subtrai a coisa tem sobre ela posse injusta. No segundo, posse justa, isto é, direito de possuir, tendo a posse, neste caso, o caráter de uma relação jurídica
37.
Justa é a posse que se adquiriu conforme o direito, aquela de algum
modo admitido na lei. Injusta é a posse que se adquiriu de modo contrário ao direito,
da qual se teve acesso por modo proibido; subdivide-se, de acordo com as
circunstâncias da sua irregular forma de aquisição, em: posse violenta (adquirida pela
força); posse clandestina (adquirida às ocultas); e posse precária (adquirida por
abuso de confiança) 38
.
36
O novo Código Civil brasileiro, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que substituiu o antigo, de 1916, manteve a base da teoria objetiva, como se confirma no seu artigo 1.196: “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. 37
GOMES, Orlando. Direitos Reais. 15a ed., Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 20.
38 Artigo 1.200, do novo Código Civil: “É justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária”.
88
Aplicando o estudo da posse à questão da fauna silvestre, teremos que o
Estado (União) detém a propriedade dos animais silvestres, nos termos do artigo 1o, da
Lei 5197/65, enquanto que aqueles que se beneficiam de forma particular - ou direta -
de espécimes integrantes da fauna silvestre detêm a sua posse (justa ou injusta).
Assim, por exemplo, aquele que adquire a posse de animal silvestre por
meio de um criadouro legalizado, pagando o preço da preservação das espécies, tem
sobre ele a posse justa; também aquele que obtém licença para criação tem a posse
justa sobre os animais silvestres de seu plantel. Quem, em contrapartida, ainda a título
de exemplo, subtrai animal silvestre mediante violência ou grave ameaça dirigida à
quem exercia sobre ele a posse justa, terá sobre o animal - objeto do roubo - a posse
injusta (na forma violenta); quem obtém um animal silvestre, comprando-o de alguém
que o tenha caçado ou o tenha adquirido de outra forma irregular, exercerá sobre ele
igualmente a posse injusta (na forma clandestina); e, finalmente, quem recebe animal
silvestre, adquirido por terceiro de criadouro legalizado, a título de empréstimo ou de
guarda, ou é nomeado fiel depositário de animal silvestre apreendido e, a partir do
momento em que deve restituir o animal recebido, o retém indevidamente, passa a
exercer sobre o animal também a posse injusta (na forma precária).
Já o animal silvestre que vive em liberdade no meio natural não poderá
ser objeto de posse, salvo exceções legalmente previstas (como, por exemplo, o índio
que se utiliza de animal silvestre capturado no limite de sua área demarcada,
exercendo sobre ele a posse). Para o propósito do bem estar comum, o Estado tornou
o animal que vive no meio selvagem indisponível, em regra, preservando-o do
exercício da posse particular, a fim de viabilizar o meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.
Em relação ao animal silvestre caçado, enquanto nas mãos do caçador,
será objeto de posse injusta clandestina, e não violenta, mesmo que o espécime tenha
89
sofrido violência por ocasião de sua captura (no ato de caça). Isso porque a posse
injusta violenta é aquela adquirida mediante força dirigida a quem detém a posse
original, a fim de que dele seja arrebatado o seu objeto. O Estado-proprietário não
sofre, evidentemente, a força física do caçador, que é dirigida exclusivamente contra a
caça (o espécime). Nessa condição, em relação ao proprietário, a subtração do animal
mediante caça é clandestina e pode mesmo ser classificada como espécie de furto.
Outro aspecto interessante no estudo da posse, aplicada à fauna, refere-
se ao fato de que o exercício da posse justa de um animal não tem as mesmas
características do pleno exercício da posse sobre um bem inanimado e desprovido de
especial proteção legal.
A busca da harmonia na vida em sociedade faz com a lei imponha
reservas no exercício da posse sobre alguns bens como, por exemplo, o papel-moeda
e a bandeira nacional, que não podem ser destruídos por conveniência ou satisfação
pessoal do possuidor, nas circunstâncias em que sua vontade determina. Todavia,
nenhum bem recebeu, para efeito do exercício de posse, tantas restrições legais, ou,
sobre outro ponto de vista, garantias de tutela, quanto os animais que, em razão de
suas qualidades intrínsecas e de seu potencial de benefício ao homem, são
especialmente protegidos contra práticas que coloquem em risco sua função ecológica,
que provoquem a extinção de espécies ou submeta-os à crueldade.
Uma pessoa que possui uma bola de futebol pela qual não mais tem
interesse poderá furá-la, destruí-la e jogá-la fora; o mesmo, porém, não poderá fazer,
por exemplo, com o gato que mantém a propósito de estimação, sendo este também
um "objeto" de sua posse que deixou de interessá-lo. Aliás, não poderá fazer o mesmo
- furar, destruir e jogar fora - em relação a qualquer animal sobre o qual exerça ou não
a posse, seja qual for a espécie, pois tal conduta será classificada como criminosa, na
interpretação do artigo 32 da Lei 9.605/98 (crueldade e maus tratos contra animais).
90
Podemos, então, afirmar que o animal, em especial o silvestre, é um
“objeto especial” ou, sob outro enfoque, um “objeto gravado” de responsabilidades
inerentes àqueles que exercem sobre ele a posse, direito de propriedade, ou ao menos
têm com ele qualquer relação. Na verdade, em face da tutela legal que vem sendo
dispensada ao animal, já não é confortável classificá-lo como “objeto”, mesmo levando
em conta sua condição jurídica de “bem móvel” 39
.
Portanto, em razão das peculiares características dos semoventes40
,
como entes que possuem vida própria, a lei lhes confere particular proteção. Restringe,
portanto, o exercício da posse, especialmente no que se refere ao uso e gozo desses
bens.
39
Os animais em geral são considerados bens móveis, “bens suscetíveis de movimento próprio”, na definição precisa do artigo 47 do Código Civil de 1916, em redação atribuída a Clóvis Bevilacqua, reproduzida no início do artigo 82 do Código Civil de 2001: “são móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social”. 40
Semoventes: “que se move por si próprio” (BORBA, Francisco S. (Org.). Dicionário UNESP de Português Contemporâneo. São Paulo: Editora UNESP, 2004, p. 1270). Termo empregado tradicionalmente, inclusive no meio jurídico, para indicar os animais em geral.
91
6. EXERCÍCIO IRREGULAR DA MANTENÇA E ASPECTOS DE SANÇÃO E
APREENSÃO41
Não se pode ignorar a realidade do irregular exercício da mantença de
animais silvestres a propósito de estimação. Todavia, é preciso analisar as origens
históricas e estudar os aspectos culturais de tal conduta, buscando-se soluções legais
que viabilizem uma compatibilização entre o direito à sadia qualidade de vida que o
meio ambiente permite e a espontânea aproximação entre o homem e espécimes da
fauna silvestre.
Reconhecida a ilegalidade da prática da simples mantença, ainda que
afastada a hipótese de conduta criminosa, o que segue é a investigação do meio eficaz
para coibi-la. Evidentemente, a sanção deve ser sempre razoável e proporcional à
lesividade causada ao meio ambiente, como medida consequência da irregular
intervenção humana no bem público especialmente protegido.
Em seguida, o estudo recai sobre a delicada questão da apreensão do
animal silvestre indevidamente submetido à condição de ente de estimação. Se há
ilegalidade na conduta do possuidor, na esfera penal ou administrativa, o animal
deverá ser apreendido em face de dispositivo legal; porém, na prática, a retirada do
animal do meio doméstico em que já se encontra adaptado pode representar a sua
morte e, portanto, um prejuízo ambiental ainda maior do que aquele que, em tese, já
teria ocorrido em razão de sua ausência no meio natural.
41 O presente estudo, que não esgota o assunto, defendeu a atipicidade da conduta e a necessidade de
regulamentação para a hipótese de “mantença de animal silvestre a propósito de estimação”, com foco em possível sanção e apreensão na esfera administrativa. A reflexão sobre o tema motivou aprofundada análise, sob o ponto de vista histórico (História e Meio Ambiente) na dissertação de mestrado defendida pelo autor, em 2013, em capítulo próprio intitulado: “O Argumento da Mantença a Propósito de Estimação”, que relata a atuação do Policiamento Ambiental no período, a partir da vigência da Lei dos Crimes Ambientais, diante das constatações de cativeiro de animais silvestres a título de estimação, com base na legislação específica e na regulamentação observadas [NASSARO, Adilson Luís Franco. Policiamento ambiental: políticas públicas de meio ambiente e tráfico de animais silvestres (oeste do Estado de São Paulo, 1998 a 2012). Dissertação de mestrado em História. Universidade Estadual Paulista - UNESP, Assis, 2013, p. 99].
92
São circunstâncias que devem ser avaliadas em conjunto, sob o prisma
da legislação em vigor, sem olvidar-se da realidade que, por vezes, o teórico sufocado
em exacerbado academicismo ignora.
6.1 A posse injusta de animais silvestres e a necessidade de incentivo ao
comércio legal
Existem no Estado de São Paulo mais de 500.000 animais da fauna
silvestre brasileira mantidos a propósito de estimação, quase todos bem cuidados, no
interior de residências e quintais, ou seja, em ambiente doméstico. A grande maioria
dos cidadãos que os possuem encontra-se em situação irregular, desprovidos que
estão de permissão, licença, ou autorização para o aproveitamento privado do bem
ambiental.
Os animais preferidos são: papagaios, araras, pássaros diversos
(normalmente canoros, em razão do canto), macacos, tartarugas e outros. Por uma
questão cultural, ou por puro hábito, diversas famílias preferem manter em casa um
papagaio a um cachorro, um macaco a um gato.
Ao refletirmos sobre a razão dessa preferência, podemos concluir que
particularmente alguns animais silvestres são muito desejados porque são mais
vistosos e chamativos que os domésticos tradicionais, o que valoriza sua função
decorativa no ambiente doméstico, afora as habilidades exclusivas de algumas
espécies no que se refere ao canto. Como se não bastassem tantos atrativos,
determinados animais, como o papagaio e algumas araras, têm também a
extraordinária capacidade de repetir, com voz semelhante à humana, o que ouvem à
sua volta, além, é claro, de travar com seu possuidor dedicada relação afetiva.
Nenhum brinquedo alcançaria tamanha eficiência; e, se tal fosse possível, não seria
vendido por menor preço que um papagaio.
93
A realidade do gosto popular pelo animal silvestre mantido principalmente
em ambiente doméstico não é apenas contemporânea. Desde há muito tempo cultiva-
se o hábito de possuir animal silvestre na condição de ente de estimação, exercendo
ele função de companhia ao mantenedor. Tal prática evidenciou-se no Brasil, onde a
diversidade e a quantidade de animais silvestre ao longo dos séculos ensejou um nível
de exploração e aproveitamento privado maior do que o verificado em outros países;
também influenciou esse costume o aspecto de ocupação colonial no primeiro período
de sua história, quando se entendia como de direito dos desbravadores e ocupadores
das terras a simples retirada de todas as riquezas naturais sem qualquer preocupação
com o seu esgotamento, em um território com dimensões continentais.
Hoje, normalmente não é o próprio mantenedor que captura o espécime
na área protegida. Ele o adquire irregularmente do caçador profissional, do criador
ilegal, ou do agenciador, que abastecem o mercado clandestino, operante dentro e
fora das fronteiras do país. Nota-se, por oportuno, que o mercado negro de animais da
fauna silvestre brasileira, que viabiliza a aquisição de boa parte dos espécimes (quase
sempre filhotes), que serão irregularmente mantidos a propósito de estimação, ou para
qualquer outra finalidade, se manifesta em três níveis, mediante ações normalmente
dissimuladas:
1) O vendedor que negocia, em pequena escala, em sua própria casa os
animais que caça, ou cria sem licença, normalmente para a vizinhança ou pessoas
conhecidas.
2) O vendedor que negocia fora de casa, em média escala, animais que
caça, adquire de terceiros ou cria sem licença, vendendo-os para particulares,
discretamente, quase sempre em feiras livres, em locais afastados, ou nos fundos de
lojas que comercializam animais domésticos (pet shops).
3) O vendedor que agencia caçadores e criadores ilegais para abastecer
o mercado clandestino internacional de animais silvestres, comercializando em grande
94
escala e sendo responsável pelo expressivo volume de tráfico ilegal de animais, face à
valorização do caráter de exotismo da fauna silvestre brasileira, especialmente no
exterior.
A irregular mantença de animal silvestre a propósito de estimação,
caracterizada pela posse injusta do espécime, como conduta, não constitui um mal em
si, tal como, por exemplo, o uso de entorpecentes; tanto é verdade que, durante muito
tempo, ninguém questionou o costume da mantença, fortemente enraizado na cultura
de diversas gerações. Por sinal, é possível observar que muitas espécies perpetuaram-
se ao longo tempo justamente por terem sido mantidos espécimes representativos em
cativeiro.
O problema da conduta cinge-se às consequências danosas ao meio
ambiente. Isso porque as áreas preservadas, hoje diminutas em relação às áreas
ocupadas pelo homem, não têm a mesma capacidade de outrora para prover
espécimes ao ambiente doméstico, em razão de tantos interessados que ainda não
podem adquirir o espécime desejado de um criadouro legalizado.
Enfim, a evidente razão pela qual a grande maioria dos mantenedores de
animais silvestres a propósito de estimação encontra-se hoje em situação irregular,
exercendo a posse injusta do bicho, em casa ou em seu quintal, reside no fato de que
o Poder Público demorou a liberar a criação de animais de espécies silvestres
populares para a venda. Se hoje um animal silvestre, nascido em criadouro legalizado
e comercializado para a finalidade de estimação, custa de 10 a 20 vezes mais que um
negociado no mercado clandestino, em passado recente sequer havia disponível
espécime silvestre para comércio legal.
Apesar de ainda incipiente no Brasil, o negócio de criadouro legalizado
felizmente dá sinais de crescimento e já vem colaborando para com a preservação das
espécies silvestres:
95
O comércio ilegal de animais silvestres dá cadeia. Mas já é possível degustar um tenro filé de tartaruga ou manter um tucano engaiolado dentro de casa sem nenhum risco. (...) A primeira espécie silvestre liberada para o manejo comercial foi a tartaruga-da-amazônia, há quase dez anos. Naquela época, o animal estava ameaçado de extinção. A principal causa era a caça ilegal. ‘Apenas a proibição do comércio não ia resolver o problema’, diz o biólogo Francisco Neo, do Departamento de Vida Silvestre do IBAMA. ‘Era preciso criar uma saída para as pessoas que sobreviviam das tartarugas ganharem dinheiro’. Deu certo. Cerca de 700.000 tartarugas serão criadas em cativeiro neste ano, e a espécie agora está longe de qualquer risco. (...) A última fase, iniciada há três anos, começou com a liberação de espécies para venda como animais de estimação. O IBAMA já autorizou a abertura de cinquenta criadouros de aves para esse fim
42.
Finalmente, mesmo compreendendo-se não haver tipificação penal para a
conduta de simples mantença de animal silvestre a propósito de estimação, quando
em situação desautorizada, tal posse injusta de espécime silvestre constitui
aproveitamento privado irregular, objetivamente considerado prejudicial ao ambiente.
Portanto, essa condição enseja ação do Poder Público para a preservação das
espécies animais silvestres e o equilíbrio ecológico; além de incentivos institucionais
para ampliação do comércio regular (para viabilizar a posse justa), devem ser
empenhados instrumentos legais disponíveis no ordenamento jurídico de tutela
ambiental, particularmente na esfera administrativa.
6.2 A preferência popular pelo papagaio e a devida preservação das espécies
da fauna silvestre
O papagaio, em especial, há séculos está associado ao exercício da
companhia, apesar de não ser considerado legalmente animal doméstico. É aquele
que está sempre nos ombros ou próximo do seu possuidor, com ele interagindo graças
à original capacidade de articular palavras, mesmo somente repetindo o que seu
mantenedor diz, ou canta. A partir dessa sua qualidade, forjou-se a imagem do
“papagaio companheiro”, do “papagaio de pirata”, entre outros.
42
COUTINHO, Leonardo de. Bicharada Legal. Revista Veja, nº 08, ano 34, de 28.02.2001, ed. Abril, p. 72.
96
Esse animal, carismático, está presente no imaginário popular de tal
modo que o desenhista norte-americano Walt Disney criou um personagem universal -
carregado de brasilidade - partindo da figura do papagaio, para seus desenhos de
animação, o “Zé Carioca”.
Muitas das pessoas que habitam nas cidades do Brasil se rendem à
graça do animal, sentindo-se bem na companhia de um espécime que traz consigo a
imagem das florestas brasileiras, sendo ele próprio um símbolo da área verde. Esse é
um paradoxo, na medida em que se valoriza sua presença no meio doméstico,
lembrando-se o valor do meio natural de onde ele próprio muitas vezes foi retirado.
Enfim, contrastam a sua forma e suas cores silvestres no ambiente artificial urbano,
nos quintais e espaços reservados ao convívio familiar.
Não gratuitamente nos referimos a esse psitacídeo: é possível observar
que mais da metade dos animais silvestres mantidos por particulares, de forma regular
ou irregular, para o propósito de estimação no Brasil são exatamente papagaios43
.
Mesmo diante do princípio de que a ninguém é dado escusar-se pelo não
cumprimento da lei, alegando desconhecê-la, a verdade é que grande parte dos
adquirentes de papagaios, pouco esclarecidos, não agem de má-fé: faz parte de sua
cultura a convivência doméstica com esses animais silvestres. Na sua concepção, o
espécime que mantém em casa é um animal doméstico simplesmente em razão do
local em que se encontra, ou seja, no ambiente doméstico, e não em razão da
procedência ou classificação da espécie do bicho; ainda, deduzem os mantenedores
que, por se tratar o animal “de estimação”, e bem cuidado, é ele doméstico.
43 Psitacídeos (Psittacidae): conjunto de aves da ordem psittaciformes, como araras, maracanãs,
periquitos, papagaios e afins (família psittacidae). Distribuídas pela zona tropical do globo, de onde se irradiaram a áreas subtropicais e até frias como a Patagônia. O Brasil é o país mais rico do mundo em Psittacidae. Nos primeiros mapas, de 1500 em diante, esta riqueza já era plenamente evidenciada, sendo o país designado como “Terra dos Papagaios” (Brasilia sive terra papagallorum). Quanto à morfologia, destaca-se o bico alto e recurvado lembrando o das rapineiras, tendo até uma cera na base (SICK, Helmut. Ornitologia Brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 351).
97
Vale, nesse momento, uma breve exposição sobre a visão popular do
animal doméstico e do animal silvestre, e suas implicações face à necessidade de
preservação das espécies, colocando-se como exemplo o papagaio.
Não obstante o preceito legal que qualifica juridicamente algumas
espécies animais como integrantes da fauna doméstica, o próprio adjetivo “doméstico”
é habitualmente empregado para considerar tudo aquilo se refere à própria casa, à
vida familiar, ao lar, ou, ainda, à saúde e também ao conforto de seus moradores. No
senso comum, doméstico é o que se encontra nos limites da casa ou do quintal,
inclusive os animais que vivem, ou são criados nesse espaço, pouco importando a sua
espécie.
O possuidor desses bens, nos limites de sua residência, considera-os
intocáveis pelo simples fato de se encontrarem sob sua guarda naquele local de
privacidade garantida em lei, sem que qualquer outra pessoa ofereça resistência a tal
domínio e, finalmente, em concessiva disposição, por que mantém o animal bem
cuidado. Nessa linha de entendimento, o raciocínio dele é o seguinte: “O animal é meu
porque está comigo, na minha casa e estou cuidando bem dele”: uma visão
patrimonialista, de simples acumulação de bens.
Para o cidadão pouco esclarecido, o papagaio que mantém em casa é
um “animal doméstico” e de sua propriedade. Está errado. Quando muito o bicho se
encontra “domesticado” e ainda é silvestre porque a lei assim o qualifica (aliás, por
exclusão, porque existem tão somente dispositivos legais que especificam quais são as
espécies domésticas). Esse papagaio, então, é integrante da fauna silvestre nacional,
propriedade do Estado, e está sendo mantido por particular a propósito de estimação.
E a posse pode ser justa ou injusta, dependendo da existência, ou não, do instrumento
de permissão, licença, ou autorização para a finalidade de aproveitamento privado do
bem ambiental.
98
O exemplo do papagaio é bem ilustrativo da problemática que envolve a
mantença de animal silvestre a propósito de estimação no Brasil, destacadamente
sobre dois pontos de observação:
1) A sociedade, de uma forma geral, insiste em manter no seio doméstico
um animal silvestre, por suas qualidades físicas e comportamentais sem similar no
conjunto da fauna identificada como doméstica, comprovando a força do costume, em
pese o caráter irregular de tal conduta quando desprovida do instrumento legal
permissivo. A espécie em análise foi eleita por diversas gerações para o desempenho
de uma das funções da fauna, qual seja, a companhia ao homem e, de fato, exerce-a
muito bem.
2) A simples mantença a propósito de estimação não constitui um mal em
si e o prejuízo ambiental é decorrente propriamente da retirada de espécimes
selvagens do meio natural (usualmente quando ainda filhotes). É preciso preservar os
espécimes selvagens remanescentes nas áreas protegidas para que seja possível a
perpetuação da espécie, com todas as suas características físicas e comportamentais
originais.
3) Enfim, timidamente, surgem criadouros devidamente legalizados, que
ainda não são capazes de atender à demanda, em razão da pouca oferta e do preço
elevado do seu produto, que carrega o selo da preservação ambiental.
De fato, hoje um filhote de papagaio é adquirido por R$ 50,00 no
mercado clandestino (equivalente a 25 dólares), ao passo que no mercado legal um
filhote da mesma espécie (quando disponível) é vendido ao preço de R$ 500,00 à R$
1.000,00 (equivalente de 250 a 500 dólares). Portanto, os criadouros legalizados
atendem apenas parcela da sociedade brasileira, ou seja, as classes média e alta, eis
que, obviamente, o interessado de parcos recursos precisaria de um financiamento
para adquirir um animal silvestre para estimação, o que se apresenta absurdo ao
senso comum.
99
Voltamos, então, a uma questão de ordem econômica à ser solucionada;
um problema de oferta e procura que deverá ser resolvido na medida em que se
demonstrar real interesse político na preservação ambiental. Como alternativa, os
criadores legais poderão receber, por exemplo, incentivos fiscais em iniciativa do
Estado fundamentada no interesse comum, que é a perpetuação das espécies
silvestres. A fórmula a ser alcançada, simples, é a seguinte: “nós queremos ter um
papagaio em casa”; e mais, “nós precisamos preservar o papagaio na área
verde”; e o resultado, “nós podemos e vamos pagar por um papagaio oriundo de
criadouro legalizado”.
Por fim, diante do processo de evolução das espécies animais, em futuro
não muito distante, o papagaio que encontrarmos nos poleiros dos quintais pertencerá
a mais uma espécie doméstica, reconhecida como tal e reproduzida em quantidade e
preços compatíveis com a expectativa da sociedade quanto ao seu aproveitamento
privado. Tal mudança, com efeito vislumbrada pela gestão racional dos bens
ambientais, será a própria garantia de que a espécie equivalente, no meio selvagem,
será perpetuada junto às áreas protegidas com todas as suas características físicas e
comportamentais originais.
6.3 Eventual sanção para a posse injusta na mantença de animal silvestre a
propósito de estimação.
O parágrafo 3o, do inciso VII, do artigo 225, da Constituição Federal,
estabelece que “as condutas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores,
pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente
da obrigação de reparar os danos causados”.
Logo na sequência da Lei dos Crimes Ambientais (de 1998), o Decreto
3.179/99 (federal) regulamentou a aplicação das sanções às infrações ambientais, na
esfera administrativa, especificando as sanções às infrações administrativas (desde
100
advertência, até a reparação dos danos causados). Esse Decreto veio a ser revogado
em 2008 por outro, o Decreto (federal) 6.514/08 (que teve mudanças em sua redação
no mesmo ano pelo Decreto 6.686/08). O novo Decreto manteve a estrutura de
regulamentação das providências administrativas na mesma sequência dos
enquadramentos possíveis a partir do texto da Lei dos Crimes Ambientais, sem
grandes alterações.
Destaca-se o artigo 24 do Decreto 6.514/08, sobre as providências
administrativas para as condutas do art. 29 da Lei dos Crimes Ambientais. Os seus
parágrafos 4º e 5º trataram da chamada “guarda doméstica”, flexibilizando a aplicação
de multa, com base no texto da Lei dos Crimes Ambientais e proibindo a aplicação de
sanções no caso de entrega voluntária de animais, como segue:
§ 4º No caso de guarda doméstica de espécime silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode a autoridade competente, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a multa, em analogia ao disposto no § 2o do art. 29 da Lei no 9.605, de 1998
44.
§ 5º No caso de guarda de espécime silvestre, deve a autoridade competente deixar de aplicar as sanções previstas neste Decreto, quando o agente espontaneamente entregar os animais ao órgão ambiental competente
45.
Se considerarmos a atipicidade da conduta de “mantença a propósito de
estimação” (que defendemos), o referido parágrafo 2º do artigo 29 da Lei dos Crimes
Ambientais (citado para analogia) deve ser relacionado à guarda em ambiente
doméstico para fins de obtenção de alguma vantagem pessoal, econômica, ou para
utilização indevida, em qualquer finalidade diversa da simples mantença. Se para
esses casos a lei já permite deixar de aplicar a multa (em analogia ao perdão judicial
do crime correspondente), então, caberá igualmente, para a conduta de simples
mantença (de menor gravidade), a possibilidade de o agente fiscalizador não aplicar a
44
“No caso de guarda doméstica de espécie silvestre não considerada ameaçada de extinção, pode o juiz, considerando as circunstâncias, deixar de aplicar a pena”. 45
O Decreto anterior, 3.179/99 (revogado), já havia previsto as mesmas disposições no seu artigo 11, parágrafos 2º e 3º.
101
multa quando a espécie silvestre respectiva - do animal em mantenimento - não estiver
ameaçada de extinção (pressupondo-se, ainda, o bom trato ao animal para o
reconhecimento da mantença); todavia, não resolvemos, ainda, a questão do
enquadramento administrativo da conduta de mantença.
No Estado de São Paulo, as especificações de enquadramentos
administrativos para imposição do Auto de Infração Ambiental foram estabelecidas em
sucessivas Resoluções da Secretaria do Meio Ambiente (SMA), órgão criado em 1986,
com fundamento nos incisos VI e VII, do artigo 23, da Constituição Federal46
e no
inciso VI, do artigo 24, também da Constituição Federal47
.
A sequência é a seguinte: a Resolução SMA 27, de 1990, instituiu o Auto
de Infração Ambiental (AIA) e estabeleceu normas e procedimentos referentes à sua
aplicação e controle (alterada pela Resolução SMA nº 82, de 1998); já a Resolução
SMA 28, também de 1990 (alterada pela Resolução SMA nº 83, de 1998), instituiu as
tabelas de valores de multas para aplicação dos AIA; as duas Resoluções foram
revogadas pela Resolução SMA 37, de 2005, que, de modo consolidado, dispôs sobre
as responsabilidades administrativas e infrações ambientais no Estado de São Paulo.
Na sequência, passou a vigorar a Resolução SMA 32, de 2010, revogando a anterior
(37, de 2005), com alterações posteriores em seus dispositivos48
.
Ocorre que, entre as atividades irregulares listadas nas Resoluções, não
foi prevista a “mantença”, “manutenção” ou “posse injusta” de animal silvestre para o
propósito de estimação. Dos enquadramentos existentes nos seus dispositivos, o que
46
“É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. VII- preservar as florestas, a fauna e a flora”. 47
“Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...) VI – florestas, caça, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição”. 48
O parágrafo 5º do artigo 21 da Resolução SMA 32, de 2010, alterada pela Resolução SMA 78, de 2010 e Resolução SMA 23, de 2012, permitiu à autoridade policial militar ambiental que deixe de multar os possuidores irregulares, observadas as circunstâncias, no caso de se constatar guarda doméstica de animal silvestre de espécie não considerada ameaçada de extinção.
102
mais se aproxima é a “guarda”, ou “tem em cativeiro ou depósito” (referente às
condutas do inciso III, do parágrafo 1º, do artigo 29 da norma penal); todavia,
defendemos que para essas condutas a finalidade é a econômica (não a estimação),
tal como as demais previstas no mesmo dispositivo, todas relacionadas ao comércio
ilegal.
Ainda, alguns intérpretes sugerem o enquadramento na conduta
“utilização”, para fins administrativos, referente ao caput do mesmo artigo 29 da norma
penal; porém, conforme já amplamente discutido e, enfim, reconhecido pela
jurisprudência, o aproveitamento privado na modalidade “mantença a propósito de
estimação” não configura a utilização (TRF, 3a Região – 1
a T. – AC – Rel. Ramza
Tartuce – DJU 22.03.1994 – RJ 200/131 / TRF 1a Região – 3
a T. – Rec. – Rel.
Tourinho Neto – RJ 196/98 / TRF 3a Reg., Acr. 03006148/SP 2
a T., relator Juiz Célio
Benevides, julgado em 10.12.1996 / TRF 3a Reg., Acr. 03057749/SP, 2
a T., relator
Juíza Sílvia Steiner, julgado em 19.11.1996).
No nosso entender, a matéria poderia ainda ser regulamentada para
fundamentar uma atuação preventiva e eficaz, mediante fiscalização do
aproveitamento privado do recurso ambiental fauna silvestre, na modalidade estudada,
reconhecida a falta de tipicidade na esfera criminal. Desse modo, poderia o agente
fiscalizador, “considerando as circunstâncias”, deixar de aplicar a multa, conforme o
caso.
A conduta lesiva ao meio ambiente pode não configurar crime, mas
somente infração administrativa, tal como, por exemplo, a prática de pesca profissional
ou de pesca amadora sem as licenças específicas para tais atividades. Para tanto, há
que existir regulamentação adequada a esse fim.
Da mesma forma como o exercício da pesca, que é autorizada mediante
licença expedida pelo órgão público competente (IBAMA), para o aproveitamento
103
privado de recursos da fauna ictiológica, a posse justa do animal silvestre, para o
propósito de estimação, é obtida mediante instrumento público permissivo, no caso de
animal oriundo de criadouro legalizado. Ainda na comparação com as regras proibitivas
e permissivas no que diz respeito à pesca, observa-se que o aproveitamento irregular
da fauna ictiológica (que, aliás, também é integrante da fauna silvestre, porém, com
normatização específica) pode também constituir crime, como por exemplo, a pesca
em período proibido ou em lugares interditados por órgão competente e a pesca
mediante uso de explosivos ou substâncias tóxicas (respectivamente artigos 34 e 35,
da Lei 9.605/98).
Assim, dependendo do nível de dano (ou perigo de dano) ao meio
ambiente, compreende-se que a conduta irregular deve ser coibida na esfera
administrativa ou, cumulativamente, na esfera administrativa e penal (sem prejuízo da
reparação de danos eventualmente causados), com fundamento nas disposições
legais e regulamentares que disciplinam o aproveitamento privado do bem ambiental49
.
49
Apesar da tese defendida no presente estudo e a continuidade da atuação do Policiamento Ambiental em São Paulo aplicando por mais de uma década os termos do Boletim Técnico 2, de 2000, já referido (com a lavratura de Termo ou Boletim de Constatação, no caso de boas condições de “guarda doméstica” de animal silvestre de espécie não ameaçada de extinção), no ano de 2012 houve mudança na postura institucional do órgão de fiscalização, harmonizando-a com os termos da Resolução CONAMA 384, de 2006, que, ao tratar da possibilidade de “depósito doméstico provisório de animais silvestres”, determinou também a imposição de Auto de Infração Ambiental e respectivo procedimento penal (nos termos do parágrafo 2º, do artigo 5º, da mesma Resolução). Nota-se que a edição de Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA obriga os órgãos do Sistema Nacional de Meio Ambiente - SISNAMA e, por consequência, o Sistema Estadual de Administração de Qualidade Ambiental, Proteção, Controle e Desenvolvimento do Meio Ambiente e Uso Adequado dos Recursos Naturais – SEAQUA e, por decorrência, à Polícia Militar Ambiental, nos termos do parágrafo único do artigo 195 da Constituição do Estado de São Paulo e do Termo de Cooperação SSP/SMA de 2010, no que concerne aos atos administrativos em face de infrações administrativas ambientais. Assim, sobreveio a Ordem de Serviço nº CPAmb-136/30.2/12, de 26 de junho de 2012, revogou o Boletim Técnico 2, de 2000, e determinou a padronização de posturas dos policias militares ambientais nas ocorrências de animal silvestre em cativeiro; no caso de verificação de manutenção para “finalidade exclusiva de estimação e o(s) animal(ais) não está(ão) em listas de ameaçados de extinção e/ou maltratado e/ou em local inseguro” (subitem 11.9), é lavrado Auto de Infração Ambiental, impondo as sanções de advertência em termo próprio e apreensão do(s) animal(ais) silvestre(s) com sua destinação formal ao próprio possuidor mediante Termo de Destinação de Animais, Materiais e/ou Produtos Apreendidos, além da lavratura de Boletim de Ocorrência Ambiental e remessa de ofício à autoridade de polícia judiciária local (Distrito de Polícia Civil) comunicando a infração penal para providências cabíveis na sua esfera de atribuições (“procedimento penal”).
104
6.4 A questão da apreensão do animal silvestre
Um grande problema que se apresenta ao órgão fiscalizador é
exatamente a destinação do animal silvestre, que deverá ser apreendido quando a
conduta do possuidor configure infração penal, ou mesmo simples infração
administrativa.
A Lei 9605/98 prevê, no Capítulo “Da apreensão do produto e do
instrumento de infração administrativa ou de crime”, que:
Art. 25. Verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos. § 1
o. os animais serão libertados em seu ‘habitat’ ou entregues a
Jardins Zoológicos, Fundações ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados.
Para o caso de infração administrativa, o Decreto 3.179/99 estabelece,
nos incisos I e II, do parágrafo 6o, do seu artigo 2
o, que:
I – os animais, produtos, subprodutos, instrumentos, petrechos,
equipamentos, veículos e embarcações de pesca, objeto de infração administrativa serão apreendidos, lavrando-se os respectivos termos.
II – Os animais apreendidos terão a seguinte destinação:
a) libertados em seu hábitat natural, após verificação da sua adaptação às condições de vida silvestre; b) entregues a jardins zoológicos, fundações ambientalistas ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados; ou c) na impossibilidade de atendimento imediato das condições previstas nas alíneas anteriores, o órgão ambiental autuante poderá confiar os animais a fiel depositário na forma dos arts. 1.265 e 1.282 da Lei 3.071, de 1
o de janeiro de 1916, até implementação dos termos antes
mencionados.
Ocorre que, quando constatada a posse injusta de animal silvestre na
situação comum de simples mantença a propósito de estimação - irregularidade que no
nosso entendimento deve ser tratada na esfera administrativa e não na esfera penal -,
quase sempre o espécime já se encontra domesticado. Nessa circunstância, torna-se
inviável a soltura do animal em seu hábitat natural. Domesticado, o espécime não
possui mais características comportamentais que tornem possível sua vida no meio
105
selvagem; não conseguirá mais disputar alimentação ou espaço com outros animais no
ambiente selvagem, nem conseguirá abrigar-se ou agrupar-se com outros de sua
espécie e, portanto, não poderá reproduzir-se.
A segunda opção, de entrega do animal apreendido para jardins
zoológicos, fundações ambientalistas ou entidades assemelhadas, é quase sempre
impraticável, pois essas organizações já se encontram com grande número de
indivíduos das espécies que normalmente são escolhidas para o ambiente doméstico;
não possuem espaço adequado para a acomodação ou meios suficientes para manter
os animais apreendidos e, com essa justificativa, recusam-se a receber, por exemplo,
mais um papagaio ou um macaco-prego domesticado.
A “entrega” do animal pressupõe a aceitação da entidade, pois o objetivo
da legislação ambiental é preservar a integridade do animal silvestre apreendido e tal
certamente não ocorrerá, inexistindo voluntariedade por parte de quem o recebe.
Evidentemente que a entrega de um animal silvestre apreendido, pertencente à
espécie ameaçada de extinção, para zoológico, fundação ambientalista ou entidade
assemelhada é bem mais fácil, em razão da sua raridade e o interesse que ele
desperta.
A terceira e opção é a de designar como depositário fiel do animal
silvestre apreendido um particular que possa mantê-lo, o que implica em que este
assuma a responsabilidade de assistência, de providenciar espaço em cativeiro e
alimentação adequados, entre outras condições necessárias ao bem estar do
espécime. Quase sempre quem pode cuidar adequadamente do animal, nessas
circunstâncias, é o próprio possuidor que, até então, vinha exercendo sobre ele a
posse injusta (desde que bem cuidado, insiste-se).
Vislumbra-se, portanto, a possibilidade de deixar com o mantenedor o
animal apreendido, para ele assumir a condição de depositário fiel, dando continuidade
ao bom cuidado dispensado ao animal, agora em atendimento ao interesse público e
sem prejuízo de eventual sanção administrativa. Entendemos que essa é a melhor
106
solução para o problema da destinação do animal silvestre apreendido, desde que
constatado que o espécime está bem cuidado e não integra espécie ameaçada, ou em
vias de extinção. Diferentemente, o animal silvestre raro (pertencente à espécie
ameaçada de extinção), após ser apreendido, deverá ser colocado sob os cuidados
especializados de entidade que possa, em nível ideal, eventualmente aproximá-lo de
outro espécime de sexo oposto, do mesmo grupo animal, para a tentativa de
reprodução.
Para ilustrar a difícil questão da apreensão do animal silvestre, diante dos
diversos aspectos já abordados, citamos trecho do Boletim Técnico 2, “Guarda
Doméstica de Espécie Silvestre a Título de Estimação”50
, do Comando de Policiamento
Florestal e de Mananciais do Estado de São Paulo, em 2000, atual Comando de
Policiamento Ambiental:
É preciso aplicar a legislação ambiental de forma coerente e consciente, senão vejamos: ocorreu no litoral do Estado de São Paulo em 1988, após a divulgação de que a nova Lei de Crimes Ambientais estava em vigor, centenas de pessoas portando seus animaizinhos de estimação dirigiram-se ao Orquidário de Santos (pequeno zoológico) na tentativa de se livrarem de seus bichinhos ou de receber orientação sobre o que fazer, ‘pois não pretendiam ir para cadeia ou responder a processo criminal’. A Diretora do estabelecimento municipal, que já não possuía mais espaço para novas aquisições de animais silvestres, apenas orientou que voltassem para suas casas e permanecessem com seus animais, uma vez que lá recebiam carinho, alimento, dedicação e segurança. Disse ela que não se cogitava, de nenhuma forma, a hipótese de se tentar uma reintrodução ou relocação dos animais em ambiente selvagem, pois eles morreriam. Estima-se que hoje existem mais de meio milhão de animais silvestres vivendo em cativeiro em todo o Estado de São Paulo, na condição de animal de estimação, recebendo tratamento razoável, não havendo qualquer possibilidade de dar-lhes outra destinação melhor e mais adequada, por falta de estrutura ou de acompanhamento técnico especializado, até porque o animal silvestre depois de domesticado, perde suas características naturais de sobrevivência, não podendo mais ser reintegrado ao seu hábitat natural.
Existe, também, a preocupação de não submeter o animal silvestre a
condições que possam causar prejuízo à sua integridade física ou levá-lo a morte em
50
BOLETIM TÉCNICO 2, op. cit., p. 03.
107
razão da mudança brusca de sua rotina. Por maior cuidado que se dedique ao
transporte, são comuns casos em que o animal apreendido morre estressado, pouco
tempo depois de ter sido retirado do possuidor irregular, resultando, então, inútil o
esforço de preservar o bem ambiental, objetivo principal de todo o trabalho preventivo
e repressivo dos órgãos de fiscalização ambiental.
Na esteira dessa preocupação, vem, ainda, a auto-avaliação inquietante
que a autoridade fiscalizadora faz em razão de sua conduta (nem sempre em
condições favoráveis, é bom destacar), buscando a forma correta de agir, sem cometer
arbitrariedade, levando em conta que pela eventual prática de excesso poderá ser
responsabilizado tanto quanto pela sua omissão. A respeito dessa difícil situação, de
inquietante dúvida sobre quando termina o discricionário e quando começa o arbitrário,
cita-se a preciosa observação de Álvaro Lazzarini, registrada em seu estudo “Direito
Administrativo Aplicado ao Meio Ambiente”:
Essa, na realidade do dia-a-dia, a tormentosa questão com que se defrontam os operadores do direito público, sejam juristas ou simples policiais que desempenham suas ingratas missões nas ruas, nas matas e florestas, em locais de difícil acesso, sem falar no transtorno representado pelo transporte e guarda de animais e aves apreendidos, colocando-lhes a incolumidade física em risco. Essas missões policiais são desempenhadas fora do recesso dos gabinetes acarpetados e refrigerados, longe dos manuais de Direito Administrativo ou de Direito Processual Penal e, no caso do meio ambiente, sem tempo de pedir ao infrator oportunidade de verificar a completa legislação ambiental
51.
Assim, na prática, a apreensão do animal silvestre é uma grande
dificuldade enfrentada na área de fiscalização ambiental e a autoridade responsável se
vê obrigada a decidir rapidamente pela apreensão, ou não, o que implica
necessariamente no reconhecimento, ou não, de prática criminosa e/ou infração
administrativa.
Nessa linha de interpretação, é oportuno trazer a observação de João
Leonardo Mele, sobre os princípios administrativos aplicados à polícia de proteção
ambiental:
51
LAZZARINI, Álvaro. Estudos de Direito Administrativo. 2a edição. São Paulo: RT. 1999, p. 294.
108
Quando não estamos diante de um crime no qual a polícia administrativa efetua a repressão imediata, detendo os autores do fato e apresentando os instrumentos da prática da irregularidade, a polícia administrativa, representada no caso do meio ambiente, pela Polícia Militar, através dos Batalhões Florestais, executa a repressão administrativa. A repressão administrativa, que busca salvaguardar o interesse coletivo, sobrepondo-o sobre os interesses individuais, pode ser levada a efeito com aplicação de multas, interdição de atividades, apreensão de bens ambientais, de instrumentos utilizados na prática da infração etc. Nesse caso, o agente do Estado usa o Poder de Polícia
52.
No âmbito do Estado de São Paulo, foi adotada em 1998 uma
padronização na atuação dos policiais militares especializados em polícia ambiental,
reforçada em 2000 com o advento do referido Boletim Técnico 2, para uma maior
segurança no desempenho de suas funções e efetivação de uma doutrina institucional
de uniformização de procedimentos, como observou Marcelo Robis Francisco Nassaro:
Foi editada a Nota de Instrução N° CPFM 007/30, em 1998, através da qual é determinado ao contingente do Policiamento Florestal e de Mananciais quando em ocorrências envolvendo animais da fauna silvestre nacional mantidos em cativeiro, adotar os seguintes procedimentos operacionais: 1. Verificar se é animal da fauna silvestre nacional. 2. Verificar se o animal está bem tratado, observando para tanto água, alimentação, higiene, espaço adequado, segurança, entre outros e, 3. Verificar se é animal considerado ameaçado de extinção, não só através da Lista Nacional de Animais Ameaçados de Extinção, editada
através da Portaria IBAMA N 1.522/89, mas também a editada através
da Lei Estadual N 42.838/98. Sendo animal da fauna silvestre nacional, estando ele bem alimentado, não sendo ameaçado de extinção e não havendo mínimos indícios de comércio o animal deverá ser deixado com seu possuidor, sendo elaborado um Boletim de Ocorrência do Policiamento Florestal e de Mananciais que relate o acontecimento e o atendimento da denúncia ambiental. Caso a animal esteja mal tratado, sendo a constatação verificada através de um laudo expedido por pessoa competente, o infrator deverá ser conduzido ao Distrito Policial pelo incurso no artigo 32 da lei de Crimes Ambientais. E, por último, sendo o animal considerado ameaçado de extinção também deverá ser retirado de seu possuidor, porque neste caso em específico a permanência desse animal em cativeiro poderá representar a extinção da espécie, que por não estar em Instituições (Zoológicos) não podem ser reproduzidos.
52
MELE, op. cit., p. 174.
109
Perceba-se que há uma lógica nesta postura do Policiamento Florestal e de Mananciais do Estado de São Paulo que parece a mais adequada e a mais sensível diante da realidade que se apresenta
53.
Torna-se claro que essa coerente linha de atuação de Polícia Ambiental,
no exemplo do Estado de São Paulo (que basicamente perdurou até 2012), teve seu
fundamento no exercício discricionário do Poder de Polícia, que por sua vez é limitado
por três conjuntos de regras de avaliação, que constituem fatores para valoração do
ato administrativo, doutrinariamente conhecidos como princípios: o da legalidade, o da
razoabilidade e o da realidade.
Positivamente, devem ser analisados: o grau da lesividade imposta ao
meio ambiente em face dos atos praticados, relativos à posse injusta do animal
silvestre, em confronto com a legislação vigente (legalidade); a relação de coerência
entre a finalidade da prescrição legal e os atos praticados pelo órgão fiscalizador, no
empenho do Poder Público pela preservação do ambiente ecologicamente equilibrado
(razoabilidade); e, finalmente, a adoção de medidas plausíveis, compatíveis com a
situação fática, levando-se em conta a possibilidade de realização de consequências
positivas à preservação dos valores ambientais protegidos (realidade)54
.
53
NASSARO, op. cit., p. 48. 54
Como explicado na nota 49, apesar da tese defendida no presente estudo e a continuidade da atuação do Policiamento Ambiental em São Paulo aplicando por mais de uma década os termos do Boletim Técnico 2, de 2000 (com a lavratura de Termo ou Boletim de Constatação, no caso de boas condições de “guarda doméstica” de animal silvestre de espécie não ameaçada de extinção), no ano de 2012 houve mudança na postura institucional do órgão de fiscalização, harmonizando-a com os termos da Resolução CONAMA 384, de 2006, que, ao tratar da possibilidade de “depósito doméstico provisório de animais silvestres”, determinou também a imposição de Auto de Infração Ambiental e respectivo procedimento penal (nos termos do parágrafo 2º, do artigo 5º, da mesma Resolução). Assim, sobreveio a Ordem de Serviço nº CPAmb-136/30.2/12, de 26 de junho de 2012, que revogou o Boletim Técnico 2, de 2000, e determinou a padronização de posturas dos policias militares ambientais nas ocorrências de animal silvestre em cativeiro; no caso de verificação de manutenção para “finalidade exclusiva de estimação e o(s) animal(ais) não está(ão) em listas de ameaçados de extinção e/ou maltratado e/ou em local inseguro” (subitem 11.9), é lavrado Auto de Infração Ambiental (inciso III, do parágrafo 3º do art. 21 da Resolução SMA 032/2010), independentemente da quantidade de animais encontrados, impondo as sanções de advertência em termo próprio e de apreensão do(s) animal(ais) silvestre(s) com sua destinação formal ao próprio possuidor mediante Termo de Destinação de Animais, Materiais e/ou Produtos Apreendidos, além da lavratura de Boletim de Ocorrência Ambiental e remessa de ofício à autoridade de polícia judiciária local (Distrito de Polícia Civil) comunicando a infração penal para providências cabíveis na sua esfera de atribuições (“procedimento penal”).
110
7. CONCLUSÕES
A evolução da tutela dos recursos da fauna tem sido verificada pela
compreensão de que esse bem ambiental é esgotável, tanto quanto o são todos os
outros. O expressivo crescimento populacional na segunda metade do século XX e a
ocupação desorganizada da superfície terrestre, entre outros fatores, colocou em risco
a perpetuação de espécies silvestres, hoje preservadas em áreas protegidas e até em
cativeiros.
Grande parte das leis que trouxeram dispositivos de proteção aos animais
surgiu como reflexo da visão de meio ambiente equilibrado, de que são partes
indissociáveis a fauna e a flora na sua total diversidade, colocando-se o ser humano
como integrante desse meio físico, destacada a sua condição de principal agente
modificador do ambiente.
No Brasil, a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, consolidou textos
legais que tratavam de crimes ambientais, entre eles a Lei 4.771/67 (Lei de Proteção à
Fauna), com as modificações da Lei 7.804/89 e o Decreto-Lei 221/67 (Código de
Pesca). A “Lei dos Crimes Ambientais”, como passou a ser conhecida, trouxe
disposições na esfera penal (pela previsão de crimes) e também na esfera
administrativa (pela previsão de infrações administrativas).
Abordou a lei, também, aspectos processuais e apresentou novas
definições aos delitos, entre eles os crimes contra a fauna silvestre, considerando
conjuntamente a fauna silvestre, que era autonomamente protegida mediante a Lei
5.197/67, e a ictiológica, que era autonomamente regulada pelo Decreto-Lei 221/67
(Código de Pesca).
Especificamente o artigo 29 dessa lei pode suscitar a interpretação de
que a conduta de simples mantença de animal silvestre a propósito de estimação
constitui crime. Porém, as características peculiares dessa modalidade de
aproveitamento da fauna silvestre impõem uma avaliação menos rigorosa da conduta
irregular, longe da esfera de responsabilidade penal. E o texto da Lei dos Crimes
111
Ambientais não traz tipificação para a conduta em estudo, como é possível
demonstrar.
O aproveitamento do recurso ambiental na modalidade de mantença de
animal silvestre a propósito de estimação não constitui forma de “utilização” da fauna
(conduta relacionada no caput do artigo 29), como já reconhecido nos Tribunais. Já o
parágrafo 2o, do artigo 29, quando estabelece a hipótese de perdão judicial, reporta-se
à conduta do infrator que guarda em sua residência ou quintal (por isso guarda
doméstica) espécime da fauna silvestre, exatamente com propósito mercantil, no
mesmo sentido da guarda citada no inciso III, do parágrafo 1o.
Reforça tal interpretação, a verificação de que há semelhanças entre o
artigo 29 da Lei dos Crimes Ambientais e o artigo 12 da Lei 6.736/76 (que,
anteriormente, dispôs sobre os crimes relacionados ao tráfico de entorpecentes). O
legislador em 1998 teve como evidente referência e fonte de vocabulário a Lei
6.736/76, pois, tal como o tráfico de entorpecentes, o tráfico de animais silvestres
passou a representar um desafio para o Poder Público. Da mesma forma, exigiu-se
uma abordagem ampla de todas as condutas relacionadas à abominável prática de
comércio do bem ambiental, quando o legislador se propôs a descrever no inciso III do
parágrafo 1o, da Lei 9.605/98, o crime contra a fauna silvestre sob o específico enfoque
da exploração econômica desses recursos.
Existe substancial diferença nos significados dos verbos “ter" e “manter”.
Apesar de classificado como propriedade da União, nos termos da Lei 4.771/67, o
comerciante irregular tem o animal silvestre nas mãos como simples objeto de venda e
o negocia como um eletrodoméstico ou qualquer outro bem móvel. Já o mantenedor, a
propósito de estimação, destina ao animal silvestre um esforço pessoal de quem se
sente responsável pela manutenção de sua vida e mesmo de seu bem-estar. Ao
contrário do comerciante, o mantenedor não age para desfazer-se do animal e auferir
lucro, e, sim, para preservá-lo.
112
A simples mantença doméstica de animal silvestre (que não pertence à
espécie em extinção) não representa um mal em si e muitas espécies perpetuaram-se
ao longo do tempo justamente por terem sido mantidos espécimes representativos em
cativeiro. Por sinal, o IBAMA vem liberando, mediante rigoroso controle, a criação de
espécimes para venda como animal de estimação e já é possível hoje manter
regularmente um animal em ambiente doméstico.
O exemplo do papagaio, animal que representa mais da metade dos
silvestres possuídos irregularmente, é bem ilustrativo da questão da mantença a
propósito de estimação no Brasil. A sociedade, de uma forma geral, insiste em manter
no meio doméstico um animal silvestre, por suas qualidades sem similar, apesar do
caráter irregular de tal conduta quando desprovida do instrumento legal permissivo.
Não obstante, impõe-se a necessidade de preservar os espécimes selvagens
remanescentes nas áreas protegidas. Como solução, surgem criadouros devidamente
legalizados, porém, ainda sem capacidade para atender à demanda, em razão da
pouca oferta e do preço elevado do seu produto.
A questão de ordem econômica deve ser resolvida, a fim de que seja
possível compatibilizar o interesse social e a necessidade de preservação ambiental.
Diante do processo de evolução das espécies animais, o “papagaio caseiro” será mais
uma espécie doméstica, reconhecida e reproduzida em quantidade e preços
compatíveis com a expectativa da sociedade quanto ao seu aproveitamento privado e
essa inovação garantirá a perpetuação da espécie equivalente, nas áreas protegidas.
Por outro lado, na esfera administrativa pode haver a imposição de
adequada sanção, que coibirá a posse injusta do animal silvestre, porque a conduta
lesiva ao meio ambiente pode não configurar crime, mas somente infração
administrativa, tal como, por exemplo, a prática de pesca profissional ou de pesca
amadora sem as licenças específicas para tais atividades. Caso seja constatada
conduta criminosa (comércio ilegal, utilização, maus tratos, entre outras), o
procedimento será a prisão em flagrante delito do infrator ou a elaboração do Termo
113
Circunstanciado (para os crimes com rito processual estabelecido na Lei 9.099/95),
além da responsabilização administrativa cabível.
Note-se que, em ambos os casos (crime ou infração administrativa),
haverá apreensão do animal (artigo 25 da Lei 9.605), mas se discute a possibilidade,
no caso específico da mantença a propósito de estimação (se admitida essa conduta
como infração), de designação do autuado como depositário fiel (com o animal bem
cuidado e não pertencente à espécie em risco de extinção).
Defende-se como viável a solução do depósito com o autuado, para os
casos sem a configuração de crime, também em razão de que a legislação não a
proíbe. Devem ser levadas em conta: a impossibilidade de soltura no hábitat natural
pela ausência de comportamento asselvajado e as dificuldades para colocação de
animais apreendidos em jardins zoológicos, fundações ou entidades assemelhadas
(sob a responsabilidade de técnicos habilitados), sempre em número e capacidade
aquém do necessário, especialmente em relação às espécies apreendidas em maior
quantidade, que são as mais comuns e sem risco de extinção.
Finalmente, a liberdade do animal silvestre deve ser preservada a todo
custo enquanto ele ainda se encontra no meio natural, em seu estado selvagem. De
nada adiantará tirar um animal silvestre de um cativeiro - encontrando-se ele já
domesticado - e, a pretexto de dar-lhe liberdade, lançá-lo na floresta à própria sorte;
ele simplesmente não sobreviverá. Por outro lado, a readaptação ao meio selvagem
constitui processo complexo e extremamente custoso, sem garantia de sucesso. Por
isso, todos os mecanismos legais e regulamentares devem privilegiar a preservação do
animal silvestre enquanto ele ainda vive em situação de interdependência junto aos
elementos do seu ecossistema natural, impedindo-se que de lá seja retirado
indevidamente e negociado. A liberdade do animal silvestre é garantida mediante
rigoroso combate ao tráfico de espécimes e à caça ilegal, que abastece o mercado
clandestino de animais silvestres dentro e fora do país.
114
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