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O TEMPO COMO PENA, PÁGINAS NECESSÁRIAS PARA O RESUMO...
Pena e retribuição
A multiplicidade de teorias que pretendem justificar a pena revela o
profundo problema de consciência que esta instituição suscita. A pena é
um exemplo de ma consciência.
É natural que o causar um mal ao próximo desperte um sentimento de
culpa, e, por conseguinte, a necessidade de explicar as razões que tenham
levado a agir deste modo. Praticamente todas as teorias que foram
elaboradas em torno da pena buscam justificá-la demonstrando que esta
consiste apenas num meio que leva a um fim qualificado como bem.
Todavia, a pena corresponde a sentimentos muito arraigados, como o
sentimento de culpa que aparentemente desperta.
Benveniste assinala que a origem do termo em grego era poine, que
correspondia exatamente ao significado de vingança, ódio: a retribuição
destinada a compensar um crime, a expiação de sangue. Daí que também
se de a transposição afetiva em ódio, vingança considerada como
retribuição.
O conceito de retribuição tem uma importância fundamental para a vida
social, responde a estrutura do intercambio, sem a qual a vida social não
existiria, cada prestação dá lugar a uma contraprestação. E, ao aceitar co
toda naturalidade que a prestação qualificada como positiva de lugar a
uma contraprestação qualificada como positiva, haveria também de se
aceitar que uma prestação negativa de lugar a uma contraprestação
negativa.
Ao basear a pena no intercambio, como uma parte deste, ou seja, uma das
prestações que o integram, deve-se considerar que a pena, se dá e não se
aplica. Isto seria valido no caso em que se tratasse de uma retaliação
sujeito-objeto, na qual o sujeito aplicaria determinada coisa ao objeto.
Entre dois sujeitos só é admissível que um dê e o outro receba, e vice-
versa. O dar e o receber têm uma raiz etimológica comum: Benveniste
considera que esta raiz “do” não significa exatamente nem dar nem
receber, mas tanto um ou como outro, segundo a construção do termo.
Assim como na vida econômica este dar e receber sucede-se
harmonicamente, na vida social e jurídica também.
Esta reciprocidade das prestações é tão indissolúvel na vida social que a
mesma palavra comunidade a compreende. Com efeito, em múnus se
encontra o conceito de dever, função, mas também favor, e com-munis
significa literalmente “quem participa nos munia ou munera”. É certo que
há uma obrigação de dar na medida em que se recebe, e aqueles que
participam neste dar e receber formam parte da comunidade. Desse
modo, a idéia de retribuição é inerente a vida social. Responde a
determinada simetria das prestações, que permite o equilíbrio do sistema.
Estabelecer normas de comportamento entre os indivíduos significa
respeitar essa simetria.
Por isto, quando alguém causa um dano a outro, é preciso reparar esse
dano. Mas, como a comunidade de pessoas não é um sistema mecânico,
mas social, tem uma história, e como a história é irreversível e não pode
dar marcha-ré não é possível recolocar as coisas em seu lugar, impor a
simetria restabelecendo simplesmente a situação anterior.
No entanto, ainda que essa reparação fosse plenamente possível, o
equilíbrio estaria restabelecido somente em parte, pois, a menos que a
reparação constituísse ao mesmo tempo uma pena para o autor do delito,
por si só não bastaria para restabelecer o equilíbrio perdido. Por que este
não se esgota em relações s interpessoais. O delito não só constitui uma
lesão a um dos membros da comunidade de pessoas, mas a lei dessa
comunidade de pessoas. Altera o equilíbrio em dois planos: o individual e
o social. A preparação pertencente ao primeiro e a retribuição ao
segundo. Esta concepção juridicamente pura da pena, ou seja, desprovida
de toda valorização alheia a própria violação da ordem jurídica, é, por
exemplo, a de Hegel, o que importa é que o delito deve ser eliminado não
como o surgimento de um mal, mas como lesão do direito como direito, e
então é preciso averiguar qual é a existência que tem o delito e como
deve ser eliminado.
Ou seja, independentemente do mal que haja causado, o delito deve
anular-se porque é em sim mesmo um mal. A reparação de suas
conseqüências não constitui a pena. Embora possa ocorrer uma
coincidência de fato, esta coincidência nunca é conceitual. Por isso a
pergunta de Nietzsche – “como pode o “fazer sofrer” ser uma reparação”?
_ Cabe responder que o “fazer sofrer” da pena não visa reparar, mas
castigar.
Daí que se deva distinguir entre os dois conceitos: reparação e retribuição.
A principal finalidade da retribuição parece ser reafirmar determinada
situação considerada justa, adequada, ou simplesmente desejada, que
tenha sito ameaçada ou modificada por um ato não desejado.
Na realidade, a situação como conseqüência do delito, não foi apenas
ameaçada, mas alterada. A retribuição supõe a volta do justo equilíbrio
das coisas, considerado em função do que o corre ao agente e não em
função do que se restitui a vitima.
A distinção entre o que corresponde a vitima e o que corresponde ao
delinqüente é imprescindível para definir a pena. O que corresponde a
vitima fundamenta-se no direito desta a receber uma reparação pelo dano
sofrido. Mas a pena, como correspondente ao delinqüente, funda-se
também em um direito, que é por sua vez um dever não só da vítima, mas
da comunidade de pessoas, por que a comunidade de pessoas converte-se
desta forma na destinatária indireta de toda lesão sofrida por uma pessoa,
posto que considere que cada lesão a uma pessoa ameaça, põe em perigo,
toda a comunidade. Daí que não só interessa “aquilo que se restitui a
vitima”, mas principalmente aquilo que sucede ao agente.
E o que acontece ao autor do delito é precisamente a pena como
retribuição da comunidade de pessoas que se viu ameaçada pelo seu ato.
E a retribuição da pena é uma retribuição negativa, por que pretende
negar o delito.
Portanto, se a reação supõe a retribuição se origina de uma lesão a uma
pessoa, não é também contraditório que a mesma comunidade de
pessoas, mediante a pena, inflija um mal a pessoa do delinqüente?
Durkheim assinala esta contradição como uma das causas da suavização
da penas. Há, diz ele, uma verdadeira e irremediável contradição no ato
de vingar dignidade humana ofendida na pessoa da vítima, violando-a na
pessoa do culpado..
Mas, observa este autor, a contradição é irremediável, e, dado que não
pode ser eliminada, tem elevado a suavizar a penas, pois o delinqüente,
como pessoa também merece o respeito da comunidade de pessoas. Uma
possível solução seria considerar que a pena não significa “violar a
dignidade humana” do delinqüente, mas, ao contrário, respeitá-la,
considerando-o um ser racional que recebe o que merece segundo seus
atos. Assim se justificaria a pena em função da simetria necessária para a
vida social.
Além disso, essa “violação da dignidade humana” – para empregar as
palavras de Durkheim – consiste, sobretudo, na negação de uma vontade.
Desde a perspectiva retributiva, a negação dessa vontade é imprescindível
para a existência da comunidade de pessoas, por que essa vontade tem-se
manifestado contraria a ela. A comunidade de pessoas deve reafirmar
ante cada manifestação de uma vontade que pretende negá-la, dando
uma resposta uniforme, única e ultima. Sua contraprestação é o elo final
da cadeia. Não dá lugar a outra prestação. E este caráter de ultima
prestação nasce da desigualdade que existe entre o sujeito do intercambio
no qual intervém a pena.
“Com respeito a teus pais- e o mesmo diríamos respeito de teu amo, se o
tivesses- não dispunhas de uma igualdade de direitos que te permitira
tratá-los da mesma forma que eles a ti: não podias, pois, ainda que
falassem mal de ti, falar mal deles, nem golpeá-los, ainda que te
golpeassem etc. como então desfrutarás essa igualdade com respeito a
tua pátria e suas leis?”
Não há igualdade de direitos entre a comunidade de pessoas e cada um
de seus membros. Por isso, quando a comunidade golpeia, não há um
golpe em troca. Por esta razão, a pena é pena e não vingança.
A vingança encerra o perigo de outra relação de desigualdade não apenas
entre sujeitos, mas entre as prestações. Por que a vingança exerce-a o
ofendido, e ao ofendido o dano se apresenta não em sua limitação
quantitativa e qualitativa, mas apenas como dano em geral, e ao retribuir
pode exceder-se, o que levaria outra vez a um novo dano.
Uma das razões de ser desta relação em que se inscreve a pena é a
necessidade que se retribuía respeitando certas regras quantitativas e
qualitativas, que haja contraprestação e não uma nova prestação que não
guarde relação com a primeira.
1.2 A MEDIDA
Benveniste indica que a raiz MED não se prefere a uma medida no sentido
de medição (para a qual existe a raiz me, donde provém mensis, mês,
medida de dimensão) mas a medida que se impõe as coisas. Não se trata
de “metior”, mas de “moderari”, ou seja, de submeter à medida.
Comparando-a com a acepção de medida de dimensão, diz “Nós vemos
algo muito diferente em “modus”: uma medida de contrição, que supõe
uma reflexão, premeditação, e se aplica a uma situação desordenada”.
Nesta definição vemos vários elementos: por um lado, limitação, reflexão,
deliberação: por outro, uma situação desordenada.
No tema que nos ocupa, a situação desordenada que provocou o delito,
apenas com sua existência, exige que a segunda prestação seja produto de
uma deliberação, reflexão como é a resposta a uma pergunta. Pelo
simples fato de ser resposta, a contraprestação a pena leva em si certa
medida. Além disso, pretende, por que nisso consiste, impor medida,
submeter a medida determinada situação. Mas não a uma medida
arbitrária, e sim a uma medida já estabelecida. Por isso podemos dizer
com S. Cotta, que a pena é um ato que reúne os três tipos de medidas
seguintes: uma medida interna ao ato, pela qual se dá um atuar com certa
medida; uma medida externa, pela qual se dá um atuar segundo certa
medida; e a medida final, que o ato está destinado a introduzir.
S. Cotta refere-se a pena como um ato que reuni e esses três tipos de
medidas, por que, ao seguir previamente determinado procedimento, é
evidente que respeita determinados limites. Tratar-se-ia, pois, de um ato
com medida (“atto automisurantesi”), contudo, o autor assinala que este
caráter é dado também pela necessidade de que guarde certa proporção
relativamente ao ato pelo qual responde. E, quanto ao segundo tipo, a
medida segundo a qual se exerce o ato, estaria dada pelas normas penais
(“consistiria na “misura externa AL” atto”. E também teria uma medida
orientada a uma finalidade, reequilibrar as posições.
Por isso, distingue-se o ato da pena do ato que a antecede, ainda que
exteriormente sejam dois atos idênticos. Como o sacrifício, consiste em
um ato violento, mas a sua violência não é a mesma que o provoca. Nada
mais diversos que estas duas gotas de sangue, e, no entanto, nada mais
similar. A metáfora com que Girard refere-se ao sacrifício é aplicável a
pena.. É uma mesma substância a quemancha e a purifica, há uma
aparente identidade entre o mal e o remédio. Mas, apesar dessa
identidade aparente, a pena e o delito se contrapõe em virtude da
presença ou ausência de medida, dessa medida que é também um
moderari, restabelecer um equilíbrio. Pois ali onde falta a prestação
correspondente, há uma situação de desequilíbrio, que é preciso corrigir
para restabelecer a normalidade perdida.
Portanto, parte da medida do ato no qual consiste a pena será dada pela
relação que guarda com o delito.
1.3 RELAÇÃO ENTTE DELITO E PENA.
Sua manifestação mais simples seria a lei de talião. Mas desde um ponto
de vista prático, esta leva a situações absurda (furto por furto, roubo por
roubo, olho por olho, dente por dente...).
A dificuldade deriva da busca de uma igualdade entre os atos encontrar-
se-ia também no intercambio no qual se funda a vida social. O intercambio
o requer uma operação intelectual que vá além da aparência exterior das
coisas e dosa tos e encontra e um elemento que permita compará-los. É
preciso superar a igualdade específica e a natureza imediata da coisa.
“Somente, segundo este ultimo aspecto [a forma exterior específica do
castigo], o roubo, o furto e a pena de prisão são totalmente diferentes;
mas segundo seu valor, sua propriedade geral de serem violações [lesões],
encontra-se o elemento comparável”.
Precisamente é possível que se realize o intercambio entre delito e pena,
por que ambos têm um mesmo valor negativo, sua propriedade geral de
serem lesões. Por isso, a pena como retribuição a um mal não pode ser
senão um mal. Do contrário, como seria possível comparar um mal com
um bem?
No entanto, uma vez encontrado o elemento comum que permite
restabelecer a relação de intercambio, é preciso encontrar uma proporção
entre essas prestações, proporção que, como temos visto, não pode
basear-se na mera igualdade. O ato com a medida da pena define-se
assim, entre outras coisas, pela proporção que guarda com o que o
precede e causa. “se a geometria fosse adaptável as infinitas e obscuras
combinações das ações humanas, deveria existir uma escala
correspondente de penas em que se graduassem desde a maior até a
menos dura’. Aconselha Beccaria. Não obstante, sucedeu o contrário: ante
a grande variedade de atos que podem constituir um delito, a resposta
foi-se uniformizando pouco a pouco, até converter-se e praticamente em
uma só. Uma vez descoberta à igualdade interna, ou seja, PA propriedade
geral de ser lesões, ante a grande diversidade com que se manifestam a s
lesões que constituem delito, opõe-se como pena quase sempre uma
mesma lesão. “de maneira que se eu tiver traído o meu país, vou para a
prisão; se matei meu pai, vou para a prisão; todos os delitos imagináveis
são castigados do modo mais uniforme. Parece-me ver um médico que
para todos os males emprega o mesmo remédio.
Produz-se um fenômeno semelhante à aparição da moeda nas relações
comerciais. Neste sentido Focault faz notar que a prisão confere certa
clareza jurídica, pois permite quantificar exatamente a pena em função do
tempo. “Ha uma forma-salário da prisão que constitui, nas sociedades
industriais, sua evidência econômica. E permite que ela apresente-se
como uma reparação. Com efeito, ao apropriar-se do tempo do
condenado, a prisão parece traduzir concretamente que o delito lesionou
não só a vítima, mas a sociedade inteira. Evidencia econômico-moral de
uma penalidade que calcula os castigos em dias, meses, anos e que
estabelece evidencias quantitativas: delito-duração.
1.4 a pena de prisão
A definição da pena de prisão que Hobbes oferece é a seguinte: “por esta
palavra “prisão, entendo toda limitação do movimento causado por um
obstáculo externo”. É uma definição ampla que, como explica em seguida,
compreende não só a prisão propriamente dita, mas também a
deportação ou exílio, as galés, as pedreiras e minas ou simplesmente os
grilhões. Ocupar-nos-emos da pena de prisão propriamente dita, que é a
única que permanece até hoje, - piso a uniformização da pena consistiu
também na uniformização do “obstáculo externo” que se opõe a liberdade
de movimento: os muros da prisão.
1.5 o lugar
Durkheim se refere ao lugar que se destinava s prisão, cuja presença
relaciona com a cãorcição de certas condições que permitiam a existem ia
de estabelecimentos públicos com espaço suficiente, militarmente
ocupado, organizado e de um modo concebido para impedir a
comunicações com o exterior. E essas condições nascem quando a vida
coletiva alcança determinada intensidade e continuidade, perfilando-se na
distribuição do espaço social a linha de demarcação que separa a
autoridade de seus subordinados. Durkheim anota que as três prisões que
existiam em Jerusalém quando houve a invasão dos Caudeus localizavam-
se uma no portal de Benjamim, outra no palácio do rei e a ultima na
residência de um funcionário publico. Também em Roma as antigas
prisões encontravam-se na fortaleza real.
É lógico que o lugar da pena estivesse sob o controle imediato dos que
estavam autorizados a executá-la. Durkheim assinala, porém, que na
época referente a suas citações a prisão ainda tinha somente um fim
preventivo, de deter a pessoa supostamente culpada (se bem que as
condições de vida nela eram tas que constituía um verdadeiro castigo (). A
este respeito é sumamente interessante uma passagem de “as leis”, em
que Platão fala de três prisões, cada uma delas com uma função especial.
“haverá na cidade três prisões: uma delas situada na praça pública,
comum à maioria dos delinqüentes, que assegurara a guarda dessas
pessoas; a segunda, no lugar de reunião do conselho noturno que se
chamará de casa de correção ou reformatório; a terceira no centro do
país, no lugar mais deserto e mais agreste possível, terá um sobrenome
que indique seu caráter punitivo.
A primeira teria por fim a segurança, prevenir outros delitos, “assegurar a
guarda das pessoas”.
A passagem 909b indica os que irão as outras prisões: “o juiz colocará na
casa correcional aquele as quem inspire um desequilíbrio ou insensatez,
que não conotem maldade temperamental ou de caráter”. Ou seja, os
considerados recuperáveis. A função corretiva era confiada aos
funcionários do conselho noturno. É evidente que esta prisão não tinha
caráter punitivo, mas corretivo. Ao contrário, a ultima das três prisões
destinava-a para ‘aqueles (“...) semelhantes a bestas ferozes, não
contentes em negar a existência dos deuses...”.
Ou seja, entre as outras duas prisões há uma diferença segundo a
gravidade do delito cometido ou as tendências criminais do delinqüente. E
esta diferença está marcada pelo lugar destinado a prisão. “A Prisão
propriamente punitiva tem reservado ‘o lugar mais deserto e agreste
possível”.
Algo semelhante se apresenta na organização espacial do inferno de
Dante: “Ei son tra l’anime piú nere; diverse colpe giú li grava AL fondo...”.
E na nota explica que se trata de uma analogia entre a lei da gravidade
física. “tutti i corpi9 gravitano verso Il centro della terra” e a lei da
gravidade moral, “i peccati sono puniti in ordine di gravitá, dall”alto AL
basso”. Também no canto IX, referindo-se a Giudecca: “Quell”é”l piú
basso loco e’l piu oscuro, e’l piú lontan dal ciel Che tutto gira...”. por que a
Giudecca corresponde ao centro da Terra e está no ponto mais baixo, não
só materialmente mas moralmente, dado que a gravidade dos pecados vai
aumentando de cima para baixo. Assim sendo, em Giudecca se aplica o
máximo da pena, e o Maximo da privação de Deus (luz), isto é, o máximo
DAE trevas: a maior distancia espiritual corresponde então a maior
distancia material, tomando como referência o céu, que é o lugar que se
supõe mais próximo a Deus.
Esta dimensão espacial da pena atribui ao lugar onde se cumpre uma
importância fundamental. Quanto mais grave o delito, mas distanciado o
delinqüente. Em nossa pena terrena, a função da luz, que em Dante se
atribui a Deus, seria cumprida pela comunidade de pessoas.
Voltando a Platão, a prisão punitiva implicaria o total isolamento do
delinqüente frente ao resto da comunidade de pessoas. É evidente o
desejo de apartá-lo, (nenhum contato com homens livres). A primeira
vista, a única certeza nessa prisão punitiva é a exclusão da comunidade de
pessoas. Prova disso é que nem sequer com a morte terminava essa
exclusão, pois: “uma vez morto, o corpo será lançado fora das fronteiras
do país, sem sepultura.
Gernet se refere a formas de penalidade que são em si mesmas e antes de
tudo religiosas, que tem por objetivo a eliminação de uma mancha ou que
supõe a idéia de consagração do culpável, a quem a comunidade
abandona as potencias divinas para libertar-se ela mesma destas
potencias. Pro que fora das fronteiras se estende um espaço
desconhecido, onde não impera a ordem, mas o caos. As fronteiras
marcam uma ruptura no espaço: o território habitado e organizado
(“‘nosso mundo”) e um espaço que não pertence a comunidade de
pessoas, que ainda está submetido as potencias divinas.
Contudo, o ser humano, com a ajuda da técnica, “customizou”
praticamente toda a terra. Já não existe caos sobre a terra. O mundo,
“nosso mundo’, se estende por toda parte. Ainda assim, os muros que se
separavam como e caos não cumpriam só uma função de proteção. Sua
função consistia, sobretudo em arcar a diferença entre ambos os
territórios. E também a diferença entre aqueles que habitavam um deles e
os que se encontravam no outro.
Ao não existir o caos, pareceria que o espaço é uno e indiferenciado.
Inclusive ilimitado. Mas o limite não é aquilo em que algo acaba, mas a
partir do qual algo começa a existir. Se o espaço social perdesse os limites
que o separam do caos, deixaria de ser o espaço social.
A necessidade fundamental da diferenciação para manter sua identidade,
que nasce no limites dentro dos quais foi criado, leva o espaço social a
construir o seu próprio caos. A prisão é o caos que a própria comunidade
construiu. Caberia objetar que sempre se comparou o caos a um território
desordenado sem regras, e que na prisão, pelo contrário, seguem-se
regras muito mais rigorosas que no espaço social. Porém, não podemos
esquecer que este caos foi um caos construído com propósitos muito
claros. É caos enquanto “não –cosmos”, e sua desordem – no sentido de
falta de harmonia – consiste precisamente em acentuar o rigor da norma.
A diferença do caos original – que significava a ausência total de norma-, o
caos construído significa a normatividade excessiva. A regra que não busca
a harmonia do coabitar, mas sim a rigidez da imobilidade.
Assim como as fronteiras delimitam dois territórios, os muros da prisão
também o fazem dentro da cidade. A prisão caracteriza-se, sobretudo,
pela mínima comunicação com o mundo social externo. Uma prisão é tal
precisamente pela impossibilidade de franquear livremente suas portas.
Seus muros marcam uma ruptura no espaço social. Ainda que
aparentemente, ou seja, por sua instalação, não esteja, como regra geral,
separada, isolada fora do contexto urbano – como estão territorialmente
os cemitérios -, a comunicação que mantém com a sociedade que vive as
portas é muito mais limitada do que a destes ult9imos. Por isso a prisão
punitiva de Platão ocuparia o lugar mais agreste e ilhado possível, fora do
perímetro urbano. E ainda que hoje ela se encontre algumas vezes em
pleno centro urbano, será sempre, para quem a observa, o lugar mais
afastado e isolado da cidade.
É interessante a interpretação deste fenômeno de exclusão como um ato
simbólico pelo qual se impressa a reprovação. A comunidade de pessoas
não tem nada que ver com o autor de determinados atos. Se tolerasse sua
presença, se persistisse a coexistência com essa pessoa, essa tolerância e
essa coexistência poderiam ser interpretadas como uma aceitação. E a
aceitação não está distante da cumplicidade. É assim que de uma atitude
meramente passiva poder-se-ia deduzir uma atitude positiva. “a pena é
um meio convencional para a expressão de atitudes de ressentimento e
de indignação, assim como juízos de desaprovação e reprovação, seja das
próprias autoridades punitivas, seja daqueles em cujo nome se aplica. Em
poucas palavras, a pena tem uma importância simbólica que praticamente
não se encontra em outros tipos de sanção.
Entretanto, seu significado simbólico não se esgota na manifestação de
uma reprovação, mas se estende a individualização dos que merecem a
reprovação. Neste sentido se inverteria o raciocínio “está no cárcere por
que é um delinqüente”, e se diria “é um delinqüente por que está no
cárcere”. Mas em ambos os casos – expressão de reprovação,
individualização dos delinqüentes – o que se busca é reafirmar a inocência
da comunidade de pessoas.
Os muros da prisão separam os inocentes daqueles que não o são. Cabe
então perguntar se os que estão fora desses muros são realmente
inocentes. Dando-se uma definição negativa da palavra, isto é, se
considerarmos inocentes somente aqueles que não tenham violado a lei,
essa classificação seria admissível. Contudo, se adotarmos uma definição
positiva, considerando que a inocência significa, sobretudo confiança, sob
dois aspectos independentes entre si, por que o inocente confia nos
outros, mas ao mesmo tempo se entrega ao s outros, com fé neles,
resultara que as pessoas da humanidade de pessoas que coexistem fora
dos muros da prisão tampouco são inocentes. Evidentemente não
merecem a confiança dos outros. E não é que não confiem a posteriori,
por que estes outros tenham cometidos delitos, mas sim a priori, por que
previam que eles os cometeriam. Por isto, a pena é o simbolo da falta de
inocencia na comunidade de pessoas.
Também se poderia considerar de um ponto de vista simbólico que a pena
de prisão é um talião. O delinqüente interrompeu a comunicação social
própria da comunidade de pessoas; em conseqüência, isto é, como
retribuição, será privada dessa comunicação social que ele interrompeu.
É claro que se a pena se esgotasse em seu conteúdo simbólico, seria valido
perguntar, como o fez Feinberg: agora condenamos os delinqüentes a
uma servidão penal, como uma forma de indicar que seus delitos são
infames por acaso não poderia fazer o mesmo trabalho de uma forma
mais econômica ainda? Não existe um modo de estigmatizar sem infringir
uma dor (útil) a mais ao corpo, a família e a capacidade criadora do
condenado?
Todavia, a pena não se esgota em uma função meramente simbólica:
pretende, além disso, infringir um mal, castigar.
1.6 O tempo
Assim como há uma ruptura no espaço marcado pelos muros da prisão, há
também uma ruptura no tempo.
A pena de prisão se diferencia de todas as outras penas pela forma como
combina estes dois elementos: o tempo e o espaço. Esta interseção entre
tempo e espaço marca o começo de uma duração distinta,
qualitativamente diversa. E isto apesar da pena ser medida com a mesma
unidade que se utiliza para medir o tempo social, o tempo comum.
A separação física não define por si são a pena de prisão. Ao referirmos a
uma pena deste tipo é lógico perguntar: por quanto tempo? Por que o
tempo, mais que o espaço, é um verdadeiro significante da pena. Existe
uma enorme diferença entre passar três dias na prisão e passar toda a
vida: há toda uma vida de diferença.
Ao construir a prisão, pretende-se imobilizar o tempo da pena.
Separá-lo do tempo social que transcorre no espaço social. A prisão é uma
construção no espaço para calcular de determinada maneira o tempo. O
fluir do tempo se opõe a firmeza do espaço. O ordenamento jurídico,
mediante a prisão, procura dominar o tempo. Pareceria que o tempo no
qual transcorre a vida social normal fosse um tempo relativo, e que o
tempo da pena, que transcorre na prisão, assumirá um caráter absoluto.
“no espaço tudo está imóvel e claro na geometria da proporção; tudo
transcorre e flui no ritmo do tempo.
Trata-se de um emprego muito partiu lar que o direito faz do tempo. Se a
pena é retribuição, como a pena de prisão consiste fundamentalmente no
transcurso de determinado tempo, empregar-se-ia o tempo como castigo.
Não seria o único exemplo de interpretação especial de tempo por parte
do direito penal. Por exemplo. Gernet recorda o conceito de flagrante.
Não se tratava de um meio de prova privilegiado, mas de uma parte
mesma do conceito do delito. Graças ao flagrante, o delito dava lugar à
imediata execução da pena. O que havia passado se fazia presente. Esta
unidade concentrada no tempo, no presente, esta continuidade, era um
ideal do direito penal: que a sanção constituísse um só corpo, sem
interstícios, como o fato delitivo. Tudo se desenrola no presente, sem que
a idéia de um passado, inclusive recente, tenha nenhuma intervenção.
Esta prescindibilidade, ou desejo de prescindir do passado, também se
observa na noção de furtum, que significava a coisa subtraída. Tampouco
no caso de encontrar o delinqüente com o produto futuro, era necessário
voltar ao passado para provar o que havia acontecido. Mas a operação ou
administração do tempo por parte do direito levava a maiores distâncias
ainda: o direito arcaico assemelhava ao delito flagrante aquele que
acontecia pelo descobrimento do objeto subtraído no domicílio do réu.
Neste caso, havia uma distância temporal, por que não se podia efetuar a
constatação do delito “no mesmo momento” em que havia sido cometido.
Não obstante, mediante uma ficção, esta distancia atemporal se
desvanecia o tempo intermediário não contava para nada.
Persiste o ideal de continuidade entre o delito e apena. Becccaria
recomenda, especificamente com relação à função de finalidade
exemplificadora que atribui à pena: com efeito, assinala, “a c celeridade
da pena é mais útil, por que quanto menor seja a distancia do tempo que
passa entre a pena e o delito, tanto mais forte e duradouro será na mente
a associação destas duas idéias, delito e pena, de tal modo que se
considerem os primeiros como causa, e a outra como efeito conseguinte e
necessário”.
E também persiste a repugnância para indagar no passado: ”poderão os
gritos de um infeliz nos tormentos retirar do seio do tempo passado, que
não volta mais, uma ação já cometida?” pergunta Beccaria. O castigo e a
dor não podem desfazer o fato. Nada pode ser humano diante do que já
aconteceu. O que já não pertence ao hoje por que pertence ao passado.
Mas, como Mathieu sustenta, a pena é absurda numa perspectiva
puramente temporal de “o que se passou, passou”. Para este autor a pena
assumiu como um todo único o conjunto dos fatos passados, presentes e
futuros, preocupando-se em fazer que esse todo responda, na medida do
possível, a um princípio universal de justiça, o qual aquilo que ainda não
existe possa compensar aquilo que já não existe aquilo que foi pese ainda
como que fosse presente; e, por ultimo, aquilo que deveria ter sido e não
foi influa pára determinar o equilíbrio.
1.7 outro tipo de medida
De que forma determinar o valor relativo de um prazer ou de uma pena,
não se mediante uma estimação quantitativa? O conceito desta medida
enquanto determinação do mais ou do menos está definida em
“Protágoras ou os Sofistas”, onde se fala de uma verdadeira “ciência da
medida” (metrétiké techné), que seria a ciência do excesso e do defeito
(Platão também chama à aritmética, arte da medida).
Trata-se de uma verdadeira sabedoria que permite ao homem escolher
entre o bem e o mal, entre o prazer e a dor, aplicando um critério
quantitativo. É tanta a importância que atribui a medida neste diálogo,
que se refere a ela também como a salvação de nossa vida, por que a
condição de nossa salvação reside e m uma correta escolha entre prazer e
a dor, apreciando com exatidão o numeroso e o escasso, o maior e o
menor, o mais longínquo e o mais próximo. Esta possibilidade de
quantificar o prazer ou a dor, estimando ‘um mais, ou “um menos”, mas
também é um elemento da pena, que para fixar sua devida relação com o
delito é necessário coparár-los. Todavia, esta comparação não pode ser
somente quantitativa (enquanto propriedade geral de serem lesões).
“Para que o ato da pena seja um ato ‘com medida”, deve ser proporcional
ao ato do delito. E essa proporção só se conhecerá medido a intensidade
de ambos os atos. Não obstante, já não se trata da medida como
qualidade do ato, mas de uma medida que tem significado muito diverso.
Inclusive sua raiz não é mede mas me. O verbo não seria moderari, e sim
metior. Além do mais, de me provém mens, i. e., “lua”, e em latim,
mensis, i. E, “mês”, media de dimensão “qualidade fixa e passiva cujo
emblema será a lua medindo o mês. Seria a corrente acepção do termo
“medir”, não como submeter a uma medida, e sim no sentido de
qualificar. Mas diferentemente do espaço, que é em sim mesmo algo
mensurável, que se oferece como algo a medir, o tempo sempre se
apresenta para nós como algo já provido de uma medida natural, como
algo já dividido e3m partes por meio da susseção das estações e dois dias,
e pelo movimento do relógio celeste que a natureza precavida colocou a
nossa disposição”.
Por isso, ao medir o tempo não se realiza a mesma operação utilizada para
medir o espaço, por que o tempo não carece de medida natural própria,
no sentido de que já parece se apresenta, em certo modo dividido em
partes que se sucedem. O que se pretende com os instrumentos que se
empregam para medir o tempo é alcançar certa precisão, certa exatidão
na subdivisão das partes. Koyré recorda que só quando a civilização
urbana experimenta necessidades de precisão em sua vida pública é
religiosa é que se começa há medir o tempo.
Apesar de a bíblia ensinar que Deus embasou o mundo “no número, no
peso e na medida”, até Galileu ninguém havia procurado superar com
número, o peso e a medida a imprecisão da vida cotidiana.
Quando a privação de liberdade assume o caráter de pena (e não de
prevenção, correção, ou qualqer outro fim de preservação social), a
exigência de precisão se torna manifesta. Sendo tempo o principal
elemento da pena, não pode ficar a mercê da imprecisão a determinação
temporal da pena adquire uma importância fundamental.
1.8 delito e pena
Na pena de prisão “o mais” ou “o menos’ da lesão que supõe a pena é a
duração. Por isso, Beccaria assinala que não é a intensidade da pena e sim
sua extensão que tem o efeito maior na alma humana.
Mas essa “extensão” deve corresponder à determinada “intensidade”, do
contrário, não seria possível compará-la com o delito, que é uma lesão
com determinada ‘intensidade’ (gravidade). E necessário medir a
intensidade de ambas. Se as pena é medida por sua douração, qual
intensidade corresponderá à determinada duração?
Que relação guarda o tempo com o delito? Evidentemente que o delito
não se mede segundo o tempo que dura. Santo Agostinho, no livro XXI,
capitulo XI, de “a idade de Deus”, intitulado “exigências da justiça com
respeito às penas”, contestava aqueles que consideram injusto castigar os
pecados desta curta vida, por mais graves que sejam com um suplício
eterno: “como se a justiçada lei alguma vez tivesse levado em contato
tempo despendida em cometer a falta para determinar o castigo!”
E refere-se também a duração da prisão, assinalando o absurdo que seria
quantificar o castigo segundo a duração do delito, visto que para
determinar a gravidade do crime, aplicam-se outros critérios distintos do
tempo que durou sua perpetração.
´[e sumariamente interessante observar que neste mesmo capítulo
apenas um pouco mais adiante, faz referência a relação tempo-pena: pro
um lado não há relação entre duração do delito e a duração da pena; por
outro, observa-se que assim como em um instante pode-se cometer o
delito mais grave, também em um instante pode-se aplicar a pena mais
grave. Ou seja, a duração da aplicação da pena não seria indício de sua
gravidade. Prova disto seria, conforme Santo Agostinho, a pena capital.
Não obstante, ao considerar que o castigo residiria em afastar para
sempre o condenado da sociedade humana se introduziria aí um elemento
temporal. O ‘para sempre é a pros posta a pergunta: por quanto tempo
queremos afastá-lo da sociedade humana? É precisamente a condenação
a morte é a pena capital por esta resposta: para sempre.
1.9 Prisão e morte
Em referencia a perna de morte talvez permita estabelecer um paralelo
com a pena de prisão. O distanciamento que ta ultima persegue e não
seria comparável ao que se logra, de forma definitiva com a morte? A
expulsão é o efeito imediato de uma e de outra pena. No presente, ambas
tem um mesmo significado: a expulsão somente quanto a suas
conseqüências futuras se diferencia. Mas, segundo Santo Agostinho, a
conseqüência futura por serem futuras não existe ainda, e se não existem
ainda, não existem realmente; e se não existem realmente, não pode ser
vistas de modo nenhum, mas apenas podem ser previstas por meio da p
presentes, que já existem e se vêem”.
Em uma, no presente se prevê a possibilidade do regresso: na outra se
exclu9i essa possibilidade. Significa dizer que a pena de prisão se
diferencia da pena de morte pela presença ou ausência da possibilidade
de se reincorporar a coexistência local.
Contudo, no presente, ambas interrompem esta coexistência.
Quando se dirá que dois seres coexistem ou que existem há um mesmo
tempo? Quando não existe sucessão entre eles, os dois existem: quando
não se dão ao mesmo tempo a existência de um e a negação do outro.
Tanto na pena de morte como na de prisão se dá a “negação do outro”.
Nega-se ao sujeito apartando-o, por que o que se deseja é que ele não
continue existindo no presente de todos.
Até que ponto pode-se considerar que ambas as penas se diferenciam
apenas pelo elemento quantitativo? Ou seja, que a duração de uma é
muito maior do que a da outra. Do ponto de vista dos sujeitos de cuja
existência ao delinqüente teria sido afastando, o “Pra sempre” da pena de
morte compreende apenas uma duração mais prolongada. Eles tampouco
serão “para sempre”, razão pela qual não poderão comprovar o “para
sempre” da pena de morte.
Ambas podem ser comparadas AA duas viagens. Em uma se prevê, se
espera o regresso; na outra não.
Aceitando-se essa diferença quantitativa, seria também aceitável a
hipótese de Gernet, que ao analisar certas penas infamantes nas quais se
expunha publicamente o delinqüente, aponta que havia penas temporais
e relativamente, benignas que podiam ser consideradas como suavizações
ou simbolizações da pena de morte.
Mas atualmente, sendo a pena de prisão a pena por excelência que
absorveu também o caráter infamante, não obstante consistir em uma
ocultação e não em uma posição- poder-se-ia aplicar a mesma hipótese.
Com o que resultaria uma pena mais suave que a de morte, residia a
diferença tão somente neste elemento quantitativo de sua duração. Nas
penas de prisão perpétua ou por períodos que excedem a vida normal de
um ser humano e tampouco se prevê “o regresso”, a reintegração. Afasta-
se o delinqüente “para sempre”, como na morte.
“Na prisão perpétua, como diz Mathieu, a intenção é a mesma que subjaz
na pena de morte”, “não votará mais a estar entre nós”. O significado
dessa sentença é claríssimo, diz esse autor: não podes reintegrar-te ao
sistema de liberdade senão morte. Mas, para chegar a este ultimo estado,
na prisão perpétua, deixa-se que a natureza intervenha. Por isso, o autor
denomina a pena de prisão perpétua como “sentença de morte
retardada”, e considera-a uma hipocrisia, uma vez que se confia a
execução da pena à natureza e ao tempo. (e poderíamos acrescentar as
condições em que se vive em muitas prisões e a todos os padecimentos
que a prisão trás consigo).
No caso da prisão perpétua ou das penas superiores as possibilidades de
vida do delinqüente, contudo, não se considera que a morte sobrevenha
como uma pena diferida. Essas penas respondem simplesmente a
necessidade de medir, no sentido de quantificar, a pena. A morte o corre a
margem da pena, e a pena é a exclusão por determinado tempo, não é a
morte. Que esta a interrompa é um fato que pode também acontecer em
penas de curta duração. O absurdo que nos parecem essas condenações a
um número de anos que excede as possibilidades de vida do delinquentes
explica por que, para o direito penal, em certo sentido não importa nada
do que corre realmente. Pois, como Mathieu esclarece um pouco antes,
“o fato que é o direito penal considera a justiça prescindindo do tempo e
dos processos que se sucedem no tempo. A pena deve seguir-se ao delito,
como uma conseqüência artificial dele mesmo; porém os processos reais,
e conseguinte, temporais que formam e acompanham a pena são
acidentais”.
Portanto, mais que indiferença com respeito aos processos temporais, em
certo sentido há uma submissão dos mesmos por parte do direito penal
aos fins que lhe são próprios; como assinala Gernet, por parte do direito
há certa liberdade no uso de um conceito do qual efetivamente não pode
prescindir, mas que adapta aos fins que lhe são próprios.
Por que ao direito penal o que interessa, fundamentalmente, é que a pena
guarde a relação devida com o delito; por isso, ainda que o sujeito não
tenha a mínima possibilidade de “viver toda sua pena”, esta se fixa em
função da meta de restabelecer o equilíbrio, independentemente de que
depois não se cumpra realmente. Neste aspecto, sobretudo, ou seja, em
sua afixação reafirma-se o caráter simbólico da pena.
M foucault, referindo-se a Kantorowitz (“os dois corpos do rei”), assinala
um paralelismo entre o corpo do rei e o corpo do condenado. No corpo do
rei, ao lado do elemento transitório que nasce e morre, há outro que
perdura que é o suporte físico e ao mesmo tempo intangível do reino, o
objeto de uma iconografia e de uma doutrina política e jurídica, o
fundamento de um poder. No outro extremo, o diminuto corpo do
condenado é também motivo de uma cerimônia, um discurso teórico,
uma construção jurídica. Ao exercer sobre ele um poder excedente,
provocar-se-ia segundo Foucault, um desdobramento. Como se o direito
criasse um desdobramento metafísico do corpo do delinqüente para
poder aplicar-lhe penas que não guardam proporção com as coordenadas
reais de seu corpo natural. l
O delinqüente não sobrevive a sua morte. O que é imortal não é
delinqüente, mas a comunidade de pessoas, que persiste como tal, apesar
de que mudam a pessoas que integram. E é perante ela que se mede o
tempo da pena. O tempo da pena se qualifica em função do tempo da
sociedade, e não do tempo do delinqüente. Este se exclui somente do
único tempo de que em realidade se lhe pretende excluir: o tempo que
transcorre no espaço social.
1.10 Templum, tempus
Montesquieu assinala que os templos eram refúgio dos delinqüentes,
sobretudo na Grécia, onde os homicidas, expulsos da cidade e da presença
dos homens, não tinham outro asilo senão os templos, nem outros
protetores senão deuses. Referindo-se a Tácito, diz que “os magistrados
tinham dificuldades para exercer a função de polícia, pois o templo
protegia os crimes dos homens, como as cerimônias dos deuses”.
O templo permitia ao delinqüente sobreviver. Se a prisão é considerada
uma suavização da pena de morte, como vimos, também constitui nesse
sentido um refúgio. Entretanto, o templo cumpria a mesma função que a
prisão atual: ocultar o delinqüente oculta-lo de nossos olhos. A lei mosaica
considerava inocentes os homicidas involuntários, mas os ocultava aos
olhos dos pais do morto. Seguindo Montesquieu, poderíamos aventar que,
assim como no templo se protege a cerimônia divina, na prisão se protege
o delinqüente (não seria a sociedade PA protegida, como usualmente se
afirma, mas sim os delinqüentes).
Esta analogia com o templo leva a outra, ainda mais pertinente ao tema
que nos ocupa. “tal como uma igreja que constitui uma ruptura de nível
dentro do espaço profano de uma cidade moderna, o serviço religiosos
que se celebra no interior de seu recinto marca uma ruptura na duração
temporal profana...” o mesmo ocorre na primeira prisão, pois assim como
há uma ruptura no espaço marcado pelos muros, também existe uma
ruptura no tempo.
Esta interseção entre tempo e espaço marca o começo de uma duração
distinta, qualitativamente inversa. Isso não obstante o fato de que a pena
se mede como a mesma unidade que se utiliza para medir o tempo social,
o tempo comum.
1.11 o tempo da pena
O tema da relação entre o tempo e a pena, da utilização do tempo como
pena, ou seja, do tempo como algo mais que a medida da pena, nos REM
ente necessariamente a relação entre o tempo e o direito. A pena é um
dos casos em que o direito subordina o tempo aos fins que almeja. Poder-
se-ia dizer também que o direito assimila o transcurso de determinado
tempo, o tempo do sujeito da pena, a um transcurso que é próprio do
direito.
Para Gerhart Husserl, esse transcurso próprio do tempo do direito não [é a
simples duração, o fluxo natural dos instantes. O direito tem um tempo
abstrato, precisamente por que busca superar o imediato, o contingente
da experiência ingênua do tempo.
O mundo da experiência natural, o mundo cotidiano do ser humano, é um
mundo no qual reina a dúvida. A indigência humana consiste
precisamente na impossibilidade de dispor do futuro. A falta de
previsibilidade do futuro se origina na transitoriedade própria do ser
humano, que por usa vez se horigi8na em sua única certeza: seu se [e um
ser que caminha para a morte. Quando o direito vincula conseqüências
jurídicas às circunstancia s da realidade social exclui o fluxo dessa
realidade para um futuro incerto. Dada sua vocação de transcendência, o
direito procur4a libertar da dúvida, da transitoriedade. As normas jurídicas
criam um mundo que não conhece a duvida. Nesse mundo não há futuro,
por que o futuro foi antecipado nas normas.
Entretanto, para que o direito se concretize na realidade, para que “se
realize”, deve passar do mundo “destemporalizado” que criou a realidade
social que responde ao fluxo natural do tempo, o, ou seja, deve voltar à
dimensão temporal de que havia se separado. Esse processo se
desenvolve pela aplicação da norma jurídica a..
“O tempo objetivo – disse G Husserl – não transcorre mais velozmente ou
mais lentamente caso seja uma criança, um velho, um paciente no
dentista, um orador em uma reunião pública ou um soldado no campo de
batalha o afetado pelo transcurso temporal”. Assim sendo, cabe dizer
exatamente o contrário, caso esse transcurso se experimente no interior
da consciência. Por isso, há de se acrescer ao tempo natural e ao tempo
objetivo do direito o tempo subjetivo, o tempo da consciência.
O que acontece com a pena?A norma jurídica que estabelece à pena
antecipa o futuro. Determinando uma quantidade de tempo que será a
duração da pena. Contudo, não será a mera duração como sucessão de
instantes do tempo natural, mas uma duração objetiva, abstrata, medida
com independência dos conteúdos concretos alheios a sua finalidade. e
A pena, quando aplicada ao sujeito, se “temporaliza” no tempo de vida do
sujeito. Isto é, seu transcurso seguirá o fluir do tempo natural no qual
transcorre a vida biológica do sujeito: seguirá seu gradual envelhecimento,
e poderá, inclusive, ser interrompida por sua morte. Neste caso, o tempo
objetivo impedirá o cumprimento do termo que o direito lhe havia fixado.
Mas também o tempo da pena é experimentado na consciência do sujeito
que a vive. Também a pena tem sua terceira dimensão temporal; a do
subjetivo a do tempo subjetivo, o tempo da consciência. ”” Se
compreendemos bem o que significa, por exemplo ‘viver o tempo’, nos
damos conta de que cada pessoa vive um tempo comum, que pode
compreender, mas vive também o seu próprio tempo, um tempo
intraduzível, que sente por si mesma, assim como uma fome que só ela
experimenta, uma via que só ela vive e uma morte que só ela morre...
“Ninguém pode substituir o outro nesta experiência nossa e,
simultaneamente, de cada um.”
Quão insubstituível será então a experiência do que vive a pena. Pois se
cada pessoa sente por is mesmos, também viverá por si mesma a pena
como uma experiência intransferível, única. Ainda que a pena esteja
revista e quantificada, de modo uniforme, objetivo, cada um vivera como
própria, cada um viverá sua própria pena.
Por outro lado, a mesma unidade de medida vai medindo o transcurso da
pena. Pois a pena vai formulando a sim mesma à medida que transcorre.
Por outro lado, vai se produzindo no sujeito a percepção desse transcurso.
Por um lado, a magnitude: por outro, a intensidade. “assim como a
magnitude fora de alguém nunca possui intensidade, a intensidade,
dentro de alguém nunca possui magnitude.
A qualidade do tempo que se vive durante a pena, por ser precisamente
“o tempo da pena”, não pode ser a mesma daquele que vive livre da pena.
Qualquer atividade que se realize durante esse tempo não será verdadeira
atividade, estará impregnada do tempo e do espaço da pena. Ainda que
aparentemente esteja em movimento, o sujeito da pena está imobilizado
em determinado espaço, o qual transcorre um tempo diferente. E esta
imobilidade poder-se-ia qualificar de espera. “esta (referindo à espera)
envolve todo o ser vivente, suspende sua atividade e o imobiliza na
angustia que lhe causa”. Em embora não se refere a pena, a seguinte
definição de Minkowski parece muito pertinente: “na espera o ser
reflexiona sobre si mesmo, se encapsula, caberia dizer que procura expor
o mínimo de si as agressões do ambiente hostil e, ao proceder dessa
forma, separa-se deste ambiente e traça os seus próprios limites”. Esta
reflexão sobre si mesmo trás seus próprios limites diante do ambiente
hostil indica o isolamento interno do sujeito, conseqüência do isolamento
externo que a pena como expulsão lhe impôs.
“Por que ‘o outro” que pode despertar-lhe a memória de si está fora dos
muros da prisão. Os demais, que compartilham a sorte do condenado, não
podem despertar-lhe “memória de si”, do que foi antes de iniciar a pena.
Só a consciência de seu estado atual. Por isso, as relações mantidas dentro
da prisão não o ajudarão a recordar-se de si mesmo9, do que era antes
que a pena seccionasse o espaço e o tempo. Seu recordar será limitado e
empobrecido, pois sua memória ficou a mercê de usas próprias forças: já
não recebe o estímulo externo do mundo, que foi seu mundo e que lhe
fechou as porta.s
A relação de coexistência que nasce dentro dos muros da prisão não é
livre, foi imposta pelas circunstancias da pena. É uma relação entre os que
foram excluídos da comunidade de pessoas. E essa exclusão poderia
incluí-los em outra comunidade baseada em uma espera comum: a de sua
dissolução.
Se este são Oe s estados próprios de quem vive a pena, seus tempos
seriam o presente do pretérito e o presente do futuro. E a ambos
corresponde respectivamente à memória e a espera: “por que estas são
três coisas que existem de algum modo na alma, e afora dela já não vejo
que existam: presente de coisas passadas (a memória), presente de coisas
presentes (visão) e presente de coisas futuras (expectativa)”.
Na pena, a prisão do presente se obscurece ante a expectativa do futuro.
O presente só tem valor como passagem do futuro ao passado, pois como
vimos, todo o ser está concentrado na espera.
Assim como na canção a qual se refere Santo Agostinho, a pena antes de
começar é pura expectativa, pois à medida que transcorre, vai passando a
memória, o presente da pena sendo uma passagem do que se espera para
o que se recorda. Como a pena é lesão, to do o ser procurará rechaçá-la, e
para isso lhe resta à memória ou a espera.
Pois o presente só será a simultaneidade, a intersecção do tempo com a
prisão, que é o espaço da pena.
1.12 Conclusão
O problema da justa proporção entre delito e pena se oculta nas
finalidades não retributivas que se atribuem a pena de prisão.
Com efeito, como coloca Mathieu, a prisão tornou-se praticamente o
único meio de castigar os delitos, não por que se aprecie seu valor
simbólico ou por que se pretenda reprimir a vontade do réu. A razoa mais
importante, diz, é outra: ter tomado à pena como um meio de defesa das
sociedades e de seus membros; manter prisioneiro o ocupado serve para
impedi-lo de causar dano. E precisamente por que a prisão resultou como
única modalidade da pena pretende-se justificar a pena justificando a
prisão.
Além dessa justificativa da prisão como “medida de segurança’, também
se a justifica alegando que é apenas um meio para corrigir e recuperar o
delinqüente. Tratar-se-ia de um serviço que a comunidade presta aqueles
membros que demonstraram com seus atos a necessidade de serem
submetidos a uma terapia corretiva. Esta analogia entre o trabalho di juiz
e do médico, a pena e a terapia, o delito e o sintoma de uma doença,
aparece várias vezes nos diálogos de Platão.
Mas, em ambos os casos, na prisão-medida de segurança, ou na prisão-
correção ou curativa, se coloca o problema de fixar a sua duração, que
como temos visto, é o elemento fundamental da pena de prisão. Quando
se terá a certeza de que o sujeito deixou de representar um perigo para a
comunidade? Como fixar de antemão o momento em que isto ocorrerá?
Este seria um ponto de enlace entre ambas as teorias, pois se poderia
responder: no momento em que se tenha recuperado. Mas, como indagar
a pessoa do delinqüente para assegurar-nos de sua correção? Poder-se-ia
responder a esta pergunta dizendo que há sinais exteriores que podem
manifestar essa transformação? Mas quem estaria apto a interpretar
esses sinais? Se considerarmos o sujeito um enfermo, talvez fosse
competente o médio ou o psicólogo; mas ao considerá-lo como um
inadaptado social, talvez a pessoa indicada fosse o assistente social. Mas,
então, a função do juiz deveria ser substituída por estes profissionais, em
cujas mãos ficariam efetivamente a execução da sentença. Nesse caso, a
sentença não seria uma sentença, mas a prescrição de um tratamento. E é
muito difícil prescrever de antemão e sem conhecer também o paciente
quando durará o tratamento. Deste modo introduzir-se-ia no direito uma
incerteza que este sempre procurou evitar. Incerteza não só quando a
duração das penas, mas também quanto à função que efetivamente
cumpriria, já que a correção de um delinqüente é tão difícil de predizer
como a cura de um doente. Assim, na pena seria uma instituição de
funções hipotéticas, possíveis, com algo como um corpo legislativo
instituído não para promulgar leis, mas pela possibilidade, ainda que
remota, de que algum dia chegue a promulgar uma lei.
Além do mais, a melhor prova de “saúde” que nos poderia dar o
delinqüente seria sua capacidade de levar uma vida respeitável junto ao
seu próximo, no seio da mesma comunidade de pessoas da qual tenha
sido afastado. Mas, então, nasceria uma dupla incerteza: quanto tempo
ele deveria ficar sob “supervisão” a te que se possa considera-se
realmente curado? E, por outro Aldo, recordando a função de segurança
que se atribuía a sua detenção, estaria a comunidade de pessoas disposta
a enfrentar o risco de seu retorno, sem provas determinantes de sua
inocuidade?
Sem dúvida, quando se procura fixar a duração da pena, não se colocam
estas considerações. Resolvem-se tudo no mais simples dos modos: a
media da pena é fixada buscando a proporção com o delito. Isto significa
que não se devam levar em conta as finalidades que pretendem justificá-
la, mas a necessidade de retribuir segundo a gravidade do delito.
Evidentemente, não há sentido em fixar a duração da pena segundo a
gravidade do delito quando a pena não é pena, senão terapia, correção,
medida de segurança etc. claro que não será o mesmo corrigir ou curar
quem cometeu um homicídio ou o autor de um simples furto. Mas poderia
acontecer que este último se revele muito mais “enfermo” ou
potencialmente perigoso que o primeiro.
Esta contradição entre a medida da pena e da finalidade que se lhe atribui
nasce da necessidade de fornecer garantias ao sujeito da pena. Por que o
problema fundamental a meu ver, é o seguinte: a pena não pode ser
considerada medida de segurança ou terapia deixa de ser pena.
Em primeiro lugar, ambas se impõem ao sujeito, s ela qual for a sua
vontade. Em segundo lugar, não apenas na maioria dos casos são
vivenciadas como um castigo, mas também, objetivamente, do ponto de
vista social, são consideradas como conseqüências desagradáveis de atos
reprováveis. Portanto, continua-se castigando, ainda que sem reconhecê-
lo.
Como observa Mathieu, é um equivoco de certo modo voluntário: deseja-
se continuar castigando e ao mesmo tempo dizer que não se faz isso. Por
meio do juiz, a sociedade se desculpa com o condenado por submetê-lo a
um sofrimento que!Tem todo o aspecto de uma pena’, ainda que – e se
procura deixar bem claro – não o seja.
Deste raciocínio caberia deduzir o seguinte: a pena seria aplicada
“involuntariamente”. Perderia assim, uma de suas características
essenciais: a medida, no sentido de moderação, modus, enquanto significa
reflexão, deliberação. Aquilo que poderíamos chamar “a planificação” da
pena estaria ausente na prisão medida de segurança ou terapia. O mal
causado seria acessório, incidental.
Nesse sentido, haveria motivos para justificar a lógica retributiva pela
necessidade de proteger o sujeito desse mal “sem medida” ajustando-o a
uma medida determinada. Em virtude desta lógica, a pena sempre seria
fixada em função do passado, do ato delitivo, e, portanto, a medida da
pena teria um ponto de referencia mais claro e preciso, dentro do que lhe
cabe, do que aquele que lhe proporcionaria a eventual cura ou
reabilitação: incerta e sem prazo definido.
Mas também a lógica retributiva assenta-se na idéia de dignidade, que
resultaria impróprio como atributo de uma pessoa que deve submeter-se
a correção ou terapia. Esta seria facilmente assemelhada a uma criança ou
a um louco. Claro que tudo isso exigiria uma definição de dignidade, que
ao quem parece, denota determinada capacidade, neste contexto em
particular para cometer delito.
A prisão considerada como lugar de aplicação da pena, definitivamente,
pode ser definida pela indicação de uma única característica: encontra
fora do espaço social. A pena de prisão é a exclusão do espaço social. Esta
é a finalidade primordial da prisão: a exclusão. Toda futura participação na
comunidade e n o espaço da sociedade requer essa previa exclusão.
O nexo entre delito e pena está claro, pois ambos são lesões. Dessa
perspectiva, que interrompeu a simetria da comunicação social deve ser
privado dessa comunicação social que interrompeu. Contudo o delito tem
uma extensão quantitativa e qualitativa determinada, razão pela qual
deve possuí-la também a sua negação.
“O problema reside precisamente em comparar ‘ a extensão qualitativa e
quantitativa” do delito e da pena. Por que delito e pena são simplesmente
coisas heterogêneas, mas, segundo seu valor, sua propriedade geral de ser
lesões, são coisas comparáveis. Cabe ao intelecto buscar a aproximação da
igualdade de valor entre uma e outra.
Porém, como o intelecto poderá comparar a lesão que significa o delito
com a determinação temporal quantitativa e abstrata da pena de prisão?
Que relação guarda a duração da pena com a gravidade do delito? Se a
gravidade do delito é sua intensidade, como determinar a intensidade d a
pena? Que duração corresponde à determinada intensidade? É possível
mediar à intensidade da pena baseando-se no tempo objetivo, medido
pelas unidades com as quais se mede o tempo do trabalho e da vida
social? E se é possível, quantas unidades temporais corresponderiam a
cada delito?
Todavia, isto não é possível, por que a determinação temporal
quantitativa e abstrata carece por si só de conteúdo punitivo.
Como transformar a magnitude, tantos meses, tantos ano, tantos dias, em
intensidade? Só na consciência do sujeito se opera a conversa de
magnitude para intensidade, porque a intensidade é um fenômeno
interior, pessoal, intimo intransferível. Logo, cada um vive de forma única
e imprevisível sua própria pena. Daí que quando se dita à sentença não se
sabe com certeza qual castigo se está aplicando. Pois as unidades
temporais das quais se fixa a pena sucederão com maior ou menor
lentidão segundo o sujeito. E à medida que o sujeito interiorize essa
duração, irá configurando sua pena.
PA prisão confiamos ao tempo à execução da pena. O sujeito que, expulso
da comunidade de pessoas, entra na prisão, não será o mesmo que sairá
da prisão e que se reintegrará a essa comunidade da qual foi expulso. O
tempo (independentemente das condições em que transcorra) operará
sua gradual transformação. Por que o tempo da pena, por mais peculiar
que seja, escoa-se em comum com o tempo que transcorre livre de pena –
o tempo de vida de um ser humano. E, na medida em que vão se
descontando os anos de pena, igualmente vão se descontando os anos de
vida.
“crescem ou descressem os anos de vida? Quando acaba o caminho? Não
acaba para todos na mesma hora. Cada um tem sua hora para terminar
sua jornada. O caminho, como dizemos, é esta vida; acabaste a vida,
acabou para ti o caminho. Andamos, e o próprio viver é avançar. Imaginais
que avança o tempo e nós ficamos parados? Isso na pode ser. O tempo
avança e no seu espaço avançamos, e ao invés de crescer, míngua o
número de nossos anos (...) os anos vem, dissestes ; eu te demonstro que
não vem, como tu afirmas, antes que se vão, e verás quão simples é
demonstrá-lo. Supunham sabedores dos anos que tem de viver este
menino; verbigracia – e por fazer-lhe mercê- oi tenta anos; chegará
portanto a velhice. Escreva oitenta anos. Já viveu um; quanto tens na
soma?J quantos tinha? Oitenta. Resta um. Viveu já dez? resta setenta.
Viveu já vinte? Restam sessenta. Certo, cresciam os anos, porém que
espécie de crescimento é este? Nossos anos vem para ir-se, não vem para
ficar conosco; passam sobre nós, nos pisam e nos fazem valer cada dia
menos.
The end