o tempo como pena

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O TEMPO COMO PENA, PÁGINAS NECESSÁRIAS PARA O RESUMO... Pena e retribuição A multiplicidade de teorias que pretendem justificar a pena revela o profundo problema de consciência que esta instituição suscita. A pena é um exemplo de ma consciência. É natural que o causar um mal ao próximo desperte um sentimento de culpa, e, por conseguinte, a necessidade de explicar as razões que tenham levado a agir deste modo. Praticamente todas as teorias que foram elaboradas em torno da pena buscam justificá-la demonstrando que esta consiste apenas num meio que leva a um fim qualificado como bem. Todavia, a pena corresponde a sentimentos muito arraigados, como o sentimento de culpa que aparentemente desperta. Benveniste assinala que a origem do termo em grego era poine, que correspondia exatamente ao significado de vingança, ódio: a retribuição destinada a compensar um crime, a expiação de sangue. Daí que também se de a transposição afetiva em ódio, vingança considerada como retribuição. O conceito de retribuição tem uma importância fundamental para a vida social, responde a estrutura do intercambio, sem a qual a vida social não existiria, cada prestação dá lugar a uma contraprestação. E, ao aceitar co toda naturalidade que a prestação qualificada como positiva de lugar a uma contraprestação qualificada como positiva, haveria também de se aceitar que uma prestação negativa de lugar a uma contraprestação negativa. Ao basear a pena no intercambio, como uma parte deste, ou seja, uma das prestações que o integram, deve-se considerar que a pena, se dá e não se aplica. Isto seria valido no caso em que se tratasse de uma retaliação sujeito-objeto, na qual o sujeito aplicaria determinada coisa ao objeto. Entre dois sujeitos só é admissível que um dê e o outro receba, e vice-

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O TEMPO COMO PENA, PÁGINAS NECESSÁRIAS PARA O RESUMO...

Pena e retribuição

A multiplicidade de teorias que pretendem justificar a pena revela o

profundo problema de consciência que esta instituição suscita. A pena é

um exemplo de ma consciência.

É natural que o causar um mal ao próximo desperte um sentimento de

culpa, e, por conseguinte, a necessidade de explicar as razões que tenham

levado a agir deste modo. Praticamente todas as teorias que foram

elaboradas em torno da pena buscam justificá-la demonstrando que esta

consiste apenas num meio que leva a um fim qualificado como bem.

Todavia, a pena corresponde a sentimentos muito arraigados, como o

sentimento de culpa que aparentemente desperta.

Benveniste assinala que a origem do termo em grego era poine, que

correspondia exatamente ao significado de vingança, ódio: a retribuição

destinada a compensar um crime, a expiação de sangue. Daí que também

se de a transposição afetiva em ódio, vingança considerada como

retribuição.

O conceito de retribuição tem uma importância fundamental para a vida

social, responde a estrutura do intercambio, sem a qual a vida social não

existiria, cada prestação dá lugar a uma contraprestação. E, ao aceitar co

toda naturalidade que a prestação qualificada como positiva de lugar a

uma contraprestação qualificada como positiva, haveria também de se

aceitar que uma prestação negativa de lugar a uma contraprestação

negativa.

Ao basear a pena no intercambio, como uma parte deste, ou seja, uma das

prestações que o integram, deve-se considerar que a pena, se dá e não se

aplica. Isto seria valido no caso em que se tratasse de uma retaliação

sujeito-objeto, na qual o sujeito aplicaria determinada coisa ao objeto.

Entre dois sujeitos só é admissível que um dê e o outro receba, e vice-

versa. O dar e o receber têm uma raiz etimológica comum: Benveniste

considera que esta raiz “do” não significa exatamente nem dar nem

receber, mas tanto um ou como outro, segundo a construção do termo.

Assim como na vida econômica este dar e receber sucede-se

harmonicamente, na vida social e jurídica também.

Esta reciprocidade das prestações é tão indissolúvel na vida social que a

mesma palavra comunidade a compreende. Com efeito, em múnus se

encontra o conceito de dever, função, mas também favor, e com-munis

significa literalmente “quem participa nos munia ou munera”. É certo que

há uma obrigação de dar na medida em que se recebe, e aqueles que

participam neste dar e receber formam parte da comunidade. Desse

modo, a idéia de retribuição é inerente a vida social. Responde a

determinada simetria das prestações, que permite o equilíbrio do sistema.

Estabelecer normas de comportamento entre os indivíduos significa

respeitar essa simetria.

Por isto, quando alguém causa um dano a outro, é preciso reparar esse

dano. Mas, como a comunidade de pessoas não é um sistema mecânico,

mas social, tem uma história, e como a história é irreversível e não pode

dar marcha-ré não é possível recolocar as coisas em seu lugar, impor a

simetria restabelecendo simplesmente a situação anterior.

No entanto, ainda que essa reparação fosse plenamente possível, o

equilíbrio estaria restabelecido somente em parte, pois, a menos que a

reparação constituísse ao mesmo tempo uma pena para o autor do delito,

por si só não bastaria para restabelecer o equilíbrio perdido. Por que este

não se esgota em relações s interpessoais. O delito não só constitui uma

lesão a um dos membros da comunidade de pessoas, mas a lei dessa

comunidade de pessoas. Altera o equilíbrio em dois planos: o individual e

o social. A preparação pertencente ao primeiro e a retribuição ao

segundo. Esta concepção juridicamente pura da pena, ou seja, desprovida

de toda valorização alheia a própria violação da ordem jurídica, é, por

exemplo, a de Hegel, o que importa é que o delito deve ser eliminado não

como o surgimento de um mal, mas como lesão do direito como direito, e

então é preciso averiguar qual é a existência que tem o delito e como

deve ser eliminado.

Ou seja, independentemente do mal que haja causado, o delito deve

anular-se porque é em sim mesmo um mal. A reparação de suas

conseqüências não constitui a pena. Embora possa ocorrer uma

coincidência de fato, esta coincidência nunca é conceitual. Por isso a

pergunta de Nietzsche – “como pode o “fazer sofrer” ser uma reparação”?

_ Cabe responder que o “fazer sofrer” da pena não visa reparar, mas

castigar.

Daí que se deva distinguir entre os dois conceitos: reparação e retribuição.

A principal finalidade da retribuição parece ser reafirmar determinada

situação considerada justa, adequada, ou simplesmente desejada, que

tenha sito ameaçada ou modificada por um ato não desejado.

Na realidade, a situação como conseqüência do delito, não foi apenas

ameaçada, mas alterada. A retribuição supõe a volta do justo equilíbrio

das coisas, considerado em função do que o corre ao agente e não em

função do que se restitui a vitima.

A distinção entre o que corresponde a vitima e o que corresponde ao

delinqüente é imprescindível para definir a pena. O que corresponde a

vitima fundamenta-se no direito desta a receber uma reparação pelo dano

sofrido. Mas a pena, como correspondente ao delinqüente, funda-se

também em um direito, que é por sua vez um dever não só da vítima, mas

da comunidade de pessoas, por que a comunidade de pessoas converte-se

desta forma na destinatária indireta de toda lesão sofrida por uma pessoa,

posto que considere que cada lesão a uma pessoa ameaça, põe em perigo,

toda a comunidade. Daí que não só interessa “aquilo que se restitui a

vitima”, mas principalmente aquilo que sucede ao agente.

E o que acontece ao autor do delito é precisamente a pena como

retribuição da comunidade de pessoas que se viu ameaçada pelo seu ato.

E a retribuição da pena é uma retribuição negativa, por que pretende

negar o delito.

Portanto, se a reação supõe a retribuição se origina de uma lesão a uma

pessoa, não é também contraditório que a mesma comunidade de

pessoas, mediante a pena, inflija um mal a pessoa do delinqüente?

Durkheim assinala esta contradição como uma das causas da suavização

da penas. Há, diz ele, uma verdadeira e irremediável contradição no ato

de vingar dignidade humana ofendida na pessoa da vítima, violando-a na

pessoa do culpado..

Mas, observa este autor, a contradição é irremediável, e, dado que não

pode ser eliminada, tem elevado a suavizar a penas, pois o delinqüente,

como pessoa também merece o respeito da comunidade de pessoas. Uma

possível solução seria considerar que a pena não significa “violar a

dignidade humana” do delinqüente, mas, ao contrário, respeitá-la,

considerando-o um ser racional que recebe o que merece segundo seus

atos. Assim se justificaria a pena em função da simetria necessária para a

vida social.

Além disso, essa “violação da dignidade humana” – para empregar as

palavras de Durkheim – consiste, sobretudo, na negação de uma vontade.

Desde a perspectiva retributiva, a negação dessa vontade é imprescindível

para a existência da comunidade de pessoas, por que essa vontade tem-se

manifestado contraria a ela. A comunidade de pessoas deve reafirmar

ante cada manifestação de uma vontade que pretende negá-la, dando

uma resposta uniforme, única e ultima. Sua contraprestação é o elo final

da cadeia. Não dá lugar a outra prestação. E este caráter de ultima

prestação nasce da desigualdade que existe entre o sujeito do intercambio

no qual intervém a pena.

“Com respeito a teus pais- e o mesmo diríamos respeito de teu amo, se o

tivesses- não dispunhas de uma igualdade de direitos que te permitira

tratá-los da mesma forma que eles a ti: não podias, pois, ainda que

falassem mal de ti, falar mal deles, nem golpeá-los, ainda que te

golpeassem etc. como então desfrutarás essa igualdade com respeito a

tua pátria e suas leis?”

Não há igualdade de direitos entre a comunidade de pessoas e cada um

de seus membros. Por isso, quando a comunidade golpeia, não há um

golpe em troca. Por esta razão, a pena é pena e não vingança.

A vingança encerra o perigo de outra relação de desigualdade não apenas

entre sujeitos, mas entre as prestações. Por que a vingança exerce-a o

ofendido, e ao ofendido o dano se apresenta não em sua limitação

quantitativa e qualitativa, mas apenas como dano em geral, e ao retribuir

pode exceder-se, o que levaria outra vez a um novo dano.

Uma das razões de ser desta relação em que se inscreve a pena é a

necessidade que se retribuía respeitando certas regras quantitativas e

qualitativas, que haja contraprestação e não uma nova prestação que não

guarde relação com a primeira.

1.2 A MEDIDA

Benveniste indica que a raiz MED não se prefere a uma medida no sentido

de medição (para a qual existe a raiz me, donde provém mensis, mês,

medida de dimensão) mas a medida que se impõe as coisas. Não se trata

de “metior”, mas de “moderari”, ou seja, de submeter à medida.

Comparando-a com a acepção de medida de dimensão, diz “Nós vemos

algo muito diferente em “modus”: uma medida de contrição, que supõe

uma reflexão, premeditação, e se aplica a uma situação desordenada”.

Nesta definição vemos vários elementos: por um lado, limitação, reflexão,

deliberação: por outro, uma situação desordenada.

No tema que nos ocupa, a situação desordenada que provocou o delito,

apenas com sua existência, exige que a segunda prestação seja produto de

uma deliberação, reflexão como é a resposta a uma pergunta. Pelo

simples fato de ser resposta, a contraprestação a pena leva em si certa

medida. Além disso, pretende, por que nisso consiste, impor medida,

submeter a medida determinada situação. Mas não a uma medida

arbitrária, e sim a uma medida já estabelecida. Por isso podemos dizer

com S. Cotta, que a pena é um ato que reúne os três tipos de medidas

seguintes: uma medida interna ao ato, pela qual se dá um atuar com certa

medida; uma medida externa, pela qual se dá um atuar segundo certa

medida; e a medida final, que o ato está destinado a introduzir.

S. Cotta refere-se a pena como um ato que reuni e esses três tipos de

medidas, por que, ao seguir previamente determinado procedimento, é

evidente que respeita determinados limites. Tratar-se-ia, pois, de um ato

com medida (“atto automisurantesi”), contudo, o autor assinala que este

caráter é dado também pela necessidade de que guarde certa proporção

relativamente ao ato pelo qual responde. E, quanto ao segundo tipo, a

medida segundo a qual se exerce o ato, estaria dada pelas normas penais

(“consistiria na “misura externa AL” atto”. E também teria uma medida

orientada a uma finalidade, reequilibrar as posições.

Por isso, distingue-se o ato da pena do ato que a antecede, ainda que

exteriormente sejam dois atos idênticos. Como o sacrifício, consiste em

um ato violento, mas a sua violência não é a mesma que o provoca. Nada

mais diversos que estas duas gotas de sangue, e, no entanto, nada mais

similar. A metáfora com que Girard refere-se ao sacrifício é aplicável a

pena.. É uma mesma substância a quemancha e a purifica, há uma

aparente identidade entre o mal e o remédio. Mas, apesar dessa

identidade aparente, a pena e o delito se contrapõe em virtude da

presença ou ausência de medida, dessa medida que é também um

moderari, restabelecer um equilíbrio. Pois ali onde falta a prestação

correspondente, há uma situação de desequilíbrio, que é preciso corrigir

para restabelecer a normalidade perdida.

Portanto, parte da medida do ato no qual consiste a pena será dada pela

relação que guarda com o delito.

1.3 RELAÇÃO ENTTE DELITO E PENA.

Sua manifestação mais simples seria a lei de talião. Mas desde um ponto

de vista prático, esta leva a situações absurda (furto por furto, roubo por

roubo, olho por olho, dente por dente...).

A dificuldade deriva da busca de uma igualdade entre os atos encontrar-

se-ia também no intercambio no qual se funda a vida social. O intercambio

o requer uma operação intelectual que vá além da aparência exterior das

coisas e dosa tos e encontra e um elemento que permita compará-los. É

preciso superar a igualdade específica e a natureza imediata da coisa.

“Somente, segundo este ultimo aspecto [a forma exterior específica do

castigo], o roubo, o furto e a pena de prisão são totalmente diferentes;

mas segundo seu valor, sua propriedade geral de serem violações [lesões],

encontra-se o elemento comparável”.

Precisamente é possível que se realize o intercambio entre delito e pena,

por que ambos têm um mesmo valor negativo, sua propriedade geral de

serem lesões. Por isso, a pena como retribuição a um mal não pode ser

senão um mal. Do contrário, como seria possível comparar um mal com

um bem?

No entanto, uma vez encontrado o elemento comum que permite

restabelecer a relação de intercambio, é preciso encontrar uma proporção

entre essas prestações, proporção que, como temos visto, não pode

basear-se na mera igualdade. O ato com a medida da pena define-se

assim, entre outras coisas, pela proporção que guarda com o que o

precede e causa. “se a geometria fosse adaptável as infinitas e obscuras

combinações das ações humanas, deveria existir uma escala

correspondente de penas em que se graduassem desde a maior até a

menos dura’. Aconselha Beccaria. Não obstante, sucedeu o contrário: ante

a grande variedade de atos que podem constituir um delito, a resposta

foi-se uniformizando pouco a pouco, até converter-se e praticamente em

uma só. Uma vez descoberta à igualdade interna, ou seja, PA propriedade

geral de ser lesões, ante a grande diversidade com que se manifestam a s

lesões que constituem delito, opõe-se como pena quase sempre uma

mesma lesão. “de maneira que se eu tiver traído o meu país, vou para a

prisão; se matei meu pai, vou para a prisão; todos os delitos imagináveis

são castigados do modo mais uniforme. Parece-me ver um médico que

para todos os males emprega o mesmo remédio.

Produz-se um fenômeno semelhante à aparição da moeda nas relações

comerciais. Neste sentido Focault faz notar que a prisão confere certa

clareza jurídica, pois permite quantificar exatamente a pena em função do

tempo. “Ha uma forma-salário da prisão que constitui, nas sociedades

industriais, sua evidência econômica. E permite que ela apresente-se

como uma reparação. Com efeito, ao apropriar-se do tempo do

condenado, a prisão parece traduzir concretamente que o delito lesionou

não só a vítima, mas a sociedade inteira. Evidencia econômico-moral de

uma penalidade que calcula os castigos em dias, meses, anos e que

estabelece evidencias quantitativas: delito-duração.

1.4 a pena de prisão

A definição da pena de prisão que Hobbes oferece é a seguinte: “por esta

palavra “prisão, entendo toda limitação do movimento causado por um

obstáculo externo”. É uma definição ampla que, como explica em seguida,

compreende não só a prisão propriamente dita, mas também a

deportação ou exílio, as galés, as pedreiras e minas ou simplesmente os

grilhões. Ocupar-nos-emos da pena de prisão propriamente dita, que é a

única que permanece até hoje, - piso a uniformização da pena consistiu

também na uniformização do “obstáculo externo” que se opõe a liberdade

de movimento: os muros da prisão.

1.5 o lugar

Durkheim se refere ao lugar que se destinava s prisão, cuja presença

relaciona com a cãorcição de certas condições que permitiam a existem ia

de estabelecimentos públicos com espaço suficiente, militarmente

ocupado, organizado e de um modo concebido para impedir a

comunicações com o exterior. E essas condições nascem quando a vida

coletiva alcança determinada intensidade e continuidade, perfilando-se na

distribuição do espaço social a linha de demarcação que separa a

autoridade de seus subordinados. Durkheim anota que as três prisões que

existiam em Jerusalém quando houve a invasão dos Caudeus localizavam-

se uma no portal de Benjamim, outra no palácio do rei e a ultima na

residência de um funcionário publico. Também em Roma as antigas

prisões encontravam-se na fortaleza real.

É lógico que o lugar da pena estivesse sob o controle imediato dos que

estavam autorizados a executá-la. Durkheim assinala, porém, que na

época referente a suas citações a prisão ainda tinha somente um fim

preventivo, de deter a pessoa supostamente culpada (se bem que as

condições de vida nela eram tas que constituía um verdadeiro castigo (). A

este respeito é sumamente interessante uma passagem de “as leis”, em

que Platão fala de três prisões, cada uma delas com uma função especial.

“haverá na cidade três prisões: uma delas situada na praça pública,

comum à maioria dos delinqüentes, que assegurara a guarda dessas

pessoas; a segunda, no lugar de reunião do conselho noturno que se

chamará de casa de correção ou reformatório; a terceira no centro do

país, no lugar mais deserto e mais agreste possível, terá um sobrenome

que indique seu caráter punitivo.

A primeira teria por fim a segurança, prevenir outros delitos, “assegurar a

guarda das pessoas”.

A passagem 909b indica os que irão as outras prisões: “o juiz colocará na

casa correcional aquele as quem inspire um desequilíbrio ou insensatez,

que não conotem maldade temperamental ou de caráter”. Ou seja, os

considerados recuperáveis. A função corretiva era confiada aos

funcionários do conselho noturno. É evidente que esta prisão não tinha

caráter punitivo, mas corretivo. Ao contrário, a ultima das três prisões

destinava-a para ‘aqueles (“...) semelhantes a bestas ferozes, não

contentes em negar a existência dos deuses...”.

Ou seja, entre as outras duas prisões há uma diferença segundo a

gravidade do delito cometido ou as tendências criminais do delinqüente. E

esta diferença está marcada pelo lugar destinado a prisão. “A Prisão

propriamente punitiva tem reservado ‘o lugar mais deserto e agreste

possível”.

Algo semelhante se apresenta na organização espacial do inferno de

Dante: “Ei son tra l’anime piú nere; diverse colpe giú li grava AL fondo...”.

E na nota explica que se trata de uma analogia entre a lei da gravidade

física. “tutti i corpi9 gravitano verso Il centro della terra” e a lei da

gravidade moral, “i peccati sono puniti in ordine di gravitá, dall”alto AL

basso”. Também no canto IX, referindo-se a Giudecca: “Quell”é”l piú

basso loco e’l piu oscuro, e’l piú lontan dal ciel Che tutto gira...”. por que a

Giudecca corresponde ao centro da Terra e está no ponto mais baixo, não

só materialmente mas moralmente, dado que a gravidade dos pecados vai

aumentando de cima para baixo. Assim sendo, em Giudecca se aplica o

máximo da pena, e o Maximo da privação de Deus (luz), isto é, o máximo

DAE trevas: a maior distancia espiritual corresponde então a maior

distancia material, tomando como referência o céu, que é o lugar que se

supõe mais próximo a Deus.

Esta dimensão espacial da pena atribui ao lugar onde se cumpre uma

importância fundamental. Quanto mais grave o delito, mas distanciado o

delinqüente. Em nossa pena terrena, a função da luz, que em Dante se

atribui a Deus, seria cumprida pela comunidade de pessoas.

Voltando a Platão, a prisão punitiva implicaria o total isolamento do

delinqüente frente ao resto da comunidade de pessoas. É evidente o

desejo de apartá-lo, (nenhum contato com homens livres). A primeira

vista, a única certeza nessa prisão punitiva é a exclusão da comunidade de

pessoas. Prova disso é que nem sequer com a morte terminava essa

exclusão, pois: “uma vez morto, o corpo será lançado fora das fronteiras

do país, sem sepultura.

Gernet se refere a formas de penalidade que são em si mesmas e antes de

tudo religiosas, que tem por objetivo a eliminação de uma mancha ou que

supõe a idéia de consagração do culpável, a quem a comunidade

abandona as potencias divinas para libertar-se ela mesma destas

potencias. Pro que fora das fronteiras se estende um espaço

desconhecido, onde não impera a ordem, mas o caos. As fronteiras

marcam uma ruptura no espaço: o território habitado e organizado

(“‘nosso mundo”) e um espaço que não pertence a comunidade de

pessoas, que ainda está submetido as potencias divinas.

Contudo, o ser humano, com a ajuda da técnica, “customizou”

praticamente toda a terra. Já não existe caos sobre a terra. O mundo,

“nosso mundo’, se estende por toda parte. Ainda assim, os muros que se

separavam como e caos não cumpriam só uma função de proteção. Sua

função consistia, sobretudo em arcar a diferença entre ambos os

territórios. E também a diferença entre aqueles que habitavam um deles e

os que se encontravam no outro.

Ao não existir o caos, pareceria que o espaço é uno e indiferenciado.

Inclusive ilimitado. Mas o limite não é aquilo em que algo acaba, mas a

partir do qual algo começa a existir. Se o espaço social perdesse os limites

que o separam do caos, deixaria de ser o espaço social.

A necessidade fundamental da diferenciação para manter sua identidade,

que nasce no limites dentro dos quais foi criado, leva o espaço social a

construir o seu próprio caos. A prisão é o caos que a própria comunidade

construiu. Caberia objetar que sempre se comparou o caos a um território

desordenado sem regras, e que na prisão, pelo contrário, seguem-se

regras muito mais rigorosas que no espaço social. Porém, não podemos

esquecer que este caos foi um caos construído com propósitos muito

claros. É caos enquanto “não –cosmos”, e sua desordem – no sentido de

falta de harmonia – consiste precisamente em acentuar o rigor da norma.

A diferença do caos original – que significava a ausência total de norma-, o

caos construído significa a normatividade excessiva. A regra que não busca

a harmonia do coabitar, mas sim a rigidez da imobilidade.

Assim como as fronteiras delimitam dois territórios, os muros da prisão

também o fazem dentro da cidade. A prisão caracteriza-se, sobretudo,

pela mínima comunicação com o mundo social externo. Uma prisão é tal

precisamente pela impossibilidade de franquear livremente suas portas.

Seus muros marcam uma ruptura no espaço social. Ainda que

aparentemente, ou seja, por sua instalação, não esteja, como regra geral,

separada, isolada fora do contexto urbano – como estão territorialmente

os cemitérios -, a comunicação que mantém com a sociedade que vive as

portas é muito mais limitada do que a destes ult9imos. Por isso a prisão

punitiva de Platão ocuparia o lugar mais agreste e ilhado possível, fora do

perímetro urbano. E ainda que hoje ela se encontre algumas vezes em

pleno centro urbano, será sempre, para quem a observa, o lugar mais

afastado e isolado da cidade.

É interessante a interpretação deste fenômeno de exclusão como um ato

simbólico pelo qual se impressa a reprovação. A comunidade de pessoas

não tem nada que ver com o autor de determinados atos. Se tolerasse sua

presença, se persistisse a coexistência com essa pessoa, essa tolerância e

essa coexistência poderiam ser interpretadas como uma aceitação. E a

aceitação não está distante da cumplicidade. É assim que de uma atitude

meramente passiva poder-se-ia deduzir uma atitude positiva. “a pena é

um meio convencional para a expressão de atitudes de ressentimento e

de indignação, assim como juízos de desaprovação e reprovação, seja das

próprias autoridades punitivas, seja daqueles em cujo nome se aplica. Em

poucas palavras, a pena tem uma importância simbólica que praticamente

não se encontra em outros tipos de sanção.

Entretanto, seu significado simbólico não se esgota na manifestação de

uma reprovação, mas se estende a individualização dos que merecem a

reprovação. Neste sentido se inverteria o raciocínio “está no cárcere por

que é um delinqüente”, e se diria “é um delinqüente por que está no

cárcere”. Mas em ambos os casos – expressão de reprovação,

individualização dos delinqüentes – o que se busca é reafirmar a inocência

da comunidade de pessoas.

Os muros da prisão separam os inocentes daqueles que não o são. Cabe

então perguntar se os que estão fora desses muros são realmente

inocentes. Dando-se uma definição negativa da palavra, isto é, se

considerarmos inocentes somente aqueles que não tenham violado a lei,

essa classificação seria admissível. Contudo, se adotarmos uma definição

positiva, considerando que a inocência significa, sobretudo confiança, sob

dois aspectos independentes entre si, por que o inocente confia nos

outros, mas ao mesmo tempo se entrega ao s outros, com fé neles,

resultara que as pessoas da humanidade de pessoas que coexistem fora

dos muros da prisão tampouco são inocentes. Evidentemente não

merecem a confiança dos outros. E não é que não confiem a posteriori,

por que estes outros tenham cometidos delitos, mas sim a priori, por que

previam que eles os cometeriam. Por isto, a pena é o simbolo da falta de

inocencia na comunidade de pessoas.

Também se poderia considerar de um ponto de vista simbólico que a pena

de prisão é um talião. O delinqüente interrompeu a comunicação social

própria da comunidade de pessoas; em conseqüência, isto é, como

retribuição, será privada dessa comunicação social que ele interrompeu.

É claro que se a pena se esgotasse em seu conteúdo simbólico, seria valido

perguntar, como o fez Feinberg: agora condenamos os delinqüentes a

uma servidão penal, como uma forma de indicar que seus delitos são

infames por acaso não poderia fazer o mesmo trabalho de uma forma

mais econômica ainda? Não existe um modo de estigmatizar sem infringir

uma dor (útil) a mais ao corpo, a família e a capacidade criadora do

condenado?

Todavia, a pena não se esgota em uma função meramente simbólica:

pretende, além disso, infringir um mal, castigar.

1.6 O tempo

Assim como há uma ruptura no espaço marcado pelos muros da prisão, há

também uma ruptura no tempo.

A pena de prisão se diferencia de todas as outras penas pela forma como

combina estes dois elementos: o tempo e o espaço. Esta interseção entre

tempo e espaço marca o começo de uma duração distinta,

qualitativamente diversa. E isto apesar da pena ser medida com a mesma

unidade que se utiliza para medir o tempo social, o tempo comum.

A separação física não define por si são a pena de prisão. Ao referirmos a

uma pena deste tipo é lógico perguntar: por quanto tempo? Por que o

tempo, mais que o espaço, é um verdadeiro significante da pena. Existe

uma enorme diferença entre passar três dias na prisão e passar toda a

vida: há toda uma vida de diferença.

Ao construir a prisão, pretende-se imobilizar o tempo da pena.

Separá-lo do tempo social que transcorre no espaço social. A prisão é uma

construção no espaço para calcular de determinada maneira o tempo. O

fluir do tempo se opõe a firmeza do espaço. O ordenamento jurídico,

mediante a prisão, procura dominar o tempo. Pareceria que o tempo no

qual transcorre a vida social normal fosse um tempo relativo, e que o

tempo da pena, que transcorre na prisão, assumirá um caráter absoluto.

“no espaço tudo está imóvel e claro na geometria da proporção; tudo

transcorre e flui no ritmo do tempo.

Trata-se de um emprego muito partiu lar que o direito faz do tempo. Se a

pena é retribuição, como a pena de prisão consiste fundamentalmente no

transcurso de determinado tempo, empregar-se-ia o tempo como castigo.

Não seria o único exemplo de interpretação especial de tempo por parte

do direito penal. Por exemplo. Gernet recorda o conceito de flagrante.

Não se tratava de um meio de prova privilegiado, mas de uma parte

mesma do conceito do delito. Graças ao flagrante, o delito dava lugar à

imediata execução da pena. O que havia passado se fazia presente. Esta

unidade concentrada no tempo, no presente, esta continuidade, era um

ideal do direito penal: que a sanção constituísse um só corpo, sem

interstícios, como o fato delitivo. Tudo se desenrola no presente, sem que

a idéia de um passado, inclusive recente, tenha nenhuma intervenção.

Esta prescindibilidade, ou desejo de prescindir do passado, também se

observa na noção de furtum, que significava a coisa subtraída. Tampouco

no caso de encontrar o delinqüente com o produto futuro, era necessário

voltar ao passado para provar o que havia acontecido. Mas a operação ou

administração do tempo por parte do direito levava a maiores distâncias

ainda: o direito arcaico assemelhava ao delito flagrante aquele que

acontecia pelo descobrimento do objeto subtraído no domicílio do réu.

Neste caso, havia uma distância temporal, por que não se podia efetuar a

constatação do delito “no mesmo momento” em que havia sido cometido.

Não obstante, mediante uma ficção, esta distancia atemporal se

desvanecia o tempo intermediário não contava para nada.

Persiste o ideal de continuidade entre o delito e apena. Becccaria

recomenda, especificamente com relação à função de finalidade

exemplificadora que atribui à pena: com efeito, assinala, “a c celeridade

da pena é mais útil, por que quanto menor seja a distancia do tempo que

passa entre a pena e o delito, tanto mais forte e duradouro será na mente

a associação destas duas idéias, delito e pena, de tal modo que se

considerem os primeiros como causa, e a outra como efeito conseguinte e

necessário”.

E também persiste a repugnância para indagar no passado: ”poderão os

gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do tempo passado, que

não volta mais, uma ação já cometida?” pergunta Beccaria. O castigo e a

dor não podem desfazer o fato. Nada pode ser humano diante do que já

aconteceu. O que já não pertence ao hoje por que pertence ao passado.

Mas, como Mathieu sustenta, a pena é absurda numa perspectiva

puramente temporal de “o que se passou, passou”. Para este autor a pena

assumiu como um todo único o conjunto dos fatos passados, presentes e

futuros, preocupando-se em fazer que esse todo responda, na medida do

possível, a um princípio universal de justiça, o qual aquilo que ainda não

existe possa compensar aquilo que já não existe aquilo que foi pese ainda

como que fosse presente; e, por ultimo, aquilo que deveria ter sido e não

foi influa pára determinar o equilíbrio.

1.7 outro tipo de medida

De que forma determinar o valor relativo de um prazer ou de uma pena,

não se mediante uma estimação quantitativa? O conceito desta medida

enquanto determinação do mais ou do menos está definida em

“Protágoras ou os Sofistas”, onde se fala de uma verdadeira “ciência da

medida” (metrétiké techné), que seria a ciência do excesso e do defeito

(Platão também chama à aritmética, arte da medida).

Trata-se de uma verdadeira sabedoria que permite ao homem escolher

entre o bem e o mal, entre o prazer e a dor, aplicando um critério

quantitativo. É tanta a importância que atribui a medida neste diálogo,

que se refere a ela também como a salvação de nossa vida, por que a

condição de nossa salvação reside e m uma correta escolha entre prazer e

a dor, apreciando com exatidão o numeroso e o escasso, o maior e o

menor, o mais longínquo e o mais próximo. Esta possibilidade de

quantificar o prazer ou a dor, estimando ‘um mais, ou “um menos”, mas

também é um elemento da pena, que para fixar sua devida relação com o

delito é necessário coparár-los. Todavia, esta comparação não pode ser

somente quantitativa (enquanto propriedade geral de serem lesões).

“Para que o ato da pena seja um ato ‘com medida”, deve ser proporcional

ao ato do delito. E essa proporção só se conhecerá medido a intensidade

de ambos os atos. Não obstante, já não se trata da medida como

qualidade do ato, mas de uma medida que tem significado muito diverso.

Inclusive sua raiz não é mede mas me. O verbo não seria moderari, e sim

metior. Além do mais, de me provém mens, i. e., “lua”, e em latim,

mensis, i. E, “mês”, media de dimensão “qualidade fixa e passiva cujo

emblema será a lua medindo o mês. Seria a corrente acepção do termo

“medir”, não como submeter a uma medida, e sim no sentido de

qualificar. Mas diferentemente do espaço, que é em sim mesmo algo

mensurável, que se oferece como algo a medir, o tempo sempre se

apresenta para nós como algo já provido de uma medida natural, como

algo já dividido e3m partes por meio da susseção das estações e dois dias,

e pelo movimento do relógio celeste que a natureza precavida colocou a

nossa disposição”.

Por isso, ao medir o tempo não se realiza a mesma operação utilizada para

medir o espaço, por que o tempo não carece de medida natural própria,

no sentido de que já parece se apresenta, em certo modo dividido em

partes que se sucedem. O que se pretende com os instrumentos que se

empregam para medir o tempo é alcançar certa precisão, certa exatidão

na subdivisão das partes. Koyré recorda que só quando a civilização

urbana experimenta necessidades de precisão em sua vida pública é

religiosa é que se começa há medir o tempo.

Apesar de a bíblia ensinar que Deus embasou o mundo “no número, no

peso e na medida”, até Galileu ninguém havia procurado superar com

número, o peso e a medida a imprecisão da vida cotidiana.

Quando a privação de liberdade assume o caráter de pena (e não de

prevenção, correção, ou qualqer outro fim de preservação social), a

exigência de precisão se torna manifesta. Sendo tempo o principal

elemento da pena, não pode ficar a mercê da imprecisão a determinação

temporal da pena adquire uma importância fundamental.

1.8 delito e pena

Na pena de prisão “o mais” ou “o menos’ da lesão que supõe a pena é a

duração. Por isso, Beccaria assinala que não é a intensidade da pena e sim

sua extensão que tem o efeito maior na alma humana.

Mas essa “extensão” deve corresponder à determinada “intensidade”, do

contrário, não seria possível compará-la com o delito, que é uma lesão

com determinada ‘intensidade’ (gravidade). E necessário medir a

intensidade de ambas. Se as pena é medida por sua douração, qual

intensidade corresponderá à determinada duração?

Que relação guarda o tempo com o delito? Evidentemente que o delito

não se mede segundo o tempo que dura. Santo Agostinho, no livro XXI,

capitulo XI, de “a idade de Deus”, intitulado “exigências da justiça com

respeito às penas”, contestava aqueles que consideram injusto castigar os

pecados desta curta vida, por mais graves que sejam com um suplício

eterno: “como se a justiçada lei alguma vez tivesse levado em contato

tempo despendida em cometer a falta para determinar o castigo!”

E refere-se também a duração da prisão, assinalando o absurdo que seria

quantificar o castigo segundo a duração do delito, visto que para

determinar a gravidade do crime, aplicam-se outros critérios distintos do

tempo que durou sua perpetração.

´[e sumariamente interessante observar que neste mesmo capítulo

apenas um pouco mais adiante, faz referência a relação tempo-pena: pro

um lado não há relação entre duração do delito e a duração da pena; por

outro, observa-se que assim como em um instante pode-se cometer o

delito mais grave, também em um instante pode-se aplicar a pena mais

grave. Ou seja, a duração da aplicação da pena não seria indício de sua

gravidade. Prova disto seria, conforme Santo Agostinho, a pena capital.

Não obstante, ao considerar que o castigo residiria em afastar para

sempre o condenado da sociedade humana se introduziria aí um elemento

temporal. O ‘para sempre é a pros posta a pergunta: por quanto tempo

queremos afastá-lo da sociedade humana? É precisamente a condenação

a morte é a pena capital por esta resposta: para sempre.

1.9 Prisão e morte

Em referencia a perna de morte talvez permita estabelecer um paralelo

com a pena de prisão. O distanciamento que ta ultima persegue e não

seria comparável ao que se logra, de forma definitiva com a morte? A

expulsão é o efeito imediato de uma e de outra pena. No presente, ambas

tem um mesmo significado: a expulsão somente quanto a suas

conseqüências futuras se diferencia. Mas, segundo Santo Agostinho, a

conseqüência futura por serem futuras não existe ainda, e se não existem

ainda, não existem realmente; e se não existem realmente, não pode ser

vistas de modo nenhum, mas apenas podem ser previstas por meio da p

presentes, que já existem e se vêem”.

Em uma, no presente se prevê a possibilidade do regresso: na outra se

exclu9i essa possibilidade. Significa dizer que a pena de prisão se

diferencia da pena de morte pela presença ou ausência da possibilidade

de se reincorporar a coexistência local.

Contudo, no presente, ambas interrompem esta coexistência.

Quando se dirá que dois seres coexistem ou que existem há um mesmo

tempo? Quando não existe sucessão entre eles, os dois existem: quando

não se dão ao mesmo tempo a existência de um e a negação do outro.

Tanto na pena de morte como na de prisão se dá a “negação do outro”.

Nega-se ao sujeito apartando-o, por que o que se deseja é que ele não

continue existindo no presente de todos.

Até que ponto pode-se considerar que ambas as penas se diferenciam

apenas pelo elemento quantitativo? Ou seja, que a duração de uma é

muito maior do que a da outra. Do ponto de vista dos sujeitos de cuja

existência ao delinqüente teria sido afastando, o “Pra sempre” da pena de

morte compreende apenas uma duração mais prolongada. Eles tampouco

serão “para sempre”, razão pela qual não poderão comprovar o “para

sempre” da pena de morte.

Ambas podem ser comparadas AA duas viagens. Em uma se prevê, se

espera o regresso; na outra não.

Aceitando-se essa diferença quantitativa, seria também aceitável a

hipótese de Gernet, que ao analisar certas penas infamantes nas quais se

expunha publicamente o delinqüente, aponta que havia penas temporais

e relativamente, benignas que podiam ser consideradas como suavizações

ou simbolizações da pena de morte.

Mas atualmente, sendo a pena de prisão a pena por excelência que

absorveu também o caráter infamante, não obstante consistir em uma

ocultação e não em uma posição- poder-se-ia aplicar a mesma hipótese.

Com o que resultaria uma pena mais suave que a de morte, residia a

diferença tão somente neste elemento quantitativo de sua duração. Nas

penas de prisão perpétua ou por períodos que excedem a vida normal de

um ser humano e tampouco se prevê “o regresso”, a reintegração. Afasta-

se o delinqüente “para sempre”, como na morte.

“Na prisão perpétua, como diz Mathieu, a intenção é a mesma que subjaz

na pena de morte”, “não votará mais a estar entre nós”. O significado

dessa sentença é claríssimo, diz esse autor: não podes reintegrar-te ao

sistema de liberdade senão morte. Mas, para chegar a este ultimo estado,

na prisão perpétua, deixa-se que a natureza intervenha. Por isso, o autor

denomina a pena de prisão perpétua como “sentença de morte

retardada”, e considera-a uma hipocrisia, uma vez que se confia a

execução da pena à natureza e ao tempo. (e poderíamos acrescentar as

condições em que se vive em muitas prisões e a todos os padecimentos

que a prisão trás consigo).

No caso da prisão perpétua ou das penas superiores as possibilidades de

vida do delinqüente, contudo, não se considera que a morte sobrevenha

como uma pena diferida. Essas penas respondem simplesmente a

necessidade de medir, no sentido de quantificar, a pena. A morte o corre a

margem da pena, e a pena é a exclusão por determinado tempo, não é a

morte. Que esta a interrompa é um fato que pode também acontecer em

penas de curta duração. O absurdo que nos parecem essas condenações a

um número de anos que excede as possibilidades de vida do delinquentes

explica por que, para o direito penal, em certo sentido não importa nada

do que corre realmente. Pois, como Mathieu esclarece um pouco antes,

“o fato que é o direito penal considera a justiça prescindindo do tempo e

dos processos que se sucedem no tempo. A pena deve seguir-se ao delito,

como uma conseqüência artificial dele mesmo; porém os processos reais,

e conseguinte, temporais que formam e acompanham a pena são

acidentais”.

Portanto, mais que indiferença com respeito aos processos temporais, em

certo sentido há uma submissão dos mesmos por parte do direito penal

aos fins que lhe são próprios; como assinala Gernet, por parte do direito

há certa liberdade no uso de um conceito do qual efetivamente não pode

prescindir, mas que adapta aos fins que lhe são próprios.

Por que ao direito penal o que interessa, fundamentalmente, é que a pena

guarde a relação devida com o delito; por isso, ainda que o sujeito não

tenha a mínima possibilidade de “viver toda sua pena”, esta se fixa em

função da meta de restabelecer o equilíbrio, independentemente de que

depois não se cumpra realmente. Neste aspecto, sobretudo, ou seja, em

sua afixação reafirma-se o caráter simbólico da pena.

M foucault, referindo-se a Kantorowitz (“os dois corpos do rei”), assinala

um paralelismo entre o corpo do rei e o corpo do condenado. No corpo do

rei, ao lado do elemento transitório que nasce e morre, há outro que

perdura que é o suporte físico e ao mesmo tempo intangível do reino, o

objeto de uma iconografia e de uma doutrina política e jurídica, o

fundamento de um poder. No outro extremo, o diminuto corpo do

condenado é também motivo de uma cerimônia, um discurso teórico,

uma construção jurídica. Ao exercer sobre ele um poder excedente,

provocar-se-ia segundo Foucault, um desdobramento. Como se o direito

criasse um desdobramento metafísico do corpo do delinqüente para

poder aplicar-lhe penas que não guardam proporção com as coordenadas

reais de seu corpo natural. l

O delinqüente não sobrevive a sua morte. O que é imortal não é

delinqüente, mas a comunidade de pessoas, que persiste como tal, apesar

de que mudam a pessoas que integram. E é perante ela que se mede o

tempo da pena. O tempo da pena se qualifica em função do tempo da

sociedade, e não do tempo do delinqüente. Este se exclui somente do

único tempo de que em realidade se lhe pretende excluir: o tempo que

transcorre no espaço social.

1.10 Templum, tempus

Montesquieu assinala que os templos eram refúgio dos delinqüentes,

sobretudo na Grécia, onde os homicidas, expulsos da cidade e da presença

dos homens, não tinham outro asilo senão os templos, nem outros

protetores senão deuses. Referindo-se a Tácito, diz que “os magistrados

tinham dificuldades para exercer a função de polícia, pois o templo

protegia os crimes dos homens, como as cerimônias dos deuses”.

O templo permitia ao delinqüente sobreviver. Se a prisão é considerada

uma suavização da pena de morte, como vimos, também constitui nesse

sentido um refúgio. Entretanto, o templo cumpria a mesma função que a

prisão atual: ocultar o delinqüente oculta-lo de nossos olhos. A lei mosaica

considerava inocentes os homicidas involuntários, mas os ocultava aos

olhos dos pais do morto. Seguindo Montesquieu, poderíamos aventar que,

assim como no templo se protege a cerimônia divina, na prisão se protege

o delinqüente (não seria a sociedade PA protegida, como usualmente se

afirma, mas sim os delinqüentes).

Esta analogia com o templo leva a outra, ainda mais pertinente ao tema

que nos ocupa. “tal como uma igreja que constitui uma ruptura de nível

dentro do espaço profano de uma cidade moderna, o serviço religiosos

que se celebra no interior de seu recinto marca uma ruptura na duração

temporal profana...” o mesmo ocorre na primeira prisão, pois assim como

há uma ruptura no espaço marcado pelos muros, também existe uma

ruptura no tempo.

Esta interseção entre tempo e espaço marca o começo de uma duração

distinta, qualitativamente inversa. Isso não obstante o fato de que a pena

se mede como a mesma unidade que se utiliza para medir o tempo social,

o tempo comum.

1.11 o tempo da pena

O tema da relação entre o tempo e a pena, da utilização do tempo como

pena, ou seja, do tempo como algo mais que a medida da pena, nos REM

ente necessariamente a relação entre o tempo e o direito. A pena é um

dos casos em que o direito subordina o tempo aos fins que almeja. Poder-

se-ia dizer também que o direito assimila o transcurso de determinado

tempo, o tempo do sujeito da pena, a um transcurso que é próprio do

direito.

Para Gerhart Husserl, esse transcurso próprio do tempo do direito não [é a

simples duração, o fluxo natural dos instantes. O direito tem um tempo

abstrato, precisamente por que busca superar o imediato, o contingente

da experiência ingênua do tempo.

O mundo da experiência natural, o mundo cotidiano do ser humano, é um

mundo no qual reina a dúvida. A indigência humana consiste

precisamente na impossibilidade de dispor do futuro. A falta de

previsibilidade do futuro se origina na transitoriedade própria do ser

humano, que por usa vez se horigi8na em sua única certeza: seu se [e um

ser que caminha para a morte. Quando o direito vincula conseqüências

jurídicas às circunstancia s da realidade social exclui o fluxo dessa

realidade para um futuro incerto. Dada sua vocação de transcendência, o

direito procur4a libertar da dúvida, da transitoriedade. As normas jurídicas

criam um mundo que não conhece a duvida. Nesse mundo não há futuro,

por que o futuro foi antecipado nas normas.

Entretanto, para que o direito se concretize na realidade, para que “se

realize”, deve passar do mundo “destemporalizado” que criou a realidade

social que responde ao fluxo natural do tempo, o, ou seja, deve voltar à

dimensão temporal de que havia se separado. Esse processo se

desenvolve pela aplicação da norma jurídica a..

“O tempo objetivo – disse G Husserl – não transcorre mais velozmente ou

mais lentamente caso seja uma criança, um velho, um paciente no

dentista, um orador em uma reunião pública ou um soldado no campo de

batalha o afetado pelo transcurso temporal”. Assim sendo, cabe dizer

exatamente o contrário, caso esse transcurso se experimente no interior

da consciência. Por isso, há de se acrescer ao tempo natural e ao tempo

objetivo do direito o tempo subjetivo, o tempo da consciência.

O que acontece com a pena?A norma jurídica que estabelece à pena

antecipa o futuro. Determinando uma quantidade de tempo que será a

duração da pena. Contudo, não será a mera duração como sucessão de

instantes do tempo natural, mas uma duração objetiva, abstrata, medida

com independência dos conteúdos concretos alheios a sua finalidade. e

A pena, quando aplicada ao sujeito, se “temporaliza” no tempo de vida do

sujeito. Isto é, seu transcurso seguirá o fluir do tempo natural no qual

transcorre a vida biológica do sujeito: seguirá seu gradual envelhecimento,

e poderá, inclusive, ser interrompida por sua morte. Neste caso, o tempo

objetivo impedirá o cumprimento do termo que o direito lhe havia fixado.

Mas também o tempo da pena é experimentado na consciência do sujeito

que a vive. Também a pena tem sua terceira dimensão temporal; a do

subjetivo a do tempo subjetivo, o tempo da consciência. ”” Se

compreendemos bem o que significa, por exemplo ‘viver o tempo’, nos

damos conta de que cada pessoa vive um tempo comum, que pode

compreender, mas vive também o seu próprio tempo, um tempo

intraduzível, que sente por si mesma, assim como uma fome que só ela

experimenta, uma via que só ela vive e uma morte que só ela morre...

“Ninguém pode substituir o outro nesta experiência nossa e,

simultaneamente, de cada um.”

Quão insubstituível será então a experiência do que vive a pena. Pois se

cada pessoa sente por is mesmos, também viverá por si mesma a pena

como uma experiência intransferível, única. Ainda que a pena esteja

revista e quantificada, de modo uniforme, objetivo, cada um vivera como

própria, cada um viverá sua própria pena.

Por outro lado, a mesma unidade de medida vai medindo o transcurso da

pena. Pois a pena vai formulando a sim mesma à medida que transcorre.

Por outro lado, vai se produzindo no sujeito a percepção desse transcurso.

Por um lado, a magnitude: por outro, a intensidade. “assim como a

magnitude fora de alguém nunca possui intensidade, a intensidade,

dentro de alguém nunca possui magnitude.

A qualidade do tempo que se vive durante a pena, por ser precisamente

“o tempo da pena”, não pode ser a mesma daquele que vive livre da pena.

Qualquer atividade que se realize durante esse tempo não será verdadeira

atividade, estará impregnada do tempo e do espaço da pena. Ainda que

aparentemente esteja em movimento, o sujeito da pena está imobilizado

em determinado espaço, o qual transcorre um tempo diferente. E esta

imobilidade poder-se-ia qualificar de espera. “esta (referindo à espera)

envolve todo o ser vivente, suspende sua atividade e o imobiliza na

angustia que lhe causa”. Em embora não se refere a pena, a seguinte

definição de Minkowski parece muito pertinente: “na espera o ser

reflexiona sobre si mesmo, se encapsula, caberia dizer que procura expor

o mínimo de si as agressões do ambiente hostil e, ao proceder dessa

forma, separa-se deste ambiente e traça os seus próprios limites”. Esta

reflexão sobre si mesmo trás seus próprios limites diante do ambiente

hostil indica o isolamento interno do sujeito, conseqüência do isolamento

externo que a pena como expulsão lhe impôs.

“Por que ‘o outro” que pode despertar-lhe a memória de si está fora dos

muros da prisão. Os demais, que compartilham a sorte do condenado, não

podem despertar-lhe “memória de si”, do que foi antes de iniciar a pena.

Só a consciência de seu estado atual. Por isso, as relações mantidas dentro

da prisão não o ajudarão a recordar-se de si mesmo9, do que era antes

que a pena seccionasse o espaço e o tempo. Seu recordar será limitado e

empobrecido, pois sua memória ficou a mercê de usas próprias forças: já

não recebe o estímulo externo do mundo, que foi seu mundo e que lhe

fechou as porta.s

A relação de coexistência que nasce dentro dos muros da prisão não é

livre, foi imposta pelas circunstancias da pena. É uma relação entre os que

foram excluídos da comunidade de pessoas. E essa exclusão poderia

incluí-los em outra comunidade baseada em uma espera comum: a de sua

dissolução.

Se este são Oe s estados próprios de quem vive a pena, seus tempos

seriam o presente do pretérito e o presente do futuro. E a ambos

corresponde respectivamente à memória e a espera: “por que estas são

três coisas que existem de algum modo na alma, e afora dela já não vejo

que existam: presente de coisas passadas (a memória), presente de coisas

presentes (visão) e presente de coisas futuras (expectativa)”.

Na pena, a prisão do presente se obscurece ante a expectativa do futuro.

O presente só tem valor como passagem do futuro ao passado, pois como

vimos, todo o ser está concentrado na espera.

Assim como na canção a qual se refere Santo Agostinho, a pena antes de

começar é pura expectativa, pois à medida que transcorre, vai passando a

memória, o presente da pena sendo uma passagem do que se espera para

o que se recorda. Como a pena é lesão, to do o ser procurará rechaçá-la, e

para isso lhe resta à memória ou a espera.

Pois o presente só será a simultaneidade, a intersecção do tempo com a

prisão, que é o espaço da pena.

1.12 Conclusão

O problema da justa proporção entre delito e pena se oculta nas

finalidades não retributivas que se atribuem a pena de prisão.

Com efeito, como coloca Mathieu, a prisão tornou-se praticamente o

único meio de castigar os delitos, não por que se aprecie seu valor

simbólico ou por que se pretenda reprimir a vontade do réu. A razoa mais

importante, diz, é outra: ter tomado à pena como um meio de defesa das

sociedades e de seus membros; manter prisioneiro o ocupado serve para

impedi-lo de causar dano. E precisamente por que a prisão resultou como

única modalidade da pena pretende-se justificar a pena justificando a

prisão.

Além dessa justificativa da prisão como “medida de segurança’, também

se a justifica alegando que é apenas um meio para corrigir e recuperar o

delinqüente. Tratar-se-ia de um serviço que a comunidade presta aqueles

membros que demonstraram com seus atos a necessidade de serem

submetidos a uma terapia corretiva. Esta analogia entre o trabalho di juiz

e do médico, a pena e a terapia, o delito e o sintoma de uma doença,

aparece várias vezes nos diálogos de Platão.

Mas, em ambos os casos, na prisão-medida de segurança, ou na prisão-

correção ou curativa, se coloca o problema de fixar a sua duração, que

como temos visto, é o elemento fundamental da pena de prisão. Quando

se terá a certeza de que o sujeito deixou de representar um perigo para a

comunidade? Como fixar de antemão o momento em que isto ocorrerá?

Este seria um ponto de enlace entre ambas as teorias, pois se poderia

responder: no momento em que se tenha recuperado. Mas, como indagar

a pessoa do delinqüente para assegurar-nos de sua correção? Poder-se-ia

responder a esta pergunta dizendo que há sinais exteriores que podem

manifestar essa transformação? Mas quem estaria apto a interpretar

esses sinais? Se considerarmos o sujeito um enfermo, talvez fosse

competente o médio ou o psicólogo; mas ao considerá-lo como um

inadaptado social, talvez a pessoa indicada fosse o assistente social. Mas,

então, a função do juiz deveria ser substituída por estes profissionais, em

cujas mãos ficariam efetivamente a execução da sentença. Nesse caso, a

sentença não seria uma sentença, mas a prescrição de um tratamento. E é

muito difícil prescrever de antemão e sem conhecer também o paciente

quando durará o tratamento. Deste modo introduzir-se-ia no direito uma

incerteza que este sempre procurou evitar. Incerteza não só quando a

duração das penas, mas também quanto à função que efetivamente

cumpriria, já que a correção de um delinqüente é tão difícil de predizer

como a cura de um doente. Assim, na pena seria uma instituição de

funções hipotéticas, possíveis, com algo como um corpo legislativo

instituído não para promulgar leis, mas pela possibilidade, ainda que

remota, de que algum dia chegue a promulgar uma lei.

Além do mais, a melhor prova de “saúde” que nos poderia dar o

delinqüente seria sua capacidade de levar uma vida respeitável junto ao

seu próximo, no seio da mesma comunidade de pessoas da qual tenha

sido afastado. Mas, então, nasceria uma dupla incerteza: quanto tempo

ele deveria ficar sob “supervisão” a te que se possa considera-se

realmente curado? E, por outro Aldo, recordando a função de segurança

que se atribuía a sua detenção, estaria a comunidade de pessoas disposta

a enfrentar o risco de seu retorno, sem provas determinantes de sua

inocuidade?

Sem dúvida, quando se procura fixar a duração da pena, não se colocam

estas considerações. Resolvem-se tudo no mais simples dos modos: a

media da pena é fixada buscando a proporção com o delito. Isto significa

que não se devam levar em conta as finalidades que pretendem justificá-

la, mas a necessidade de retribuir segundo a gravidade do delito.

Evidentemente, não há sentido em fixar a duração da pena segundo a

gravidade do delito quando a pena não é pena, senão terapia, correção,

medida de segurança etc. claro que não será o mesmo corrigir ou curar

quem cometeu um homicídio ou o autor de um simples furto. Mas poderia

acontecer que este último se revele muito mais “enfermo” ou

potencialmente perigoso que o primeiro.

Esta contradição entre a medida da pena e da finalidade que se lhe atribui

nasce da necessidade de fornecer garantias ao sujeito da pena. Por que o

problema fundamental a meu ver, é o seguinte: a pena não pode ser

considerada medida de segurança ou terapia deixa de ser pena.

Em primeiro lugar, ambas se impõem ao sujeito, s ela qual for a sua

vontade. Em segundo lugar, não apenas na maioria dos casos são

vivenciadas como um castigo, mas também, objetivamente, do ponto de

vista social, são consideradas como conseqüências desagradáveis de atos

reprováveis. Portanto, continua-se castigando, ainda que sem reconhecê-

lo.

Como observa Mathieu, é um equivoco de certo modo voluntário: deseja-

se continuar castigando e ao mesmo tempo dizer que não se faz isso. Por

meio do juiz, a sociedade se desculpa com o condenado por submetê-lo a

um sofrimento que!Tem todo o aspecto de uma pena’, ainda que – e se

procura deixar bem claro – não o seja.

Deste raciocínio caberia deduzir o seguinte: a pena seria aplicada

“involuntariamente”. Perderia assim, uma de suas características

essenciais: a medida, no sentido de moderação, modus, enquanto significa

reflexão, deliberação. Aquilo que poderíamos chamar “a planificação” da

pena estaria ausente na prisão medida de segurança ou terapia. O mal

causado seria acessório, incidental.

Nesse sentido, haveria motivos para justificar a lógica retributiva pela

necessidade de proteger o sujeito desse mal “sem medida” ajustando-o a

uma medida determinada. Em virtude desta lógica, a pena sempre seria

fixada em função do passado, do ato delitivo, e, portanto, a medida da

pena teria um ponto de referencia mais claro e preciso, dentro do que lhe

cabe, do que aquele que lhe proporcionaria a eventual cura ou

reabilitação: incerta e sem prazo definido.

Mas também a lógica retributiva assenta-se na idéia de dignidade, que

resultaria impróprio como atributo de uma pessoa que deve submeter-se

a correção ou terapia. Esta seria facilmente assemelhada a uma criança ou

a um louco. Claro que tudo isso exigiria uma definição de dignidade, que

ao quem parece, denota determinada capacidade, neste contexto em

particular para cometer delito.

A prisão considerada como lugar de aplicação da pena, definitivamente,

pode ser definida pela indicação de uma única característica: encontra

fora do espaço social. A pena de prisão é a exclusão do espaço social. Esta

é a finalidade primordial da prisão: a exclusão. Toda futura participação na

comunidade e n o espaço da sociedade requer essa previa exclusão.

O nexo entre delito e pena está claro, pois ambos são lesões. Dessa

perspectiva, que interrompeu a simetria da comunicação social deve ser

privado dessa comunicação social que interrompeu. Contudo o delito tem

uma extensão quantitativa e qualitativa determinada, razão pela qual

deve possuí-la também a sua negação.

“O problema reside precisamente em comparar ‘ a extensão qualitativa e

quantitativa” do delito e da pena. Por que delito e pena são simplesmente

coisas heterogêneas, mas, segundo seu valor, sua propriedade geral de ser

lesões, são coisas comparáveis. Cabe ao intelecto buscar a aproximação da

igualdade de valor entre uma e outra.

Porém, como o intelecto poderá comparar a lesão que significa o delito

com a determinação temporal quantitativa e abstrata da pena de prisão?

Que relação guarda a duração da pena com a gravidade do delito? Se a

gravidade do delito é sua intensidade, como determinar a intensidade d a

pena? Que duração corresponde à determinada intensidade? É possível

mediar à intensidade da pena baseando-se no tempo objetivo, medido

pelas unidades com as quais se mede o tempo do trabalho e da vida

social? E se é possível, quantas unidades temporais corresponderiam a

cada delito?

Todavia, isto não é possível, por que a determinação temporal

quantitativa e abstrata carece por si só de conteúdo punitivo.

Como transformar a magnitude, tantos meses, tantos ano, tantos dias, em

intensidade? Só na consciência do sujeito se opera a conversa de

magnitude para intensidade, porque a intensidade é um fenômeno

interior, pessoal, intimo intransferível. Logo, cada um vive de forma única

e imprevisível sua própria pena. Daí que quando se dita à sentença não se

sabe com certeza qual castigo se está aplicando. Pois as unidades

temporais das quais se fixa a pena sucederão com maior ou menor

lentidão segundo o sujeito. E à medida que o sujeito interiorize essa

duração, irá configurando sua pena.

PA prisão confiamos ao tempo à execução da pena. O sujeito que, expulso

da comunidade de pessoas, entra na prisão, não será o mesmo que sairá

da prisão e que se reintegrará a essa comunidade da qual foi expulso. O

tempo (independentemente das condições em que transcorra) operará

sua gradual transformação. Por que o tempo da pena, por mais peculiar

que seja, escoa-se em comum com o tempo que transcorre livre de pena –

o tempo de vida de um ser humano. E, na medida em que vão se

descontando os anos de pena, igualmente vão se descontando os anos de

vida.

“crescem ou descressem os anos de vida? Quando acaba o caminho? Não

acaba para todos na mesma hora. Cada um tem sua hora para terminar

sua jornada. O caminho, como dizemos, é esta vida; acabaste a vida,

acabou para ti o caminho. Andamos, e o próprio viver é avançar. Imaginais

que avança o tempo e nós ficamos parados? Isso na pode ser. O tempo

avança e no seu espaço avançamos, e ao invés de crescer, míngua o

número de nossos anos (...) os anos vem, dissestes ; eu te demonstro que

não vem, como tu afirmas, antes que se vão, e verás quão simples é

demonstrá-lo. Supunham sabedores dos anos que tem de viver este

menino; verbigracia – e por fazer-lhe mercê- oi tenta anos; chegará

portanto a velhice. Escreva oitenta anos. Já viveu um; quanto tens na

soma?J quantos tinha? Oitenta. Resta um. Viveu já dez? resta setenta.

Viveu já vinte? Restam sessenta. Certo, cresciam os anos, porém que

espécie de crescimento é este? Nossos anos vem para ir-se, não vem para

ficar conosco; passam sobre nós, nos pisam e nos fazem valer cada dia

menos.

The end