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O Sistema Financeiro e a Economia Brasileira Durante a Grande Crise de 2008

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O Sistema Financeiro e a Economia Brasileira Durante a Grande Crise de 2008

1

O Sistema Financeiro e a Economia Brasileira Durante a Grande Crise de 2008

Márcio G. P. Garcia

Rio de Janeiro | 2011

Editado em Maio de 2011 Esta publicação ou parte dela não pode ser reproduzida sem citação de fonte.

Coordenação Gerência de Pesquisa da ANBIMA

Redação Márcio G.P. Garcia

Revisão Aristóteles Angheben Predebon

Fotografia Shutterstock

Projeto gráfico Cauduro Associados

ANBIMA Rio de Janeiro Av. República do Chile, 230/13º andar - CEP 20031-919 - Tel: (21) 3814-3800

São Paulo Av. das Nações Unidas, 8501, 11º e 21º andares - CEP 05425-070 - Tel: (11) 3471-4200 www.anbima.com.br - [email protected]

G216Garcia, Márcio G. P.

O sistema financeiro e a economia brasileira durante agrande crise de 2008 / Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais. _ Rio de Janeiro: ANBIMA, 2011.71 p.; 25 cm.

ISBN 978-85-86500-65-7

1. Sistema Financeiro Nacional. 2. Crise de 2008 (Finanças).3. Mercado financeiro internacional 4. Mercado de capitais. I. Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais.

CDD-332

3

PresidenteMarcelo Giufrida

Vice-PresidentesAlberto Jorge Kiraly

Alfredo Neves Penteado MoraesDemosthenes Madureira de Pinho Neto

Denise Pauli PavarinaJosé Olympio da Veiga Pereira

Marcio Hamilton FerreiraPedro Luiz Guerra

Sergio Cutolo dos Santos

DiretoresAlan Dain Gandelman

Celso PortásioJosé Carlos Lopes Xavier de Oliveira

José Hugo LaloniLuciane Ribeiro

Luiz Fernando FigueiredoMárcio Appel

Marcos Roberto VasconcelosPedro Augusto Botelho Bastos

Regis Lemos de Abreu FilhoRodrigo Telles da Rocha Azevedo

Sasa MarkusValdecyr Maciel Gomes

Superintendente GeralLuiz Kaufman

Sumário

Apresentação 6

Resumo Executivo 7

1 Introdução 10

2 Regulação e Supervisão Financeiras Deficientes no Centro

do Sistema Financeiro Mundial: Os Casos dos EUA e do Reino Unido 14

2.1 Uma Breve Cronologia da Crise nos EUA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

2.2 A Crise no Reino Unido. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

2.3 As Falhas de Regulação e Supervisão Financeiras . . . . . . . . . . . . . . . 19

3 A Infraestrutura Financeira e Macroeconômica

de Países Resilientes: Os Casos de Canadá e Chile 22

3.1 Canadá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

3.2 Chile . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

4 Ambiente Macroeconômico e Sistema Financeiro no Brasil 30

5 Brasil: Estabilidade Econômica e Solidez do Sistema Financeiro Nacional 38

5.1 Maior Capitalização dos Bancos Brasileiros. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

5.2 Existência de Grandes Acionistas: Monitoramento versus Contratos de Incentivos . 40

5.3 Melhor Monitoramento (Fiscalização) dos Bancos por parte do Órgão Regulador . 40

5.4 Infraestrutura de Negociação e Liquidação Financeira . . . . . . . . . . . . . 43

5 4 1 O Sistema de Pagamentos Brasileiro 43

5 4 2 Liquidação em Sistemas Autorizados 45

5 4 3 Mercado de Balcão Organizado 46

5 4 4 Regulação e Supervisão da Indústria de Fundos 47

5 4 5 Autorregulação 47

5 4 6 Baixa expressividade de veículos não bancários (SIVs e conduits) 48

5.5 Incentivos Perversos para Aumento de Riscos

e Responsabilidade Ilimitada – Lei 6.024/74 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49

5.6 Mercado de Capitais no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

6 Administração da Crise 56

7 Conclusão 62

8 Referências 66

9 Siglas 70

5

Sumário de Tabelas e Gráficos

Tabelas1 Informações sobre Bancos Canadenses 23

2 Conformação do Sistema Financeiro Chileno 26

3 Comparação entre as razões de Basileia de vários países 39

4 Comparativo dos Segmentos de Listagem na BM&Fbovespa 55

Gráficos1 Crescimento PIB Real x PIB per Capita 30

2 Inflação Mensal: 1983-2010 31

3 Câmbio Nominal BRL/USD 35

4 Reservas Internacionais 36

5 Operações de Crédito do Sistema Financeiro 41

6 Volume Médio Diário Negociado na Bovespa 52

7 Participação no Volume Negociado da Bovespa 53

6 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

Apresentação

Decorridos mais de dois anos da sucessão de eventos que marcaram a crise financeira internacional de 2008, diversos diagnósticos foram elaborados no sentido de explicar suas principais causas e guiar as mudanças regulatórias e de estrutura consideradas adequadas para evitar novos eventos dessa natureza. Nota-se que os fatos e explicações narrados variam de forma relevante conforme as jurisdições afetadas, certamente pela presença de fatores específicos a cada uma das economias envolvidas e à sua respectiva inserção internacional. Essas diferenças também são relevantes para a avaliação da profundidade e abrangência que deverão caracterizar as mudanças regulatórias em curso.

Em face da considerável resiliência demonstrada pela economia brasileira em geral, e suas instituições financeiras em particular, em meio aos eventos de 2008, a diretoria da ANBIMA julgou oportuna a elaboração de um estudo voltado para o detalhamento de algumas dessas distinções. Considerou-se vital a identificação dos fatores – históricos, macroeconômicos, regulatórios e, em particular, os de microestrutura – que resultaram ao longo do tempo em um arcabouço institucional robusto, e que justificaram a especial travessia da crise pelo Brasil. A tarefa de consolidar os fatores específicos ao caso brasileiro e estabelecer paralelos com a experiência americana, do Reino Unido, do Canadá e do Chile coube ao Prof. Márcio Garcia, que reuniu nesse estudo um conjunto de informações elucidativas sobre a própria crise e a experiência brasileira.

Com essa iniciativa, a diretoria da ANBIMA espera tornar mais conhecida, no País e no exterior, a trajetória apresentada pelo mercado financeiro brasileiro nesse período da história econômica, contribuindo para o fortalecimento do país como interlocutor nas discussões sobre a reestruturação do Sistema Financeiro Internacional.

Rodrigo Telles da Rocha Azevedo Diretor da ANBIMA

Resumo Executivo

O sistema financeiro e a economia brasileira passaram muito bem pela crise internacional de 2008. No que tange ao setor financeiro, tal resultado não foi fortuito, mas advindo dos sólidos arcabouços regulatório e de supervisão financeira, desenvolvidos como resposta a múltiplas crises pelas quais passou o país. Tampouco foi casual o bom desempenho da economia brasileira. Após conviver com a hiperinflação por mais de uma década, a economia brasileira passou por reformas estruturais que lhe permitiram muito bem usufruir de sua complementaridade com as economias que mais crescem no mundo, notadamente a da China.

São revistos dois casos de países que apresentaram sérios problemas quanto à regulação e à supervisão financeiras – Estados Unidos (EUA) e Reino Unido (RU) –, bem como dois casos de países cujos setores financeiros mostraram resiliência à crise – Canadá e Chile. A comparação com tais países mostra que o aparato brasileiro regulatório e de fiscalização financeira possui muitas das boas características presentes no Canadá e no Chile, distanciando-se das falhas encontradas nos EUA e no RU.

A experiência brasileira é revista em detalhe. Após conviver com a hiperinflação por muitos anos, finalmente, com o Plano Real em 1994, a economia brasileira logrou debelar o mal inflacionário. A longa duração da hiperinflação havia distorcido fortemente o sistema financeiro, que, em vez de prover crédito ao setor privado, havia se especializado em prover formas de o setor privado elidir o imposto inflacionário, financiando, simultaneamente, a dívida pública. A maior fonte de receitas dos bancos não era a provisão de crédito, mas, sim, o float inflacionário oriundo de depósitos à vista ou imperfeitamente indexados à alta inflação. Simultaneamente, a alta e variável inflação dificultava sobremaneira a supervisão pelo Banco Central do Brasil (BCB). A queda abrupta e definitiva da inflação, em consequência do Plano Real, evidenciou problemas em muitos bancos, causando uma crise bancária. Os programas então instituídos – o Proer para bancos privados e o Proes para bancos públicos – lograram restituir a boa saúde ao setor financeiro nacional, fundamental para o bom desempenho do mesmo durante a crise recente. A partir do Proer e do Proes, várias características fundamentais do aparato regulatório e de fiscalização foram desenvolvidas: foi criado o Fundo Garantidor de Créditos (FGC), instituição fundamental para prover liquidez durante a crise recente; o BCB passou a realizar periodicamente Inspeções Gerais Consolidadas (IGCs) nos bancos, o que aumentou muito a capacidade de o regulador agir tempestivamente, evitando que problemas localizados pudessem crescer e criar fonte de risco sistêmico.

8 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

A recorrência de crises no período 1994-2002 estimulou o fortalecimento dos sistemas de mensuração e gerência de risco das instituições financeiras nacionais, que se especializaram em conviver com alta volatilidade, uma característica importante durante a crise recente. A partir de 2003, a boa conjuntura internacional, que teve como dínamo as economias asiáticas, que apresentam forte complementaridade com a economia brasileira, ajudou a afastar o fantasma das crises com fugas de capitais que geravam quedas bruscas do investimento e do PIB – as chamadas paradas bruscas (sudden stops). Isso possibilitou que a economia brasileira entrasse em um período virtuoso de crescimento, apenas brevemente interrompido pela crise que sucedeu à quebra do lehman Brothers, em 2008.

São descritas características do setor financeiro brasileiro fundamentais para sua resiliência durante a crise, em especial:

(i) os bancos brasileiros apresentam baixa alavancagem, elevada liquidez e altos padrões de rentabilidade, resultando em maior capitalização, o que provê segurança durante crises;

(ii) estrutura de capital dos bancos com presença de grandes acionistas;

(iii) melhor monitoramento (fiscalização) dos bancos por parte do órgão regulador;

(iv) excelente estrutura de negociação e liquidação financeira, com obrigatoriedade de registro de todas as operações, mesmo as de balcão, com prazos curtos de liquidação (finality), o que provê muito maior transparência e impede que riscos sistêmicos fiquem fora do radar dos reguladores;

(v) mercado de balcão organizado e centralizado com eficiente sistema de segregação de custódia;

(vi) regulação proativa da Indústria de Fundos e autorregulação;

(vii) baixa expressividade de veículos não bancários (SIVs e conduits) no gerenciamento do risco financeiro;

9RESUMO ExECUTIVO

Por fim, descreve-se a reação à crise. Embora as defesas previamente construídas não tenham sido suficientes para blindar completamente o sistema financeiro nacional, o regime regulatório brasileiro permitiu a tomada de medidas reativas que contribuíram para mitigar os efeitos deletérios da crise. As principais medidas foram:

(i) liberação dos compulsórios para “desempoçar” a liquidez, irrigando as instituições financeiras percebidas pelo mercado como mais frágeis, e ainda outras medidas, como, por exemplo, o seguro de depósitos a prazo (DPGE), financiado integralmente com os recursos (privados) do FGC, que, assim, comprovou ser fonte externa aos bancos com capacidade de restabelecer confiança; e

(ii) intervenção no mercado cambial, com recurso a múltiplos instrumentos, de forma a prover liquidez em moeda estrangeira aos agentes que dela precisavam, evitando os deletérios efeitos sobre o comércio internacional do Brasil e a economia “real” como um todo.

Em suma, o bom desempenho da economia brasileira e de seu sistema financeiro foi oriundo do aprendizado adquirido e da infraestrutura constituída após inúmeras crises anteriores. Pode-se afirmar que, na reação à última crise, o Brasil foi beneficiado por sua performance extremamente acidentada dos anos de 1980 até 2002. O aparato regulatório e de fiscalização financeira aliado a uma excelente estrutura de negociação, liquidação e custódia financeira constitui, hoje, um dos maiores trunfos do Brasil para continuar sua trajetória de crescimento sustentado.

10 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

1 A economia brasileira, em especial, seu sistema financeiro2, passou bastante bem pela crise financeira internacional de 2007 e 2008. Por que isso ocorreu? Uma possível explicação é que as condições macroeconômicas, regulatórias e institucionais que vigoravam no Brasil, no período anterior à crise, evitaram o aparecimento de seus aspectos mais nocivos.

Entretanto, atribuir todo o sucesso do caso brasileiro a uma correta blindagem da economia seria um erro. Afinal de contas, o câmbio depreciou-se significativamente, grandes empresas estiveram à beira da falência e muitos bancos pequenos e médios enfrentaram sérios proble-mas de liquidez. A blindagem parece ter diminuído os efeitos perversos do “tsunami” financei-ro internacional, mas foi insuficiente para transformá-lo em uma “marolinha”. Tal fato nos leva ao segundo fator determinante para que o Brasil saísse rapidamente da crise: a correta gestão da crise pelas autoridades econômicas, auxiliadas por instituições do sistema financeiro.

Neste ensaio, serão analisados os fatores que (i) proveram os corretos incentivos aos agentes econômicos, permitindo ao Brasil passar ao largo de alguns dos aspectos mais nocivos da crise que estiveram presentes nos demais países, e (ii) dotaram as autoridades de instrumentos mais efetivos para combater a crise quando esta já estava em curso.

A crise financeira expôs muitas falhas regulatórias e institucionais no centro do sistema financeiro mundial que, até aquele momento, não haviam sido percebidas. Um ambiente re-gulatório robusto deve minimizar a frequência do surgimento dessas falhas e seus impactos no bem-estar. Portanto, o marco regulatório desempenha um importante papel preventivo e prudencial. O Brasil acabou sendo beneficiado por um marco regulatório bastante robus-to, que, embora incapaz de eliminar totalmente, amenizou certas distorções presentes em muitos outros países. A construção dessas defesas não ocorreu por acaso, mas como conse-quência de crises pelas quais passou o Brasil com profundos impactos no sistema financeiro. As reações a tais crises originaram (i) um marco regulatório e institucional capaz de prevenir bolhas e garantir a higidez do sistema financeiro e (ii) uma situação macroeconômica robusta. Estas duas características combinadas funcionaram bem para prover resiliência ao

1. Esse estudo foi patrocinado pela ANBIMA. O autor agradece aos diretores da ANBIMA e à sua equipe competente e colaborativa, assim como a muitos participantes do mercado que foram amáveis ao conceder entrevistas. Pablo Salgado contribuiu significativa-mente com o documento, e Alessandro Rivello, Carol Machado, Pedro Tepedino e Bruno Balassiano forneceram excelente assistência na pesquisa. Todas as opiniões e erros devem ser atribuídos somente ao autor.

2. Neste ensaio, usamos a denominação “sistema financeiro” em seu sentido mais amplo, incluindo também o mercado de capitais.

1. Introdução1

11INTRODUçãO

sistema financeiro nacional e à economia brasileira. Dentre os principais fatores da regula-ção prudencial brasileira que contribuíram para tal fato, podemos citar:

(i) os bancos brasileiros são mais capitalizados por conta da baixa alavancagem, da elevada liquidez e dos altos padrões de rentabilidade;

(ii) participação de grandes acionistas nos bancos;

(iii) eficiência do órgão regulador quanto à fiscalização dos bancos;

(iv) a forma como é estruturada a negociação e a liquidação financeira, obrigan-do o registro de todas as operações, inclusive as de balcão, com prazos curtos de liquidação, previne que riscos sistêmicos passem despercebidos;

(v) o mercado de balcão é centralizado e organizado com eficiente sistema de segregação de custódia;

(vi) regulação proativa da Indústria de Fundos e autorregulação;

(vii) pouco uso dos dispositivos fora de balanço (SIVs e conduits) no gerenciamen-to do risco financeiro.

Ainda que as defesas previamente construídas não tenham sido suficientes para tornar os impactos da crise triviais ou desprezíveis, o regime regulatório brasileiro permitiu a tomada de medidas reativas que contribuíram para mitigar os efeitos deletérios da crise, uma vez já instalada. Dentre elas, podemos destacar:

(i) medidas como liberação dos compulsórios, que desconcentraram a liquidez dos grandes bancos, empurrando-a para os bancos menores, e o seguro de depósitos a prazo (DPGE), oferecido pelo FGC, lograram restaurar a confiança nos bancos; e

(ii) com vista a impedir os efeitos nocivos ao comércio externo brasileiro, bem como à economia “real”, o governo lançou mão de diversas formas de inter-venção no mercado cambial, provendo liquidez em moeda estrangeira.

12 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

Em que pese seu sucesso, o exemplo brasileiro ainda é pouco conhecido internacionalmen-te. Embora as informações sobre o sistema financeiro brasileiro estejam disponíveis para o investidor estrangeiro3, o caso brasileiro de resiliência perante a crise não é tão bem conhe-cido como os de outras economias. Por exemplo, Paul Volcker afirmou que o Canadá possui regulação financeira muito mais adequada do que os EUA. O periódico financeiro Financial Times4 afirmou: “Canadá é um exemplo, no mundo real, de um sistema bancário de uma economia capitalista avançada, em um país de tamanho médio, que funcionou. Entender por que o sistema canadense sobreviveu pode ser a chave para tornar o restante do Ocidente igualmente robusto”. Ambos poderiam, também, ter citado a regulação brasileira, que possui a maioria dos atributos positivos da regulação canadense, mas não o fizeram. A segurança do nosso sistema financeiro ainda não logrou produzir todo seu efeito sobre a atratividade de nossos produtos e mercados financeiros. É, portanto, necessário aumentar a exposição dos pontos fortes do nosso sistema financeiro que nos permitiram enfrentar bem a crise e continuarão a alavancar o crescimento da economia brasileira5.

Este estudo pretende mitigar tal deficiência. Após esta introdução, o capítulo 2 evidencia a vulnerabilidade dos dois mercados financeiros que estiveram no epicentro da crise, os EUA e o Reino Unido (RU). Nesse capítulo é discutido como falharam diversos itens de regulação e supervisão financeira, permitindo que o abalo inicial no mercado de hipotecas viesse a se propagar, causando enormes danos em escala mundial.

No capítulo 3, contrastam-se os casos dos EUA e do RU com o de outros dois países cujas regulação, supervisão e base macroeconômica permitiram exibir resiliência frente à crise sistêmica: Canadá e Chile.

No quarto capítulo, descreve-se a evolução das principais variáveis macroeconômicas ao longo das últimas décadas no Brasil. Relata-se a longa experiência que o setor financeiro brasileiro teve com a hiperinflação, grandes volatilidades e mudanças bruscas de regras e regimes até o Plano Real. Em seguida, são analisadas as crises pelas quais passou nossa

3. Veja-se, por exemplo, o site do Best Brazil: Excellence in Securities Transactions: http://www.bestbrazil.org.br/.

4. FREElAND, 2010.

5. Com o mínimo distanciamento temporal da crise, pelo menos de sua fase inicial mais crítica, diagnósticos sobre os motivos do bom desempenho do sistema financeiro brasileiro já começam a surgir, como o demonstram duas coletâneas de artigos recentemente editadas em português: Garcia e Giambiagi, 2010, e Carneiro e De Bolle, 2010.

13INTRODUçãO

economia desde o Plano Real (1995, 1997, 1998-1999, e 2001-2002). O ambiente de grande volatilidade e de frequentes mudanças no cenário econômico, bem como nas regras de atuação das instituições financeiras, ajudou a forjar um sistema financeiro forte, resilien-te e capaz de conviver com crises.

O capítulo 5 mostra a evolução do ambiente regulatório e da infraestrutura do mercado financeiro brasileiro. Analisa-se o desempenho do setor financeiro, enfatizando como a regulação e supervisão, aliadas aos mecanismos de negociação, liquidação e custódia existentes, permitiram que o Brasil passasse ao largo dos grandes problemas que afligiram outros sistemas financeiros. São abordadas as razões históricas que forjaram infraestrutura, regulação e supervisão mais robustas. O capítulo ressalta as diferenças nos procedimentos de registro de contrato de balcão no Brasil e nos EUA, e o papel que câmaras de registro, como a Cetip, e contrapartes centrais, como a BM&FBovespa, desempenharam para prover transparência durante a crise.

O sexto capítulo trata da administração da crise. São descritas as principais medidas das au-toridades econômicas para lidar com a crise a partir da quebra do banco lehman Brothers. Conclusões finais são apresentadas no capítulo 7.

14 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

Uma crise tão grande resulta sempre da combinação desfavorável de múltiplos erros. A recente crise internacional adveio da combinação de desequilíbrios macroeconômicos com inovações financeiras que se desenvolveram enormemente à margem da regulação e supervisão adequadas. Do ponto de vista macroeconômico, os desequilíbrios globais (global imbalances) — países asiáticos e países produtores de petróleo gerando enormes superávits nas contas-correntes dos balanços de pagamentos e os países desenvolvidos, sobretudo os EUA, gerando correspondentes déficits — constituíram o caldo de cultura para se deixar a bolha imobiliária dos EUA passar muito além do razoável. Além disso, a política monetária dos EUA foi excessivamente frouxa no início do século xxI, causando impactos globais. Após o estouro da bolha da internet, o FED, temendo a recessão, praticou juros muito baixos, alimentando assim a bolha imobiliária. Os juros muito baixos deflagraram uma enorme caça a ativos mais lucrativos, e as inovações financeiras, envolvendo os derivativos de crédito, proporcionaram retornos mais elevados às custas do aumento substancial do risco sistêmico.

Simultaneamente, o setor bancário sofreu grandes transformações, sobretudo quanto à forma de prover crédito imobiliário. O modelo original, em que os bancos detinham em seus balanços as hipotecas que originavam, foi substituído pelo modelo “originar-e-distribuir”. No novo modelo, cabia à instituição emissora da hipoteca apenas originar o empréstimo. Este, em seguida, era empacotado (securitizado) junto a vários outros, tornando-se um novo ativo financeiro (MBS, mortgage-backed securities6). Um dos tipos mais comuns de ABS eram os CDOs (obrigações garantidas por dívidas). Os CDOs, por sua vez, eram fatiados em tranches distintas, que eram vendidas a diferentes classes de investidores, de acordo com a respectiva aversão ao risco. As menos arriscadas, e com menor remuneração, constituíam as supersenior tranches; as mais arriscadas, com maior remuneração, recebiam o sugestivo nome de lixo tóxico. A emissão de CDOs foi claramente exagerada; chegou-se mesmo a negociar CDOs constituídos de outros CDOs, ou CDO2 (CDO ao quadrado). De qualquer

6. Ativos mobiliários lastreados em hipotecas. Embora as hipotecas constituíssem a principal fonte de ativos securitizados, vários outros também passavam por processo semelhante, como os bônus corporativos ou os recebíveis de cartões de crédito. A esta classe mais geral, dá-se o nome de ABS, ou asset-backed securities.

2. Regulação e Supervisão Financeiras Deficientes no Centro do Sistema Financeiro Mundial: Os Casos dos EUA e do Reino Unido

15REGUlAçãO E SUPERVISãO FINANCEIRAS DEFICIENTES NO CENTRO DO SISTEMA FINANCEIRO MUNDIAl: OS CASOS DOS EUA E DO REINO UNIDO

forma, estava disponível um seguro contra o risco de crédito de tais ativos, via a contratação de credit default swaps (CDS), com preços cotados em mercado. A emissão de CDSs explo-diu, chegando, em 2007, segundo estimativas, a mais de USD 60 trilhões. A esse conjunto de novos produtos financeiros deu-se a denominação de operações financeiras estruturadas. As operações financeiras estruturadas permitiram ao sistema bancário aumentar muito a alavancagem, auferindo elevados lucros mesmo sob as baixas taxas de juros da ocasião. Além disto, para poder aumentar ainda mais a alavancagem, fez-se largo uso de veículos fora de balanço7, dando origem ao que se denominou de shadow banking system (sistema bancário invisível). Até a eclosão da crise, o sistema financeiro aumentou muito de tama-nho, ocorrendo o mesmo com as dívidas do setor privado, sobretudo as hipotecas.

2.1 Uma Breve Cronologia da Crise nos EUA8

O marco inicial da crise internacional9 ocorreu em agosto de 2007 quando, até então prati-camente desconhecidos, veículos fora de balanço criados por bancos para gerir complexos portfólios de operações estruturadas de crédito começaram a sofrer dificuldades por falta de liquidez. Os problemas iniciais já se haviam manifestado anteriormente, envolvendo opera-ções lastreadas em hipotecas subprime dos EUA. Em 4 de maio de 2007, o banco suíço UBS fechou seu hedge fund interno, Dillon Read, após sofrer perda de US$ 125 milhões. A partir do fim de maio, agências de classificação de riscos (rating) passaram a rebaixar tranches de ativos lastreados em hipotecas subprime nos EUA. Em meados de junho, dois hedge funds, geridos pelo banco de investimentos Bear Stearns, tiveram problemas para cumprir cha-madas de margens, obrigando o Bear Stearns a injetar US$ 3,2 bilhões para preservar sua reputação. Em seguida, o Countrywide Financial Corp., um grande emissor de hipotecas nos EUA, anunciou forte queda nos lucros. Os preços dos ativos imobiliários começaram a cair de forma generalizada, junto com a queda nas vendas de imóveis, causando perdas ainda maiores nos ativos lastreados em hipotecas.

7. Conduits e veículos de investimentos estruturados (structured investments vehicles – SIVs) foram a forma encontrada por bancos para se alavancarem, sem comprometer seus índices de capital mínimo, impostos pelo acordo de Basileia I.

8. Esta seção está baseada em BRUNNERMEIER, 2009.

9. O desenvolvimento da crise financeira internacional no tempo pode ser visto graficamente em excelente ferramenta desen-volvida pelo jornal The New York Times, atualizada até setembro de 2008: http://www.nytimes.com/interactive/2008/09/15/busi-ness/20080915_TURMOIl_TIMElINE.html?scp=1&sq=subprime%20crisis%20timeline&st=Search.

16 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

O que parecia um episódio temporário de falta de liquidez de algumas instituições transfor-mou-se em um problema muito maior de insolvência, à medida que a assimetria de infor-mação sobre quem detinha os “ativos tóxicos” contagiou todo o mercado internacional. Com a perda de centenas de bilhões de dólares de hipotecas, o problema financeiro foi aumentando. A liquidez do mercado de asset-backed commercial paper (ABCP) caiu signifi-cativamente, como evidenciada por spreads cada vez mais elevados.

Simultaneamente, vários conduits e SIVs eram rebaixados pelas agências de rating. Também no mercado interbancário, a liquidez se tornava cada vez mais escassa, dificultando sobre-maneira a sobrevivência das instituições alavancadas, acostumadas a rolar seus financia-mentos em curto prazo. Os spreads entre a taxa do mercado interbancário, a libor, e a taxa de títulos do tesouro dos EUA de igual maturidade cresceu a níveis até então inimagináveis.

Após algumas melhoras e pioras, em dezembro de 2007, o FED, convencido de que os cortes na taxa dos FED funds e na taxa de desconto não estavam resolvendo o problema da falta de liquidez, anunciou a criação do term auction facility (TAF). O objetivo desta nova modalidade operacional era mitigar o estigma associado a se recorrer ao redesconto do FED. Os recursos emprestados via TAF tinham vencimento em 28 dias e preservavam o anonimato (todos os dealers eram obrigados a participar dos leilões), ajudando assim a ressuscitar o mercado interbancário.

No início de 2008, o problema principal foi com as seguradoras monolines, assim chama-das porque, originalmente, asseguravam exclusivamente títulos municipais dos EUA. Com o tempo, passaram a estender garantias também a MBSs e outros produtos financeiros estruturados. Caso tais instituições perdessem a classificação AAA, haveria um rebaixa-mento da classificação de até US$ 2,4 trilhões de ativos por elas segurados, com potenciais efeitos muito nocivos sobre o mercado financeiro já bastante debilitado. O rebaixamento da monoline Ambac pela classificadora Fitch, em 19 de janeiro de 2008, repercutiu fortemente, causando vendas generalizadas de ativos e pânico em diversos mercados. Pela primeira vez, desde 1982, o FED realizou um corte emergencial (entre reuniões) na taxa dos FED funds de 75 bps, seguido por outro corte de 50 bps na reunião de 30 de janeiro de 2008.

Em março de 2008, desapareceu o mais fraco dos investments banks, Bear Stearns, seria-mente afetado por perdas em agency bonds (títulos emitidos pelas GSEs, vide abaixo) e em

17REGUlAçãO E SUPERVISãO FINANCEIRAS DEFICIENTES NO CENTRO DO SISTEMA FINANCEIRO MUNDIAl: OS CASOS DOS EUA E DO REINO UNIDO

créditos concedidos a um importante hedge fund holandês, Carlyle Capital, que veio a que-brar. O Bear Stearns foi absorvido pelo banco de investimento JPMorgan Chase, em opera-ção coordenada pelo FED. O FED cortou novamente a taxa dos FED funds em 25 bps e, pela primeira vez, estendeu o redesconto a investments banks, via o Primary Dealer Credit Facility (PDCF). Tal ação mitigou temporariamente os problemas de liquidez dos demais investments banks, aí incluído o lehman Brothers.

Em setembro de 2008, pouco mais de um ano depois do início da crise de crédito, esta se intensificou sobremaneira, transformando-se na maior crise desde a Grande Depressão. Em 7 de setembro de 2008, o governo dos EUA anunciou que estatizaria os poderosos bancos hipotecários semiestatais (GSEs, government sponsored enterprises), Fannie Mae e Freddie Mac, que, juntos, carregavam em seus balanços cerca de metade do estoque das hipotecas nos EUA, estimado então em US$ 12 trilhões10. No entanto, o estopim da crise foi a falência do banco lehman Brothers em 15 de setembro de 2008. As desastrosas repercussões da falência do lehman levaram as autoridades econômicas dos EUA a intervir na maior segu-radora dos EUA, a AIG, bem como em diversas outras instituições, dentre as quais a maior instituição de poupança e empréstimo, a Washington Mutual. Em outras partes do mundo, eventos semelhantes ameaçaram sistemas financeiros nacionais, obrigando ações inéditas de autoridades governamentais.

Passamos, agora, a analisar as particularidades da crise no Reino Unido (RU). Ainda que o motor da crise tenha sido o mesmo, algumas características específicas determinaram resul-tados distintos, mas também muito ruins, e reações distintas das autoridades econômicas.

2.2 A Crise no Reino Unido

londres é um centro importantíssimo de negociação financeira, tanto por bancos do RU, como por instituições financeiras estrangeiras. Assim, é natural que o RU tenha sido dura-mente afetado pela crise. O principal documento da autoridade regulatória britânica sobre a crise, The Turner Review (FSA, 2009), destaca que o desenvolvimento da transformação de maturidades que ocorreu – nos EUA, em grande medida via os fundos mútuos – não foi tão

10. O terceiro banco hipotecário, Ginnie Mae, sempre gozou de garantia total do governo dos EUA.

18 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

extenso no RU, uma vez que neste os depositantes não costumam fazer tanto uso de fundos mútuos como substitutos de depósitos bancários. Também os veículos fora de balanço, SIVs e conduits, foram menos numerosos e de menor valor no RU do que nos EUA. Não obstante, como os SIVs e conduits nos EUA compravam ativos securitizados originados no RU, quando aqueles pararam de comprar, ocorreu, também, uma queda significativa do crédito no RU.

Muitos dos maiores bancos do RU eram participantes ativos na negociação dos derivativos de crédito, um modelo que foi denominado de “comprar e arbitrar”. Procedendo assim para aumentar a lucratividade, também elevaram significativamente seus graus de alavancagem e expuseram-se ao risco de iliquidez, tal como seus pares nos EUA, sofrendo grandes perdas desde 2007, mas, sobretudo, após a falência do lehman em setembro de 2008.

Em linhas gerais, o RU viveu uma bolha de crédito imobiliário e preços de ativos imobili-ários semelhante à dos EUA, com alguns detalhes específicos que influenciaram a forma que a crise assumiu naquele país. Nos dez anos precedentes à eclosão da crise em 2007, a dívida hipotecária agregada do RU subiu de 50% para mais de 80% do PIB. Além disso, registrou-se aumento do lTV (loan-to-value) das hipotecas, uma vez que se supunha o aumento contínuo do preço dos ativos imobiliários. O movimento de extensão do crédi-to imobiliário a setores mais humildes da população também ocorreu, embora não na mesma extensão do subprime. A compra de imóveis para locação, antes sem importância, cresceu significativamente.

Do ponto de vista macroeconômico, o RU também exibiu sucessivos déficits nas contas--correntes do balanço de pagamentos, embora a entrada de recursos externos para o financiamento dos referidos déficits tenha se dado majoritariamente via transferências entre entes do setor privado, ao contrário dos fluxos para os EUA, destinados à compra de dívida pública daquele país por governos estrangeiros. A entrada de capital externo no RU desti-nou-se à compra de valores mobiliários lastreados em créditos, sobretudo MBSs no varejo (retail mortgage-backed securities, RMBS). Após significativo crescimento, em 2007, 18% das hipotecas do RU eram financiadas via securitização. Como os bancos expandiram bas-tante as hipotecas nos próprios balanços, muito além da expansão dos depósitos, passaram a depender crescentemente de financiamento em mercados interbancários. No agregado, isso implicou que o financiamento do déficit em conta-corrente passasse a depender mais e mais do financiamento de bancos estrangeiros.

19REGUlAçãO E SUPERVISãO FINANCEIRAS DEFICIENTES NO CENTRO DO SISTEMA FINANCEIRO MUNDIAl: OS CASOS DOS EUA E DO REINO UNIDO

Vários bancos exibiram forte crescimento nos anos anteriores à crise — Northern Rock, Bradford & Bingley, Alliance & leicester e HBOS — baseados no financiamento, então largamente disponível, em mercados interbancários e também na habilidade de securitizar e revender rapidamente os créditos gerados, sobretudo as hipotecas. Quando os merca-dos interbancários secaram e a compra de créditos securitizados cessou, na sequência da falência do lehman Brothers, esses bancos tiveram sérios problemas. O mais grave foi a corrida bancária ao banco Northern Rock, pela primeira vez em muitas décadas, obrigando o governo britânico a intervir para evitar que o pânico se espalhasse.

2.3 As Falhas de Regulação e Supervisão Financeiras

O que se viu a partir do último trimestre de 2008 foi uma sucessão de medidas extraordinárias de política econômica — monetária, fiscal e regulatória — em quase todos os países, buscando evitar a repetição da Grande Depressão. Embora restem, ainda hoje, dúvidas sobre a robustez da recupe-ração mundial, o pior parece ter sido evitado. Entretanto, é necessário impedir que tais episódios voltem a se repetir. Afinal, ficou patente a fragilidade do sistema financeiro e sua capacidade para amplificar problemas: a perda inicial de algumas centenas de bilhões de dólares nos mercados imobiliários foi magnificada, transformando-se em queda de US$ 8 trilhões na capitalização no mercado de ações dos EUA e afetando seriamente a economia global, sobretudo os países de renda mais elevada. Para evitar isso, é fundamental identificar as causas do derretimento financeiro. O plano Obama para a reforma da regulação financeira, que deu origem à lei Dodd-Frank, aprovada em julho de 2010, identificou como principais falhas na regulação e supervisão financeiras:

► fraquezas e hiatos na supervisão de empresas financeiras criaram desafios para a capacidade de o governo dos EUA monitorar, prevenir e lidar com riscos à medida que estes cresciam no sistema financeiro;

► nenhum regulador percebeu seu trabalho como sendo o de proteger o siste-ma como um todo;

► as formas de regulação de holdings bancárias focaram-se em proteger o ban-co apenas, deixando escapar a firma como um todo. Em especial, os veículos fora de balanço foram grande fonte de fragilidade;

20 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

► investment banks puderam optar por diferentes regimes de regulação, sob distintos reguladores, fugindo, assim, das restrições devidas à alavancagem;

► outras firmas, como a seguradora AIG, emitiam depósitos segurados pelo governo, mas escaparam das restrições da regulação do setor bancário, por não serem consideradas bancos.

Além dessas falhas de regulação, o uso de derivativos de balcão, sem controle centralizado, foi identificado como uma falha importante. Uma das principais dificuldades para a ação dos reguladores foi que não havia informações centralizadas. Como veremos no capítulo 5, o mercado over-the-counter, nos EUA, não tem a estrutura do mercado de balcão organi-zado do Brasil, em que as operações são todas registradas em sistema e os registros são reconhecidos e exigidos pelos reguladores.

As operações de securitização foram objetos de várias críticas. Primeiramente, o modelo de originar-e-distribuir gera o conhecido problema de risco moral. Dado que os ativos sairão do balanço das instituições que os originaram, não há incentivo em recusar crédito a poten-ciais maus pagadores. Ficaram famosos os casos das hipotecas Ninja (no income, no job or assets), estendidas a pessoas sem renda, emprego ou garantias bancárias.

Outro problema foi o repasse indiscriminado dos ativos securitizados entre instituições, dan-do origem a uma teia de obrigações mútuas entre instituições financeiras, a qual dificulta bastante a devida visibilidade das posições de risco de cada instituição. Os efeitos de rede e as espirais descendentes dos preços de ativos resultaram, em grande medida, da arqui-tetura endogenamente gerada pelos derivativos de crédito. Tal arquitetura criou incentivos para que as instituições financeiras se alavancassem ao máximo, ficassem descasadas e se tornassem muito interconectadas. Uma das formas vislumbradas para corrigir tais problemas é a transferência da negociação de grande parte dos derivativos para contrapartes centrais.

A existência de instituições muito grandes ou muito interconectadas (too big or too inter-conected to fail) foi também identificada como um grave problema. Para evitá-lo, a nova lei norte-americana prevê que tais instituições sejam identificadas pelo regulador e tenham que deter mais capital para justificar o seguro público implícito.

21REGUlAçãO E SUPERVISãO FINANCEIRAS DEFICIENTES NO CENTRO DO SISTEMA FINANCEIRO MUNDIAl: OS CASOS DOS EUA E DO REINO UNIDO

Foram também identificadas falhas significativas na governança corporativa11 das institui-ções financeiras. A primeira linha de combate e o principal interessado na boa saúde da ins-tituição financeira devem ser sua diretoria e seu conselho. Não foi isso que se viu, passando as distorções desde o grave problema de moral hazard — com os executivos de diversas instituições assumindo posições muito alavancadas e exageradamente arriscadas, confiando no resgate financeiro pelo poder público12—, até a fraude pura e simples, como no caso de Bernard Madoff, a ser analisado mais à frente. Em realidade, não deveria haver surpresa: os executivos agem de acordo com seus interesses, e vão defender a saúde da empresa apenas se tiverem os incentivos corretos para fazê-lo. A compensação dos executivos forneceu incentivos para correr riscos, buscando lucros de curto prazo em detrimento da estabilidade da empresa.

Finalmente, a abrangência internacional da regulação financeira, suportada por superviso-res que ajam em conjunto, mostrou-se uma grande necessidade. Afinal, segundo famoso adágio, bancos vivem internacionalmente, mas morrem nacionalmente.

Essas foram as principais falhas evidenciadas nos mercados financeiros mais avançados do mundo. Como veremos a seguir, alguns países, dentre os quais o Brasil, não seguiram mui-tas das tendências que provocaram a crise. Começaremos pela análise de dois outros países que demonstraram resiliência à crise financeira: Canadá e Chile.

11. De acordo com Shleifer e Vishny (1997), “corporate governance deals with the ways in which suppliers of finance to corporations assure themselves of getting a return on their investment” (governança corporativa lida com as formas utilizadas pelos financiadores das empresas para se assegurarem da obtenção de retornos de seus investimentos).

12. A crença num bailout por parte do governo enfraquece a disciplina de mercado, principalmente por parte dos credores do banco.

22 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

Há vários países que se saíram bem na crise. Uma das principais razões para o bom desem-

penho foi a crise não ter afetado significativamente seus sistemas financeiros. Competente

gestão macroeconômica aliada a boas regulação e supervisão financeiras constituíram os

pilares fundamentais para a resiliência de seus setores financeiros. Neste capítulo, analisa-

mos o caso de dois desses países: Canadá e Chile.

3.1 Canadá

O caso canadense tem sido objeto de várias referências elogiosas. Paul Volcker afirmou ser a

regulação financeira prevalente no Canadá muito mais adequada do que a nos EUA. Afinal,

o Canadá foi o único país no seleto G7 que não teve um programa de socorro do setor

público ao sistema financeiro. O periódico financeiro Financial Times opinou: “Canadá é um

exemplo, no mundo real, de um sistema bancário de uma economia capitalista avançada,

em um país de tamanho médio, que funcionou. Entender por que o sistema canadense so-

breviveu pode ser a chave para tornar o restante do Ocidente igualmente robusto”13. Sendo

o Canadá um país geograficamente colado e muito dependente economicamente dos EUA,

o epicentro da crise, torna-se ainda mais notável seu bom desempenho.

O bom desempenho do sistema financeiro canadense durante a crise, vis-à-vis o furacão

financeiro que se abateu sobre os EUA e boa parte da Europa, refletiu diferenças quanto

aos regimes regulatórios, à governança corporativa e às práticas de empréstimos pelas

instituições financeiras. Antes da eclosão da crise, o sistema canadense era frequentemente

criticado por ser muito conservador e por não aceitar muitas das inovações financeiras que

posteriormente se mostraram associadas à crise, crítica que também era muitas vezes dirigi-

da ao sistema financeiro brasileiro.

13. “Canada is a real-world example of a banking system in a medium-sized, advanced capitalist economy that worked. Understanding why the Canadian system survived could be a key to making the rest of the West equally robust” (Freeland, 2010).

3. A Infraestrutura Financeira e Macroeconômica de Países Resilientes: Os Casos de Canadá e Chile

23A INFRAESTRUTURA FINANCEIRA E MACROECONôMICA DE PAíSES RESIlIENTES: OS CASOS DE CANADá E CHIlE

Vejamos os principais fatos e dados sobre o sistema financeiro canadense14. É composto por seis grandes bancos, em um total de 73 instituições bancárias. Os grandes bancos são universais, oferecendo operações de varejo e comerciais e serviços de bancos de investimento. Há, também, pequenas butiques de investimentos e bancos comerciais. Os bancos canadenses não carregam significativas posições fora de seus balanços. As taxas de retorno sobre o patrimônio dos bancos giram na faixa de 13% a 20%. A percentagem de famílias que têm casa própria é alta, 68,4% (a dos EUA é de 67,6%). A participação do segmento subprime é baixa, apenas 5% (contra 11% nos EUA). No sistema financeiro canadense, a penetração dos derivativos financeiros e da securitização foi bem menor que nos EUA; 27% das hipotecas foram securitizadas e revendidas como títulos (contra 67% nos EUA). A inadimplência das hipotecas foi de 1% (contra 10% nos EUA), conforme mostra a tabela 1.

Total de Instituições 73

Taxa de retorno sobre PL 13%-20%

% das famílias com casa própria 68,4%

Participação dos bancos no subprime 5%

% das hipotecas securitizadas 27%

Inadimplência das hipotecas 1%

Fonte: Freeland, 2010.

Tabela 1: Informações sobre Bancos Canadenses

A regulação dos bancos, seguradoras e grandes corretoras é feita de forma integrada pelo Office of the Superintendent of Financial Institutions15 (OSFI). Bancos canaden-ses podem possuir distribuidoras de valores mobiliários. O regulador, OSFI, regula os bancos em bases consolidadas mundialmente (atividades de crédito no varejo, crédito a pessoas jurídicas, investimentos e administração de riquezas). O regime de regu-

14. Os dados foram reportados pelo Financial Times (FREElAND, 2010), a partir de informações da McKinsey referentes a 2008 e 2009, bem como do censo canadense de 2006 (percentagem de famílias com casa própria).

15. Superintendência das Instituições Financeiras.

24 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

lação financeira vigente no Canadá contrasta fortemente com aquele composto por diferentes órgãos, existente nos EUA, mas aproxima-se significativamente do regime existente no Brasil, como se verá nos capítulos seguintes.

Apesar de ser comum afirmar-se que o regime regulatório canadense baseia-se em prin-cípios, a verdade é que tal abordagem é significativamente complementada por um vasto número de regras. O objetivo é coibir, através das normas, iniciativas nocivas à saúde das instituições financeiras e do sistema financeiro, ao mesmo tempo em que se coloca o ônus de seguir a intenção das normas nas instituições financeiras.

Como visto no capítulo anterior, um fator muito importante para a eclosão da crise nos EUA e na Europa foi a excessiva alavancagem das instituições financeiras, realizada, com frequência, via SIVs e conduits, para passar despercebida pelos reguladores. No Canadá, a alavancagem no período pré-crise não chegou a atingir níveis imprudentes, porque lá a regulação impõe um teto de 20 para a razão entre ativos totais e capital total, isto é, a ala-vancagem máxima é de 20 vezes o capital. Devido a esse limite máximo para alavancagem, os bancos canadenses apresentaram razão ativo-capital da ordem de 18 em 2008, vis-à-vis mais de 25 para vários bancos nos EUA, e até mais de 30 para alguns bancos europeus. Desde 1999, a meta para capital tier 1 era de 7%. Exige-se, adicionalmente, que pelo me-nos 75% do capital tier 1 seja constituído por ações ordinárias, conferindo mais segurança aos bancos e, consequentemente, ao sistema bancário16.

Tal como no caso dos bancos brasileiros, os bancos canadenses possuíam mais capital do que prescreviam as regras internacionais de Basileia. Além disso, também em consonância com o caso brasileiro, os grandes bancos canadenses tinham seu funding mais baseado em depósitos do que em mercados de capitais ou interbancários, o que conferiu mais estabilidade durante a crise.

Como apontado no capítulo anterior, a hipertrofia do sistema originar-e-distribuir hipotecas foi fundamental para gerar ativos baseados nas hipotecas subprime que deflagraram a crise. No caso canadense, a grande maioria das hipotecas é carregada pelas próprias instituições que as originaram. Além disso, há mecanismos regulatórios para prevenir a emissão de hipotecas acima da capacidade de pagamento das famílias ou que gerem incentivos para o não paga-

16. lYNCH, 2010.

25A INFRAESTRUTURA FINANCEIRA E MACROECONôMICA DE PAíSES RESIlIENTES: OS CASOS DE CANADá E CHIlE

mento das hipotecas. No Canadá, hipotecas com valor acima de 80% do valor do imóvel (lTV, loan-to-value, acima de 80%) têm que ser seguradas. Assim, para evitar o custo do seguro, normalmente as hipotecas no Canadá têm, no mínimo, equity de 20%, isto é, há um paga-mento à vista mínimo de 20% do valor total do imóvel, financiando-se 80% ou menos. Eram extremamente raras as formas inventivas, prevalentes nos EUA, de tornar as hipotecas mais baratas às custas de aumento do risco sistêmico, como as hipotecas com taxas reajustáveis ou com prestações iniciais que não envolviam qualquer amortização, ou sequer cobriam os juros.

O sistema de bancos universais parece funcionar bastante bem no Canadá, tal como no Brasil, com as diversas atividades provendo diversificação das fontes de receitas. No dizer do presidente de uma importante instituição financeira canadense: “A estrutura diversifica-da do sistema financeiro canadense, boa gestão e uma estrutura efetiva de regulação e de supervisão reforçada por bom diálogo quando este foi mais importante – mais uma pitada de boa sorte – produziram as condições que permitiram ao Canadá resistir à crise finan-ceira. Com tais condições, as instituições financeiras canadenses foram bem sucedidas em tomar as decisões corretas de se insular de diversos dos problemas que acabaram arruinan-do outras instituições financeiras ao redor do mundo”17.

3.2 Chile

O Chile é um país mais comparável ao Brasil. Trata-se de um país em desenvolvimento, de colonização ibérica, localizado na América do Sul e com peso importante de commodities em suas exportações. Tal como o Brasil, o Chile não sofreu muito os efeitos da crise até a quebra do banco lehman Brothers. A partir do final de setembro de 2008, ocorreu fuga de capitais. A liquidez em dólares diminuiu significativamente com a taxa de juros onshore em dólar no Chile (o cupom cambial chileno) aumentando muito além da taxa libor de prazo equivalente (400 a 500 bp). As taxas de juros internas, em pesos, também aumentaram, crescendo os spreads entre as taxas de depósitos bancários e a taxa básica de juros do BC chileno (200 bp). Um mecanismo, semelhante ao ocorrido no Brasil, de “empoçamento” de

17. “The diversified structure of Canada´s financial system, good management and an effective regulatory and supervisory structure reinforced by good dialogue when it mattered the most – plus a bit of good fortune – produced the conditions that allowed Canada to weather the financial crisis. With those conditions in place, Canadian financial institutions succeeded in making the right choices to insulate themselves from many of the issues that brought down other financial institutions around the world” (Downe, 2010).

26 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

liquidez também se verificou no Chile. Tal processo foi magnificado pelo julgamento feito, à época, de que a crise mundial faria piorar significativamente os riscos de crédito.

Tabela 2: Conformação do Sistema Financeiro Chileno - fim do ano de 2007

Número de Instituições

Número de Sucursais

Número de Contas

Valor das Contas*

Banco Central 1 0 26 326.318

Bancos Comerciais 26 1.730 2.201.372 7.077.408

Bancos Públicos 1 318 235.161 1.490.357

Bancos Privados 25 1.412 1.966.211 5.587.051

Sucursais de Bancos Estrangeiros 4 4 390 25.274

Instituições Financeiras não Bancárias - - - -

Correios

*Em milhões de US$. Banco Central do Chile, Superintendência de Bancos e Instituições Financeiras.

As medidas tomadas pelas autoridades monetárias chilenas foram semelhantes às brasilei-ras, quando se leva em conta que os bancos chilenos aceitam depósitos em dólares. Além de significativa redução da taxa básica de juros, anunciou-se um programa composto de políticas suficientemente duradouras objetivando assegurar que o BC chileno estaria pronto para prover liquidez, tanto em pesos quanto em dólares, a fim de garantir o funcionamento normal do sistema. Instituiu-se um programa de swaps de pesos por dólares; aumentou-se em 50% a quantidade de ativos passíveis de serem aceitos como colaterais para emprésti-mos junto ao BC chileno, e as operações de Repo (provisão de liquidez) foram alongadas. O setor público aumentou os depósitos no sistema bancário, via leilões competitivos condu-zidos pelo BC chileno. Tais medidas foram suficientes para acalmar o mercado financeiro, evitando quebras de instituições financeiras. A taxa de câmbio sofreu forte depreciação, mas isso não resultou em maiores efeitos macroeconômicos deletérios em médio e longo prazos.

Quanto à política fiscal, o regime chileno permitiu muita flexibilidade na resposta à crise. Para exercer com maior eficiência políticas anticíclicas, o Chile pratica uma regra fiscal que tem

27A INFRAESTRUTURA FINANCEIRA E MACROECONôMICA DE PAíSES RESIlIENTES: OS CASOS DE CANADá E CHIlE

como meta o superávit fiscal estrutural, ou seja, ajustado pelo ciclo econômico. Quando o pre-ço do cobre e o crescimento da economia são anormalmente altos, a meta para o superávit fis-cal (nominal) eleva-se, e vice-versa. Em 2007, a meta para o superávit estrutural era, no Chile, de 1% do PIB, mas, devido às excelentes condições daquele ano, o superávit fiscal efetivo foi de 8,8% do PIB. O excesso de 7,8% do PIB foi poupado em fundos soberanos, sendo muito útil durante a crise (e também na resposta ao terremoto de 2010). Assim, foi possível realizar grande estímulo fiscal, sem sequer arranhar a solvência do setor público chileno.

A regulação e supervisão financeiras, hoje bem implantadas no Chile, seguem-se a duas grandes crises financeiras naquele país, uma como resultado de regulação excessiva aliada a desequilíbrios macroeconômicos (1973), outra como resultado de falta de regulação ade-quada (1982). Extrair lições das crises para bem reformar a regulação e supervisão financei-ras é algo que o Chile tem em comum com o Brasil. A base da boa regulação chilena está na lei Geral de Bancos (lGB) de 1986, que vige, com revisões, até hoje18. Tendo falhado anteriormente com dois modelos polares, a lGB tendeu a seguir um caminho intermediário, aliando uma forte e bem definida regulação prudencial com o sistema de mercado capitalis-ta. O objetivo fundamental foi simplificar e tornar mais eficiente a regulação financeira.

A regulação financeira foi quase toda concentrada em uma só instituição, a Superintendência de Bancos e Instituições Financeiras (Sbif), com suporte de três outras agências: Banco Central do Chile, Superintendência de Pensões, e Superintendência de Valores (Mobiliários) e Seguros. A Sbif, contudo, é a entidade principal de regulação e supervisão financeiras, à qual estão submetidos todos os bancos, suas subsidiárias e quaisquer outras instituições financeiras que não estejam, por lei, sob a responsabilidade de outro regulador.

A experiência chilena provê importantes lições. É positivo haver uma agência re-gulatória e de supervisão forte, independente e consolidada, com poderes claros e abrangentes. Há muito o Chile pratica exigências de capital que excedem os requi-sitos de Basileia, como ocorre também no Brasil. Há seguro de depósitos, até 90% dos depósitos individuais, respeitado um máximo. A supervisão é baseada no padrão Camel (capital, assets, management, earnings and liquidity; capital, qualidade do ativo,

18. Cf.: http://www.sbif.cl/sbifweb/internet/archivos/ley_1102.pdf.

28 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

gerência, lucratividade e liquidez), nas diretrizes de Basileia II e em limitações adicio-

nais às atividades de investimentos dos bancos19.

O mercado imobiliário no Chile é pujante. A originação de hipotecas é adequadamente regulada,

sendo que a responsabilidade do devedor não se limita ao valor do colateral. Os investimentos

financeiros dos bancos encontram-se limitados a produtos tradicionais. Bancos não podem

investir em ações. O movimento de avanço da securitização de ativos é restrito. O risco de crédito

fica todo dentro do balanço dos bancos. O Banco Central Chileno regula a emissão de covered

bonds20 lastreados em hipotecas, fixando um teto de 75% para o lTV (loan-to-value).

Bancos podem deter posições somente em determinados contratos de derivativos financei-

ros, que não incluem derivativos de crédito. Para negociarem derivativos de câmbio ou juros,

os bancos passam por exaustivo processo de autorização pela Sbif. Há alto requisito de

capital para posições cambiais sem proteção e bancos têm que avaliar a exposição cambial

de seus clientes corporativos.

Em suma, os principais elementos que proveram à economia chilena excepcional resiliência

à crise internacional foram os seguintes21:

► política fiscal responsável e previsível que garante a solvência do setor públi-

co, suavizando os gastos provenientes da renda das exportações de cobre e

outros minérios;

► política monetária conduzida por um banco central independente que faz uso

do sistema de metas para inflação acoplado ao regime de câmbio flutuante;

► grande e crescente abertura comercial, o que permite fazer uso da diversifica-

ção de mercados, tanto na exportação, quanto na importação; e

19. HORNBECK, 2009.

20. Covered bonds são títulos de renda fixa lastreados por fluxos de caixa advindos de hipotecas. Tais títulos se assemelham aos MBSs, mas diferem destes porque ficam no balanço consolidado do emissor.

21. DE GREGORIO, 2008; GARCíA, 2009.

29A INFRAESTRUTURA FINANCEIRA E MACROECONôMICA DE PAíSES RESIlIENTES: OS CASOS DE CANADá E CHIlE

► sistema financeiro sólido, com bancos competitivos e bem capitalizados, adequadamente regulados e supervisionados.

Passamos agora a descrever o caso brasileiro, que tem muito em comum com os casos canadense e chileno, distanciando-se das falhas regulatórias e de supervisão observadas nos casos dos EUA e do RU. Inicialmente, descreveremos o ambiente macroeconômico das últimas décadas, que muito influenciou a conformação atual do sistema financeiro brasileiro.

30 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

Ao contrário do que ocorreu em outras crises, o Brasil encontrava-se numa situação macroeconô-mica privilegiada para enfrentar os acontecimentos que viriam a se desenrolar na crise de 2007-2008. Este capítulo resume a evolução da situação macroeconômica brasileira até o início da crise.

Após meio século de crescimento acelerado22, a economia brasileira entrou em prolongada crise a partir dos anos de 1980. O gráfico 1 mostra as taxas de crescimento do PIB, tanto em termos absolutos, quanto em termos per capita. Fica muito claro que as pujantes taxas de crescimento dos anos de 1970 sofreram significativa queda, aliada à grande volatilidade, a partir da década seguinte.

22. Nos 50 anos a partir de 1930, o PIB cresceu a uma taxa média de 6,5% a.a., e o PIB per capita, a 3,7% a.a..

4. Ambiente Macroeconômico e Sistema Financeiro do Brasil

Gráfico 1 - Crescimento PIB Real x PIB per Capita

-10%

-5%

0%

5%

10%

15%

1970

1974

1978

1982

1986

1990

1994

1998

2002

2006

2010

*

Crescimento

Crescimento per Capita Crescimento Real

* A estimativa do crescimento do PIB para 2010 advém do relatório FOCUS, enquanto a taxa de crescimento populacional utilizada para o ano foi a de 2009.Fonte: Banco Central do Brasil e IBGE.

31AMBIENTE MACROECONôMICO E SISTEMA FINANCEIRO NO BRASIl

Já a inflação, bem comportada na primeira metade dos anos de 1970, começa a subir a par-tir do primeiro choque do petróleo. Na virada para os anos de 1980, com o segundo choque do petróleo, aliado aos efeitos da indexação da economia à inflação prévia e da passividade da política monetária, a inflação eleva-se ainda mais, até atingir os três dígitos, em taxas anuais, em 1983. O gráfico 2 exibe as taxas mensais de inflação no Brasil desde 1983. As li-nhas verticais marcam os planos de estabilização. Cinco planos de estabilização fracassaram – Cruzado (1986), Bresser (1987), Verão (1989), Collor I (1990) e Collor II (1991) – antes de o Plano Real (1994), finalmente, debelar a inflação.

A convivência com a alta inflação requereu grande desenvolvimento do sistema financeiro brasileiro, que provia vários produtos financeiros que mitigavam a incerteza inflacionária, mantendo, ainda que de forma imperfeita, o poder de compra dos investimentos. Os planos de estabilização, à exceção do Plano Real, envolveram significativas surpresas nas mudan-ças de regras anunciadas no início de cada plano, o que gerava enorme incerteza. Algumas das medidas que muito afetaram os contratos financeiros no período anterior ao Plano Real

Gráfico 2 - Inflação Mensal: 1983-2010

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

90%

jan

-83

set-

83m

ai-8

4ja

n-8

5se

t-85

mai

-86

jan

-87

set-

87m

ai-8

8ja

n-8

9se

t-89

mai

-90

jan

-91

set-

91m

ai-9

2ja

n-9

3se

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mai

-94

jan

-95

set-

95m

ai-9

6ja

n-9

7se

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-98

jan

-99

set-

99m

ai-0

0ja

n-0

1se

t-01

mai

-02

jan

-03

set-

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4ja

n-0

5se

t-05

mai

-06

jan

-07

set-

07m

ai-0

8ja

n-0

9se

t-09

mai

-10

jan

-11

Inflação Mensal

Fonte: BCB e IBGE.

32 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

foram: conversão forçada de contratos para a nova moeda via uso de tabelas que modifica-vam as taxas de juros; congelamentos de preços, de salários e da taxa de câmbio; proibição de produtos financeiros indexados; fechamento de alguns mercados de derivativos; impo-sição de novos impostos sobre produtos financeiros; substanciais mudanças de requisitos compulsórios sobre depósitos e, até mesmo, congelamento de 80% de todos os ativos financeiros, efetuado pelo Plano Collor I.

A alta volatilidade associada à incerteza do período hiperinflacionário, conquanto tenha prejudicado substancialmente o desenvolvimento do país, gerou enormes oportunidades para o setor financeiro, que delas soube se aproveitar. O setor financeiro atraiu os melhores e mais bem treinados recursos humanos. Nesse período, foram criadas várias instituições financeiras que hoje passaram a ter proeminência internacional. lidar bem com alta vola-tilidade e incerteza de regras, ironicamente características do atual cenário internacional, é uma especialidade das melhores instituições financeiras brasileiras.

A hiperinflação brasileira foi um fenômeno longo, tendo durado muitos anos. Justamente por conta da longa duração da alta e muito volátil inflação, o sistema financeiro nacional desenvolveu-se significativamente em muitas áreas, enquanto outras, notadamente a provi-são de financiamento a longo prazo, ficaram atrofiadas. Sob alta inflação, a administração eficiente do caixa torna-se muito mais importante, uma vez que o custo de oportunidade de recursos ociosos é a taxa nominal de juros, que é elevadíssima. Visto por outro ângulo, a lucratividade dos depósitos à vista, sobre os quais os bancos não pagavam juros, era muito alta. Por isso, os grandes bancos brasileiros desenvolveram sistemas capazes de interligar suas agências, por mais longínquas que fossem, a fim de maximizar seus ganhos com o float (recursos de depósitos que não rendiam juros).

Após a estabilização da inflação, em julho de 1994, as receitas de float caíram substancial-mente. Diversas instituições financeiras frágeis, públicas e privadas, com problemas patrimo-niais importantes escondidos pela receita do float, mostraram-se incapazes de sobreviver na economia com inflação baixa. Para lidar com os problemas dos bancos em estado falimentar, foram criados dois programas: o Proer, para bancos privados, e Proes, para bancos públicos.

O Proer transformou os bancos privados insolventes em duas instituições, seguindo o modelo good bank e bad bank. O bad bank permaneceu sob intervenção do Banco Central

33AMBIENTE MACROECONôMICO E SISTEMA FINANCEIRO NO BRASIl

do Brasil (BCB), encarregado de gerir a massa falida. O good bank foi repassado a institui-ções financeiras interessadas em se expandir ou em entrar no mercado brasileiro, caso de diversas instituições financeiras internacionais. Já o Proes eliminou diversos bancos públicos estaduais, que haviam de fato quebrado e se constituído em focos geradores de déficit público. Além de fechar esta porta de desequilíbrio fiscal, as “partes boas” dos bancos esta-duais foram absorvidas por instituições financeiras nacionais e internacionais com melhores sistemas de governança corporativa. O resultado do Proer e do Proes foi produzir, já na segunda metade dos anos de 1990, um sistema financeiro nacional sadio, sem instituições que pusessem em risco sua higidez. Outro desdobramento positivo dessa crise bancária foi a criação de um mecanismo de seguro de depósitos, o FGC (Fundo Garantidor de Créditos), que iria cumprir importante papel durante a crise de 2008, como se verá a seguir.

Também a fiscalização do BCB foi significativamente aprimorada a partir da segunda meta-de dos anos de 1990. Criou-se a IGC, Inspeção Geral Consolidada, que possibilitou ao BCB fiscalizar simultaneamente todo o banco, identificando possíveis vulnerabilidades ou mesmo fraudes. A inexistência de inspeções consolidadas era, até então, motivo de desconfiança dos reguladores dos EUA em relação aos bancos brasileiros, dificultando a aprovação de subsidiárias de bancos brasileiros naquele centro financeiro internacional. No Brasil, tam-bém é praxe que os bancos atendam aos pedidos de informação e às diretrizes dos órgãos regulador e fiscalizador, mesmo que tais exigências não estejam explicitamente prescritas em lei. Isso dá ao BCB mais latitude do que teria, por exemplo, o FED.

Mesmo após se debelar a hiperinflação, a economia brasileira continuou muito vulnerável a choques externos. Imediatamente após o plano Real (julho de 1994), as altas taxas reais de juros, aliadas às reduzidas taxas de juros internacionais, atraíram capitais especulativos externos. Os influxos de capital fizeram com que a nova moeda, o real, que tinha a paridade com o dólar como teto, fosse ainda mais valorizada, passando a valer mais do que um dólar (vide gráfico 3). Ainda que a paridade nominal entre duas moedas seja irrelevante para mo-delos econômicos, a verdade é que “o real valer mais do que o dólar”, uma forma de ilusão monetária, contribuiu para fortalecer a confiança inicial da população no plano.

Mas, em pouco tempo, o caráter fugaz do fluxo de capitais especulativos se faria notar. No final de 1994, o México desvalorizou o peso, deflagrando processo de contágio e fuga de capitais, que atingiria duramente o Brasil no início de 1995. Após uma pequena crise

34 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

cambial, optou-se por modificar o regime cambial. A partir daí, iniciou-se um processo de depreciação nominal gradativa do real, um crawling peg. O interregno até a eclosão da crise asiática, em meados de 1997, fez parecer que a política cambial poderia ser mais duradou-ra. Entretanto, a crise asiática (1997), a crise Russa e a falência do lTCM (1998), ocasiões em que o real foi atacado, acabaram levando à mudança no regime cambial. O crawling peg foi abandonado, mesmo após o país ter obtido empréstimo do FMI, no final de 1998. A partir do programa com o FMI, o Brasil passou a cumprir metas quanto ao superávit pri-mário das contas do governo23, prática mantida e aprofundada até hoje, apesar de o Brasil ser hoje credor, ao invés de devedor, do FMI. Após uma substancial desvalorização no início de 1999, o real passou a flutuar. Foi instituído o regime de metas para inflação, o qual vem se mostrando bem sucedido em manter a inflação sob controle, mesmo sob as expressivas depreciações cambiais que ocorreram de 1999 a 2002. Como observado, o desempenho fiscal também melhorou significativamente a partir do acordo com o FMI em 1998. Desde 1999, a política macroeconômica brasileira vem sendo suportada pelo tripé constituído por: metas para inflação, câmbio flutuante e metas para o superávit primário.

Mesmo sob câmbio flutuante, o real foi objeto de extrema volatilidade, consubstanciada em episódios de forte depreciação cambial, em 2001 e, sobretudo, em 2002. Em 2002, a conju-gação de grave crise externa, que afetou os mercados emergentes, com a desconfiança dos investidores quanto ao programa econômico do futuro governo lula, levou à extrema de-preciação cambial, com a taxa de câmbio beirando a cotação de R$4/dólar (vide gráfico 3). Apenas depois de ampla campanha de convencimento dos investidores – sobretudo após a “Carta aos brasileiros”, arquitetada pelo futuro Ministro da Fazenda de lula, Antonio Palocci, e do périplo internacional do então presidente do BCB, Armínio Fraga – restaurou--se a confiança, pavimentando a rota da bem-sucedida transição econômica.

A extremamente bem-sucedida história da economia brasileira desde 2003 contrasta profundamente com as crises observadas nos anos anteriores. O sucesso econômico do Brasil pós 2003 deriva da continuidade das políticas macroeconômicas consistentes que se seguiram ao Plano Real, aliada à nova realidade econômica mundial, na qual as economias asiáticas, sobretudo a China, passaram a representar o elemento mais dinâmico. A comple-mentaridade entre as economias brasileira e chinesa, com o Brasil provendo as commodities

23. O superávit primário é definido como a diferença entre as receitas fiscais menos as despesas, exceto juros.

35AMBIENTE MACROECONôMICO E SISTEMA FINANCEIRO NO BRASIl

agrícolas e minerais, permitiu que o Brasil surfasse com muito sucesso na onda de cresci-

mento mundial até o último trimestre de 2008, bem como pudesse suportar a crise interna-

cional, agravada a partir de então.

Conjuntamente à boa performance no comércio exterior, as autoridades econômicas

empreenderam uma bem-sucedida política de diminuição da dívida externa e aumento das

reservas cambiais. O gráfico 4 mostra como o país logrou acumular reservas desde a crise

de 2002, atingindo patamares extremamente elevados. Tal acumulação de reservas foi outro

fator fundamental para que a economia brasileira pudesse suportar bem a crise de 2008.

Além da acumulação de reservas cambiais, a dívida externa foi significativamente diminuída,

bem como foi eliminada a dívida doméstica indexada ao dólar. O resultado foi que a razão

dívida/PIB, termômetro da solvência do governo, passou a diminuir independentemente do

comportamento da taxa de câmbio, em forte contraste com o que ocorria até 2002. Isto

conferiu maior segurança às contas públicas, reduzindo significativamente o risco percebido

Gráfico 3 - Câmbio Nominal BRL/USD

0

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Câmbio Nominal - BRL/USDFonte: Banco Central do Brasil.

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4,5

36 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

da economia brasileira. Hoje, ao contrário do passado, fugas de capitais, como a que ocor-reu durante a crise de 2008, não mais ameaçam a solvência fiscal.

O notável desempenho da balança comercial brasileira, ancorado nos significativos ganhos dos termos de troca24, permitiu que a economia brasileira pudesse, a partir de 2003, modi-ficar seu padrão de crescimento. Em vez de ter o crescimento incipiente estrangulado com frequência por conta de crises externas, como ocorreu no período 1994-2002, o consumo e o investimento puderam crescer de forma pujante por muitos anos. Mesmo a crise de 2008 representou apenas breve interregno no crescimento econômico, retomado com força em 2010. Ou seja, tendo a vulnerabilidade externa deixado de ser um fator limitante, o grande mercado interno brasileiro pôde fazer seu papel de impulsionar o crescimento econômico.

24. Os termos de troca medem a evolução dos preços das nossas exportações em relação aos preços de nossas importações.

Gráfico 4 - Reservas Internacionais - Conceito Liquidez TotalUS$ milhões

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37AMBIENTE MACROECONôMICO E SISTEMA FINANCEIRO NO BRASIl

Ainda que a economia brasileira continue dependente da economia internacional, no-tadamente do crescimento das economias asiáticas, sobretudo da economia chinesa, as perspectivas são muito alvissareiras. Além das pujantes exportações, a demanda interna vem crescendo fortemente, e o investimento, ainda que insuficiente para garantir taxas mais elevadas de crescimento do PIB, vem apresentando bom resultado. A descoberta de significativas reservas de petróleo da camada pré-sal contribuiu para melhorar ainda mais o cenário já favorável. Sob crescimento mundial, o Brasil está fadado a se sair muito bem. Mesmo em caso de nova recaída das economias desenvolvidas, o temido cenário de double dip, a economia brasileira não deve sofrer tanto quanto no passado.

Passamos agora a descrever com mais detalhes o sistema financeiro brasileiro, enfatizando sua regulação e supervisão, bem como os mecanismos de negociação, liquidação e custódia que tiveram importante papel na resiliência demonstrada durante a crise.

38 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

Na Introdução, argumentamos que o Brasil não teve que enfrentar diversos dos aspectos mais nocivos da crise que estiveram presentes em diversos países. Quais aspectos seriam esses? Quais elementos da regulação brasileira foram responsáveis pela blindagem que amenizou bastante o impacto da crise financeira internacional? A seguir, listamos os principais itens que contribuíram para que o setor financeiro nacional passasse bem pela crise internacional.

5.1 Maior Capitalização dos Bancos Brasileiros

A capitalização dos bancos brasileiros, maior quando comparada à dos EUA, tam-bém contribuiu significativamente para a maior resiliência do sistema financeiro no Brasil. Historicamente, os principais índices financeiros do Brasil (juros, câmbio e bolsa) apresentaram elevada volatilidade, em parte como consequência das crises de financiamento externo do período posterior ao Plano Real, o que resultou em menor alavancagem das instituições financeiras brasileiras. As próprias autoridades reguladoras optaram por exigir mais capital dos bancos. No Brasil, o capital de um banco deve ser de no mínimo 11% dos seus ativos ponderados pelo risco, enquanto a exigência mínima, sugerida pelo Acordo de Basileia I, é de 8%. A capitalização média dos bancos brasileiros é de aproximadamente 19%, bastante acima do mínimo exigido, sendo que o capital regulatório nível I é de quase 15%.

Na Tabela 3, fica evidente que o sistema financeiro brasileiro é um dos mais capi-talizados entre membros do G-20. Na prática, os bancos brasileiros sistemicamente importantes são muito capitalizados, sempre apresentam margens muito superiores aos requisitos de Basileia, baixa alavancagem e não possuem exposição líquida ex-pressiva nos mercados de derivativos nem de ativos imobiliários. Além de os bancos brasileiros deterem mais capital, a participação do capital de nível 1 é maior.

Com o acordo de Basileia II, aumentou a exigência de capital para dar conta de riscos que até então estavam sendo desconsiderados, como o risco operacional. Além disso, propôs-se medir de forma mais sensível o risco individual de cada instituição em função dos mecanis-

5. Brasil: Estabilidade Econômica e Solidez do Sistema Financeiro Nacional

39BRASIl: ESTABIlIDADE ECONôMICA E SOlIDEz DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAl

mos de gerenciamento de risco existentes. Não obstante estarem em processo de implanta-ção no Brasil25, as regras de Basileia II têm influenciado a normatização recente, que já incor-pora alguns fatores de risco que excedem o previsto em Basileia I, como os princípios de risco operacional e os mecanismos de gerenciamento de riscos para fins de alocação de capital.

Tabela 3: Comparação entre as Razões de Basileia de Vários Países

Países G20Data do Último Dado Disponível

Capital Regulatório sobre Ativos Ponderado pelo Risco

Capital Regulatório sobre Ativos Ponderado pelo Risco (Nível 1)

Austrália Q4 2009 11,3 8,4

Brasil Q4 2009 18,8 14,9

Canadá Q4 2008 12,2 9,8

França A 2008 8,3

Alemanha Q4 2009 14,8 10,8

Índia A 2008 13 9,1

Indonésia A 2008 17,5 15,4

Itália A 2007 10,1 7,1

República da Coréia Q3 2009 14,2 10,8

México Q4 2008 15,2 13,5

Federação Russa SA 2009.1 18,5 13,1

África do Sul A 2008 13 10,2

Turquia Q4 2009 20,6 18,6

Reino Unido SA 2009.1 13,3 10,2

Estados Unidos Q4 2009 13,9 11,5Fonte: FMI.

No Brasil, todas as instituições autorizadas a funcionar pelo BCB devem atender os requi-sitos de Basileia I, e não somente as instituições bancárias26. Da mesma forma, todas as instituições financeiras estão sujeitas à regulação do BCB. Como consequência, não seria possível haver a “arbitragem regulatória” que permitiu aos investments banks dos EUA pas-

25. Para o cronograma de implantação das regras de Basileia II, favor consultar o site do BCB: www.bcb.gov.br, Comunicado 16.137.

26. Resolução CMN 2.099/94.

40 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

sarem ao largo da regulação e supervisão do FED. Até mesmo os conglomerados financeiros são contemplados pela fiscalização do BCB27, apesar de não necessitarem de autorização deste para funcionar.

5.2 Existência de Grandes Acionistas: Monitoramento versus Contratos de Incentivos

Diversos bancos brasileiros são caracterizados pela existência de um grande acionista que exerce o controle, ao contrário do que ocorre nos EUA, onde o controle pulverizado é mais comum. Qual é o impacto disso? Um agente com participação expressiva numa instituição tem maiores incentivos a monitorar os seus executivos e garantir que suas decisões estejam alinhadas com os interesses dos acionistas. Como o monitoramento é um bem público, uma estrutura de capital com inúmeros pequenos acionistas tende a ser caracterizada por monitoramento insuficiente, decorrente do problema de free rider28. Nos casos em que uma empresa não possui um grande acionista, o alinhamento dos interesses dos execu-tivos e acionistas acaba sendo realizado via contratos baseados em desempenho, em vez do monitoramento. A crise financeira de 2007 e 2008 evidenciou os efeitos negativos que contratos de incentivos e regras de gratificação podem ter sobre o futuro de uma instituição e a estabilidade financeira de um país.

5.3 Melhor Monitoramento (Fiscalização) dos Bancos por parte do Órgão Regulador

Uma das principais atribuições do órgão regulador é o monitoramento (fiscalização) das instituições financeiras. As operações de crédito constituem uma das principais fontes de riscos para os bancos e, portanto, deveriam ser um dos principais focos de monitoramento do órgão regulador. A participação do crédito na economia brasileira ainda é baixa, como

27. A Resolução CMN 2.723/00 determina que os conglomerados apresentem balanços consolidados contendo informações sobre todas as posições e operações financeiras que contemplem suas atividades interna e externa.

28. Um free rider (caroneiro) é um agente que se aproveita do fato de um bem ser público para consumi-lo em um montante maior do que seria considerado justo de acordo com algum critério de equidade.

41BRASIl: ESTABIlIDADE ECONôMICA E SOlIDEz DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAl

proporção do PIB, embora venha crescendo bastante nos últimos anos. O gráfico 5 mostra a evolução do total de crédito (dividido entre crédito ao setor público e crédito ao setor privado). Fica muito clara a expansão do crédito após o período da crise de 2002.

Para obter informações sobre o estado do crédito na economia brasileira, o BCB se vale do Sistema de Informações de Crédito. O Sistema de Informações de Crédito do Banco Central (SCR) é um instrumento utilizado pela supervisão bancária para acompanhar as carteiras de crédito das instituições financeiras. A iniciativa foi adotada em 1997, ainda sob a forma da Central do Risco de Crédito, evoluindo até tomar a forma atual. O SCR, baseado em infor-mações positivas, é o maior cadastro contendo dados sobre o comportamento dos devedo-res junto ao sistema financeiro. Os dados são compartilhados pelas instituições participan-tes, contribuindo para diminuir a inadimplência e melhorar a gestão do risco de crédito.

O SCR é alimentado mensalmente pelas instituições financeiras, mediante coleta de infor-mações sobre as operações concedidas. No banco de dados do SCR são armazenadas as

Gráfico 5 - Operações de Crédito do Sistema Financeiro - % do PIB

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Fonte: Banco Central do Brasil.

42 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

operações dos clientes com responsabilidade total, igual ou superior a R$ 5 mil, a vencer e vencidas, assim como os valores referentes às fianças e aos avais prestados pelas institui-ções financeiras a seus clientes. Com base nessas informações, a supervisão bancária pode identificar com maior precisão as instituições financeiras com problemas de crédito e que requeiram um monitoramento especial, atingindo assim sua principal meta. Tal sistema de informações é bastante útil em crises, não sendo bem substituído pelos bureaux positivos de crédito existentes em outros países, como os EUA. Os bureaux positivos de crédito são fundamentais para a análise do risco do tomador pela instituição financeira, mas, por serem focados no tomador do empréstimo, não proveem ao regulador visão sobre a saúde finan-ceira da instituição financeira emprestadora, que é a fonte do risco sistêmico.

Como já mencionado anteriormente, o BCB conduz com regularidade, em todos os bancos, inspeções gerais consolidadas (IGCs). Tais inspeções permitem ao BCB identificar tempesti-vamente vulnerabilidades ou mesmo fraudes29.

Requerem-se de todos os bancos tanto auditorias internas quanto externas, sendo vedada a estas prestarem serviços (consultoria, p.ex.) que configurem conflitos de interesse. O BCB também exige30 controles internos consistentes por parte dos bancos, que devem ter comitês de auditorias, compostos tanto por membros da administração, quanto por membros independentes. A tais comitês cabe verificar a obediência às normas, checar a auditoria interna, bem como zelar pela independência e qualificação técnica da auditoria externa. Os comitês de auditoria não são exigidos de alguns bancos pequenos e médios. Também o caso recente do Banco Panamericano mostrou que nem sempre os comitês de auditoria cumprem a devida função. Não obstante, tais comitês cumprem, via de regra, importante função na identificação de problemas.

Ao contrário do que ocorre nos EUA, avaliações de agências de rating não impactam o requerimento mínino de capital para exposição a riscos de crédito. A recente crise deixou

29. Quando este trabalho já se encontrava em sua fase final, ocorreu o caso do Banco Panamericano. Trata-se de um banco médio, com patrimônio líquido de R$ 1,59 bilhões e ativos de R$ 10,22 bilhões (junho de 2010). O BCB identificou inconsistên-cias contábeis, com indícios de fraudes, que levaram a perdas preliminarmente calculadas em cerca de R$ 2,5 bilhões. A liquidação do banco foi inicialmente evitada via recurso a empréstimo do Fundo Garantidor de Créditos (FGC), garantida pelos bens do controlador do banco, o apresentador de TV Silvio Santos (Senor Abravanel). Posteriormente, ao se descobrirem novos prejuízos, que elevaram o rombo total a R$ 4 bilhões, foi feita a transferência do controle para o Banco BTG Pactual, com ônus quase integral para o FGC. Entre outras lições, o evento demonstrou a necessidade de aperfeiçoamento contínuo da supervisão bancária pelo Banco Central, com vistas a acompanhar a sofisticação das operações financeiras.

30. Resolução nº 3.198/2004.

43BRASIl: ESTABIlIDADE ECONôMICA E SOlIDEz DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAl

evidente que tal prática gera conflitos de interesses entre as partes envolvidas, uma vez que os bancos de investimentos são responsáveis por grande parte das receitas das agências. A situação ainda foi agravada pelo fato de que o mercado de classificação de risco nos EUA é muito concentrado, com duas agências dominando cerca de 80% do mercado.

Alguns instrumentos só agora implantados nos EUA, como a defesa contra o fat finger, já são, há muito, aqui utilizados. Quando há uma ordem em valor muito elevado, cessa a negociação no pregão e se conduz um leilão. Tal procedimento previne eventuais tentativas de manipulação de preços, bem como evita que erros possam produzir volatilidade exces-siva. Convém, uma vez mais, insistir que não se trata de clarividência, mas, sim, de termos aprendido com a convivência de manipuladores em um mercado de baixa liquidez.

5.4 Infraestrutura de Negociação e Liquidação Financeira31

5.4.1 O Sistema de Pagamentos Brasileiro

A necessidade da reforma do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) tornou-se evidente após a crise de desvalorização do real em 1999 que chegou a ameaçar o sistema financeiro nacional. A referida reforma deu origem a uma infraestrutura de negociação e liquidação moderna, eficiente e segura. O sistema de liquidação do SPB, conforme recomendado pelo BIS, é pelo valor bruto em tempo real.

Com a implementação do novo SPB, a ocorrência de saldos negativos na conta Reservas Bancárias em qualquer momento do dia deixou de ser aceita pelo BCB. Na arquitetura de nego-ciação e liquidação então implementada, o Sistema de Transferência de Reservas (STR) desem-penha um papel central ao efetuar transferência de fundos entre contas de reservas bancárias tituladas por instituições financeiras, contas de liquidação de câmaras e prestadores de serviços de compensação e liquidação e a conta única do Tesouro Nacional, todas junto ao BCB.

As operações de renda fixa, renda variável e câmbio passaram a ser liquidadas em diferen-

31. Esta seção baseia-se fortemente em BM&FBovespa, 2010.

44 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

tes câmaras privadas, que inexistiam até então. Dessa forma, a contaminação do sistema de pagamentos por um choque em uma determinada câmara torna-se muito menos provável. As câmaras são as seguintes: clearing de derivativos da BM&FBovespa, da Central Brasileira de liquidação e Custódia (CBlC), dos sistemas da Balcão Organizado de Ativos e Derivativos (Cetip) e da Câmara de Câmbio da BM&FBovespa. No que se refere a pagamen-tos, o serviço de cheques e outros papéis é realizado através da Câmara de Compensação (Compe) e da Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP).

O STR é utilizado para liquidar as operações realizadas nas câmaras consideradas sistemica-mente importantes. Para eliminar a concessão do crédito implícito anteriormente existente, da ordem de R$6 bilhões, passou-se a permitir o redesconto intradia de títulos públicos federais custodiados no Selic. O redesconto consiste em operação de compra e venda, com compromisso de revenda e recompra, respectivamente, entre o Banco Central e a instituição financeira detentora de conta Reservas Bancárias. O Banco Central exige deságio sobre o preço de mercado desses títulos, protegendo-se assim contra o risco de variação de preço dos títulos ao longo do dia.

No caso dos mercados acionário e de renda fixa corporativa, as atividades de compensação e liquidação de operações realizadas na BM&FBovespa dão-se via empresa independen-te, a Companhia Brasileira de liquidação e Custódia (CBlC), que atua como câmara lDl para este mercado no âmbito do SPB. Por sua vez, a Câmara de Derivativos foi criada pela BM&FBovespa para desempenhar similar atividade em derivativos financeiros e de merca-dorias. A compensação e liquidação de títulos públicos e de câmbio é realizada por meio de duas estruturas vinculadas à BM&FBovespa: a Câmara de Ativos e a Câmara de Câmbio. Ao administrar quatro câmaras, a BM&FBovespa constitui a única contraparte central do mer-cado brasileiro de capitais. Os bancos brasileiros criaram, em 2001, a Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP) para realizar a compensação e liquidação de transferências financeiras interbancárias.

A estrutura criada, tanto do SPB como das Câmaras, está amparada por uma base legal que provê a definição dos conceitos de compensação multilateral e novação de contratos por substituição. Além disso, é reconhecida a necessidade de as câmaras sistemicamente importantes atuarem como contraparte central, bem como a finali-dade e irrevogabilidade das liquidações ocorridas tanto nos sistemas lBTR quanto

45BRASIl: ESTABIlIDADE ECONôMICA E SOlIDEz DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAl

nos sistemas lDl. Por último, foi outorgada às câmaras prioridade na execução das garantias depositadas, de forma a assegurar continuidade do processo de liquidação em caso de insolvência de um participante.

Com a criação do SPB, os riscos de crédito e liquidez, que ficavam com a autoridade monetária até a compensação, passaram para as instituições financeiras. O sistema de liquidação por valores líquidos possibilitava que grandes saques a descoberto na conta de reservas bancárias só fossem descobertos no final do dia, como no famoso exemplo da falência do Herstatt Bank, em 197432.

Quando da implementação do SPB, foi introduzido o conceito de câmara de com-pensação e liquidação sistemicamente importante. Um princípio fundamental da mitigação do risco sistêmico é que tais câmaras liquidem suas operações em moeda reserva e, para tanto, sejam participantes diretos do STR. Isso permite que os respec-tivos pagamentos que apresentem risco de crédito de contraparte e tenham caráter irrevogável e final. Portanto, além dos bancos, também acessam o STR as câmaras, os prestadores de serviços de compensação e liquidação e instituições financeiras não bancárias detentores de conta de liquidação, o que provê muito maior segurança aos ativos e derivativos aí negociados.

5.4.2 liquidação em Sistemas Autorizados

No Brasil, a liquidação financeira de operações de renda fixa, bolsa, câmbio e derivativos, ou se dá por meio de contraparte central (BM&FBovespa) ou requer o registro das opera-ções em sistemas autorizados, como a Cetip, o que provê muita transparência e dificulta, sobremaneira, a acumulação de bolsões de risco sistêmico fora das vistas dos reguladores. A crise recente mostrou que tal sistema logrou fornecer às autoridades econômicas elementos importantes para calibrar as medidas durante a crise.

32. Em 1974, o Herstatt Bank recebeu vários pagamentos referentes às operações de câmbio que havia realizado, sem realizar os pagamentos da outra perna, dando o default ao final do dia, com efeitos desestabilizadores sobre o sistema financeiro mundial. Dessa crise nasceu o Comitê de Supervisão Bancária da Basileia, que, 15 anos depois, deu origem aos requisitos de adequação de capital para o sistema bancário (Jorion, 2001, 17). A denominação Herstatt Risk também tornou-se sinônimo de risco de liquidação.

46 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

5.4.3 Mercado de Balcão Organizado

O mercado de balcão nos EUA tem características bem mais frouxas do que o mercado de balcão organizado existente no Brasil. Nos EUA, havia contratos bilaterais sem nenhum tipo de regulação33. Tal fato permitiu que bolsões de risco sistêmico fossem criados (vide o caso da seguradora AIG) sem conhecimento das autoridades regulatórias. Já no Brasil, as operações são todas registradas em sistema eletrônico, sendo os registros reconhecidos e exigidos pelos Reguladores. A BM&FBovespa, como se viu, exige depósitos de margens de garantia e atua como contraparte central, assim provendo elevado grau de segurança às transações financeiras. Também no caso da Cetip, ter acesso a informações é fundamental, como o demonstra a atuação do BCB durante a crise, analisada no próximo capítulo.

A regulação dos contratos de balcão é um processo contínuo. Após o início da crise, o BCB pro-duziu normas34 que tornam obrigatório o registro das operações de proteção (hedge) realizadas no mercado interno, com instituições financeiras, e no mercado externo, através de bolsas. Com essas duas medidas pontuais, procura-se eliminar as “operações de gaveta” que encobrem especulações e exposições elevadas a risco por parte de empresas. As medidas não limitam o escopo de ação das empresas, mas promovem a transparência das operações realizadas. Por sua vez, a CVM é responsável pela publicação da Instrução 475, que rege os procedimentos de apresentação de informações sobre instrumentos financeiros contratados por empresas em nota explicativa específica nos balanços. Além disso, a Instrução torna necessária a apresentação de um quadro específico com análise de sensibilidade às principais fontes de riscos (taxa de câm-bio, p.ex.) como consequência da contratação de derivativos por parte das empresas.

Para melhor lidar com o risco de contratos de derivativos entre bancos e empresas, a Febraban, juntamente com a Cetip e a BM&FBovespa, criou a Central de Exposição a Derivativos (CED). A CED é uma nova empresa sem fins lucrativos controlada pela Febraban. Ela unifica, em um mesmo sistema, as posições em derivativos das empresas registradas na Cetip e na BM&FBovespa. A CED permitirá que os bancos saibam a exposição consolidada de cada um de seus clientes com derivativos antes de fechar nova transação. Com base em

33. No Brasil, não há negociação de CDS. Se houvesse, tais instrumentos derivativos deveriam ser registrados na Cetip ou na BM&FBovespa.

34. Circular 3.474 e as Resoluções 3.824 e 3.833.

47BRASIl: ESTABIlIDADE ECONôMICA E SOlIDEz DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAl

tal informação, será possível evitar casos como o da Aracruz, que sofreu grandes prejuízos com derivativos cambiais35. A CED informará aos bancos, no início do dia, a exposição total da empresa no fechamento do mercado do dia anterior36.

5.4.4 Regulação e Supervisão da Indústria de Fundos

A transparência dos fundos de investimentos é extremamente elevada no Brasil. Todas as operações realizadas por eles, inclusive as operações de balcão organizado, têm que ser registradas em um sistema centralizado. O regulador tem, portanto, completa visibilidade sobre as operações financeiras realizadas no país. Como se verá, hoje, a maioria das opera-ções financeiras realizadas com o exterior também é informada aos reguladores.

Os fundos de investimento brasileiros têm que fornecer informações periódicas à CVM ou diretamente ao público. Uma vez por mês, todos os fundos devem informar à CVM a com-posição das respectivas carteiras de investimentos, inclusive as operações com derivativos. Diariamente, devem ser divulgados o patrimônio total do fundo, o valor da cota, bem como as captações e resgates. Tal requisito, também uma herança do período hiperinflacionário, quando as cotas podiam facilmente oscilar vários pontos percentuais em um só dia, acaba sendo um importante elemento para infundir confiança nos fundos brasileiros.

5.4.5 Autorregulação

Outro elemento de solidez da indústria de fundos no Brasil é a autorregulação37 realizada pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais – ANBIMA. A

35. Os prejuízos da Aracruz foram conhecidos no final de 2008. A empresa tinha fechado um total de US$ 10 bilhões em contratos futuros e opções vinculados ao câmbio com 13 bancos sem que um banco soubesse da posição do outro. Posteriormente, a Aracruz veio a se unir à VCP, constituindo nova empresa, denominada Fibria.

36. lucchesi, 2010.

37. Num primeiro momento, a autorregulação pode parecer contrária aos interesses dos agentes regulados; no entanto, há motivos econômicos que a justificam: na presença de contingências não contratáveis, ganhos de troca podem não se realizar se uma das partes envolvidas na negociação antecipar a expropriação ex-post de sua parcela dos ganhos. A autorregulação serve como um compromisso feito pelos agentes de respeitar acordos e contratos, mesmo que uma corte seja incapaz de fazê-lo. A penalidade pelo não cumprimento de um contrato muitas vezes envolve uma perda reputacional que, ao ocorrer, invalida a realização de ganhos de trocas entre as partes.

48 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

ANBIMA funciona como um selo de qualidade para as instituições que dela fazem parte ou que tenham aderido ao seu código de autorregulação, exigindo que sejam prestadas infor-mações similares às enviadas à CVM. Também é exigido o cálculo da cota diária, bem como a marcação a mercado dos preços dos ativos e derivativos financeiros que compõem a carteira dos fundos. A ANBIMA divulga diariamente os preços dos títulos públicos em mercado e de uma amostra significativa de debêntures. Já o preço dos ativos de renda variável, ativos de renda fixa corporativa, mercadorias e derivativos são divulgados pela BM&FBovespa.

Outra vantagem adicional é a estrutura tripartite segregada dos fundos brasileiros, no que tange às atividades de gestão, administração e custódia. Para que uma instituição exerça cada uma dessas funções, precisa obter habilitação e autorização/credenciamento dos regu-ladores: gestão e administração pela CVM e custódia pelo BCB e CVM.

A fraude conduzida por Bernard Madoff dificilmente seria executada no Brasil. Para executá-la, Madoff concentrou em suas mãos atividades de gestão, administração e custódia. A sociedade de investimentos que Madoff dirigia não era submetida a regu-lação e supervisão adequadas. Nos EUA, os hedge funds não estavam regulados, em contraste com o caso brasileiro, no qual a CVM regula todos os fundos. Exigências da regulação38 e da autorregulação, por sua vez, também dificultariam fraudar os valores das cotas, que são divulgadas diariamente, ao contrário da prática internacio-nal. Finalmente, o requisito de registro dos ativos não permitiria que se inventassem ativos inexistentes.

5.4.6 Baixa expressividade de veículos não bancários (SIVs e conduits)

Ao contrário do que ocorreu nos EUA, há reduzida participação de veículos não bancários no gerenciamento de riscos financeiros. Isso ocorre uma vez que, no Brasil, um conglomera-do passa a ser sujeito à regulação e supervisão do BCB, desde que possua uma instituição financeira. Tal abrangência da regulação e da supervisão dificulta sobremaneira operações que visem a esconder posições arriscadas em empresas não reguladas, como nos casos dos SIVs e conduits nos EUA.

38. A ICVM 409 exige a divulgação diária da cota e do Pl do fundo.

49BRASIl: ESTABIlIDADE ECONôMICA E SOlIDEz DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAl

5.5 Incentivos Perversos para Aumento de Riscos e Responsabilidade Ilimitada – Lei 6.024/7439

A responsabilidade limitada dos acionistas e executivos tem importante efeito sobre os seus incen-tivos. Na presença de responsabilidade limitada, surge uma assimetria nos retornos dos acionistas. Por um lado, eles se apropriam de todo o lucro marginal para ganhos suficientemente elevados. Entretanto, suas perdas estão limitadas ao valor de seu capital. Esse fato cria incentivos para que os acionistas escolham ativos mais arriscados do que seria socialmente ótimo. Essas distorções crescem à medida que a alavancagem do banco aumenta, uma vez que os potenciais benefícios aumentam quando comparados aos possíveis prejuízos.

Quem é o maior prejudicado pela existência desses incentivos perversos? No caso de falência, os credores são certamente lesados, especialmente os quirografários40. Para minimizar esse impacto, os credores dos bancos americanos condicionaram os empréstimos ao encurtamento cada vez maior dos prazos. Qualquer dúvida quanto à saúde de uma instituição financeira seria acompanhada por uma recusa por parte dos credores em dar continuidade ao seu financiamento. Portanto, o financia-mento de curto prazo surgiu como a solução encontrada pelos agentes de mercado para corrigir um problema de incentivos.

Os reguladores estavam cientes que tais incentivos perversos poderiam gerar problemas de liquidez. No entanto, não se preocuparam tanto com isso, uma vez que acreditaram que o comportamento dos credores era justamente uma fonte de disciplina que combateria os incentivos dos bancos em correrem riscos maiores. Um dos maiores defensores da disciplina de mercado em detrimento da regulação formal foi Alan Greenspan, que afirmou: “regulação é inerentemente conservadora. A regulação mantém o status quo e os interesses especiais daqueles que dela se beneficiam [...]. Na medida em que nos movemos para um novo século, as forças estabilizadoras do mercado de regu-lação privado devem gradualmente deslocar muitas estruturas governamentais que estão tornando--se cada vez mais inefetivas”41.

39. Proposta de alteração e de revogação da lei nº 6.024 foi objeto do Edital de Audiência Pública no 34. A proposta ainda prevê responsabilidade ilimitada para acionistas conforme Art. 32 – As pessoas naturais ou jurídicas que mantenham vínculo de controle, direto ou indireto, com a instituição sob intervenção ou em regime de administração especial responderão solidariamente com os administradores pelas obrigações por esta assumidas, independente da demonstração de culpa ou dolo.

40. Credores quirografários são aqueles cujos empréstimos não possuem qualquer tipo de garantia.

41. GREENSPAN, 1997.

50 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

Entretanto, a solução de mercado foi responsável pelo surgimento de uma fragilidade financeira de-corrente do descasamento de prazos entre ativos e passivos das instituições financeiras. A disciplina de mercado é um dos pilares da governança corporativa. No entanto, apresenta suas limitações. No caso do sistema bancário, a regulação e disciplina de mercado devem ser encaradas como ativida-des complementares e não necessariamente substitutas.

Por que as distorções descritas acima não estariam presentes no caso do sistema financeiro brasilei-ro, pelo menos em grau tão elevado que tenham sido capazes de criar uma grave fragilidade?

Uma das razões é a lei 6.024/74, que remonta a 1946, e trata da responsabilidade de diretores de bancos. A lei estabelece um caráter subjetivo para a responsabilidade dos diretores, significando que, em caso de falência, os diretores podem ser responsabilizados e punidos, caso sua culpa seja determinada. O ônus da prova é inclusive invertido, cabendo aos diretores provarem que agiram com o devido zelo. A referida lei reduz de maneira substancial as vantagens de acionistas e executi-vos em correrem riscos elevados, diminuindo a assimetria existente no caso dos EUA. Por exemplo, o CEO do investment bank Bear Stearns, James Cayne, jogava bridge quando seu banco faliu. Apesar de pesadas perdas patrimoniais, seu patrimônio pessoal ainda montava a dezenas de milhões de dólares após o colapso do Bear Stearns. No Brasil, a lei teria permitido usar o patrimônio pessoal para diminuir o prejuízo causado42.

5.6 Mercado de Capitais no Brasil

O mercado de capitais brasileiro foi, por longo período, muito pouco relevante para o financiamento do setor real da economia brasileira43. No início dos anos de 1970, quando a economia crescia aceleradamente, ocorreu grave crise nas bolsas de valores, derivada de elevada especulação alimentada por falta de informação. Havia, na época, excesso de recursos disponíveis (incentivos fiscais) em relação aos poucos

42. A eficácia da lei 6.024, contudo, tem sido colocada em dúvida, devido a alguns casos recentes. No caso da falência do Banco Santos, liquidado em 2004 pelo BCB, o controlador continuou a dispor de seus bens, inclusive uma enorme mansão em SP, por vários anos. A dificuldade de se recuperar os bens parece estar ligada ao fato de que os detentores formais dos bens eram empresas não financeiras constituídas em paraísos fiscais, sobre as quais o poder de o BCB intervir não é indiscutível. Também no caso do Banco Panamericano, anteriormente citado, que gerou prejuízos da ordem de R$4 bilhões, o controlador teria preservado integralmente seu patrimônio pessoal, com o FGC assumindo as perdas.

43. Na década de 1950, o mais pujante mercado acionário da América do Sul situava-se em Buenos Aires, em claro contraste com a situação atual.

51BRASIl: ESTABIlIDADE ECONôMICA E SOlIDEz DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAl

ativos ofertados. Os intermediários, administradores e controladores não tinham compromisso nem responsabilidade, sendo os arcabouços de supervisão e fiscaliza-ção (então a cargo do BCB) ineficazes e pouco focados44.

A crise afetou pesadamente o mercado de capitais, embora não tenha afetado o crescimen-to da economia, mostrando a pouca conexão do mercado de capitais com o setor real da economia brasileira de então. A solução para a crise foi semelhante ao que se fez nos EUA, durante a grande depressão, com a criação da SEC: criou-se um órgão regulador autôno-mo – a Comissão de Valores Mobiliários, CVM – com poderes adequados de normatização, fiscalização e sanção. Simultaneamente, buscou-se modernizar a lei quanto aos deveres e responsabilidades dos intermediários e emissores45.

Apesar de todos os esforços, essa “segunda onda” do mercado de capitais tampouco se mostrou bem-sucedida em construir o suporte adequado ao financiamento das empresas. A existência de ações preferenciais, sem direito a voto, combinada com o incentivo fiscal, mantido de iniciativas anteriores, acabou gerando desinteresse pelo acompanhamento dos investimentos. Em muitas empresas, a maioria das ações não tinha direito a voto, o que permitia a uma minoria controlar a administração, geran-do, frequentemente, ineficiências. Vários casos de expropriação (tunnelling) das “mi-norias majoritárias” pela “minoria mandante” não foram adequadamente reprimidos. O ambiente hiperinflacionário também impediu o desenvolvimento da poupança de longo prazo via mercado de capitais46.

A partir da estabilização inflacionária proporcionada pelo Plano Real, o mercado acionário volta a se tornar interessante como alocação da poupança de longo prazo, conforme pode ser evidenciado no gráfico 6 abaixo. O volume médio diário negociado na Bovespa passa de R$ 247 milhões em 1994 para R$ 829 milhões em 1997. Entre 1997 e 2002, apresenta declínio, atingindo o valor de R$ 558 milhões, para depois aumentar em quase dez vezes até 2009, chegando a uma média de R$ 5,3 bilhões negociados. Nesse período, começam a surgir os primeiros gestores de investimento

44. TRINDADE, 2010.

45. TRINDADE, 2010.

46. TRINDADE, 2010.

52 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

independentes, na busca de oportunidades inexploradas e praticando o ativismo socie-tário. Também é desse período que data o início do debate sobre governança corpo-rativa no Brasil. A postura da CVM melhora, tornando-se mais ativa em operações so-cietárias e de alienação de controle. Ocorre uma reforma legal aumentando bastante as penalidades que a CVM pode impor, e são permitidos os Termos de Compromisso47. Por outro lado, a CVM perde para o BCB a capacidade de punir os auditores de ban-cos que sejam companhias abertas, bem como se revoga a obrigação de realizar-se Oferta Pública de Ações (OPA) em caso de alienação de controle. Esta última modifica-ção objetivava facilitar o processo de privatização de várias companhias estatais com ações em bolsa, mas com o governo como acionista majoritário48.

47. O Termo de Compromisso é acordo feito entre as partes, por meio do qual o investigado ou acusado, sem admitir culpabilida-de, concorda em cessar a prática das atividades consideradas ilícitas pela CVM e esta, por sua vez, concorda com o encerramento consensual das investigações referentes aos fatos objeto do acordo.

48. TRINDADE, 2010.

Gráfico 6 - Volume Médio Diário Negociado na BM&FBovespa

1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Volume Médio Diário em MM de R$ Volume Médio Diário em MM de US$

0

1.000

2.000

3.000

4.000

5.000

6.000

Fonte: BMF&Bovespa.

53BRASIl: ESTABIlIDADE ECONôMICA E SOlIDEz DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAl

Atualmente, investidores estrangeiros e pessoas físicas possuem a maior participação no volume negociado, respondendo por 34,2% e 30,5% do volume de 2009. O cres-cimento da participação das pessoas físicas desde o plano real foi bastante expressi-vo, dado que em 1994 respondia por apenas 9,7% do volume total.

Finalmente, em 2000, cria-se na Bovespa o Novo Mercado, que buscou adequar o mercado acionário brasileiro aos padrões de governança corporativa mundiais. Segundo o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), governança corpo-rativa é um sistema pelo qual as sociedades são dirigidas e monitoradas, envolvendo acionistas, cotistas, Conselho de Administração, Diretoria, Auditoria Independente e Conselho Fiscal. Atualmente, a BM&FBovespa oferece quatro segmentos dife-renciados de listagem para as companhias abertas: Novo Mercado, Nível 2, Nível 1 e Tradicional, em ordem decrescente de grau de adequação às boas práticas de governança corporativa. Há também o segmento Bovespa Mais, destinado às empre-

Gráfico 7 - Participação no Volume Negociado da BM&FBovespa

0

10

20

30

40

50

60

70

80

90

100

1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009

Pes. Física Institucionais Estrangeiro Empresas Int. Financ.

%

Fonte: BMF&Bovespa.

54 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

sas novas que querem abrir seu capital, o qual não tem tido ainda muita aceitação. A Tabela 4 resume as exigências de cada segmento.

Em 2001, nova reforma legal deu aos diretores da CVM mandato de cinco anos, bem como autonomia e ausência de subordinação. A CVM recebeu poder normativo exclusivo, cabendo ao CMN apenas fixar políticas. Os poderes de fiscalização da CVM foram ampliados, recebendo autoridade sobre todos os fundos de investimento, todos os derivativos, todos os contratos de investimento coletivo, bem como sobre as bolsas de mercadorias e futuros. Ocorreu, também, a criminalização de condutas nocivas, tais como manipulação de mercado, insider trading e exercício irregular de ati-vidade ou função. O tag along, que havia sido retirado para facilitar as privatizações, retornou. Os conselhos de administração passaram a contar com representante dos acionistas preferencialistas. Passou-se a requerer OPA por aumento de participação (fechamento branco de capital). Introduziu-se o conceito “valor justo” para as OPAs de fechamento e aumento de participação. Finalmente, instituiu-se interrupção da fluência do prazo de convocação de assembleia para que a CVM se manifeste sobre a legalidade das propostas. Nos anos seguintes a 2001, várias instruções da CVM normatizaram os principais pontos dessas mudanças legislativas. A repressão à lava-gem de dinheiro, objeto de uma lei de 1998, e normatizada por instrução da CVM de 1999, foi fortalecida, sobretudo após o maior engajamento dos EUA, na esteira do 11 de setembro de 200149.

Alguns aspectos da regulação dos mercados de capitais são particularmente positi-vos. Primeiramente, todos os fundos estão sujeitos à regulação e supervisão da CVM. Mesmo os análogos locais dos hedge funds, os fundos multimercados, sempre estiveram sob a supervisão da CVM, obrigados a prover a mesma transparência dos fundos mú-tuos. Ainda que o fundo tenha apenas um cotista, os fundos exclusivos, é obrigatório o registro perante a CVM.

Tendo repassado as principais características da evolução da economia brasileira e de seu sistema financeiro, inclusive os mercados de capitais, passamos agora à descri-ção da reação à crise financeira internacional de 2008.

49. TRINDADE, 2010.

55BRASIl: ESTABIlIDADE ECONôMICA E SOlIDEz DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAl

BOVESPA MAIS

NOVO MERCADO NÍVEL 2 NÍVEL 1 TRADICIONAL

Percentual Mínimo de Ações em Circulação (free float)

25% de free float até o sétimo ano de listagem, ou condições mínimas de liquidez

No mínimo 25% de free float

No mínimo 25% de free float

No mínimo 25% de free float

Não há regra

Caracte-rísticas das Ações Emitidas

Somente ações ON podem ser negociadas e emitidas, mas é permitida a existência de PN

Permite a exis-tência somente de ações ON

Permite a existência de ações ON e PN (com direitos adicionais)

Permite a exis-tência de ações ON e PN

Permite a exis-tência de ações ON e PN

Conselho de Adminis-tração

Mínimo de três membros (conforme legislação)

Mínimo de cinco membros, dos quais pelo menos 20% devem ser inde-pendentes

Mínimo de cinco membros, dos quais pelo menos 20% devem ser inde-pendentes

Mínimo de três membros (conforme legislação)

Mínimo de três membros (conforme legislação)

Demons-trações Financeiras Anuais em Padrão Internacional

Facultativo US GAAP ou IFRS

US GAAP ou IFRS

Facultativo Facultativo

Concessão de Tag Along

100% para ações ON

100% para ações ON

100% para ações ON

80% para ações PN

80% para ações ON (conforme legislação)

80% para ações ON (conforme legislação)

Adoção da Câmara de Arbitragem do Mercado

Obrigatório Obrigatório Obrigatório Facultativo Facultativo

Fonte: http://www bmfbovespa com br/empresas/pages/empresas_governanca-corporativa asp

Tabela 4: Comparativo dos Segmentos de Listagem na BM&Fbovespa

56 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

Até o momento, enfocamos os aspectos preventivos do marco regulatório e da situação macroeconômica brasileira. No entanto, o impacto da crise sobre o Brasil foi enorme. Neste capítulo, enfatizaremos como as autoridades brasileiras reagiram à crise quando esta já se encontrava em curso.

Inicialmente, será feita uma breve resenha de como a economia brasileira foi afetada pela crise; em seguida, mostraremos a força da estrutura do sistema financeiro brasi-leiro via exemplos específicos. Muitas das boas características do sistema financeiro no Brasil servirão de base a contrafactuais. Arguiremos, com tais contrafactuais, que muitos dos problemas ocorridos nos EUA seriam de difícil reprodução no Brasil, bem como mostraremos que a regulação e supervisão financeiras nos países desenvol-vidos está em vias de incorporar várias das características que já fazem parte do aparato regulatório e de fiscalização no Brasil.

O Brasil praticamente não havia sentido os efeitos da crise do subprime até a quebra do lehman Brothers em setembro de 2008. O índice Ibovespa de ações subiu 20% em moeda nacional (44% em dólares) entre junho de 2007 e junho de 2008. No mesmo período, o mercado de capitais registrou emissões de R$165 bilhões, ou 5,6% do PIB, o que se constitui em um recorde, e tornou tal mercado importante fonte para o financiamento das empresas. O total de crédito na economia elevou-se de 32% para 36% do PIB. Como mostrado no gráfico 150, o crescimento do PIB aumentou, atingin-do, no acumulado em doze meses, 6,8% no terceiro trimestre de 2008, sendo que a demanda doméstica expandiu-se a espantosos 9,5%. Com o aquecimento da deman-da, o saldo em conta corrente deteriorou-se, caindo de um superávit de 1,1% do PIB, em junho de 2007, para um déficit de 1,4% em junho de 2008. Com o excesso de demanda interna, aliado ao aumento dos preços das commodities internacionais (em que pese a apreciação cambial), a inflação elevou-se significativamente, passando de 3,7% para 6,1% (variação acumulada em doze meses) bem como se deterioraram as expectativas de inflação doze meses à frente, passando de 3,5%, em junho de 2007, para 5,3% em junho de 2008, superando a meta para inflação (4,5%)51.

50. O gráfico 1 encontra-se no Capítulo 4. Ambiente Macroeconômico e Sistema Financeiro no Brasil.

51. MESQUITA; TORÓS, 2010.

6. Administração da Crise

57ADMINISTRAçãO DA CRISE

Frente a tal quadro de aquecimento da economia e elevação da inflação, o BC vinha aumentando a taxa básica de juros, a Selic. Havia, também, imposto depósitos compulsó-rios a empresas de arrendamento mercantil (leasing), que se aproveitavam de uma brecha regulatória para ganhar mercado. Além disso, limitou as posições cambiais de instituições financeiras, o que veio a se mostrar muito útil na crise que se seguiu52.

A falência da lehman provocou uma parada brusca no fluxo de capitais para o Brasil e para outros países. Os preços das commodities despencaram e o real depreciou-se significativa-mente (62% entre agosto e dezembro de 2008, vide gráfico 3)53. Com a depreciação, várias empresas brasileiras, inclusive grandes exportadores, tiveram pesadas perdas financeiras. Tais empresas haviam contratado complexos contratos derivativos que proviam ganhos, caso a taxa de câmbio não se depreciasse, às custas de impor grandes perdas em caso contrário. Os contratos funcionavam como uma opção de venda (put) alavancada de dólar dada pelas empresas aos bancos. A tentativa conjunta de várias dessas empresas de restringir suas perdas, via compra de divisas, acentuou a depreciação do Real. Com a significativa depre-ciação, as perdas chegaram a US$ 37 bilhões ao final de setembro de 2008, determinando o caminho que o BC tomou para reagir à crise. Para tomar suas decisões, o BCB baseou-se nas informações em tempo real providas pelo SPB, pelas câmaras da BM&FBovespa, bem como nas posições de instituições financeiras e não financeiras informadas pelo Cetip54. Em termos comparativos, o BC brasileiro tinha muito mais informações sobre a saúde financeira de bancos e empresas envolvidas com derivativos de câmbio, do que o FED dispunha, haja vista o caso da seguradora AIG.

Passamos agora a descrever as principais medidas tomadas pelas autoridades econômi-cas, sobretudo o BCB, o Executivo, e a CVM, explicando as razões de cada uma delas. Não houve fuga de capitais, como em crises anteriores, mas, sim, realocação de depósitos, que migraram de instituições menores, julgadas mais frágeis, para instituições maiores (ou bancos públicos, julgados ainda menos arriscados). Assim, o BCB procurou aliviar a falta de liquidez que se abateu sobre as instituições menores. Durante crises de liquidez, como a ocorrida nos últimos meses de 2008, o BCB pôde injetar liquidez no sistema via liberação

52. MESQUITA; TORÓS, 2010.

53. O gráfico 3 encontra-se no Capítulo 4. Ambiente Macroeconômico e Sistema Financeiro no Brasil.

54. MESQUITA; TORÓS, 2010.

58 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

desses depósitos que eram mantidos junto ao Banco Central. Ou seja, os depósitos compul-sórios funcionaram como uma caixa d’água, cujo conteúdo pôde ser usado para ajudar a combater o incêndio em 2008.

Havia cerca de R$ 250 bilhões recolhidos como depósitos compulsórios junto ao Banco Central do Brasil antes da eclosão da crise, em setembro de 2008. Diretores do BCB à época55 afirmam terem sido liberados cerca de R$ 116 bilhões, ou 4% do PIB, para reduzir os efeitos da crise de liquidez que se abateu sobre o sistema financeiro nacional em 2008. Dado que o “empoçamento” de liquidez afetou majoritariamente os bancos pequenos e médios, enquanto os compulsórios estavam sobretudo com os bancos grandes, o BCB instituiu mecanismos de incentivo para que estes repassassem àqueles a liquidez adicional disponibilizada pela liberação dos compulsórios. Bancos maiores foram incentivados a utili-zarem as liberações dos compulsórios para a compra de carteiras de crédito das instituições menores, que passavam por dificuldades de financiamento. Adicionalmente, o BCB aperfei-çoou o redesconto e alongou o prazo para até 359 dias56.

O esforço para irrigar os bancos menores foi composto não só pela utilização de fundos já disponíveis para tal fim, como também pela instituição de mecanismo adicional de garan-tia de depósitos. O Fundo Garantidor de Créditos (FGC), instituição que visa a garantir os depósitos dos bancos que eventualmente venham a falir57, foi usado extensivamente. Além da compra, pelo FGC, de ativos de instituições com problemas de financiamento, foi criado, em março de 2009, o Depósito a Prazo com Garantia Especial do FGC (DPGE). Tal depósito contava com garantia do FGC de até R$ 20 milhões. Isto permitiu aos investidores com-prarem títulos de bancos pequenos e médios sem correr risco de contraparte, o que estava paralisando o mercado interbancário. Na avaliação de dois ex-diretores do Banco Central do Brasil que estiveram nas trincheiras durante a crise, o conjunto de medidas “adotadas de forma sequencial, teve êxito em remover a constrição de liquidez e favoreceu a retomada do crédito, inicialmente para pessoas físicas e posteriormente jurídicas”58.

55. MESQUITA; TORÓS, 2010.

56. MESQUITA; TORÓS, 2010.

57. “O FGC tem por objetivos prestar garantia de créditos contra instituições dele associadas, nas hipóteses de decretação da inter-venção, liquidação extrajudicial ou falência da associada; ou reconhecimento, pelo Banco Central do Brasil, do estado de insolvência da associada” (http://www.fgc.org.br/?conteudo=1&ci_menu=12).

58. MESQUITA; TORÓS, 2010, p. 198.

59ADMINISTRAçãO DA CRISE

Foram também tomadas medidas para facilitar o uso do redesconto, embora não tenha sido utilizado, uma vez que o FGC cumpriu tal papel. Além disso, foi dada permissão ao Fundo Garantidor de Crédito, FGC, para garantir emissões de instituições de pequeno porte, medida esta que foi muito bem sucedida. Tais medidas impediram que houvesse quebras de bancos no auge da crise59.

Os bancos públicos também serviram de instrumento direto de intervenção governamental no mercado de crédito e bancário. Ao longo de 2008, as operações de crédito dos bancos públicos cresceram 40%, enquanto o crédito concedido pelos bancos privados apresentou elevação de 27%. O papel dos bancos públicos foi mais contundente no último trimestre de 2008. O total de crédito concedido pelos bancos públicos cresceu 12,9%, enquanto o crescimento do setor privado foi de 3,2%. Por sua vez, bancos públicos adquiriram participação em alguns bancos privados, provendo--lhes um colchão de capital em meio à crise.

Dado o enorme aumento das volatilidades, a BM&FBovespa elevou as margens requeridas para a negociação de derivativos. Embora as elevações de margens tenham aumentado a necessidade de liquidez, elas foram julgadas necessárias para diminuir o risco sistêmico envolvido nas negociações de derivativos em bolsa60.

O BCB também atuou para garantir o bom funcionamento do mercado de crédito em moeda estrangeira. Apesar de pesadas críticas, optou por deixar o sistema de câmbio flutuante funcionar livremente, oferecendo suas reservas de forma bastante focada, por exemplo, para que não fossem interrompidos os fluxos de comércio exterior. Como no último trimestre de 2008 não estava claro que as medidas internacionais anticrise teriam sucesso, o BCB houve por bem poupar suas reservas para o caso de ocorrer um prolongado período de escassez de crédito externo. A opção por deixar o câmbio flutuar livremente também foi tomada com vistas a não chancelar os erros das empresas que especularam com derivativos de câmbio61, confiando em uma eventual put cambial oferecida pelo BC. De fato, havia uma crença – baseada possivelmente em dados internacionais que sugeriam

59. MESQUITA; TORÓS, 2010.

60. O efeito de contração da liquidez das chamadas de margens pela BM&FBovespa, justamente quando a crise se acirrou, foi uma das reclamações mais comuns que colhemos junto a participantes de mercado. Contudo, não parece haver consenso quanto às formas de minorar tal problema. Alguns participantes de mercado advogam que as clearings da BM&FBovespa possam ter acesso ao redesconto do BCB, mas outros participantes consideram que tal medida aumentaria o risco de se negociar na BM&FBovespa.

61. MESQUITA, 2010.

60 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

a existência de um hipotético fear of floating – de que o BC não deixaria o real se depreciar muito, com medo dos impactos sobre as empresas descasadas em câmbio. A ação do BC teve, portanto, um caráter pedagógico, tentando eliminar esta fonte de risco moral (moral hazard). Mutatis mu-tandis, o FED não conseguiu fazer o mesmo com a taxa de juros nos EUA. Hoje, é ainda mais forte a crença na continuidade da Greenspan’s put, segundo a qual toda vez que o nível de atividade nos EUA cai, o FED baixa muito a taxa de juros.

Durante a crise, o BC vendeu US$ 14,5 bilhões, apenas 7% das reservas que detinha na eclosão da crise. Realizou repos (vendas de cambiais com acordo de recompra futura) no total de US$ 11, 8 bilhões e concedeu empréstimos em dólar no valor de US$12,6 bilhões, dos quais US$ 9 bilhões destinaram-se ao comércio exterior. O FED estendeu aos bancos centrais dos países emergentes mais sólidos, como o Brasil, linhas individuais de crédito no valor de US$ 30 bilhões, sob a forma de swap de moedas. Não foi necessário a ela recorrer, embora sua existência tenha contribuído para restaurar a normalidade dos mercados financeiros. Outra ação tomada pelo BC, nos mercados cambiais, foi a venda de dólar futuro (swap cambial reverso) no valor de US$ 35 bilhões62.

A ação das autoridades econômicas brasileiras obteve amplo sucesso, tendo sido as-sim julgada pelo FMI: “[...] as medidas de easing cambial tomadas pelo BCB durante 2008-2009 parecem ter aliviado os vários estresses de mercado advindos da redução local de liquidez do dólar, pelo menos no primeiro momento. As declarações e, em menor grau, as intervenções reduziram o custo relativo do financiamento em cupom cambial. A existência de uma grande variedade de operações no mercado de câmbio parece ter estabilizado as expectativas acerca da volatilidade da taxa de câmbio. Os efeitos positivos das declarações a respeito da facilidade do swap monetário entre o FED e o BCB, identificado nas três regressões [realizadas no artigo], sugere que tal política ajudou a aumentar a confiança”63.

62. MESQUITA, 2010.

63. “[...] the foreign exchange easing measures undertaken by the BCB during 2008-09 seemed to have alleviated the various market stresses arising from local dollar liquidity shortage, at least on impact. The announcements and to a lesser extent the interventions themselves reduced the relative cost of onshore dollar financing. The varied foreign exchange operations also appeared to have stabilized market expectations of exchange rate volatility. The positive effects of the announcements of the currency swap facility between the FED and the BCB across the three regressions strongly suggest that this arrangement helped boost confidence” (FMI, 2009).

61ADMINISTRAçãO DA CRISE

A crise serviu para o aprimoramento dos arcabouços de regulação e supervisão financeiras, bem como para a identificação de áreas a serem melhoradas. Em termos de monitoramento e prevenção, identificaram-se as seguintes melhorias. Para prover maior transparência dos derivativos de balcão organizado, a CVM editou novas ins-truções64, além de criar o CED (Central de Exposição a Derivativos, vide seção 5.5.3), a fim de prover informações mais precisas e rápidas aos policy makers. Foi identificada a necessidade de maior cooperação entre as duas principais entidades reguladoras, o BCB e a CVM. De acordo com o que vem sendo discutido em relação à Basileia III, de-verá ser instaurado um requisito de adequação de capital com ajuste cíclico. Tendo em vista o expressivo alongamento e crescimento do crédito no Brasil, é necessário tomar medidas para evitar os riscos oriundos dos descasamentos de maturidades. Incentivos tributários e regulatórios devem ser introduzidos com tal objetivo. Por fim, está em curso a reforma do sistema atual de resolução de falências bancárias65.

64. Veja o capítulo anterior, seção 5.4.3.

65. MESQUITA, 2010.

62 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

O sistema financeiro e a economia brasileira passaram muito bem pela crise internacional de 2008. Este ensaio demonstra que, no que tange ao setor financeiro, tal resultado não foi fortuito, mas advindo dos sólidos arcabouços regulatório e de supervisão financeira desen-volvidos ao longo de múltiplas crises pelas quais passou o país. Tampouco foi casual o bom desempenho da economia brasileira, que, após conviver com a hiperinflação por mais de uma década, passou por reformas estruturais que lhe permitiram usufruir muito bem de sua complementaridade com as economias que mais crescem no mundo, notadamente a China.

Como pano de fundo para a comparação do desempenho da economia brasileira, são revistos, no capítulo 2, dois casos de países que apresentaram sérios problemas quanto à regulação e supervisão financeiras – Estados Unidos (EUA) e Reino Unido (RU) – bem como, no capítulo 3, dois casos de países cujos setores financeiros mostraram resiliência à crise – Canadá e Chile. A comparação com tais países mostra que o aparato brasileiro regulatório e de fiscalização financeira possui muitas das boas características presentes no Canadá e no Chile, distanciando-se das falhas encontradas nos EUA e no RU. Ao contrário do que ocorreu no Brasil, a regulação de holdings bancárias focou-se em proteger o banco apenas, e não a firma como um todo. Os veículos fora de balanço escaparam da regulação e foram grande fonte de fragilidade. Os bancos de investimentos puderam optar por diferentes regimes de regulação, sob distintos reguladores. A prática dessa arbitragem regulatória não esteve presente no Brasil em nenhum momento. A regulação brasileira também foi muito mais abrangente no que tange ao escopo das atividades contempladas. Firmas, como a seguradora AIG, escaparam das restrições da regulação do setor bancário por não serem consideradas bancos, mesmo emitindo depósitos segurados pelo governo. A regulação financeira vigente no Brasil não permitiria o surgimento dessas fragilidades identificadas pelos legisladores dos EUA como importantes falhas que geraram a crise66.

Nos EUA, o uso de derivativos de balcão, sem controle centralizado, foi também identi-ficado como uma falha importante. A ausência de informações centralizadas constituiu uma das principais dificuldades para a ação dos reguladores. Como vimos no capítulo 5, o mercado over the counter, nos EUA, não tem a estrutura do mercado de balcão organi-zado. Em contrapartida, no Brasil, todas as operações são registradas em sistema,o que é exigido pelos reguladores.

66. Ver na seção 2.3 as causas da crise, identificadas pelos formuladores da nova lei Dodd-Frank.

7. Conclusão

63CONClUSãO

A experiência brasileira é revista em detalhe. No capítulo 4, descreve-se a evolução da macroeconomia brasileira nas últimas décadas. Após conviver com a hiperinflação por muitos anos, finalmente, com o Plano Real em 1994, a economia brasileira logrou debelar o mal inflacionário. A longa duração da hiperinflação havia distorcido fortemente o sistema financeiro que, em vez de prover crédito ao setor privado, havia se especializado em prover formas de o setor privado elidir o imposto inflacionário, financiando, simultaneamente, a dívida pública. A maior fonte de lucros dos bancos não era a provisão de crédito, mas, sim, o float inflacionário oriundo de depósitos à vista ou imperfeitamente indexados à alta inflação. Simultaneamente, a alta e variável inflação possibilitava a diversas instituições com problemas patrimoniais esconder tais problemas do Banco Central do Brasil (BCB). A queda abrupta e definitiva da inflação, em consequência do Plano Real, evidenciou o problema em muitos bancos, causando uma crise bancária. Os programas então instituídos – o Proer, para bancos privados e o Proes, para bancos públicos – lograram restituir a boa saúde ao setor financeiro nacional, característica fundamental para o bom desempenho do mesmo durante a crise recente. A partir do Proer e do Proes, várias características fundamentais do aparato regulatório e de fiscalização foram desenvolvidas. Foi criado o Fundo Garantidor de Créditos, instituição fundamental para prover liquidez durante a crise recente. O BCB passou a realizar periodicamente Inspeções Gerais Consolidadas (IGCs) nos bancos, o que aumen-tou muito a capacidade de o regulador agir tempestivamente, evitando que problemas localizados pudessem crescer e criar fonte de risco sistêmico.

A recorrência de crises no período 1994-2002 ajudou a fortalecer os sistemas de mensu-ração e gerência de risco das instituições financeiras nacionais, que se especializaram em conviver com alta volatilidade, uma característica importante durante a crise recente. A partir de 2003, a boa conjuntura internacional, que teve como dínamo as economias asiáti-cas que apresentam forte complementaridade com a economia brasileira, ajudou a afastar o fantasma das crises com fugas de capitais que geravam quedas bruscas do investimento e do PIB, as chamadas paradas bruscas (sudden stops). Isso possibilitou que a economia brasileira entrasse em um período virtuoso de crescimento, apenas brevemente interrompido pela crise que sucedeu à quebra do lehman Brothers em 2008.

No capítulo 5, aborda-se com detalhes características do setor financeiro brasileiro que foram fundamentais para sua resiliência durante a crise. Dentre os principais fatores da regulação prudencial brasileira que contribuíram para tal fato, destacam-se os seguintes:

64 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

(i) os bancos brasileiros apresentam baixa alavancagem, elevada liquidez e altos padrões de rentabilidade, resultando em maior capitalização, o que provê segurança durante crises;

(ii) estrutura de capital dos bancos com presença de grandes acionistas;

(iii) melhor monitoramento (fiscalização) dos bancos por parte do órgão regulador;

(iv) excelente estrutura de negociação e liquidação financeira, com obrigatorieda-de de registro de todas as operações, mesmo as de balcão, com prazos curtos de liquidação (finality), o que provê muito maior transparência e impede que riscos sistêmicos fiquem fora do radar dos reguladores;

(v) mercado de balcão organizado e centralizado com eficiente sistema de segre-gação de custódia;

(vi) regulação proativa da Indústria de Fundos e autorregulação;

(vii) baixa expressividade de veículos não bancários (SIVs e conduits) no gerencia-mento do risco financeiro;

No capítulo 6, descreve-se a reação à crise. Embora as defesas previamente construídas não tenham sido suficientes para blindar completamente o sistema financeiro nacional, o regime regulatório brasileiro permitiu a tomada de medidas reativas que contribuíram para mitigar os efeitos deletérios da crise. As principais medidas foram:

(i) liberação dos compulsórios para “desempoçar” a liquidez, irrigando as ins-tituições financeiras percebidas pelo mercado como mais frágeis, bem como outras medidas, por exemplo, o seguro de depósitos a prazo (DPGE), financia-do integralmente com os recursos (privados) do FGC, que, assim, comprovou ser fonte externa aos bancos com capacidade de restabelecer confiança; e

(ii) intervenção no mercado cambial, com recurso a múltiplos instrumentos, de forma a prover liquidez em moeda estrangeira aos agentes que dela precisa-

65CONClUSãO

vam, evitando os deletérios efeitos sobre o comércio internacional do Brasil e a economia “real” como um todo.

Em suma, o bom desempenho da economia brasileira e de seu sistema financeiro foi oriun-do de medidas tomadas após inúmeras crises anteriores. De certa forma, na reação à última crise, o Brasil foi beneficiado por sua performance extremamente acidentada dos anos de 1980 a 2002. O aparato regulatório e de fiscalização financeira, aliado a uma excelente estrutura de negociação, liquidação e custódia financeira, constitui, hoje, um dos maiores trunfos do Brasil para continuar sua trajetória de crescimento sustentado.

66 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

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70 O SISTEMA FINANCEIRO E A ECONOMIA BRASIlEIRA DURANTE A GRANDE CRISE DE 2008

Siglas

ABCP Asset-backed commercial paper

ABS Asset-backed securities

ANBIMA Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais

BCB Banco Central do Brasil

Camel Padrão de capital, qualidade do ativo, gerência, lucratividade e liquidez

CBLC Companhia Brasileira de liquidação e Custódia

CCP Negociação em Contraparte Central

CDO Collateralized bebt obligations (obrigações garantidas por dívidas)

CDS Credit default swaps

Cetip Balcão Organizado de Ativos e Derivativos

CIP Central Interbancária de Pagamentos

Compe Câmara de Compensação

CVM Comissão de Valores Imobiliários

DPGE Depósito a Prazo com Garantia Especial do FGC (Brasil)

FED Federal Reserve (EUA)

FGC Fundo Garantidor de Crédito (Brasil)

FMI Fundo Monetário Internacional

GSE Government sponsored enterprises (EUA)

LDL liquidação Diferida líquida

LGB lei Geral de Bancos de 1986 (Chile)

Libor London interbank offered rate (taxa do mercado interbancário)

LTCM Long term capital management

71

LTV Loan-to-value

IGC Inspeção Geral Consolidada (Brasil)

MBS Mortgage-backed securities

Ninja No income, no job or assets

Osfi Office of the Superintendent of Financial Institutions (Canadá)

PDCF Primary Dealer Credit Facility (EUA)

Proer Programa de Estímulo à Reestruturação e Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional

Proes Programa de Estímulo à Redução do Setor Público no Setor Financeiro

RMBS Retail mortgage-backed securities

Sbif Superintendência de Bancos e Instituições Financeiras (Chile)

SCR Sistema de Informações de Crédito do Banco Central (Brasil)

Selic Sistema Especial de liquidação e Custódia

SIV Structured investments vehicles

SPB Sistema de Pagamentos Brasileiro

STR Sistema de Transferência de Reservas

TAF Term auction facility (EUA)