o retorno dos ancestrais, ou alguma coisa que sei sobre o florestan dos antropÓlogos

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  • 7/24/2019 O RETORNO DOS ANCESTRAIS, OU ALGUMA COISA QUE SEI SOBRE O FLORESTAN DOS ANTROPLOGOS

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    O RETORNO DOS ANCESTRAIS, OU ALGUMA COISA QUESEI SOBRE O FLORESTAN DOS ANTROPLOGOS

    Felipe Vander Velden1

    De muitos autores nas Cincias Sociais se diz que possuem vrias facetas,diferentes para cada tipo de especialista, leitor ou interesse em sua obra, especialmentequando vasta. Assim, diz-se que h um Durkheim dos socilogos aquele do suicdio, das regras do mtodo (sociolgico) e dos estudos sobre educao e um Durkheim dos antroplogos o Durkheim do sacrifcio, dos sistemas elementares declassificao e das formas primeiras da religio. De maneira anloga, h um Max

    Weber dos cientistas polticos o Weber das racionalidades burocrticas, por exemplo e um dos antroplogos aquele que inspirou a antropologia interpretativa deClifford Geertz, entre outros. Pode-se dizer, pois, que existe um Florestan Fernandes

    para cada um de ns, antroplogos, cientistas polticos e socilogos. Ou, dito de outraforma, h Florestan suficiente para que seja partilhado entre as trs reas em que se dividem as Cincias Sociais no Brasil.

    Meu comentrio dirige-se aqui, naturalmente, ao Florestan dos antroplogosou, melhor dizendo, ao meu Florestan. Mais particularmente, ao Florestan Fernandes

    dos etnlogos, aquele que construiu uma obra que se pode dizer monumental arespeito dos Tupinamb, grupo indgena que ocupava boa parte do que hoje o litoral do sudeste do Brasil quando da conquista europeia a partir do sculo XVI. Em duasobras que marcaram a etnologia brasileira na verdade, seus primeiros trabalhos

    publicados: Organizao social dos Tupinamb (1949, segunda edio em 1963) e A

    funo social da guerra na sociedade Tupinamb (1952, segunda edio em 1970)2o cientista social paulista encarou, pela primeira vez de modo terica emetodologicamente orientado e com enorme riqueza de detalhes uma interpretao

    scio-antropolgica da complexidade desta sociedade indgena Tupi-Guarani quemarcou, de forma indelvel e duradoura, o processo de colonizao portuguesa na Amrica meridional, especialmente nos sculos XVI e XVII. Ademais, forneceu uma

    primeira explicao sistemtica e abrangente de uma das prticas que maisimpressionaram os portugueses que por aqui viajaram e se instalaram nos primrdiosdo Brasil alm de exercer impacto significativo na imaginao colonial mundo afora(cf. Lestringant 1997) e seguir, ainda hoje, fascinando a cultura popular (de Hans Staden e Guimares Rosa) e instigando a reflexo antropolgica: a guerra Tupinamb,

    1Professor no Departamento de Cincias Sociais e no Programa de Ps Graduao em Antropologia Social

    da UFSCar.2

    Este ltimo ganhou recentemente nova edio (2006), a terceira, pela Editora Globo.

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    seguida da tomada de cativos, sua execuo profusamente ritualizada em terreiro e oconsumo de sua carne em um elaborado festim antropofgico.

    No h como negar o emprego massivo das fontes quinhentistas eseiscentistas por Florestan Fernandes, e o modo como o autor fez uso altamente organizado e criterioso desta copiosa documentao. Uma breve mirada no artigo Um

    Balano Crtico da Contribuio Etnogrfica dos Cronistas, publicado como captulo

    na coletneaA investigao etnolgica no Brasil e outros ensaios (1975, com segundaedio em 2009), convence-nos da enorme erudio e da singular capacidade demanejar documentos de fazer inveja a qualquer historiador atento to necessria crtica de suas fontes. No h, tambm, como negar a elegncia da interpretaooferecida por Florestan do ritual antropofgico Tupinamb ainda nos anos 50, naquiloque foi sua tese de doutoramento, defendida em 1951, na Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH) da Universidade de So Paulo. No entanto,

    quero aqui por fora do modo como eu mesmo tomei contato com a interpretao

    fernandiana da guerra e do canibalismo Tupinamb, de modo, digamos, retrospectivo,ou a contrrio partir da crtica mais contundente que o modelo da sociedade e doritual desta sociedade indgena forjado por Florestan Fernandes recebeu em temposmais recentes, calcada no referencial funcionalista que ento dominava as cinciassociais na primeira metade do sculo XX.

    Sejamos, naturalmente, conscientes de que um homem produto de suapoca. E de que uma histria das ideias, nas Humanidades, feita com cuidado

    certamente no deve apostar na pura e simples superao abrupta de paradigmasanteriores seno buscar avaliar no apenas o ambiente intelectual que veio a franquearesta ou aquela formulao terica individual, mas tambm as trajetrias trilhadas porcertas pores de um trabalho acadmico que seguiram (e seguem, por vezes) valiosas.Dito de outra forma, deve-se sempre fazer justia contribuio de cada autor ao caudaloso rio do conhecimento humano. Tal ateno nos permite sugerir que, mesmoque uma interpretao tenha sido julgada morta e enterrada, ela pode, em certossentidos, continuar apontando alguns caminhos, sobretudo porque novas abordagens

    de velhos materiais sempre podem fazer lembrar (ou redescobrir, melhor dizendo)autores e trabalhos primeira vista relegados, empresa de modo algum estranha sCincias Sociais e Antropologia contemporneas. Que o digam Gabriel Tarde e Gilbert Simondon, entre alguns outros.

    Voltando a Florestan Fernandes e aos Tupinamb, vim a conhec-los j dianteda poderosa crtica que fez Eduardo Viveiros de Castro (1986: 84-88; 650-700; vertambm Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1985) ao modelo propostoanteriormente para a compreenso da guerra e da antropofagia indgenas no Brasil

    colonial em sua monumental e brilhante etnografia dos Arawet, no leste do estado do Par, descendentes Tupi-Guarani amaznicos atuais dos antigos Tupi costeiros. Comefeito, a deparar-se com o que demonstrou ser uma transformao do extinto ritual

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    antropofgico Tupinamb entre os atuais Arawet ali no mais um canibalismo real, mas um evento metafsico, cenrio no qual so os deuses que devoram os mortos para convert-los eles tambm em deuses , Viveiros de Castro ofereceu-nos uma revisocompleta da explicao do fenmeno, reviso esta que virtualmente demoliu a interpretao feita por Florestan Fernandes sem, claro, deixar de prestar as devidas

    homenagens a um dos fundadores da moderna investigao etnolgica no Brasil. Mas

    Florestan, segundo Viveiros de Castro, em resumo, estava errado.No tenho espao e nem a pretenso de resumir, neste breve artigo, nem as

    detalhadas crticas feitas por Viveiros de Castro aos Tupinamb e seu canibalismoritual tal como pintados por Florestan, nem o modelo proposto por aquele para tentardar conta do longo e elaborado percurso que ia desde a captura do inimigo em combateat sua morte por meio do golpe de uma borduna no crnio, antecedido pelo clebredilogo cerimonial entre matador e vtima e sucedido pelo esquartejamento do corpo e

    pela canibalizao ritual do cativo abatido. Sobre isso remeto, sem hesitar, ao trabalho

    primoroso de Viveiros de Castro (alm da etnografia j citada, ver tambm Viveiros deCastro 1984). Quero, nesta ocasio, atentar para somente um detalhe, que no , nofinal das contas, um detalhe, ao menos na economia da obra de Florestan Fernandes: um dos pilares da interpretao fernandiana que, todavia, foi derrubado com notvelrapidez por Viveiros de Castro. Falo da presena e da participao do morto, doesprito do morto do grupo ou do ancestral na mquina guerreira e canibalTupinamb.

    Com efeito, Florestan, em sua anlise da funo social da guerra entre osTupinamb, faz intervir a figura dos ancestrais como pea fundamental na sofisticadaengrenagem que movia a mquina guerreira daquela sociedade: efeito do sistemareligioso, o homicdio em terreiro e a devorao dos cativos tomados em combatetinham como objetivo mximo conservar plenos os laos que vinculavam a sociedadeao sagrado, este constitudo pelo conjunto do espritos dos mortos do grupo, queFlorestan tambm denomina antepassados ou ancestrais. Rito sacrificial por excelncia

    seguindo-se Marcel Mauss (Mauss & Hubert 2005 [1899]) o canibalismo

    Tupinamb movia a guerra porque era por meio dele que a sociedade recuperava-incorporava os mortos perdidos em batalhas anteriores por meio do inimigo,restaurando-se a unidade do coletivo perdida nas interminveis sequncias deconflitos. O guerreiro morto nas mos dos inimigos clamava pela vingana porque sassim poderia retomar seus vnculos com o coletivo perturbados pela morte emterreiro alheio, levando ao que Florestan chamou de uma heteronomia mgica ,devolvendo a ele as energias perdidas com o parente morto e posicionando a simesmo no lugar de ancestral guardado e venerado pela sociedade. O aparelho

    guerreiro e antropofgico Tupinamb, portanto, seria fundamentalmente um culto aos

    ancestrais ou aos espritos mortos do grupo, e este culto acabava por movimentar asinterminveis aes guerreiras, uma vez posta a necessidade da captura perptua de

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    vtimas sacrificiais. Um intercmbio constante de mortos/ancestrais, pois, a guerraTupinamb, movida pela necessidade que tinha o coletivo de observar a corretarelao entre vivos e mortos, estes ltimos com a funo de guardar a verdade dasociedade (Viveiros de Castro 1986: 651). Os mortos do grupo ancestrais ou antepassados , desta forma, tinham uma funo: clamando pelo preenchimento dos

    espaos vazios deixados pelas agresses dos vizinhos inimigos, eles garantiam o

    moto perptuo da guerra e da vingana Tupinamb, a se desenrolar pela histria atserem brutalmente interrompidas pelo horror que causavam aos colonizadoreseuropeus, ciosos guardies da moral crist a qual aborrece o consumo de carnehumana (mas no, ao que parece, a guerra...).

    Eduardo Viveiros de Castro, em sua reinterpretao da guerra e daantropofagia Tupinamb, demole o modelo explicativo proposto anteriormente por

    Florestan Fernandes com uma penada, por assim dizer3: crtico severo do

    funcionalismo do modelo sacrificial-maussiano de Florestan, Viveiros de Castro faz

    intervir uma crtica etnogrfica baseada, ela tambm, bvio, nas fontes documentais na desautorizao da leitura que Florestan fizera dos Tupi costeiros: nada nos autoriza, nas fontes quinhentistas e seiscentistas, segundo Viveiros de Castro, a falarna existncia de ancestrais no sentido de mortos individualizados a quem se rendeculto entre os Tupinamb. Os ancestrais ali no podiam clamar nada, nem tampoucomovimentar nada, simplesmente porque no existiam: a noo da ancestralidade dacontinuidade entre mortos e vivos, entre certos mortos e certos vivos, e da efetiva

    presena e interferncia dos mortos, como seres que preservam aps a morte aslealdades que tinham em vida, na vida social haveria de ser extirpada da etnologia americanista, caudatria que era da equivocada (e deletria) aplicao do instrumentaldesenvolvido em frica para apreciar os materiais sul-americanos. Malfadadaempresa, esta, que j havia sido denunciada por Joanna Overing (Overing Kaplan1977) e, pouco tempo depois, pelo mesmo Viveiros de Castro em coautoria comAnthony Seeger e Roberto DaMatta (Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro 1979), emtexto j clssico da etnologia das terras baixas da Amrica do Sul.

    Os mortos, aqui, so outros, advertira Manuela Carneiro da Cunha (1978) emlivro de enorme impacto na disciplina. Desde ento, o ancestral, aquela figura quepermite transcender, em certo sentido, a morte, ao garantir a continuidade das geraespor meio do vnculo social perptuo entre vivos e mortos, tornou-se antema naetnologia sul-americana. Ancestrais, s l do outro lado do Atlntico e do grande divisor, na Europa e no continente africano (Viveiros de Castro 1996). Aqui, os mortostornam-se imediatamente alteridade radical, e se clamam perigosamente pelacompanhia dos vivos, ao sofrerem com a solido post-mortem, por um curto espao

    3Estou, naturalmente, resumindo drasticamente no s a interpretao de Florestan Fernandes da

    sociedade e da guerra-antropofagia Tupinamb como tambm a crtica que Viveiros de Castro faz quela.

    Meu objetivo, ao centrar fogo em um nico aspecto desta crtica, ficar claro, espero, ao final deste ensaio.

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    de tempo antes de verem cortados todos os vnculos com os que ficaram e seconverterem, por vezes em sucessivos processos etnograficamente muito variados

    para serem sequer mencionados neste curto artigo em outros: espectros sem carne ousangue que aterrorizam os viventes, monstros sedutores que devoram ex-parentessozinhos na mata, fantasmas sem memria que vagam por redemoinhos de vento,

    animais anmalos que rondam aldeias nas noites frias em que as fogueiras devem ser

    mantidas continuamente acesas, restos de tocos calcinados que assinalam to somente uma plida lembrana dos que j se foram obliterada por uma generalizao coletiva no alm-tmulo. Ou, alternativamente, os mortos se convertem em deuses tal como os mortos Arawet mas deuses a quem no se rende culto e nem se preserva emaltares caseiros, posto que se fundem, ao longo de uma complexa cadeia de operaes, ao panteo celeste que nada guarda da personalidade, dos afetos ou das alianas dequando esses (ex-)vivos andavam, respiravam, sorriam e guerreavam c no mundo

    sublunar.No havia, portanto, ancestrais enquanto mortos individualizados entre osTupinamb:

    Ora, Florestan superestima, seno inventa, mediante uma colagem de fontes onde a soldado desejo terico maior que as partes documentais, a importncia dos mortos do grupocomo recipiendirios individualizados do sacrifcio. Os dados a respeito da interveninciaefetiva de espritos de mortos individuais no sistema so vagos, seno nulos (Viveiros deCastro, 1986: 656-657, grifos no original).

    E, deste modo, todo o edifcio sobre o qual Florestan Fernandes constri sua interpretao da guerra e do canibalismo de vingana dos Tupi litorneos haveria deruir, ao perder, entre outras coisas, justamente o elemento que lhe serve como sustentao. Privados de ancestrais individualizados ausentes, ento, da Amrica doSul indgena uma leitura funcionalista dos Tupinamb resta inadequada, equivocada,

    pois fundada em pressuposto etnograficamente ilusrio. A compreenso destesfenmenos deve, pois, ser buscada em outro lugar, como demonstraro Viveiros deCastro, Manuela Carneiro da Cunha e Carlos Fausto (1992), entre outros.

    Mas, eis que, quase sub-repticiamente, parece que assistimos, hoje naetnologia americanista, a uma espcie de retorno dos ancestrais, para usar o belo ttulode Nathan Wachtel (1990) que, outrossim, fala, precisamente, dos ancestrais que se

    preservam entre os atuais ndios Uru no altiplano boliviano, antes tidos comocompletamente aimaraizados. De fato, a etnografia sul-americana vem, h tempos,registrando fatos que destoam, em grande medida, da formulao cannica de que os mortos so outros, de que uma ciso irreparvel separa os vivos de qualqueridentificao individualizada com os que se foram: longos registros de nomes dos

    antepassados sugerindo memrias genealgicas profundas, preservao dos corpos,fragmentos corporais e/ou ossos dos defuntos e sua disposio em locais de acesso amplo e franqueado, flautas sagradas que fazem as vezes dos mortos antigos quando

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    acionadas em certos contextos rituais, ncleos de concentrao de poder poltico eprestgio preservados pela tradio imemorial e rememorados em longas linhagens dechefes que alcanam os dias de hoje, para mencionar apenas alguns. A proposio, ou

    petio de princpio, de que no haveria ancestrais nas terras baixas da Amrica doSul, parece encontrar seus limites etnogrficos, talvez porque ela mesma tenha sido

    excessivamente calcada no por descuido, claro, mas por dever de ofcio de sua

    propositora, cuja pesquisa foi realizada entre os Krah no atual Tocantins nosmateriais J do Brasil Central.

    Efetivamente, conforme Jean-Pierre Chaumeil (2007, originalmentepublicado em francs em 1997), o principal proponente desta reavaliao dasmodalidades de relao com os mortos nas terras baixas sul-americanas, talvezestejamos diante da coexistncia, nas sociedades nativas da regio, de diferentesmodos de relao com os mortos incluindo sua converso em ancestrais ou imortais

    , materializada em uma mirade de formas de tratamento funerrio dos defuntos:Our rapid examination of these topics [formas de tratamento dos despojos e de relaocom os mortos] does not, therefore, provide total confirmation of the thesis [propostaoriginalmente por Manuela Carneiro da Cunha] that the archetypical form of mourning inthe South American lowlands rests essentially on a relation of exclusion vis--vis the dead,transforming the latter within paradigms of alterity whereby no one would dream ofconsecrating a specific place to them or of fixing them in their memories. Although a largeamount of empirical data can be cited to support this thesis, an equally large amountcontradicts it (). Rather than the socius being collectively defined in relation to theexterior by treating its own dead as strangers, the aim is to avoid losses by conserving the

    dead at home (Chaumeil 2007: 274-275, itlico no original).

    Os limites etnogrficos da interpretao dos mortos como alteridade radical,veja-se, aparentemente sequer se desenham de modo a deixar de fora mesmo associedades de lngua Tupi-Guarani (prximas, portanto, aos antigos Tupinamb ou aosArawet contemporneos): relatos histricos e etnogrficos fazem meno conservao dos ossos dos mortos entre os antigos Guarani e entre os Sirion atuais, no leste da Bolvia (Chaumeil 2007: 261-264), atestando que, talvez alguma coisa

    assemelhada ao que chamamos de antepassados estejam, ali, vinculadas preservao

    dos esqueletos daqueles que se foram e que, em tese, deveriam ser rapidamenteesquecidos porque tornados estranhos aos vivos logo que encerradas as exquias.

    Eis que, ento, talvez Florestan Fernandes no estivesse to completamente equivocado, ou to redondamente enganado como querem alguns de seus leitores e comentadores ao fazer figurar os ancestrais como peas fundamentais na mecnicada sociedade Tupinamb e das razes misteriosas de suas guerras, nas palavras de Amrico Vespcio (cf. Carneiro da Cunha 1993). Isso no significa, claro, aceitar

    integralmente a proposio funcionalista de Fernandes e consolidar acriticamente o

    papel central que este autor concedeu aos antepassados na guerra, na vingana e nocanibalismo dos Tupi costeiros, s expensas de hipteses posteriores, aparentementemais elegantes e sofisticadas. Mas significa, sim, por outro lado, abrir-se para a

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    hiptese pois, afinal, todas so hipteses, pois as disciplinas interessadas na Histriaassim devem ser pautadas ao fugirem das presunes de descrever a verdade do que sefoi de que os ancestrais poderiam ter algum papel de maior ou menor destaque na vida cotidiana e na experincia ritual dos Tupinamb, papel, talvez, ainda aberto aoconfronto dialgico de interpretaes. A demolio da leitura fernandiana dos

    Tupinamb por meio da constatao pura e simples de que ali no existiam ancestrais

    talvez possa vir a ser surpreendida pela localizao de novas evidncias documentaisou por novas leituras das fontes j disponveis para os autores que sobre o tema se debruaram at hoje.

    Tal sugesto e isso tudo aqui, registre-se, no passa de uma sugesto implica em reconhecer que, qui, Florestan Fernandes estivesse certo por razeserradas. Ou, melhor dito, que estivesse errado pelas razes certas. O que antecipardessas novas fontes histricas e etnogrficas, e das novas releituras de fontes j

    conhecidas, com respeito aos papeis que mortos, antepassados ou ancestrais

    desempenhavam (e desempenham) nas sociedades nativas das terras baixas sul-americanas? Somente o tempo e o trabalho, claro, diro. E talvez, diante de renovadasevidncias, seja preciso reconhecer que os povos indgenas prestavam, de alguma forma, homenagem aos seus predecessores, do mesmo modo como aqui se prestasingela homenagem a este notvel ascendente da Etnologia brasileira, o FlorestanFernandes dos antroplogos.

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