historiografia em debate

Upload: lucas-aguiar

Post on 04-Apr-2018

228 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    1/24

    Historiografia em debate: a escravido colonial nas obras de

    Jacob Gorender, Ktia Mattoso, Joo Jos Reis e Luiz Felipe

    de Alencastro

    Jos P. S. Jnior

    1. Introduo

    A historiografia brasileira j produziu vrias obras sobre a escravido, cada qualconstruda de acordo com a tendncia e a metodologia adotadas por seus autores. Em1933, Gilberto Freyre lanava Casa-Grande e Senzala, obra que caracterizava a

    escravido como um sistema paternalista na relao entre senhores e escravos,evidenciada na grande miscigenao ocorrida no pas. Esta obra de Freyre defundamental importncia para o estudo historiogrfico sobre a escravido porque, almde ter sido inovadora na poca, posteriormente veio representar um dos pontos centraisno debate entre os historiadores que negam e os que compactuam com as concepesfreyrianas.

    Tendo em vista o estudo historiogrfico, este trabalho monogrfico analisahistoricamente o desenvolvimento dos estudos relativos escravido no Brasil, fazendo

    referncias a pontos de vista que se divergem ou que se compactuam, se rompem ou secompletam, se negam, mas, por fim, enriquecem o entendimento histrico. Sendo assim, mister o entendimento dos instrumentos metodolgicos para a compreenso das obrasque tambm so construdas historicamente em espao e perodo determinados.

    A nossa anlise ento, mostra a dialtica existente entre as construes historiogrficasque, ao nosso ver, contribui para o entendimento histrico com a multiplicao deenfoques presentes nas diversificadas vertentes, que so apoiadas nas mais variadasfontes. A relao entre micro e macro-histria est no germe da discusso entre oMarxismo e a Nova Histria. Estamos to habituados a ver a histria como um produtode categorias que s vezes nos esquecemos que expresses como Capitalismo,Socialismo, Evangelizao, Escravatura e outras abstraes so formadas por homens emulheres que tambm possuem as suas individualidades, embora estejam integradas aocontexto.

    No primeiro captulo apresentaremos um histrico dos estudos sobre a escravido noBrasil, abordando desde as pesquisas de Gilberto Freyre at os estudos de historiadoresmais recentes, os quais sero o foco central de nossa anlise. Para tanto, utilizamosanlises historiogrficas de autores como Suely Robles Reis Queirz e Ciro Flamarion

    Cardoso para levantar dados gerais sobre o estudo de tal tema.

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    2/24

    J no segundo, captulo abordamos a influncia do Marxismo na construo doconhecimento histrico, primeiramente, por meio da Escola Paulista que teve aparticipao de pesquisadores como Florestan Fernandes e Emlia Viotti da Costa. Emum segundo momento, temos a influncia marxista de forma mais marcante naabordagem de Jacob Gorender a respeito do Modo de Produo Escravista.

    No terceiro e ltimo captulo, analisamos a penetrao da Nova Histria nahistoriografia brasileira com a multiplicao de fontes e objetos histricos para osestudos sobre a escravido no Brasil. Esses novos enfoques so observados por estamonografia, principalmente, nas obras de Ktia Mattoso e Joo Jos Reis. Alm dessespesquisadores, verificamos tambm a tese do professor Luiz Felipe de Alencastro sobrea influncia da relao Brasil-frica para formao social e econmica do Brasil.

    2. A escravido no Brasil: Histria e Historiografia2.1.O mito da Democracia Racial sob suspeita

    Em sua obra O Escravismo Colonial (1978), Jacob Gorender expe a escravido noBrasil, no como uma sucesso de eventos marcados pela cronologia, mas como umsistema econmico-social fundamentado no modo-de-produo escravista. J em AEscravido Reabilitada (1990), Gorender analisa as teses que surgiram na dcada de 80,

    que, conforme o autor, possuem carter neopaternalista, ao defenderem que o escravoteria um certo espao de negociao com os senhores. Para Jacob Gorender, as obras deKtia Mattoso e Slvia Lara, por exemplo, resgataram a concepo de escravidobenemerente que outrora Gilberto Freyre j havia edificado por meio de Casa-grande eSenzala (1933). Freyre argumentou contra a teoria racista de Oliveira Vianna e feznotveis descobertas sobre as razes africanas da cultura brasileira, mrito a respeito doqual a crtica de esquerda tem sido omissa. Mas isto veio conjugado a duas tesesfundamentais: a do carter patriarcal excepcionalmente benigno da escravido luso-brasileira e a da vigncia da democracia racial em nossa sociedade.

    O livro de Gilberto Freyre no foi contestado imediatamente aps a sua publicao nemno Brasil nem no exterior onde, inclusive, obteve repercusso significativa, tendo omito da democracia racial brasileira se alastrado pelo mundo acadmico, visto que oestudo da escravido negra no Brasil pedra basilar para a compreenso do trfico deescravos africanos dentro do processo de acumulao de capital. Porm, nos anos 50 e60 surgiram vrias teses que se opuseram frontalmente concepo de relaobenevolente entre senhores e cativos defendida por Freyre. Dentre esses queapresentaram teses refutando a concepo freyriana, podemos destacar FlorestanFernandes, Octvio Ianni, Emlia Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso dentre

    outros.

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    3/24

    Para entender essa mudana de postura no mundo acadmico, temos que ressaltar que asdcadas de 50 e 60, o mundo estava em plena Guerra Fria. Segundo Leandro Konder(2000, p.358) , as [...] mudanas que ocorriam na sociedade brasileira, nos costumes,na vida cultural, nas atividades polticas, no quotidiano da populao e nas relaes como mundo l fora (no exterior), no podiam deixar de influir nas modificaes de pensara histria.. Os intelectuais durante as dcadas de 50 e 60 acompanhavam as mudanasno contexto nacional e mundial, propondo vrias revises em concepes edificadas nahistria brasileira. O estudo sobre a escravido foi um exemplo disso.

    Outra ressalva fundamental para entender esse surto de mudana no tocante aodesenvolvimento de pesquisas universitrias, que a partir da dcada de 50, emalgumas universidades houve uma ampliao de autonomia e renovaes em suasestruturas de pesquisa. Florestan Fernandes passou a desenvolver pesquisas em relao

    situao do negro na sociedade brasileira, propondo revises a respeito do racismo noBrasil e ao carter da escravido negra que, durante trs centenas de anos, perdurou nasociedade brasileira. Seguindo a linha interpretativa de Fernandes, Fernando HenriqueCardoso e Octvio Ianni levantaram dados sobre a situao dos negros no Brasil. Dessaspesquisas surgiram duas obras de fundamental importncia na historiografia sobre onegro no Brasil. So elas A Metamorfose do Escravo (1962) de Octvio Ianni eCapitalismo e Escravido (1962) de Fernando Henrique Cardoso.

    Cabe salientar, que a influncia do pensamento marxista era evidente, visto que as

    idias de Marx eram cada vez mais estudadas nas universidades brasileiras, dentre asquais destaca-se a Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de So Paulo. Destaforma, o marxismo foi utilizado por vrios autores da gerao de 50 e 60 como uminstrumento metodolgico de anlise. Para esses autores, o sistema escravista brasileirofoi fundamental no contexto de acumulao de capital. Ponto de vista claramenteinfluenciado pelo pensamento de Karl Marx. Esses intelectuais, foram responsveis porrefutar o mito da democracia racial no Brasil.

    Para a compreenso do estgio recente da historiografia brasileira, misterremontarmos ao desenvolvimento das pesquisas universitrias no Brasil. O historiadorJos Roberto do Amaral Lapa, ao analisar a produo historiogrfica brasileira dos anos70 e incio dos 80, chegou concluso insatisfatria sobre essa produo. Aconsolidao dos cursos de ps-graduao em histria apenas viria nos anos 80, e comela tambm viria o que Carlos Fico e Ronald Polito chamam de evoluo significativana produo historiogrfica com a [...] multiplicao de enfoques tericos emetodolgicos (FICO; POLITO, 1996, p.194).

    Ao passo que a produo historiogrfica brasileira avanava nas pesquisas de temasrelacionados Histria do Brasil, em contrapartida o interesse por temas de histria no

    brasileira sofreu decadncia significativa entre os mestrandos e doutorandos. Porm, apartir dos anos 80 a produo de teses e dissertaes deu grande salto. Para se ter uma

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    4/24

    idia, entre 1973 e 1979, o total de dissertaes de mestrado foi de 275. Entre 1980 e1989 este nmero elevou-se para 665. E apenas entre 1990 e 1993 foram defendidascerca de 350 dissertaes. (FICO; POLITO, 1996, p.194). Dentre essas teses edissertaes, um dos temas rememorados foi a escravido negra no Brasil,principalmente pelo centenrio da Abolio da Escravatura ocorrido em 1988.

    2.2. A penetrao da Nova Histria na historiografia brasileira

    Assim, como a chamada Escola Paulista refutou o pensamento de Gilberto Freyre emrelao escravido, Jacob Gorender analisou e criticou a gerao de pesquisadores daescravido brasileira, dentre os quais, ele caracterizou alguns como resgatadores dopensamento freyriano. claro que devemos salientar, que nos anos 80, o marxismo, queoutrora tivera sido o catalisador que embasou as revises sobre a histria da escravido

    no Brasil, estava desgastado e era alvo de crticas por parte de pesquisadores quepassaram a refutar, naquele momento, o pensamento de Marx. Nota-se, a partir dos anos80, que o papel se inverteu: o marxismo que atacava anteriormente, naquele momentopassou a ser vtima de crticas de autores que, de certa forma, tambm passavam a tercontato com a Nova Histria que passou a influenciar cada vez mais no contexto depesquisa universitria.

    A Nova Histria tardou em penetrar na historiografia brasileira, entrando na vidaacadmica brasileira de fato apenas nos anos 80. Conforme Ronaldo Vainfas, isso se

    deve ao boom editorial ocorrido no Brasil naquela poca com a traduo de vasta obraestrangeira e publicao de vrias teses universitrias j incorporadas Nova Histria.

    A ausncia do debate sobre a Nova Histria no Brasil durante os anos 70 explicvelpelo fato que os militares estavam no auge de seu governo. Agora, se por um lado aditadura causava inibio no mbito da Nova Histria, as idias marxistas serviramcomo resistncia intelectual, produzindo obras ora vulgares ora mais sofisticadas, tendoem vista que o movimento operrio foi um dos temas mais abordados por essa gerao.

    Segundo Ronaldo Vainfas:

    comum dizer-se, entre os que pesquisam a histria cultural no Brasil, que Freyre eSrgio Buarque faziam histria das mentalidades sem o saber, frmula bem-humoradade reconhecer o pioneirismo de ambos no tratamento de certos temas de nossa histriaque s a custo, e graas penetrao da Nova Histria na universidade brasileirapassaram a ser valorizados pelos pesquisadores. (VAINFAS, 1997, p.156).

    No caso de Gilberto Freyre, Casa-grande e Senzala (1933) uma obra condenvel emvrios aspectos, porm inovadora em vrios outros como nos estudos das relaes

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    5/24

    sexuais, caractersticas do cotidiano nos engenhos e religiosidade popular. J em SrgioBuarque de Holanda, encontramos Razes do Brasil (1936) que aborda temas como oesprito de homem cordial na formao do Brasil; e ainda temos tambm Viso doParaso (1956) que, pioneiramente, trabalha o imaginrio do descobrimento ibrico.

    A Nova Histria s veio se inserir mesmo na historiografia brasileira a partir dos anos80 e, conforme Vainfas (1997, p.160), [...] o livro que talvez tenha sinalizado a

    penetrao da Nova Histria foi o de Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra deSanta Cruz (1986), obra sobre as prticas mgicas e a feitiaria no Brasil colnia.

    Posteriormente, sobre a histria da sexualidade e das moralidades, dentre outros, temosTrpico dos Pecados (1989) do prprio Ronaldo Vainfas; Os Prazeres da Noite(1991) de Margareth Rago; e, ainda, Teatro dos Vcios (1993) de Emmanuel deArajo.

    Outro tema que foi, e est sendo, muito visitado pela Histria Cultural no Brasil aescravido. Segundo Vainfas:

    O livro precursor talvez tenha sido Ser Escravo no Brasil (1982) de Ktia Mattoso,texto que levantou a possibilidade de acordos entre senhores e escravos no cotidiano daescravido, pondo abaixo a tese de que a escravido e violncia fsica eramsinnimos.(VAINFAS, 1997, p.161).

    Seguindo a linha de Mattoso, entre vrios outros, temos Campos de Violncia (1988)de Slvia Lara e Vises da Liberdade (1990) de Sidney Chalhold.

    Todos esses autores, os quais podemos chamar de revisionistas da escravido, sorefutados por Jacob Gorender em sua obra A Escravido Reabilitada (1990), na qual oautor analisa as teses recentes sobre a escravido negra no Brasil que, segundo o autor,estariam resgatando a concepo de Gilberto Freyre na medida em que amenizavam ouextinguiam a relao entre: escravido e violncia fsica e/ou mental.

    Podemos dizer, que a partir do final dos anos 70 e incio dos 80, desenvolve-se umleque maior de objetos de estudos que proporcionaram anlises diferentes de assuntosda histria brasileira. Segundo Carlos Fico e Ronald Polito:

    [...] forte aspecto unificante destes 20 anos seria, portanto, a multiplicao progressivade objetos, problemas e enfoques historiogrficos, mas tambm de espaosinstitucionais e pblicos de atuao deste grupo de especialistas. (FICO, POLITO, 1996,

    p.205)

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    6/24

    Tendo em vista o desenvolvimento historiogrfico sobre a escravido negra no Brasilacima exposto, analisaremos, basicamente, as idias de quatro autores recentes queescreveram sobre o sistema escravista brasileiro ora formulando anlises novas orareforando aspectos j edificados por outros autores.

    Em Jacob Gorender, analisaremos A Escravido Reabilitada, obra em que o autorexamina as teses surgidas na dcada de 80, considerando algumas como construtoras deuma nova face da escravido brasileira, quando, segundo Gorender, (re)desenham ocarter paternalista da relao entre senhores e cativos. Apesar da nossa anlisefocalizar como obra central A Escravido Reabilitada, no poderemos deixar de fazerreferncias ao livro O Escravismo Colnial.

    O livro Ser Escravo no Brasil, de Ktia Mattoso, tambm servir de fonte poisrepresenta uma tendncia que surgiu na dcada de 80, fortemente influenciada pelaNova Histria. O escravismo na Bahia serviu de base para a pesquisa de Mattoso que,utilizou, alm de enfoques da Nova Histria, instrumentos inovadores como ademografia, por exemplo.

    Outra obra que servir de anlise para este trabalho ser Negociao e Conflito AResistncia Negra no Brasil Escravista, de Joo Jos Reis e Eduardo Silva. Os autoresneste livro refutam a concepo maniquesta de como os escravos negros tm sido

    vistos por historiadores que, ora os rotulam como heris ora os consideram comovtimas, mas sempre como objetos.

    Por fim, analisaremos uma obra publicada em 2000 que aborda a formao do Brasilcom base em um sistema escravista e sua relao com a frica. Esta a idia do

    professor Luiz Felipe de Alencastro que se encontra na obra O Trato dos Viventes Formao do Brasil no Atlntico Sul. Neste livro, o autor mostra a relao ntima entrea Amrica portuguesa e as colnias portuguesas na frica, que se completavam num ssistema colonial de explorao, no qual o Brasil foi construdo.

    3. O marxismo aplicado nas Cincias Sociais3.1.A Escola Paulista e a ampliao da pesquisa histrica

    Como j foi dito, o mito da democracia racial edificado em Casa-Grande e Senzala deGilberto Freyre comeou a ser refutado diametralmente a partir das dcadas de 50 e 60,principalmente por intelectuais da Universidade de So Paulo. Para compreender essa

    ampliao das pesquisas acadmicas, mister entender o contexto que proporcionou tais

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    7/24

    transformaes. A fora-motriz dessa mudana se deu sob a influncia terico-metodolgica do marxismo.

    Conforme Leandro Konder, o ncleo de estudos do pensamento de Marx girava emtorno do socilogo Florestan Fernandes, que foi um dos pioneiros a utilizar o marxismocomo instrumento metodolgico de anlise. Porm, devemos fazer uma ressalva:Tratava-se [...] de um marxismo que no coincidia com o do PCB (KONDER, 2000,p. 371).

    Fernandes teve contato com o marxismo na sua juventude quando participou de grupotrotskista clandestino na luta contra o Estado Novo. Segundo Jacob Gorender:

    A atividade de Florestan Fernandes como socilogo desenvolvida nas funes de

    professor, terico e pesquisador ficou marcada pela polarizao entre as atraes domarxismo, enquanto doutrina de militncia revolucionria, e a sociologia, enquantodisciplina acadmica. (GORENDER, 1995, p. 32)

    nesse contexto dos anos 50 e 60 e sob a orientao metodolgica de Fernandes queformou-se um grupo de estudos sobre o O Capital de Karl Marx, do qual saramvrias pesquisas acadmicas de autores como Fernando Henrique Cardoso, OctvioIanni e Emlia Viotti. Esses trs autores desenvolveram teses que refutaram

    profundamente o conceito benemerente de Freyre.

    O livro de Octvio Ianni As Metamorfoses do Escravo foi publicada em 1962,apresentando uma pesquisa sobre o sistema escravista na cidade de Curitiba no Paran.A preocupao de Ianni se deu no tocante formao social do Brasil. Para ele, aescravatura no Brasil se desenvolveu de uma forma totalizante. A economia, as leis, opoder, as relaes scio-culturais e, enfim, o comportamento humano brasileiro foierigido sobre um sistema de trabalho escravista. Segundo Ianni, esta padronizao digna de uma sociedade de castas.

    Nessa pesquisa, o autor mostra que o escravo teria impregnado no apenas a estruturaeconmica, dando-lhe o sentido fundamental, mas tambm a composio demogrfica eo sistema scio-cultural. Como o autor utilizou o mtodo dialtico de Karl Marx comoinstrumento de anlise, a concepo de relao paternal entre senhores e escravosdefendida por Gilberto Freyre substituda pela luta de classes de dominantes por umlado e dominados por outro. Segundo o prprio Ianni:

    A anlise dialtica permite explicar as mltiplas manifestaes da conscincia social das

    diversas camadas de um sistema estratificado, bem como as suas expresses grupais ou

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    8/24

    individuais, em termos do modo pelo qual as pessoas esto inseridas no sistema econforme concebem-se a si mesmas e atuam socialmente.(IANNI, 1962, p.21)

    Nesta obra, nota-se, que nos anos 60 j se pensava em um modo de produo peculiarpara caracterizar o sistema escravista. Posteriormente, em fins da dcada de 70, JacobGorender construir essa concepo por meio de O Escravismo Colnial (1978), obrade profunda fundamentao terica. No entanto, j na dcada de 1960, tanto OctvioIanni, como outros discpulos de Florestan Fernandes, deram aos fatores econmicoso principal motivo para a utilizao da mo-de-obra escrava no Novo Mundo. ParaIanni, no foram os fatores scio-culturais ou tnico-sociais que definiram a utilizaode mo-de-obra cativa tanto em Curitiba quanto em toda a colnia. Antes de mais nada,teria sido os requisitos econmicos (carncia de mo-de-obra europia ou nativa, capitalobtido no trfico de escravos, etc) os responsveis primordiais por tal definio.

    Tambm na dcada de 1960 foi publicada a obra Da Senzala Colnia de EmliaViotti da Costa, que fez parte dos intelectuais da USP influenciados pela orientao deFlorestan Fernandes. Neste livro, a autora analisa a formao social brasileira marcadapela mo-de-obra cativa durante os trs primeiros sculos de colonizao no Brasil.Segundo Viotti:

    A escravido marcou os destinos de nossa sociedade. Seus traos ficaram indelveis na

    herana que nos legaram a cultura negra e as condies sociais nascidas do regime daescravido.(COSTA, 1989, p.13)

    A autora, em prefcio da segunda edio, disse que o livro pretendia ser mais do que umexerccio universitrio, e de fato, a obra de Viotti ultrapassou a tarefa de ser um simplestrabalho limitado s obrigaes acadmicas. Da Senzala Colnia utilizou umametodologia que, inclusive, transcende s explicaes meramente econmicas dadastanto utilizao da mo-de-obra escrava quanto aos motivos que levaram abolio daescravatura.

    No que tange abolio, Viotti aborda, alm das transformaes no mbito econmicono decorrer do sculo XIX, vrios outros fatores, tanto internos como externos, quepermearam os discursos abolicionistas. As rivalidades poltico-partidrias e a ideologiapr direitos humanos so exemplos da explanao da autora. Porm, um ponto desemelhana entre as idias de outros autores da Escola Paulista e a anlise de Viotti apresena da dialtica marxista em sua metodologia analtica. Sobre a utilizao dadialtica para analisar a abolio Viotti comenta: Portanto, esta perspectiva pareceu-mea melhor maneira de compreender o processo histrico e apanh-lo em suas mltiplas

    dimenses, isto , apresent-lo na sua dialtica (COSTA, 1989, p.13).

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    9/24

    3.2. Modo de Produo e Formao Social

    No incio de seu livro O Escravismo Colnial, Jacob Gorender diz que a histria daescravatura no Brasil j havia sido pesquisada por vrios historiadores, dos quais amaioria concordava que a extino do sistema escravista significou um divisor de guasna Histria do Brasil, o que quer dizer que a escravido tem papel fundamental paracompreenso da histria brasileira. Entretanto, para Gorender, a escravido no estavasendo analisada com a especificidade e profundidade com que o sistema escravocratadeve ser entendido. Nas obras de Gilberto Freyre e Oliveira Vianna, o enfoque foi opatriarcalismo dos senhores de escravos. Posteriormente, as teses de Nelson WerneckSodr e Alberto Passos Guimares, por exemplo, trouxeram para o primeiro plano anfase dada ao latifndio. Na obra de Roberto Simonsen, o foco de anlise teria sido os

    ciclos de produo da economia brasileira.

    Seguindo em sua anlise interpretativa, Gorender diz que houve um salto qualitativo emrelao s obras anteriores em Formao do Brasil Contemporneo de Caio PradoJnior. Em seus comentrios, Gorender observa que:

    Ao invs de tomar os ciclos dos produtos de exportao como pocas ou sistemaseconmicos, Caio Prado Jnior descobriu neles manifestaes seqenciais de algo mais

    profundo, de uma realidade permanente e imanente a estrutura exportadora daeconomia colonial. (GORENDER, 1980, p.17)

    Ao passo que as teorias marxistas penetravam mais na historiografia brasileira, a relaoentre senhores e escravos passou a ser entendida como uma relao entre empresrioscoloniais e mo-de-obra compulsria no sistema econmico agro-exportador.Pioneiramente, alguns intelectuais da dcada de 1960, como Fernando HenriqueCardoso e Fernando Novais, explicavam a escravido dentro do modo de produocapitalista. Entretanto, Gorender defende que as relaes de produo da economiacolonial teriam de ser estudadas de dentro para fora. A partir dessa inovao em relaos teses anteriores, ele prope um estudo novo que ele denomina de modo de produoescravista.

    A respeito do modo de produo no se compreende apenas a produo propriamentedita de bens materiais, porm, por igual, sua distribuio , circulao e consumo. Ento,o modo de produo seria um sistema orgnico-produtivo composto de vrias partesdistintas que formam um todo. Temos, ainda, de salientar, que duas categorias sooriginrias do modo de produo: as relaes de produo e as foras produtivas. A

    primeira consiste nas relaes entre os homens e a segunda so os meios pelos quais aproduo efetivada. Com base nesta breve explicao, conclumos que, para entender

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    10/24

    a formao social de determinada sociedade, do ponto de vista marxista, fundamentalcompreender o modo de produo que lhe serve de base. Assim, o objeto de estudo deO Escravismo Colonial o modo de produo escravista e a formao social oriundodele.

    Segundo Gorender, a priori, o estudioso que pretende analisar o escravismo colonial,encontrar o seguinte problema: como se deu o confronto entre conquistadores econquistados no sculo XVI em terras que viriam a se tornar o Brasil ? Para explicarisso, Gorender recorre explanao de Marx:

    O povo conquistador submete o povo conquistado ao seu prprio modo de produo(por exemplo, os ingleses neste sculo na Irlanda e, em parte, na ndia); ou ele deixasubsistir o antigo modo de produo e se satisfaz com um tributo (por exemplo, os

    turcos e os romanos); ou ento se produz uma ao recproca que d nascimento a umaforma nova, a uma sntese (em parte, nas conquistas germnicas). (GORENDER, 1980,p.53)

    Para Gorender, o escravismo colonial no Brasil no concebvel por nenhuma das trspossibilidades expostas por Marx. Isso, por se tratar de um modo de produohistoricamente novo com caractersticas especficas e distintas dos modelospreexistentes. Por isso, ele ainda ressalta que o historiador deve se empenhar a fundo no

    estudo da economia poltica do modo de produo escravista para no ser tentado poranalogias simplistas e anacronismos histricos. Segundo ele, ... tentador equiparar oescravismo colonial com o capitalismo e isto nos conduz a um beco sem sada...(GORENDER, 1980, p.58).

    Tendo como base as explicaes acima descritas, Jacob Gorender busca analisar oescravismo colonial ao nvel categorial-sistemtico, buscando o conhecimento histricoem sua totalidade. E, com isso, segundo ele, seria possvel analisar a formao social noBrasil escravista. Essa busca de entendimento da escravido em sua totalidade sistmicaincomodou alguns historiadores que pesquisaram a escravido nas duas ltimas dcadasdo sculo XX, como veremos no prximo captulo.

    A escravido por si s no indica um modo de produo. Porm, quando essa produopassa a ser produtiva, fundamental e estvel nas relaes de produo, ela d lugar adois modos de produo diferenciados: o escravismo patriarcal, caracterizado por umaeconomia predominantemente natural; e o escravismo colonial, que se orienta nosentido da produo de bens comerciveis.

    Combatendo profundamente os conceitos paternalistas freyrianos acerca da relao

    senhor-cativo, Gorender defende que a caracterstica mais essencial no ser escravoreside na condio de ser propriedade de outra pessoa. Esta condio se encontra

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    11/24

    conjugada com outro conceito: a sujeio pessoal. Apoiado nas idias de Aristteles eMontesquieu, Jacob Gorender afirma que o conceito de escravido se embasa nasujeio de um ser humano outrem. Os anseios, bens e o trabalho do cativo, portanto,seriam totalmente pertencentes ao seu proprietrio. Essa idia de sujeio faz com que oconceito de escravido passe de carter brando freyriano ao conceito violento abordadopelos marxistas.

    O cativo na sua condio de propriedade uma coisa. Entretanto, ao mesmo tempo que coisa pessoa, pois pertence espcie humana. Sendo assim, estamos diante de umacontradio: coisa versus homem. Antes mesmo desta contradio fazer parte dosdiscursos historiogrficos, ela j era exteriorizada pelos escravos por meio de suicdios,assassinatos de seus senhores, fugas e rebelies. Ento, a sujeio pessoal dos escravosno deve ser confundida com acomodao dos escravos perante o sistema escravista.Para Gorender, escravo, trabalho e punio so termos indissociveis no mbito

    escravista colonial. Sendo assim, como acomodar com tal violncia ?

    Para concluirmos nossa anlise das teorias contidas em O Escravismo Colonial,devemos salientar que, Gorender, alm de refutar as concepes freyrianas, ele rompetambm com historiadores marxistas, como Nelson Werneck Sodr, por exemplo, quetentaram aplicar, de forma esttica, as teorias marxistas na anlise do sistema escravistano Brasil(1). Diferentemente de Sodr, Jacob Gorender expe, em sua obra, que aescravido colonial edificou um modo de produo nico e especfico, em tempo eespao determinados.

    3.2.Escravido: o debate reabilitado

    Ao passo que o centenrio da abolio da escravatura - 13 de maio de 1988 - seaproximava, o debate acerca de sua significao se acirrava, crescendo o interesse peloestudo sobre a escravido no Brasil, com a publicao de vrias pesquisas histricas a

    partir da dcada de 1980, apresentando enfoques novos sobre o tema. Em AEscravido Reabilitada (1990), Jacob Gorender analisou e refutou vrios historiadoresdessa nova gerao, considerando-os resgatadores das concepes freyrianas.

    Na dcada de 1980 so publicadas algumas pesquisas de Ktia Mattoso e de StuartSchwartz, por exemplo que estariam negando a coisificao a que os escravosestariam submetidos dentro do sistema. O binmio utilizado por Stuart Schwartz,resistncia-acomodao, estaria retratando a idia desses pesquisadores que, segundoJacob Gorender, estariam propondo uma relao entre senhores e escravos em que osltimos teriam uma certa autonomia para agir atravs de resistncias para, aps teremsuas reivindicaes atendidas, se acomodarem confortavelmente diante do sistema.

    Para Gorender, a maior influncia externa para esses historiadores teria vindo do norte-americano Eugene Genovese. Um dos historiadores influenciados pelo autor norte-

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    12/24

    americano teria sido Joo Jos Reis, cujo trabalho recebeu o seguinte comentrio deGorender:

    J. J. Reis foi ao ponto de afirmar que os escravos de ganho de Salvador, uma vez quepodiam marcar o tempo de trabalho segundo critrio pessoal, parece que no lhesconvinha trocar a escravido pura pela escravido assalariada. O historiador noapresenta nenhum caso concreto de indivduo to amoroso da escravido que apreferisse liberdade, mesmo para ser escravo assalariado. J no se trata de histria,porm de fico. Porque o escravo de ganho, uma vez livre, conquistava desde logo odireito de ficar com a renda antes obrigatoriamente entregue ao senhor. O que sabemosde concreto que escravos de ganho forcejavam at o limite das energias para juntar odinheiro exigido pela alforria. (GORENDER, 1990, p.22).

    Esta a dura crtica de Gorender acerca das pesquisas de Reis, apesar de reconhecer aimportncia das anlises feitas pelo historiador baiano sobre a Revolta dos Mals.

    Seguindo as crticas analticas, ele ainda afirma que a historiografia novista dos anos1980 deu um novo carter escravido e posio do escravo frente ao sistema. Ocativo seria ator de vontade prpria, capaz de aes autnomas no interior do sistemaescravista. E esse carter ativo do escravo dentro do sistema ser que pode ser entendidocomo um resgate da concepo de brandura na relao paternal entre senhores e cativos

    ? Estaria o mito da democracia racial sendo (re)construdo ? Estaria, enfim, GilbertoFreyre sendo (re)abilitado ? Estas e outras questes, que no livro A EscravidoReabilitada possuem certamente resposta positiva, s podem ser entendidas a partir daanlise das obras caracterizadas por Gorender como amenizadoras da escravido.

    4. A escravido no novo mundo: uma Nova Histria

    4.1.Adaptao do Africano ao Brasil

    O 13 de maio de 1988, relativo s comemoraes do centenrio da Abolio,representou, de forma positiva, para Stuart Schwartz, o crescimento das pesquisas sobrea escravido no Brasil, colocando em evidncia novos enfoques sobre o tema. ParaSchwartz, a historiografia tradicional deixou em aberto a questo da histria cultural esocial da escravido. Entretanto, essas idias no agradaram a todos. Por exemplo,Jacob Gorender (1990) v nessa ateno vida e cultura dos escravos numa tentativa

    de reabilitar o modelo patriarcal de Freyre e de se afastar do entendimento comosistema coercivo.( SCHWARTZ, 2001, P.29).

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    13/24

    A historiadora Ktia Mattoso, que foi pioneira na utilizao metodolgica de conceitosda Nova Histria em pesquisas sobre a escravido, abre o debate com a seguintequesto: a escravido no Brasil teria sido uma continuao da escravido que ocorria nointerior da frica ? Para ela, o escravismo se aproximava mais da escravido na IdadeAntiga do que a escravido patriarcal oriunda da frica. A autora, em sua obra SerEscravo no Brasil (1982), defende que a historiografia brasileira tinha avanado noestudo da escravido, porm ainda no havia abordado sobre a adaptao dos africanoscativos ao novo ambiente. O assunto importante porque o africano ao ser separado desua sociedade e trazido para o Novo Mundo, passaria por um processo dedessocializao, o que implicaria em despersonalizao.

    Se pensarmos materialmente, os escravos seriam considerados como coisas edificilmente poderamos entender que o cativo pudesse ter personalidade. No entanto, se

    a questo colocada no plano psicolgico, parece inegvel que para a prpriasobrevivncia, o escravo necessitava de se adaptar ao mundo dirigido pelos brancos.Essa adaptao dependia ao que Mattoso chamou de repersonalizao e de uma certaaceitao de sua posio no corpo social.

    Humildade, obedincia e fidelidade: sobre este trip era encenada a vida dos escravos,que eram mercadorias muito particulares dos senhores porque, apesar de tudo, oscompradores-proprietrios percebiam que os cativos tambm eram homens e uma certaespcie de intimidade poderia se estabelecer entre eles, se fossem fiis, obedientes e

    humildes. Percebendo esta possibilidade de trgua ou amenizao na luta de classes eat um meio quase exclusivo de sobrevivncia, os cativos buscavam a insero socialpor meio do respeito ao trip apresentado por Mattoso.

    Mesmo sem apresentar exemplos concretos de sua argumentao, Mattoso defende queos senhores preferiam a persuaso imposio violenta. O escravo que no sofresseviolentaes freqentes se identificaria com a famlia patriarcal, evitando resistnciasque prejudicassem a produo. Porm, ela faz uma ressalva: a aparente obedincia efidelidade dos escravos era uma forma sutil de resistncia contra os dominantes quequeriam despoj-los de sua herana cultural e moral. Quando este tipo de relao nofuncionava, ocorriam outros tipos de resistncia como fugas, suicdios e revoltas.

    No que tange ao tratamento diferenciado entre os negros de engenho e os escravosurbanos, o fator de semelhana se encontrava na obedincia. O ser obediente ou noser obediente, caracterizava o escravo como bom ou no para o proprietrio, que, porsua vez, definia o maior ou menor grau de insero dos negros em seu novo ambiente.Para a autora, o escravo resguardado na obedincia, poderia recriar o seu mundodestrudo, um universo novo com as cores novas da terra brasileira. Ela ainda reforaque, dentro da obedincia, para o cativo manter a condio de aparente docilidade

    perante os senhores, ele tinha que aprender trs lies: falar a lngua dos senhores; rezarao Deus dos senhores; e executar um trabalho til.

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    14/24

    Em relao lngua, os crioulos no tiveram muita dificuldade, visto que, nascidos nopas, aprendiam desde muito cedo o portugus. Os negros africanos, no entanto,aprendiam somente o bsico, geralmente com os feitores que tambm eram sucumbidospor tal atividade, pelo fato da educao escolar ter sido privilgio somente de parte dapopulao branca. O fato dos escravos, em sua maioria esmagadora, no saberemescrever, explica a ausncia de relatos ou memrias, que certamente contribuiria para aconstruo do conhecimento histrico.

    Assim como a lngua e a cultura europia penetravam na cultura e no cotidiano dosescravos, houve tambm um processo inverso que, apesar de menos intenso, no foimenos importante. Expresses genuinamente africanas (Ex.: moleque, molambo,mucama, mandinga) tambm passaram a ser usadas no cotidiano da sociedade e seconcretizaram na lngua dominante. A influncia africana ainda marcou profundamente

    a sociedade no que tange religio, comportamentos, cultura, culinria, da qual,inclusive, Gilberto Freyre descreve muito bem em Casa-Grande e Senzala (1933).

    Da mesma forma que o senhor pretendia que os escravos compreendessem as suasordens atravs da lngua, ele tambm queria que os cativos aprendessem a rezar ao seuDeus. Segundo Mattoso, a sociedade escravista contou com o apoio da Igreja paraensinar aos cativos as virtudes da pacincia, da humildade e da submisso ordemestabelecida. Essas lies foram muito teis para conter os desnimos que porventuraresultassem em revoltas contra o sistema.

    Caso o padre fosse residente na fazenda, a misso de conformar os escravos de suacondio, ficava ainda mais fcil para os senhores, pois o sacerdote ficava muito maisvinculado s suas aspiraes senhoriais do que as que poderiam vir do bispado. Sendoassim, a Igreja tinha tambm a misso de fazer que a vida dura dos escravos nasfazendas se transformasse em penitncia que poderia resultar em salvao da alma. Parao escravo, ... a felicidade dos cus somente pode ser alcanada, talvez, aps uma vidade privaes e punies.(MATTOSO, 1982, p.115)

    Ktia Mattoso prossegue a sua explanao dizendo que a preocupao da Igreja nasfazendas estaria muito mais voltada para a formalizao dos ritos catlicos na sociedadedo que com a evangelizao em si. Os aprendizados do sinal da cruz e de algumasoraes eram mais importantes do que a pregao de que os homens deveriam amaruns aos outros como Deus os amou. Sendo assim, fcil imaginar algumasdiscrepncias ocorridas em missas celebradas em latim para cristos que mal falavam oportugus. A historiadora narra um episdio, no mnimo, hilrio dessa natureza:

    Certas oraes jaculatrias deformadas tornaram-se frmulas incompreensveis e

    privadas de sentido: Resurrexit sicut dixit, por exemplo, virou Reco, Reco Chico

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    15/24

    disse; kist, kist, kist tudo quanto resta da prece de Bento XIII: Louvado seja NossoSenhor Jesus Cristo. (MATTOSO, 1982, p.115)

    Em meio a fatos ldicos como o citado anteriormente, para os senhores, acima daevangelizao, o que mais importava era a obedincia e a humildade na vida de trabalhoque, como foi mostrado, era legitimada pela Igreja.

    Para o escravo, alm de aprender a lngua dominante e rezar na Igreja catlica, obedecer trabalhar bem. E para isso, os senhores contavam com a vigilncia dos feitores quemuitas vezes usavam das punies como medidas exemplares para o resto do grupoquando algum cativo sasse da linha. Porm, com j foi dito, a autora defende que estaprtica no era to freqente, pois os senhores preferiam estratgias mais sutis paramanter a disciplina. Esta argumentao traz forte refutao, principalmente por Jacob

    Gorender, porque Mattoso no apresenta dados e exemplos que sustentem que osfazendeiros preferiam formas menos violentas do que o chicote para manter a ordem nasfazendas. Sobre o resgate do pensamento freyriano, Gorender comenta que ... seGilberto Freyre tantas vezes elogiou a doura das relaes escravo-senhor no Brasil,Ktia reitera a ternura. (GORENDER, 1990, p.21)

    Contrariando ainda as idias de Gorender, Mattoso afirma que o escravo tinha um valorna sociedade e que os senhores sabiam disso. Para esses ltimos, o cativo era pecafundamental no processo produtivo, tendo o valor de compra e o valor que o seu

    trabalho proporcionava na produo. Por reconhecer esse valor no escravo, os senhoreslhes oferecia uma alimentao rica em calorias para suportar o trabalho rduo. Apesardos cuidados senhoriais, a grande mortalidade negra no Brasil era evidente , noporque o trabalho era pesado em demasia, mas devido s ms condies de trabalho e spssimas condies de higiene, acarretando freqentes doenas tais como bronquites,pneumonia, diarrias, sfilis e tuberculose.

    4.2.Negociao ou Conflito ?

    Por muito tempo a historiografia brasileira tratou os escravos ora como vtimas oracomo heris, mas dificilmente como agentes dentro do sistema. Sendo agentes dentro damalha escravista, a relao entre os cativos e os senhores variava entre a violncia e a

    barganha, marcada pela negociao maliciosa de ambas as partes. Inclusive o nomedeste subttulo faz referncia obra Negociao e Conflito: a resistncia negra noBrasil escravista (1989) de Joo Jos Reis e Eduardo Silva, a qual ser a delineadora denossa explanao sobre o assunto.

    Os autores afirmam que a negociao, mesmo que implcita, era fundamental para obom funcionamento do sistema escravista. Se os bares cediam e concediam para

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    16/24

    melhor controlar, os escravos pediam e aceitavam para melhor viver, algo mais do quesobreviver. Quando a negociao falhava ou nem sequer chegava a acontecer, oresultado se expressava por meio de fugas, rebelies, assassinatos ou at suicdios.Enfim, sem negociao o sistema se desengrenava.

    Para Eduardo Silva, a imensa massa populacional que foi transferida da frica para oBrasil no pode ser considerada apenas como fora de trabalho. A historiografiatradicional propagou a idia de que existiram dois plos distintos de escravos. De umlado o tipo Zumbi dos Palmares, representando a ira revoltosa frente escravido, e dooutro lado, Pai Joo, imagem da submisso conformada.

    Essa concepo comeou a mudar quando alguns historiadores novistas passaram aabordar a histria do escravo visto na perspetiva de que eles tambm so formadores dasociedade brasileira e no apenas objetos. Um dos grandes problemas que esses

    pesquisadores enfrentam a escassez de fontes escritas, embora isso possa ser superadopor meio da explorao de outras fontes. A propsito, como a existncia das fontes muito mais qualitativa do que quantitativa, Eduardo Silva diz que elas devem serexploradas ao mximo, buscando todas as suas explicaes possveis.

    Para demonstrar o crescente interesse em focalizar o escravo como participante ativodentro do sistema, novos enfoques esto sendo abordados pela historiografia novista.Podemos citar o trabalho de Slvia Lara sobre a criminalidade; tambm temos aspesquisas de Ktia Mattoso e Stuart Schwartz sobre a questo das manumisses (cartas

    de alforria). Outros estudos abordam a participao dos negros na economia,principalmente, na figura dos escravos de ganho que, por vezes, chegavam a atdepositar excedentes de seu ganho para uma almejada compra da alforria. E, aindatemos as recentes pesquisas sobre a presena de negros perante s autoridades paradenunciar abusos fsicos ou morais de seus senhores. Felizarda, por exemplo, narraEduardo Silva, recorreu ao Poder Judicirio contra Ana Maria da Conceio, suaproprietria, que pretendia abocanhar as economias que amealhara para comprar a

    prpria liberdade. (SILVA, 1989, p.18)

    Por reconhecerem a importncia do papel dos escravos na produo, muitas vezes ossenhores cediam na negociao temendo sabotagem nas mquinas ou fugas. Nemsempre os senhores conseguiam impor as suas vontades, ritmos e interesses sem ceder aalgumas reivindicaes escravas. Entretanto, o fato de perceber que os escravos tambmtinham voz ativa no quer dizer que eles formavam um bloco homogneo, defendendo amesma causa, pelo simples fato de serem escravos. A noo de classe no era marcanteentre os escravos.

    Para Ktia Mattoso (1989, p.123), as relaes sociais no Brasil dos sculos XVII,XVIII e XIX so, pois, complexas, bem mais do que a imagem simplificadora refletida

    pela clssica oposio entre os homens livres dominantes e os homens pretosdominados.... E de fato, essas relaes so complexas porque as relaes sociais so

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    17/24

    complexas e no podem ser definidas por teorias que extinguem outras explicaes queno se enquadram nas leis estabelecidas.

    Eduardo Silva chama a ateno para o crescente interesse em desenvolver pesquisassobre as fugas e revoltas de escravos no Brasil colonial, tema o qual a historiografiadeixou por muito tempo merc. O leque de enfoques perpassa desde fugas fsicas ats fugas extra-racionais, como o suicdio, por exemplo, que visava a liberdade em outromundo. Em relao a este assunto, Mattoso argumenta que juntamente com o suicdio eo assassinato, a fuga foi, na verdade, a expresso violenta da revolta interior do escravoinadaptado. Sobre os suicdios, a historiadora diz que o medo, sempre, que leva aosuicdio, um medo para o qual todos os mtodos so vlidos: asfixia engolindo a lngua,enforcamento, estrangulamento, geofagia.. (MATTOSO, 1989, p.155)

    Embora as fugas e os levantes terem representado minoria entre os negros escravos,

    essas contestaes no podem ser analisadas quantitativamente, mas qualitativamente.Elas no podem ser banalizadas, visto que o simples fato de existir a sua possibilidade,

    j marca os limites da dominao e da negociao. Eduardo Silva destaca dois tipos defugas: as fugas-reivindicatrias e as fugas-rompimento.

    Para ele, as fugas-reivindicatrias eram as que visavam atendimento de algumasnecessidades dos cativos, o que no quer dizer que queriam acabar com o sistema. Oprofessor Joo Jos Reis, em entrevista concedida ao autor deste trabalho monogrfico,refora esta idia, abrindo questes para o debate historiogrfico. Para Reis, o escravo:

    fazia revoltas pontuais para corrigir o sistema. A luta por ganhos pessoais comum nahistria dos subalternos. Ningum questiona o operrio que luta por mais salrios oumelhores condies de trabalho. Por que questionar o escravo que faz isso ? Por queexigir dele quesua luta seja sempre para destruir o sistema ?.(1)

    Ele ainda afirma que a negociao a guerra por outros meios.

    Muitas vezes, as fugas tambm aconteciam em decorrncia de quebra de acordo dossenhores com os escravos que, amide, sofriam punies fsicas que tanto poderiamservir como lio para o grupo, como tambm suscitava revolta interior que poderia seexteriorizar atravs de fugas de fato.

    Em relao s posies dos autores de Negociao e Conflito, Gorender faz oseguinte comentrio:

    ... em tudo o que escrevi sobre a escravido, estudei o escravo como sujeito do processode trabalho e como sujeito histrico, capaz de lutar contra a opresso coisificante. Mas o

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    18/24

    meu enfoque, como o de outros historiadores, no foi, absolutamente, o de salientar nasubjetividade do escravo a fonte do potencial de acomodao ao regime opressor, deaceitao da escravido como sistema contratual, o que o aproximava singularmente docapitalismo. (GORENDER, 1990, p.25).

    Concluindo as explicaes de Eduardo Silva, as fugas-rompimento eram as queaconteciam com objetivos mais radicais do que as fugas que visavam reformulao nasrelaes de trabalho. As fugas em busca de liberdade definitiva aconteciam por quebrade acordos sistmicos entre os senhores e os escravos. Estes conquistavam no dia-a-diaconcesses e brechas que, com o tempo, passavam a fazer parte da vida deles,representando um modus vivendilegitimado. Por vezes, os escravos tentavam romperdefinitivamente, por meio de fugas, com os senhores que desrespeitavam os taisacordos sistmicos.

    Na maioria das vezes essas fugas malograram no s pela recaptura dos capites-do-mato, mas sobretudo, porque a sociedade brasileira, em sua totalidade era escravista, oque tornava as fugas definitivas muito mais difceis, cabendo aos fugitivos seaglomerarem em regies de difcil acesso, formando quilombos. Somente a partir domomento em que a campanha abolicionista ganha fora em meados do sculo XIX, asfugas passam no s a se destinarem regies isoladas, mas tambm s grandescidades. Isso se deveu, ao que Eduardo Silva chamou de falncia do paradigmaideolgico tradicional.

    Para Joo Jos Reis, o combate autonomia e indisciplina escrava se dava por meioda combinao entre violncia e negociao, o chicote e a malcia. Da mesma forma queos senhores reprimiam os escravos, estes usavam mtodos que se opunham simposies senhoriais, visando no s brechas materiais como tambm concessessupra-racionais, como o direito de danar, cantar e cultuar os seus deuses. SegundoKtia Mattoso (1989, p.145), ... ao romper os marcos da sociedade africana e aomisturar cuidadosamente as etnias, a escravido conseguiu destruir as estruturas sociais,mas o negro salvaguardou os valores essenciais das civilizaes africanas osreligiosos.

    Um exemplo da inquietao negra diante de represses religiosas aconteceu em 1829 naBahia, quando o liberto africano Joaquim Baptista denunciou ao presidente daProvncia, Jos Gordilho de Barbuda, o visconde de Camam, sobre a invaso e saqueda polcia em um terreiro de candombl num bairro de Salvador chamado Acc. Ospoliciais invadiram o templo religioso, destruram objetos rituais e ainda prenderamcerca de 36 pessoas. Porm, um dos lderes do terreiro procurou a justia e denunciou atal intolerncia.

    A permisso de culto a outros deuses que no fossem da religio oficial, variava entre osque aceitavam como forma de controle social e os que reprimiam, pois associavam os

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    19/24

    rituais ora feitiarias diablicas ora a desordens sociais que poderiam desencadearem rebelies. O caso da invaso da polcia no terreiro de Acc na Bahia e a reao dosnegros atravs da denncia perante a autoridade maior da provncia, demonstra que aparticipao dos negros no pode ser encarada apenas como secundria, mas sobretudo,como atuante no processo histrico.

    Segundo Mattoso (1989, p.151), Sem dvida os cultos africanos existiram sempre noBrasil colonial, escondidos, intermitentes, buscando somente represso e com eles asociedade dominante somente se preocupava quando suspeitava que poderiam pr em

    perigo a ordem pblica.. As religies africanas coexistiram com a f catlica entre osnegros, gerando, a partir da, o sincretismo religioso ainda existente at os nossos diasatuais. Tanto Eduardo Silva, quanto Joo Jos Reis e Ktia Mattoso concordam em umponto: a permisso s religies africanas eram obtidas por meio de negociao, mesmoque indireta, e utilizadas como vlvulas de escape que, de certa forma, mascarava um

    pouco a opresso pertinente escravido.

    Outro aspecto que fazia parte da negociao, foi abordado primeiramente por CiroFlamarion Cardoso, e aposterioripor Eduardo Silva e Joo Jos Reis: as brechascamponesas. Conforme esses historiadores, existiram, no sistema colonial, algumasoportunidades em que os senhores permitiam que os negros produzissem para si em umespao prprio e em seu dia de folga. Conforme esses autores, o excedente poderia,inclusive, ser vendido para proveito dos escravos. Segundo Stuart Schwartz, as teoriasde Gorender refutaram tal idia porque no se encaixavam nas leis aplicadas ao sistema

    colonial que ele havia construdo.

    Para explicar o que seria esta brecha camponesa, Eduardo Silva teve como base oseguinte documento: Memria sobre a fundao de uma fazenda na provncia do Riode Janeiro, do Baro de Pati do Alferes. O objetivo de Silva foi abordar no s osaspectos econmicos, mas, principalmente, o ideolgico, o qual auxiliava a manutenodo sistema.

    O documento acima citado do Baro de Pati do Alferes, que na verdade era FranciscoPeixoto de Lacerda Werneck, foi publicado como livro em 1847 no Rio de Janeiro, econtinha mtodos de como administrar uma fazenda. Como esse livro se transformouem um guia prtico de fazendeiro, entende-se que ele relatava mtodos utilizados naprtica desde longa data. O contedo do livro abordava desde a forma adequada deplantar o caf at as normas organizacionais de vigilncia e controle que se deveria terdiante os escravos.

    O Baro de Pati do Alferes relata que o controle dos escravos poderia ser feito desde aorganizao dos escravos em grupos na hora do trabalho, at a permisso defreqentarem a missa nos domingos. Outro mecanismo de controle social descrito era a

    criao de uma margem de economia prpria para os cativos. Isso porque Ao ceder umpedao de terra em usufruto e a folga semanal para trabalh-la, o senhor aumentava a

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    20/24

    quantidade de gneros disponveis para alimentar a escravaria numerosa, ao mesmotempo que fornecia uma vlvula de escape para as presses resultantes da escravido.(SILVA, 1989, p.28).

    Eduardo Silva revela que a maior preocupao no era a diminuio dos custosprodutivos nem o aumento da economia de subsistncia, mas sobretudo o controlesocial e a manuteno do sistema, provocado pelo apego do escravo a terra e a relativaamenizao da escravido. A iluso de propriedade distrai da escravido e prende,mais que uma vigilncia feroz e dispendiosa, o escravo a terra. No podemos,entretanto, generalizar esta prtica e dizer que ela foi preponderante no Brasil escravista,pois a anlise de Eduardo Silva se baseou em um livro em um local e tempodeterminado.

    4.3. Brasil: Formao Fora do Brasil

    Quem se depara com o subttulo, logo se far a seguinte pergunta: quer dizer ento queo Brasil se formou fora do Brasil ? O historiador Luiz Felipe de Alencastro abordou emsua obra O Trato dos Viventes: Formao do Brasil no Atlntico Sul (2000) como aformao do Brasil se deu sob influncia forte do contato com a frica, que forneciaescravos para trabalharem nos latifndios brasileiros.

    Essa relao, no se limitou ao aparato econmico com o comrcio de homens, mastambm esteve presente no intercmbio de culturas, religies, comportamentos. claro,que devemos reconhecer, que o trfico de escravos que impulsionou todas as outrastransformaes na formao brasileira, a partir da relao entre Brasil e frica, pois,conforme Alencastro (2000, p.9), ... a colonizao portuguesa, fundada no escravismo,deu lugar a um espao econmico e social bipolar, englobando uma zona de produoescravista situada no litoral da Amrica do Sul e uma zona de reproduo de escravoscentrada em Angola.

    Na explorao da costa africana pelos portugueses, os colonos que na frica ficavam,ao poucos adquiriam certa autonomia diante da Coroa Portuguesa, que, de certa forma,no tinha o total controle sobre as terras conquistadas. Quando se fala em colonizao,logo pensamos que o controle dos colonizadores sobre os colonizados acontecia deforma coesa e concreta, entretanto essa hegemonia no acontecia de imediato. Aocontrrio do que se pensa, nos sculos XVI e XVII, a Coroa ainda no estava totalmenteorganizada e as suas colnias tambm no estavam totalmente sob o seu jugo. A partirdessa idia, que Alencastro justifica que a relao entre Brasil e frica, aps oaumento do trfico, se intensificou de uma forma quase autnoma, sem influncia daCoroa que pudesse ser definitiva para o intercmbio.

    A iniciativa de Portugal em ocupar as terras do Novo Mundo s veio trinta e quatro

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    21/24

    anos aps o descobrimento com a instaurao das capitanias hereditrias que, poucointeresse despertou nos donatrios, visto que apenas seis dos doze chegaram a vir noBrasil. Se o domnio da Coroa sobre as colnias no acontecia de fato, a unidade naprpria Terra de Santa Cruztambm era falha e quase inexistente. Sobre isso,Alencastro defende que a relao entre o Rio de Janeiro e Angola era muito maisintensa do que entre o Rio de Janeiro e So Lus do Maranho. Segundo o historiador:

    ... a continuidade da histria colonial no se confunde com a continuidade do territrioda Colnia. Na verdade, os condicionantes atlnticos, africanosdistintos dos vnculoseuropeus -, s desapareceram do horizonte do pas aps o trmino do trfico negreiro e aruptura da matriz espacial , na segunda metade do sculo XIX. Tais condicionantesmarcam a originalidade da formao histrica brasileira. (ALENCASTRO, 2000, p.21)

    Em fins do sculo XVI e incio do XVII, o intercmbio entre o Brasil e a costa africanaaumentou de tal sorte que uma estatstica do sculo XVII analisada por Alencastromostra que apenas 15% dos navios que entravam no porto de Luanda vinham dametrpole. Todo o restante vinha, principalmente, do Rio de Janeiro, da Bahia e doRecife, trazendo mercadorias brasileiras (mandioca, cachaa, etc ) em troca damercadoria que se concretizou no comrcio luso-braslico: o escravo africano. O tratonegreiro, no entanto, no pode ser reduzido ao comrcio de negros. De consequnciasdecisivas na formao histrica brasileira, o trfico extrapola o registro das operaes

    de compra, transporte, e venda de africanos para moldar o conjunto da economia, dademografia, da sociedade e da poltica da Amrica portuguesa.

    Visto de um ngulo econmico-social, a concretizao do trfico de escravos no final dosculo XVI suscitou transformaes fundadoras da economia brasileira. Segundo asexplicaes de Alencastro, devido ao aumento da produo de acar e s prerrogativasoferecidas pela Coroa para entrada de mo-de-obra africana, o comrcio de escravospara o Brasil cresceu em fins dos Seiscentos. Assim como o trfico aumentou com oaumento da produo de acar, a acumulao de capital proveniente do comrcio decativos fez com que as zonas produtivas ampliassem as suas reas e, nos ditos deAlencastro, desencravasse a economia brasileira.

    Diferentemente dos historiadores anteriormente analisados, Luiz Felipe de Alencastrono pesquisou sobre as caractersticas do sistema escravista, nem sobre a dialticapresente na relao entre senhores e escravos, mas abordou o trfico de escravos, aescravido e a reproduo de cativos na costa africana, como totalmente influenciadoresda sociedade brasileira, nos mbitos econmico, social e cultural. Com isso, eleconsegue trazer a relao entre o Brasil e a costa africana para o primeiro plano,afirmando o ntimo contato que se firmou com a instaurao da mo-de-obra escrava.

    Para ele, o Elo perdido de nossa histria, esse sistema avassalador de mercantilizaode homens impede que se considere o trfico negreiro como um efeito secundrio da

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    22/24

    escravido.(ALENCASTRO, 2000, p.42).

    5. Concluso

    O estudo historiogrfico de autores como Jacob Gorender, Ktia Mattoso, Joo JosReis e Luiz Felipe de Alencastro, os quais pesquisaram a escravido no Brasil, nos deua noo da variedade de abordagens analisadas recentemente. A isso se deve,principalmente, o surgimento de novos enfoques, objetos, mtodos e fontes resgatadospelos historiadores influenciados por conceitos que a Nova Histria trouxe historiografia brasileira.

    J por outro lado, juntamente com esses novos enfoques, temos tambm a refutao,que, ao nosso ver, um aspecto positivo, pois a existncia de algo que se ope faz comque as argumentaes busquem a maior contudncia possvel em suas explicaes. Acrtica de Jacob Gorender s obras dos historiadores chamados novistas que elesestaram resgatando a concepo freyriana ao passo que apresentavam pesquisas que seaproximavam do paternalismo defendido por Gilberto Freyre acerca da relao entresenhores e escravos. Esta crtica nos leva a seguinte indagao: a historiografia recenteestaria realmente resgatando conceitos anteriormente abordados ?

    Depois de nossa anlise, acreditamos que vrias pesquisas realmente se mostraraminovadoras, embora se aproximam de explicaes de historiadores de outras geraes.As pesquisas de Joo Jos Reis e Eduardo Silva sobre a negociao entre senhores eescravos, por exemplo, nos apresenta uma abordagem nova, com argumentaesconvincentes, apesar de serem restritas a certos limites, pois tambm no podemosgeneralizar as prticas como uma verdade absoluta. Porm, acreditamos que amultiplicao de objetos no pode ser confundida com a ausncia de fatos e fontes, osquais devem ser analisados e interpretados de forma inteligvel e coerente.

    O surgimento de novas abordagens tambm trouxe tona a explorao de outras fontes

    que, anteriormente, no eram utilizadas, visto a importncia primordial que se dava aodocumento oficialmente escrito. Como este tipo de fonte muito escasso na histria dosescravos brasileiros, a busca de outras fontes e o contato com outras disciplinas semostrou iminente. Foram utilizadas como fontes, portanto, estatsticas demogrficas,literatura, depoimentos, cantigas e outras colaboraes de outras disciplinas como aArqueologia e a Psicologia.

    Por fim, aps a anlise das obras de historiadores recentes que utilizaram metodologiase argumentaes diversas em pesquisas sobre a escravido no Brasil, ao nosso ver, o

    debate historiogrfico faz com que o entendimento sobre tal tema cresa, devida ampliao de explicaes sobre um mesmo ponto. A dialtica existente no choque entre

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    23/24

    teorias diferentes, origina novos enfoques e objetos, antes negligenciados esecundarizados. Sendo assim, o surgimento de novas explicaes e a discussopertinente enriquece a historiografia brasileira sobre escravido, abordando cada vezmais um tema que pedra basilar para o entendimento da formao social, poltica,econmica e cultural do Brasil.

    6. Referncias

    ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: Formao do Brasil noAtlntico Sul. So Paulo:Companhia das Letras, 2000.

    COSTA, Emlia Viotti da.Da Senzala Colnia. 3.ed., So Paulo: Brasiliense, 1989.

    DIEHL, Astor Antnio.A Cultura Historiogrfica Brasileira: Dcada de 1930 aos anos1970. Passo Fundo:UPF Editora, 1999.

    ECO, Umberto. Como se Faz uma Tese. So Paulo: Perspectiva, 1983.

    FICO, Carlos; POLITO, Ronald. A Historiografia Brasileira nos ltimos 20 Anos:Tentativa de Avaliao Crtica. In: MALERBA, Jurandir (org).A Velha Histria.Campinas. So Paulo: Papirus, 1996.

    GORENDER, Jacob.A Escravido Reabilitada. So Paulo: tica, 1990.

    ______.O Escravismo Colonial. 3.ed. , So Paulo: tica, 1980.

    ______.Confluncias e Contraes da Construo Sociolgica.Revista Adusp, N 04,Out/1995.

    IANNI, Octvio.As Metamorfoses do Escravo. So Paulo: Difuso Europia do Livro,1962.

    KONDER, Leandro. Histria dos Intelectuais nos Anos 50. In: FREITAS, MarcosCzar de (org).Historiografia Brasileira em Perspectiva. 3 ed., So Paulo: Contexto,2000.

    MATTOSO, Ktia M. de Queirs. Ser Escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1982.

    PESCUMA, Derna; CASTILHO, Antonio Paulo F. de. Referncias Bibliogrficas: umguia para documentar suas pesquisas. So Paulo:Olho Dgua, 2001.

    QUEIRZ, Suely Robles Reis. Escravido Negra em Debate. In: FREITAS, Marcos

  • 7/29/2019 Historiografia Em Debate

    24/24

    Czar de (org).Historiografia Brasileira em Perspectiva, 3.ed., So Paulo: Contexto,2000.

    SCHWARTZ, Stuart B.Escravos, Roceiros e Rebeldes.Bauru:EDUSC, 2001.

    SILVA, Eduardo; REIS, Joo Jos.Negociao e Conflito: A resistncia negra no BrasilEscravista. So Paulo:Companhia das Letras, 1989.

    VAINFAS, Ronaldo. Histria das Mentalidades e Histria Cultural. In: CARDOSO,Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. (orgs).Domnios da Histria: Ensaios de Teoria eMetodologia. Rio de Janeiro:Campus, 1997.

    DISPONIVEL EM:http://www.nethistoria.com.br/index.php?secao=conteudo.ph

    p&sc=2&id=419&cp=833