historiografia contemporânea

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Volume 2 Volume 2 • • • • • • • • • • • • • Historiografia Contemporânea Historiografia Contemporânea Felipe Charbel Teixeira Pedro Spinola Pereira Caldas 9 788576 487876 ISBN 978-85-7648-787-6

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História Contemporânea I e II

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  • Volume 2

    Volume 2

    Historiografia Contempornea

    Historiografia C

    ontempornea

    Felipe Charbel Teixeira

    Pedro Spinola Pereira Caldas

    9 7 8 8 5 7 6 4 8 7 8 7 6

    ISBN 978-85-7648-787-6

  • Volume 2

    Felipe Charbel Teixeira Pedro Spinola Pereira Caldas

    Historiografi a Contempornea

    Apoio:

  • Copyright 2011, Fundao Cecierj / Consrcio Cederj

    Nenhuma parte deste material poder ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrnico, mecnico, por fotocpia e outros, sem a prvia autorizao, por escrito, da Fundao.

    T266 Teixeira, Felipe Charbel. Historiografi a contempornea v. 2 / Felipe Charbel Teixeira, Pedro Spinola Pereira Caldas. - Rio de Janeiro: Fundao CECIERJ, 2011. 208 p. ; 19 x 26,5 cm.

    ISBN: 978-85-7648-787-6

    1. Historiografi a. 2. Cultura. I. Caldas, Pedro Spinola Pereira. II. Ttulo.

    CDD 907.22011.2/2012.1Referncias Bibliogrfi cas e catalogao na fonte, de acordo com as normas da ABNT e AACR2.

    Texto revisado segundo o novo Acordo Ortogrfi co da Lngua Portuguesa.

    Material Didtico

    ELABORAO DE CONTEDOFelipe Charbel Teixeira Pedro Spinola Pereira Caldas

    COORDENAO DE DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONALCristine Costa Barreto

    SUPERVISO DE DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL Miguel Siano da Cunha

    DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL E REVISO Henrique OliveiraJorge AmaralLcia Beatriz da Silva Alves

    AVALIAO DO MATERIAL DIDTICOThas de Siervi

    Departamento de Produo

    EDITORFbio Rapello Alencar

    COORDENAO DE REVISOCristina Freixinho

    REVISO TIPOGRFICACarolina GodoiElaine BaymaRenata Lauria

    COORDENAO DE PRODUORonaldo d'Aguiar Silva

    DIRETOR DE ARTEAlexandre d'Oliveira

    PROGRAMAO VISUALBianca Lima

    ILUSTRAOBianca Giacomelli

    CAPABianca Giacomelli

    PRODUO GRFICAVernica Paranhos

    Fundao Cecierj / Consrcio CederjRua da Ajuda, 5 Centro Rio de Janeiro, RJ CEP 20040-000

    Tel.: (21) 2333-1112 Fax: (21) 2333-1116

    PresidenteCarlos Eduardo Bielschowsky

    Vice-presidenteMasako Oya Masuda

    Coordenao do Curso de HistriaUNIRIO Mariana Muaze

  • Universidades Consorciadas

    Governo do Estado do Rio de Janeiro

    Secretrio de Estado de Cincia e Tecnologia

    Governador

    Alexandre Cardoso

    Srgio Cabral Filho

    UENF - UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIROReitor: Silvrio de Paiva Freitas

    UERJ - UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROReitor: Ricardo Vieiralves de Castro

    UNIRIO - UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIROReitor: Luiz Pedro San Gil Jutuca

    UFRRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIROReitor: Ricardo Motta Miranda

    UFRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROReitor: Carlos Levi

    UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSEReitor: Roberto de Souza Salles

  • Historiografi a ContemporneaSUMRIO

    Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo _____________________________ 7Pedro Spinola Pereira Caldas

    Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica __ 39Felipe Charbel Teixeira

    Aula 11 Histria dos conceitos ___________________ 67Felipe Charbel Teixeira

    Aula 12 Histria e ps-modernidade (I): a crise dos grandes paradigmas __________ 85Pedro Spinola Pereira Caldas

    Aula 13 Histria e ps-modernidade (II): a questo da representao ____________119Pedro Spinola Pereira Caldas

    Aula 14 Desafi os atuais da historiografi a contempornea: o problema do trauma __151Pedro Spinola Pereira Caldas

    Aula 15 Desafi os da historiografi a contempornea: a histria comparada ___179Felipe Charbel Teixeira

    Referncias _____________________________________201

  • Pedro Spinola Pereira Caldas

    Aula 9

    P d S i l P i C ld

    A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

  • Historiografi a Contempornea

    8

    Meta da aula

    Apresentar os desdobramentos dos fundamentos da histria cultural nas obras dos

    historiadores Carlo Ginzburg, Dominick La Capra e Roger Chartier.

    Objetivos

    Aps o estudo desta aula, voc dever ser capaz de:

    1. reconhecer na obra de Carlo Ginzburg a apropriao da ideia de circularidade;

    2. identifi car por que, para Dominick La Capra, o conceito de dialogismo

    importante para a histria cultural;

    3. reconhecer como a ideia de apropriao, em Roger Chartier, um meio-termo

    entre as propostas de Ginzburg e La Capra.

    Pr-requisitos

    Para melhor entender esta aula, importante que voc tenha estudado com muita

    ateno a aula anterior sobre Bakhtin, sobretudo seus conceitos de dialogismo e

    circularidade. Recomenda-se tambm uma reviso sobre o conceito de mentalidade, tal

    como usado por Lucien Febvre, exposto na Aula 2 desta disciplina.

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    9

    INTRODUO

    Um dos aspectos mais interessantes ao se estudar a histria

    de uma disciplina cientfi ca consiste em perceber e reconhecer que

    os fundamentos desta disciplina, s vezes, se encontram em outras

    disciplinas.

    Uma mudana de paradigma na historiografi a, portanto,

    no necessariamente se faz a partir de recursos dispostos e criados

    pelos historiadores. A infl uncia de Mikhail Bakhtin em autores

    como Carlo Ginzburg e Dominick La Capra, por exemplo, prova

    bastante eloquente de que, por mais que os historiadores saibam que

    pertencem a um grupo profi ssional razoavelmente bem defi nido,

    bastante saudvel que eles admitam que jamais teriam escrito obras

    de histria se no fosse justamente a infl uncia que intelectuais de

    outras reas exerceram em seu trabalho. No sculo XIX, por exemplo,

    muito difcil pensar a historiografi a sem considerar a importncia

    da fi losofi a, da teologia e das cincias da natureza. No sculo XX,

    disciplinas como a Antropologia, a crtica literria e a psicanlise

    passaram a ter um papel fundamental para o desenvolvimento da

    escrita da histria. Voc j viu como a Antropologia foi essencial

    para um Jacques Le Goff, a Geografi a para um Braudel, e como, de

    alguma maneira, todos eles respiravam em um ambiente fortemente

    marcado por homens como Sartre e Camus. H de se aprender algo

    com a histria de nossa disciplina: estud-la ver que importante

    sair dos limites impostos por uma especializao cada vez mais

    rigorosa, e tentar imaginar como veramos o mundo se o olhssemos

    a partir de outra janela.

    Nesta aula, voc ver como podemos perceber, de fato, o

    confl ito entre texto e contexto na historiografi a. O confl ito entre texto

    e contexto foi visto na aula sobre Bakhtin, estando a importncia

    do texto mais forte no livro sobre Dostoivski, e a do contexto na

    obra sobre Rabelais. Procederemos, portanto, da seguinte maneira:

    para abordar as diferentes tentativas historiogrfi cas de pensar a

    dinmica entre contexto e linguagem, destacaremos os conceitos

  • Historiografi a Contempornea

    10

    de circularidade na obra de Carlo Ginzburg, o de dialogismo

    nos trabalhos do historiador americano Dominick La Capra e o de

    apropriao na obra de Roger Chartier.

    As anlises dos conceitos-chave aludidos sero feitas em trs

    etapas: (a) como crtica s obras de historiadores anteriores, de onde

    poderemos apresentar como tais historiadores se situam na histria

    da historiografi a sobre a cultura; (b) uso de conceitos importados de

    outras disciplinas, sobretudo, da teoria literria de Mikhail Bakhtin,

    da psicanlise e da teoria literria, conceitos estes que permitem a

    crtica aos demais historiadores da cultura; (c) aplicao e prtica

    na pesquisa historiogrfi ca que resultam das crticas e da importao

    de conceitos destas outras reas do conhecimento.

    Carlo Ginzburg: a circularidade da cultura

    Nascido em 1939 em Turim, Carlo Ginzburg um dos

    principais historiadores da atualidade. Sua especialidade a

    histria moderna, e ele tem contribudo bastante em vrios campos

    da histria cultural: ele transita da cultura popular para a cultura

    erudita, e tem participado intensamente dos debates tericos mais

    acalorados dos ltimos trinta anos, sobretudo aqueles que dizem

    respeito importncia da linguagem para a escrita da histria e

    para o estatuto cientfi co do conhecimento histrico.

    Entre outras razes, Ginzburg famoso por ser considerado

    um dos principais nomes se no for o principal da escola italiana

    de histria chamada micro-histria.

    Nesta aula, no daremos tanta ateno ao conceito de

    micro-histria, que pode ser menos efi caz para pensar os rumos

    da historiografi a. Do contrrio, fi caramos presos mais s ditas

    escolas do que aos conceitos. Alm disto, como disse muito bem

    Jacques Revel (REVEL, 1998, p. 15), a micro-histria basicamente

    emprica, e no um programa terico a ser cumprido na prtica da

    pesquisa, razo pela qual defi ni-la pode ser uma deciso infeliz e

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    11

    violenta. Uma boa defi nio da prtica da micro-histria dada

    por Giovanni Levi:

    A micro-histria tenta no sacrifi car o conhecimento dos

    elementos individuais a uma generalizao mais ampla, e

    de fato acentua as vidas e os acontecimentos individuais.

    Mas, ao mesmo tempo, tenta no rejeitar todas as formas

    de abstrao, pois fatos insignifi cantes e casos individuais

    podem servir para revelar um fenmeno mais geral (LEVI,

    1992, p.158).

    Feitas as consideraes iniciais sobre Ginzburg e a micro-

    histria, agora veremos como o prprio Carlo Ginzburg se inseria

    criticamente na histria da historiografi a do sculo XX. Neste sentido,

    fundamental considerar sua Crtica histria das mentalidades por

    meio do conceito de circularidade. E a obra em que esta crtica foi

    feita um livro cuja primeira edio de 1976. E, apesar de pouco

    mais de trinta anos, j se tornou clssico. Trata-se de O queijo e

    os vermes: o cotidiano e as idias de um moleiro perseguido pela

    Inquisio.

    Nesta obra, Ginzburg procura compreender um episdio

    do incio da era moderna, a saber, o processo inquisitorial levado

    contra o moleiro Menocchio, nascido em 1532 com o nome de

    Domenico Scandella. Ginzburg sabia muito bem em que seara

    estava se inserindo, porquanto tinha, atrs de si, duas grandes obras

    que tratavam do mundo popular no incio da era moderna. Voc j

    pode perfeitamente adivinhar quais so: O problema da descrena

    no sculo XVI, de Lucien Febvre, que tem Rabelais como centro, e

    o estudo de Mikhail Bakhtin sobre o mesmo Rabelais. A segunda o

    infl uenciou fortemente. primeira, cuja importncia no deixa de

    reconhecer, Ginzburg no poupou crticas.

  • Historiografi a Contempornea

    12

    A leitura feita pelo italiano da obra de um dos fundadores

    dos Annales foi marcada pelas restries feitas ao uso do conceito

    de utensilagem (ou equipamento) mental, que, embora tenha sido

    defi nido parcamente por Febvre, procura expor o repertrio mental

    e cultural disponvel em uma poca, do qual faziam uso os homens

    de ento. O uso no era idntico, mas variado; claro que o conceito

    era bastante efi caz para se evitar o anacronismo e nisto, admite

    Ginzburg, Febvre foi bastante feliz , mas no para ver o que nele

    havia de efetivamente produtivo. Marcava limites do discurso, e no

    suas ousadias, e, neste sentido, permanecia, inclusive, interclassista

    e encobridor de confl itos. Nas palavras do prprio Ginzburg:

    Quem eram aqueles mal identifi cados homens do sculo XVI?

    Humanistas, mercadores, artesos, camponeses? Graas

    noo interclassista de mentalidade coletiva, os resultados

    de uma investigao conduzida sobre um pequeno estrato

    da sociedade francesa composta por indivduos cultos so

    tacitamente ampliados at abarcar completamente um sculo

    inteiro (GINZBURG, 2006, p. 24).

    Carlo Ginzburg

    Carlo Ginzburg um dos historiadores cujas

    obras tm maior repercusso no Brasil. Alm

    de O queijo e os vermes, podemos encontrar

    inmeros outros ttulos com traduo para a lngua

    portuguesa, tais como Olhos de madeira Refl exes

    sobre a distncia, Relaes de fora, Nenhuma ilha

    uma ilha, Andarilhos do bem Feitiaria e cultos

    agrrios nos sculos XVI e XVII, entre outros. A obra

    de Ginzburg abrange temas tericos (sobretudo, sobre

    retrica), anlise de textos literrios e pesquisas sobre

    a religiosidade popular.

    CC

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    13

    Neste sentido, o conceito de equipamento mental verter-se-ia

    rapidamente, ao longo da histria dos Annales, no conceito de

    mentalidades tal como defi nido por Jacques Le Goff, como voc viu

    na Aula 3 desta disciplina. Ou seja, a mentalidade da poca era

    algo interclassista, presente no grande artista, no grande lder poltico

    e no mais annimo dos seres, porquanto a mentalidade revelava-se

    no gesto automtico, cotidiano, repetido. O problema do conceito

    de mentalidades, segundo Ginzburg, consistia na sua tendncia a

    generalizar em excesso, e, portanto, a uniformizar, estabelecendo

    uma s identidade para um contexto muito amplo.

    curiosa a diferena entre O queijo e os vermes e as principais

    obras da historiografi a francesa, pois todas surgem em tempos de

    crise. A Frana em que viveu e trabalhou Lucien Febvre padece

    na Segunda Guerra Mundial, e os nacionalismos, j responsveis

    pela catstrofe da Primeira Guerra, incomodavam igualmente os

    historiadores annalistes, que privilegiavam, ento, os grandes

    espaos geogrfi cos aos territrios nacionais, os hbitos mentais

    lentamente transformados aos arroubos impetuosos (e, naquele

    momento, destrutivos ou derrotados) dos agentes polticos.

    A micro-histria de Ginzburg se inscreve na paisagem italiana

    do ps-guerra, como muito bem apresenta Henrique Espada Lima

    em sua obra sobre a micro-histria (cf. LIMA, 2006, p. 25-54).

    tradicional histria poltica da esquerda italiana, fortemente

    infl uenciada pelo pensamento de Antonio Gramsci, sucedeu-se a

    decepo com a invaso sovitica na Hungria e as denncias s

    atrocidades de Stalin. O dilogo com a historiografi a francesa, se

    foi parcialmente interrompido, trouxe alguns ensinamentos, como a

    predileo pela demografi a e pela anlise qualitativa de pequenas

    comunidades camponesas. O ambiente poltico e cultural italiano

    (para no dizer europeu e ocidental), marcado pelo movimento

    contracultural e pelo abafamento da poltica causado pelo recuo das

    esquerdas institucionais com os movimentos terroristas de inspirao

    marxista na dcada de 1970 (sobretudo na Itlia e na Alemanha), deu

    um novo sentido s contestaes e ao papel crtico da historiografi a.

  • Historiografi a Contempornea

    14

    A micro-histria , ento, a tentativa de enfatizar aes individuais

    de relevncia social, ou seja, seu propsito consistia em estudar e

    pesquisar temas que se inseriam fora dos grandes agrupamentos

    sociais e dos espaos institucionais clssicos (como o Estado). Mas

    nem por isso poderia ser chamado de conformista. Os confl itos

    sociais e culturais tambm poderiam ser identifi cados mediante o

    estudo de comunidades, famlias e mesmo indivduos.

    Esta a forma como Ginzburg se insere na historiografi a do

    sculo XX: necessrio fazer a crtica das conquistas de historiadores

    como Febvre, mas, claro, sem retroceder.

    E quais os recursos conceituais utilizados por Ginzburg para

    mostrar a poca moderna de outra maneira, bem diferente da feita

    por Febvre em seu livro sobre Rabelais?

    No difcil perceber como, em O queijo e os vermes,

    Ginzburg mostra ao leitor que no possvel compreender

    Menocchio mediante uma relao causal com sua poca. Ginzburg

    se recusa a dar explicaes do tipo: Menocchio foi mais um caso

    do esprito de revolta contra as autoridades, tal como podemos ver

    nos luteranos.... Menocchio parece no simbolizar coisa alguma,

    no representar nada, nenhuma mentalidade, ou estrutura...

    Menocchio era um homem simples, que no pertencia s elites,

    mas teve acesso aos principais livros da poca, lendo-os, porm,

    (sobretudo a Bblia), de uma maneira muito singular e prpria.

    Tal interpretao foi possivelmente infl uenciada pela cultura oral

    popular existente na poca, e foi sufi cientemente peculiar a ponto

    de incomodar profundamente a Igreja.

    Ginzburg mostra como Menocchio uma brecha, uma fenda

    na qual se expressa uma cultura oral; mas tal expresso s possvel

    graas Reforma e Imprensa, que permitiu a difuso dos livros por

    ele lidos. Tal cultura oral, rebelde e insolente em Menocchio, no

    atemporal. Na verdade, sua insurgncia contra a Igreja um sintoma

    de perodos de crise, na qual a cultura popular, sempre tranquila em

    sua estabilidade, passa a imaginar tempos melhores no passado, e

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    15

    considera a sua situao presente como corrupta e degenerada. O

    que se pode dizer o seguinte: Menocchio um excelente indcio

    da crise, sem o qual esta poderia ser lida de maneira diferente,

    menos rica talvez. Assim, v-se a circularidade na obra de Ginzburg,

    inspirada em Mikhail Bakhtin, ainda que de maneira invertida:

    um simples campons que obriga a releitura do todo social, e no

    o literato (Rebelais) que se esvai para o popular.

    a partir deste ponto que Ginzburg cria o chamado paradigma

    indicirio, instrumento que permitir a Ginzburg obter um rendimento

    maior da ideia de circularidade retirada de Bakhtin. Esta , sem dvida,

    uma das caractersticas mais polmicas da obra de Ginzburg. Afi nal,

    como ler o particular? Entenda-se o particular como justamente aquilo

    que parece no representar nada, nenhuma mentalidade, classe social

    etc. A pergunta no nova no mbito da cincia histrica, pois o

    prprio cerne do historicismo, como voc aprendeu na aula sobre

    historicismo. Droysen, em 1857, afi rmava que a histria deveria buscar

    as anomalias, e no as analogias, e que o conhecimento de tais

    anomalias era fruto do lugar do homem na criao divina. Lembrete:

    a anomalia aqui algo incomparvel, indito, surpreendente. No

    podemos ter acesso ao todo, pois a viso da luz pura nos cegar;

    podemos ter acesso aos seus refl exos e deles ter conscincia. Claro

    que o uso de Ginzburg do aforismo de Aby Warburg, Deus est no

    particular, de cunho metafrico, mas, em certo sentido, a busca de

    uma cincia do individual to antiga quanto a prpria historiografi a

    cientfi ca moderna.

    Por outro lado, diferentemente do que poderiam ter feito os

    historicistas, Ginzburg oferece um novo caminho de dilogo, a saber,

    com a psicanlise. um recurso muito interessante, de modo que os

    indcios, isto , as pistas deixadas pelos agentes histricos, seriam

    frutos da espontaneidade e no do ato deliberado, calculado e

    consciente. Guardando que espontaneidade justamente o oposto

    do automtico cotidiano (como na defi nio de Le Goff), podemos

    ter a uma pista interessante para compreender uma determinada

    poca da histria.

  • Historiografi a Contempornea

    16

    E como a psicanlise ajudar a fundamentar a ideia de

    indcio? O indcio, de alguma maneira, fruto de um ato, mas

    no o ato aparentemente signifi cativo, no qual todos prestam

    ateno imediatamente. , antes, um sintoma, um vestgio, uma

    pista discreta, que exige interpretao. Exemplo: imagine encontrar

    algum que voc conhece muito bem. Essa pessoa, normalmente,

    se veste de maneira muito caprichada e aprumada quando vai

    ao trabalho ou a um encontro social. Um dia, a vemos quase

    andrajosa, excessivamente despojada, usando farrapos e uma

    estranha combinao de cores. A roupa um indcio de que algo

    (ainda misterioso) deve ter acontecido com uma pessoa geralmente

    vaidosa.

    Para entender a infl uncia da psicanlise para Ginzburg,

    importante recorrer ao texto em que esta teoria est exposta

    de maneira mais clara. O texto chama-se Sinais: Razes de um

    paradigma indicirio, certamente um dos mais infl uentes do sculo

    XX, no qual Ginzburg procura evitar a dicotomia entre aparncia e

    essncia, mostrando como o indcio se inscreve na prpria aparncia

    da obra.

    As infl uncias de Ginzburg

    Alm de se referir psicanlise, Ginzburg cita

    tambm as histrias de detetive criadas por Arthur

    Conan Doyle (1859-1930), com o famoso detetive

    Sherlock Holmes como personagem principal. Ora,

    nenhum criminoso gosta de ser pego e faz o possvel

    para esconder e apagar todo e qualquer trao que sir-

    va de pista para sua identidade. Portanto, caber ao

    detetive encontrar o autor do crime mediante os sinais

    inconsciente e involuntariamente deixados pelo segun-

    do. Da mesma forma, cabe ao historiador buscar as

    pistas por detrs das intenes dos agentes histricos.

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    17

    Segundo Henrique Espada Lima (LIMA, 2006, p. 371), a

    maneira como Ginzburg analisa os depoimentos de Menocchio

    muito parecida com o mtodo usado por um psicanalista para

    examinar seu paciente. O historiador italiano usa recursos como a

    busca de atos falhos e as associaes livres, igualmente explorados

    na clnica psicanaltica.

    Ginzburg tambm cita o mtodo criado por Morelli,

    um crtico de arte, para identifi car obras apcrifas, isto

    , obras de autoria falsa como um quadro assinado

    por um autor famoso mas que, na verdade, foi pintado

    por outra pessoa, um imitador competente e mal-

    intencionado. Segundo Morelli, nos conta Ginzburg,

    nos pequenos detalhes que podemos identifi car a

    autenticidade e perceber a falsidade de uma obra (por

    exemplo, a forma como um determinado autor dese-

    nha as unhas dos ps de suas fi guras etc.)

    Associao-livre e ato falho

    Associao-livre uma tcnica utilizada no

    tratamento psicanaltico. Ela

    (...) consiste em exprimir indiscriminadamente

    todos os pensamentos que ocorrem ao esprito,

    quer a partir de um elemento dado (palavra,

    nmero, imagem de um sonho, qualquer

    representao), quer de forma espontnea

    (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 38).

    Por exemplo, ao ouvir o relato de um sonho de seu

    paciente, o psicanalista o leva a estabelecer livremen-

    te cadeias associativas entre palavras e imagens que,

    a princpio, no tm uma relao objetiva entre si.

    AA

  • Historiografi a Contempornea

    18

    Por outro lado, o uso da psicanlise coloca Ginzburg em um

    impasse. Se uma de suas crticas mais ferozes a Febvre consistia

    justamente no carter interclassista de sua obra, como entender

    a qualidade da insolncia de um Menocchio e de sua maneira

    peculiar de ler o mundo? Se os atos de Menocchio so indcios e

    estes so inconscientes , como entender a conscincia do moleiro

    sobre os seus prprios atos? Afi nal, fi camos com a sensao de

    que Menocchio no tinha a dimenso da revolta que ele mesmo

    causava apesar de ter pago com a prpria vida por ela. Somente

    o historiador poderia perceber essa dimenso. E justamente

    esse ponto que ser motivo para crticas a Ginzburg. Um dos

    principais crticos o historiador americano Dominick La Capra,

    que apresentaremos no prximo ponto.

    Mas, apesar das crticas sofridas, Ginzburg abriu novas

    portas para a pesquisa histrica. Agora, veremos como a crtica

    histria das mentalidades e a busca por um paradigma indicirio

    J ato falho o ato em que o resultado explicitamen-

    te visado no atingido, mas se v substitudo por ou-

    tro. Fala-se de atos falhos no para designar o conjun-

    to de falhas da palavra, da memria e da ao, mas

    para as aes que habitualmente o sujeito consegue

    realizar bem (...) (idem, p. 44). Segundo Freud, o

    ato falho seria a forma que o desejo inconsciente teria

    para se revelar de maneira clara. Por exemplo: quan-

    do trocamos o nome de uma pessoa (que conhecemos

    bem, e por isso no h como esquecermos seu nome)

    pelo nome de outra pessoa, que tambm conhecemos

    bem. O ato falho no vale, como afi rmam Laplanche

    e Pontalis, para casos em que a palavra no conhe-

    cida, como, por exemplo, quando se tenta falar um

    idioma estrangeiro do qual temos ainda um vocabul-

    rio reduzido.

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    19

    se tornam realidade na escrita da histria, pois tanto a crtica

    ideia de mentalidades como a busca por indcios levam a uma nova

    concepo do objeto da histria. No lugar das totalidades dos

    Annales (civilizao, mentalidade, sociedade etc), Ginzburg prope

    a investigao de temas que representem um excepcional normal.

    Dito de outra maneira: o objeto histrico no deve ser, de um lado,

    algo totalmente singular, diferente do contexto em que se insere

    (como talvez preferissem os historiadores do sculo XIX, de um modo

    geral), mas tambm no deve ser algo amplo, geral, panormico,

    abstrato, como mentalidade, sociedade, civilizao... O ideal seria

    um meio-termo: compreender melhor uma sociedade mediante o

    estudo de uma singularidade especfi ca. Trata-se de buscar algo

    imprevisvel, de modo que uma poca pode mostrar suas brechas,

    e, portanto, suas possibilidades de transformao. Menocchio no

    extemporneo, mas suas atitudes no so reaes a estmulos,

    reaes a condies sociais dadas. fundamental compreender

    Menocchio como algum capaz de agir com automomia, pois d

    cultura popular uma qualidade diversa. Esta no mais trabalhada

    somente no eixo das grandes estruturas sociais e mentais. Passa

    tambm a ter expresso prpria, concreta e singular, e no , assim,

    trabalhada como massa amorfa e indistinta, na qual os indivduos

    no se diferenciam entre si. Os Annales criticavam o dolo do

    indivduo, e apresentavam uma estrutura social ampla. Ginzburg

    procura mostrar que h, sim, espao para o indivduo na histria,

    mas esse indivduo no necessariamente de elite social e cultural,

    mas algum pertencente cultura popular, e, mais do que isso, sua

    ao mostra que as camadas sociais inferiores tm, sim, margem

    para ao, em vez de serem meras vtimas passivas.

    O excepcional normal a expresso encontrada por Ginzburg

    para falar da circularidade. Esta circularidade se d entre cultura

    popular e de elite, entre indivduo e sociedade. Cultura popular e

    cultura de elite no esto separadas de maneira estanque e defi nitiva.

    A cultura popular se defi ne, tambm, por uma forma especfi ca de ler

    a cultura de elite, e perfeitamente capaz de transform-la. Neste

    sentido, o conceito de circularidade procura mostrar como as classes

  • Historiografi a Contempornea

    20

    se relacionam, em vez de dissolver os seus confl itos em conceitos

    mais amplos e vagos como o de mentalidade ou civilizao,

    termos da predileo de Lucien Febvre, por exemplo. O mesmo vale

    para a relao entre indivduo e sociedade; embora o primeiro seja

    impensvel sem a segunda, isto no signifi ca que todos os indivduos

    existentes em determinado grupo social sejam iguais entre si.

    Atende ao Objetivo 1

    1. Leia atentamente a seguinte passagem de O queijo e os vermes.

    Nos discursos de Mennocchio, portanto, vemos emergir, como que por uma fenda

    no terreno, um estrato cultural profundo, to pouco comum que se torna quase

    incompreensvel. Esse caso, diferentemente dos outros examinados at aqui, envolve

    no s uma reao fi ltrada pela pgina escrita, mas tambm um resduo irredutvel de

    cultura oral. Para que essa cultura diversa pudesse vir luz, foram necessrias a Reforma

    e a difuso da imprensa. Graas primeira, um simples moleiro pde pensar em tomar

    a palavra e expor suas prprias opinies sobre a Igreja e sobre o mundo. Graas

    segunda, tivera palavras sua disposio para exprimir a obscura, inarticulada viso

    de mundo (GINZBURG, 2006, p. 104).

    A partir desta passagem, identifi que de que forma a relao entre cultura de elite e cultura

    popular fundamental para o entendimento da ideia de circularidade.

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  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    21

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    Resposta Comentada

    Neste trecho, Ginzburg sintetiza bem a noo de circularidade. Mennocchio um homem

    da cultura popular, e, enquanto tal, infl uenciado pela oralidade. Mas essa cultura oral teria

    permanecido sem difuso, e mesmo sem testemunho, no fossem dois fenmenos essencialmente

    atribudos a um contexto mais amplo da poca, inseridos na elite: a reforma protestante e a

    imprensa. Se o protesto da cultura popular algo digno de nota, por outro lado, ele s pde

    incomodar por causa das foras existentes na dita cultura de elite. Assim, cultura popular e

    cultura de elite se misturam, sem deixar, com isso, de terem tenses entre si.

    Dominick La Capra: o dialogismo na histria cultural

    Assim como Ginzburg, o historiador americano Dominick La

    Capra sofreu infl uncia de Mikhail Bakhtin, mais especifi camente

    no conceito de dialogismo.

    Vale a pena relembrar um pouco o que foi estudado na

    aula anterior: Bakhtin desenvolve o conceito de dialogismo para

    explicar como a potica de Dostoivski no pode ser vista, de modo

    algum, como monolgica, ou seja, o autor no precede os seus

    personagens e faz deles uma espcie de porta-voz. A essncia dos

    personagens e sua expresso potica se equivalem, e o narrador do

    romance no faz deles representantes de algo exterior ao texto: um

    personagem no smbolo de uma classe, ou de uma ideia em

    vigor na poca, ou de uma instituio etc. Os personagens, ento,

  • Historiografi a Contempornea

    22

    vivem em confl ito, demonstrando a abertura de si mesmos e do ambiente

    em que circulam. Torna-se, portanto, extremamente difcil impor um

    sentido unifi cado, uma mensagem, aos personagens de Dostoivski.

    E isto importante para a histria cultural: o texto no um documento de

    outra realidade que existe fora dele, no uma referncia de alguma

    outra coisa, seja uma mentalidade, uma crise social e econmica etc.

    La Capra, ento, aplica tais conceitos para a anlise de

    Memrias do subsolo (LA CAPRA, 1989, p. 35-55), a novela de

    Fidor Dostoisvki da qual voc j tomou conhecimento na aula

    anterior. La Capra, extremamente impregnado pelo pensamento

    de Bakhtin, demonstra como o narrador de Memrias do subsolo

    demanda um determinado tipo de leitura. A relao se subverte: o

    leitor tem bastante limitadas suas possibilidades de interpretao,

    ou seja, de imposio de sentido oculto, pois a prpria personagem

    impe tal limite, uma vez que (a) as outras personagens s existem

    na medida em que dizem respeito conscincia e imagem que

    a personagem principal tem delas, no criando ento um terreno

    neutro em que o espectador pudesse se situar; (b) a personagem faz

    as vezes de leitor de si mesmo, antecipando as respostas que o leitor

    lhe poderia dar. O texto no um documento referencial, mas algo

    que exige ser interpretado nos limites de sua prpria linguagem.

    Feitos estes comentrios iniciais sobre La Capra, para falar dele

    adotaremos a mesma estratgia utilizada para tratar de Ginzburg: em

    primeiro lugar, importante, mediante a crtica aos predecessores (no

    caso de La Capra, o alvo o prprio Ginzburg!), entender como ele

    se insere na histria da historiografi a; depois, veremos que conceito

    ser importante para que ele torne efi caz essa crtica (novamente, a

    infl uncia da psicanlise ser decisiva); e, por fi m, com o auxlio deste

    novo conceito, que tipo de aplicao ser feito e que tipo de tema o

    historiador da cultura dever privilegiar em seus estudos.

    Sobre a crtica de La Capra ao livro O queijo e os vermes, de

    Ginzburg, curioso que ele a sustente mediante um conceito de Bakhtin,

    autor tambm importante para Ginzburg. S que, diferentemente de

    Ginzburg, para quem o conceito central circularidade, para La

    Capra ser o de dialogismo.

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    23

    La Capra, em um artigo exclusivamente dedicado a criticar

    O queijo e os vermes (LA CAPRA, 1985, p. 45-70), comenta que,

    apesar das crticas de Ginzburg histria das mentalidades, em

    momento algum ele escaparia de uma oposio binria entre cultura

    escrita e cultura oral, sem a qual Menocchio impensvel. Ou seja,

    ao tentar demonstrar a audcia de Menocchio, e, portanto, o carter

    confl ituoso presente na ideia de circularidade aplicada ao incio

    da era moderna, Ginzburg lana mo de uma ideia arraigada de

    inconsciente popular (por exemplo, dizendo que em determinadas

    circunstncias de crise, a cultura popular, via oralidade, sempre

    reage de uma determinada maneira). O resultado a unifi cao da

    experincia. Dito de outra maneira: o inconsciente popular, segundo

    La Capra, uniformiza todos os membros da camada popular. La

    Capra parece dizer o seguinte: Ginzburg no abandona tanto o

    conceito de mentalidade quanto gostaria de faz-lo.

    Para La Capra, somente o conceito de dialogismo d

    experincia singular uma capacidade de resistncia perante os

    modelos explicativos dos intrpretes.

    Dominick La Capra

    Lamentavelmente, Dominick La Capra, professor

    de histria da prestigiosa Universidade Cornell,

    nos EUA, ainda no teve sequer um livro traduzido

    para o portugus e editado no Brasil, o que empobre-

    ce o debate da histria cultural em nosso pas. Suas

    principais obras, como History and Criticism (Histria e

    crtica), History, Politics and the Novel (Histria, poltica

    e romance), Madame Bovary on Trial (Madame Bovary

    em julgamento) e inmeros ensaios sobre histria inte-

    lectual, teoria da histria e refl exes sobre o Holocausto

    permanecem ainda sem verso em lngua portuguesa.

    D

  • Historiografi a Contempornea

    24

    A crtica a toda forma de interpretao unifi cadora, que

    torna a cultura homognea, uma grande caracterstica da obra

    de La Capra. Em seu belo texto Rethinking intellectual history and

    reading texts (Repensando a histria intelectual e lendo textos), La

    Capra identifi ca seis pecados interpretativos (cf. La Capra, 1982,

    p. 47-85): (a) intencionalismo com o que partilharia Ginzburg,

    e, veremos, Chartier; (b) biografi smo a tentativa de explicar uma

    obra a partir de experincias da vida do seu autor dadas fora do

    seu trabalho; (c) determinismo sociolgico; ver a obra como puro

    refl exo ideolgico de confl itos e estruturas sociais; (d) mentalidades

    exatamente o que ele acusa em Ginzburg, e, por exemplo, no (belo)

    livro de Carl Schorske, Viena Fin-de-Sicle, em que o autor veria

    sintomas distintos (na literatura, na arquitetura, na psicanlise etc.)

    para a mesma essncia, a saber, a relao entre poltica e cultura

    no clima de decadncia modernista vienense; (e) unidade da obra

    tentar compreender a trajetria de um artista ou de um intelectual

    a partir, por exemplo, de conceitos como obra-prima, mediante

    a qual cria-se uma espcie de fi nalidade convergente de variados

    fenmenos; (f) anlises tropolgicas nas quais o texto afogado

    em estruturas das quais o autor no tem qualquer conscincia, mas

    que podem ser objetivamente estabelecidas. O melhor exemplo na

    historiografi a , sem dvida, Hayden White.

    Ficamos tentados a perguntar: o que resta, ento? O texto, em

    sua inabalvel pureza, sem nenhuma relao com sua poca? La

    Capra sabe dos riscos, e evita afi rmar uma metafsica individual,

    ou, para dizer de outra maneira, ele evita colocar o texto em

    um pedestal inatingvel. Contra a viso referencial e documental

    do texto, de nada adianta cair no textualismo radical, pois o

    principal na crtica viso documentalista (em que o texto apenas

    smbolo de outra instncia da realidade) o seguinte: pela viso

    documentalista, aprendemos no texto o que podemos aprender

    por outros documentos, e, assim, ele apenas confi rma o j sabido.

    Ao pensar um texto, o historiador deve ser capaz de pensar sobre seu

    prprio trabalho, ou seja: h de se ter uma relao dialgica com

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    25

    o texto, que, por sua vez, ser uma rede de resistncias. Isto : o

    texto no ser bem-interpretado caso apliquemos nele, de maneira

    apressada, nossas concepes de mundo. Ele ser uma rede de

    resistncias na medida em que nos no nos identifi camos com ele

    quantas vezes dizemos que tal histria tima! Parece que estava

    falando da minha vida!? O bom texto no fala da nossa vida tal

    como a concebemos; simplesmente obriga a mudarmos nossa forma

    de perceber as coisas e o mundo. Tanto melhor ser um texto quanto

    mais ele no deixar o historiador interpret-lo de qualquer maneira,

    de acordo apenas com suas preferncias pessoais e interesses muitas

    vezes ideolgicos. O dilogo com o texto , portanto, importante,

    porque o historiador precisa rever suas posies a cada momento

    de interpretao do texto. O passado no uma totalidade pronta

    a ser descoberta; na verdade, sempre algo cujo conhecimento

    permanecer inacabado. por isto que o historiador no pode

    dizer o que bem entende sobre um texto: necessrio estar aberto

    para um dilogo com o mesmo.

    E, para demonstrar como o texto pode ser entendido, isto ,

    no sendo documento ou referncia de uma outra coisa, mas tambm

    tomando o cuidado para no ser algo totalmente fechado em si

    mesmo, La Capra tal como Ginzburg! procurar apoio conceitual

    na psicanlise. Um conceito de extrema utilidade aqui ser o da

    crtica feita por La Capra postura narcisista dos historiadores, a

    saber, sua tentativa de criar uma narrativa unifi cada de si mesmo, ou,

    para usar um termo j utilizado, uma narrativa total. Tal narcisismo

    superado, segundo ele, quando a relao com o passado de

    transferncia, ou seja, aquela em o passado no engolido pelo

    presente. Na verdade, o outro aparece como parceiro constante na

    formao da identidade do sujeito, e no algo totalmente assimilvel

    ou descartvel (LA CAPRA, 1985, p. 71-73).

  • Historiografi a Contempornea

    26

    Assim, um texto bom ser aquele capaz de romper e criticar

    a imagem que temos de ns mesmos, um texto indispensvel (do

    passado) para compreendermos nossa prpria poca, nosso

    prprio presente.

    Para La Capra, isso abre um novo campo de objetos para

    o estudo da histria cultural, a saber, o texto clssico. O grande

    clssico justamente o texto resistente s narrativas narcsicas,

    ou seja, sobretudo, s narrativas especializadas. Autores como

    Sigmund Freud, Karl Marx e Machado de Assis no podem pertencer

    exclusivamente teoria psicanaltica, economia ou crtica

    literria; necessrio que se demonstre, justamente, o que neles h

    de resistente ao tempo e s fronteiras entre as disciplinas cientfi cas, e

    justamente este aspecto que permite seu tratamento interdisciplinar

    e coordenativo, to caro a Jacob Burckhardt e histria cultural,

    conforme voc viu na aula anterior.

    Narcisismo (...) o amor pela imagem de si

    mesmo (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p.

    287). Essa imagem, porm, no o refl exo de si

    (como um espelho), mas, sim, em um outro corpo,

    em outro objeto. Aplicando na prtica: ao estudar

    um objeto para buscar a ideia de civilizao, men-

    talidade, sociedade, procura-se uma totalidade sem

    brechas, perfeita. Trata-se de um conceito que Freud

    elaborou bastante ao longo de sua vida, de modo que

    uma defi nio breve ser sempre insufi ciente.

    Transferncia (...) o processo pelo qual os desejos

    inconscientes se atualizam sobre determinados objetos

    (idem, p. 514). A transferncia a condio que torna

    possvel o tratamento psicanaltico, ou seja, a elabora-

    o de desejos do sujeito, de seu inconsciente etc.

    N

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    27

    Pense no seguinte: o clssico no pode ser explicado somente

    pela poca em que foi criado, em que surgiu. Imagine o seguinte

    exemplo: os poemas de Homero foram criados na Grcia antiga,

    e ainda so lidos at hoje. Mas nenhuma das condies sociais,

    econmicas e polticas da Grcia homrica existem mais; e se

    pudssemos entender a Ilada e a Odisseia, se compreendssemos

    a economia, a poltica e a sociedade gregas de ento, como seria

    possvel ainda desfrutar e aprender com Homero? E o mesmo vale

    para autores como William Shakespeare, Miguel de Cervantes... s

    para citar alguns. este o sentido do dialogismo, tal como Dominick

    La Capra o entende. O dilogo se d entre passado e presente.

    Mas todos os historiadores no fariam esse dilogo? De certa

    forma, sim. Mas, para La Capra, a questo mais profunda. Ao

    ler um texto como indcio, como pista, estou buscando algo

    que uma poca no sabia sobre si mesma ou da qual no tinha

    conscincia assim como um criminoso no quer deixar pistas que

    revelem sua identidade, ou seja, o historiador se julga capaz de

    saber mais sobre um homem de outra poca do que ele sabia sobre

    si mesmo. Para La Capra, o dilogo se d sempre que o estudo de

    uma outra poca revela que no tenho como saber tudo sobre uma

    poca. O historiador passa a conhecer suas prprias ignorncias,

    por assim dizer.

    A contribuio de La Capra tanto mais interessante porque,

    alm de enfatizar a relao dialgica entre passado e presente, e,

    nisto, muito semelhante s contribuies feitas pela Esttica da

    Recepo e por Hans-Georg Gadamer que voc estudar logo

    a seguir, quando for estudar um pouco da obra de Roger Chartier

    , mas, tambm, por entender que o tratamento dos clssicos s

    possvel por uma coordenao de abordagens que, em vez de

    lhe esgotarem o signifi cado por uma mera superposio de foras,

    engrandece-lhe o signifi cado.

  • Historiografi a Contempornea

    28

    Atende ao Objetivo 2

    2. Por que, para Dominick La Capra, o conceito de dialogismo um instrumento importante

    para a crtica histria total?

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    Resposta Comentada

    O conceito de dialogismo indica que um historiador no tem como saber mais de um texto do

    que seu autor. Isto , no tem como avaliar o que h de inconsciente nas intenes desse autor

    que ele estuda. Na verdade, ao ler um texto, o historiador acaba descobrindo suas prprias

    limitaes como intrprete. Ao tentar encontrar o sentido em alguma fonte, ele descobre que

    essa fonte inesgotvel.

    Assim, constri-se um dilogo, isto , o meu saber no autossufi ciente, ele se constri a partir

    da leitura dos textos. E esta leitura no me leva a uma totalidade, mas a conhecer as fronteiras

    de meu conhecimento.

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    29

    Roger Chartier e o conceito de apropriao

    Tentaremos, por meio da apresentao de algumas refl exes

    e aspectos da obra de Roger Chartier, demonstrar uma espcie de

    alternativa intermediria s propostas de Carlo Ginzburg e Dominick

    La Capra. No est aqui implcito nenhum posicionamento, apenas

    uma exposio da forma como trs autores distintos tentam resolver

    o problema apresentado na introduo deste texto.

    O primeiro passo consiste em identifi car semelhanas entre os

    autores. Neste sentido, a abordagem de Chartier parecida (mas

    no idntica) tanto com a de La Capra como com a de Guinzburg

    (CHARTIER, 2002).

    Chartier reconhece a crtica da histria das mentalidades

    histria intelectual, afi rmando que h sentido em fazer reservas a

    uma noo voluntarista de cultura, em que o todo social se dissolveria

    nas ideologias conscientemente formuladas. Mas, segundo Chartier,

    a tal oposio se formulou um essencialismo, presente de maneira

    mais mitigada no conceito de equipamento mental de Febvre, e

    mais forte no conceito de mentalidade, de Le Goff. O conceito

    de utensilagem, de alguma maneira, reservava ao indivduo uma

    margem de ao consciente em meio a um repertrio possvel.

    O mesmo no era possvel com o conceito de mentalidade, que

    indicava o automtico e o cotidiano.

    De alguma maneira, Chartier tem semelhanas com Ginzburg,

    nomeadamente na tentativa de encontrar uma alternativa ao

    voluntarismo da antiga histria intelectual e ao determinismo da

    histria das mentalidades, seja no estilo mais brando de Febvre,

    seja no mais rigoroso de Le Goff. Como Ginzburg, Chartier procura

    dissolver a fronteira entre erudito e popular, mas talvez menos por

    querer enfatizar as brechas sinalizadoras de confl itos, e mais pelas

    formas como operava essa circularidade. Por exemplo: se Menocchio

    lia livros, como ele os lia? E como tais obras chegaram s suas

    mos? Para que tal problema ganhe relevo em sua obra, Chartier

    destacar o conceito de apropriao.

  • Historiografi a Contempornea

    30

    Com Dominick La Capra, Chartier tem uma semelhana,

    qual seja a anlise bastante cerrada dos textos como ele faz,

    por exemplo, com a pea Georges Dandin, de Molire, de que

    falaremos mais tarde. Para compreender a maneira como a pea de

    Molire produz sentido nos contextos em que encenada, Chartier

    no se furta a notar que a recepo ambivalente (ou polivalente)

    da pea est de alguma maneira inscrita no texto, quando Molire

    usa em uma comdia termos normalmente empregados para uma

    tragdia, como temor etc.

    Mas Chartier aponta riscos para as posturas adotadas por La

    Capra e Ginzburg. bom que se diga que, em momento algum, tais

    posturas so nominalmente atribudas a um e outro. De acordo com

    nossa proposta, estamos aqui tentando elaborar maneiras de pensar

    as questes tericas colocadas. Os riscos na verdade partem de um

    mesmo ponto: a aposta excessiva na ideia de autonomia (da cultura

    popular, de um lado, do texto, de outro), que, de alguma maneira,

    mata na raiz a prpria forma de construo coordenada do objeto

    da histria cultural para no dizer da prpria histria nos termos

    propostos por Burckhardt e Carl Schorske, tal como apresentados

    na aula anterior desta mesma disciplina.

    O grande risco da ideia de circularidade pelo qual Bakhtin

    no pode ser responsabilizado consiste em se criar uma ideia de

    cultura popular pura, que alimentaria a cultura erudita, tanto como

    seria capaz de, a partir de suas prprias referncias, absorver

    elementos daquela. No se pode insistir na ideia de autonomia,

    algo que manteria a dicotomia igualmente sustentada por uma

    diviso elitista entre eruditos e populares.

    O grande risco do dialogismo seria cair em uma forma de

    textualismo radical, no qual o texto um campo fechado de signos.

    Fundamentalmente, a potica toma o lugar do prprio autor, e a

    lgica da produo de sentido fi ca totalmente abstrata, desapegada

    do autor e, claro, da sua forma de circulao social e apropriao

    por outros homens, a comear pelo prprio pblico leitor. Levado

    ao extremo, haveria apenas uma forma correta e atemporal de

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    31

    ler um texto a saber, aquela que decifrasse os mecanismos de

    funcionamento potico do mesmo , e as diferentes formas de leitura

    seriam desconsideradas.

    De que maneira Chartier ir encontrar um meio-termo? Para

    ele, ser fundamental o conhecimento da ideia de recepo,

    proveniente da teoria literria, mais especifi camente, da chamada

    esttica da recepo, elaborada por tericos como Hans-Robert

    Jauss e Wolfgang Iser, na Universidade de Konstanz (Alemanha),

    aps a Segunda Guerra Mundial.

    Para autores como Jauss e Iser, o texto fi ccional sempre

    precisa do complemento do leitor. Ele no uma estrutura fechada,

    um mecanismo com leis prprias e atemporais, mas, segundo

    eles, faz parte da experincia esttica a participao do leitor/

    ouvinte/espectador. como afi rma Luiz Costa Lima, tambm um

    terico da literatura e introdutor das discusses sobre esttica da

    recepo no Brasil:

    (...) se a arte tem uma fi nalidade em si, se sua qualidade

    depende to-s de sua estruturao interna, a qual no tem

    satisfaes para dar ao mundo, nem h de se preocupar com

    o efeito que causa, i.e., se absolutamente auto-referente (...)

    como pode interessar a um nmero considervel se no estiver

    apoiada ou conjugada a um outro tipo de experincia, de

    algum modo pragmtica? (LIMA, 2000, p. 51).

    A Escola de Konstanz

    A Escola de Konstanz contou com nomes de

    grande peso intelectual, como Hans-Robert

    Jauss, Wolfgang Iser, Hans-Ulrich Gumbrecht,

    Karlheinz Stierle, entre outros. O fato de a teoria da

    recepo mostrar que inerente prpria obra de

    arte gerar um efeito sensvel no pblico torna possvel

    AA

  • Historiografi a Contempornea

    32

    Apesar de seu dbito com a esttica da recepo de origem

    alem, Chartier se preocupa em marcar uma diferena em relao

    a autores como Jauss e Iser, procurando mostrar que a ideia de

    recepo, ali, se d na forma de leitura silenciosa feita com o olho

    (que uma forma historicamente circunscrita de se ler), entre a

    pgina do livro e a mente do leitor. O pressuposto que o espao

    de produo de sentido (o formato de um livro, a arquitetura de um

    teatro etc.) torna-se neutro, isto , ele incapaz de produzir sentido.

    Para Chartier, assistir a uma mesma pea, de um mesmo autor,

    dirigida por um mesmo diretor em outro teatro j altera o sentido e

    a interpretao da pea. Os fatores arquitetnicos, a localizao

    do teatro na cidade onde encenado... tudo isto conta para a

    interpretao da pea.

    Apenas um adendo, a propsito das reservas de Chartier em

    relao esttica da recepo: aceitvel a crtica de Chartier,

    mas uma leitura de alguns trechos de Verdade e mtodo, a principal

    obra de Gadamer, teria feito com que suas crticas fossem mitigadas.

    Nessa obra clssica da hermenutica contempornea, Gadamer

    desenvolve o conceito de simultaneidade, desenvolvido justamente

    a propsito do espetculo teatral (com o qual Chartier se ocupou, no

    a articulao entre arte e sociedade, sem que se

    perca o valor esttico das obras de arte (e assim

    elas seriam bem mais do que mero refl exo de estru-

    turas sociais). Assim, a teoria da recepo um dos

    caminhos mais frteis para o debate entre histria e

    literatura.

    O fundamento fi losfi co da teoria da recepo a

    hermenutica fi losfi ca, sobretudo, tal como desenvol-

    vida por Hans-Georg Gadamer, ainda que os autores

    citados tenham se esforado em, sem deixar de re-

    conhecer a importncia de Gadamer, se separar dos

    elementos fi losfi cos de seu pensamento.

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    33

    texto sobre Dandin, de Molire): neste conceito, Gadamer demonstra

    que o palco teatral um lugar poltico por excelncia, pois no

    h como saber previamente seu resultado. Cada execuo um

    acontecimento, como se fosse a pura contingncia anloga ao fato

    histrico, mas seu signifi cado no autnomo em relao ao texto.

    Ambos so indiscernveis, texto e cena. isso que levar Gadamer

    a afi rmar que toda repetio to original quanto a prpria obra.

    Mas deve ser lembrado que Gadamer no se esmerou em fazer

    pesquisas concretas sobre tal situao (era fi lsofo, no historiador),

    mas sua importncia fi losfi ca inegvel.

    O desafi o enfrentado por Roger Chartier no pequeno:

    como transportar para a pesquisa histrica conceitos desenvolvidos

    para resolver problemas referentes esttica e teoria e histria

    literria? Em meio a tais adeses e crticas, Chartier procura mostrar

    que se deve buscar a dinmica entre norma e experincia, entre

    parmetros sociais e textuais dados objetivamente e as maneiras

    como os diferentes atores culturais se apropriaram de tais fatores

    objetivos. Procura-se, assim, ver como possvel representar

    de maneira peculiar um mundo dado e no qual os homens j

    se encontram (permitindo assim sua releitura), mas sem cair no

    voluntarismo e no populismo. H tambm limites representao,

    dados em ambientes fora do texto.

    E como Roger Chartier aplicar e praticar tais crticas e

    ponderaes tericas? Um bom exemplo desta abordagem o

    texto Da festa da corte ao pblico citadino (cf. Chartier, 2003),

    em que Chartier apresenta duas maneiras distintas de apropriao

    e encenao do texto de Georges Dandin, uma das peas de

    Molire. Este em si, como j apontamos, ambguo em sua forma

    cmica repleta de vocabulrio trgico.

    Na festa da corte, a encenao da pea fez parte dos festejos

    reais pela conquista do Franco-Condado e pelo estabelecimento da

    paz. Era uma celebrao tipicamente barroca, em que a decorao

    em Versalhes foi feita de maneira muito semelhante prpria cena,

    de modo que as fronteiras entre realidade e iluso tornaram-se bem

  • Historiografi a Contempornea

    34

    menos ntidas. Experimenta-se a realidade como iluso (cascatas de

    gua, fogos de artifcio) e a iluso como a realidade quando, por

    exemplo, o texto de Molire fala do casamento de um campons

    com uma fi lha de famlia nobre. Neste sentido, o texto tem um

    elemento interno prprio, a saber: a quem cabe a defi nio dos

    papis sociais?

    O carter ilusrio mais reforado porque, naquele momento,

    a pea correspondia aos desejos da nobreza. Naquele contexto,

    a atribuio da nobreza era exclusividade do rei este, portanto,

    dizia o lugar social de cada um ao passo que, na pea, cabe

    nobreza (como coletividade) a distribuio dos papis sociais. Como

    os espectadores eram da corte, tem-se a iluso de que a pea fala

    de um real verdadeiro, com o qual os nobres se identifi cam.

    J para o pblico parisiense, o texto demonstra o carter

    ridculo e arrivista do burgus que deseja ser nobre, mas, ao mesmo

    tempo, consola por demonstrar que o ridculo se d em qualquer

    tentativa de romper o equilbrio da ordem natural da sociedade, bem

    como mostra que s genuinamente ridculo quando exagerado, e

    no ponderado e razovel.

    O texto pode ser lido de duas maneiras e se apropria de

    signifi cado nas recepes feitas na corte e na cidade, ganhando

    ambiguidade. Assim, percebe-se como, para Chartier, um texto

    fi ca mais rico quando o historiador consegue enumerar e compilar

    as formas como ele recebido. Afi nal, como pode uma pea ser

    recebida de maneira distinta tanto pela nobreza como pela burguesia

    urbana? Esta a plasticidade da obra, algo que muito possivelmente

    somente a arte pode engendrar. Se um texto cientfi co, a princpio

    dotado da inteno de ser objetivo, se mostra involuntariamente

    ambivalente e ambguo, h algum problema com o prprio texto.

    Mas se algo semelhante acontece com uma pea de teatro, porque

    ela, de alguma maneira, permite ser apropriada de diferentes

    maneiras, e, assim, permite tambm uma leitura da sociedade.

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    35

    Atende ao Objetivo 3

    3. Leia atentamente os trechos abaixo, extrados do artigo A histria entre narrativa e

    acontecimento, de Roger Chartier.

    A micro-histria italiana (...) ofereceu a traduo mais viva da transformao

    desse procedimento histrico inspirado pelo recurso a modelos interacionistas ou

    etnometodolgicos. Radicalmente diferenciada da monografi a tradicional, cada

    microstoria pretende reconstruir, a partir de uma situao particular e normal, por ser

    excepcional, a maneira como indivduos produzem o mundo social, por meio de suas

    alianas e confrontos, por intermdio das dependncias que os ligam ou dos confl itos

    que os opem. Os objetos da histria no so, portanto, ou no so mais, as estruturas

    e os mecanismos que regulam, independentemente de qualquer infl uncia objetiva, as

    relaes sociais, mas as racionalidades e as estratgias executadas pelas comunidades,

    parentelas, famlias, indivduos (CHARTIER, 2002, p. 84).

    As obras no tm mais sentido estvel, universal, imvel. So investidas de signifi caes

    plurais e mveis, construdas na negociao entre uma proposio e uma recepo, no

    encontro entre as formas e os motivos que lhes do sua estrutura e as competncias ou

    as expectativas dos pblicos que delas se apropriaram (CHARTIER, 2002, p. 93).

    Lidos os trechos, identifi que de que forma Chartier busca uma via intermediria entre as

    ideias de circularidade de Ginzburg e dialogismo de La Capra, e do que ele se apropria

    de cada um dos autores.

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  • Historiografi a Contempornea

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    Resposta Comentada

    Podemos ver, que Chartier busca, tanto na microstoria como no estudo de obras especfi cas,

    contextos especfi cos. Mas os contextos no so mais, por assim dizer, uniformes, em que os

    indivduos no se diferenciam entre si, mas, na verdade, formados por estratgias entre pequenos

    grupos e a sociedade. Ou seja, no faz sentido, para Chartier, a oposio entre indivduo e

    sociedade, mas a interao entre ambos. O mesmo vale para a obra de arte; se ela no

    refl exo da sociedade, o artista tambm no um indivduo totalmente isolado do ambiente em

    que sua obra apresentada. Nem s o contexto, nem s o texto.

    CONCLUSO

    Em vez de uma frmula e de uma soluo, a nova histria

    cultural, se bem entendida, apresenta, antes de tudo, um grande

    problema: como relacionar indivduo e sociedade, texto e contexto,

    obra e pblico? Um equilbrio perfeito seria, aparentemente, o

    ideal, mas no podemos nos esquecer de que ora o contexto social

    importante, e ora um indivduo e uma obra podem ser dignos de

    mais destaque.

    O importante que o historiador tenha em mente que, para

    cada orientao de seu estudo e de sua pesquisa, ora ele pode

    pender para uma anlise mais prxima da micro-histria, ora para

    uma anlise de textos clssicos que o leva a dialogar muito com a

    teoria literria. E, por vezes, caber tambm ao historiador entender

    como se d o relacionamento entre obra e pblico, e qual o impacto

    social de uma ao individual no mbito da cultura.

  • Aula 9 A nova histria cultural (II): circularidade e textualismo

    37

    Atividade Final

    Atende aos Objetivos 1, 2 e 3

    Vimos, nos trs autores aqui abordados, diferentes maneiras de se praticar a histria cultural.

    Como cada um deles lida com a literatura? Que possibilidades Ginzburg, La Capra e

    Chartier abrem para o estudo de textos fi ccionais?

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    Resposta Comentada

    Dos trs, indiscutivelmente, La Capra quem mais privilegia a literatura. Para ele, a literatura

    histrica quando um texto sobrevive ao tempo em que foi criado. Quando uma obra literria

    ultrapassar seu tempo, porque ainda atrai os leitores pelas suas caractersticas estticas, posto

    que muitos dos aspectos sociais da poca de sua criao j no mais existem.

    J Ginzburg e Chartier enfatizam a circulao das obras, seja na construo de uma mentalidade,

    seja na forma como ela apropriada por diferentes grupos sociais. Encenar uma pea em um teatro

    burgus diferente de faz-lo em um teatro de periferia, por exemplo, por mais que o texto e os

    atores sejam os mesmos. Da mesma forma, um livro circula e lido por diversos grupos sociais, que

    adquirem conscincia de si e das fraturas culturais mediante essa obra que passaram a conhecer.

  • Historiografi a Contempornea

    38

    RESUMO

    Nesta aula, voc estudou trs formas de estudo e pesquisa da

    nova histria cultural, todas elas derivadas teoricamente do que foi

    aprendido na aula anterior sobre Mikhail Bakhtin.

    Temos a micro-histria de Carlo Ginzburg, crtica da histria

    das mentalidades de Lucien Febvre. Ginzburg procura, mediante o

    conceito de indcio, identifi car confl itos sociais onde eles so quase

    imperceptveis e, assim, encontrar a ideia de circularidade nas

    relaes entre cultura erudita e cultura popular.

    La Capra critica Ginzburg, dizendo que ele trabalha com

    uma noo ainda homognea de cultura popular. La Capra dir

    que a histria cultural deve ser praticada com os clssicos, com

    textos cuja estrutura potica permanece ainda mistriosa. Aqui, o

    presente e o passado mantm uma relao dialgica mediante os

    textos clssicos.

    Por fi m, temos Roger Chartier que, por sua vez, procura uma

    via intermediria entre a circularidade de Ginzburg e o dialogismo

    de La Capra. O conceito mais forte para isso seria o de apropriao,

    ou seja, as obras tm, sim, uma estrutura prpria, mas elas no

    encerram todas as possibilidades de signifi cado da mesma, podendo

    ser apropriadas pelo pblico que entra em contato com ela.

  • Felipe Charbel Teixeira

    Aula 10

    Felipe Charbel Teixeira

    Novas possibilidades da histria poltica

  • Historiografi a Contempornea

    40

    Meta da aula

    Avaliar as transformaes nos campos da histria poltica e da histria do pensamento

    poltico, ocorridas a partir da dcada de 1960.

    Objetivos

    Aps o estudo desta aula, voc dever ser capaz de:

    1. identifi car as crticas dirigidas histria poltica tradicional no quadro da

    redefi nio do estatuto cientfi co da histria, nas primeiras dcadas do sculo XX;

    2. reconhecer os traos principais da chamada nova histria poltica francesa e

    associ-los chamada crise dos macromodelos explicativos;

    3. avaliar os fundamentos tericos do chamado contextualismo lingustico, de

    Quentin Skinner e John Pocock, e o projeto de redefi nio das bases da histria do

    pensamento poltico.

  • Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica

    41

    INTRODUO

    A histria poltica , atualmente, um dos campos historiogrfi cos

    que mais crescem. Porm, h trinta ou quarenta anos, a histria

    poltica encontrava-se, em algumas tradies historiogrfi cas, como a

    francesa, completamente margem: autores como Fernand Braudel

    e Ernest Labrousse consideravam-na uma espcie de vestgio de

    uma certa concepo de histria solapada no incio do sculo XX

    pelas tentativas de redefi nio das bases cientfi cas da histria, a

    partir de uma aproximao com a sociologia, a antropologia e a

    economia.

    No Brasil, a histria poltica nunca deixou de ser praticada.

    Contudo, com o recrudescimento da historiografi a marxista no pas,

    na segunda metade do sculo XX, e a recepo positiva da tradio

    historiogrfi ca dos Annales, a partir de meados da dcada de 1970,

    a histria poltica foi relegada a um segundo plano, passando a

    ser tratada como uma prtica menor, pouco importante, de certo

    modo conservadora, por se ater exclusivamente ao que ento se

    chamava de superfcie dos acontecimentos, e no s suas estruturas

    profundas, de ordem econmica, social e cultural.

    Nas ltimas dcadas, essas ideias tm sido reconsideradas,

    e isto por duas razes. Em primeiro lugar, com a chamada crise

    dos macromodelos explicativos, que analisaremos em "A nova

    histria poltica" e depois, com mais profundidade, nas Aulas 12

    e 13 , as grandes narrativas cientfi cas, como o estruturalismo

    e o marxismo, deram lugar a anlises voltadas compreenso

    das dinmicas individuais, das estratgias sociais e da construo

    coletiva das identidades. Tanto a nova histria cultural quanto a

    micro-histria ganharam fora no mbito de tais reconfi guraes

    (conferir o ltimo item da Aula 4, assim como as Aulas 7 e 8), que

    podem ser caracterizadas, em linhas gerais, como uma passagem do

    macro ao micro. Em segundo lugar, a histria poltica tambm

    deve ser pensada luz dessas transformaes gerais da cincia

  • Historiografi a Contempornea

    42

    histrica. Da se falar em nova histria poltica, em oposio a

    uma histria poltica dita tradicional, considerada excessivamente

    descritiva e pouco rigorosa.

    Nesta aula, discutiremos as transformaes nos campos da

    histria poltica e da histria do pensamento poltico, ocorridas a

    partir da dcada de 1960; para tanto, daremos destaque tanto

    chamada nova histria poltica como ao contextualismo

    lingustico, de Quentin Skinner e John Pocock. Antes, porm,

    traaremos um panorama acerca da profunda interdependncia

    existente entre histria e poltica nos regimes de historicidade antigo

    e moderno, ligao esta que foi problematizada no incio do sculo

    XX, no mbito das tentativas de redefi nio do estatuto cientfi co

    da histria, como veremos em "A histria poltica no quadro da

    redefi nio do estatuto cientfi co da histria (incio do sculo XX)".

    A histria poltica at fi ns do sculo XIX: um breve panorama

    A afi rmao da histria como prtica discursiva distinta do mito,

    da tragdia e da epopeia se tornou possvel, na Grcia Antiga, a

    partir da delimitao de um conjunto de procedimentos investigativos,

    associados confi gurao de um campo temtico privilegiado.

    Como o objeto central desta aula no a historiografi a antiga, mas

    o estudo das transformaes por que passou a histria poltica nas

    ltimas dcadas, vamos nos ater apenas questo do campo temtico,

    como modo de introduzir a discusso sobre a profunda afi nidade

    existente, desde o mundo antigo, entre a histria e a poltica, condio

    fundamental tanto para a consolidao da histria como prtica

    discursiva autnoma, na Grcia Antiga, como para a defi nio da

    histria como cincia, no incio do sculo XIX.

    As primeiras obras consideradas efetivamente histricas, escritas

    por gregos antigos como Herdoto, Tucdides e Polbio, a partir do

    sculo V a.C., e romanos como Salstio, Tito Lvio e Tcito, tinham

    como foco principal a narrativa dos fenmenos de ordem poltica,

  • Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica

    43

    como grandes batalhas e aes de homens tidos como importantes

    reis, generais, cnsules, tribunos da plebe etc. Esse predomnio de

    temticas polticas no deve ser considerado como uma possibilidade

    dentre outras igualmente vlidas, como o caso na historiografi a

    mais recente como se a histria poltica fosse, para gregos antigos

    e romanos, uma espcie de campo disciplinar, para empregar

    categoria to em voga atualmente. Pode-se dizer que, para os

    antigos, praticamente toda histria era poltica, na medida em que

    esta se constitua como um discurso sobre a plis, seus homens, seus

    feitos e seus valores morais. Tratava-se, fundamentalmente, de um

    discurso voltado exposio das aes memorveis daqueles que,

    de algum modo, contriburam para a grandeza da cidade em que

    viviam. sintomtico, nesse sentido, que a prpria palavra poltica

    derive da palavra plis.

    Tal nfase nos fenmenos de ordem poltica pode ser considerada

    um aspecto constitutivo do que se convencionou chamar de regime de

    historicidade antigo. Este prevaleceu, nas sociedades ocidentais, da

    Grcia Antiga a meados do sculo XVIII, e pode ser caracterizado

    pela nfase atribuda, na construo do discurso histrico, ao princpio

    da exemplaridade o que se convencionou chamar de modelo da

    histria mestra da vida, tpica retrica presente em praticamente

    todas as obras historiogrfi cas da Antiguidade.

    PlisAs poleis (plural de plis) gregas eram

    cidades independentes, responsveis pela

    prpria administrao, que era feita pelos

    cidados mais infl uentes.

    Regimes de historicidade

    Tomando por base as categorias espao de

    experincia e horizonte de expectativa, como

    defi nidas pelo historiador alemo Reinhart Kosel-

    leck (2006), o historiador francs Franois Hartog

    procura refl etir sobre os diferentes modos de conceber

    a relao entre passado, presente e futuro nas socie-

    dades ocidentais o que chama de regimes de histo-

    ricidade. O regime de historicidade antigo, segundo

    ele, possua seu fundamento fi losfi co na ideia de uma

  • Historiografi a Contempornea

    44

    natureza humana estvel, permanente, o que condicionava

    um modo de experincia do tempo bastante conectado aos

    ciclos da natureza (HARTOG, 2006, p. 16). Tal compreenso

    da realidade implicava, segundo Koselleck (2006, p. 308),

    uma hipervalorizao da experincia, tanto a singular como

    a coletiva, encontrada nas crnicas e registros do passado

    mantidos por diversos povos, como os gregos antigos e ro-

    manos, de modo que o passado pudesse orientar o presente,

    e o futuro pudesse ser visto como repetio do passado, se

    no nos acontecimentos particulares, ao menos nas tendn-

    cias mais gerais, como as formas de governo. Nesse sentido,

    atribua-se ao gnero histrico um carter pedaggico e para-

    digmtico. Como luz da verdade, vida da memria e mestra

    da vida, segundo formulao sugerida pelo fi lsofo e orador

    romano Marco Tulio Ccero no dilogo De Oratore, a histria

    deveria orientar a ao presente e afi rmar a virtude, por meio

    de exemplos edifi cantes. Um exemplo importante da profunda

    articulao entre histria e poltica no regime de historicidade

    antigo o de Maquiavel (2007, p. 6-7), que nos seus Discur-

    sos sobre a primeira dcada de Tito Lvio afi rma que o

    motivo por que infinitas pessoas que as leem as

    histrias sentem prazer em ouvir a grande variedade de

    acontecimentos que elas contm, mas no pensam em

    imit-las, considerando a imitao no s difcil como

    tambm impossvel; como se o cu, o sol, os elementos, os

    homens tivessem mudado de movimento, ordem e poder,

    distinguindo-se do que eram antigamente.

    J o regime de historicidade moderno se consolida a partir

    de meados do sculo XVIII e pode ser caracterizado por uma

    transformao signifi cativa nos modos predominantes de

    experincia do tempo. O sentido moderno de histria , em

    grande medida, produto de tal transformao. Como percebe

    Reinhart Koselleck, a concepo antiga de histria modelo

  • Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica

    45

    A passagem do regime de historicidade antigo para o regime

    de historicidade moderno no deixou em segundo plano o interesse

    pelos fenmenos polticos. As refl exes sobre o Estado, por exemplo,

    mostraram-se centrais tanto nas fi losofi as especulativas da histria de

    autores dos sculos XVIII e XIX, como Kant, Hegel e Comte, como nas

    abordagens de historiadores do sculo XIX, como Ranke e Droysen.

    Assim, pode-se dizer que a afi rmao da histria como cincia no

    apenas manteve aceso o interesse pelos fenmenos polticos como fez

    de tal interesse uma precondio do prprio conhecimento histrico

    tido como rigoroso.

    da histria mestra da vida comea a perder espao em

    meados do sculo XVIII. No idioma alemo, isto se torna visvel

    pelo declnio do emprego do vocbulo Historie, associado ao

    recrudescimento do uso, em textos diversos, de Geschichte.

    Ainda que as duas palavras signifi cassem, no idioma alemo,

    histria, o conceito atrelado a cada uma era distinto: por

    Historie, entendia-se o relato, a narrativa de algo aconteci-

    do; j Geschichte signifi cou originalmente o acontecimento

    em si ou, respectivamente, uma srie de aes cometidas ou

    sofridas, assim como o relato desses acontecimentos ou srie

    de aes. importante frisar que a palavra Geschichte no

    constitui, segundo o argumento de Koselleck, um mero substitu-

    to de Historie. Ela deve ser compreendida como um vocbulo

    que comporta um conceito distinto do implicado em Historie:

    por Geschichte, entendia-se, simultaneamente, o evento histri-

    co, ou um determinado conjunto de eventos histricos, e a sua

    representao, ou seja, o acontecimento particular, ou uma

    srie de acontecimentos encadeados em processo linear, e a

    narrativa desses acontecimentos ou do processo geral que arti-

    cula tais eventos. a partir de ento, meados do sculo XVIII,

    que se pode falar na histria como coletivo singular, unidade

    composta de inmeros acontecimentos particulares.

  • Historiografi a Contempornea

    46

    O caso do historiador prussiano Leopold von Ranke bastante

    signifi cativo. Para ele, o estudo dos acontecimentos particulares

    no deveria ser tomado como fi m em si mesmo: ao contrrio, eles

    deveriam constituir pontos de partida para refl exes mais amplas,

    voltadas descoberta das principais foras e tendncias atuantes na

    Histria (GILBERT, 1990, p. 44). Essas foras fundamentais, na sua

    tica, eram os Estados e as naes, especialmente os europeus, que

    conformavam uma totalidade sempre cambiante chamada Europa,

    cuja balana de poder constitua, para Ranke, uma espcie de

    plano divino realizado na Histria. Da a afi rmao do historiador

    Georg Iggers de que a historiografi a de Ranke alicerava-se em

    uma espcie de metafsica da poltica. Diz Iggers (1969, p. 72),

    acerca da concepo de histria do autor prussiano:

    Embora toda existncia s possa ser compreendida em

    termos de sua histria, por trs da aparncia efmera de

    cada fenmeno particular haveria uma verdade geral.

    Uma ideia fi nal a de que os Estados existentes na histria

    so as expresses concretas dessas ideias subjacentes.

    A valorizao das aes dos grandes personagens, como

    reis, ministros, diplomatas e generais, deve ser entendida de acordo

    com esse vis analtico: Ranke (apud Hinrichs, 1999) chega a afi rmar

    que os grandes indivduos so espritos originais que intervm

    autonomamente na batalha das ideias e das foras universais

    Tambm na Frana do sculo XIX, especialmente com a

    consolidao da chamada escola metdica francesa, a histria

    era concebida, fundamentalmente, como o relato das aes polticas,

    militares e diplomticas. Da ser possvel afi rmar que, at o incio do

    sculo XX talvez at meados do sculo XX , a histria poltica tenha

    sido amplamente dominante nos meios acadmicos europeus.

  • Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica

    47

    A histria poltica no quadro da redefi nio do estatuto cientfi co da histria (incio do sculo XX)

    Como vimos nas Aulas 2 e 4, na passagem do sculo XIX para

    o sculo XX historiadores, fi lsofos, socilogos e economistas iniciam

    um movimento crtico destinado a questionar o primado, nos meios

    acadmicos franceses, de uma historiografi a metdica, de carter

    factual, focada principalmente no exame dos fenmenos polticos.

    O fi lsofo francs Henri Berr, um dos protagonistas, no incio do

    sculo, da crtica aos historiadores metdicos do XIX, argumentava

    que uma historiografi a atenta exclusivamente s aes de grandes

    homens, s batalhas memorveis e aos tratados internacionais

    representava uma histria historizante, concebida como cincia

    do particular, voltada para si mesma, incapaz de trazer elementos

    para a compreenso do presente ou das transformaes sociais e

    econmicas por que passam as sociedades.

    Como discutimos em aulas anteriores, Franois Simiand, em

    seu artigo "Mtodo histrico e cincia social", de 1903, argumenta

    que os chamados historiadores historizantes incorriam comumente

    em trs vcios, a que chama de dolos da tribo dos historiadores o

    dolo poltico, o dolo individual e o dolo cronolgico. Ainda mais

    marcante foi a crtica de Simiand a uma determinada concepo de

    mtodo histrico. Ele tinha em mira, particularmente, a prestigiosa

    Introduo aos estudos histricos, de Charles-Victor Langlois e

    Charles Seignobos, publicada em 1898.

    Langlois e Seignobos consideravam como fontes histricas por

    excelncia os documentos escritos, especialmente aqueles produzidos

    em pocas passadas por agentes ligados ao Estado. Ambos

    partilhavam a convico de que, uma vez realizada a apreciao dos

    documentos segundo o mtodo crtico, os acontecimentos passados

    poderiam ser traados como se fossem observados diretamente,

    constituindo-se ento como fatos histricos objetivos, independentes

    de valores subjetivos ou critrios interpretativos. Simiand, discpulo do

  • Historiografi a Contempornea

    48

    socilogo francs Emile Durkheim, argumentava que os procedimentos

    defendidos pelos historiadores metdicos no eram sufi cientes para

    atribuir histria um carter cientfi co.

    Fundamentalmente, o que estava em jogo era a rejeio da ideia

    de histria como cincia alicerada no estudo das particularidades,

    critrio predominante na histria poltica tradicional, como praticada

    ao longo do sculo XIX. A singularidade da cincia histrica, assim,

    deveria ser buscada em sua aproximao qui subordinao,

    como em Simiand em relao sociologia, especialmente de matriz

    durkheimiana, alicerada no tratamento do fato social como coisa,

    ou seja, como dados passveis de comparao, de considerao

    para alm de seus valores sociais. Nesse sentido, a obra que mais

    contribuiu para a afi rmao dessa concepo de cincia histrica

    foi O Mediterrneo e o mundo mediterrnico na poca de Filipe II,

    de Fernand Braudel, publicado em 1949, que j discutimos na Aula 3.

    Escrito ao longo dos anos em que Braudel foi prisioneiro nazista, o

    livro tenta pr em prtica uma ideia de histria capaz de abarcar

    diversos aspectos da realidade a partir de um recorte espacial e

    temporal bastante ampliado.

    A primeira parte do livro, como vimos, dedica ateno especial

    ao meio geogrfi co: o mar Mediterrneo e suas lentas transformaes

    ao longo dos sculos, os costumes de pequenas tribos e lugarejos

    que so condicionados pela forma particular com que os homens se

    relacionam com a natureza. Trata-se de uma histria quase imvel,

    suscetvel s mudanas lentas, ou de uma geo-histria, uma histria

    da relao do homem com o meio fsico. Na segunda parte do

    livro, Braudel analisa os movimentos conjunturais, as transformaes

    econmicas e sociais que podem ser notadas no espao de algumas

    geraes. J a terceira parte destinada quilo que Braudel chama

    de a espuma do mar da histria, os acontecimentos. Trata-se de

    uma histria da superfcie, dos eventos e aes que quase sempre

    so condicionados pela relao do homem com o meio ou pela

    dinmica das conjunturas socioeconmicas.

  • Aula 10 Novas possibilidades da histria poltica

    49

    Como argumenta Stuart Clark (1995), os esforos de

    Braudel constituem uma tentativa terica de transcender o evento

    individual e particular atravs de uma nfase no meio geogrfi co

    e nas transformaes econmicas, foras impessoais que na

    realidade modelam o homem. Trata-se, ainda segundo Clark, de

    uma viso da experincia humana em que o agente individual

    e a ocorrncia individual deixam de ser os elementos centrais

    da explicao social. Fica evidente, assim, a nfase atribuda

    macrocompreenso e ao exame das grandes estruturas.

    Diante desse quadro de renovao do conhecimento histrico e

    redefi nio de suas bases cientfi cas, a histria poltica passou

    a ocupar, especialmente entre as dcadas de 1940 e 1970, um

    lugar secundrio nos meios acadmicos franceses e alemes as

    principais excees foram os pases anglo-saxnicos, onde a

    histria poltica no perdeu totalmente sua fora.

    Atende ao Objetivo 1

    1.

    A histria poltica [tradicional] permanecia uniformemente narrativa, escrava do relato

    linear, e no melhor dos casos, s temperava a mediocridade de uma descrio submetida

    cronologia pelo talento eventual do autor, que ento fazia com que sua obra se aparentasse

    mais com a literatura que com o conhecimento cientfi co (RMOND, 1996, p.17).

    Ren Rmond, o autor da passagem, considerado um dos precursores da chamada nova

    histria poltica. No trecho acima, fi ca clara a inteno do autor de diferenciar sua proposta de

    uma histria poltica renovada do que se poderia chamar de uma histria poltica tradicional,

  • Historiografi a Contempornea

    50

    como a predominante no sculo XIX, tanto na Frana como na Alemanha. Tomando por

    base a passagem acima, explique a relao existente entre a rejeio da histria poltica

    por autores do incio do sculo XX, como Henri Berr, Franois Simiand, Marc Bloch, Lucien

    Febvre e Fernand Braudel, e o projeto das duas primeiras geraes de historiadores ligados

    tradio dos Annales de redefi nio das bases cientfi cas da histria.

    Resposta Comentada

    A rejeio da histria poltica por autores como Henri Berr, Franois Simiand, Marc Bloch,

    Lucien Febvre e Fernand Braudel envolvia uma tentativa de redefi nir o estatuto de cientifi cidade

    da histria, o que indicado na passagem pelo argumento de Rmond de que a histria

    poltica tradicional se avizinhava mais da literatura que da cincia. De onde decorre a

    crtica ao carter narrativo, linear e cronolgico da tal historiografi a. O modelo de cincia

    histrica pensado pelos historiadores das duas primeiras geraes dos Annales era muito

    distinto, portanto, daquele consolidado no sculo XIX com o historicismo alemo e a Escola

    Metdica francesa, por se pautar na tentativa de compreender as estruturas da vida social,

    da economia e da cultura. Nesse sentido, pode-se dizer que com a afi rmao dos campos

    da histria social e da histria econmica em meados do sculo XX, e logo em seguida da

    histria das mentalidades, a histria poltica relegada, ao menos na Frana e nos pases

    infl uenciados por sua historiografi a