antropólogos brasileiros na África _ série antropologia

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  • 7/31/2019 Antroplogos brasileiros na frica _ srie antropologia

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    SRIE ANTROPOLOGIAISSN 1980-9867

    430ANTROPLOGOS BRASILEIROS NA FRICA:

    ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE O OFCIODISCIPLINAR ALM-MAR

    Juliana Braz DiasKelly Cristiane da Silva

    Omar Ribeiro ThomazWilson Trajano Filho

    Braslia, 2009

    Universidade de BrasliaDepartamento de Antropologia

    Braslia2009

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    Srie Antropologia editada pelo Departamento de Antropologia daUniversidade de Braslia, desde 1972. Visa a divulgao de textos detrabalho, artigos, ensaios e notas de pesquisas no campo da AntropologiaSocial. Divulgados na qualidade de textos de trabalho, a srie incentiva eautoriza a sua republicao.

    ISSN Formato Impresso: 1980-9859

    ISSN Formato Eletrnico: 1980-9867

    1. Antropologia 2. Srie I. Departamento de Antropologia daUniversidade de Braslia

    Solicita-se permuta.

    Srie Antropologia Vol. 430, Braslia: DAN/UnB, 2009.

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    Universidade de Braslia

    Reitor: Jos Geraldo de Souza Jr.Diretor do Instituto de Cincias Sociais: Gustavo Lins RibeiroChefe do Departamento de Antropologia: Lus Roberto Cardoso de OliveiraCoordenador da Ps-Graduao em Antropologia: Jos Antnio Vieira PimentaCoordenadora da Graduao em Antropologia: Marcela Stockler Coelho de Souza

    Conselho Editorial:Lus Roberto Cardoso de OliveiraJos Antnio Vieira PimentaMarcela Stockler Coelho de Souza

    Comisso Editorial:Andra de Souza LoboSoraya Resende Fleischer

    Editorao Impressa e Eletrnica:Cristiane Costa Romo

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    EDITORIAL

    A Srie Antropologia foi criada em 1972 pela rea de Antropologia do entoDepartamento de Cincias Sociais da Universidade de Braslia, passando, em 1986, aresponsabilidade ao recente Departamento de Antropologia. A publicao de ensaiostericos, artigos e notas de pesquisa na Srie Antropologia tem se mantido crescente. A

    partir dos anos noventa, so cerca de vinte os nmeros publicados anualmente.A divulgao e a permuta junto a Bibliotecas Universitrias nacionais e

    estrangeiras e a pesquisadores garantem uma ampla circulao nacional e internacional.A Srie Antropologia enviada regularmente a mais de 50 Bibliotecas Universitrias

    brasileiras e a mais de 40 Bibliotecas Universitrias em distintos pases como Estados

    Unidos, Argentina, Mxico, Colmbia, Reino Unido, Canad, Japo, Sucia, Chile,Alemanha, Espanha, Venezuela, Portugal, Frana, Costa Rica, Cabo Verde e Guin-Bissau.

    A principal caracterstica da Srie Antropologia a capacidade de divulgar comextrema agilidade a produo de pesquisa dos professores do departamento, incluindoainda a produo de discentes, s quais cada vez mais se agrega a produo de

    professores visitantes nacionais e estrangeiros. A Srie permite e incentiva arepublicao dos seus artigos.

    Em 2003, visando maior agilidade no seu acesso, face procura crescente, oDepartamento disponibiliza os nmeros da Srie em formato eletrnico no sitewww.unb.br/ics/dan.

    Ao finalizar o ano de 2006, o Departamento decide pela formalizao de seuConselho Editorial, de uma Editoria Assistente e da Editorao eletrnica e impressa,objetivando garantir no somente a continuidade da qualidade da Srie Antropologiacomo uma maior abertura para a incluso da produo de pesquisadores de outrasinstituies nacionais e internacionais, e a ampliao e dinamizao da permuta entre aSrie e outros peridicos e bibliotecas.

    Cada nmero da Srie dedicado a um s artigo ou ensaio.

    Pelo Conselho Editorial:Lus Roberto Cardoso de Oliveira

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    SUMRIO

    Title: Brazilian Anthropologists in Africa: Remarks on Theory, Politics andFieldwork Overseas

    Abstract: In the last few years, studies that have African countries as their scenario arebecoming a regular element of the anthropology produced by Brazilian scholars or bythose that have ties of some nature with Brazilian institutions. The potentialities,challenges and tensions that have permeated such experiences are here taken as objectsof reflection by a group of anthropologists. This work does not constitute ahomogeneous narrative. It is rather a series of remarks, organized around commonthemes. The debate is inspired by a variety of issues such as: the cultural diversity of

    African populations and the difficulties in conceiving of a Brazilian style ofanthropology in construction in and about the PALOP; the place occupied by thePortuguese language in research experiences; and the way in which researchinvestments oriented by the South-South agenda are situated within a broader system of

    power relations.

    Key words: Brazilian anthropology, Africa, research challenges

    Ttulo:Antroplogos brasileiros na frica: algumas consideraes sobre o ofciodisciplinar alm-mar

    Resumo: Nos ltimos anos, v-se consolidar na antropologia produzida porpesquisadores brasileiros, ou com algum tipo de vnculo com instituies do nosso pas,pesquisas que tm como cenrio pases africanos. As potencialidades, os desafios e astenses que tm permeado tais experincias de pesquisa so aqui tomados como objetode reflexo por um grupo de antroplogos. No se trata de uma narrativa homognea,mas de um conjunto de comentrios, estruturados a partir de temas comuns. So

    debatidas questes como: a diversidade cultural das populaes africanas e asdificuldades em se pensar a existncia de uma antropologia com estilo brasileiro emconstruo nos/sobre os PALOP; o lugar ocupado pela lngua portuguesa nasexperincias de investigao; e o modo como investimentos de pesquisa orientados pelaagenda sul-sul situam-se em um sistema de poder mais amplo.

    Palavras-chave: Antropologia brasileira, frica, desafios de pesquisa

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    Antroplogos brasileiros na frica: algumas consideraes sobre oofcio disciplinar alm-mar 1

    Juliana Braz DiasKelly Cristiane da Silva

    Omar Ribeiro ThomazWilson Trajano Filho

    Apresentao

    Kelly Cristiane da Silva

    J h algum tempo, v-se consolidar na antropologia produzida por pesquisadoresbrasileiros, ou com algum tipo de vnculo com instituies do nosso pas, pesquisas quetm como cenrio pases africanos. Destacam-se, nesse quadro, as atividades deinvestigao realizadas em centros de ps-graduao de So Paulo (na Universidade deSo Paulo e na Universidade Estadual de Campinas), Distrito Federal (na Universidadede Braslia), Rio de Janeiro (na Universidade Federal do Rio de Janeiro) e Bahia (naUniversidade Federal da Bahia). Diante do manancial de prticas e conhecimento

    acumulados at o momento, pareceu-nos ser esta uma ocasio oportuna para reflexo arespeito das potencialidades, desafios e tenses que tm permeado tais experincias.

    As consideraes que seguem so produtos das discusses realizadas originalmente namesa-redonda Existe uma antropologia brasileira nos/sobre os pases africanos delngua oficial portuguesa (PALOP)?, ocorrida em junho de 2008, na XXVI ReunioBrasileira de Antropologia. A escolha pelos PALOP, antes que se pense em algum olharluso-tropical de nossa parte, deu-se por pressupormos (na ausncia de um levantamentosistemtico atual) que as investigaes levadas a cabo nesses pases por antroplogos

    brasileiros tinham maior expresso numrica. Alm disso, trata-se de empreendimentosque ocorrem h pelo menos uma dcada, o que facilita a construo de um olhar

    retrospectivo crtico a respeito deles. importante tambm ressaltar que o termoPALOP, naquele contexto, foi escolhido por nos parecer ser menos ideolgico dentreoutros possveis, tais como Comunidade dos Pases de Lngua Oficial Portuguesa(CPLP), frica Portuguesa etc. Disso no se supem que ignorssemos a imensadiversidade das populaes que habitam suas fronteiras e os diferentes processos scio-histricos que as conformaram.

    1 Uma verso em lngua inglesa deste artigo foi publicada na revista Vibrant, vol. 5, n. 2, p. 277-303,julho a dezembro de 2008.

    Srie Antropologia. Vol. 430. Braslia: Departamento de Antropologia da Universidade de Braslia,2009, pp. 6-24.

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    O debate ento realizado foi inspirado por questes como: 1) a maneira segundo a qualse formam antroplogos no Brasil condiciona em alguma medida nossa apreenso dosfenmenos que se do nestes cenrios empricos, vis--vis outras variaes nacionaisda disciplina?; 2) a histria da consolidao da disciplina no Brasil e sua posio diante

    das antropologias centrais reverberam nos registros de percepo produzidos porns?; 3) o fato de a lngua portuguesa ser nosso idioma materno traz alguma implicaona interao com nossos objetos de pesquisa?; 4) qual o papel de nossa nacionalidade,na forma como ela percebida por nossos interlocutores, na construo doconhecimento?

    Essas e outras questes so abordadas abaixo por antroplogos com experincias depesquisa nas fricas oriental, ocidental ou insular. Tais questes deram origem amltiplas respostas, impossveis de resumir a uma narrativa homognea. A fim de

    preservar a riqueza e complexidade dos argumentos construdos, optou-se por organiz-los na forma de comentrios, estruturados enquanto tais a partir de temas que se fizeram

    comuns s intervenes de Juliana Braz Dias, Omar Ribeiro Thomaz e Wilson TrajanoFilho, a saber: 1) Qual antropologia brasileira na frica? 2) As fronteiras culturais dafrica e os limites do Imprio, das noes de PALOP e de CPLP; 3) A lngua

    portuguesa: potenciais e armadilhas; 4) Outras questes polticas.

    Da primeira sesso de comentrios, destaca-se por que impossvel pensar em umaantropologia com estilo brasileiro em construo nos/sobre os PALOP. A seguir, somoschamados a refletir a respeito da diversidade cultural das populaes africanas e ainadequao de categorias polticas correlacionadas ordem internacional do mundo

    para dar conta de suas proximidades e diferenas. Na discusso a respeito do lugarocupado pela lngua portuguesa em suas experincias de investigao, os autoresindicam o potencial semntico mltiplo desse signo e instrumento de comunicao, queora auxilia, ora atrapalha e confunde o ofcio profissional nesses espaos. Encerra-seesse comentrio coletivo problematizando, entre outras coisas, o modo comoinvestimentos de pesquisa orientados pela agenda sul-sul situam-se em um sistema de

    poder mais amplo, do qual parte fundamental o projeto do Estado brasileiro em seapresentar como liderana entre os pases emergentes.

    Pretende-se que tais reflexes figurem como um registro de algumas das questes edesafios que se impem contemporaneamente ao campo da antropologia no Brasil.Obviamente, no h qualquer pretenso de totalizao das tenses que se colocam em

    decorrncia dessas experincias. As fricas so muitas, bem como os antroplogosbrasileiros que exercem seu ofcio alm-mar. No entanto, em um momento em que ainternacionalizao das agendas de pesquisa se coloca como um caminho vivel efecundo para muitos de ns, o olhar crtico de alguns pioneiros dessa trilha pode nosauxiliar a melhor controlar os condicionantes que atravessam nossa prtica disciplinar.

    1) Qual antropologia brasileira na frica?

    Omar Ribeiro Thomaz

    Minha primeira reao pergunta que d nome a esta mesa a formulao de outra

    pergunta: por que haveria uma antropologia brasileira nos ou sobre os assimchamados pases africanos de lngua oficial portuguesa? A simples constatao de que

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    h antroplogos brasileiros ou antroplogos formados no Brasil ou vinculados ainstituies brasileiras realizando pesquisa nestes contextos no suficiente para talformulao. Para alm desta constatao teramos que imaginar que os antroplogos

    brasileiros so sujeitos de uma antropologia especfica, brasileira; mas tambm

    teramos que diferenciar os antroplogos brasileiros que fazem pesquisa em territriosoutrora colnias de Portugal na frica daqueles que fazem pesquisa em outros pasesafricanos e os h: na Costa do Marfim, no Benim, no Mali, na Repblica Democrticado Congo, na Nambia, na frica do Sul, em Uganda.

    Com relao singularidade da antropologia brasileira em geral, no creio que seja apessoa mais adequada para fazer qualquer tipo de sistematizao, sobretudo porque huma verdadeira subdisciplina denominada Histria da Antropologia no Brasil, ouAntropologia Brasileira, que tem seus especialistas e constitui uma verdadeiratradio que procura, entre outras coisas, desvendar linhagens intelectuais ecompreender as particularidades na constituio do campo, defendendo inclusive a

    existncia de um estilo especfico da prtica antropolgica entre ns. De certa maneira, a existncia desta discusso em torno da Antropologia Brasileira que permitiu a

    proposta desta mesa, na medida em que h tempos que se constata que fazerAntropologia no Brasil geralmente se confundiu, pelo menos em algumas de nossaslinhagens, na realizao de uma Antropologia do Brasil. Neste sentido, a pergunta sobrese nossa singularidade se reproduziria alm fronteiras faz, em princpio, certo sentido: o correlato necessrio da nossa autonomia diante das grandes tradies, entendida

    por alguns como trs a britnica, a norte-americana e a francesa e por outros comoquatro estas trs mais a alem. Poderamos constituir uma quarta ou quinta tradio, e

    poderiam surgir outras, como a antropologia mexicana, a indiana, a chinesa...

    Esta formulao traz consigo problemas, entre os quais elencarei apenas alguns insisto, no sou especialista em histria da antropologia no Brasil, e tampouco dehistria da antropologia em geral. Em que medida podemos diferenciar a antropologia

    britnica de uma antropologia sul-africana, por exemplo? Alguns dos antroplogosgeralmente associados antropologia britnica no s eram sul-africanos como estavamenvolvidos poltica e eticamente com o seu pas antroplogos to distintos comoGluckman, Schapera, Turner, Hilda Kuper, Adam Kuper, Jesica Kuper, Monica Wilson,entre tantos outros... Todos realizaram pesquisa em contextos africanos e muitos delesforam impedidos de exercer sua profisso na frica do Sul depois de certo momento,dirigindo-se aos protetorados britnicos como a Basutolndia e a Suazilndia ou

    colnias como a Rodsia do norte, atual Zmbia. E mais: seus trabalhos foram, de fato,decisivos para o trabalho de antroplogos como Radcliffe-Brown que viveu na fricado Sul e foi de l expulso por se opor ao sistema de segregao ou Evans-Pritchard.

    A insistncia de alguns em diferenciar a antropologia norte-americana daquela que noperodo pr-nazista teve lugar na Alemanha no resiste a uma anlise mais detalhada.De certa forma, linhagens do culturalismo norte-americano so antes devedoras de suaorigem teutnica do que fruto de uma especificidade intelectual ou institucional norte-americanas.

    Em todo o caso, a insistncia em torno de um debate sobre uma antropologia

    brasileira fruto da constatao da constituio da disciplina longe de um contextoimperial ou que contasse com uma espcie de ultramar. E aqui provvel que

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    tampouco sejamos muito originais, pois em distintos momentos de nossa histriapodemos certamente aproximar nossa disciplina de movimentos mais ou menosimperiais que se davam internamente s nossas fronteiras. Ou seja, a antropologia noBrasil deitaria suas origens na interiorizao da metrpole, para usar a famosa expresso

    de Maria Odila, e devemos imaginar tambm que, da perspectiva das populaesindgenas ou dos afro-descendentes, o projeto de homogeneizao que acompanhou aformao nacional pode ter sido to violento como a expanso das fronteiras coloniaisna frica.

    Enfim, no creio que o exotismo que caracterizou as antropologias metropolitanas noincio da nossa modernidade tenha sido ausente daquela que nascia no Brasil. A simplesidia de que estaramos construindo uma nao e no um imprio parece ser antes uma

    posio de princpio: impressionante o quanto o clssico Os Sertes de Euclides daCunha guarda uma estrutura semelhante com relatos de guerra como os de Mouzinho deAlbuquerque ou Antnio Enes em Moambique. A caracterizao das populaes

    revoltosas obedecia ao mesmo princpio evolucionista, as representaes sobre o seufuturo eram as mesmas, assim como a admirao diante da sua tenacidade era expressa

    por Euclides da Cunha ou Mouzinho de Albuquerque... ou pelos militares britnicosdiante de Shaka Zulu. Por outro lado, sabemos hoje que as antropologias imperiaiseram, tambm, nacionais, expressando nos espaos coloniais uma percepo de cultura,diversidade e mesmo projetos de homogeneizao testados anteriormente no interior desuas fronteiras territoriais. Creio que estes e outros exemplos nos obrigariam a matizarnossa suposta originalidade.

    Wilson Trajano Filho

    A questo encaminhada no sobre a possvel singularidade de uma antropologia dospases da frica portuguesa. Os pases a entram como um cenrio onde as pesquisasso realizadas. Relembro a este propsito o mote geertziano de que no estudamosaldeias, mas nas aldeias. bem verdade que em alguns casos nossas pesquisas tmcomo tema os pases ou, num linguajar mais sofisticado, os estados nacionais ou asnaes. Mas mesmo nestes casos, o que fazemos de fato uma infinidade de outrascoisas como analisar formas musicais, instituies de ajuda mtua, prticas e estratgiasde incorporao e reproduo social, entre outras.

    Alm disto, no possvel equiparar completamente a nacionalidade do antroplogo, oseu lugar de formao e o de atuao. Hoje, no Brasil, temos antroplogos fazendopesquisa em frica portuguesa que no so brasileiros, embora tenham tido partesubstancial de sua formao profissional no pas; outros que no so brasileiros nemtiveram sua formao acadmica no Brasil; alguns que so brasileiros, mas tiveram suaformao fora do pas e por fim os que so brasileiros e formados no Brasil. Estoudeixando de lado alguns brasileiros, cuja formao foi feita parcial ou totalmente noexterior, e que esto trabalhando fora do pas, alm dos brasileiros que, vinculados ainstituies brasileiras, formados aqui ou alhures, esto fazendo pesquisa na fricano-portuguesa. Como se pode notar, as possibilidades so muitas. E como o universodesses pesquisadores no muito grande, indo pouco alm de uma dzia, as diferentes

    posies de cada um no campo disciplinar podem distorcer as generalizaes acerca deuma antropologia brasileira sobre a frica portuguesa.

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    E a maneira segundo a qual se formam os antroplogos em nosso pas condicionaria a

    apreenso das realidades africanas. Pode bem ser que seja assim, mas vale um dedo depensamento sobre isto. Quantos dos antroplogos formados no Brasil que fazempesquisa na frica portuguesa tiveram uma formao africanista? Quantos fizeram umou mais cursos de etnografia africana? Qual a intensidade/profundidade mdia da

    pesquisa de campo em frica? Essas so questes empricas para as quais eu no tenhoresposta, mas que no difcil responder, dado a pequenez de nosso grupo. Suspeito,tomando como base aqueles de quem sou mais prximo e que realizam pesquisa decampo em frica em geral, que no h uma formao tpica de africanista, com vrioscursos ou seminrios sistemticos sobre a etnologia e histria africanas. Isto nos levaria

    para o campo disciplinar desprovido da rigidez desse tipo de formao, mas, por outrolado, que carece da densidade da formao prvia necessria ao incio de qualquer

    pesquisa.

    O que levamos em lugar disto? As teorias e ferramentas analticas desenvolvidaslocalmente para lidar, por exemplo, com as sociedades indgenas brasileiras, com oscamponeses do nordeste e centro-oeste? No creio, e sinto-me, s vezes, embaraado

    por no dialogar mais intensamente com os colegas da etnologia indgena brasileira.Parece-me que o que levamos para o campo um ecletismo que pode bem ter muito

    potencial criativo, mas pouca densidade e uma grande ingenuidade. Vou me ocuparapenas dessa ltima faceta.

    Ser ecltico, nesse contexto, pressupe em termos prticos a iluso de que estamosdialogando com o mundo (com as nossas variadas fontes de inspirao terica, temticae metodolgica), quando, na realidade, estamos, como rede, aprisionados num grandesolilquio.

    A emergncia de um campo de estudo consolidado na antropologia brasileira sobre africa portuguesa, com ou sem singularidade, depende de massa crtica de

    pesquisadores que rompa com o solilquio insano, depende de um dilogo intenso comnossos colegas brasileiros que fazem pesquisa em outros lugares, de uma presenamaior, nossa e de nossos textos, nas bordas do mundo antropolgico que j no temcentro: nos pases africanos, em Portugal, mas tambm na Dinamarca, Alemanha,

    Holanda e alhures. Mas vai depender, sobretudo, do desenvolvimento de um olharprprio que s se conseguir quando deixarmos o conforto, inexplicvel para mim, dafrica portuguesa, isto , quando nos aventurarmos, bem formados e com um bomconhecimento etnogrfico e histrico, nas realidades da frica do Sul, Nambia,Senegal, Serra Leoa, Gmbia, Tanznia, Costa do Marfim, Uganda e por a vai, que africa muito grande.

    Juliana Braz Dias

    Supor a existncia de uma antropologia brasileira nos ou sobre os chamados pasesafricanos de lngua oficial portuguesa uma atitude um tanto precipitada. Alguns dos

    problemas suscitados por tal ordem de questionamento j foram bem apontados porOmar e Trajano, sugerindo a impossibilidade de falarmos, neste momento, de um

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    campo consolidado e marcado por alguma especificidade substancial. Acredito, porm,que tal discusso precisa ser acrescida de alguns dados quantitativos capazes de fornecera dimenso exata daquilo de que tratamos. Quantos, afinal, so os antroplogos

    brasileiros que desenvolvem atividades de pesquisa em algum dos pases africanos de

    lngua oficial portuguesa? Quantas dissertaes e teses foram defendidas ou quantosartigos foram publicados em revistas especializadas, nos ltimos cinco anos, tendoalgum desses pases como cenrio onde se desenrolam os fenmenos estudados?

    possvel perceber um crescimento significativo nesses nmeros quando comparadosqueles referentes a anos anteriores?

    No disponho de resposta para essas perguntas, mas esse tipo de dado no muitodifcil de ser obtido, fornecendo novos parmetros para nossa discusso. O volume

    publicado no ano de 2004 pela Associao Brasileira de Antropologia (O Campo daAntropologia no Brasil, organizado por Wilson Trajano Filho e Gustavo L. Ribeiro) jnos fornece vrias informaes relevantes sobre quem so os antroplogos brasileiros

    que se aventuram fora de nossas fronteiras. Os dados apresentados naquela obraindicam, por exemplo, que, entre 1998 e 2001, foram defendidas no Brasil cinco teses edissertaes de antropologia que tm como foco situaes sociais em pases africanos delngua oficial portuguesa. Folhear as programaes dos ltimos congressos organizados

    pela ABA, procurando, nos ttulos das comunicaes apresentadas, referncias aosPALOP, outra forma de investigar quem so e quantos so esses pesquisadores e

    pode, por vezes, tornar-se uma tarefa um tanto frustrante. Numa rpida busca pelaprogramao da 26 Reunio Brasileira de Antropologia, encontramos muito poucostrabalhos que tm como referncia os pases africanos de lngua oficial portuguesa.Pude contar apenas quatro comunicaes com essa caracterstica, excetuando-se a

    prpria mesa redonda que compomos levantando essa discusso e ainda alguns poucostrabalhos que remetem a migrantes oriundos dos PALOP, residentes no Brasil ou naEuropa, alm de pesquisas realizadas em outros pases africanos. Ainda que eu estejaciente da necessidade de um levantamento mais sistemtico para aventar algumaafirmao mais conclusiva, interessa-me aqui apenas dar alguma indicao do quolimitado, em termos quantitativos, o grupo de pesquisadores ao qual nos referimosnesse debate.

    Contudo, mesmo em se tratando de um grupo pequeno e pouco homogneo, creio queh alguns pontos que perpassam esse conjunto de experincias de pesquisa, costurando-as e merecendo ateno. Refiro-me sobretudo s condies de realizao da pesquisa de

    campo, passando por questes como o financiamento, os usos da lngua portuguesa e asdificuldades ligadas relativa novidade do empreendimento questes semprerelevantes numa disciplina marcada, desde muito cedo, por seu carter reflexivo.

    2) As fronteiras culturais da frica e os limites do Imprio, da noo de PALOP ede CPLP.

    Wilson Trajano Filho

    Comeo pelo exame do status ontolgico da frica portuguesa para que se possaaveriguar se h alguma unidade neste objeto que estaria na base de uma eventual

    singularidade no modo pelo qual os sujeitos (ns, os antroplogos brasileiros) o tratam.

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    A locuo que nos ocupa se refere a cinco antigas colnias do imprio portugus. Duasso sociedades insulares com menos de 500 mil habitantes. Cabo Verde, formado pordez ilhas com topografia, clima e solos diferenciados, foi povoado originalmente porgente de Portugal e por uma massa de africanos da costa adjacente para ali trazidos em

    situao de servido. Com o passar dos anos ali se desenvolveu uma sociedade crioula,produto de um complexo jogo de misturas entre gente de provenincias tnica,lingstica e religiosa diferenciadas. Na base de sua reproduo social est o seu papelde intermedirio num sistema inter-societrio de troca: como agentes no comrcioatlntico e com a costa. Ali no foi gerado um sistema produtivo que satisfizesse asnecessidades bsicas de subsistncia. So famosas as crises de fome provocadas pelassecas regulares que assolam as ilhas. Sua reproduo desde muito cedo dependeu dadisperso de seus habitantes pelo mundo (primeiro pela costa adjacente, a seguir peloimprio colonial e hoje no vasto mundo da globalizao). So Tom e Prncipe foram

    povoados de modo semelhante a Cabo Verde. Tambm ali surgiu uma sociedadecrioula, mas, diferentemente do arquiplago do norte, no precisou dispersar seus filhos

    pelo mundo para se reproduzir. Depois de ser um entreposto de escravos, ali sedesenvolveu uma economia baseada na agricultura de exportao dominada pela elitecrioula local. As duas ilhas receberam, desde 1860, um grande influxo de cabo-verdianos que, fugidos da seca e da fome, vinham trabalhar nas suas roas de caf ecacau.

    Das antigas colnias continentais, a Guin-Bissau a menor e a mais pobre. parte docomplexo cultural e social da zona conhecida como Alta Costa da Guin. Vivem no pasatualmente cerca de 1,4 milhes de pessoas que tm laos de pertencimentos com cercade 20 grupos historicamente muito inter-relacionados, o que os tornam etnicamenteambguos. Ali tambm se desenvolveu uma sociedade crioula, mas muito diferente dasde Cabo Verde e de So Tom e Prncipe. Foi essa sociedade, na realidade, um grupo deintermedirios que no tem a forma de uma elite, que esteve frente do movimentonacionalista dos anos 50 e 60. A populao rural vive basicamente da agricultura desubsistncia. A presena colonial portuguesa sempre foi muito diminuta, ficando ogoverno de fato da colnia nas mos dos cabo-verdianos que ocupavam os escalesintermedirios da burocracia.

    Angola e Moambique so os gigantes do sul. O primeiro tem uma populao de 12milhes e no segundo vivem cerca de 20 milhes de pessoas. As populaes rurais estodivididas em vrios grupos tnicos, que, em contraste com os da Guin, tm uma massa

    crtica diferente. So grandes grupos. Culturalmente, os grupos de Angola so muitoassemelhados, fazendo parte da vasta famlia lingstica dos bantus do sul. A presenado Islo pouco relevante nesse pas em que se formou uma elite de mestiosrelativamente grande, talvez porque Angola tenha sido a nica colnia de povoamento

    portuguesa. Mas essa elite nunca constituiu uma verdadeira sociedade crioula, comformas e instituies particulares de incorporao e reproduo.

    Mais populoso, mas com menos riqueza potencial que Angola, Moambique habitadopor povos pertencentes ao grupo lingstico dos bantus centrais. Tambm so povosculturalmente assemelhados, mas diferente dos de Angola, em Moambique a presenado Islo muito mais forte. Porm, trata-se de um Islo diferente do praticado na Guin

    Bissau e em grande poro da frica ocidental, que muito orientado pelas irmandadessenegalesas. Parte das populaes tradicionais de Moambique pertence ao chamado

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    cinturo matrilinear da frica central, o que confere a esses povos alguma distinocom relao aos das outras antigas colnias. Em Moambique tambm se encontram

    presentes uma parcela significativa de indianos e povos do ndico.

    Essas breves informaes sugerem que as populaes tradicionais desses pases tmmuito pouco em comum para justificar etnograficamente a expresso fricaportuguesa. Um campons balanta ou pepel da Guin-Bissau vive num horizonte sociale cultural muito mais prximo dos camponeses mendes e temnes da Serra Leoa do quedos seus congneres macua ou kimbundo de Moambique e Angola. A populaocrioula das vilas da Guin tambm mais prxima culturalmente dos krio da Serra Leoado que da elite mestia angolana. Na realidade, as trs antigas colnias continentais selocalizam em trs reas culturais diferentes: a Guin-Bissau pertencendo ao complexoda Alta Costa da Guin, Angola rea do Congo, e Moambique rea do gado. Seesse linguajar for por demais anacrnico, posso traduzir, dizendo que as antigas colnias

    portuguesas vivenciaram uma insero diferenciada na dinmica dos fluxos inter-

    societais em frica.

    Tomadas somente as populaes tradicionais desses pases, tais como foram idealizadasno perodo clssico da antropologia africanista, a frica portuguesa uma construoque carece de sentido etnogrfico, no podendo ser a base de qualquer eventualsingularidade da antropologia realizada por brasileiros. Porm todas essas sociedadesvivenciaram um processo histrico comum por cerca de 100 anos. Trata-se do processoque resultou na implantao de um regime colonial por um mesmo imprio. E se no hum fundamento etnogrfico para falar em frica portuguesa, certamente h umfundamento de natureza histrica. Todas essas sociedades se defrontaram com uma

    presena imperial, que era orientada pelos mesmos princpios gerais e pela idia de umamisso civilizadora la portuguesa. Trata-se de um imprio marcado por uma auto-imagem de fragilidade, fraqueza e humildade, mas que nem por isto deixou de ser forte,sendo o ltimo imprio a desmoronar. Porm, quando se olha mais de perto, percebe-seque a atuao do imprio foi muito diferente em cada colnia. Se Angola atraiu umamassa de colonos portugueses, estes praticamente inexistiam na Guin. Se Angola eMoambique eram ricas colnias, a Guin e So Tom foram, em larga medida,desprezados. E Cabo Verde sempre ficou indeciso entre ser frica e ilhas atlnticas.

    ento a presena colonial portuguesa que justifica, como uma experincia histrica,uma unidade relativa frica portuguesa. Mas isto, a meu ver, no basta para

    construir uma singularidade. Complementa a experincia histrica relativamentecompartilhada a obsesso brasileira (ou obsesso das cincias sociais brasileiras) com aquesto da nacionalidade. Os tais pases do PALOP esto nos estgios iniciais de seu

    processo de construo nacional. Esta uma questo candente em todos eles (em grausdiferenciados, obviamente), assim como uma temtica cara s nossas cincias sociais.Talvez possa bem ser que nossa ideologia da nacionalidade, incorporadora dasdiferenas na totalidade nacional, represente uma vantagem para compreender aexperincia histrica desses pases em comparao com as visadas de outrasantropologias nacionais: a inglesa e a americana que etnicizam, quando no racializam,as diferenas, tornando-as quase naturais; a portuguesa, sempre nostlgica do imprio

    perdido, sempre dividida entre o desconforto da pequenez e o devaneio de civilizar; a

    francesa, muito universalista e tambm tendente a civilizar, s que com um brao maispesado. Uma resposta mais definitiva a esta questo ter, no entanto, que esperar por

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    algumas geraes de antroplogos a fazer pesquisa em terras africanas.

    Omar Ribeiro Thomaz

    Aqui queria colocar um ponto fundamental, que diz respeito questo da regio. Se verdade que h algo que aproxima Angola e Moambique, conseqncia de um passadomarcado por um mesmo colonizador, tambm verdade que s isso que aproximaestes dois pases. Quanto mais fao pesquisa em Moambique, mais me distancio deAngola ou da Guin, e mais me aproximo do Malaui, do Zimbbue e de determinadasregies da frica do Sul ou Suazilndia. A aproximao dos PALOP tendo comoreferncia um suposto passado portugus no deixa de guardar um eco luso-tropical. Eno s porque os colonizadores que foram para Angola e Moambique, e que noexistem mais, eram profundamente diferentes, mas porque as populaes de Angola eMoambique tambm so profundamente diferentes, para no falarmos da Guin, deCabo-Verde ou de So Tom e Prncipe.

    A noo de rea cultural, infelizmente fora de moda entre ns, faz todo o sentidonestes contextos africanos, e a que permite realizarmos um salutar trabalhocomparativo. Enquanto que a Guin est inserida no que se convencionou chamar defrica Ocidental, e boa parte de Angola se associa bacia do Congo, Moambique um contexto austral e oriental. As comparaes reveladoras aqui sero entre o norte deMoambique e a antiga frica Oriental Britnica, entre o centro e as antigas Rodsias, eentre o sul e a frica do Sul e a Suazilndia. Outros povos, outros colonizadores, oantigo passado portugus um fator que interage dinamicamente com outros, o quecertamente distancia Moambique de Angola, e de Portugal, e do Brasil... EMoambique est ainda no ndico, e so as populaes indianas a serem herdeiras deuma espcie de colonialismo concorrente com os portugueses, e so os indianos que

    permaneceram e fazem parte do dia a dia dos moambicanos.

    3) A lngua portuguesa: potenciais e armadilhas

    Wilson Trajano Filho

    O fato de sermos falantes do portugus tem algum efeito sobre a conduo e osresultados de nossas pesquisas? A esse respeito, importante notar que as sociedadesdesenvolvem olhares e entendimentos diferentes sobre a lngua. Lembro que Portugal

    uma comunidade de fala focada, onde a lngua um fator de identidade muito forte,objeto da ateno e regulao pelas instituies do Estado e da sociedade e onde asvariaes vernaculares em contexto de uso so constrangidas pela poltica e ideologialingstica. O Brasil tambm o , mas em menor grau. Os pases africanos de lnguaoficial portuguesa so comunidades de fala difusas, onde a lngua joga um papelcoadjuvante como fator de identidade a nvel nacional, as polticas lingsticas concretastm uma natureza mais utilitria do que valorativa e onde as variaes lingsticas somuito pouco constrangidas pela ideologia. Tudo isto quer dizer duas coisas muitoimportantes e relacionadas: 1) a lngua portuguesa no percebida da mesma formanesses pases; e 2) o que se identifica como portugus em frica no tem comoreferncia um cdigo ou sistema monoltico. Na realidade, portugus um nome, um

    rtulo que se refere a um conjunto enorme de variedades vernaculares cujos extremosesto mais apartados do que a nossa variante culta est da variante culta do espanhol.

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    Por tudo isto, a indagao sobre o papel da lngua em nossas pesquisas precisa serrevista para que no tenhamos como ponto de partida a nossa ideologia lingstica, que,como foi visto, aloca grande valor identitrio lngua. Resta saber se num nvel

    pragmtico a eventual mtua inteligibilidade das variantes vernaculares que chamamos

    de portugus facilita as nossas interaes em campo. Aqui, novamente, o quadro ode uma imensa variabilidade. Eu diria que para o meio urbano em Cabo Verde aresposta afirmativa, para as pequenas comunidades rurais da ilha de Santiago, eutenho fortes dvidas. Para So Tom, a situao semelhante de Cabo Verde. Comrelao Guin-Bissau, a vantagem comparativa do falar portugus quase nenhuma.Omar pode nos ajudar a desvendar isto no caso de Moambique. Angola, creio eu, ainda

    precisa ser descoberta pela gerao de antroplogos brasileiros que fazem pesquisa decampo.

    Omar Ribeiro Thomaz

    A segunda suposio diria respeito a um nexo especfico entre os antroplogosbrasileiros ou formados no Brasil e distintos contextos que caracterizamos, por merocomodismo, sob o guarda-chuva da mesma lngua oficial. E aqui a lngua portuguesaque ganha um inusitado protagonismo. Se evidente que no parece fazer parte doesprito da mesa qualquer sorte de empuxo luso-tropical, no menos verdade que aunidade lingstica no deixa de ser uma suposio que merece, no mnimo, ser postaem questo.

    fato que o portugus a lngua oficial de cinco pases africanos Cabo-Verde, Guin-Bissau, So Tom e Prncipe, Angola e Moambique. Recentemente, transformou-se emlngua co-oficial na Guin-Equatorial, ao lado do castelhano, e est em vias de ter umestatuto privilegiado no Senegal. A relao que nestes distintos pases os indivduos tmcom a lngua portuguesa , contudo, muito distinta, o que nos impede de criar um nexoentre eles, e mais ainda um nexo entre estes pases e o Brasil.

    Do ponto de vista demogrfico, o portugus tem um impacto muito diferenciado. NaGuin-Bissau uma lngua quase que restrita aos documentos oficiais, sendo

    praticamente ausente e mesmo desconhecida para a maioria dos seus habitantes, quetm muita clareza quanto ao seu estatuto oficial frente ao carter nacional do criouloguineense. Em Moambique, se verdade que se trata de uma lngua cada vez maisfalada e conhecida por parte dos moambicanos, continua sendo a primeira lngua de

    uma minoria nfima, e uma lngua cujo controle adequado traduz, sobretudo, umaposio destatus e poder. verdade que em Angola o estatuto do portugus singular,pois este pas constitui um dos poucos em que a maioria da populao conheceefetivamente a lngua do Estado e das elites, num processo de generalizao autnomoda formao de um sistema educacional razovel.

    E mesmo em Angola e Moambique caberia a pergunta: em portugus nos entendemos?Creio que no. verdade que o uso do portugus nos aproxima efetivamente decircuitos de elite e circuitos intelectuais destes pases, o que no pouca coisa. As elitesangolanas e moambicanas so profundamente cosmopolitas, conhecem a literatura

    brasileira e so mesmo tributrias de uma relao especfica com o Brasil, na medida

    em que em diversos momentos a produo intelectual autnoma destes pases se fez, noperodo colonial, tendo como referncia, entre outras, a produo intelectual e literria

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    brasileiras. Mais recentemente, a cultura de massa brasileira, na forma de telenovelas emesmo programas de outra natureza, invadiu estes pases e passou a fazer parte de umrepertrio possvel, sobretudo para as elites urbanas. Mas no podemos esquecer que as

    produes brasileiras competem com as de outros pases. Em Moambique, por

    exemplo, as novelas brasileiras competem com aquelas importadas da ndia, preferidaspelas comunidades remanescentes de indianos neste pas.

    Para o trabalho historiogrfico, o conhecimento do portugus realmente umavantagem. E no apenas para os estudiosos dos atuais PALOP: boa parte dadocumentao disponvel sobre diferentes regies da frica entre os sculos XVI eXVIII est em idioma portugus, o que nos situa numa relao de vantagem comrelao aos pesquisadores de outras paragens. No entanto, so poucos os brasileiros queconhecem as fontes rabes, tambm fundamentais para a compreenso do imensointerior africano no perodo pr-colonial, ou a produo indiana, crucial para umaaproximao adequada costa oriental...

    Mas as vantagens do conhecimento do portugus para uma relao com as elites e parauma aproximao privilegiada com as fontes no so suficientes. A idia da existnciade uma lngua comum , na verdade, profundamente autoritria, pois nos fecha para asingularidade do uso do portugus nestes contextos, transformando-a, em todo o caso,em objeto de comentrios jocosos ou curiosidades. Eu sou daqueles que defende que o

    portugus em Moambique , na atualidade, um idioma nativo. E no apenas porquevem sendo crescentemente a lngua preferencial de muitos nos ncleos urbanos oumesmo a primeira lngua de uns poucos, mas sim porque foi incorporadodinamicamente no dia a dia dos moambicanos como um patrimnio prprio. Aquicreio que o desafio o estranhamento real do portugus falado (e escrito) emMoambique, que permite a percepo daquilo que as pessoas esto expressando, num

    processo em que a lngua comum construda na prtica da relao entre o antroplogo,no caso, brasileiro, e seu interlocutor, e no um suposto a priori da comunicao entreos plos.

    Um bom exemplo do que estou falando pode ser a generalizao no uso do termo xarno sul de Moambique. Trata-se de uma palavra at h pouco tempo atrs desconhecidaem Portugal e que, nos ltimos 20 anos, tem sido incorporada pelos falantes dasdiferentes lnguas do sul de Moambique. Na traduo portuguesa aos Usos e costumesdos Bantu, de Henri Junod, o termoxar no aparece, e quando Webster trabalhou entre

    os Chope do sul de Moambique no incio dos anos 70, ele no fez referncia a estetermo, utilizando a palavra chope nyadine, que tem os seus correlatos em changana,xitswa e bitonga. A afirmao: voc o meu xar recorrente no sul deMoambique, e parece indicar, de forma efusiva, apenas o fato de dois indivduos teremo mesmo nome, ou nomes com a mesma raiz. No entanto, o xar muito mais do queisso: uma verdadeira instituio. O mesmo nome cria uma relao de quase parentes,como firma Webster, o que supe um conjunto de deveres, obrigaes e direitos. Umacriana pode ser oxar de um senhor mais velho, o que implica relaes de obrigaesdesta criana com este senhor, e implica que ela tambm o pai classificatrio dosfilhos dele, o que supe todo um outro conjunto de deveres, obrigaes e direitos. Umindivduo pode serxar de um morto, de um antepassado, o que o coloca num outro

    universo de relaes, e cria uma conexo entre ele e os acontecimentos dos temposantigos... Demorei anos para perceber a relevncia do xar, e durante muito tempo

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    tomava o carter efusivo dos meus xars como uma simples simpatia que surge entreinterlocutores portadores de um mesmo nome. Algo que, por outro lado, no faria muitosentido em Portugal, onde o regime de nominao , como sabemos, muito mais restritono que se refere a nomes prprios, e que acabaria por transformar algum emxar de

    um nmero infinito de pessoas...

    O mesmo podemos dizer com relao ao termo lobolo, absolutamente incorporado noportugus moambicano, que tem o verbo correspondente lobolar, e que representa umainstituio central na vida dos moambicanos. O lobolo traduz, entre outras coisas, arelao de um indivduo do sexo masculino com a sua sograria. A traduo para dote ou

    preo da noiva empobrecedora, inclusive porque em Moambique a traduo no necessria. A traduo de todos os termos de parentesco das lnguas nativas para o

    portugus, como revela Christian Geffray, leva a mltiplos equvocos, alm daquelescometidos por antroplogos, mas entre aqueles que, oriundos de outras paragens,traduzem o termo mam, como me, epap, como pai, no territrio makua, onde no h

    nem pais, nem mes... ou entre aqueles que associam o termo mamana, do Sul deMoambique, idia de me, quando as mamanas podem ser mes, mas certamente somuito mais que mes.

    Enfim, em portugus no nos entendemos, e o uso inicial deste idioma entreantroplogos brasileiros e os moambicanos pode criar uma falsa identidade que acaba

    por nublar o sentido das palavras num contexto especfico, no interior de um processode africanizao do portugus e do seu uso concomitante com uma infinidade de outraslnguas.

    ()

    Mas o uso do portugus , em Moambique, sobretudo o indicador de status. Por maisque os brasileiros procurem se diferenciar do antigo colonizador, e no sejam com elesconfundidos por parte dos moambicanos urbanos, o seu uso recorrente o situa numahierarquia social que est para alm de sua vontade. Ou seja, o portugus no aproxima,mas distancia. Os falantes de portugus, aos olhos da imensa maioria camponesa, sejameles brancos ou negros, esto associados ao universo urbano e a um conjunto deatributos do mulungo, do civilizado. Assim, um antroplogo brasileiro um mulungo,como o o representante da nao, ou seja, um burocrata oriundo de Maputo, que seveste como os antigos assimilados e aparece vestido ocidental, ou com evidentes

    marcadores de consumo, tais como relgios, telefones celulares, ou automveis.No h necessariamente uma empatia imediata entre um campons moambicano e umantroplogo brasileiro, ficando esta restrita geralmente a setores das elites locais que,

    por outro lado, nos conhecem a partir de referncias literrias ou por meio dastelenovelas. As novelas brasileiras constituem uma realidade em Moambique pelomenos desde meados dos anos 80, e nos ltimos anos tm se generalizado em funo daexpanso da televiso no pas. As imagens sobre o Brasil no so necessariamente asmais agradveis. Se entre setores da elite maputense h certa simpatia, e mesmo a

    positivao de um universo de consumo presente nas novelas, em outros meios ocorrepor vezes uma rejeio, em funo da forma como so representadas as relaes de

    gnero, e sobretudo da maneira como surgem as relaes inter-geracionais. A erotizaoou mesmo hiper-sexualizao so percebidas com desconfiana e geram muita

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    ansiedade, para alm do fato de que pouco sabemos do que realmente se compreendedestas mesmas telenovelas no pas. E mais: no temos por que supor que a telenovela

    brasileira criaria uma identidade especfica entre os moambicanos e o Brasil, diferentedaquela que se cria entre um zimbabueano e os Estados Unidos em funo da

    generalizao dos seriados americanos neste pas...

    Juliana Braz Dias

    Impossvel no discutir cuidadosamente o papel da lngua diante do conjunto dequestes aqui colocadas. A tnica da discusso permanece a mesma, tomando comoobjeto de reflexo um conjunto de indagaes, seus fundamentos e desdobramentos.Seria a lngua um fator a aproximar as diversas realidades sociais aqui mencionadas?Articulada a outros fatores, a lngua ajudaria a constituir um bloco relativamentehomogneo? Em conseqncia, estaria a lngua atuando tambm na delimitao de umobjeto sobre o qual teramos um olhar especfico? Pela srie de razes j elencadas,

    encaminhamos nossa resposta para uma negativa: no que se refere homogeneizaodesse grande e diversificado grupo, como tambm no que toca a uma vantagemcristalina dos pesquisadores brasileiros no acesso aos dados e no prprio relacionamentocom as pessoas cujas prticas sociais tornam-se objeto de nossas pesquisas. Dando aesse debate a ateno merecida, opto por dar continuidade ao mesmo a partir de umareflexo que caminhe muito de perto com minhas prprias experincias de pesquisa emCabo Verde. A lngua portuguesa e o papel por ela desempenhado nesse encontroetnogrfico apresentaram-se a mim com certo grau de novidade, uma vez quecolocavam em perspectiva minha prpria ideologia lingstica e exigiam um redesenhardas estratgias de investigao.

    Em 1998, quando programei minha primeira ida a Cabo Verde, pude perceber quodesconhecido era o arquiplago para a grande maioria das pessoas, aqui no Brasil, comquem eu comentava sobre meu projeto de pesquisa. Aos poucos, fui ficando mais

    paciente com essas situaes e aprendendo a apresentar Cabo Verde aos meusinterlocutores brasileiros como um arquiplago africano que se alcana em pouco maisde trs horas de vo a partir de Fortaleza; como a terra natal de Cesria vora; e areferncia principal como um pas onde tambm se fala portugus.

    Igualmente marcante foi, para mim, descobrir o quanto o Brasil era prximo e presentepara os cabo-verdianos. Em diversas situaes que presenciei pude perceber o

    importante e complexo papel desenvolvido pelo Brasil no imaginrio cabo-verdiano.Relato, a seguir, algumas dessas situaes, ocorridas durante minha segunda ida a CaboVerde, mais precisamente na ilha de So Vicente, em 2002.

    No era raro eu participar de conversas cujo teor era a admirao demonstrada pelosmeus interlocutores cabo-verdianos em relao ao Brasil. Claro est que muito dessasconversas era estimulado pela minha presena ali e pelo desejo de demonstrarem, visitante brasileira, a conhecida hospitalidade cabo-verdiana. Mas o significado dessasconversas no se esgotava a. Fui me acostumando a ouvir que no fundo, no fundo,cabo-verdiano e brasileiro a mesma raa ou, o mais comum, que Cabo Verde eBrasil so dois pases irmos. Certa vez, conversando com um membro da elite local,

    ouvi que o Brasil seria no apenas um pas irmo, mas acima de tudo o irmo quedeu certo. Confesso que minha primeira reao foi de grande surpresa diante desse

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    ttulo, to distante da auto-imagem que costumamos nutrir sobre a nao brasileira. E asituao comeava a exigir de mim ateno para o papel que meu pas desempenhava noimaginrio local, bem como para as conseqncias disso para o trabalho de pesquisa queeu procurava desenvolver.

    A segunda situao a que me remeto enfoca mais diretamente a questo lingstica.Apesar de Cabo Verde ter como lngua oficial o portugus, utilizado na administrao

    pblica, nas escolas e nos meios de comunicao de massa (e com mais freqncia entreos membros da elite local), a lngua crioula falada na maior parte das situaescotidianas e um elemento fundamental na constituio da identidade nacional cabo-verdiana. Assim sendo, ao longo de toda minha estada em Cabo Verde busquei aprendere me aperfeioar na compreenso e na fala da lngua crioula, uma porta de entrada parao universo cultural das ilhas. Ainda que me compreendessem quando me expressava em

    portugus, esforava-me para conversar em crioulo, mesmo que me atropelando empequenas falhas. Certo dia, quando fazia compras em um pequeno estabelecimento

    comercial, o vendedor, um rapaz de aproximadamente vinte anos, puxava assunto, comode costume, sobre o Brasil. Como acontecia com grande freqncia, por mais que euinsistisse em falar crioulo, meu interlocutor, curiosamente, tambm se esforava emfalar portugus, gerando uma situao ao mesmo tempo engraada e desconfortvel.Pedi ento, explicitamente, que conversasse comigo em crioulo, para facilitar meu

    processo de aprendizagem da lngua. Frente a isso, o rapaz me questionou: Para que?Sua lngua maissabe.... Noto que o adjetivosabe, oriundo do crioulo e que encontraequivalncia nas palavras portuguesas gostoso, bom, agradvel e prazeroso,no apenas tem forte teor positivo, mas ele mesmo um referencial para os nativos deSo Vicente, que designam a ilha como uma terra de sabura. Essa situao se repetiucom tanta freqncia que comecei a perceber que falar em brasileiro (como eleschamam nossa lngua) era, muitas vezes, uma maneira mais eficiente de aproximaoaos meus interlocutores, que, se no se sentiam mais vontade no uso da lngua dastelenovelas brasileiras, sentiam-se certamente mais interessados e estimulados. Optar

    pelo brasileiro em lugar do crioulo, em algumas situaes, significava, por certo,fechar alguns caminhos que me levariam ao universo da cultura cabo-verdiana, masmostrava-se uma forma mais eficiente, na prtica, de estabelecer vnculos e facilitar aaproximao a algumas pessoas, criando um ambiente mais favorvel realizao da

    pesquisa.

    Para refletir sobre esses dados, preciso, antes de mais nada, enfatizar que todos eles

    dizem respeito a Cabo Verde, e Ilha de So Vicente em particular, no podendo serdisplicentemente estendidos ao conjunto amplo e altamente heterogneo dos pasesafricanos de lngua oficial portuguesa. Essa nfase na proximidade entre Cabo Verde eBrasil to prpria da populao de So Vicente que mesmo um atributo importanteutilizado na construo da singularidade daquela ilha frente s demais localidades doarquiplago cabo-verdiano. Essa identificao com o Brasil diz muito sobre como osnativos de So Vicente se pensam, no podendo sequer ser estendida a Cabo Verdecomo um todo. Mas mesmo ciente dessa particularidade dos dados apresentados e docontexto do qual fazem parte, creio que h pontos a que nos permitem levar adiantereflexes mais gerais.

    A maneira como minha nacionalidade e minha lngua materna interferiam nas situaesvivenciadas em campo, facilitando ou dificultando a aproximao, bem como

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    direcionando de alguma forma a troca de informaes, tudo isso vem reforar anecessidade de refletir sobre as relaes pr-existentes entre nosso pas e aqueles que

    procuramos compreender. E se nosso foco aqui a possvel especificidade daspesquisas desenvolvidas por antroplogos brasileiros nos PALOP, torna-se fundamental

    pensarmos sobre nossa insero nesse contexto lingstico e poltico da lusofonia,refletindo sobre a maneira como ela pode moldar em alguma medida nosso trabalho,organizando de antemo o cenrio onde atuamos.

    Acredito que no seria demais afirmar que os brasileiros, em geral, sentem-se bastantedistantes dos pases africanos de lngua oficial portuguesa. A participao naComunidade dos Pases de Lngua Portuguesa tem muito pouco peso na imagem que os

    brasileiros constroem de si prprios especialmente se compararmos maneira comoos portugueses retomam constantemente essa comunidade lingstica, arriscaria dizer,quase como uma reinveno politicamente correta do antigo imprio colonial portugus.E, como em Portugal, tambm nos PALOP essa situao lingstica me parece ser plena

    de significados (outros significados, claro), com alguma profundidade histrica einterferncia direta em determinados eventos da atualidade. Noto, uma vez mais, ocarter heterogneo desse grande grupo ao qual nos referimos. Cada um desses pases(Cabo Verde, Guin-Bissau, So Tom e Prncipe, Angola e Moambique), bem comoos sub-grupos que compem essas totalidades nacionais, certamente vivenciam einterpretam de maneira muito particular essa experincia de compartilhar uma mesmalngua. Mas o fato a se destacar que, em qualquer desses contextos, o etngrafo

    brasileiro, falante de portugus, no desenvolve seu trabalho em um territrio neutro.Nossas atividades de pesquisa no caem num vazio. Em qualquer desses pases,resguardadas suas especificidades, o Brasil desempenha inegavelmente um papel muito

    particular. E, como etngrafos, precisamos lidar com essa realidade e ter em mente asrelaes que j se colocavam ali, entre a nossa sociedade e aquela que pretendemosestudar, antes de nossa chegada a campo.

    Fazer etnografia , como sugere Geertz, situar-nos, partilhando em alguma medidadaquele novo contexto cultural com suas estruturas de significao. Insisto que situar-nos significa, entre outras coisas, tomar p da imagem construda sobre ns pelo grupoque estudamos. conscientizar-nos a respeito da posio histrica e poltica quedesempenhamos frente queles que buscamos compreender. Assim como construmosinterpretaes sobre os grupos que estudamos, somos tambm objeto do pensamentodeles. No caso tratado aqui, precisamos conhecer o significado de ser brasileiro (e de

    falar brasileiro) para o grupo com o qual entramos em contato, aprendendo tambm alidar com essa imagem e com a interferncia dela no desenrolar das atividades depesquisa.

    Volto ao caso cabo-verdiano para reforar meu argumento. Tendo meu pas definidopelos informantes como um pas irmo, vi construda, logo a princpio, uma relao quenos aproximava, colocando em relevo os pontos comuns de nossa histria. Mas eu no

    poderia parar a. As discusses tericas em nossa disciplina, nos clssicos estudos deparentesco, apontam frequentemente para a idia de que, entre irmos, no h sigualdade. O mesmo parece funcionar para a metfora aqui empregada. A histriacomum como ex-colnias portuguesas nos aproxima, mas no necessariamente nos

    iguala. E mesmo um cabo-verdiano que sela isso quando me diz que somos o irmoque deu certo. O que fazer diante dessa desconfortvel afirmao?

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    Podemos pensar de maneira semelhante sobre a questo lingstica. A lngua portuguesanos aproxima, mas as variaes regionais so valoradas diferentemente. Trata-se, a

    princpio, de uma mesma comunidade lingstica, mas numa relao desigual. E essa

    desigualdade pr-estabelecida entre o antroplogo e seus informantes revela todo o seupotencial em balizar os processos artesanais de construo de proximidades edistanciamentos prprios do fazer etnogrfico. Resta-nos, em ltima instncia,questionar em que medida ns, antroplogos, estamos sujeitos a reproduzir taishierarquias em vrios planos: na forma de nos relacionarmos em campo, nos dilogosestabelecidos, nos dados obtidos e nas concluses a que chegamos.

    4) Outras questes polticas

    Wilson Trajano Filho

    H, de fato, uma rede incipiente de gente fazendo pesquisa em frica, que compartilhatemticas, abordagens e dificuldades. Estrategicamente, poderia at ser interessante do

    ponto de vista da rede que houvesse uma singularidade na forma de tratar a fricaportuguesa que fosse reconhecida interna e externamente, pois tornaria mais efetiva asaes coletivas visando fins comuns. E isto pode estar mesmo acontecendo agora, comesse preldio a quatro vozes, mas, se este for o caso, o processo ainda est em faseembrionria. Alm disto, um eventual reconhecimento externo de uma peculiaridade

    brasileira potencial deve ser matizado se quisermos entender o verdadeiro potencial queisto teria para a reproduo do grupo e da linha de pesquisa entre ns.

    Evito propositadamente o uso das expresses centro e periferia para me referir antropologia, pois o quadro disciplinar muito rico e diferenciado para continuarmosoperando com essas oposies binrias. Um eventual reconhecimento externo (dasingularidade do grupo e mesmo da obra de um pesquisador individual) no passa maisnem pela circulao nem pela mediao das redes anglo-saxs. Se trabalhamos com africa portuguesa, certamente teremos uma importante fonte de dilogo e trocas comos cientistas sociais (insisto aqui que a categoria estratgica cientista social e noantroplogo) dos pases africanos e com os colegas portugueses. Este talvez seja o

    principal pblico com quem dialogar nesse estgio. Mas se almejamos umreconhecimento mais abrangente como grupo, a coisa muda de figura, pois passa poruma mediao lingstica. A j no ser suficiente conversarmos apenas em portugus,

    por menos confortvel que isto sejaJuliana Braz Dias

    Outra questo que me parece muito relevante a atual poltica do governo brasileirofrente aos chamados PALOP. Justamente quando percebemos um aumento naquantidade de pesquisas desenvolvidas por antroplogos brasileiros nos PALOP, vemoso governo brasileiro empenhar-se numa aproximao ao continente africano e CPLP

    por meio de estratgias diversas. Esse duplo interesse pela frica lusfona talvez noseja mera coincidncia e certamente interfere nas condies de realizao das nossasatividades de pesquisa.

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    No muito tempo atrs, a imprensa noticiou a pesada crtica do Presidente Luiz IncioLula da Silva em relao ao setor areo brasileiro. A carncia de linhas areas ligandonosso pas frica estaria impedindo maior intercmbio entre o Brasil e os pasesafricanos. O Presidente lembrou que, para um brasileiro chegar Angola, precisa antes

    passar por Londres. Disse ainda que precisava ter uma conversa sria com o setorareo brasileiro, aventando at mesmo a possibilidade de criao de uma nova empresaarea estatal capaz de responder a essa demanda.

    Essas declaraes esto amarradas a uma srie de iniciativas tomadas pelo governofederal a partir do primeiro mandato do Presidente Lula. Desde que assumiu a

    presidncia em 2003, Lula visitou 19 naes do continente africano, incluindo osPALOP. Nas visitas a esses pases, foram assinados diversos acordos de cooperao econvnios tcnicos nas reas de educao, sade, tecnologia eletrnica e agricultura.Foram feitas tambm doaes de recursos e renegociao de dvidas. Em 2004, oPresidente Lula chegou a perdoar a dvida de 2,7 milhes de dlares que Cabo Verde

    tinha com nosso pas, colocando em prtica a generosidade que, como afirma, todospases devem ter com pases menores. Em um discurso proferido em abril de 2005, emsua quarta viagem frica, o Presidente chegou a afirmar que seu desejo que osgovernantes africanos percebam que ns somos um pas de irmos, que temosinteresse numa integrao efetiva e que queremos repartir o pouco que temos com eles,

    para eles repartirem um pouco do que tm conosco.

    O estreitamento das relaes com pases pobres e em desenvolvimento (no continenteafricano, em especial) tem sido uma das principais estratgias da poltica externa doatual governo brasileiro. O objetivo final aumentar o comrcio e impulsionar osnegcios com esses pases embora haja tambm clara e firme dimenso poltica nessasvisitas e iniciativas, visando ocupao estratgica de uma posio de liderana na cenainternacional, especialmente frente aos pases do sul.

    Outro dado importante o atual incentivo, conferido pelas agncias brasileiras definanciamento, a pesquisas desenvolvidas nos pases africanos de lngua portuguesa. De2005 a 2008, foram lanados oito editais do CNPq para seleo de propostas decooperao internacional com pases africanos e/ou da CPLP (Programa deCooperao em Matria de Cincias Sociais para a Comunidade dos Pases de LnguaPortuguesa e Programa de Cooperao Temtica em Matria de Cincia e Tecnologia

    PROFRICA). Como pesquisadores, s podemos nos alegrar diante de tais

    possibilidades de financiamento, que tornam viveis nossos projetos. Mas no podemosdeixar de refletir sobre a maneira como essa inclinao do governo federal podeinterferir nas condies dos encontros etnogrficos que realizamos, tendo em vista asimplicaes ticas e polticas desse tipo de apoio governamental, ainda que incipiente.Insisto que todas essas iniciativas do governo federal fazem parte de uma estratgia dediminuio do distanciamento dos brasileiros em relao frica lusfona. Mas soigualmente uma forma de assumir um lugar privilegiado nessa relao, por meio de um

    projeto de construo de hegemonia dentro da CPLP e nas relaes sul-sul. umatentativa de redefinio dessas relaes, consolidando uma suposta liderana nessequadro.

    So, portanto, novos elementos que devemos considerar na apreciao do cenrio ondenos inserimos quando iniciamos nossas pesquisas. Como nos posicionarmos diante

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    dessa poltica que interfere nas relaes entre nosso pas e aqueles que pesquisamos,bem como na maneira como nos vemos e como somos vistos por eles? Como se d aproduo de conhecimento etnogrfico diante desse cenrio onde h uma frgil mascomplexa inclinao liderana do Brasil em relao frica? Correndo o risco do

    exagero, mas apenas querendo continuar instigando a reflexo: ser que nossaspesquisas vm se somar em alguma medida aos acordos de cooperao do governoLula, no sentido de mostrar nossa humanidade e preocupao com o outro, junto comnossa superioridade tcnico-cientfica? Ainda que nossas pesquisas possam serenquadradas no chamado dilogo sul-sul, tenho dificuldades em aceitar como um

    pressuposto que sejam relaes plenamente igualitrias.

    Vem sendo debatido de forma sistemtica no interior da disciplina o fato de que nossoofcio, como antroplogos, est intimamente relacionado a fatores de ordem poltica,sociolgica e histrica, afetado direta e indiretamente pela dinmica das relaes entreos Estados nacionais. At algumas dcadas atrs, discutamos essas questes

    preocupados apenas com a produo do conhecimento antropolgico em situaescoloniais e imperiais ou seja, a antropologia produzida nos ditos grandes centros ( oque vemos, por exemplo, nos trabalhos de Talal Asad e George W. Stocking Jr.). Hoje,com a antropologia se diversificando e se fortalecendo tambm nas periferias (se que ainda podemos usar tal expresso), preciso complexificar essa discusso, falandono s do imperialismostricto sensu, mas de outras estratgias mais sutis de lideranano quadro internacional como acredito ser o caso do Brasil frente frica e CPLP.

    Insisto que precisamos estar conscientes das condies sociais e polticas do trabalhoque desenvolvemos. No quero dar a entender com isso que, ao ultrapassar uma longaetapa de preocupao exclusiva com a construo da nao, a antropologia brasileiraesteja agora voltada para uma construo do imprio. Como sugere Gustavo L.Ribeiro ao refletir sobre as antropologias mundiais, no h somente duas opes para osantroplogos. Uma dicotomia desse tipo seria demasiado empobrecedora. Aantropologia brasileira pode, sim, tornar-se internacional sem cair na tentao de viraruma antropologia de construo de imprio. Contudo, ainda que concordemos com a

    possibilidade apontada por Ribeiro, penso que toda essa discusso merece permanecercomo uma questo a qual estejamos atentos, uma espcie de sinal de alerta, sealimentamos essa reflexividade e a conscincia da imerso de nosso trabalho em umsistema de poder mais amplo.

    Omar Ribeiro ThomazO incremento das relaes polticas e econmicas paralelo a editais que favorecem otrabalho de antroplogos brasileiros nos PALOP deve ser olhado com cuidado. Ointeresse do Brasil em outros pases do sul no novo, e podemos certamente lembrardo terceiro mundismo do perodo militar, que aproximou uma ditadura de direita auma revoluo socialista como a angolana, ou promoveu a criao de ligaes areas(subsidiadas e sem lucro possvel) entre o Brasil e diferentes pases africanos entre osanos 1970 e 1980, a VARIG chegou a voar para Angola, Moambique, Costa doMarfim e Senegal, para alm da frica do Sul. Com efeito, a idia do Brasil como um

    pas que deveria ter certo destaque no contexto latino-americano, ou entre os pases

    subdesenvolvidos e em desenvolvimento, no nova e encontra paralelos cominiciativas de outras elites nacionais, como a mexicana, sul-africana, indiana e chinesa.

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    E com a China que o Brasil se encontra na atualidade em contextos africanos: oincremento de relaes comerciais e polticas entre pases africanos to diferentes comoo Sudo, a Etipia, a Zmbia, o Zimbbue e Moambique e a China impressionante, eno vem cercado de qualquer sorte de retrica ps-colonial ou identitria, sendo

    marcado antes por uma sorte de pragmatismo que parece acompanhar as relaesinternacionais chinesas neste incio do milnio.

    No menos importante o fato de a existncia de uma retrica que aproximaria o Brasildos pases africanos em geral, e dos PALOP em particular, no vir acompanhada derelaes comerciais de impacto. De fato, entre os PALOP, o nico que possui umarelao de destaque com o Brasil Angola, e certamente entre os pases africanos africa do Sul e a Nigria, por razes bvias, poderiam despertar interesse deempresrios brasileiros.

    noutro tipo de relao que parece residir certa especificidade brasileira: no de hoje

    que temos a presena de quadros nacionais nos PALOP. Entre os anos 1970 e 1980,pases como Guin-Bissau, Angola e Moambique foram terra de exlio para grupos deprofissionais que fugiam da ditadura militar instalada no Brasil, e que l encontrarampossibilidades de emprego, para alm da revoluo almejada. Nos ltimos anos, emparticular em Angola, Moambique e Cabo Verde, profissionais brasileiros se vinculam cooperao internacional particularmente nas reas da sade (epidemia de HIV-AIDS)e educao, competindo com cooperantes vindos dos pases do norte e que insistem naidia de ajuda aos mais pobres...

    Concomitantemente, no de somenos importncia o fato de o Brasil ter setransformado, desde os anos 1970, num local de possvel formao superior paraquadros africanos, num movimento inusitado que parece subverter a lgica que impe oestudo e a formao na antiga metrpole colonial ou nos Estados Unidos. De fato, nasgrandes universidades brasileiras no raro encontrarmos um nmero considervel deestudantes dos PALOP, ao tempo em que o Estado brasileiro tem uma poltica generosade bolsas de estudos, sem paralelo com outros pases do sul (com exceo da China,talvez?). A contrapartida encontrarmos significativos quadros polticos e profissionaisde grande importncia em pases como Moambique ou Cabo Verde que estudaram noBrasil. Um balano sistemtico destes 40 anos de cooperao na rea de formaosuperior est ainda espera de ser realizado.

    As relaes entre a pesquisa antropolgica e esta expanso intermitente de interessespolticos, comerciais ou simplesmente de atuao profissional nos PALOPnecessitariam ser colocadas em perspectiva. Se de fato estas relaes existem, somente acomparao com a relao do Brasil com outros pases pode nos ajudar a pesarefetivamente sua dimenso. Refletir sobre o lugar da pesquisa em meio a este processomais amplo s ser possvel aps tempo e acmulo.

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    SRIE ANTROPOLOGIAltimos ttulos publicados

    418. BAINES, Stephen Grant. Identidades indgenas e ativismo poltico no Brasil:depois da Constituio de 1988. 2008.419. MACHADO, Lia Zanotta. Os novos contextos e os novos trmos do debatecontemporneo sobre o aborto. A questo de gnero e o impacto social das novasnarrativas biolgicas, jurdicas e religiosas. 2008.420. SAUTCHUK, Carlos Emanuel. Comer a farinha, desmanchar o sal:ecologia das relaes pescador-(peixe)-patro no aviamento amaznico. 2008.421. CARDOSO DE OLIVEIRA, Lus R. O Material, o Simblico e o Contraintuitivo:Uma trajetria reflexiva. 2008.

    422. RIBEIRO, Gustavo Lins. Do Nacional ao Global. Uma Trajetria. 2008.423. RIBEIRO, Gustavo Lins. Otras globalizaciones.Procesos y agentes alter-nativostransnacionales. 2009.424. GORDON, Cesar.O valor da beleza: reflexes sobre uma economia esttica entreos Xikrin (Mebengokre-Kayapo). 2009.425. CARDOSO DE OLIVEIRA, Lus R. Concepes de Igualdade e (Des)Igualdadesno Brasil (uma proposta de pesquisa). 2009.426. PEIRANO, Mariza. O paradoxo dos documentos de identidade: relato de umaexperincia nos Estados Unidos (verses em portugus e ingls). 2009.427. MOURA, Cristina Patriota. Within Walls of Urban Enclosure: Reflections onWomens Projects in Brazil. 2009.

    428. DIAS, Cristina e TEIXEIRA, Carla Costa. Uma crtica noo de desperdcio:sobre os usos da gua nos banheiros. 2009.429. RIBEIRO, Gustavo Lins. Anthropology as Cosmopolitics GlobalizingAnthropology Today. 2009.430. DIAS, Juliana Braz, SILVA, Kelly Cristiane, THOMAZ, Omar Ribeiro,TRAJANO FILHO, Wilson.Antroplogos brasileiros na frica: algumas consideraessobre o ofcio disciplinar alm-mar. 2009.

    A lista completa dos ttulos publicados pela Srie

    Antropologia pode ser solicitada pelos interessados Secretaria do:Departamento de AntropologiaInstituto de Cincias SociaisUniversidade de Braslia70910-900 Braslia, DFFone: (61) 3348-2368Fone/Fax: (61) 3273-3264/3307-3006

    E-mail: [email protected]

    A Srie Antropologia encontra-se disponibilizada emarquivo pdf no link: www.unb.br/ics/dan

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    Srie Antropologia has been edited by the Department ofAnthropology of the University of Brasilia since 1972. It seeks todisseminate working papers, articles, essays and research fieldnotes inthe area of social anthropology. In disseminating works in progress,this Series encourages and authorizes their republication.

    ISSN print format: 1980-9859

    ISSN electronic format: 1980-9867

    1. Anthropology 2. Series I. Department of Anthropology of theUniversity of Brasilia

    We encourage the exchange of this publication with those of otherinstitutions.

    Srie Antropologia Vol. 430, Braslia: DAN/UnB, 2009.