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REVISTA UNIARA, v.16, n.2, dezembro 2013 81

O RETORNO DOS EX-ESCRAVOS DO BRASIL PARA A ÁFRICA:HISTORIOGRAFIA, SÉCULOS XVII-XIX

ROCHA, Ilana Peliciari.. Doutora em História FFLCH-USP. Atualmente é professora da Faculdade Calafiori eprofessora Peb II – Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Endereço: Rua Anna Leôncio Alves,

1990, Anna Terra, Franca-SP, 14405-370. E-mail: [email protected].

RESUMO

O artigo trata de comunidades de brasileiros ex-escravos retornados à África e propõe uma mudança deperspectiva historiográfica, que considera o inter-relacionamento entre a história dos dois continentes. Sãoafricanos retornados a partir do Brasil, nos séculos XVII e XIX, que carregaram consigo a vivência no Brasil einfluíram em suas novas comunidades africanas. Com esse tema, o artigo apresenta as principais discussões dahistoriografia, salientando aspectos como: a cultura, a religiosidade, a família, a inserção política e econômica, aquestão da etnia e da identidade. Traz um balanço dos estudos clássicos e atuais do tema e suas reflexões edemonstra a contribuição da historiografia para o avanço do conhecimento da diáspora africana. A análise ébibliográfica e delimitada pelo período de escravidão africana no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: Historiografia da escravidão; Escravidão brasileira; Ex-escravos; Diáspora africana; África.

BRAZILIAN EX-SLAVES' RETURN TO AFRICA: XVII-XIX HISTORIOGRAPHY

ABSTRACT

The article is about Brazilian communities of ex-slaves who returned to Africa and proposes a change of thehistoriographic perspective, which considers the interrelationship between the history of both continents. TheAfricans who returned from Brazil, in the 17th and 19th centuries, took with them the experience in Brazil andinfluenced their new African communities. Based on this theme, this paper presents the main discussions ofhistoriography, pointing out aspects such as: culture, religion, family, the political and economic integration, theissue of ethnicity and identity. It presents a review of classic and current studies on the theme and its reflectionsand demonstrates the contribution of historiography to the advancement of the knowledge of the African diaspora.The analysis is bibliographical and considers the period of African slavery in Brazil.

KEYWORDS: Historiography of slavery; Brazilian slavery; Ex-slaves; African diaspora; Africa.

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ROCHA, I.P.

INTRODUÇÃO

Apesar de ser um tema central na história econômicae social do imperialismo ocidental na América e África,o tráfico de escravos permaneceu como uma das áreasmenos estudadas na moderna historiografia até as últimasdécadas do século passado. Entretanto, tem-seconseguido avançar tanto através de novasmetodologias, como a tradição oral e linguística, quesão de extrema importância para o conhecimento daHistória da África, quanto de análises demográficas.Outra postura importante para encontrar elementos paraexplicar o processo da diáspora foi tomar o Atlânticocomo ponto de ligação entre o Brasil e a África.Encontraram-se a partir daí formações de comunidadesatlânticas e nessas comunidades a percepção de aspectosculturais, religiosos e de identidades, bem comomanifestações de revoltas com ideologias e formas deorganização que aí se manifestavam.

Então pretendemos nos ocupar de um dosdesdobramentos da diáspora, que é o fato de muitosescravos e afrodescendentes que se encontravam noBrasil e por razões pré-determinadas, acabarem porvoltar à África. Entre as razões temos, principalmente,a deportação de escravos libertos que se tornaramrevoltosos no Brasil, principalmente, a Revolta dosMalês, em 1835. O propósito é explicitar o tratamentodado pela historiografia à temática dos africanosretornados a partir do Brasil na diáspora. Pretende-seum acompanhamento dos estudos já realizados e oscaminhos dessas pesquisas, já que o regresso dessesescravos e/ou afrodescendentes à África tem influênciasdiversas, que requerem um tratamento particular.

O regresso dessa população pôde influenciarpositivamente no reequilíbrio da estrutura demográficae na dinâmica populacional, como contribuirdecisivamente para alterações sociais, econômicas,culturais e até na organização do espaço nascomunidades de origem. No primeiro caso, é umasituação típica do retorno preponderantementemasculino. Nos outros, trazem normalmente formas devida que anteriormente não possuíam. Por se tratar,uma parte significativa, de ex-escravos, não trazemrecursos de ordem material, no entanto trazem

conhecimentos profissionais, hábitos e consumos, quepodem contribuir para uma alteração na África,dinamizando novas atividades, através do trabalho,configurando novos espaços residenciais e de lazer.

Na África, esses retornados eram conhecidos pordiversos nomes, que os historiadores costumam chamarde afro-brasileiros. Entre as conexões desse retorno,destaca-se a conexão entre a Bahia e o Golfo do Benin– ou Golfo da Guiné, Costa da Mina ou dos Escravos,que será ponto principal de nossa análise. Por cidadesdaquela costa passaram, atuaram e se fixaram, desde oséculo XVII, traficantes brasileiros, portugueses, ou afro-brasileiros, muitos deles ex-escravos ou descendentesde escravos. Ali, aumentaram suas fortunas, primei-ramente com o comércio de escravos, depois com o demercadorias, como o tabaco, o dendê e os tecidos. Deorigens diversas, organizaram-se socialmente a partir deexperiências várias apreendidas no Brasil, ficandoconhecidos como agudás, um termo ainda hojeaplicado. O século XIX marca a presença forte deles:Domingos José Martins, Joaquim Manuel de Carvalho,entre outros, com destaque para a figura controvertidade Francisco Félix de Souza que, apesar do poucotempo, foi um dos mais bem-sucedidos deles, e por issotemos uma vasta bibliografia a seu respeito.

O tema justifica-se, já que o Golfo de Benin, nacosta ocidental da África, é uma região que, de fato,constitui um exemplo único de implantação de umacultura brasileira fora de nossas fronteiras, pois não setrata de uma colônia de brasileiros, como aconteceem extensões culturais de outros países, mas de todoum grupo social que se reconhece como brasileiro eutiliza essa condição para se articular com o conjuntoda sociedade. Ainda hoje, esses traços brasileiros estãopresentes na comunidade "agudá", onde as pessoasfazem questão de manter sua identidade de "brasileiros".

Com relação ao método, trata-se de uma pesquisabibliográfica de análise textual, com respaldo emimportantes estudos do tema.

O RETORNO DOS AFRICANOS A PARTIR DO BRASIL:ANÁLISE GERAL DA HISTORIOGRAFIA

O tráfico de escravos do Atlântico é uma das áreas

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menos estudadas na historiografia ocidental até asúltimas décadas. Apesar de fontes abundantes, esseinteresse tardio se deve principalmente à sua associaçãocom o imperialismo europeu – um problema moralmentedifícil – e à falta de instrumental metodológico.

Herbert S. Klein aponta alguns avanços quepossibilitaram os estudos mais sistemáticos sobre otráfico de escravos. Esses avanços corrigem conceitosideológicos, e estimativas estatísticas inicialmentedistorcidas pela campanha abolicionista, levando areavaliações importantes sobre o papel do tráfico nocrescimento econômico dos países europeus, àdistribuição das diversas culturas no continenteamericano e a seu efeito sobre a demografia e aeconomia africana (KLEIN, 1989).

O tráfico de escravos se mostra com umadiversidade e complexidade de abordagens e fontesque nos obrigam a uma delimitação objetiva e razoáveldo tema: a diáspora africana. Procuramos atentar paraos trabalhos que se dedicaram a analisar os retornosdos africanos a partir do Brasil, tema que nos últimosanos tem se beneficiado com inúmeros estudos.

O tema se inicia a partir de uma longa série deestudos feitos há mais de 50 anos por pioneiros comoPierre Verger e Gilberto Freyre. Antes deles, em 1956,já havia nos apresentado o assunto, J.F. de AlmeidaPrado, em A Bahia e as relações com Daomé,incluído depois em Brasil e o colonialismo europeu.Trabalho que utilizou fontes variadas de viajantes,missionários, capitães de navio, exploradores ougeógrafos, alemães, britânicos, franceses ouportugueses que tiveram contato com os traficantes eos ex-escravos brasileiros e seus descendentes.

Pierre Verger, com seu trabalho pioneiro sobre otráfico de escravos, procurou, contudo, levar em contao papel africano. Sua pesquisa começou durante o anode 1949 em Ouidah, quando teve acesso a umimportante testemunho sobre o tráfico de escravos paraa Bahia – as cartas comerciais de José Francisco doSantos, escritas no século XIX. Aos poucos, ele foidescobrindo que, nos últimos anos do tráfico, osescravizados eram quase exclusivamente os iorubas,que o tabaco era a moeda de troca e descobrindo

também a intensidade desse comércio: "Os agentesda escravidão na Bahia tiveram relações estreitascom essa parte da África. Houve anos em que seregistraram cerca de cem navios indo e voltandoda Baía de Todos os Santos para o Porto deOuidah" (VERGER, 2002, p. 366). Salienta, dessaforma, o papel da reciprocidade entre a região do golfodo Benin e a Bahia de todos os Santos.

Verger, considerado autodidata, foi reconhecidoacademicamente em 1966, quando, em função deFluxo e Refluxo, a Universidade de Sorbonne, Paris,lhe atribuiu o título de Doutor em Estudos Africanos. Apesquisa durou 20 anos até o texto ficar pronto. Doisanos depois, a tese transformou-se em livro, quandosaiu a versão francesa. Depois de oito anos, em 1976,foi publicada a versão em inglês, e o público brasileirosó pôde conhecer o livro em 1987, mais de 20 anosdepois de pronto, quando saiu a versão em português.Em Verger encontramos uma coleção de fotografiassobre as relações entre as margens africana e brasileirado Atlântico, ressaltando a troca cultural entre essespontos. "Muitos dos pretos, ao voltarem libertos paraa África com costumes brasileiros, fizeram lá umaespécie de Brasil, assim como se formou aqui umaespécie de África", (Verger, 2002, p. 367). Tambémrecorre à vasta documentação, regularmente transcrita,para a sua obra.

Numericamente é difícil precisar o número deafricanos retornados, já que muitos desses viviam entreas duas costas do Atlântico. Com relação ao séculoXIX, Turner procurou chegar a uma aproximação. Nofinal de 1830, surgiu e cresceu um novo grupo emigrantena costa africana, que "havia originalmente embarcadono porto de Salvador, Brasil, também conhecido comoBahia de Todos os Santos. Antes do fim do séculoXIX o número de emigrantes afro-brasileiros para aÁfrica Ocidental havia ultrapassado o número de trêsmil" (TURNER, p. 1978, p. 19).

Em nota de rodapé, Verger apresenta-nos dadosquantitativos referentes ao número de retornados,utilizando como documentação os passaportesexpedidos. O autor indica que, "em 1850, a con-cessão em massa de 55 passaportes para Moçamedes"

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(VERGER, 2002, p. 634). Para o período anterior,notou que, "de 1824 a 1826, em 25 meses, apenas 16passaportes foram expedidos, o que representa menosde 1% do total dos passaportes concedidos duranteesse período, e a partida de duas famílias a cada trêsmeses" (VERGER, 2002, p. 634). Esse percentual foicrescendo ao longo do período de 1828 a 1835, e,"no decurso dos três últimos meses de 1835, 362passaportes concedidos representavam 91% do total,com 120,7 partidas de famílias por mês. Em Janeirode 1836, expediram-se ainda 93 passaportes, ou seja,77% do conjunto" (VERGER, 2002, p. 634). E, porfim, "os algarismos se estabilizaram; no período de1845, 1.336 passaportes representavam 17% doconjunto, com 5 partidas mensais" (VERGER, 2002,p. 634).

CULTURA, RELIGIOSIDADE E FAMÍLIA

Verger aponta a tendência de abrasileiramento dosescravos no Brasil, e também a sua manutenção noretorno à África: "Joaquim d' Almeida, chegado à Bahiacomo escravo do capitão Manoel Joaquim d' Almeida,rapidamente libertado, tornou-se em alguns anoscompletamente brasileiro de hábitos e decomportamento." Ele, por exemplo, "mandou erigir umacapela católica em Ágüe, na costa da África, váriosdecênios antes da chegada dos missionários católicosnaqueles lugares". (VERGER, 2002, p. 527).

É dessa espécie de Brasil na África que tambémse ocupa Gilberto Freyre no capítulo titulado comoAcontece que são baianos, de seu livro ProblemasBrasileiros de Antropologia, em que procura mostrara intensidade desse movimento. Tal intensidade édemonstrada através da descrição de aspectos quelevaram os brasileiros no retorno para a África: "casasum tanto arrevesadas" (FREYRE, 1962, p. 268), "ogosto pela farinha de mandioca, pelo doce de goiaba,por comidas brasileiras, por hábitos brasileiros"(FREYRE, 1962, p. 268), "devoções brasileiras comoa de Nosso Senhor do Bonfim. Além de festas comcantigas e danças brasileiríssimas. Isto é, mestiças"(FREYRE, 1962, p. 268).

Freyre aparece como referência, descortinando as

principais características dos retornados, procurandomapear os costumes brasileiros na África. O movimentode retorno engloba até mesmo as relações senhoriais,que sofreram mudanças com a presença dosretornados, com características que foram levadas àÁfrica (FREYRE, 1962, pp. 311-312). Mas a grandepreocupação do autor é analisar principalmente oselementos de cultura, e indica que entre esses elementoslevados pelos "africanos abrasileirados", destacam-se as festas (FREYRE, 1962, p. 275).

Gilberto Freire procura explicar a sobrevivênciados africanos "brasileiros" em Lagos com relação aoselementos da cultura luso-brasileira por eles adquiridosna Bahia e confrontados com a cultura africana peloseu apelo religioso cristão e pelo seu carátermaternalista (FREYRE, 1964, p. 279). Assim, apontacomo papel central para essa sobrevivência o "familismounido ao Cristianismo". "A casa, completada pela capela(...) foi o seu reduto nessa dura batalha de africanos'brasileiros' contra a África" (FREYRE, 1964, p. 291).

Turner também comenta que a religião era uminstrumento importante para a identidade, pois "erautilizada em alguns casos para favorecer a coesão dogrupo e em outros para promover a exclusão e aseparação de indivíduos e grupos" (TURNER, 1995,p. 86). O autor também demonstra que a religiosidadese mostra aos retornados repleta de ambiguidades.

Uma conseqüência da ambiguidade dosretornados em termos de identidade culturalseria a mesquita construída pelos brésiliensna cidade de Porto-Novo, no Benin.Financiada por comerciantes brésil iens,nagôs na maioria, que haviam acumuladofortunas consideráveis através deempreendimentos comerciais ao longo dacosta, a mesquita, luxuosa e espaçosa, foipromovida e alardeada como testemunho dareligiosidade e da esperteza comercial dosafro-brasileiros. Mas o prédio é bastantesurpreendente, uma vez que, pelo estiloarquitetônico, se assemelha muito mais àcatedral de Salvador (...) , construir

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propositamente uma mesquita parecida comuma catedral católica demonstra a incertezaou confusão na identidade cultural do grupo(TURNER, 1995, p. 86).

Guran já observa a relação entre a tradição familiare o catolicismo com a região de Benin:

Entre os aspectos mais notáveis dacontribuição cultural dos agudás podemoscitar: a família patriarcal mononuclear e ouso de sobrenome; o catolicismo e as festasreligiosas, como a do Senhor do Bonfim e deSão Cosme e São Damião; novas técnicasagrícolas e novos hábitos alimentares, comoa mandioca, a feijoada, o cozido, a cocada,etc.; a utilização de talheres e outros utensíliosda vida doméstica; técnicas de construção eum novo estilo arquitetônico e de ocupaçãodo espaço doméstico; técnicas de carpintaria,marcenaria, etc. (Guran, 2000, p. 17).

A opção religiosa influiu em vários aspectos nomovimento migratório de retorno. O ponto culminantepara o retorno dos africanos a partir do Brasil e épocaem que ganha expressões numéricas foi após a Revoltados Malês, em 1835. Essa revolta proporcionou adecisão de deslocamento de grupos de libertos. JoãoJosé Reis, um dos principais autores sobre o movimentoexplica quem eram os considerados malês:

Na Bahia male não denominava o conjuntode uma etnia africana particular, mas osafricanos que tivesse adotado o Islã; embora,se quisermos ser bem estreitos, e etnicamentecorretos, malês seriam apenas os nagôsislamizados. Porém, nagôs, haussás, jejes,tapas – enfim, indivíduos pertencentes adiversas etnias – eram tidos, se muçulmanos,por malês (REIS, 2003, p. 176).

Assim, o autor, tomando a informação étnica comoessencial para a organização da revolta, procura analisar

criticamente o papel da religião islâmica. Em tornodessa questão religiosa existem trabalhos com visõesdiversificadas, por exemplo, Alberto da Costa e Silvaé contrário à posição de Reis, que diz: "Tornaram-sepoucos os que continuam a acreditar que o chamadolevante dos malês, em 1835, foi, como se deduziu deNina Rodrigues, um jihad islâmico. Eu sou um dessespoucos que não foi vencido pelos argumentos de JoãoJosé Reis" (SILVA, 2003, p. 219).

Alberto da Costa e Silva, nesse artigo Sobre aRebelião de 1835 na Bahia, apresenta os argumentosque não o convenceram a respeito do paralelo entre aguerra santa e a revolta. Mas deste artigo nos interessaperceber que a Revolta dos Malês desenvolveu noBrasil um clima hostil, de intolerância em relação aosmalês, como salienta Turner:

As restrições legais e os constrangimentoscotidianos impostos sobre todos os libertosresidentes na Bahia após a rebeliãocomeçaram a tornar a vida insuportável paramuitos ex-escravos. A revogação do direito dese reunirem em grupos maiores de duas ou trêspessoas, a proibição - para negros - decircularem nas ruas de Salvador após o pôr-do-sol e a discriminação no mercado detrabalho resultaram numa forma perversa desolidariedade num grupo anteriormentedividido por diferenças religiosas e étnicas.Uma vez que todos eram percebidos comoameaça em potencial à ordem estabelecida eà sociedade escravocrata, tornava-se possíveluma reação mais coletiva pelos libertos(TURNER, 1995, pp. 85-86).

Esses retornados, geralmente, impulsionados pelasordens de deportação das autoridades provinciais,recebiam apoio de núcleos de identidades étnicas,como as Irmandades de Misericórdia, que contribuíampara a arrecadação de recursos para a viagem. Osnavios viajavam regularmente entre os portos do Brasile da África, o que facilitava o deslocamento dessecontingente populacional. Na África acabaram se

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enriquecendo, e muitos passavam a enviar seus filhospara estudar fora do país, principalmente no Brasil eem Portugal (VERGER, 2002, p. 605).

Verger procura deixar claro que esse retorno não sedava sem incidentes, havia graves problemas com relaçãoaos bens dos passageiros. Comenta casos como o dospassageiros do navio Linda Flor que, em 1854, sofreramcom a tentativa de retenção de bens e exigência dopagamento de uma dívida de mil dólares correspondenteà despesa para o transporte dos mesmos; e do navioGeneral Rego que, em 1856, teve os passageirosdesembarcados em Uidá, diferentemente do previstono contrato – Lagos –, onde foram roubados seus bens,e sob pretexto de que eles eram egbás, foram enviadosem seguida ao rei do Daomé, que mandou matar todosos adultos, conservando crianças como escravas. E oúltimo exemplo apresentado por Verger é o caso doEmília, cujos passageiros também sofreram commudança de lugar de desembarque e com a retençãode bens (VERGER, 2002, p. 617).

A partir de 1789, o processo de democratizaçãodo Benin proporcionou a revalorização das chefias ditastradicionais, dos cultos vodus e das demais manifes-tações religiosas. Paradoxalmente, tal valorização daschefias tradicionais, no caso específico dos agudá,permite, ainda segundo Guran, compreender:

Como eles se inscreveram entre os principaisatores da transição entre as sociedadestradicionais e a construção de um Estadomoderno. Os agudás primeiramente foram osintermediários entre as sociedadestradicionais e a cultura ocidental, paratornarem-se logo os intérpretes dos autóctonesjunto ao poder colonial e inversamente.Misturados e imbricados com as sociedadestradicionais por meio do casamento têmdesempenhado ainda o papel deintermediários no interior dos diferentesgrupos étnicos autóctones, inscrevendo-sesempre como um dos principais atores doprocesso de construção de um Benin moderno(GURAN, 2000, p. 276).

INSERÇÃO POLÍTICA E ECONÔMICA

A Costa dos Escravos constituía-se de pequenosreinos, tendo como potência hegemônica no séculoXVIII, o reino de Oyo:

A desintegração de Oyo é de especialimportância por suas consequências na sub-região e no Brasil. O destino de Oyo foi umfator de peso na história do Daomé. Apercepção do reinado de Gezo, como umanova era nessa história não esta desvinculadado fato de ele ter libertado o país da longahegemonia de Oyo, 'proeza' conseguida nãopela força de seus exércitos, mas emdecorrência dos problemas internosenfrentados pelo império Oyo. O colapso deOyo, e suas consequências tiveram grandeimpacto nas relações entre o Brasil e a Costados Escravos. A despeito das medidasabolicionistas, a independência em relação aOyo estimulou o militarismo daomeano e crioumais oportunidades para as exportações deescravos através de Uidá, sob a supervisãode Francisco Félix de Souza (SOUMONNI,2001, p. 8).

Dessa forma, o reino de Daomé foi sedesenvolvendo e se impondo como uma potênciaregional. A partir do fim do século XVIII, início doséculo XIX, esse reino já estava suficientemente fortepara dominar os reinos vizinhos, os pequenosaldeamentos em torno do seu território e proceder àvenda dos cativos em guerra com esses povos. Enfim:

O reinado de Gezo foi de especial importânciana consolidação e no crescimento dainfluência brasileira durante o século XIX.Aliás, ele chegou ao poder em 1818 atravésde um golpe de Estado, com o auxílio de umfamoso traficante de escravos brasileiros,Francisco Félix de Souza, que costuma ser,acertadamente, visto não apenas como oancestral da família Souza da sub-região, com

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também, mais particularmente, dacomunidade afro-brasileira no Daomé(SOUMONNI, 2001, pp. 5-6).

A ascensão política do chachá Francisco Félix deSouza, personagem expressivo na história dosretornados, tem um enredo peculiar e um interessantejogo palaciano. Por um pacto feito na prisão com opríncipe Gapê e por sua posterior fuga e auxílio àascensão de Gapê como rei Gezo no reino de Daomé,Francisco Félix, também chamado de chachá de Ajudápor Alberto da Costa e Silva, tornou-se influente noreino. Combinou aristocracia local, tráfico de escravose retorno de africanos, criando condições mínimas desegurança econômica, indispensáveis à manutençãodos agudás naquela região: conciliou brancos traficantesde escravos; ex-escravos negros ali retornados sejapor ocasião da deportação do Brasil dos escravos daetnia malê devido à revolta ocorrida na Bahia em 1835;seja de outros, libertos no Brasil via aquisição daliberdade com a compra da carta de alforria ou daabolição da escravatura.

Francisco Félix de Souza é uma das figuras maisdestacadas na historiografia que trata dos traficantes deescravos, mas, como nos fala Law, a historiografia oanalisou com algumas deficiências, entre elas, apreocupação com a sua dimensão africana. Assim, oautor propõe, em seu artigo publicado na revista Topoi,não fazer um relato completo da vida de Francisco Félix,mas explorar alguns aspectos cruciais dela, tais comoas obscuridades e contradições nas fontes disponíveis.Entre as fontes estão as fontes europeias, que iluminamprincipalmente a dimensão internacional de sua carreirae as tradições orais de Ajudá, estas já trabalhadas pelahistoriografia. Como inovação, Law vai atentar-se aosdocumentos produzidos pela campanha antiescravagistabritânica, que não foram pesquisados com esse propósito(LAW, 2001, p. 12).

Law expõem as dúvidas que cercam a vida deFrancisco Félix de Souza: seu nascimento, data ecircunstâncias de suas viagens à África, local ondeinstalou e se estabeleceu, as razões por que não voltoupara o Brasil e as causas de sua ruína, entre outros

pontos. Coloca que a posição dele era essencialmentecomercial e não política (LAW, 2001, p. 18-19). Ecompleta: "a legitimidade e a autoridade da posiçãode Francisco Félix em Ajudá derivavam tanto de suasconexões europeias e internacionais, quanto de suadesignação pelo rei do Daomé – e, inicialmente, maisdaquelas do que desta" (LAW, 2001, p.19).

Essas atividades mercantis de Francisco Félix nãose realizavam apenas em Ajudá, mas se estendiam aoutros pontos africanos: "entre portos do litoral africano,incluindo lugares além da jurisdição daomeana, comoPopó Pequeno, a oeste, e Porto-Novo, Badagry eLagos, a leste. Compreendiam ainda tratos com ascolônias portuguesas na África" (LAW, 2001,p. 27).Analisando a documentação relativa à busca e àapreensão de navios negreiros pela Marinha britânica,Law percebeu que: "Enquanto as tradições locais dãoa impressão de que o Chachá era, antes de 1840, oúnico grande comerciante de escravos, os textos daépoca mencionam os nomes de outros que, provisóriaou permanentemente, lá residiam e mercadejavam."Assim, aparece, um sócio de Francisco Félix, JoaquimTeles de Menezes, "que figura em vários relatóriosbritânicos" (LAW, 2001, p. 21). Casado com uma dasfilhas de Francisco Félix, "é mencionado pela primeiravez em 1835, como o proprietário de um navio negreirointerceptado pela Marinha britânica; e posteriormente,como dono e capitão de dois outros barcos,apreendidos em 1836 e 1839" (LAW, 2001, p. 21).

Outro importante mercador durante esse períodofoi Juan José Zangronis (ou Sangron), filho de um dosprincipais comerciantes de Havana. Apresentando essemercador, Law explicita o poder da comunidade afro-brasileira em absorção de outras comunidades, no casoCuba:

Ao contrário de Menezes, Zangronis deixoudescendentes em Ajudá: um filho mestiço dele,Francisco Zangronis, aparece a visitar a cortereal em Adomei, em 1864. A família existe atéhoje, embora o seu nome se tenhaaportuguesado, Sangronio, e de seu fundador,lembrado como José Sangronio, se diga ter

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sido 'um brasileiro de origem portuguesa', emvez de espanhol ou cubano. A confusão resultaevidentemente do fato de haver a família sido,no correr do tempo, absorvida pelacomunidade brasileira (LAW, 2001, p. 22).

Entre os mercadores estava também Joaquimd'Almeida, "cuja base principal era, mais para oeste,Ágüe, em vez de Ajudá" (LAW, 2001, p. 30), e quedividiu em certa altura o mesmo espaço de Chachá."Num certo momento, Almeida conseguiu permissãodo rei Guezo para comerciar em Ajudá, e um relatoposterior vincula a quebra do monopólio de FranciscoFélix especificamente à entrada de Almeida no mercadodaquela cidade" (LAW, 2001, p. 30).

Strickrodt também destaca o papel desse traficantedurante a década de 1850:

He was the only one of a large number ofliberated slaves who settled at Agoué in theperiod and engaged in the illegal trade there.However, he was exceptional in that he wasthe only one of them who entered the overseasdimension and came to the notice of the RoyalNavy, shipping slaves himself rather than justbuying and reselling them locally on a smallscale (STRICKRODT, 2004, p. 221)

Mas o mercador que merece destaque na novageração de mercadores de escravos é Domingos JoséMartins, conhecido também por Domingo Martinez,que se sobressaiu em Cotonu. Apesar de não teralcançado a repercussão internacional de FranciscoFélix de Souza, foi repetidamente citado em ocorrênciasdo tráfico negreiro para a Bahia nos anos de 1840 e1850, principalmente com ligações com o traficanteluso-brasileiro Joaquim Pereira Marinho (LAW, 2001,p. 31). Domingo Martinez ganhou espaço principal-mente com a saída do Chachá Francisco Félix dotráfico de escravos (LAW, 2001, p. 27).

O artigo de Silke Strickrodt descortina a primeirageração de afro-brasileiros concentrando-se, principal-mente, na identificação dos traficantes de escravos que

eram ativos na região da Costa Ocidental da Áfricadurante o período pré-colonial. Assim, vai narrandoaspectos importantes como os relacionamentos comer-ciais dos principais traficantes. Traz uma lista dos nomesde escravos livres do Brasil e de Cuba que voltarampara Agoué no século XIX (STRICKRODT, 2004).

É importante notar que, na Costa dos Escravos,estava Ajudá, cuja pequena vila se originou do antigoforte português de São João Batista de Ajudá. O forte,apesar de ser um estabelecimento português, teve suaconstrução por iniciativa dos comerciantes baianos, quepagaram todos os custos, inclusive os de manutenção.Encontrava-se ligado administrativamente ao vice-reido Brasil, de onde vinha a maior parte da sua guarnição.A presença brasileira, nessa costa, ganhou um grandeimpulso a partir do estabelecimento desse forte. Depoisda independência do Brasil, o forte passou a dependerdo governador da província portuguesa de São Tomée Príncipe.

A abolição legal do tráfico no século XIX reverteupara o Brasil a influência sobre a costa escrava, pois ocomércio clandestino de escravos era mais lucrativo etambém já não havia escravos franceses e ingleses. Ocombate ao comércio escravo pelos ingleses fortaleceuos agentes do comércio estabelecidos na costa, poisera a referência para possibilitar o comércio. Os inglesespatrulhavam e prendiam navios negreiros na costaafricana; era necessário guardar e permanecer na costapor algum tempo. Enfim, a ação britânica para combatero comércio escravo estimulou outras atividadeseconômicas na costa africana. Por outro lado, ainfluência portuguesa e brasileira foi diminuída pelo papelcultural do império britânico. Em Lagos, a influênciabrasileira foi diminuída com o colonialismo inglês e oprotestantismo europeu, diferentemente de Ouidah. Aelite costeira ali foi predominantemente alfabetizada eminglês.

ETNIA E IDENTIDADE

O deslocamento de pessoas leva um choque comrelação à cultura e sua identidade; no caso doretornado, o choque é duplo. No momento doregresso, não há mais uma identificação total com seu

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espaço de origem, além do que, ele já carregadiversidades na bagagem, mesmo falando os mesmosidiomas africanos, é o que Turner chama de"identificação étnica conflitiva" (TURNER, 1995, p.89). Esse choque também se dá no receptor que nãomais reconhece o retornado como parte dos seus.Ocorreram conflitos entre alguns grupos de emigrantese as sociedades africanas locais. Nesse sentido, Turnercoloca que:

Muitos dos primeiros emigrantes afro-brasileiros que regressavam à África eram, naverdade, africanos autóctones que haviam sidocapturados por traficante de escravos eenviados ao Brasil para serem vendidos nomercado. Depois de sobreviverem à viagem,de suportar os percalços da escravidão noBrasil e de apoiar (ou não) a Revolta dosMalês, esses africanos haviam logrado aliberdade e tomado a decisão de que suasvidas seriam qualitativamente melhores sevoltassem à África. Ao retornarem, geralmentenão ao lugar geográfico exato de nascimentono interior do continente mas a um enclaveno litoral, esses africanos natos eram vistoscomo 'estrangeiros' por muitos dos africanosda costa, em parte porque eram de gruposétnicos distintos; entretanto, nos casos emretornavam à áreas mina ou nagô, eramclassificados como estrangeiros pelo fato deterem vindo do Brasil (TURNER, 1995, p. 88).

O missionário Sebastião Heber Vieira Costa, emsua viagem ao Togo e ao Benin, relata suas impressõesdiante das características predominantes na África.Comenta também sobre o sincretismo religioso e salientaque é indispensável, para conhecer o Brasil, conhecersimultaneamente a África (COSTA, 1986, p. 130).

Segundo Soumonni, o que os ex-excravos levaramdo Brasil e que constitui a herança brasileira foi, narealidade, produto de influências recíprocas. Se esselegado continua muito forte até hoje, é por que asinfluências africanas no Brasil lançaram raízes

profundas. A vasta colônia portuguesa que era o Brasilconviveu com africanos negros por mais de três séculose, nesse processo, "sua sociedade e civilização seafricanizaram" (SOUMONNI, 2001, p. 15).

Partindo da ideia de que a costa ocidental africanafoi a maior fonte para o comércio escravista transatlânticoentre os séculos XVIII e XIX, os autores Robin Law eKristin Mann em seu artigo "West África in the AtlanticCommunity: the case of the Save Coast", tratam nãosó do comércio, mas também de como ele influenciouas comunidades costeiras. Destacam Ouidah e Lagoscomo os principais portos de embarcação de escravose de elo ligando ao interior da África, que fornecia osescravos. Contudo, constatam que essa região não seformou somente com a saída de escravos, mas tambémcom a interação com as colônias receptoras e com oretorno de escravos; interação que foi tanto econômicaquanto cultural. O artigo explora as variações nessasinterações com uma interpretação com base empíricade relatos da costa escravista.

Os autores iniciam o artigo explorando aHistoriografia e indicam os principais autores e seusposicionamentos teóricos que se preocuparam com atemática: Pierre Verge e as "InterconexõesAfrobrasileiras", Bernard Bailyn e a "História Atlântica",Paul Gibroy e o "Atlântico Negro" e os negros agentes,Ira Berlin e os "Crioulos do Atlântico", E. Lovejoy: e a"Comunidade Atlântica".

Law e Mann consideram um exagero de Berlin oposicionamento quanto à extensão da criolizaçãocultural nas comunidades da costa escravista em tempoprecoce, como também o número significativo de"crioulos" entre exportações costeiras. Mas consideramfundamental o sistema conceitual que Berlindesenvolveu, da cultura cosmopolita, unindo portosmarítimos em todos os lados do litoral atlântico. Quantoao posicionamento de Lovejoy, dizem ser adeptosdessa visão que engloba ligações e influências culturaisrecíprocas, por exemplo, entre Brasil e África, atravésdo estudo do desenvolvimento histórico dascomunidades de pessoas como parte de relaçõesmarítimas e práticas culturais que reduziram asdiferenças entre o Atlântico. E é a partir desse conceito

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ROCHA, I.P.

vão trabalhar o desenvolvimento e manutenção devínculos culturais, sociais e comerciais contínuos deum lado a outro do Atlântico.

Escravos e ex-escravos criaram tanto um mercadona América de produtos africanos, quanto osretornados criaram na África um mercado de produtosda América. Os autores afirmam que o número deindivíduos retornados é substancial para se concluirque influíram na formação cultural da Costa ocidentalda África. Funcionários e representantes dos estadoseuropeus na África constituíam família ali, enviavamseus filhos para estudar na Europa ou na América, estesvoltavam com uma bagagem cultural diversificada.

A partir da tese de doutorado em antropologiadefendida junto a École des Hautes Etudes en SciencesSociales na França, em 1996, Milton Guran escreveuartigos sobre a formação da identidade afro-brasileirada comunidade dos agudás. Para a realização de suatese o autor optou por utilizar a fotografia comoinstrumento de pesquisa em ciências sociais,principalmente no tocante ao seu uso no estudo einvestigação da formação da identidade cultural dosagudás. Guran fala de uma espécie de colonizaçãoinformal do Brasil na África, dada a forte presençabrasileira em Benin.

Elisée Soumonni, em Some Reflections on theBrazilian Legacy in Dahomey, faz uma reflexão sobreo estabelecimento da herança brasileira em Dahomeye seu significado hoje na República de Benin. Assim,procurou entender o significado do impacto do Brasilna perspectiva histórica, levando em consideração opapel dado à comunidade afro-brasileira durante oséculo XIX. Aponta os vestígios do patrimônio atesta-dos nos nomes de família, tradições culturais, arquite-tura, entre outros aspectos.

Procurando conceitualização da problemática quea realidade dos "afro-brasileiros" engloba, OlabiyiBabalola Yai t rabalha com o conceito de"lusotropicalismo" em The Identity, Contribution, andIdeology of the Aguda (Afro-Brazilians) of the Gulfof Benin: A Reinterpretation. O conceito "lusotropi-calismo" é considerado um arcabouço para poderenfocar traços específicos mais claramente.

Matory, em artigo que se preocupa com grupos deafricanos que vão para Serra Leoa, onde são educadospelos missionários e que voltam para Lagos paratransformar o ioruba em uma língua escrita, chama aatenção que: "Os chamados 'retornados' tiveram deimaginar, por meio de uma construção seletiva e criativa,a história de onde e do que era sua 'casa', ou 'lar'."Dessa forma, argumenta que "que a imaginação arespeito dos limites das nações dispersas e da casagerou muitas vezes novas identidades étnicas enacionais na África" (MATORY, 1999, p.59). Apostura de Matory é que os retornos foram importantesna formação de novas identidades na África, que seconstituíam através da correlação transatlântica, ouseja, do contato entre as várias Áfricas e o Brasil(MATORY, 1999, pp. 63-64).

Assim, destaca que, "entre 1820 e a década de 30,os jejes brasileiros não voltavam simplesmente para aÁfrica. Eles iam e vinham fazer comércio eperegrinação, e alguns dos mais ricos afro-brasileiroscirculavam entre o Brasil, Cuba e o Golfo da Guiné"(MATORY, 1999, p.66). Matory discorda da visãotradicional que coloca o transnacionalismo ouglobalização como algo novo, antagônico à naçãoterritorial e aponta para um transnacionalismo querealimenta a ideia de nação territorial (MATORY, 1999,pp.70-71).

Finalizo com as palavras de Alberto da Costa eSilva: "O Brasil é um país extraordinariamenteafricanizado (SILVA, 1994, p. 39)." Destaca "o quantohá de africanos nos gestos, nas maneiras de ser e deviver e no sentimento estético do brasileiro. Por suavez, em toda a outra costa atlântica podem-sefacilmente reconhecer os brasileirismos" (SILVA, 1994,pp. 39-40). Essa presença está nas comidas, "danças,tradições, técnicas de trabalho, instrumentos de música,palavras e comportamentos sociais brasileirosinsinuaram-se no dia-a-dia africano" (SILVA, 1994,p. 40). No entanto, "é comum que lá se ignore quecerto prato ou determinado costume veio do Brasil.Como, entre nós, esquecemos o quanto nossa vidaestá impregnada de África" (SILVA, 1994, p. 40). Ouseja: "O escravo ficou dentro de todos nós, qualquer

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que seja a nossa origem. (...). Com ou sem remorsos,a escravidão é o processo mais longo e mais importantede nossa história (SILVA, 1994, p. 40)."

CONCLUSÃO

A historiografia sobre a diáspora africana a partirda escravidão no Brasil avançou no sentido de concluirque houve uma inter-relação entre os continentes, maisdo que o fornecimento de força de trabalho. Aspesquisas revelam cada vez mais a construção deidentidades resultante do processo escravocrata.

Excluídos da sociedade africana ao serem vendidoscomo escravos, os retornados, a partir de suaexperiência de vida na própria escravatura, voltaramcomo hábeis artesãos e instruídos comerciantes para amesma sociedade que os havia penalizado. O processode reinserção social desses retornados na sociedade queos havia excluído é marcado pela união de antigosescravos aos negreiros que os haviam vendido para,juntos, constituírem a classe social dominante daeconomia de toda uma região, e aparece como um dosmais peculiares fenômenos de hierarquia formada a partirda diáspora africana.

O desafio principal dos retornados afro-brasileirosfoi preservar, e pretendiam preservar, os elementosculturais adquiridos no Brasil frente à cultura localafricana – o que poderia ocorrer com algum tipo deresistência. Mas o resultado foi extremamente positivo,pois o apego ao brasileirismo transformou-se numelemento diferenciador e motor da identidade dosretornados e caracterizou-se como um elemento útil àsobrevivência.

Essa interação é destacada pela habilidade que osretornados tinham para a atividade comercial, graças,possivelmente, à necessidade de sobreviverem emambientes de oposição de valores e costumes. Graçastambém ao fato de serem eram originários dos principaispontos de comércio no Brasil com a costa africanareceptora de ex-cativos. A historiografia explora abiografia desses afro-brasileiros, comerciantes deescravos e influentes na África, como Francisco Félixde Souza, para compreender o papel dos retornadosna história da África e da colonização europeia.

Hoje há elementos comuns da religiosidade, dasartes, dos costumes, dos valores, etc., presentes dosdois lados do Atlântico, tanto levados do Brasil para aÁfrica quanto da África para o Brasil.

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