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Alexandria, Praça dos Cônsules, 1882. Cairo, Praça Tahrir, 2011. Duas datas. Dois cenários. Entre eles, há uma distância de 129 anos, ao longo dos quais o egito e seu povo viveram trajetória marcada pela opressão interna e externa. Tão longo interregno não foi suficientepara sufocar o anseio por liberdade. Seria imperdoável, editorialmente, perder a oportunidade de registrar o quanto o foco deste livro - a revolta de 1882 - tem a ver com a "Primavera árabe" que começa a despontar.

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José Maurício Saldanha Alvarez

Pena combatenteEça de Queirós e o jornalismo como profecia: a crise de 1882

no Egito, semente da revolta de 2011

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Copyright © 2011 José Maurício Saldanha Álvarez

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizadaou reproduzida, em qualquer meio ou forma,

seja digital, fotocópia, gravação etc., nemapropriada ou estocada em banco de dados,

sem a autorização do autor.

CapaAquarela de Saldanha Álvarez

Arte-finalDemanda Editorial / Cris Lima

EditorGlauco de Oliveira

Editor AssistenteBruno Torres Paraiso

Direitos exclusivos desta ediçãoBooklink Publicações Ltda.

Caixa Postal 3301422440 970 Rio RJ

Fone 21 2265 0748www.booklink.com.br

[email protected]

Pena combatente: Eça de Queirós e o jornalismo como profecia: a crise de 1882 no Egito, semente da revolta de 2011 / José Maurício Saldanha Álvarez – Rio de Janeiro : Booklink , 2011.

244 p. ; 21 cm.

ISBN: 978-85-7729-105-2

1. Eça de Queirós. 2. Comunicação – jornalismo, reportagem, notícia. 3. His-tória. 4. Política. 5. Egito – Canal de Suez, crise de 1882, revolta de 2011. 6. Orientalismo. 7. Imperialismo. I. Álvarez, José Maurício Saldanha. II. Título.

CDD ..............

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A meu pai e grande amigo José Batista Teixeira Álvarez,

que nos deixou em outubro de 2009, para assistir ao teatro do mundo

de um balcão privilegiado.

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“A arte não é o capricho de um indivíduo ou outro, mas um solene e histórico compromisso ou uma profecia. (...) Sem a terra natal

podemos ter profetas da arte, mas não a Arte em si mesma”. Giuseppe Manzzini, 1860 (Bayly, 2004, p. 366).

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Nota do Editor ....................................................................................... 13

Apresentação .......................................................................................... 15

Introdução .............................................................................................. 19

Primeira parte

Capítulo 1. Nação, cultura, e jornalismo em Portugal e no Brasil do século XIX. .............................................................. 27

Capítulo 2. O Oriente Médio de Aboukir ao Canal de Suez: a miragem oriental ........................................... 58

Capitulo 3. Eça de Queirós e a inauguração do Canal – um iconotexto orientalista ........................................... 83

Capitulo 4. Tópico epistolar e linguagem telegráfica ......................... 102

Segunda Parte

Capitulo 5. Do Canal de Suez a Arabi Pachá ...................................... 127Capítulo 6. Vigília de armas em Alexandria:

vésperas do bombardeio ................................................................. 155Capítulo 7. Modos de valentão de romance

picaresco: o bombardeio de Alexandria ........................................ 183

Conclusão ................................................................................................ 211

Fontes e bibliografia .............................................................................. 223

Sumário

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Alexandria, Praça dos Cônsules, 1882. Cairo, Praça Tahrir, 2011. Duas datas. Dois cenários. Entre eles, há uma distância de 129 anos, ao longo dos quais o Egito e seu povo viveram trajetória marcada pela opressão interna e externa. Tão longo interregno não foi suficiente para sufocar o anseio por liberdade. Seria imperdoável, editorialmen-te, perder a oportunidade de registrar o quanto o foco deste livro – a revolta de 1882 – tem a ver com a “primavera árabe” que começa a despontar.

As grandes revoluções que se disseminaram pelo mundo desde os finais do século XVIII não apenas o tornaram atualmente menor, mas interdependente e em comunicação direta entre todos os seus ato-res. Resulta daí uma trama tão solidária entre os protagonistas que um evento traumático ocorrido num país, imediatamente se reflete na to-talidade. Dessa maneira, se ninguém era uma ilha, na alta modernidade não mais se pode viver isoladamente. A modernidade como um pro-cesso foi alicerçada e disseminada graças à sua agenda inauguradora comportando tanto a revolução industrial como o novo ideário polí-tico inclusivo. Se ela disseminava tecnologias, disseminava igualmente os direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a noção de alteri-dade, a democracia e uma palavra totalizante que se gastou numa prá-tica autoritária monocrática: república.

Não houve país ou região no globo terrestre por mais distante que fossem dos epicentros que resultassem imunes a essas transforma-ções. Assim ocorreu com religiões e ideologias como o Islã, que eram aparentemente fechados, se não totalmente hostis à modernidade, e que resultaram modificados pela irrupção moderna.

Nota do editor

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O tema desta obra, portanto, é a turbulência que sacudiu o Egi-to no final do século XIX, apresentada de maneira envolvente e enri-quecedora, mostrando como esse país africano foi transformado pelo projeto modernizador. Inicialmente empolgado por uma dinastia de governantes autoritários, culminou em 1869 com a inauguração do Canal de Suez. Esse poder dominado por ambições e desvarios pesso-ais, conduziu o país do Nilo à submissão estrangeira e seu povo à bru-tal espoliação econômica e social destinada a extorquir a recursos para honrar uma dívida leonina.

O ponto culminante dessa narrativa são os acontecimentos que sa-cudiram, em junho de 1882, a bela e trepidante cidade de Alexandria, o principal porto do Egito e porta do vital Canal de Suez. Uma rus-ga que seria banal se não fosse a gota d’água, opondo um estrangeiro prepotente a um humilde egípcio detonou a revolta popular contra o governo títere e a dominação estrangeira. O Egito nesse momento ad-quiriu consciência de sua inserção no mundo moderno, mas aspirava a fazê-lo de maneira autônoma, independente e respeitada. A lideran-ça do movimento foi confiada a um militar de origem modesta, Ara-bi Pachá, que enfrentou de maneira desigual a intervenção militar im-perialista.

Eça de Queirós que se notabilizou por sua impressiva carreira de romancista em ambos os lados do Atlântico de fala portuguesa, mos-trou-se um jornalista atento ao jogo discursivo e das metáforas empre-gadas pela mídia imperialista. Ao redigir as matérias publicadas entre outubro e novembro de 1882, para o jornal A Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro cobrindo os eventos egípcios, dissecou implacavelmen-te nesse libelo apaixonante e estilisticamente preciso – talvez o pínca-ro a coroar sua carreira jornalística – falácia imperante nas relações in-ternacionais modernas.

Revisitando os acontecimentos de 1882, este ensaio atinge uma atualidade que nos conduz ao pano de fundo do ano de 2011 com a eclosão em janeiro da revolução popular no mesmo país: o Egito. Em-bora o cenário de sua erupção se tenha deslocado da Praça dos Côn-sules, em Alexandria, para a Praça Tahrir, no Cairo, ela resultou na remoção do governo autoritário e insensível as demandas nacionais. Governos como os da Tunísia e do Egito se mostram ditaduras en-volvidas pelos nomes modernos de república presidencialista. Histo-ricamente desgastadas, suas fórmulas operacionais nos contextos pós-coloniais dos anos 1950 estavam superadas. Sua submissão patética e serviçal aos ditames do Consenso de Washington os levou a igno-

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rar que sua população havia mudado como se transformaram seus an-seios e carências cada vez mais jovens, cada vez mais modernos.

A leitura deste livro nos convida, portanto, a algumas reflexões so-bre a modernidade e seus impactos no Oriente Médio e no mundo. Se a imprensa escrita desempenhou papel crucial no passado, a revolu-ção tecnológica informacional e digital nos colocou diante do tremen-do impacto mobilizador das redes sociais. A articulação online das po-pulações da Tunísia e do Egito por meio das redes sociais na internet consolidou, por um lado, uma resistência irreversível à opressão. Por outro, a pertinência da definição de política concebida por Jacques le Goff, como sendo o lugar onde os homens definem seus destinos.

Finalmente, a leitura deste livro nos leva à convicção de que, se em 1882 ocorreu um poderoso levante popular contra uma finança desa-piedada, em 2011 outra opressão travestida de globalização, erguem-se os mesmo anseios populares de liberdade. Como bem os definiu o poeta anglo-irlandês Day-Lewis, são muito mais do que moeda infla-cionada ou o cheque sem fundos do tirano de plantão. Eles são feitos à imagem e semelhança do povo que prefere morrer a ver essa imagem traída. Como fecho talvez se deva levar em conta de que, se em 1882, a vitória foi roubada, esperemos que desta vez nem como farsa a his-tória se repita. Graças às novas mídias sociais, os homens podem falar diretamente e interagir uns com os outros e como uma nova reforma, chegar diretamente, se não a Deus, provavelmente a uma comunica-ção direta com os outros homens.

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Ana Teresa PeixinhoProfessora Auxiliar na Faculdade de Letras

da Universidade de Coimbra (FLUC)

Numa famosa carta prefácio a Azulejos do amigo Conde de Arno-so, Eça de Queirós deixa-nos uma palavra ainda hoje de grande atu-alidade sobre o papel do prefaciador e a função sociocultural do pre-fácio. Explica o escritor que, se antes do advento da modernidade, o proémio era o espaço reservado à doce convivialidade entre escritor e leitor, gerando um clima de intimismo e confiencialidade, propício à leitura serena, contida e refletida, no século do vapor tudo se alte-rou. Outrora, como explica a arguta pena de Eça, “tinha de haver uma apresentação condigna, solene, copiosa; e isso passava-se nesse peda-ço de prosa em tipo largo, com citações latinas, que se chamava o Pre-fácio. Aí, o autor modestement courbé, diante do leitor acolhedor e riso-nho, falava com prolixidade de si, das suas intenções, da sua obra, da sua saúde; dizia-lhe doçuras, chamava-lhe pio, perspicaz, benévolo: justifi-cava os seus métodos, citava as suas autoridades: se era novo, mostra-va corando a sua inexperiência em botão: se era velho, despedia-se do leitor à maneira de Boileau, numa pompa triste, como da borda dum túmulo”. A contrastar com este passado cerimonioso, o homem de le-tras oitocentista escreve para a multidão:

“Foi então que se sumiu o leitor, o antigo leitor, discípulo e confi-dente, sentado longe dos ruídos incultos sob o claro busto de Mi-nerva, o leitor amigo, com quem se conversava deliciosamente em longos, loquazes Proémios: e em lugar dele o homem de letras viu

Prefácio

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diante de si a turba que se chama o Público, que lê alto e à pressa no rumor das ruas”.

Retomo estas reflexões queirosianas porque, além da espantosa modernidade que traduzem, evidenciando o gênio de um homem que vive para além do seu tempo, elas também me permitem estruturar um bom começo para este texto, que configura um gênero textual que nunca experimentei até hoje.

Na verdade, foi com surpresa e também com uma imensa satisfa-ção que recebi o convite de José Maurício Saldanha Álvarez para pre-faciar esta obra. Surpresa porque creio que este livro merecia outro prefaciador, que cumprisse plenamente as funções de que geralmente se investe esta figura: projeção institucional do autor, credibilização da obra… Satisfação porque este convite me permite expressar publica-mente o meu testemunho do árduo labor e intensa atividade intelectu-al que presidiu à gênese deste trabalho acadêmico.

Entre 9 de novembro de 2009 e 22 de fevereiro de 2010, José Mau-rício Saldanha Álvarez desenvolveu, ao abrigo de um estágio senior na Universidade de Coimbra, uma investigação notável a vários ní-veis, que culminou com a produção deste circunstanciado ensaio, a di-versos títulos muito pertinente e relevante para o campo dos Estudos Queirosianos.

Cruzando contributos científicos de proveniência diversificada, desde a História Política, à História Literária, passando fundamental-mente pela História da Cultura do Século XIX e pela História do Jor-nalismo, a obra de José Maurício Álvarez revela-se muito profícua, acabando por resultar num ensaio original, muito sólido, que cruza a leitura de uma vastíssima bibliografia, bem como de documentação consultada em alguns países europeus.

Do ponto de vista da sua pertinência científica, este livro recoloca algumas questões importantes, no âmbito dos Estudos Queirosianos, problematizando temas ainda pouco explorados da história estético-ideológica do romancista português, nomeadamente a importância do orientalismo em Eça, o relevo de alguns dos seus textos de imprensa, lidos de forma muito lúcida e plural.

Sublinho igualmente a originalidade do estilo do autor: recorren-do a um discurso claro mas suficientemente circunstanciado, sem pôr em risco a precisão científica e a profundidade dos problemas, a leitura deste livro revela-se aprazível e muito atrativa, provando que por vezes,

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haja engenho e arte para o atingir, o discurso acadêmico pode ser trans-formado em texto de prazer, para utilizar a feliz expressão de Barthes.

Cumpre-me também assinalar que, ao longo destes meses de pes-quisa, o autor manteve um estreito diálogo com especialistas da ma-téria, bem como uma intensa e laboriosa relação com a principal bi-bliografia sobre estes temas. Leitor assíduo da Biblioteca Nacional, pesquisador incansável, José Maurício Saldanha Álvarez produziu uma obra digna de vir a público, que interessará certamente qualquer aman-te da Literatura Portuguesa, nomeadamente os estudiosos de Eça de Queirós. No entanto, a latitude dos seus considerandos, a reflexão so-bre uma multiplicidade de conceitos cruciais para a História da Cultu-ra bem como a atualidade de algumas das linhas de investigação segui-das, de que é exemplo paradigmático a questão da imagem do Oriente, são fatores de peso que alargam consideravelmente o potencial públi-co deste livro.

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Coimbra, 3 de novembro de 2010

1 No dia 10 de julho de 1982, fui descansar no fim de semana na localidade do Baixo Grande, São Pedro d’Aldeia, no Esta-do do Rio de Janeiro. Ao chegar desabava um temporal sobre

a região e fiquei isolado em casa. À noite, quando a luz elétrica se ex-tinguiu, acendi algumas velas. Envolvido pelo temporal senti uma fome de leitura. Na estante, peguei ao acaso um volume atarracado de capa escura. Com a ajuda da luz vacilante, vi que se tratava de exemplar das obras completas de Eça de Queirós. Com interesse crescente passeei os olhos de forma incerta sobre o índice, buscan-do um título que me agradasse e, entre tantos, um deles me cativou: Os ingleses no Egito. Acomodei-me nas almofadas do sofá e come-cei a ler. Quando cheguei ao final dos artigos, as velas se apagavam embora o vento sudoeste continuasse a soprar raivoso. Fitei meu re-lógio. Passava da uma hora da manhã. Dei-me conta então de que eu já estava no dia 11 de julho de 1982, quando o bombardeio britâni-co de Alexandria completava 100 anos. Reli esse folhetim político al-gumas vezes, experimentando sempre a emoção da primeira leitura. Quando viajei ao Egito, levei comigo o velho tomo como um guia para percorrer os locais relatados.

Introdução

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2 No ano de 2009 vislumbrei a possibilidade de realizar em Por-tugal um estágio sênior investigando a obra de Eça pela entra-da do jornalismo. Após debater o assunto com minha esposa,

Maria Lúcia, ela insistiu que eu submetesse o projeto a uma agência de fomento. Seguindo seu alvitre, elaborei a proposta que resultou apro-vada pela Capes. Foi graças a esse auxílio que pude redigir o ensaio. Sou reconhecido aos pareceristas que acreditaram na minha promessa de redigir e publicar um ensaio. Viajando nos primeiros dias de de-zembro, apresentei-me à minha orientadora em Portugal, a professora e doutora Ana Luiza Peixinho, da Universidade de Coimbra, que me proporcionou uma interlocução amiga e eficaz.

Eça de Queirós é um autor cuja memória se disputa em ambos os lados do Atlântico de fala portuguesa. Nos derradeiros anos, a produ-ção acadêmica sobre sua obra se multiplicou em análises valiosas. Eu, porém, após mapear o estado da arte, coloquei diante do objeto no-vas questões. Meu ofício de historiador havia detectado alguns proble-mas decorrentes das indagações a que havia submetido o objeto. Redi-gi cerca de 600 laudas durante dois meses e meio em meu computador portátil ao lado da minha esposa e interlocutora, Maria Lúcia que ela também fazia seu estágio sênior. Dividiamos uma bancada de traba-lho num modesto embora acolhedor apartamento situado na Calçada Nova do Colégio, em Lisboa. A parede posterior desse imóvel era um segmento das muralhas fernandinas que circundavam a cidade e ainda pontilham este pitoresco logradouro lisboeta. Da janela da sala eu di-visava a massa escura de uma das torres dessa muralha que se tornou moradia de algumas gaivotas do Tejo.

Meu horizonte era formado pela massa de pedra e verdejante do Castelo de São Jorge. Não raro para espairecer do trabalho, eu percorria a pé e atento este pitoresco bairro murado. Às vezes ini-ciava minha caminhada desde as portas de Santo Antão ou, ainda, por São Domingos, sugindo pela Calçada de Sant’Ana, onde Ca-mões faleceu mas que nos presenteava com uma esplandorosa vis-ta do Tejo. Bem próximo, embora distanciada por séculos, estava a modesta morada onde nasceu a mágica, bela e célebre fadista Amá-lia Rodrigues. Foi ao abrigo desta paisagem secular que desenvolvi a empreitada. Revisei, incansável, o trabalho nos dias e noites frias desse inverno gelado do ano de 2010. Finalmente, o ensaio foi redu-zido a 280 páginas que ainda podem ser desbastadas entre um prato de bacalhau, uma garrafa de Porca de Murça e um pastel de Tentú-gal, iguaria que se deve comer de olhos cerrados porque é uma for-

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ma de devoção a Endovélico, uma antiga e benfazeja divindade dos antigos lusitanos e romanos.

Este livro analisa a prática de Eça em sua função jornalista, tendo como objeto dois eventos ocorridos no Egito do século XIX. A ver-são dos textos adotada é a que se encontra na edição das obras de Eça de Queirós, realizada pela Lello & Irmãos, referenciada neste ensaio como OEQ. O primeiro foi a inauguração do canal de Suez reportada de forma epistolar e publicada em 1870. O segundo reconfigura o ata-que britânico à cidade portuária de Alexandria, em 1882. Esta matéria foi redigida como um folhetim e publicada no mesmo ano. Como Eça de Queirós acreditava nos ideais humanistas e liberais manteve intac-to seu compromisso com a verdade, um fundamento existencial irre-dutível. A leitura de alguns periódicos do século XIX primordialmen-te ingleses, mas também, norteamericanos, lançou algumas luzes sobre a inauguração do Canal de Suez, questões estéticas do orientalismo e o ataque a Alexandria. A maioria das citações foi traduzida preservan-do-se algumas passagens curtas e de fácil tradução no idioma original, preservando seu contexto.

Este ensaio, por ser ensaio, cercou de um amplo acervo teóri-co e de leituras que dessem conta de algumas questões. Eça sempre me pareceu bafejado por impulso profético romântico, o que me fez considerar Paul Bénichou como o fundamento teórico básico. O li-vro deste autor intitulado El tiempo de los profetas. Doutrina da era romântica demonstrou que a profecia era uma prática da intelectua-lidade do século XIX. Essa posição foi confirmada na leitura erudita de Hobsbawm sobre o XIX, para quem, pensadores, escritores e ar-tistas, anunciavam revoluções e proclamavam utopias, atingindo em seus países o patamar de legisladores informais. Como profeta, prog-nosticou para seus leitores brasileiros e os portugueses radicados nes-se país americano, não a boa nova, mas um tempo de lutas e alertas no contexto das lutas imperialistas. Em janeiro de 2011 a inssurrei-ção que eclodiu no Egito, contagiou a região, refletindo a capacidade profética de Eça. O sentido de profecia está presente na obra de Eça como o resultado de uma extraordinária intuição em assuntos inter-nacionais. Uma de suas biógrafas, a professora Filomena Mónica, ci-tou, a propósito, um estudioso britânico que, analisando a derrocada da dinastia alemã dos Hohenzollern, em 1918, se declarou abismado com a clarividência de Eça. Nosso autor previu, ainda no século XIX, a eclosão de uma guerra mundial que eclodiu em 1914, muitos anos após sua morte (Mónica, 2003, p. 37).

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Um dos papéis desempenhados por diplomatas no século XIX era a prática da informação, da espionagem, da produção de infor-mes e avaliações para seus governos como uma história do presen-te a ser lida como uma história do futuro. Como jornalista e ficcio-nista empregou Eça de Queirós a prática do historiador, colocando a fabulação do real nos domínios do racional e do possível. Jean La-couture, ao comentar a respeito dos papéis do jornalista e do histo-riador, concluiu que a autoridade do segundo provém não de sua ca-pacidade para prever acontecimentos prodigiosos, mas por ser dono de uma “autoridade crítica” e praticar a “racionalização do fabulo-so”. Ou seja, ele “deve transformar sua surpresa diante do evento numa aventura de exploração crítica. “O que se pode esperar” – con-cluiu Jean Lacouture – “de um analista que não soube ser profeta?” (Lacouture, 224). O trabalho periodístico de Eça no século XIX im-plicou o exercício de uma ética, qualidade que, nas derradeiras déca-das da centúria, era praticada por um grupo pequeno de profissionais detentores de formação humanista e liberal. Seguindo os passos de alguns de seus confrades franceses formados nessa tradição, achava que era dever do jornalista se dedicar ao seu povo, defender os des-validos, mantendo uma posição ética e independente. Finalmente, os artigos da lavra de Eça desnudam a falácia discursiva contida na im-prensa imperialista britânica, colocando sua pena combatente ao ser-viço do resgate da condição humana, onde todos seriam portadores de uma dignidade natural refletida na diversidade cultural e histórica. Encerrando nossa introdução, me recordei da rápida incursão a uma Londres hibernal onde, num clima característico da última versão de Sherlock Holmes, li nos já mencionados relatos dos senhores Blunt, Wilson, e Royle Charles, o que talvez fosse a raison d’etre das repor-tagens encomendadas a Eça de Queirós pela Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro: destruição do consulado do Império do Brasil, em Alexandria, pelos egípcios em luta contra o imperialismo. Essa pista se confirmou nos arquivos do Itamaraty, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro, na leitura dos relatórios e ofícios redigidos pelo cônsul do Brasil em Alexandria. Aproveitamos para agradecer a es-timulante recepção que tivemos no Arquivo Histórico do Itamaraty, por parte do Sr. Miranda. Ele debateu conosco alguns itens enquan-to líamos as notas tensas e acuradas do nosso cônsul em Alexandria, reportando a conjuntura da crise que desembocou no bombardeio de 1882. É que entre as propriedades destruídas nessa cidade portu-ária egípcia pelo povo enfurecido, se encontrava o consulado do Im-

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pério do Brasil, cujo titular se refugiou numa embarcação francesa que o conduziu em segurança até Marselha.

Por outro lado, na velha Península Ibérica dividida entre naciona-lidades e centralismos, entre autonomias e rupturas, entre reescritas e esquecimentos, a questão orientalista foi outra. Ela foi a secreta, a dis-creta e incessante busca da identidade. Anos atrás, durante uma esta-da no Cairo, conversando com um professor e escritor egípcio, expri-mi sinteticamente minha admiração por Eça de Queirós. Revelei que uma parte da vasta obra desse escritor versou sobre temas levantinos e o Egito em especial. Meu interlocutor, que me escutava atentamente, me declarou surpreendido não conhecer esse escritor de origem ára-be. E procurou me corrigir: “Você pronunciou sobrenome dele erra-do”, disse, condescendente, “não se trata de Queirós, o correto é Cai-ruz”. Expliquei desta vez, para surpresa dele, que não se tratava de “Cairuz”. Era Queirós, sim senhor! Um escritor português e peninsu-lar e europeu! E não árabe!

Quando estive no Marrocos, visitei a tumba de rei-poe-ta al-Mu’tamid, um belo mausoléu localizado a alguma distância de Marraquesh,na pitoresca localidade de Aghmât O diretor do estabele-cimento apresentado pelo nosso guia nos recebeu e, cortesmente, leu em árabe os poemas gravados nas paredes. Em volta de nós circula-vam pessoas de todas as idades, atestando o apreço de que desfruta naquele país a obra de al-Mu’tamid o maior poeta árabe da Idade Mé-dia. Ao revelar ao diretor que o meu próximo destino era a cidade de Lisboa, ele sorriu, disse-me que al-Mu’tamid tinha nascido em territó-rio hoje português, tendo reinado em Beja e em Xilb, atualmente Sil-ves, no Algarve. Explicou-me que o rei-poeta foi condenado ao exílio em Marraquesh como resultado trágico de uma guerra infeliz. Nesse lugar compôs poemas belíssimos, se recordando das palmeiras penin-sulares que lhe pareciam singularmente mais belas que as de Marrocos. Teria sido ele algum remoto papel no invento do sentimento tão ge-nuinamente português denominado saudade? Teria algum compêndio de al-Mu’tamid sobrevivido nas estantes coimbrãs varridas pelo San-to Ofício? Meu compatriota Antônio Gonçalves Dias lá estudou em 1838. Teria o poeta maranhense lido al-Mu’tamid ao escrever seu nos-tálgico poema “Canção do exílio”, cantando as palmeiras de sua ter-ra onde canta o sabiá?

Dei-me conta, então, de que essa África, na célebre boutade de Victor Hugo, realmente começava nos Pirineus. A nutrida quantidade de monumentos associada em múltiplas referências geográficas e to-

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ponímicas à presença levantina na Península Ibérica, converteu-se em fonte perene e fascínio e sedução. Ao mesmo tempo, produziu uma intricada relação identitária. A profunda afeição de Eça pelo Levan-te pode ser aquilatada de inúmeras formas. Registro uma, ocorrida no curso de uma polêmica epistolar travada com o seu desafeto, Pinhei-ro Chagas. Eça, para nós, parece fornecer uma pista dessa procura de si, quando escreveu em 28 de janeiro de 1881, ao seu antagonista: “De resto, caro Chagas, você tem razão. Ninguém ignora que eu sou um camelo. O meu lugar não é aqui no Atlântico: é lá ao longe na extensa fila de minha caravana, pelo deserto fora, em direitura a costa do He-jaz” (OEQ, vol. II, p. 1407-1408).