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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA O RESGATE DA MEMÓRIA NA CONFORMAÇÃO DA IDENTIDADE MOÇAMBICANA: REMINISCÊNCIAS DE IMANI EM MULHERES DE CINZAS, DE MIA COUTO Mestranda: Tani Gobbi dos Reis Orientadora: Profa. Dra. Silvia Helena Pinto Niederauer FREDERICO WESTPHALEN, DEZEMBRO DE 2017.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

O RESGATE DA MEMÓRIA NA CONFORMAÇÃO DA IDENTIDADE MOÇAMBICANA: REMINISCÊNCIAS DE IMANI

EM MULHERES DE CINZAS, DE MIA COUTO

Mestranda: Tani Gobbi dos Reis

Orientadora: Profa. Dra. Silvia Helena Pinto Niederauer

FREDERICO WESTPHALEN,

DEZEMBRO DE 2017.

TANI GOBBI DOS REIS

O RESGATE DA MEMÓRIA NA CONFORMAÇÃO DA IDENTIDADE MOÇAMBICANA: REMINISCÊNCIAS DE IMANI

EM MULHERES DE CINZAS, DE MIA COUTO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de concentração

em Literatura Comparada, sob a orientação da Profa. Dra. Silvia

Helena Pinto Niederauer, como requisito final para obtenção do

Título de Mestre em Letras.

FREDERICO WESTPHALEN,

DEZEMBRO DE 2017.

[...] na parede da memória

essa lembrança

é o quadro que dói mais [...]

(Belchior)

SUMÁRIO

COMENTÁRIOS INICIAIS ...................................................................... 5

1 A ESCRITA LITERÁRIA EM ÁFRICA LUSÓFONA ................................10

1.1 DO SURGIMENTO AO SÉCULO XXI – BREVES NOTAS SOBRE A LITERATURA DE

MOÇAMBIQUE ......................................................................................14

1.2 MIA COUTO E A ESCRITA POÉTICA DE MOÇAMBIQUE ...............................25

2 O RESGATE DA MEMÓRIA E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE:

MULHERES DE CINZAS .......................................................................29

2.1 DA DIVERGÊNCIA À CONVERGÊNCIA: LIMIARES ENTRE O DISCURSO HISTÓRICO E

O DISCURSO LITERÁRIO EM MULHERES DE CINZAS ........................................32

2.2 ENTRE A MEMÓRIA, O SILENCIAMENTO E O ESQUECIMENTO: A NARRATIVA ...46

2.3 A VOZ DE IMANI E A IDENTIDADE MOÇAMBICANA ....................................51

3 VOZES (QUASE) SILENCIADAS ..........................................................60

3.1 AS GUERRAS POLÍTICAS E PESSOAIS ....................................................69

3.2 O AFETO E AS CINZAS: SEMPRE IMANI ..................................................83

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................90

REFERÊNCIAS ....................................................................................93

5

COMENTÁRIOS INICIAIS

Os africanos por muitos anos foram alvo da desatenção mundial;

melhor seria dizer, do não querer ver que o problema existe, seja no meio

econômico, político ou social. Vitimados pelo domínio de colonizares do

Velho Mundo (portugueses, ingleses, franceses...), ainda hoje o continente

sofre com as consequências deixadas pela busca de território, poder,

riquezas, enfim... tudo quanto a Colônia pôde extrair desse chão, levou. E

não somente a bens materiais nos referimos, pois grande foi o efeito

simbólico dessas invasões sobre o povo nativo. O impacto da colonização

atingiu suas raízes culturais, apresentaram-lhes uma nova religião (o

catolicismo), um novo idioma (a língua do colonizador) e uma nova cultura (a

cultura europeia/ariana), transformando o modo de viver desses

colonizados. Entretanto, apesar da imposição cultural e religiosa, a ação da

colonização não foi suficiente para desligá-los de suas raízes, pois a tradição

do povo africano sempre apareceu como mais forte do que a dos invasores

estrangeiros; tanto que por décadas sofreram com o domínio desses

colonizadores, adaptaram-se aos novos costumes, mas não deixaram de

praticar a sua cultura, mística e religiosidade, e preservaram seus diferentes

idiomas nativos, o que anuncia a continuidade de sua própria tradição

identitária.

Tudo isso nos reserva uma memória e história, as quais se buscam por

meio de rastros de uma lembrança que não se quer esquecer ou, mais que

isso, não se deve esquecer, pois o esquecimento e o ato de não relembrar um

passado gera o apagamento de uma memória e, assim, acentua sua

invisibilidade que, para os africanos, não se delimita apenas nos campos

6

econômico, político e social, mas também no literário. E, é a partir da escrita

literária e do estudo dessa que começa uma busca por um passado

reinventado e pelo princípio de formação da identidade nacional, com a

retomada de uma memória histórica e de seu território, combatendo a

invisibilidade gerada pelo colonialismo, enfrentando os silenciamentos

causados pela história do branco colonizador, na qual eles (colonizadores)

são os narradores e personagens, narrativas em que não há espaço aos

negros colonizados.

Pelo envolvimento dessas questões contextuais, quando refletimos

sobre o espaço em que se insere a literatura e sobre as disciplinas que seu

estudo envolve, notamos que há uma ligação entre o histórico e o social; da

mesma forma, entre o estético e ideológico, ao que traduz Ricardo André

Ferreira Martins como crítica intrínseca e crítica extrínseca, conforme o

autor explana:

Os estudos literários foram marcados muitas vezes, ao longo do

século XX, pela ausência quase absoluta de inter-disciplinaridade e

pela tensão dialética entre crítica intrínseca e crítica extrínseca, sendo que a primeira defendia, em diversos momentos, que a leitura

do texto deveria realizar-se única e exclusivamente através do texto,

sem o recurso à história, à filosofia, à sociologia, à psicanálise, como

se o texto fosse um dado puro e imanente em si [...] por outro lado, a

crítica extrínseca, que apontava para os fatores supostamente externos ao texto, muitas vezes partia para uma leitura puramente

documental e diacrônica do texto, lendo-o em diversos momentos

como o simples painel das mudanças sociais em forma de escritura.

Importa dizer que ambas as abordagens, do modo como eram

tratadas pela crítica acadêmica, não conseguiam enxergar o que hoje

parece óbvio aos estudiosos do fenômeno literário, aos adeptos de uma teoria da literatura mais interdisciplinar e aberta: o fato de que

o texto literário é extrínseco e intrínseco ao mesmo tempo, ao mesmo

tempo diacrônico e sincrônico, sobretudo quando consideradas

ambas as perspectivas, e que não é mais possível abrir mão de

leituras esclarecedoras de um texto literário em nome de um purismo estético que desconsidera que a própria estética contém em

si um princípio e uma escolha ideológica, histórica, social e

culturalmente situados e construídos. Portanto, um fenômeno

saturado de historicidade e de ideologia como qualquer outro

(MARTINS, 2011, p. 201-202).

Nesse sentido, o estudo literário abrange tantos campos quanto

diversas áreas disciplinares, o que tem proporcionado não somente um

avanço da teoria literária, se comparado à análise crítica realizada no século

passado, como também apresentando a construção linguística do texto

7

literário como resultante da estrutura social-linguística de um contexto

histórico, e não apenas pela estética, mas imbuído de uma visão de mundo e

de ideologias. Complementa o autor:

Estudar o texto literário é também estudar história, filosofia,

antropologia, sociologia, psicanálise, biografia, linguística, teoria da

literatura, hermenêutica, atentando-se para os elementos

sincrônicos e diacrônicos presentes no texto, documentais e monumentais, intrínsecos e extrínsecos. Logo, estudar literatura é

também ter a percepção de que o texto literário, como a própria

literatura, é uma construção histórica, cultural e socialmente

situada, cuja imanência revela apenas um dos aspectos de sua

historicidade radical e inescapável (MARTINS, 2011, p. 203).

Ao recorrer aos estudos de Jeanne Marie Gagnebin, encontramos a

mesma indicação interdisciplinar nos estudos de literatura comparada,

principalmente entre a escrita e a memória, autobiografia e memória, trauma

e memória. Assim conjuga a autora:

[...] Na história, na educação, na filosofia, na psicologia o cuidado

com a memória fez dela não só um objeto de estudo, mas também

uma tarefa ética: nosso dever consistiria em preservar a memória, em salvar o desaparecido, o passado, em resgatar, como se diz,

tradições, vidas, falas e imagens (GAGNEBIN, 2006, p. 97).

Revelando-se como um estudo baseado nos princípios da memória e

da identidade, provocadas por um fato histórico traumático, essa pesquisa

realiza uma investigação da narrativa literária, tendo como objeto de análise

o livro Mulheres de cinzas, de Mia Couto, enquanto (con)formadora da

identidade moçambicana através de uma retomada da memória e história de

um povo, usando os termos de Gagnebin (2006) preservando, salvando,

resgatando um passado desaparecido. Portanto, essa apreciação tornou-se

possível justamente porque houve a ampliação nos campos da teoria

literária, tornando-a interdisciplinar. Ainda sobre o aspecto da memória e da

história, apresentamos, à luz da análise, o olhar do “desaparecido” na

grande história – aferimos esta como a história oficializada – em que sua

memória, identidade e história estão subordinadas, silenciadas, quando não

apagadas.

8

Mulheres de cinzas traz à luz da ficção romanesca o colonialismo

português em solo moçambicano, que ultrapassou quatro décadas (de 1505

a 1975), deixando marcas profundas naquele povo. Por este viés, pode-se

perceber a conformação identitária a ser construída pelos moçambicanos, a

partir dos resquícios que a ocupação portuguesa deixou. Muitos são os

aspectos lusitanos que foram incorporados pelos nativos africanos daquele

país, como por exemplo, a oficialização da língua portuguesa no país.

A recapitulação desse período histórico de Moçambique se dá por meio

do diálogo entre a história oficial e a oral, sendo também um ponto

norteador do romance de Mia Couto. Sua narrativa apresenta uma

reelaboração da história sob a ótica do colonizado, com base nas questões

aquém da história oficializa – referimo-nos à história contada pelos brancos,

recuperando uma “história” que é desconhecida ou foi negligenciada pela

Grande História.

Após esse apanhado geral, direcionamos nosso olhar à literatura em

solo africano especificamente às ex-colônias portuguesas, priorizando

Moçambique, país onde se desenvolve a narrativa de Mulheres de cinzas, e

que também é a nação de origem do autor da obra, Mia Couto. Para isso, o

presente estudo divide-se em duas partes teóricas, iniciando com “A escrita

literária em África Lusófona”, em que abordamos sinteticamente o

desenvolvimento da atividade literária nos países africanos, ex-colônias de

Portugal, conduzindo a pesquisa para a formação cultural e literária

especificamente em Moçambique, e destinamos um espaço especial a Mia

Couto, por além ser o autor do livro estudado e um dos autores

moçambicanos que se tornou referência em diversos países, mas também

por se tratar de um dos atores do processo de descolonização de

Moçambique, e com ele fechamos o primeiro capítulo. Para o que se

propõem, recorremos aos estudos de Manuel Ferreira, José Pires Laranjeira,

que apesar de defender o conceito de negritude, utilizamos sua pesquisa por

apresentar uma proposta de periodização literária nos países africanos de

língua portuguesa, Ana Mafalda Leite, entre outros.

Na seguinte parte teórica está o capítulo “O resgate da memória e a

construção da identidade: Mulheres de cinzas”. Para fundamentar os temas

9

tratados nas subseções, que são: os limiares entre história e ficção, memória

e identidade, recorremos aos teóricos: Paul Ricoeur, Jeanne Marie Gagnebin,

Inocência Mata, Jane Tutikian e mais alguns estudiosos que nos trazem em

suas pesquisas tópicos basilares para estruturar o segundo capítulo.

Finalizada a fundamentação teórica, partimos para a análise do livro

de Mia Couto, originando o terceiro capítulo “Vozes (quase) silenciadas”, em

que analisamos na narrativa de Mulheres de cinzas aspectos que nos

remetem a um passado histórico através de um resgate da memória da

personagem Imani, ao que se pode verificar uma conformação identitária em

relação às divergências e emoções em contato com o estrangeiro.

E assim, encerramos nossas discussões nas “Considerações finais”, na

qual tentamos englobar os assuntos desenvolvidos nos capítulos anteriores à

luz de nosso ponto de vista, fortalecido pelo cunho acadêmico-científico.

10

1 A ESCRITA LITERÁRIA EM ÁFRICA LUSÓFONA

“A literatura africana de expressão portuguesa nasce

de uma situação histórica originada no século XV,

época em que os portugueses iniciaram a rota da

África [...]”.

(Manuel Ferreira)

Para iniciar os estudos sobre o desenvolvimento da atividade literária

em países africanos de língua oficial portuguesa, utilizamos, principalmente,

os estudos de José Pires Laranjeira, Manuel Ferreira, Jane Tutikian, Ana

Mafalda Leite, Maria Nazareth Soares Fonseca e Terezinha Taborda Moreira.

Os estudos, cada um a seu modo e de acordo com seu recorte de

investigação, traçam o desenho das manifestações literárias desde o período

de descoberta das regiões africanas que se tornariam colônias de Portugal, o

início da colonização em continente africano até a criação de uma literatura

colonial e, sucessivamente, a pós-colonial.

No artigo “Panorama das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa”

Fonseca e Moreira (2007), informam que o surgimento das literaturas

africanas lusófonas remete a um

longo processo histórico de quase quinhentos anos de assimilação de parte a parte e, por outro, conscientização que se iniciou nos anos 40

e 50 do século XIX, relacionado com o grau de desenvolvimento

cultural nas ex-colônias e com o surgimento de um jornalismo por

vezes ativo e polêmico que, destoando do cenário geral, se pautava

numa crítica severa à máquina colonial (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 13)

Os já mencionados José Pires Laranjeira, em “Mia Couto e as

literaturas africanas de língua portuguesa”, e Manuel Ferreira, em

11

Literaturas africanas de expressão portuguesa, concordam com as tese de

uma periodização da literatura africana, defendendo, inicialmente, duas

fases fundamentais: a “Época Colonial” e “a Época Pós-colonial”

(LARANJEIRA, 2001, p. 185). O período literário definido como Colonial

configura-se com a vinda a lume dos primeiros textos, esses escassos e

esparsos, que tinham a África como assunto, não sendo necessariamente

textos literários, quanto menos africanos. Já a segunda fase, Época Pós-

colonial, caracteriza-se como um princípio de libertação da vida colonial,

caminhando para uma literatura emancipada (LARANJEIRA, 2001).

Ao ser questionado sobre o surgimento e desenvolvimento da literatura

africana de língua oficial portuguesa, Manuel Ferreira expõe que:

Os portugueses chegaram à Foz do Zaire em 1482 e, em 1575,

fundaram a primeira povoação portuguesa, São Paulo de Assunção de Loanda, hoje capital de Angola. Dos primeiros contatos com o

Reino do Congo dá-nos testemunho a correspondência trocada entre

os reis do Congo e os reis de Portugal, além de documentos, como

relatórios dos padres jesuítas de Angola. Mas o aparecimento de uma

actividade cultural regular na África associa-se intimamente à criação e desenvolvimento do ensino oficial e ao alargamento do

ensino particular ou oficializado, à liberdade de expressão e à

instalação do prelo, que se registam a partir dos anos quarenta do

século XIX (FERREIRA, 1986, p. 12).

Portanto, nos países africanos de língua oficial portuguesa, a largada

para a atividade cultural está intimamente ligada à oficialização da língua

portuguesa e ensino dessa aos povos colonizados. Ao contar com a

instalação do prelo, surge, em 1849, o primeiro livro publicado em solo

africano: Espontaneidades da minha alma, do angolano José da Silva Maia

Ferreira, livro de poemas africanos em língua portuguesa. Tal publicação é

um divisor de águas entre os períodos literários da África lusófona: a Época

Colonial da Época Pós-colonial (LARANJEIRA, 2001; FERREIRA, 1986).

Ferreira assim apresenta a questão:

[...] A primeira, literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao

homem europeu e não ao homem africano. No contexto da literatura

colonial, por décadas exaltada, o homem negro aparece como que por

acidente, por vezes visto paternalisticamente e quando tal acontece,

é já um avanço, porque a norma é a sua animalização ou

coisificação. O branco é elevado à categoria de herói mítico, o

12

desbravador das terras inóspitas, o portador de uma cultura

superior. [...] Paradoxalmente, o branco é eleito como o grande sacrificado. [...] Predominavam, então, as ideias, da inferioridade do

homem negro [...] (FERREIRA, 1986a, p. 14-15).

As manifestações literárias no período colonial apontam o europeu

como personagem principal e, por meio dele, apresenta-se o desbravador de

terras em que não há condições para ser habitada ou onde não se consegue

viver; esse homem branco é uma figura superior em relação aos povos

nativos de África, um espécime de herói que, mitificado nas manifestações

literárias da época, torna o africano colonizado um ser inferior, exótico. Sua

figura, quando encontrada nas narrativas, volta-se à animalização ou a

coisificação do ser. Contextualmente, essa literatura surge das experiências

de viagens, em uma “época em que o mundo cristão reconhecia o direito à

dominação, à depredação e até a barbárie” (FERREIRA, 1986a, p. 12). Logo,

percebemos que tanto a historiografia como a literatura portuguesa – fruto

das aventuras Além-Mar – testemunham um esforço de escritores, homens

da ciência, escritores de viagens etc. para o enobrecimento da cultura

lusíada, ao passo que tenta o nivelamento com a ciência e as demais

literaturas europeias (FERREIRA, 1986a).

Se, durante muito tempo o africano foi caracterizado como um homem

inferior, exótico, selvagem, aos olhos do português colonizador, a perspectiva

se altera a partir da emancipação política do país, o que caracteriza a fase

Pós-colonial. Pires Laranjeira indica o princípio de transição entre a fase da

Literatura Colonial para a Literatura Pós-Colonial, assim:

A formação e o desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa, desde o primeiro livro impresso, em 1849, até a

actualidade, passaram pela construção do ideal nacional no

discurso. No discurso literário, o nacionalismo foi a antecipação da

nacionalidade, modo específico de a escrita se naturalizar como

própria de uma Nação-Estado em germinação. A consciência

nacional, no discurso literário, atravessou, assim, diversos estádios de evolução, desde meados do século XIX até a actualidade

(LARANJEIRA, 2001, p. 185).

O período transitório apontado por Laranjeira (2001) inicia com a

consciência de nacionalidade, que se vincula à independência das colônias

portuguesa, em 1974; desse modo, começam a surgir os primeiros indícios

13

de uma literatura nacional, “liberta” das obrigações impostas pelo

colonialismo, para tentar se assumir emancipada.

Assim, um dos territórios da enunciação pós-colonial é o

desvelamento da continuidade da lógica colonial de dominação,

agora internalizada, para além dos interrelacionamentos global/local nas relações internas transversais, que cruzam o interior destas

sociedades. Este deslocamento do olhar para o interior, para as

relações de poder internas torna-se, neste contexto, um dos critérios

configuradores da estética pós-colonial [...] (MATA, 2006, p. 18)

E citando Hall (2003), Inocência Mata pressupõe que sendo a estética

pós-colonial caracterizada “pela persistência dos muitos efeitos da

colonização e, ao mesmo tempo, por seu deslocamento do eixo colonizador/

colonizado ao ponto de sua internalização na própria sociedade

descolonizada” (HALL, 2003, p. 110 apud MATA, 2006, p. 18) é possível

verificar o efeito sobre a ideia de nação/nacionalidade que viria a se formar.

Importante salientar que nos países africanos de língua oficial

portuguesa, a saber: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São

Tomé e Príncipe,

o escritor africano vivia, até a data da independência, no meio de duas realidades às quais não podia ficar alheio: a sociedade colonial

e a sociedade africana. A escrita literária expressava a tensão

existente entre esses dois mundos e revelava que o escritor, porque

iria sempre utilizar uma língua europeia, era um “homem-de-dois-

mundos”, e a sua escrita, de forma mais intensa ou não, registrava a tensão nascida da utilização da língua portuguesa em realidades

bastante complexas (FONSECA; MOREIRA, 2007, p. 14).

Percebe-se, então, que os escritores, durante o período colonial,

desdobraram-se entre as línguas nativas de seus países e a apropriação da

língua do colonizador em um processo de hibridez linguística. De acordo com

Ana Mafalda Leite,

As literaturas africanas de língua portuguesa encenaram [...] a criação de novos campos literários, fazendo coexistir na

maleabilidade da língua, a escrita com a oralidade, numa harmonia

híbrida [...] (LEITE, 2003, p. 21).

14

Se, por um lado, as literaturas africanas incorporaram a língua do

colonizador, por outro, hoje, ainda há o “simultâneo momento de

(in)definição, de partilha e de ruptura com a literatura do país colonizador”

(LEITE, 2003, p. 35), o que torna seu estudo necessário e um ‘lugar’ de

múltiplas possibilidades de investigação. Para este trabalho, interessa

conhecer a formação da literatura moçambicana, para que se possa,

posteriormente, perceber-se, pela escrita coutiana, em especial na narrativa

Mulheres de cinzas, o processo de (re)configuração da identidade

moçambicana, também a partir do convívio entre nativo e colonizador.

1.1 Do surgimento ao século XXI – breves notas sobre a literatura de

Moçambique

Com a proposta de aprofundar o conhecimento histórico sobre

Moçambique e, da mesma forma, debruçar-se sobre a literatura

moçambicana, quem é seu escritor e qual é o papel da literatura na

consolidação da identidade nacional moçambicana, Patrick Chabal arrola

essas e outras questões em seu livro Vozes moçambicanas: literatura e

nacionalidade (1994). O estudo de Chabal aponta como necessário

apresentar uma fundamentação material para “[...] começar a construir

interpretações plausíveis sobre a génese da literatura moçambicana e seu

papel no Moçambique colonial e pós-colonial” (CHABAL, 1994, p. 7),

mostrando que tais questões são oriundas e consequências do

desenvolvimento histórico de Moçambique e devem ser associadas ao seu

contexto. Ainda, o autor indica que “Se hoje se questiona a identidade ou o

papel da literatura moçambicana é porque Moçambique é um país recém-

independente em que a construção da identidade nacional está ainda em

processo” (CHABAL, 1994, p. 7-8). A isso se associa à idealização de uma

cultura nacional moderna com vistas à concretização de um estado-nação

moderno. Assim expõe Chabal:

O estudo do desenvolvimento da literatura num país como

Moçambique levanta duas questões fundamentais. A primeira tem a

ver com as “origens” de uma literatura, ou seja, o processo em que a

15

escrita numa dada área geográfica passa a ser encarada como sendo

sua literatura. A segunda, com o papel que a literatura pode ter – e muitas vezes tem – na identidade cultural e política num estado-

nação (CHABAL, 1994, p. 14).

A tentativa de obter-se uma definição de literatura moçambicana está

intimamente ligada ao contexto social e político das eras colonial e pós-

colonial; por isso, é necessário correlacioná-la com essas duas esferas, além

de contar com a participação de fontes históricas para a compreensão dessa

produção literária. Logo, ao passo que se faz necessária à visão e ao

entendimento do que é literatura nacional, torna-se importante sublinhar a

forma com que a literatura denunciou e motivou a estrutura cultural de

manifestos políticos que conduziram à criação e consolidação do estado-

nação (CHABAL, 1994). Orientando-se pelas questões políticas e culturais

em África, Chabal explica que:

A literatura é uma componente central da identidade cultural de

todos os estados-nação, apesar de evidentemente ser muito mais do

que isso. Nessa perspectiva, a moderna literatura é melhor entendida historicamente como uma das mais importantes formas de produção

cultural através das quais um estado-nação pode ser identificado. É

neste sentido que se fala de literatura russa, italiana ou norueguesa,

como referência, em simultâneo, a uma literatura específica de um

dado país e a uma tradição cultural própria. Formulada desse modo a questão parece simples pelo facto de já conhecermos o que é a

Rússia, a Itália ou a Noruega, pois aceitamos que estes países

tenham uma tradição cultura “nacional” (CHABAL, 1994, p. 15).

Alertando para as diferenças culturais e simbólicas entre os países do

Primeiro Mundo – de onde provem os colonizadores -, Chabal (1994) levanta

a diferença entre o desenvolvimento e aceite de uma cultura nacional

oriunda de países do antigo continente para o reconhecimento de uma

cultura nacional em solo colonizado – citados como Terceiro Mundo:

[...] A análise do desenvolvimento das antigas colónias exige o

entendimento da interacção entre a sua evolução cultural “indígena”

e “colonial”. Também requer um conhecimento da relação entre

cultura e política na transição do período colonial para o pós-

colonial. [...] (CHABAL, 1994, p. 15-16).

A narrativa de ficção proveniente de moçambicanos iniciou em 1950,

com a publicação de um conto de João Dias, na cidade de Coimbra,

16

chamado Godito. Posteriormente, em 1952, com a iniciativa da Secção de

Moçambique da Casa dos Estudantes do Império, surge nova publicação de

autores oriundos de Moçambique: trata-se da obra Godito e outros contos, de

João Dias (FERREIRA, 1986b). Com base no segundo livro Literaturas

africanas de expressão portuguesa, de Manuel Ferreira (1986b, p. 99), “[...]

não se sabe se os responsáveis pela iniciativa (Orlando de Albuquerque e

Vítor Evaristo) tinham a exacta consciência de que escreviam a primeira

página da história da ficção moçambicana [...]”.

Os textos que existiam até então eram de natureza colonialista e não

poderiam ser considerados como ficção moçambicana, pois não teriam

nenhuma semelhança com o que chamamos, hoje, de literatura africana de

língua portuguesa, como é o caso d’O livro da cor, de 1925, livro de contos de

João Albasini, ainda que esse invista no ponto de vista histórico em sua

narrativa (FERREIRA, 1986b).

Em defesa de João Dias, Manuel Ferreira (1986b) explica que mesmo

malsucedido na ficção moçambicana em solo português, a pouca experiência

do autor (João Dias) não a torna uma experiência irrelevante,

[...] Porque se a qualidade literária das suas narrativas se recente de imaturidade, própria de juventude, a verdade é que o ponto de vista

do narrador é a de alguém consciente da sua condição de colonizado,

e reage. Veementemente. A relação colonizado/colonizador é dada em

termos críticos e desalienantes. Traz, assim, para a ficção, e pela

primeira vez, o homem moçambicano, o negro moçambicano, enquadrado num sistema colonialista [...] (FERREIRA, 1986b, p. 99).

João Dias faz de sua obra Godito e outros contos a primeira

manifestação de consciência literária moçambicana voltada ao nacionalismo,

percebendo que a literatura configura-se em um meio de se comunicar e

pincelar seu ponto de vista, sua percepção de mundo, e necessidade de

reação frente ao colonialismo. Ao se expressar, o autor reage à condição de

colonizado imposta pelo sistema colonialista. Da mesma forma, é pela

primeira vez que aparece o moçambicano – homem, negro – na narrativa de

ficção literária, essa imbuída de racismo e denunciando a exploração a que o

negro estava corriqueiramente sujeito (FERREIRA, 1986b).

17

Em território moçambicano, a ficção moçambicana aparece nos fins de

1950, distanciando-se quase dez anos da publicação, em Coimbra, da obra

de João Dias, citada por Manuel Ferreira como o primeiro sinal de

consciência e reação frente à situação de colonizado. Em Moçambique, a

ficção nacional parte de uma atividade editorial, com a publicação de contos

em periódicos, como o Itinerário e O Brado Africano, e contou com a

colaboração de vários autores, dentre eles Sobral de Campos, Ruy Guerra,

Virgílio de Lemos, José Craveirinha e Rui Cartaxana. E essas iniciativas “[...]

Terminam por ser das primeiras tentativas, em Moçambique, da narrativa

moçambicana” (FERREIRA, 1986b, p. 100).

A partir do pontapé inicial, dado pela imprensa, ao publicar contos que

se referem à Moçambique, obras literárias compostas por narrativas

moçambicanas começaram a surgir. Foi criada, inclusive, a Colecção

Prosadores de Moçambique, na qual foram incluídas obras de vários autores,

configurando a Colecção como um projeto coletivo. Manuel Ferreira assim

escreve: “De uma maneira geral todos estes autores são prosadores dotados.

E falam do que conhecem. Simplesmente o que conhecem (ou sentem) os

limita para um aprofundamento da realidade complexa que os circunscreve

[...]” (FERREIRA, 1986b, p. 100-101). Ainda que seus conhecimentos fossem

restritos e estaria Moçambique em uma complexa conjuntura que os

delimitava, conforme Ferreira, os autores tinham um talento especial para

compor suas prosas.

As obras que vinham a lume acabaram se distanciando da proposta

sugerida por João Dias, em que o narrador, percebendo sua condição de

colonizado, reage intensamente, promovendo a crítica ao sistema colonial e a

desalienação dessa relação colonizado/colonizador, sem esquecer de que é

na sua ficção que aparece pela primeira vez o homem negro e o homem

moçambicano na narrativa. A esse respeito Ferreira (1986b) indica:

Aparentemente o narrador dir-se-ia combater o racismo e as

incompreensões e injustiças ao nível dos homens e da máquina

oficial, mas o que subjaz, julgamos, é uma coisa diferente: a visão do narrador em salvar o que possa ser salvo. Noutros termos a

superfície drena-se o intento de serem encontradas formas sociais,

políticas, culturais que possibilitem o reajustamento de uma

sociedade em desequilíbrio e célere mutação, mas sob o signo da

18

filosofia emblematicamente inscrita na “multicontinentalidade” e na

“multirracialidade”. O sentido, afinal, seria este: um novo país (colónia) em velhas estruturas “reactualizadas”. [...] Estas obras não

poderão ser postas de lado, até, como se disse, o seu nível estético as

defende, mas a verdade é que se pretendermos ver nelas a África, o

homem negro, o homem moçambicano, pouco nos dizem a esse

respeito. (FERREIRA, 1986b, p. 102).

A ideologia proposta por João Dias retoma seu curso na ficção

moçambicana com a publicação de Nós matámos o cão tinhoso, de Luís

Bernardo Honwana, em 1964. Sobre sua obra, Manuel Ferreira aponta:

[...] Excelente narrador, experiência pessoal vivida na sua própria

condição de negro, Luís Bernardo Honwana, apesar da sua

juventude (as narrativas foram redigidas algumas, cremos, por volta de 18 anos de idade) faz do universo moçambicano o centro da

análise das suas narrativas. A relação dialética

colonizado/colonizador é dada, pelas formas mais subtis, através de

várias personagens e situações. Situações de exploração, de

incompreensão, de injustiça, de alienação, desalienação, e do sonho

e da esperança [...] (FERREIRA, 1986b, p. 102-103).

Honwana aborda, em sua narrativa, Moçambique e suas relações com

o contexto do país, trazendo as diversas situações da condição de ser negro e

moçambicano a partir de sua particular condição de negro. Sua linguagem

tem a prerrogativa do português básico apropriado, devido à realização de

aquisições linguísticas moçambicanas (FERREIRA, 1986b). Ainda, Manuel

Ferreira aponta a gramática de Honwana como uma gramática

moçambicanizada e flexionada para a atividade literária, passando a ser

realidade a uma literatura africana, o que antes era tido como hipótese:

Mas o valioso é que mesmo assim a gramática de L. B. Honwana é

uma gramática moçambicanizada e ductilizada, para o exercício

superior da criação literária. Então, a crença numa literatura

africana, a partir do português, a vários níveis, já não é mera hipótese, mas uma realidade válida, multinacional, e de futuro

radioso. (FERREIRA, 1986b, p. 103).

Um ano após a publicação de Nós matámos o cão tinhoso (1964), surge

Portagem (1965) que, além de ser o primeiro romance moçambicano, é

também uma importante contribuição de Orlando Mendes para a narrativa

moçambicana, pois amplia o campo trilhado por João Dias e por Luís

Bernardo Honwana, caracterizando esses autores e suas obras como

19

exemplos mais próximos da inserção da realidade do universo de

Moçambique. Portagem tem Maputo como o local da ação e os personagens

são figurações de negros, mestiços e brancos (FERREIRA, 1986b):

[...] a tónica é da adaptação ou inadaptação do mestiço numa

sociedade africana minada pela presença do europeu. Elemento

perturbado, o mestiço balanceia entre o envolvimento de relações

europeizadas e o apelo africano que nele reside, se desenvolve, e termina, finalmente, por reencontrar-se, em definitivo, no seu

destino histórico de africano [...] (FERREIRA, 1986b, p. 103-104).

O romance de Mendes aponta a dificuldade dos africanos e mestiços e

suas adaptações e/ou inadaptações em Maputo, onde há uma marcante

presença do europeu. A exemplo do contexto social criado por Mendes,

imaginamos um filho mestiço que nasceu do envolvimento de uma negra

com um português (ou vice versa) – dedução realizada pelas palavras que se

referem à (in)adaptação nessa sociedade africana devastada pela massiva

presença de europeus. Nesse caso, o mestiço passa por um conflito interior

que oscila entre o universo europeu e o universo africano. A narrativa ainda

dá sinais de que o destino do africano depende de um reencontro consigo

mesmo, sua história, sua tradição e sua cultura; também, abandonando as

influências portuguesas, percebe-se tal narrativa como um indício para uma

nacionalidade/nacionalismo moçambicano.

Nas produções literárias de João Dias, Luís Bernardo Honwana e

Orlando Mendes ficam impressas a contribuição mais precisa, coerente e

mais próxima da realidade de Moçambique (FERREIRA, 1986b). A narrativa

literária moçambicana voltada para a africanidade, promovendo a criação de

um nacionalismo; aponta também para a defesa de seu território e para a

concretização do ideal de um novo país, livre do domínio do colonizador,

iniciando assim os passos para a era Pós-Colonial na literatura africana de

expressão portuguesa, fase essa em que, para Jane Tutikian, a literatura

procura seus próprios caminhos:

[...] caracteriza-se por mudanças histórico-culturais bastante fortes,

o que leva a transformação social, e que, evidentemente, numa espécie de fluxo-contínuo, vai ter reflexos profundos na literatura.

Depressa se passa da apologia da independência e do chamado

20

orgulho pátrio para a constatação das dificuldades impostas pela

História colonial e nacional (TUTIKIAN, 2006, p. 27).

Em estudo publicado em 2001, pela Revista de Filología Románica,

José Pires Laranjeira aponta, com base na literatura angolana, seis fases

estético-literárias – que se dividem entre os períodos Colonial e Pós-Colonial,

“[...] tendo em conta essas suas grandes divisões periodológicas, de caráter

histórico e literário, mas sobretudo desde 1849, quando foi publicado o

primeiro livro impresso em África (mais precisamente em Angola)”

(LARANJEIRA, 2001, p. 185). Trata-se da publicação de Espontaneidade da

minha alma, poemas de Maia Ferreira, sendo esse o marco inicial das fases

sugeridas por Pires Laranjeira como uma proposta de “sintetização de

processos, movimentos e tendências” (LARANJEIRA, 2001, p. 186). Explica o

autor:

Consideremos a literatura angolana como paradigmática, isto é, como um modelo de irradiação a partir do qual podemos estabelecer

fases aplicáveis as outras, evidentemente de um modo não mecânico,

tendo em atenção que cada urna tem o seu percurso específico, se

bem que no contexto colonial de domínio português, interessando

delimitar os contornos comuns que, textual e contextualmente, as

explicam e aproximam, tanto como das literaturas portuguesa e brasileira, mais do que de outras (LARANJEIRA, 2001, p. 186).

As fases indicadas por Laranjeira sempre iniciam ou têm seu fim

provocado por uma produção inovadora, como publicação de um livro,

antologia ou revista que apresente qualquer nova alteração estética.

Conforme salienta o autor:

Convém ainda ter em conta que, por exemplo, certos processos realistas, como a prática da descrição objectivante ou a inclusão de

frases de uma língua africana no texto em português, característicos

do oitocentismo, são intensificados e passam a predominar em certos

autores ou movimentos do século XX, podendo, por isso, concluir-se

que traços do regionalismo, do casticismo ou da africanidade

passaram a ser tomados como determinantes de novas estéticas com vista ao aprofundamento nacionalista dos textos (LARANJEIRA,

2001, p. 186).

Cada uma das fases literárias que seguem trazem consigo novas

perspectivas à valorização nacional, pois começam a caminhar para o fim do

21

deslumbramento em relação à herança cultural lusíada, propiciando espaço

ao localismo dos países colonizados. Conforme se lê logo na primeira fase,

proposta por Laranjeira (2001), caracterizando-se pelo Baixo-romantismo,

[...] de clara adopção portuguesa, embora também com contributos

franceses e ingleses. O seu populismo cultural pode chamar-se

exógeno, na medida em que as apetências populares, em formas e

temas, dizem respeito à herança cultural lusíada, apresentada como paradigma a seguir com inequívoco deslumbramento, cedendo o

passo às coisas angolanas somente em termos de encomiástica

referencialidade espacial ou onomástica, não propriamente social,

histórica ou política [...]. De algum modo, é como se uma ideologia de

apreço pela aristocracia [...] convivesse descomplexadamente com, por exemplo, formas poéticas hauridas nas barcarolas venezianas, nos lieds germânicos ou nas modinhas brasileiras, ao mesmo tempo

que se usa a medida popular portuguesa da redondilha maior

(LARANJEIRA, 2001, p. 187).

Com o passar do tempo (décadas de 80 e 90, do século XIX), o negro

surge nos textos, sob a ótica da inferioridade – se comparado à figura

europeia –, porém com possibilidades de ascensão social. Outra novidade é a

participação do negro e da negra como personagens que anseiam à

integração social, caracterizando a segunda fase literária, indicada por

Laranjeira (2001), chamada de Negro-realismo1 (LARANJEIRA, 2001).

Segundo o autor:

[...] o Realismo, igualmente de inspiração portuguesa, deixa as suas

marcas [...]. Tendo em atenção que o negro surge tratado nos textos,

se bem que do ponto de vista de um complexo de inferioridade,

enquanto indivíduo com possibilidades de ascensão social, com

frequência como figura central [...], chamamos a esta fase a do

Negro-realismo [...] que vai sensivelmente até 1900, é co-natural à “imprensa livre” e assume o negro (mais particularmente, a negra)

como personagem ou figura que aspira à integração na sociedade [...]

(LARANJEIRA, 2001, p. 187).

As ideologias são mostradas nos textos literários sob diversas formas.

Ocorre, então, a presença de narrativas que iniciam um protesto pela

igualdade e fraternidade, anunciando a batalha pelos direitos humanos,

introduzindo uma conduta consciente de aspirações por autonomia e

1 Laranjeira informa ser esse um “termo criado para indicar uma realidade literária

específica de África, bastante aproximada dos Negrismos americanos” (LARANJEIRA, 2001,

p. 187).

22

“reagindo às guerras de ocupação movidas pela potência colonizadora”

(LARANJEIRA, 2001, p. 188), além de promover a vida cultural popular

urbana ou do mato, demarcando seu regionalismo, originando a crioulidade,

em oposição à figura do europeu colonizador.

Dessa forma, se estabelece a terceira fase literária, chamada

Regionalismo Africana (de 1901 a 1941), a qual se subdivide em outros dois

momentos: nativismo e tipicismo. Este último, por sua vez, se inclina a dois

tipos de tipicismos: ao tipicismo folclorista e costumbrista; e ao tipicismo

mais localista e regionalista (LARANJEIRA, 2001). Para Pires Laranjeira

(2001, p. 188), o nativismo no Regionalismo Africano:

[...] transforma-se numa subtil, mas decidida, primeira “insurgência” anti-metropolitana. Caracteriza-se ideologicamente por um

autonomismo supraclassista, com origem nos ideais republicanos,

maçónicos, logo se associando a um pan-africanismo moderado,

permitindo aceder, por essa mistura subversiva, à modernidade

possível, vazada num conservadorismo formal e retórico (LARANJEIRA, 2001, p. 188).

No entanto, entre 1926 a 1941, essa rebelião intelectual sofre com o

rigoroso golpe de Salazar, na ditadura do Estado Novo, que extingue a

imprensa livre. Nesse período surge o tipicismo (LARANJEIRA, 2001).

Segundo o autor, por um lado, ocorre no tipicismo folclorista e costumbrista:

[...] evocativo, reconstituidor da vida cultural urbana ou do mato [...].

É uma estética da evasão, da hiper-realizaçao do real, típica, em África, de um regionalismo, conquanto “útil”, sobretudo estilizador,

turístico, para usar uma metáfora depreciativa, ou seja,

inconsequente quanto ao nacionalismo.

Por outro lado, deparamos com um outro tipicismo mais localista e

regionalista, portanto, telúrico, de integração continental (de africanidade, sim, mas não necessariamente manifesta e veemente),

a que anda associado algum orgulho negróide, alguma, ténue,

“personalidade africana”, que se pode caracterizar politicamente

como protonacionalista, de um geo-estrategismo de grande alcance

cultural [...] ou, pelo menos, propondo modestas vias ideologicamente

reformistas e esteticamente conservadoras [...] (LARANJEIRA, 2001, p. 188-189).

Pires Laranjeira conclui essa fase afirmando que: “[Estamos] perante

uma verdadeira criação de crioulidade (de assunção de uma diferença não-

portuguesa), ou, em direcção distinta, de entrada no funil de

23

estrangulamento histórico (da estreita portugalidade)” (LARANJEIRA, 2001,

p. 189).

Entre 1942 e 1960, inaugura-se a quarta fase literária, proposta por

Laranjeira, chamada de Casticismo, marcado pelo

aprofundamento da opção anti-colonial, como corolário lógico de

uma actividade literária que compreendia o esforço de uma

consciencialização como serviço cívico ou, se é possível a

contradição, enquanto ética social com fundamentos na história e na cultura imperecível de um povo (LARANJEIRA, 2001, p. 189).

Afetada pela conjuntura contextual da época, em que se acentua a

escolha anticolonial e surgem os primeiros movimentos em prol da

independência política das colônias africanas, a atividade literária reconhece

sua função social e histórica, e não poupa esforços para a conscientização de

um patriotismo, fundamentada na história e cultura do povo. A literatura,

no Casticismo, afirma-se pela “procura da permanente herança dos povos,

da sua intra-história, profunda, imperecível, dialéctica, criadora e

transformadora” (LARANJEIRA, 2001, p.189). Esse período ainda é marcado

pela instauração da Negritude, um “movimento de aproximação genuína ao

povo africano e sua herança” (LARANJEIRA, 2001, p. 190), em que:

[...] estão em foco as classes e o mundo do trabalho, da produção de

riquezas coloniais (com seus contratos, serviçais, agricultores,

operários, mas também pastores, além de grupos restritos e outros,

marginais), através de processos discursivos virados para a sugestão de concretude social e quotidiana, em que o pormenor, a notação

descritiva, tem grande relevo (LARANJEIRA, 2001, p. 190).

Por assim dizer, nessa fase, também, ocorre a: “[...] assunção de uma

postura da classe proletária que tende a colar-se à pele mais generalizante

da categoria do colonizado” (LARANJEIRA, 2001, p. 190), e, por conta de ser

o colonizado a categoria mais abrangente que a do negro, os autores

africanos de idioma português assumem a Negritude, como:

[...] realização cultural do pan-africanismo, sobretudo os que estavam morando fora da África, cultuando com orgulho a raça, as

culturas tradicionais (tribais), relativas ao mato e ao campo, numa

estética do retorno ideal às origens, de reencontro com um passado

grandioso, utopia da felicidade [...] (LARANJEIRA, 2001, p. 190).

24

Na década de 60, do século XIX, com o início da luta armada para a

libertação nacional, surge também um movimento de resistência, em que

predominam a orientação ideológica e política explicitamente

anticolonialista, originando a quinta fase literária, nomeada de Resistência

(19610-1974), tendo em seu corpus literário a presença da temática de

guerrilha, com alusões revolucionárias, e o discurso do gueto, uma vez que

surgem escritores de baixa escolaridade em meio a escritores de escolaridade

com nível superior. “Essa literatura cria textualmente a nacionalidade, antes

da sua existência política” (LARANJEIRA, 2001, p.191), acentuando o

posicionamento anti-imperialista, o nacionalismo, a espacialização das zonas

libertadas e do exílio. Devido à censura da época colonial, os escritores

camuflavam o ideal revolucionário nas narrativas por meio da “revolta

individual (em conotação com a revolução coletiva), às vezes sob a máscara

de um existencialismo mitigado, estranho, quase incompreensível nesse

contexto de leitura” (LARANJEIRA, 2001, p.191), caracterizando assim a

estética da sugestão e da alusão.

Com a chegada da independência política aos países sob o domínio

português ocorre “uma transformação radical nas estruturas de poder, da

sociedade, da economia e da cultura, em que se verificou uma mudança não

menos radical no percurso das literaturas” (LARANJEIRA, 2001, p.192),

marcando a sexta fase literária, a Contemporaneidade (de 1975 a 1998),

período em que o nacionalismo reforça a inspiração literária e os ânimos

patrióticos. Abre-se espaço para os heróis da revolução, promovido pela

estética do orgulho pátrio, com vistas à tentativa de superação da marca

colonial, à criação de uma estética pós-colonial, e à aspiração pela

democracia e autonomia. Porém, conforme alerta Pires Laranjeira, essas

mudanças tornaram-se significativas apenas após a primeira década da

independência

A superação dos traumas políticos, ideológicos e literários tornou-se

possível somente após a primeira década de independência política

(recorde-se a questão, empolada ou não, com ou sem adequação

teórica, da subserviência das literaturas africanas perante modelos alienígenas, europeus ou não) (LARANJEIRA, 2001, p. 192).

25

Ainda pelas palavras de Laranjeira tal superação do estigma colonial

foi consolidada através do existencialismo ou misticismo, encontrando

nesses a sua materialização (LARANJEIRA, 2001). Para finalizar essa fase, o

autor afirma que em alguns casos: “se trata, finalmente, de exorcizar os

derradeiros fantasmas e medos de cruentas guerras e ameaças de perda de

independência” (LARANJEIRA, 2001, p.192), enquanto que em outros,

“persistem na revisão crítica dos fantasmas e das ameaças concretas,

decerto por o presente reavivar traumas do passado” (LARANJEIRA, 2001,

p.192-193).

Por fim, o ideal de uma reinscrição na história e de um novo país que

surge segue em vários autores, por meio de suas publicações. Um exemplo

bastante significativo está em Mia Couto, filho de portugueses, mas nascido

na cidade da Beira, Moçambique, em 1955. A esse autor destinamos a

próxima seção.

1.2 Mia Couto e a escrita poética de Moçambique

“A história determina a escrita do escritor, mas este,

por meio dessa escrita, tenta libertar-se”.

(Roland Barthes)

Natural de Moçambique, Mia Couto nasceu na cidade da Beira, em

1955. Filho de portugueses que passaram a maior parte do tempo de suas

vidas em Moçambique. Sua afeição pela escrita origina-se da atividade que

seu pai, Fernando Couto, desenvolvera no país africano. Jornalista e

escritor, Fernando Couto tem em sua carreira alguns livros de poesias

relativas à Moçambique. Segundo o website oficial de Mia Couto2:

Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, nasceu

em 5 de Julho de 1955 na cidade da Beira em Moçambique. É filho de uma família de emigrantes portugueses. O pai, Fernando Couto,

natural de Rio Tinto, foi jornalista e poeta, pertencendo a círculos

intelectuais, tipo cineclubes, onde se faziam debates. Chegou a

escrever dois livros que demonstraram preocupação social em

2 MIA COUTO. Biografia, bibliografia e premiações. Disponível em:

<http://www.miacouto.org/biografia-bibliografia-e-premiacoes/>. Acesso em: 16 maio

2017.

26

relação à situação de conflito existente em Moçambique. Mia Couto

publicou os seus primeiros poemas no jornal Notícias da Beira, com 14 anos. Iniciava assim o seu percurso literário dentro de uma área

específica da literatura – a poesia –, mas posteriormente viria a

escrever as suas obras em prosa (MIA COUTO).

As primeiras publicações de Mia Couto seguiram o exemplo do pai,

com publicações literárias e depois se volta para a atividade jornalística, no

jornal Notícias da Beira, periódico da cidade, no qual o autor moçambicano

publicou seus primeiros poemas, iniciando, precocemente, aos catorze anos,

sua atividade literária.

Após completar os estudos secundários, aos dezessete anos, Mia

Couto deixa sua cidade natal para cursar medicina, em Lourenço Marques,

hoje Maputo, capital de Moçambique. Abandona o curso mais tarde, em

1974, para cursar jornalismo, incentivado, não somente pelo modelo do pai,

mas também, pelo contexto da época, pois Moçambique transitava pelo

período de profundas transformações políticas, marcado pelas guerras de

libertação e independência do país. Couto atuou como colaborador da Frente

de Libertação de Moçambique (FRELIMO), foi diretor da Agência de

Informação de Moçambique (AIM), participou da revista semanal Tempo e do

jornal Notícias. Retorna para a Universidade, em 1985, para finalizar sua

graduação, dessa vez, opta pelo curso de biologia, redirecionando sua vida

para um novo rumo. Como biólogo, foi responsável pela conservação

ambiental da Ilha de Inhaca (LARANJEIRA, 2001).

Como escritor, teve seu primeiro livro de poemas lançado em 1983,

Raiz de orvalho, seguido por dois livros de contos: em 1986, Vozes

anoitecidas, e Cada homem é uma raça, em 1990. Obras que concederam

visibilidade ao autor, não apenas em solo moçambicano e português, mas

também em outros países, com a tradução de suas obras para o inglês e

italiano. Seu sucesso nas obras publicadas, encontramos no estudo de

doutoramento de Ilse Vivian, conforme expresso:

O alcance público da obra de Mia Couto pode ser observado pela quantidade de reedições. O primeiro romance do escritor, Terra sonâmbula, lançado em 1992, alcança, em 2009, pela editora

Caminho, a sua décima edição; Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, lançado em 2002, alcança, pela mesma editora, em

27

2008, a quarta edição. Sua obra é, hoje, traduzida em mais de vinte

e dois países (VIVIAN, 2014, p. 35).

Diante de tamanha façanha para um escritor proveniente de um país

emergente, Couto destacou-se também pelo recebimento de diversos prêmios

nacionais e internacionais, por vários dos seus livros e pelo conjunto da sua

obra literária. Dentre eles, sublinhamos o Prêmio Camões, em 2013, o qual

se caracteriza por ser o prêmio mais importante da literatura de língua

portuguesa, a reconhecer a qualidade de um autor de língua portuguesa pelo

conjunto da sua obra. Além do fato de ser “[...] o único escritor africano que

é membro da Academia Brasileira de Letras, como sócio correspondente,

eleito em 1998, sendo o sexto ocupante da cadeira número cinco, que tem

por patrono Dom Francisco de Sousa” (MIA COUTO).

A narrativa de Mia Couto está vinculada a um período de grande

importância para a formação de uma nação moçambicana, estando

diretamente ligada à construção de uma identidade cultural nacional. Além

disso, evidencia-se o fato de a escrita de Mia Couto trazer à luz a questão da

voz feminina em uma cultura de opressão, o que proporciona a seus

romances e contos, para exemplificar apenas suas produções em prosa, uma

relevância ainda mais profunda, como fica manifesto em: Mulheres de

cinzas, nosso objeto de estudo. Outra característica da escrita coutiana é a

criação de novos vocábulos, conforme se reconhece em seu website e em

diversos estudos sobre o autor:

Mia Couto é um “escritor da terra”, escreve e descreve as próprias

raízes do mundo, explorando a própria natureza humana na sua

relação umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e

muito fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular percepção e interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra

inventada como que adivinha a secreta natureza daquilo a que se

refere, entende-se como se nenhuma outra pudesse ter sido utilizada

em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a intuição de

mundos fantásticos e em certa medida um pouco surrealistas,

subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e pacífica de sonhos – o mundo vivo das histórias.

Mia Couto é um excelente contador de histórias (MIA COUTO).

Notamos na narrativa Mulheres de cinzas todas essas características

apontadas nesse trecho que vem a caracterizar a escrita de Mia Couto, pois

28

percebemos em sua produção literária o seu vínculo com sua terra,

Moçambique. Da mesma forma, encontramos nessa narrativa o cuidado

dispensado às histórias de um passado que se faz vivo na lembrança de

muitos moçambicanos, as quais Mia Couto traz para a literatura em forma

de romance, conforme podemos observar em nosso objeto de análise.

29

2 O RESGATE DA MEMÓRIA E A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE:

MULHERES DE CINZAS

Eis o que faz a guerra: a gente nunca mais regressa a

casa. Essa casa – que outrora foi nossa –, essa casa

morre, nunca ninguém nela nasceu. E não há leito,

não há ventre, não há sequer ruína a dar chão às

nossas memórias.

(Mia Couto)

Mulheres de cinzas, de Mia Couto, publicado no Brasil em 2015, pela

editora Companhia das Letras, tem como tema as ocupações sofridas,

durante o período colonial, pelo continente africano, mais especificamente, o

sul de Moçambique, país de origem do autor. O livro é o primeiro volume

publicado da trilogia: As areias do imperador. Em 2016, o segundo volume,

Sombras da água, é publicado, sendo a sequência narrativa do primeiro

tomo. Tem-se, na composição dessa trilogia, um retorno a um passado, ou a

um certo passado, remetendo-nos ao século XIX, que foi um período crucial

tanto para a história de Moçambique como para a história de Portugal,

momento esse em que guerras civis foram vividas pelas duas nações:

Moçambique por ser o território colonizado e ainda em disputa pela sua

ocupação, enquanto que Portugal lutava para manter o controle das áreas

dominadas.

As areias do imperador caracteriza-se por estabelecer um diálogo com

o tempo histórico, que coloca em causa a ideia de um passado que nos foi

transmitido ao retomar um acontecimento central em Moçambique, que

foram as guerras pelo poder do território. O primeiro volume publicado -

Mulheres de cinzas - volta-se à época em que o sul do país era denominado

Estado de Gaza e governado pelo último grande líder africano: Ngungunyane

30

ou Gungunhane, como era chamado pelos portugueses. Já os portugueses

que chegavam ao território vinham à procura de riquezas ou como

deportados pelo seu país de origem – como foi o caso de pessoas enviadas

para defender Portugal em solo africano. No entanto, o choque cultural que

houve entre esse contato foi uma situação marcante e predominante em

cada nativo moçambicano e no recém-chegado estrangeiro português,

conforme expresso no diálogo entre a jovem moçambicana Imani e Germano

de Melo, sargento português, enviado a Nkokolani para ser um informante in

loco de Portugal:

A moça disse tudo isso sem pausa para respirar. Onde aprendeste tudo isso?, perguntei, a medo. Não tive que aprender, respondeu. Sou feita de tudo isso. O que me tiveram que ensinar foram as histórias dos brancos. - Mas tu não és católica? - Sou. Mas tenho muitos outros deuses. (COUTO, 2015, p. 287, grifos do autor)3.

Essa transcrição apresenta o choque cultural existente entre ambos, o

que causa um pavor no sargento português. Dentre as questões que

podemos levantar a respeito do espanto do português, envolve desde o

domínio da língua portuguesa por uma garota africana, como o fato de ele

fazer estadia em um local de território português em solo africano, figurando

mais como um estrangeiro do que detentor da região. E, para ampliar seu

desespero, é o único branco a habitar aquelas ‘terras exóticas’ e, ainda, pelo

fato de que sua comunicação com os demais africanos depende de Imani,

uma moça africana.

Mulheres de cinzas apresenta em primeiro plano Imani, uma garota

moçambicana, de quinze anos, advinda de uma pequena tribo, os VaChopi,

que se localizava no litoral de Moçambique. Imani recebeu uma educação

baseada nos princípios educacionais de Portugal, obtendo o absoluto

domínio da língua portuguesa e mantendo sua língua local, oriunda da

cultura africana.

3 COUTO, Mia. Mulheres de cinzas. 1. ed. 2. reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

Todas as demais citações foram retiradas dessa edição, passando-se a indicar, então,

apenas o número da página.

31

O militar Germano de Melo foi enviado ao vilarejo de Nkokolani, onde

vive a família de Imani, para participar da batalha contra o imperador

Ngungunyane, que ameaçava o domínio das Terras da Coroa, em

Moçambique, tinha como missão governar o posto militar português de

Nkokolani, implantar um quartel militar naquele lugar e avisar a Coroa

portuguesa sobre a situação da colônia, através de cartas contendo seu

relatório de viagem. No entanto, para o império de Portugal, Germano de

Melo é um militar desertor da Coroa lusitana e, como pena, é condenado

pelo Conselho de Guerra ao degredo na África por ser um dos militares que

participou da revolta de 31 de Janeiro de 1891 - data que marca o primeiro

movimento revolucionário que teve por alvo a instauração de um regime

republicano em Portugal (SOUSA, 1990).

Conforme a primeira carta do sargento Germano ao Conselheiro José

d’Almeida, em 21 de novembro de 1894, da cidade Lourenço Marques, na

qual expressa que a presença de um militar representaria os interesses

portugueses, ajudaria a estabelecer fronteiras entre os impérios português e

africano, pois era preciso manter a região sob o domínio de Portugal:

Escreve-lhe o humilde subordinado de Vossa Excelência, sargento

Germano de Melo, destacado para capitanear o posto de Nkokolani e,

nessa fronteira com o inimigo Estado de Gaza, representar os

interesses dos portugueses. Esta é a primeira vez que endereço um relatório a Vossa Excelência. Tratarei de o não maçar restringindo-

me aos factos de que creio Vossa Excelência deve ter conhecimento.

(p. 30)

Imani e Germano estabelecem uma relação de trabalho, pois estava ela

encarregada de ser a intérprete entre ele, representante da Coroa

portuguesa, e os africanos. Imani foi escolhida para ser intérprete, devido ao

seu conhecimento e domínio da língua portuguesa, tanto quanto de sua

língua nativa, txitxope. Zamparoni (2009) afirma que pouco se fez para

aplicar o estudo da língua portuguesa aos moçambicanos e, por isso, uma

pequena parcela teve o aprendizado do idioma Português, e mesmo os que

aprenderam não perderam e/ou afastaram-se do seu idioma local, gerando a

mestiçagem da língua:

32

[...] a atuação do colonialismo em Moçambique, no que tange à

língua portuguesa, foi irrisória, sobretudo porque o país nunca levou a cabo uma efetiva e ampla política educativa que pudesse incluir no

universo da lusofonia a imensa maioria da população. Os poucos

atores que nesse universo foram incluídos fizeram dela uso muito

distinto daquele que os agentes coloniais poderiam esperar: não só

usaram a caneta como uma zagaia, voltando o controle que tinham da língua contra o cotidiano opressivo, como a recriaram, ao

incorporar palavras, expressões e formas das várias línguas locais e

falares populares que circulavam pelos espaços urbanos,

subvertendo os cânones e criando as bases para a reinvindicação de

uma moçambicanidade (ZAMPARONI, 2009, p. 27-28).

Para o estudo que se propõe sobre Mulheres de cinzas, fez-se

necessária a apreciação de alguns conceitos sobre o entrelaçamento da

história e ficção, memória e identidade, constituindo a base teórica para a

análise da narrativa, levando em consideração os aspectos de construção

psicológica das personagens e sua conexão com as nações a que pertencem.

A partir dos relatos de Imani e Germano, representantes dos dois polos:

respectivamente, moçambicano e português, delineia-se a construção do

país africano, em meio a lutas internas e à violência do colonizador. Às vozes

conflitantes, tanto de idioma quanto de interesses políticos e sociais, surge o

espaço do afeto, o que, talvez, seja o nascimento de uma trégua simbólica

para a construção de um novo Moçambique.

2.1 Da divergência à convergência: limiares entre o discurso histórico e

o discurso literário em Mulheres de cinzas

A vida é dialógica por natureza. Viver significa

participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder,

concordar, etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as

mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-

se totalmente na palavra, e essa palavra entra no

tecido dialógico da vida humana, no simpósio

universal. (Mikhail Bakhtin)

A narrativa de Mulheres de cinzas, ao recordar um passado histórico

tanto de Moçambique como de Portugal, abre espaço ao diálogo entre a

história e a ficção, em que apresenta uma recomposição de uma história

pretérita sob o olhar do colonizado, fundamentado na cultura nativa e nas

33

literaturas orais dos moçambicanos, abordando questões que a história

oficial tende a não mencionar, ou se quer lembrar.

Para a escrita da trilogia, Mia Couto serve-se de documentos históricos

de Portugal e, especialmente, de relatos orais de moçambicanos, os quais se

caracterizam como uma fonte de informação, de culturas e da literatura ou,

melhor, das manifestações artísticas orais que se originam do país. O relato

do passado pela ótica dessas histórias marginais em relação à Grande

História – a história oferecida como oficial – torna possível uma

(re)humanização dessas pessoas, através das personagens que se inserem na

narrativa. Tais figuras são de uma natureza muito rica para a construção de

um discurso histórico mais humano, afastando-se do ponto de vista do

julgamento, pois retrata um passado que não envolve apenas os

imperadores, mas atinge a todos quantos viveram aquele passado único, que

deixou consequências para as gerações futuras.

Se por um lado – o ficcional – a narrativa de Mulheres de cinzas oferece

ao leitor a história pelo olhar do marginalizado, não podemos deixar de

mencionar que a mesma narrativa também retrata o contexto histórico dos

países envolvidos na trama e na “oficial”. O panorama histórico da narrativa

de Mia Couto presentifica uma história passada de Moçambique e de

Portugal e representa personagens ‘míticos’ já conhecidos pela história de

ambos países. Conforme o próprio autor expõe em nota introdutória da obra:

Esta narrativa é uma recreação ficcional inspirada em factos e

personagens reais. Serviu de fonte de informação uma extensa

documentação produzida em Moçambique e em Portugal e, mais

importante ainda, diversas entrevistas efetuadas em Maputo e

Inhambane (p. 9).

Por considerar a história oficializada com seus fatos históricos e, ao

mesmo tempo, apresentá-la pelo viés do colonizado, além de recuperar uma

tradição e proporcionar uma revisão do passado, é que Mulheres de cinzas

pode ser considerado um romance histórico em que há um dialogismo entre

os discursos histórico e ficcional, sem que um anule o outro, pelo contrário,

cria um trânsito em que tempo e espaço entrelaçam-se pelos mesmos

caminhos com a finalidade de “[...] produzir figuras complexas de identidade

34

e diferença, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão [...]”

(TUTIKIAN, 2006, p. 16). E essa transição dá origem ao dialogismo entre as

narrativas do discurso histórico e as do discurso ficcional, tornando esse

diálogo entre a história e literatura uma das marcas da literatura

contemporânea, produzindo sobre a narrativa um efeito histórico-

documental (TUTIKIAN, 2006). Como já nos dizia Mikhail Bakhtin, na

epígrafe que abre essa seção, a vida é por si só é dialógica, o homem é o

sujeito participante ativo desse dialogismo que é a vida e através da palavra

perpetua-se, entrando em uma esfera universal.

Para iniciar o estudo sobre os discursos histórico e literário, pensamos

no perpassar das fronteiras da história e da ficção, mencionados por Jane

Tutikian (2006), em que ocorre a presentificação de um fato histórico e uma

revisão crítica da identidade, a partir da verdade histórica, que promove o

efeito de diálogo entre as narrativas histórica e ficcional. Para entender essas

confluências, recorremos a Paul Ricoeur, especificamente ao capítulo “O

entrecruzamento da história e da ficção”, que compõe o terceiro volume da

obra Tempo e narrativa (1997), para, assim, ter subsídios para elucidar sobre

a ficcionalização do discurso histórico e, da mesma forma, acerca da

historização do discurso ficcional e sua tênue diferença na figuração do

tempo (RICOEUR, 1997).

A obra do filósofo possibilita a interpretação da relação entre o tempo

histórico e o tempo ficcional, indicando que é pelo ato de narrar que se

efetivam as aproximações entre os propósitos do historiador e do

romancista. E que é pelo ato de leitura, como um momento hermenêutico,

que se caracterizam tanto as narrativas históricas, quanto as ficcionais.

Nesse caso, o ato de leitura agiria como momento ímpar, pois é quando

ocorre a efetuação do texto, que tem por base a refiguração do tempo em

ambos os discursos. Portanto, as aproximações e distanciamentos entre o

discurso histórico e o ficcional dependem do leitor como sujeito participante.

A esse respeito, Ricoeur afirma que:

[...] a teoria da leitura criou um espaço comum para os intercâmbios

entre a história e a ficção. Fingimos acreditar que a leitura só

interessa à recepção dos textos literários. Ora, não somos menos

35

leitores de história do que de romances. Todas as grafias – e, dentre

elas, a historiografia – dependem de uma teoria ampliada da leitura. Decorre daí que a operação de envolvimento mútuo mencionada há

pouco tem sua sede na leitura. Nesse sentido, as análises do entrecruzamento da história e da ficção que vamos esboçar são da

alçada de uma teoria ampliada da recepção, cujo momento

fenomenológico é o ato da leitura. É numa tal teoria ampliada da

leitura que a reviravolta se dá, da divergência à convergência, entre a narrativa histórica e a narrativa de ficção (RICOEUR, 1997, p. 316).

Segundo Ricoeur (1997), as confluências entre a narrativa histórica e a

narrativa de ficção ocorrem a partir da prática da leitura, pois cada narrativa

aplica a configuração do tempo de uma forma específica para o que se

propõe discursiva e ideologicamente. No caso do tempo histórico, as lacunas

deixadas pela marcação temporal são preenchidas com outros fatos

consequentes desse primeiro indício, transformando a narrativa linear,

concisa e objetiva; enquanto que a narrativa ficcional possibilita ao leitor

uma maior intervenção reflexiva no ato da leitura, pois o tempo da narrativa

não tem compromisso com o tempo cronológico, nem com sua linearidade. A

narrativa ficcional, dessa forma, subverte a norma do tempo cronológico,

adquirindo o leitor a prática interpretativa da narrativa:

[...] a história, como dissemos, reinscreve o tempo da narrativa no

tempo do universo. Trata-se de uma tese “realista”, no sentido de que

a história submete a sua cronologia à única escala de tempo, comum

ao que chamamos de “história” da terra, “história” das espécies vivas e “história” do sistema solar e das galáxias. Essa reinscrição do

tempo da narrativa no tempo do universo, segundo uma única

escala, continua sendo a especificidade do modo referencial da

historiografia (RICOEUR, 1997, p. 317).

Sobre esse vínculo entre as narrativas da história e da ficção, através

da reinscrição do tempo no discurso, Ricoeur (1997) supõe que, para

interligar o tempo da narrativa ao tempo do universo, faz-se necessário

recorrer a conectores e que a eles cabe a tarefa de alterar o tempo para que

fique legível aos olhos humanos, como o faz o calendário, atuando como

signos que, além de identificar o tempo, também o interpreta. Para o filósofo,

o papel do imaginário representa um ponto fundamental para a construção

da história uma vez que seria necessário instituir conectores para

administrar a relação entre o tempo vivido ao tempo do mundo. O

imaginário, nas narrativas históricas, está vinculado às reverências do ter

36

sido, conforme a expressão do autor, atitude essa que não desvaloriza o tom

realista dessas pesquisas, contudo aceita certo aspecto do tempo nas

conclusões históricas (RICOEUR, 1997).

Outra ferramenta que atua como signo na figuração do tempo é o

rastro, através do qual se identifica a passagem de coisas, as quais não se

pode mais ver, mas que certamente existem em dado tempo e/ou espaço. O

fenômeno do rastro realiza também o papel de operador intelectual do tempo

que, pelo viés do imaginário, procura complementar as lacunas do

conhecimento. A essa significação do rastro, Ricoeur (1997) inflige o valor de

efeito-signo, que seria inferir que “a coisa presente [...] vale por uma coisa

passada” (RICOEUR, 1997, p. 320):

Evidentemente, é no fenômeno do rastro que culmina o caráter

imaginário dos conectores que marcam a instauração do tempo histórico. Essa mediação imaginária é pressuposta pela estrutura

mista do próprio rastro como efeito-signo. Essa estrutura mista

exprime abreviadamente uma atividade sintética complexa, em que

se compõem inferências de tipo causal aplicadas ao rastro como

marca deixada e atividades de interpretação ligadas ao caráter de

significância do rastro como coisa presente que vale por uma coisa passada. [...] São justamente as atividades de preservação, de

seleção, de agrupamento, de consulta, que mediatizam e

esquematizam, por assim dizer, o rastro, para transformá-lo na

última pressuposição da reinscrição do tempo vivido (o tempo como

um presente) no tempo puramente sucessivo (o tempo sem presente). Se o rastro é um fenômeno mais radical do que o do documento ou

do arquivo, em compensação é o processamento dos arquivos e dos

documentos que faz do rastro um operador efetivo do tempo

histórico. O caráter imaginário das atividades que mediatizam e

esquematizam o rastro é atestado no trabalho de pensamento que

acompanha a interpretação de um resto, de um fóssil, de uma ruína, de uma peça de museu, de um monumento [...] (RICOEUR, 1997, p.

320).

Esses conectores realizam a interpretação imaginativa dos rastros e

assumem o papel de signos, transformando o vestígio em prova concreta do

passado, além de avançar as fronteiras da ficção e da história, pois entramos

no terreno da suposição. Outro papel desempenhado pelo imaginário para

lhe completar o sentido é o afigura-se. Sobre isso, Ricoeur (1997, p. 323)

define que a “função representativa da imaginação histórica se aproxima do

ato de se afigurar que”, promovendo uma aproximação entre a narrativa

37

histórica da ficcional, pois ambas apelam às intervenções imaginárias na

refiguração do tempo.

Ainda, Ricoeur (1997) explica que, quando historiadores procuram

reconstituir as verdades históricas, pelo imaginário, como num face-a-face,

aproximam as narrativas ficcional e histórica. Todos os rastros permitem

conferir à intensão do passado um preenchimento quase intuitivo, por isso

traços do imaginário são constantes tanto na narrativa de ficção quanto na

narrativa historiográfica:

[...] Tão logo admitimos que a escrita da história não se ajunta de fora ao conhecimento histórico, mas dele é solidária, nada se opõe a

que admitamos também que a história imita em sua escrita o tipo de

armação da intriga herdados da tradição literária. [...] Ora, esses

empréstimos tomados à história pela literatura não poderiam ser

confinados no plano da composição, portanto, no momento de configuração. O empréstimo diz respeito também à função

representativa da imaginação histórica: aprendemos a ver como

trágico, como cômico etc. determinado encadeamento de

acontecimentos. O que justamente faz a perenidade de certas

grandes obras históricas, cuja fiabilidade propriamente científica o

progresso documentário, porém, erodiu, é o caráter exatamente apropriado de sua arte poética e retórica à sua maneira de ver o

passado. A mesma obra pode, assim, ser um grande livro de história

e um admirável romance. O espantoso é que esse entrelaçamento da

ficção à história não enfraqueça o projeto de representância desta

última, mas contribua para sua realização (RICOEUR, 1997, p. 322-323).

O empréstimo literário à narrativa histórica permitiu uma função

representativa da imaginação, particularmente a sua maneira de ver o

passado, acarretando em uma contribuição da ficção para a representância

da história. O que o filósofo julga como espantoso – a leitura de um livro de

história como um romance – somente é possível através do pacto de leitura,

estabelecido entre a voz narrativa e o leitor implicado. De todo modo, os

historiadores não deixam de buscar no gênero romanesco formas sutis de

reefetuar suas narrativas, de repensar os meios e fins, não se restringindo de

reelaborar uma situação, para que esse possua a vivacidade de um discurso

interior (RICOEUR, 1997).

Ao tratarmos a interpretação imaginativa como enriquecedora das

mediações entre os discursos histórico e literário, recorremos ao que o

romancista português José Saramago, no ensaio “O diálogo com a história”,

38

publicado no livro O conhecimento da literatura (1990), organizado por Carlos

Reis), apresenta sobre o entrecruzamento da história e da ficção.

Saramago (1990) começa seu ensaio exemplificando que um

historiador, não satisfeito com o que expressava com a História, passou a

escrever romances históricos para equilibrar essa necessidade de se libertar:

“[...] Foi buscar às possibilidades da ficção, à imaginação, à elaboração livre

sobre o tecido histórico perfeitamente definido, o que sentira faltar-lhe

enquanto historiador: a complementaridade duma realidade[...]”

(SARAMAGO, 1990, p. 501).

O romancista português salienta que o mesmo historiador sempre fará

outras viagens no tempo por onde já passara, e esse tempo deixou de ser

uniforme, passou a fazer parte da História. Mas, com a revisão das imagens,

das novas interpretações, o historiador vai retomando sucessivamente a

imagem histórica que o passado lhe apresentava. No entanto, nessa tarefa de

recordar o passado, de acordo com Saramago, haverá sempre, “uma grande

zona de obscuridade, e é daí, segundo entendo, que o romancista tem seu

campo de trabalho” (SARAMAGO, 1990, p. 502).

Para Saramago, o romance histórico pode seguir duas vertentes da

História: a primeira consistirá em reproduzir os fatos fielmente; assim, a

ficção estará a serviço da fidelidade que se quer inatacável, será ela discreta

e respeitosa; inversamente, a outra será mais ousada, e usará os dados

históricos necessários apenas para entretecer a narrativa ficcional, que se

manterá predominante: “Porém, estes dois vastos mundos, o mundo das

verdades históricas e o mundo das verdades ficcionais, à primeira vista

inconciliáveis, podem vir a ser harmonizados na instância narradora”

(SARAMAGO, 1990, p. 502-503). Justificando a proximidade entre história e

ficção, o autor diz que:

[...] o historiador realiza uma rarefacção do referencial, criando uma

espécie de malha larga, perfeitamente tecida, mas que envolve

espaços de obscurecimento ou de redução dos factos. Deste ângulo, parece legítimo dizer que a História se apresenta como parente

próximo da ficção, dado que, ao rarefazer o referencial, procede a

omissões, portanto a modificações, estabelecendo assim com os

acontecimentos relações que são novas na medida em que são

incompletas [...] (SARAMAGO, 1990, p. 503).

39

Regressamos ao estudo do filósofo Paul Ricoeur (1997), desta vez por

outro ângulo, ou seja, sobre a historicização da ficção, o que tem relação

com a exposição de Saramago. As considerações de Paul Ricoeur (1997)

sobre essa é que a função do tempo é tão-somente indicar a organização da

narrativa, isto é, o tempo na narrativa ficcional não tem obrigação com a

linearidade temporal e com a cronologia, função característica do tempo nas

narrativas históricas. As pistas que marcam a narrativa ficcional estão na

escolha de tempos e modos verbais que, com efeito, promove, no leitor, a sua

localização espaço-temporal em relação a um dado momento e/ou tempo.

Para Ricoeur (1997), outra função da ficção, em relação à história, é

transmitir significações temporais que o cotidiano não permite perceber.

Novamente, temos a similitude entre as narrativas quando o autor

explana: “se a ficção é quase histórica, tanto quanto à história é quase

fictícia” (RICOEUR, 1997, p. 329), tal reconhecimento ocorre através do

pacto entre autor e leitor, no momento da leitura, quando há a percepção de

que os acontecimentos relatados, de uma forma ou outra, pertencem ao

passado da voz que narra.

A essa conformidade entre as narrativas, Ricoeur afirma que se a

ficção se parece com a história por trazer à tona acontecimentos ‘irreais’

como se fossem fatos passados, através de uma voz narrativa, a história se

parece com a ficção, por relatar acontecimentos reais, completados em sua

passadidade, pela intuitividade e vivacidade originadas pela presença

narrativa (RICOEUR, 1997).

Dessa relação entre a história e a ficção surge o fenômeno do

verossímil. Recorremos a Aristóteles, filósofo grego, para obter sua

contribuição acerca da aproximação entre as narrativas da história e da

ficção, levando em consideração a verossimilhança entre as narrativas

através do ato narrativo:

é evidente que não compete ao poeta narrar exatamente o que

aconteceu; mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo

a verossimilhança ou a necessidade. O historiador e o poeta não se distinguem um do outro, pelo fato de o que primeiro escreveu em

prosa e o segundo em verso [...]. Diferem entre si, porque um

escreveu o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido

(ARISTÓTELES, 1964, p. 278).

40

A possibilidade criativa no ato narrativo aliado à verossimilhança das

narrativas é que promove a aproximação das fronteiras entre a história e a

ficção literária. Em perspectiva semelhante à de Aristóteles (1964), Paul

Ricoeur (1997) sugere uma justaposição entre as narrativas, possibilitando

seu entrecruzamento. Segundo o autor, é durante o ato da leitura, por meio

da refiguração do tempo, que a história se entrecruza com a ficção

(RICOEUR, 1997). Dessa transcendência de limiares entre os discursos da

história e da ficção, na reconfiguração do tempo, Ricoeur explica que:

[...] o entrecruzamento entre a história e a ficção na refiguração do

tempo se baseia, em última análise, nessa sobreposição recíproca,

quando o momento quase histórico da ficção troca de lugar com o

momento quase fictício da história. Desse entrecruzamento, dessa

sobreposição recíproca, dessa troca de lugares, procede o que se convencionou chamar o tempo humano, em que se conjugam a

representância do passado pela história e as variações imaginativas

da ficção, sobre o pano de fundo das aporias da fenomenologia do tempo (RICOEUR, 1997, p. 332, grifos do autor).

Para contribuir com o aporte teórico acerca das narrativas históricas e

ficcionais, compartilhamos a tese de doutoramento de Silvia Helena

Niederauer, a qual sinaliza que o discurso histórico é uma das principais

fontes que embasam o discurso do romance histórico, tanto que a temática

fronteiriça dos termos aparece em vários estudos para a apreciação de

determinadas obras. Assim se refere a autora:

a história sempre foi fonte inesgotável de inspiração para os ficcionistas. Tanto assim que história e literatura foram

consideradas, através dos tempos, como espelhos da humanidade e,

por isso, sempre se questionou o caráter de suas relações

interdisciplinares (NIEDERAUER, 2007, p. 14),

A autora afirma que o discurso histórico ficcional abre caminhos para

a reflexão, polêmica e revisão crítica sobre a historiografia, deixando de ser

retrato de determinada época, para atuar além do inconsciente dos leitores

(NIEDERAUER, 2007). Temos, portanto, “[...] uma reinterpretação da

história, através da transfiguração artística e da criação de um universo que

se caracteriza pelos anseios e dados subjetivos dos escritores”

(NIEDERAUER, 2007, p. 15). Ainda,

41

[...] Tem-se em mente, desde já, que o discurso histórico e o ficcional

se cruzam e se mesclam conforme o intento dos autores. O texto histórico procura ordenar os fatos a partir dos rastros deixados no

presente, os quais precisam ser interpretados, de modo a revelarem

algum acontecimento do passado, que se encontra prestes a ser

esquecido (NIEDERAUER, 2007, p. 18).

Ao indicar os vestígios deixados por um passado, que é retomado com

a interpretação desses rastros que marcam o presente, a citação de

Niederauer (2007) conversa com o conceito de rastro e sua significância

definido por Ricoeur (1997). No entender de Silvia Niederauer (2007), assim

como de Ricoeur (1997), há um empréstimo entre as narrativas históricas e

ficcionais, por meio do modo narrativo de um e da pesquisa histórica e

vestígios do outro:

A historiografia narrativiza e analisa os fatos, a fim de que se

compreenda, a partir de tais vestígios, o que poderia ter ocorrido na

realidade. A ficção, por sua vez, pode recair no discurso histórico,

apropriando-se dele na pesquisa em que se embrenha o autor, a fim

de realizar suas criações. Por meio desse expediente, são preenchidas as lacunas que a imaginação autoral aí vai buscar, para

compor o universo privado e afetivo dos seres humanos

representados (NIEDERAUER, 2007, p. 18).

Confirmando sua tese de que é através da narração que a significação

acontece nas narrativas da História e/ou da ficção, da mesma forma a

participação da imaginação e reflexão dos autores; atrelada à linguagem que

envolve ambas narrativas, temos também o papel da forma e do conteúdo

nessas narrativas, conforme Niederauer ressalta:

A ficção narrativa e a História são, inegavelmente, senhoras de

linguagem, imaginação e reflexão. E, se é lícito generalizar, em

ambas, a narração é a forma, que traz consigo um território de nexos

causais e temporais que se tecem desvelando significados. Na

literatura, os significados encontram-se justamente no ato de problematizar causas e tempos em benefício de novas circunstâncias

poéticas que, muitas vezes, têm por meta a própria linguagem feita

conteúdo. Na História, o conteúdo impõe-se à linguagem como um

fim em si mesmo, ainda que ela seja aí um componente dos mais

relevantes (NIEDERAUER, 2007, p. 22).

A autora também destaca as relações entre a narrativa histórica e

ficcional, entre semelhanças e diferenças, sua criação através da

42

consciência, com a pretensão do real por meio da linguagem e suas

referências espaço-temporais, conforme expressa:

Para discutir a relação entre discurso literário e discurso histórico,

parte-se do que se considera como suas diferenças e semelhanças. O

primeiro seria consciência possível; o outro, consciência pura. Ambos pretendem representar a realidade e são construídos por meio da

linguagem, estruturando-se em relações temporais e espaciais.

Entretanto, se a História parece vir assinalada pela competência em

reconstruir fatos e feitos do passado remoto ou recente, buscando

apreender significados, essa é uma tarefa da imaginação do presente

que, quando se lança à interpretação dos fatos e acontecimentos, se submete ao recurso das fontes documentais. A História, portanto,

está cerceada pelo critério de verdade, mesmo que a seleção das

fontes implique uma interpretação e um marco teórico, expressivos

da subjetividade do historiador (NIEDERAUER, 2007, p. 22).

Novamente, temos a tese de que a interpretação dos fatos, com anseios

de incutir significância ao passado, procede de uma imaginação do presente

e da subjetividade do autor, no ato de narrar, estabelecendo uma

configuração de verdade, em maior ou menor grau.

Tendo em vista a similitude de narrativas históricas e literárias,

tomamos essa problemática para o desenvolvimento da base teórica que

sustentará parte da análise da narrativa Mulheres de cinzas. A criação

ficcional que leva consigo dados referenciais, ou seja, históricos, e trazem

esses de várias formas, seja na temporalização, na modalização e/ou na

espacialização da trama, constituindo os aspectos determinantes do

romance histórico, permitindo a denominação destas obras “como romances

históricos e o sentido destes elementos que marcam hoje um distanciamento

em relação ao romance histórico romântico”, conforme explica Eunice de

Morais (2011, p. 2).

Para a autora, as características determinantes do romance histórico

são: coexistência de transição entre o mundo ficcional e historiográfico;

enredo localizado em um passado histórico e reconhecido pelos leitores e,

por fim, distância temporal entre o passado e o presente do leitor implícito

(público alvo – que se pretende atingir) e dos leitores reais, sendo que é no

passado em que ocorre o desenrolar dos fatos e, também, onde atuam os

personagens (MORAIS, 2011).

43

Os termos e definições de modalização, espacialização e

temporalização são descritos por Prieto (2003, p. 177-178 apud MORAIS,

2011, p. 104) como operações narratológicas básicas no processo de

transformar a história em discurso narrativo.

Sobre modalização, Prieto define como sendo as vozes presentes na

narrativa e a relação delas com o narrado e seus interlocutores, ou seja,

quem fala, para quem, como e de onde fala. Conforme as palavras da autora,

são os “aspectos que se refieren a la enunciación narrativa: quién habla en el

texto (la voz) e a quién (narratário o lectores representados); y quién ve o quién

o conoce la historia narrada: la perspectiva o focalización” (PRIETO, 2003

apud MORAIS, 2011, p. 104). Encontramos traços de modalização na

narração de Imani, logo ao iniciar a trama:

Todas as manhãs se erguiam sete sóis sobre a planície de Inharrime.

Nesses tempos, o firmamento era bem maior e nele cabiam todos os

astros, os vivos e os que morreram. Nua como havia dormido, a nossa mãe saía de casa com uma peneira na mão. Ia escolher o

melhor dos sóis. Com a peneira recolhia as restantes seis estrelas e

trazia-as para a aldeia. Enterrava-as junto à termiteira, por trás da

nossa casa. Aquele era o nosso cemitério de criaturas celestiais. Um

dia, caso precisássemos, iríamos lá desenterrar estrelas. Por motivo desse património, nós não éramos pobres. Assim dizia a nossa mãe, Chikazi Makwakwa. Ou simplesmente a mame, na nossa língua

materna (p. 14, grifos do autor).

Esse trecho serve de exemplo de modalização, conforme expresso por

Prieto (2003), uma vez que apresenta a voz narrativa que conhece o que está

a falar, descrever, pois além de relatar o ritual que sua mãe realizava todas

as manhãs, “traduz” a palavra “mãe”, pois a menina transita entre duas

línguas, a sua de origem e o português, remetendo ao modo simples que

chamavam Chikazi Makwakwa. Outro indício de modalização é a passagem

em que Imani reflete sobre a planície de Inharrime, indicando o local da

trama e de onde fala: “Nesses tempos, o firmamento era bem maior e nele

cabiam todos os astros, os vivos e os que morreram” (p. 14).

Quanto à temporalização, por sua vez, trata-se das marcas temporais

expressas na narrativa como dia, mês e/ou ano, reforçando seu caráter

histórico e situando a diegese em um tempo passado em relação ao tempo

presente do leitor, proporcionando a distinção entre o passado o presente

44

(PRIETO, 2011 apud MORAIS, 2011). A temporalização ocorre no romance

em estudo em vários momentos, pois em cada carta escrita por Germano de

Melo, sargento do império português, ele insere a data; também, quando a

narradora onisciente Imani faz uma indicação temporal da trama: “Naquela

manhã de janeiro de 1895, as janelas que deixara abertas fizeram crer que

uma criança acabara de nascer” (p. 19). O caráter de ficcionalização do

histórico fica assegurado, também, com a indicação dessas marcas

temporais.

Sobre espacialização, Pietro sugere que o termo se refere ao espaço

narrativo; espacialização é definida como as descrições de lugares, objetos,

ambientes, os quais têm como função recuperar a temporalidade do passado

vivido e ainda ativar a memória do leitor. Espacialização ou espaço narrativo,

simplificadamente, pode ser conceituado como descrição de espaços e

ambientes em que as personagens circulam e onde as ações acontecem

(PRIETO, 2003 apud MORAIS, 2011, p. 113).

A espacialização aparece, por exemplo, quando Imani narra um fato

ocorrido nos arredores de sua casa, situando o leitor no espaço-temporal da

narrativa:

Naquela manhã a única pegada era a de um simba, esses felinos

que, na calada da noite, farejam as nossas capoeiras. A mãe foi

conferir as galinhas. Nenhuma faltava. [...] A vassoura corrigiu,

firme, a noturna ousadia. A memória do felino se apagou em

segundos. Depois a mãe afastou-se pelos atalhos para recolher água no rio. Fiquei a vê-la desvanecendo-se na floresta, elegante e hirta

nos seus panos garridos (p. 20).

Assim, Mulheres de cinzas apresenta as características propostas por

Eunice de Morais (2011), caracterizando-se como um romance histórico, em

que a narrativa ficcional caminha ao lado da narrativa histórica,

[...] Nesse sentido, a ficção tomaria empréstimos da história tanto

quanto a história toma empréstimos da ficção. É esse empréstimo recíproco que me autoriza a formular o problema da referência cruzada entre a historiografia e a narrativa de ficção. Esse problema

só poderia ser desconsiderado numa concepção positivista da

história que ignorasse a parcela da ficção na referência por vestígios,

e numa concepção antirreferencial da literatura que ignorasse o alcance da referência metafórica em toda poesia. [...]

45

Contudo, onde se cruzam a referência por vestígios e a referência

metafórica, senão na temporalidade da ação humana? Não é o tempo

humano que a historiografia e a ficção literária refiguram em comum, cruzando nele seus modos referenciais? (RICOEUR, 2010, p. 140,

grifos do autor).

Com as premissas de Paul Ricoeur e de Jane Tutikian, finalizaremos

os fundamentos sobre o entrelaçamento dos discursos histórico e ficcional. A

autora ainda postula que a formação de uma literatura de resistência

acontece a partir desse entrelaçamento discursivo – da ficção com a história

–, possibilitando uma outra leitura desse discurso, favorecendo a

constatação de uma outra identidade e, ainda, propicia para o não

silenciamento de vozes de sujeitos marginalizados diante da história oficial:

Ora, sendo a literatura resistência, resultado e reinterveniência no

tempo histórico, pela sua força como matriz geradora e definidora do

social, tornando-o aberto à ação, as narrativas transnacionais de migrantes, colonizados ou exilados, ocupam espaço cada vez mais

relevante, criando uma nova (e mais real) imagem discursiva na

confluência entre a História e a literatura, possibilitando que seja

lida de um outro modo.

É nessa confluência, a partir da própria confluência de espaço e de tempo, de diferenças culturais, marcada por inclusões, e exclusões,

colaborações e contestações, que a identidade nacional (política e

cultural) ganha outra face, novos signos (TUTIKIAN, 2006, p. 26).

E por proporcionar, através do resgate ao desaparecido, ao passado,

retomando uma memória esquecida ou sequer levada em consideração, da

mesma forma, valorizando vidas e tradições, é que a literatura tem em sua

essência o poder de transformar culturas, de onde se serve a constituição de

identidades (TUTIKIAN, 2012). E por ter esse caráter de resistência frente ao

sistema imperialista que permanece nas esferas políticas, sociais e culturais,

a literatura torna-se fundamental para a transformação de identidades e

culturas, ao passo que realiza uma transição entre História e literatura,

favorecendo o resgate sociocultural.

Ainda à luz dos estudos de Gagnebin (2006), a distinção entre o

discurso dito histórico oficial do não-oficial, em que tem-se o sofrimento e o

anonimato, aqueles e aquilo que não têm nome, a autora afirma que a

narrativa não-oficial retoma esses temas desconsiderados pela grande

história:

46

Em primeiro lugar o sofrimento [...] Em segundo lugar aquilo que

não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo, aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado que

mesmo a memória de sua existência não subexiste – aqueles que

desapareceram tão por completo que ninguém lembra de seus

nomes. Ou ainda: o narrador e o historiador deveriam transmitir o

que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável,

numa fidelidade ao passado e aos mortos, mesmo – principalmente –

quando não conhecemos nem seu nome nem seu sentido.

(GAGNEBIN, 2006, p. 54).

Faria Mia Couto de Imani, o que Jeanne Marie Gagnebin conceitua

como um “narrador trapeiro [...] que recolhe os cacos, os restos os detritos

[...] pelo desejo de não deixar nada se perder”? (GAGNEBIN, 2006, p. 53-54).

Seguindo a visão da autora, e então começa a surgir uma possível resposta,

essa narradora tem por objeto os acontecimentos que são/foram deixados de

lado pelo discurso histórico oficial, como por exemplo, trazer à narrativa o

olhar do colonizado e os sujeitos dessa história subordinada, esquecida,

apagada pelo discurso oficial, por esse definido como “algo que não tem

significação, algo que parece não ter nem importância nem sentido, algo com

que a história oficial não sabe o que fazer” (GAGNEBIN, 2006, p. 54).

Enfim, partimos em direção de outro pilar teórico que sustentará a

análise do estudo. Trata-se da memória e sua relação com o tempo e com a

história. Conforme o que Jane Tutikian sugere sobre a produção de uma

memória histórica pela literatura, “[...] Mesmo na imposição do discurso

autoritário, a literatura se propõe com alternativas e opostas: contra o fixo e

o codificado, com as plurissignificações e o dialogismo: memória, história e

ficção se permeiam” (TUTIKIAN, 2006, p. 19-20).

2.2 Entre a memória, o silenciamento e o esquecimento: a narrativa

[...] A única coisa a fazer, então, não é esperar por uma vida depois da morte [...] mas sim tentar manter

viva, para os vivos e através da palavra viva do poeta,

a lembrança gloriosa dos mortos, nossos antepassados

outrora vivos e sofredores como nós.

(Jeanne Marie Gagnebin)

Ao tratar de termos que se referem à memória e, concomitantemente e

não por oposição, ao esquecimento, nos servimos dos estudos de Jeanne

47

Gagnebin, precisamente Lembrar escrever esquecer, de 2006, no qual a

filósofa suíça aborda as mais diversas questões relativas à narrativa oral e

escrita enquanto ferramenta para enfrentar o esquecimento e silenciamento

de histórias e memórias passadas. Assim corrobora a autora:

[...] Desde Platão, o diálogo oral representa a vivacidade de uma

busca em comum da verdade — e se esta última escapa da tentativa

de sua apreensão, ela ao mesmo tempo se revela nessas palavras

compartilhadas, mas efêmeras. A escrita, por sua vez, deseja perpetuar o vivo, mantendo sua lembrança para as gerações futuras,

mas só pode salvá-lo quando o codifica e o fixa, transformando sua

plasticidade em rigidez, afirmando e confirmando sua ausência —

quando pronuncia sua morte (GAGNEBIN, 2006, p. 11).

E por se tratar de algo fugaz, conforme Jeanne Gagnebin expressa,

mas que, por vezes, pode tornar-se codificado e fixo, possibilitando seu

resgate, é que a retomada de uma memória, seja oral ou escrita, propicia o

não esquecimento. No silenciamento tem-se consciência dos fatos, porém,

por conveniência ou necessidade, tende-se ao “abafamento” dos fatos, casos

e rastros, causando o silenciamento de passados, memórias, lembranças;

trata-se da retirada da oportunidade de voz de grupos minoritários,

geralmente, na tentativa de apagar suas histórias e, nesse caso, atingindo

suas raízes, identidades, culturas e tradições, a formação do ser enquanto

sujeito pessoal e social. Conforme elucida Ricoeur no primeiro volume da

sua obra Tempo e Narrativa (2010), - “A intriga e a narrativa histórica” -,

sobre a narrativa o filósofo atribui que:

[...] Narrar, acompanhar, entender histórias é apenas a

“continuação” dessas histórias não ditas. [...] No entanto, a

prioridade dada à história ainda não contada pode servir de instância crítica ante qualquer ênfase no caráter artificial da arte de

narrar. Contamos histórias porque, afinal, as vidas humanas

precisam e merecem ser contadas. Essa observação ganha toda a

sua força quando evocamos a necessidade de salvar a história dos

vencidos e dos perdedores. Toda a história do sofrimento clama por vingança e pede narração (RICOEUR, 2010, p. 129).

Ao transitar pelos terrenos da história e da memória, recorremos à

obra História oral: memória, tempo, identidades, de Lucilia Delgado (2006).

Para a autora, a memória é a base sobre a qual se constroem e se deixam

fixar percepções individuais, bem como coletivas; é um elemento constitutivo

48

do autorreconhecimento como pessoa e como membro de uma coletividade

pública ou privada. Assim se refere Delgado ao discorrer sobre a memória e

história: “Memória e História são processos sociais, são construções dos

homens, que têm como referências as experiências individuais e coletivas

inscritas nos quadros da vida em sociedade” (DELGADO, 2006, p. 50).

Nas literaturas africanas de língua portuguesa, no que tange à

construção literária, em especial em Mulheres de cinzas, corpus de análise

desse estudo, a narrativa que realiza um diálogo entre o passado e o

presente, promove uma revisão dos fatos de um passado, proporcionando

novas significações, simbólicas talvez, servindo ao que Inocência Mata

atribui como “‘textos-memória’ da História dos países” africanos de língua

portuguesa (MATA, 2006, p. 17, grifos da autora), e por assim dizer tem uma

expressa ligação com o percurso histórico desses países, muitas vezes

coincidindo com sua própria existência (MATA, 2006).

[...] No seu período de emergência e consolidação dos sistemas

literários, em que a literatura funcionou como subsidiária da

afirmação nacional e identitária face à ideologia colonial, essas

literaturas fizeram-se, grosso modo, relatos de nação em devir. Nesta marcha, o discurso prevalecente era aquele que buscava sintetizar as

diferentes vozes (afinal, as diferentes visões sobre o processo de

afirmação anticolonial), partilhar memórias históricas e forjadas e

colectivizar angústias e aspirações. Hoje, porém, em período pós-

colonial, essas literaturas continuam a trilhar o caminho da nação.

No entanto, ao invés de uma “nação higiénica”, este ainda relato de nação tem vindo a fazer-se pela encenação da fragmentária memória

incómoda de diferenças, intolerâncias, conflitos, traições e

oportunismos, numa enunciação narrativa predominantemente de

modo evocativo, através da qual se convoca um passado bem

diferente daquele antes textualizado – histórico, não já idealizado (MATA, 2006, p. 17-18).

Já nos referimos à literatura africana de língua portuguesa em

capítulo anterior, portanto, cabe-nos aqui ressaltar a questão da

importância da literatura para a formação de uma nação, por meio da

retomada de um dado passado histórico à luz de novas construções

narrativas, baseadas em memórias fragmentadas, trazendo à margem as

diferenças, conflitos e oportunismos, como aponta muito bem Inocência

Mata (2006), narrativas essas que deixaram (ou tentam deixar) para trás o

passado colonial, esse que já está textualizado e idealizado pela ótica dos

49

lusitanos. Encontramos base nesse processo (re)construtivo da memória na

escrita de Jeanne Gagnebin; segundo a autora rememorar é:

[...] em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos,

aos buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações,

solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma

atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas

ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de

não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A

fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação

do presente (GAGNEBIN, 2006, p. 55).

Essa reflexão sobre o passado, com a expectativa de um novo presente,

com a intenção de dar visibilidade aos esquecidos e, assim, uma chance de

lembrança, uma memória, é possível quando se tem testemunhas dessa

história, através da função de ouvintes, pois “somente assim poderia essa

história ser retomada e transmitida em palavras diferentes.” (GAGNEBIN,

2006, p. 57). A autora propõe uma ampliação do conceito de testemunha,

sugerindo que testemunha não necessariamente é aquele que presenciou o

fato, configurado como testemunha direta, mas aquele que ouve a narração

até o fim, mesmo que insuportável, e que aceita que suas palavras levem

adiante a história do outro:

[...] não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a

transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento

indizível, somente essa retomada de reflexiva do passado pode nos

ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra

história, a inventar o presente” (GAGNEBIN, 2006, p. 57).

Se a cada nova rememoração é realizado um novo ato de construção,

como se ‘reescrevesse’ a cena”, Mulheres de cinzas rememora um tempo

pretérito da história moçambicana, a fim de poder refletir sobre as

implicações da colonização e sua violência com relação à terra e aos seus

habitantes. Por este viés, as vozes narrativas da história transitam entre

suas memórias e seu presente, revelando, aos poucos, o seu estar no mundo

naquela situação de oprimido/opressor, da qual ambos são protagonistas.

50

Em Mulheres de cinzas, com relação ao “dever de memória”, a

rememoração é pela voz de Imani, conforme observamos no trecho em que a

garota relembra uma fábula narrada por seu avô:

Tsangatelo encostou-se à termiteira para narrar uma velha e gasta

fábula. Era noite, os deuses autorizavam-no a contar histórias. Desta

vez, porém, improvisou uma nova encenação. Ergueu-se para ficar

do tamanho da noite. E quando falou parecia que se expressava num idioma novo que nascia das suas palavras. Como se apenas os

deuses o escutassem. Esta é a história que Tsangatelo narrou:

“Havia algures uma guerra antiga, num tempo em que nenhum lugar

tinha ainda nome. A batalha estava nos preparativos iniciais, nesse

momento em que guerreiros possuem tanta fé que deixam de se ver a si mesmos, frágeis e tomados pelo mundo. Os dois exércitos se

perfilavam para o confronto quando um enorme clarão rasgou os

céus. Uma incandescência de uma estrela varreu o firmamento. Os

soldados tombaram, momentaneamente cegos. Quando voltaram a si

tinham perdido a memória, desconhecendo para que serviam as armas que traziam nos braços. Eles então se desfizeram das lanças,

zagaias e escudos e olharam uns para os outros, sem saber o que

fazer. Até que, perplexos, os chefes rivais se saudaram. A seguir os

soldados se abraçaram. E, quando voltaram a olhar a paisagem, não

mais viram território para conquistar, mas terra para cultivar.

Por fim, os homens dispersaram. No regresso a suas casas, escutaram a mais antiga canção de embalar, entoada nas infinitas

vozes de uma única mulher.” (p. 120-121).

Sua reflexão sobre os preparativos de uma cerimônia em homenagem

aos seus antepassados demonstra sua percepção sobre ela própria, sobre

sua tribo e a estimativa de um final – não muito feliz:

Os preparativos da cerimónia requeriam um esforço de todos nós. A

mim coube-me o trabalho mais afastado de casa: toda a tarde andei

catando lenha. E fui recolhendo pau e gravetos como se fossem

pedaços de mim que reagrupava debaixo do braço. [...]

Começava a anoitecer e ainda não havia empilhado toda a lenha no pátio. Foi quando o sino da igreja começou a tocar sozinho. As aves

levantaram voo, assustadas, e os aldeões buscaram refúgio nas suas

casas. O cego da aldeia, que nunca saía à rua, surgiu na praça.

Havia anos que tinha voltado da guerra sem aparente ferimento. Mas

a guerra tinha-lhe entrado na cabeça, apagando-lhe os olhos por

dentro. O cego escutou o adejar das aves à sua volta e declarou: - Meus irmãos, estes são os últimos pássaros! Olhem bem para eles que nunca mais o voltarão a ver.

Rodopiou como se dançasse com os seus pés cegos, os braços abertos em asas (p. 118, grifos do autor).

51

Imani ao narrar esse acontecimento, expõe um dos efeitos da guerra,

ainda que sem ferimento exposto, os guerrilheiros voltam como se tivessem

perdido o dom da visão, e ao prever um novo combate anuncia ser esse um

dos últimos momentos de paz, em que ainda há pássaros a voar. O processo

de rememoração faz-se imprescindível para evidenciar a complexidade

daquele momento histórico pelo qual passa Moçambique e, também, para

que se entenda o que, a partir daquela situação, ainda está por vir. Imani

nos dá pistas de sua identidade fragmentada, ao comparar-se com a lenha

que aos poucos recolhia, como se nessa ação estivesse recolhendo a ela

mesma.

2.3 A voz de Imani e a identidade moçambicana

Chamo-me Imani. Este nome que me deram não é um nome. Na minha língua materna “Imani” quer dizer “quem é?”. Bate-se a uma porta e, do outro lado,

alguém indaga: - Imani?

Pois foi essa indagação que me deram como

identidade. Como se eu fosse sombra sem corpo, a

eterna espera de uma resposta.

(Mia Couto)

Imani, a personagem criada por Mia Couto para narrar a história de

Mulheres de cinzas, revela-se não somente como uma indagação: “quem é?”,

mas se percebe que a dúvida mais insistente é “quem sou?”, questão

implícita nesse excerto e confirmada no transcorrer da narrativa.

Sua dúvida parte de vários condicionantes - antes de ser chamada de

Imani, teve outros nomes: Layeluane, nome herdado de sua avó paterna, o

qual recebeu conforme manda a tradição; depois, foi batizada por sua mãe

com o nome de “Cinza”; posteriormente, foi chamada por “a Viva”, uma vez

que suas irmãs, levadas pelas grandes enchentes, faleceram. E sobre isso a

personagem revela:

Era assim que me referiam, como se o facto de ter sobrevivido fosse a

única marca que me distinguia. Os meus pais ordenavam aos meus

irmãos que fossem ver onde estava a “Viva”. Não era um nome. Era

um modo de não dizer que as outras filhas estavam mortas (p. 16).

52

Sua reflexão e dúvida sobre a própria identidade, ou ausência dela,

avançam na narrativa. Em um diálogo com um homem que se sustenta com

os restos de guerra, Imani diz não ter nome:

E já se ia embora quando se arrependeu e, arrastando ruidosamente

a sacola, girou à minha volta até me interpelar: - Como te chamas?

- Eu? Eu não tenho nome – respondi.

Foi como se o tivesse golpeado. Deixou tombar o saco e o seu

conteúdo rolou pelo chão. Avançou para mim, com o braço hasteado: - Nunca mais digas isso. Queres saber como se mata alguém de verdade? Não é preciso que lhe cortes o pescoço ou lhe espetes uma

faca no coração. Basta que lhe roubes o nome. É isso que mata os vivos e os mortos. Por isso, minha filha, nunca mais digas que não tens nome (p. 259-260).

Imani explica que recebeu por nome um nome nenhum, quando seu

pai retoma o controle acerca da escolha de um nome para a garota:

[...] A certa altura o meu velho reconsiderou e, finalmente, se impôs. Eu teria por nome um nome nenhum: Imani. A ordem do mundo, por

fim, se tinha restabelecido. Atribuir um nome é um ato de poder, a

primeira e mais definitiva ocupação de um território alheio. Meu pai

que tanto reclamava contra o império dos outros, reassumiu o estatuto de um pequeno imperador (p. 16-17, grifos do autor).

O que é nosso nome se não nosso próprio eu? Somos a materialização

de um ideal, personalidade, identidade, tradição, e ter por nome um nome

nenhum, faz com que Imani viva esse conflito entre o “eu” e o “ser”, fato que

caracteriza a personagem e sua vida:

Não sei por que me demoro tanto nestas longas explicações. Porque

não nasci para ser pessoa. Sou uma raça, sou uma tribo, sou um

sexo, sou tudo o que me impede de ser eu mesma. Sou negra, sou

dos VaChopi, uma pequena tribo no litoral de Moçambique [...] (p. 17).

Ao refletir sobre o papel da personagem principal de Mulheres de

cinzas, Imani, a consideramos como representante moçambicana, de uma

nação que começa a se formar. Para iniciar os estudos sobre o

desenvolvimento dessa nova nação que dá os primeiros sinais de que está a

se estabelecer, buscamos em Jane Tutikian (2006) os pilares que

sustentarão a conceituação entre nação e identidade, assim como no estudo

53

de Stuart Hall (2005) acerca da identidade, da mesma forma, Jodelet (2005)

contribui para o conceito de construções representacionais.

Faz-se necessário o desdobramento de conceitos como o de identidade,

enquanto representação pessoal e de uma nação, visto que a personagem

central nos oferece primários indícios de que a trama trata-se de uma

simbologia à nação moçambicana, que começa dar seus primeiros passos

para a independência de Portugal – mas isso, ainda, é um sonho distante.

Stuart Hall (2005) afirma que “a identidade passa a ser definida

historicamente e não biologicamente. O sujeito assume identidades

diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao

redor de um ‘eu’ coerente” (HALL, 2005, p. 13). Seguindo esse viés,

percebemos que Jane Tutikian (2006) comunga do mesmo pensamento de

Hall (2005), quando afirma que identidade e diferença mantêm um elo

através do qual é possível estabelecer o que somos e o que não somos,

originando, portanto, uma relação de interdependência. Nessa mesma

esteira reflexiva, encontramos no estudo de Silva (2000) a afirmação de que

“[...] Assim como a identidade depende da diferença, a diferença depende da

identidade. Identidade e diferença são, pois, inseparáveis” (p. 75).

E, para haver esta constatação é necessário o reconhecimento do outro

como ser diferente de nós; o binarismo entre nós/eles marca o início deste

reconhecimento. Por conseguinte, a identidade é relacional, apontada pela

diferença (WOODWARD, 2000). E desse ato em que o indivíduo compreende

a si mesmo e o seu vínculo com o mundo estabelecemos a existência de uma

identificação, em que o pertencimento atua de forma simbólica e serve para

classificar as relações e o mundo. Da mesma forma, “a identidade é marcada

por meio de símbolos” (WOODWARD, 2000, p. 9). O reconhecimento de si

como pertencente a um grupo implica no compartilhamento de costumes,

tradições, idiomas, de uma identidade comum.

Se pressupuser a ideia de homogeneidade social ou sociocultural,

aqueles que não atenderem às expectativas do considerado comum serão

classificados como o outro na “escala social”. Assim, “a identidade tem

relação direta com a alteridade, que significa distinção; o outro que é

distinto, diferente do mesmo” (FERNANDES, 2006, p. 3).

54

Tomaz Tadeu da Silva (2003), juntamente com Stuart Hall (2005) e

Jane Tutikian (2006) concorda não ser a identidade uma ideia fixa, mas que

está em constante mudança, relativamente influenciada pelas relações de

representações e de poder sociais; ou seja, não é algo natural, mas sim

condicionado ao ser para pertencer ao grupo social ao qual está embutido.

Temos então que identidade é algo móvel, fluido, e sofre alterações

através de um poder social e sua representatividade. Para desmembrar esses

termos, avançamos, em partes, nos estudos de Tutikian (2006) e Silva

(2003), a começar pelo fato de ser a identidade um termo fluido, móvel, não

fixo e nem permanente. Jane Tutikian explica que essa liquidez do termo

associa-se ao fato de que na identidade ocorre “[...] uma espécie de

transformação contínua em relação às formas de representação ou

interpelação desses mesmos sujeitos dentro dos sistemas culturais”

(TUTIKIAN, 2006, p. 12). E que mesmo as fronteiras, sejam elas geográficas,

históricas, ideológicas e culturais, sofrem uma variação e se redefinem

(TUTIKIAN, 2006). Para explicar a questão da representação, Tomaz Tadeu

da Silva afirma que:

[...] Certamente existem certas condições “sociais” que fazem com

que os grupos se vejam como tendo características em comum:

geografia, sexo, “raça”, sexualidade, nação. Mas mesmo essas

condições sociais têm de ser “representadas”, têm de ser produzidas por meio de alguma forma de representação. Aquilo que um grupo

tem em comum é resultado de um processo de criação de símbolos,

de imagens, de memórias, de narrativas, de mitos que “cimentam” a

unidade de um grupo, que definem a sua identidade. [...]

É na intersecção entre representação e identidade que podemos localizar o caráter ativo de ambas. A representação não é um campo

passivo de mero registro ou expressão de significados existentes. [...]

Por meio da representação travam-se batalhas decisivas de criação e

de imposição de significados particulares: esse é um campo

atravessado por relações de poder. A identidade é, pois, ativamente

produzida na e por meio da representação: é precisamente o poder que lhe confere seu caráter ativo, produtivo (SILVA, 2003, p. 47).

As leituras da realidade propostas por meio da representação

possibilita-nos compreender e interpretar dada realidade. E esse processo de

construção representacional fornece meios para se assimilar uma realidade

não familiar, tornando-a cabível e compartilhável entre componentes de um

55

grupo. E dessa interação notamos atitudes e sentidos que delineiam

comportamentos, conforme explana Jodelet:

[...] cada vez que exprimimos uma ideia, uma concepção, uma

adesão, dizemos algo de nós mesmos. Aderir a uma representação é

particular de um grupo, de uma ligação social, mas também expressa algo de sua identidade que pode ter um efeito sobre a

construção do objeto (2005, p. 315).

Através da representação politizada surgem as identidades

subordinadas, essas caracterizadas por estarem à margem, em determinado

regime dominante/totalitário, sendo sempre uma identidade marcada, “é a

identidade subordinada a que carrega a carga, o peso, da representação”

(SILVA, 2003, p. 49). Por exemplo,

[...] Numa sociedade em que o regime dominante de representação privilegia a cor branca, a desonestidade de uma pessoa branca é

apenas isso: a desonestidade de uma pessoa branca (“normal”). Em

troca, a desonestidade de uma pessoa negra só pode representar a

inclinação natural de todas as pessoas negras à desonestidade. [...]

(SILVA, 2003, p. 49).

Fruto de sua pesquisa de pós-doutoramento, Jane Tutikian apresenta

em seu livro Velhas identidades novas: o pós-colonialismo e a emergência

das nações de Língua Portuguesa, de 2006, uma ampla revisão dos

pressupostos teóricos sobre identidade e nacionalidade aos pesquisadores de

literaturas de língua portuguesa, especificamente dos países africanos que

são ex-colônias de Portugal e que têm o português como idioma oficial.

Maria Luíza Remédios, logo na apresentação do livro, explicita os

temas que recebem destaque no estudo de Tutikian, levando em

consideração a teoria do multiculturalismo e da teoria da narrativa, e suas

repercussões na Literatura das ex-colônias portuguesas:

[...] A identidade de povos que, historicamente, fixam-se na década

de 80 do século XX, quando enfrentam desafios para

independentizar-se e para legitimar-se enquanto nação. Os

acontecimentos que marcam as últimas décadas do século XX, como

a grande movimentação histórica e cultural, a queda de barreiras

econômicas no Leste Europeu, a abertura da China ao capital estrangeiro, a configuração de uma Nova Ordem Mundial, as guerras

internas nas recém-libertadas ações africanas de língua portuguesa,

a independência do Timos Leste, também apontam para as

56

literaturas consideradas terceiro-mundistas que passam a interessar

aos estudiosos do primeiro mundo. Justamente essa literatura é o foco de estudo de Jane Tutikian que, ao constatar que uma época,

uma cultura, uma história chegam ao fim, outra surge e nela se deve

pensar a literatura e muito mais a identidade nacional que se

relaciona intimamente à língua e à tradição, sem deixar de lado o

mito, o folclore, e sistemas sócio-político-econômicos... (REMÉDIOS, 2006, p. 9-10).

Tutikian (2006), após explanar sobre o contexto econômico-social das

décadas que findaram o século XX, já explicitado por Maria Luíza Remédios,

expõe a necessidade de se pensar ainda mais a literatura, assim como

pensar sobre a questão da identidade dos países africanos dominados pelos

portugueses em uma nova era que se inicia; período, aliás, em que também

surge o interesse em estudar as literaturas produzidas pelo terceiro mundo.

E sobre as questões da nação e identidade em período de

descolonização, a autora indica quais são/foram os elementos fundamentais

para essa composição do nacionalismo e da identidade própria:

A identidade de uma nação passa a relacionar-se a uma série de

elementos que vão da língua à tradição, passando pelos mitos,

folclore, sistema de governo, sistema econômico, crença, arte, literatura etc., passado e presente, mesmo e outro, não sendo,

portanto, um fenômeno fixo e isolado [...] (TUTIKIAN, 2006, p. 11-12, grifos da autora).

Portanto, o conceito europeu de nação entra em crise, conforme

aponta a autora:

[...] O conceito universal de nação, exportado pela Europa, no século

XIX, como o espaço limitado por fronteiras naturais e tudo o que

havia dentro desse espaço: uma língua, uma crença, um sistema

político e econômico, e um certo sentido nacional, entra em crise no

século XX (TUTIKIAN, 2006, p. 12).

Com esse novo paradigma de nação que rompe com as fronteiras e

seus limites ocorre a assimilação do termo nação com a ideia de identidade

nacional, pois segundo Jane Tutikian:

[...] é nas idiossincrasias que se passam a distinguir as fronteiras, e

elas estão na cultura, donde se reforça a idéia de que a nação não é

uma entidade plenamente formada, mas sujeita a mecanismos de

57

inclusão e exclusão, o que confere, ainda, maior relevância à questão

da identidade nacional [...] (TUTIKIAN, 2006, p. 12).

E a recuperação da identidade passa pelo resgate de certos valores

nativos, formado em raízes específicas:

[...] seja para tentar resgatar a tradição, seja para tentar construir

uma nova tradição, buscando, através da derrubada ou do resgate de mitos, uma idéia mais próxima daquilo o que é o homem, a nação e a

identidade nacional ou cultural e política contemporaneamente, isto

é, diante das movimentações espácio-culturais da História recente

(TUTIKIAN, 2006, p. 16).

A luta pela libertação nacional e a implantação de uma consciência

nacional ocorreu após o surgimento de clandestinas organizações políticas,

Assim, não é demais afirmar-se que o nacionalismo está presente, e

tanto mais nítido pela condição histórica nas literaturas emergentes

a partir de suas premissas sócio-históricas, com uma reflexão própria, que busca soluções particulares, seja nas abordagens

estéticas, seja nas abordagens históricas, ao colocar-se contra a

política assimilacionista da metrópole, voltando-se para a

desalienação e a conscientização, através de seus temas de

resistência. Temas esses que, além de serem unicamente de reação ao imperialismo, voltam-se, também, para a terra, deslocando-se

para busca e preservação das fontes da cultura popular e raízes

nacionais autênticas (TUTIKIAN, 2006, p. 19).

Assim, a resistência desses agrupamentos políticos, tendo em vista a

libertação nacional, a conscientização e a desalienação frente ao sistema

imperial, são apresentados pela literatura, intentando a busca da formação

de uma nacionalidade e de uma cultura autêntica:

Ainda que entre a cultura que olha e a que é olhada se produza um

espelhamento, ainda que a binaridade de inferior/superior se

exponha, ainda assim, o processo todo não é, inicialmente, tão pacífico quanto se imagina. O outro ainda permanece como contrário.

O outro ainda é o outro, não importa o discurso geral de prosperidade

que traga consigo, nos períodos colonial e pós-colonial inicial, onde o sentimento nacional aguça a identidade utópica (TUTIKIAN, 2006, p.

14).

Pendendo o pensamento para o que a autora determina como o fator

de diferenciação entre as fronteiras, a cultura, averiguamos em Morin (s.d.)

que a cultura tem por característica moldar os sujeitos à medida que forma

58

os seres humanos como indivíduos e membros de uma espécie e de uma

sociedade. Conforme o autor: “estamos em uma sociedade e a sociedade está

em nós, pois desde o nosso nascimento a cultura se imprime em nós. Nós

somos de uma espécie, mas ao mesmo tempo a espécie é em nós e depende

de nós.” (MORIN, s.d., p. 4).

Buscamos um aparato sobre a questão da cultura também no estudo

de Jeanne Gagnebin, onde encontramos que:

[...] Poderíamos dizer que ela [a cultura humana] se caracteriza pela

capacidade de entrar em comunicação com o outro e de proceder a

uma troca. O outro tem diversas formas: pode ser a terra-mãe, e aqui

cultura remete à agricultura, à troca entre trabalho humano e a

natureza; o outro também designa o outro homem, os deuses, a dimensão do sagrado: aqui a cultura se confunde com o culto e com

a troca no sacrifício. Enfim, o outro é o outro homem, na sua

alteridade radical de estrangeiro que chega de repente, cujo nome

não é nem dito nem conhecido, mas que deve ser acolhido, com

quem se pode estabelecer uma aliança através de presentes, embrião

de uma organização política mais ampla (GAGNEBIN, 2006, p. 21).

Gagnebin (2006), com essa proposta de cultura humana, possibilita-

nos o entendimento de que a cultura está vinculada às formas variadas de

relação com o outro. Assim, abordamos a questão do imperialismo, que

trazia consigo uma imposição cultural, social, religiosa, econômica, nos mais

diversos modos de viver dos povos colonizados, com a falsa ideologia de levar

a civilização a esses povos bárbaros ou primitivos, segundo o olhar europeu

(TUTIKIAN, 2006):

Ora, diante desse quadro de transformação e complexidade da ordem

mundial de que não passam incólumes as nações emergentes,

aquelas que são frutos do ciclo descolonizador do século XX, questões como nacionalismo, identidade e alteridade, terminam

ocupando espaço em textos nacionais dos mais diversos estatutos,

ficcionais ou não (TUTIKIAN, 2006, p. 17).

As primeiras manifestações artísticas e literárias em solo

moçambicano surgem em um período imperialista e, nesse contexto, as

narrativas simbolizaram uma arma poderosa de resistência frente ao

império, conforme Tutikian:

59

[...] O poder de narrar ou de impedir que se formem e surjam novas narrativas é fundamental na relação império versus cultura. As

narrativas de emancipação na Africana de língua portuguesa, por

exemplo, terminaram tornando-se elementos de forte mobilização de

povos e forte arma de resistência, além de uma tentativa de

fortalecimento ou de resgate de identidades locais, até porque a

literatura é fonte de cultura e cultura é fonte de identidade (2006, p. 15, grifo da autora).

Temos assim, conforme Tutikian (2006), que a literatura, como uma

expressão simbólica dessas ex-colônias, representa um foco de resistência ao

imperialismo, sendo um produto da cultura e capaz de reinventar a cultura e

a história criadas pelo processo de colonização.

Pela arte literária, passa a ocorrer uma catarse via narrativa

moçambicana, em relação à europeia, na qual entra em cena o negro

moçambicano, em que começa a surgir um espaço para os moçambicanos

desenvolverem suas culturas e tradições por meio do campo literário.

Surgem:

[...] a história da migração pós-colonial, as narrativas da diáspora

cultural e política, os grandes deslocamentos sociais de comunidades

camponesas e aborígenes, as poéticas do exílio, a prosa austera dos

refugiados políticos e econômicos. Quer dizer, cada vez mais, as

culturas nacionais estão sendo produzidas a partir da perspectiva de minorias destituídas (TUTIKIAN, 2006, p. 15).

Uma literatura firmada nas narrativas orais, vinculada aos povos

locais e seus contextos, com uma perspectiva diaspórica, advinda de

relações culturais entre o colonizador e o colonizado, com um apagamento

identitário, afirma a manutenção de sua memória como uma forma de

resistência ao sistema colonialista.

60

3 VOZES (QUASE) SILENCIADAS

De repente fiquei muda, varreu-se-me todo português.

E, quando tencionei falar na minha língua natal,

enfrentei o mesmo vazio. Inesperadamente, não

possuía nenhum idioma. Dispunha apenas de vozes,

indistintos ecos.

(Mia Couto)

O romance Mulheres de cinzas recupera o período de final do século

XIX, época em que Moçambique enfrentava batalhas internas, resultante dos

conflitos entre as diferentes tribos africanas, além das lutas entre o império

Português e o império de Gaza: o primeiro para assegurar a posse da

colônia, o segundo para reconquistar esse território, as terras do sul de

Moçambique. A narrativa traz com toda maestria de Mia Couto a confluência

entre a história oficial e a ficção, em que o trânsito ocorre uma vez que o

autor parte de fatos, locais e personagens já conhecidos pelo discurso

histórico, transformando-os ou agregando-os com o discurso literário,

possibilitando, através desse, novas perspectivas:

Ninguém terá memória de António Enes. E o valente Mousinho de

Albuquerque será um descolorido vencido. Sobreviverá o Estado de

Gaza com a sua gloriosa história. Sobreviverá Gungunhane, o único

grande herói. Esse negro brilhará como já brilharam um César, um

Alexandre Magno, um Napoleão, um Afonso de Albuquerque. E a estátua do rei africano figurará um dia numa praça de Chaimite.

Gerações de cafres adorarão o imperador africano como eterna prova

do heroísmo e do valor da sua raça (p. 183-184).

Em carta ao Conselheiro José d’Almeida, Germano de Melo faz menção

a conhecidas personagens da história oficial, como Napoleão, César e

61

Alexandre Magno, colocando Ngungunyane ao mesmo nível de figuras

sacralizadas pelo discurso histórico.

A narrativa coutiana apresenta Imani, moçambicana de quinze anos,

educada segundo os padrões de Portugal; e através de sua lembrança o

romance histórico retorna ao século XIX, rememorando o período da

colonização de Moçambique pela Coroa portuguesa e as outras guerras

internas em busca do domínio das terras moçambicanas: “Os imperadores

têm fome de terra e os seus soldados são bocas devorando nações [...] A

nossa terra estava a ser abocanhada” (p. 15). Além de Imani, a narrativa é

composta pelas cartas de um soldado português condenado ao degredo na

África, Germano de Melo, caracterizando-se como relatórios de viagem, em

que o sargento descreve as dificuldades encontradas em solo africano, como

expõe em pormenores sua estadia em Nkokolani, essas cartas são

endereçadas ao seu superior e confidente, Conselheiro José d’Almeida, sendo

através dessas que se mantem o vínculo do sargento com sua terra natal,

conforme expresso em sua carta de 5 de junho de 1895:

À força de aqui estar, só e abandonado, sinto que me vou

convertendo num outro Sardinha: mais casado com esta gente, mais

próximo destes negros que dos meus próprios compatriotas. Vossa Excelência é o meu único amigo, a única ponte que me liga a

Portugal (p. 182).

Imani e Germano de Melo são as vozes narrativas que irrompem o

silêncio desse período da história de Moçambique, recapturando fatos pelo

olhar do marginalizado e esquecido pela história oficial – o africano – e

apresentando um novo viés pela ótica do branco colonizador, o da simpatia e

empatia pelo povo nativo:

Descubro, enfim, meu caro Conselheiro, nestes tristes sertões uma humanidade que em mim mesmo desconhecia. Esta gente,

aparentemente tão distante, tem-me dado lições que não aprenderia

em nenhum outro lugar (p. 187).

Na voz do português estão a saudade, a solidão e a distância de sua

terra natal, conforme sua confissão ao Conselheiro José d’Almeida, em que

pronuncia sua tristeza e solidão em solo africano e, mesmo com a aparente

62

diferença entre os nativos e os colonizadores, sente por eles apreço e respeito

pelo que tem aprendido com os moçambicanos. Na voz de Imani está a

lembrança da África, sua história, seus mitos e sua cultura e através dela o

caráter denunciativo de abuso aos negros surge, revelando sua função de

intermediadora entre as nações:

E dei comigo a pensar: nós, os negros, sabemos mexer numa pá

incomparavelmente melhor que outra qualquer raça. Nascemos com

essa habilidade, a mesma que nos faz dançar quando precisamos de

rir, rezar ou chorar. Talvez porque há séculos sejamos obrigados a enterrar, nós mesmos, os nossos mortos, que são mais que as

estrelas. Outra razão haveria: os europeus teriam certamente, lá na

terra deles, negros escravos que fariam esse trabalho [...] (p. 73).

Ainda que não conhecesse outras que terras que não as suas, Imani

percebe além das fronteiras a falta de habilidade de portugueses com os

serviços braçais e manuais, ao mesmo tempo em que nota serem eles – os

nativos – capazes de efetuar com destreza essas tarefas, da mesma forma

que aprenderam a conviver com as muitas mortes causadas pelas guerras e

seguir a diante.

O caráter denunciativo da narrativa sobre silenciamento forçado aos

negros e moçambicanos aparece explicitamente em dois momentos, um na

sexta carta do sargento Germano endereçada ao Conselheiro José d’Almeida,

quando ele relembra a execução de negros que havia participado, em

Lourenço Marques, como integrante do esquadrão de fuzilamento:

[...] Na mira das nossas espingardas estava um grupo de pretos

revoltosos que havia sido capturado no dia anterior. Como era de

costume, o pelotão era composto apenas de portugueses. À minha frente alinhavam-se os condenados: todos adolescentes,

quase crianças. Nenhum deles tinha sido julgado, ninguém os

escutara em português ou na sua língua nativa. Os que iam morrer

não tinham voz. Naquele momento, não sei que transtorno, quiçá

motivado pelo medo ou por má consciência, me fez pensar que aqueles que iam morrer já traziam suficiente culpa de nascença: a

raça que tinham, os deuses que não tinham. [...]

Não deixo de pensar nem por um instante que aqueles jovens pretos,

tão distantes de cor e feição, se pareciam, afinal, comigo. Como eles,

também eu me revoltara. Como eles, também eu ousara apontar as

armas contra os poderosos. Talvez tenha sido por isso que a espingarda se encravou e o projétil explodiu dentro da câmara. Essa

bala continua deflagrando eternamente dentro de mim. Se fosse ave,

já há muito teria soçobrado, de tanto grão na asa (p. 150-151).

63

Nessa carta enviada ao seu conselheiro, Germano de Melo apresenta

certa preocupação em relação a seus atos cometidos contra garotos negros,

muitos deles crianças ainda, conforme se observa nas próprias palavras do

sargento. Revela um exame de autoconsciência e chega a conclusão de que

cometera o mesmo erro que cometeram com ele quando do seu julgamento.

Aos negros não é dada a oportunidade de defesa, nem em idioma português

e sequer em sua língua nativa, demonstrando a falta de cuidado e de

preocupação para com os negros.

Outro momento em que se revela o apagamento dos negros

moçambicanos ocorre na reflexão de Imani sobre seu irmão Mwanatu, o qual

pouco fala em toda sua apresentação como sentinela do aquartelamento

militar português em Nkokolani, recobrando-a quando abandona sua farda e

“volta” a ser negro, ou seja, retorna às suas raízes:

Depois da morte da nossa mãe, Mwanatu voltou a instalar-se em

nossa casa. O pai recebeu-o como se ele nunca tivesse saído. Sem palavra e sem nenhuma atenção. Aquele que regressava era um

estranho, um mero visitante a quem empresta uma esteira. Mwanatu

aparentava estar menos lerdo, mas ainda a contas consigo mesmo.

Sentado na sombra do quintal, reganhava raízes. Contemplávamo-lo

a medo. Porque o seu braço ganhara a forma da espingarda que,

durante meses, ele havia empunhado dia e noite (p. 292).

A epígrafe que abre esse capítulo refere-se ao momento em que Imani

aguardava a chegada de Germano de Melo, em Nkokolani, sabendo de suas

obrigações para com o militar. Ao servir de intérprete, esperava-o a beira do

rio Inharrime, caminho por onde chegara acompanhado de outro português,

Mariano Fragata: “um civil muito moreno e distinto” (p. 63), segundo a

caracterização de Imani. A ausência de fala descrita pela jovem

moçambicana ocorre no momento em que Germano de Melo apresenta Imani

a Fragata. Germano, que já ouvira fala corretíssima de Imani, pede para que

ela fale um pouco para que Fragata a escute. A garota sente como se tivesse

perdido a habilidade de falar, tanto no idioma português, como no txitxope,

sua língua nativa. O sargento entende como um ato de timidez, mas Imani

estava era possuída por diversas vozes, que ecoavam de seu interior, sem

saber a qual seguir, qual trazer a público. Entendemos esse momento como

uma consequência do ambiente em que Imani vivia, em que existiam

64

diversos idiomas em contato e/ou conflito, por exemplo, o português, o

txitxope, o xizulu, o shizulu entre outros dialetos nativos. Também sinaliza o

conflito identitário de Imani, pois ela demonstra não saber a que nação – se

moçambicana ou portuguesa – pertence, sendo Imani conhecedora do

idioma, religião e cultura de ambos os países. Por ser esse um conflito da

personagem principal do romance, podemos relacionar essa inquietação

identitária como algo existencial aos colonizados de Moçambique no século

XIX, uma vez que Imani representa essa nação e seu povo.

Ao conduzir a narrativa pela lembrança de uma jovem moçambicana,

Mia Couto, em Mulheres de cinzas, dá voz às mulheres e mesmo os não-

ditos, os silenciamentos, têm um efeito ainda maior, pois Imani mais pensa

do que fala e manifesta-se mais por meio de seu pensamento e reflexões

silenciosas do que externaliza o que sente, o que pensa e como vê as

situações pelas quais sua aldeia e, por extensão, seu país está a passar,

nesse caso, afirmamos que o silêncio também é um ato comunicativo. A

exemplo do silenciamento que “comunica”, temos o momento em que Imani

usa o silêncio como resposta a uma ordem de Katini que lhe disse para ser

ao sargento “o que todas as mulheres são neste mundo” (p. 97):

Em silêncio, finquei os pés na areia como se estancasse um rio. E

era o choro que eu estancava. Melhor teria sido deixar o pranto

acontecer. Dizia a nossa mãe que, quando choramos, a alma segue o

exemplo da Terra, sob a chuva: torna-se barro. E o barro dá-nos

casa, o barro é quem molda a nossa mão (p. 97).

Imani que servia de intérprete entre o sargento e os demais

moçambicanos estava encarregada de ensinar ao Germano a língua local,

devido ordens do império português, e agora haveria de exercer o papel de

mulher ao recém-chegado português. Imani insatisfeita com a determinação

do pai, mas para não questioná-lo, silencia-se e trava a vontade de chorar,

pois também seria um ato de reivindicação sobre a ordem.

Vemos na narrativa que o silêncio ganha um outro significado em um

diálogo entre Imani e sua mãe: “São assim os homens, explicou: têm medo

das mulheres quando elas falam e mais medo ainda quando ficam caladas”

(p. 28). O silenciamento, nesse caso, nos dá margem para refletir sobre a

65

relação entre o homem e a mulher moçambicanos. Podemos aferir que a

mulher é vista como autoridade e deve ser respeitada, ao demonstrar ser

muito mais perigoso o que a mulher pensa em relação ao que ela externaliza,

pois em seu silêncio a mulher revela muito mais sua sabedoria, cabendo o

pensamento apenas a essa. Como podemos observar em um diálogo entre

Imani e Germano, em que a garota o corrige quanto à pronúncia do nome do

imperador africano:

[...] Olha bem para ela, Imani, porque esta arma é que vai vencer o

Gungunhane.

- Desculpe. Mas é Ngungunyane que se diz, senhor sargento. Se não conseguir dizer pode sempre chamar-lhe Mudungazi. Mas é importante chamarmos os inimigos pelos nomes certos... - Ai sim? Pois então escuta: esta arma é uma Kropatcheck. Ora diz lá Kropatcheck, a ver se consegues... A diferença é que eu não precisaria nunca de dizer o nome de uma

espingarda. E Germano teria que pronunciar todos os dias o nome

do imperador africano. Era o que devia ter dito. Mas guardei-me, submissa (p. 158-159, grifos do autor).

A sabedoria da moça vai além do que lhe ensinaram nas missões: está

manifesta em seu pensamento, sua lembrança. Lembramos que o período

em que se passa a reflexão de Imani é o de Moçambique ainda colônia de

Portugal, século XIX, momento em que depender de uma mulher para

atividades além das tarefas do lar é incomum, quase inaceitável ser ela a

responsável pelo diálogo entre duas culturas distintas; também, tal postura

leva a outra pista que indica ser a mulher detentora de uma autoridade e

sabedoria que lhe permite participar da vida em sociedade.

O silenciamento do homem frente à mulher é percebido, por exemplo,

quando Imani vai em busca de seu pai, após uma briga entre Chikazi e

Katini, aferindo outra vez uma capacidade superior da mulher nessa relação

quando Imani descreve que seu pai sem palavras para concluir uma frase

em que mencionava sua esposa:

As sombras eram já extensas quando parti em busca do meu pai,

sobraçando um cesto onde gorgolejava uma garrafa de vinho, em cujo rótulo se podia ler a letras gordas: Vinho para o preto. A lua

cheia acendia a dormente paisagem. Os meus pés decalcaram na

areia as recentes pegadas do velho Katini. Quem mais, na aldeia,

usava botas? Aos poucos me surpreendi como ele se tinha afastado

66

para tão longe. O meu chamamento, trémulo, esmorecia sem eco

nem resposta: - Pai! Pai?!

Cheguei, enfim, a um campo a perder de vista. Parecia uma terra de

lavoura. A confirmar a vocação da paisagem, lá estava o meu pai

ocupado a esgravatar a terra. Os homens VaChopi são os únicos que

lavram a terra, lado a lado com as suas mulheres. Meu pai, na

verdade, lavrava mais era no alambique. Quando cheguei perto, reparei: aquilo que antes parecia uma enxada

era, afinal, um pau afiado na ponta. Ele não sachava, apenas ciscava

no solo como se desenhasse sobre uma infinita tela. - Estou a escrever – disse ele, ao sentir-me perto.

- A escrever?

- Não é só você que escreve... - E o que tanto escreve, pai? - São os nomes de todos os que morreram na guerra.

[...] - Essa sua mãe...

Não completou a frase. Ficou cego para palavras. Essa cegueira

atacava-o sempre que queria falar da mulher. Mastigou o silêncio

como se fosse um fruto amargo. E assim se deixou ficar, imóvel e

vencido (p. 40-41).

Pelos pormenores concedidos, voltamo-nos ao ambiente que circunda

Imani, criando imaginariamente o percurso que a garota faz até chegar ao

local onde se encontra Katini. A impotência do homem frente à mulher fica

clara quando Imani relata que seu pai não encontra palavras para seguir a

frase que falava da mulher, fato recorrente sempre que tencionava falar

sobre ela; a falta de palavras era para Katini como “um fruto amargo” (p. 41)

que mastigava e deixava-se ser vencido pelo silêncio. Esse exemplo nos traz

ainda outros caminhos de interpretação, um deles se dá ao referir à mulher

o domínio da escrita, com a frase: “- Não é só você que escreve...” (p. 41),

quando Katini quer mostrar à filha que também sabe se expressar através da

escrita. Atitude que se confirma quando Chikazi esclarece a Imani que Katini

sente ciúmes das duas:

- Agora, vá buscar o seu pai. Ele sente ciúmes de nós. - Ciúmes?

- De mim, por não lhe dar toda a atenção; de si, porque foi educada pelos padres. Você pertence a um mundo onde ele nunca poderá entrar (p. 27, grifos do autor).

A incapacidade de pertencer ao mundo dos portugueses faz com que

Katini encaminhe dois de seus filhos – Imani e Mwanatu – para receber a

educação dos portugueses através das Missões na igreja, que se fazia em

67

Moçambique, educação essa que ele não tivera; porém, Katini ainda não

desistira de conhecer o idioma do colonizador, conforme relembra Imani o

dia que encontra seu pai a estudar uma “Cartilha para aprender a ler”:

Era quase meio-dia e o pai estava sentado com um livro aberto sobre

os joelhos. Na capa podia-se ler: Cartilha para Aprender a Ler. Havia

muito que eu tinha encontrado o manual entre as velharias deixadas

na igreja. Na altura, fiz questão de lho oferecer. Nunca nenhuma outra dádiva o emocionara tanto. Não havia dia que não passasse as

pontas dos dedos pelas páginas como se as tivesse acabado de criar. Em vez de palavras, disse ele, escuto música. E tamborilava com os

dedos sobre as páginas como se fossem teclas de uma marimba. - Pai, não está com medo dos VaNguni?

- Precisamos amedrontar quem nos quer causar medo. Essa é a razão por que ando a aprender com este livro.

Fechou o caderno com mil cuidados e, com igual esmero, guardou-o

numa sacola de pele. Depois suspirou profundamente (p. 90-91, grifos do autor).

Katini, um verdadeiro adorador da cultura portuguesa, achou na

cartilha uma forma de assemelhar-se aos colonizadores e aprender o idioma

português seria para ele uma das suas armas de combate no enfrentamento

com os invasores VaNguni. O culto à língua era tamanho que Katini tinha

por rotina passar os dedos pelas linhas do manual, que para Imani não

passava de uma velharia; guardava a cartilha com muito cuidado em uma

sacola de pele, induzindo-nos a pensar na importância que esse manual

tinha para Katini Nsambe. Outra pista de que Katini busca parecer-se com o

colonizador está no uso de botas, conforme mostrado no trecho anterior, em

que Imani identifica seu pai como o único a usar botas em toda a aldeia: “Os

meus pés decalcaram na areia as recentes pegadas do velho Katini. Quem

mais, na aldeia, usava botas?” (p. 40).

Anunciando que o ensino da língua portuguesa era restrito a apenas

alguns nativos, promovendo a não interação entre colonizador e colonizado,

mantendo esses dois polos distantes, a narrativa traz a questão do culto à

língua do colonizador, quando Imani, seu pai e sua mãe, visitam tia Rosi,

irmã de Chikazi. Tia Rosi que tem curiosidade e desejo de aprender a ler,

pede a Katini que a ensine:

68

[...] A tia tinha estendido no chão os papéis que havia recebido do

meu pai. Assim que o viu assomar, Rosi perguntou-lhe: - Explique como é que faz?

- Faz o quê?

- Como é que uma pessoa consegue ler? Eu queria tanto saber... - Isso demora a aprender, Rosi. - Eu vi como você faz. Você passa o dedo pelas linhas e vai mexendo os lábios. Já fiz o mesmo e não escuto nada. Explique-me qual é o segredo. Eu aprendo rápido.

O pai revirou os olhos e passeou as mãos sobre as folhas que jaziam na poeira. - Para ler esses papéis, Rosi, você precisa ficar parada. Completamente parada, os olhos, o corpo, a alma. Fica assim um tempo, como um caçador na emboscada.

Se permanecesse imóvel por um tempo, aconteceria o inverso daquilo

que ela esperava: as letras é que começariam a olhar para ela. E

iriam segredar-lhe histórias. Tudo aquilo parecem desenhos, mas dentro das letras estão vozes. Cada página é uma caixa infinita de

vozes. Ao lermos não somos o olho; somos o ouvido. E foi assim que

falou Katini Nsambe.

Rosi ajoelhou-se perante os papéis e permaneceu muito parada, à espera que as letras lhe falassem (p. 229, grifos do autor).

A explicação de Imani demonstra a sutileza de Katini ao perceber a

escrita portuguesa como a voz de várias vozes, essas que seriam ouvidas por

ele ou quem dedicasse sua atenção a isso. A sabedoria de Katini é expressa

por Imani ao inferir que seu pai havia notado que quando lemos, estamos na

verdade ouvindo esse outro: “Ao lermos não somos o olho; somos o ouvido”

(p. 229). E, ao conhecer o outro sabemos de suas intenções, talvez, essa seja

a razão pelo ensino da língua portuguesa ser restrita à apenas alguns

moçambicanos – para conseguir manter o controle sobre seus colonizados.

O desconforto causado pelo domínio da língua portuguesa pelo povo

nativo é visto na própria narrativa, na décima primeira carta de Germano,

em que o sargento incomoda-se ao ver Imani lendo e escrevendo como se

fosse portuguesa:

[...] A moça já não insiste com as aulas. De outras funções agora se ocupa: arruma, limpa, lava a roupa. Não devia, no entanto, ter

permitido que me arrumasse o quarto. É arriscado, a rapariga sabe

ler, pode-me ir aos papéis. Mas o mal, se é que existe, já está feito. E

não há dia em que Imani não me peça emprestados papéis, um

tinteiro e uma pena para escrever. Sentada na cozinha, rabisca não sei que manuscritos. Confesso-lhe que aquele é o único momento em

que não me dá prazer a sua presença. Acabei oferecendo-lhe uma

pena, um tinteiro e uma resma de folhas com a condição de que

fosse escrever longe, onde eu não a visse. Não sei por que razão me

causa impressão ver um preto escrever. Apraz-me que falem a nossa

69

língua com propriedade e sotaque. Contudo, sinto como uma invasão

o domínio que eles possam ter da escrita (p. 269).

O perigo está para Germano no fato de a garota ter conhecimento e

domínio da língua do colonizador, o que a aproxima dos portugueses,

quebrando a fronteira da comunicação, diálogo e culturas distintas. Dentre

os diversos conflitos abordados na narrativa Mulheres de cinzas – a saber:

pelo território e poder – destacam-se também conflitos como o de identidade,

místico e cultural, ocasionando uma (trans)formação na identidade desses

colonizados, os quais passaram a se assemelhar ao português colonizador,

através de seus hábitos, idioma, religião e cultura. E, desses enfrentamentos

entre impérios, surge o contato que dá origem ao afeto e aparece como uma

possibilidade de trégua nas guerras que devastavam Moçambique e sua

população.

3.1 As guerras políticas e pessoais

[...] fosse nos palcos de dança, fosse nos verdadeiros campos de batalha não se encontra um filho que seja

apenas nosso. Todos os que tombaram são nossos

filhos. As mães da minha terra trazem o luto de todas

as guerras.

(Mia Couto)

Moçambique, que durante muito tempo foi colônia de Portugal, tem

sua história marcada por diversas batalhas entre dois impérios: o africano,

representado pela grande maioria das tribos que se aliaram a Ngungunyane;

e o português, que tem além de seus poucos militares, outras poucas tribos

que apoiaram a Coroa portuguesa em solo africano.

A luta pelo poder, pelo espaço e pelo respeito faz com que surjam

diversas disputas e várias frentes de combate, resultando em várias batalhas

e milhões de mortes:

A nossa terra, porém, era disputada por dois pretensos proprietários:

os VaNguni e os portugueses. Era por isso que se odiavam tanto e

estavam em guerra: por serem tão parecidos nas suas intenções. O

exército dos VaNguni era bem mais numeroso e poderoso. E mais

fortes eram os seus espíritos, que mandavam nos dois lados da fronteira que rasgou a nossa terra ao meio. De um lado, o Império de

70

Gaza, dominado pelo chefe dos VaNguni, o imperador Ngungunyane.

De outro lado, as Terras da Coroa, onde governava um monarca que nenhum africano haveria nunca de conhecer: Dom Carlos I, o rei de

Portugal (p. 17).

Nesse trecho de Mulheres de cinzas averiguamos o retorno a um

passado histórico que perpassa as lembranças de Imani. Retrata o período

das guerras entre os portugueses e tribos africanas, tempo esse marcado por

sangrentas batalhas em busca do domínio das terras. Ainda podemos notar

as crenças culturais e religiosas apresentadas na fala da personagem,

caracterizando os VaNguni como mais poderosos devido as suas crenças; da

mesma forma, chama-nos a atenção o uso de recursos metafóricos para

indicar a divisão das fronteiras, essas que independente de quem era o

imperador, eram dominadas pelos mesmos espíritos que fortaleciam dos

VaNguni.

Imani conta que sua tribo VaChopi surgiu pela necessidade de manter

sua tradição, idioma, cultura e religião frente aos ataques sofridos pela tribo

VaNguni e por seu líder, Ngungunyane. Enquanto que as demais tribos

aliaram-se aos costumes do chefe africano:

Os outros povos, nossos vizinhos, moldaram-se à língua e aos

costumes dos invasores negros, esses que chegavam do sul. Nós, os

VaChopi, somos dos poucos que habitam as Terras da Coroa e que

se aliaram aos portugueses no conflito contra o Império de Gaza.

Somos poucos, murados pelo orgulho e cercados pelos kokholos, essas muralhas de madeiras que erguemos em redor das nossas

aldeias. Por razão desses abrigos, nosso lugar tornara-se tão

pequeno que até as pedras tinham nome. Em Nkokolani bebíamos

todos do mesmo poço, uma única gota de veneno bastaria para

matar a aldeia inteira (p. 17-18).

Este excerto demostra o conflito instaurado entre as tribos africanas

ao colonialismo português, criando uma diferenciação entre os próprios

moçambicanos; também, mostra uma aproximação da tribo VaChopi com os

portugueses e um distanciamento em relação às demais tribos, nesse caso

chamados de invasores, os reais nativos daquele solo. Imani tem consciência

das divergências, o que se reafirma com a designação dos nomes “vizinhos”,

remetendo não somente aos pertencentes do mesmo lugar, mas àqueles que

se aliaram ao império português; e às outras tribos de “invasores”, por serem

71

aliados ao líder africano, e em contravenção pela divisão instaurada em

Moçambique, repercutindo no povo moçambicano.

A narrativa aborda várias etnias existentes em África (leia-se

Moçambique, neste caso), das quais algumas se sobressaem, como por

exemplo, os VaChopi, tribo de onde vem Imani:

Meu avô tinha a minha idade quando as nossas terras foram pela

primeira vez invadidas. Não entendíamos por que motivo essa gente

nos tomava por bichos e apreciava mais o seus bois do que os povos

que submetiam. Não entendíamos por que razão roubavam o nosso gado, matavam a nossa gente e violavam as nossas mulheres.

Chamava-nos de tinxolo, as “cabeças”. Era assim que nos olhavam:

contados como escravos, descontados como bichos. A ferro e fogo,

fundaram um império que passou de avô para filho, de filho para

neto. E era agora este neto, o Ngungunyane, que nos voltava a punir.

A persistência da agressão criou mudanças na nossa gente. O facto é que sempre vivêramos dispersos e entretidos em pequenos conflitos

de vizinhança. Mas aquela ameaça uniu-nos numa única entidade.

Tornámo-nos VaChopi, os “do arco e da flecha”. Resistimos à invasão

dos VaNguni, mantivemos a nossa língua, a nossa cultura, os nossos

deuses. Pagámos caro essa teimosia. O preço para Tsangatelo foi perder-se da sua própria vida (p. 113).

Historicamente, os Chopes foram uma das etnias africanas que mais

resistiram ao domínio de Ngungunyane, que durante três gerações liderou o

império africano, e também o povo mais massacrado por esse imperador. Da

mesma forma, a tribo surge no romance aliada à coroa portuguesa, porém

não integralmente, conforme apresentado na fala de Musisi, tio de Imani,

quando decide procurar por Binguane, líder de outra tribo, frente à

desesperança de que seria protegido pelos portugueses:

[...] E sabem o que é que vou fazer? Vou pedir ajuda a um dos nossos. Amanhã vou falar com Binguane. - Binguane é um muchope? – perguntou o meu pai.

- Pelo menos ficamos entre nós, negros. Binguane habitava na vizinhança de Nkokolani. Era um temido chefe

militar que se opunha ferozmente às hostes VaNguni. Eu já o tinha

visto. Era um homem alto e possante, apesar da idade. Tal como eu, ele era um mestiço de Makwakwa e VaChopi (p. 164, grifos do autor).

Através da rememoração de Imani, o leitor toma conhecimento das

partes envolvidas na ‘guerra’, mimetizada pelo microcosmo da tribo de

Imani, e por extensão que seu país está a passar. Esse era um território de

muitas disputas e, por consequência, Moçambique foi sede de diversas

72

guerras pelo domínio do território. Conforme, podemos notar através da

epígrafe que abre essa subseção, em uma reflexão de Imani quando percebe

no abraço de sua mãe o peso da melancolia carregada pelas mães que

perderam seus filhos nas guerras.

O enfrentamento entre as forças combatentes aparece logo na primeira

carta de Germano, endereçada ao conselheiro José d’Almeida, configurando-

se como sendo o primeiro relatório do sargento, na qual prevê a impotência

de Portugal frente aos ataques das tribos africanas. Ao chegar em Lourenço

Marques, o sargento português hospeda-se na estalagem de Dona Bianca,

italiana que residia há bom tempo ali, e vivencia um verdadeiro massacre

provocado por landins, grupo de rebeldes contra a ocupação portuguesa:

Seja qual for a verdadeira explicação, o facto é que estreei da pior maneira a minha presença em África. Naquele terraço da estalagem,

a italiana fez-me ver em minutos aquilo de que eu já suspeitava: os

nossos domínios, que tão pomposamente chamamos de “Terras da

Coroa”, encontram-se votados ao desgoverno e à imoralidade. Na

maior parte desses territórios nunca nos fizemos realmente

presentes durante estes séculos. E nas terras onde marcámos presença foi ainda mais grave, pois quase sempre nos fizemos

representar por degredados e criminosos. Não existe, entre os nossos

oficiais, nenhuma crença de que sejamos capazes de derrotar

Gungunhane e o seu Estado de Gaza (p. 33-34).

Já em sua primeira carta-relatório ao Conselheiro José d’Almeida,

Germano de Melo deixa transparecer a incredulidade de domínio sob as

terras africanas colonizadas por Portugal, aqui representado por

Moçambique, afirmando que tais “Terras da Coroa” estavam fadadas ao

“desgoverno e à imoralidade”, salientando que os portugueses que

colonizavam as terras eram “degredados e criminosos”, fato esse que

agravava ainda mais o ato de colonização, pois esses deveriam representar

os interesses da Colônia. Germano revela o ruir do domínio que Portugal tem

sobre aquelas terras. De fato, a ocupação portuguesa em Moçambique era

tão frágil que o sargento português deixa clara a desesperança em dominar o

Estado de Gaza e vencer Ngungunyane, e em carta ao Conselheiro relata um

dos ataques dos Vátuas a Nkokolani:

73

O sentimento de culpa de que padeço não tem forma de ser descrito,

Excelência. Ontem houve um ataque a Nkokolani perpetrado pelos abomináveis Vátuas (não sei por que teimo em chama-los assim,

porque eles a si mesmo se designam como VaNgunis). Estes

facínoras mataram, queimaram, violaram. Antes do ataque mandei lá

Mwanatu, para investigar o motivo que levava os locais a

construírem aquelas enormes trincheiras. Não eram abrigos de combate. Eram esconderijos onde esperavam tornar-se invisíveis. O

estratagema não resultou. Os desgraçados foram surpreendidos e

não tiveram defesa contra a cobarde violência dos soldados de

Gungunhane.

Depois da invasão visitei a aldeia e os campos agrícolas mas não tive

coragem senão de olhar, num breve relance, a extensão desolada dessa planície coberta por cinzas que, de quando em quando,

esvoaçavam sem direção (p. 232-233).

O grupo de combatentes do Estado de Gaza era, notavelmente,

superior em quantidade de recrutas e a vitória para esse era certa, pois além

de numerosos, tem-se o registro de que não havia uma representação

promissora de Portugal nessas terras colonizadas, tornando-os vítimas de

sua ocupação. Por fim, a guerra não era apenas entre esses dois polos em

combate, pois havia tantas forças, quantos interesses e várias frentes de

lutas, que falar em uma única guerra torna-se impossível. Germano de Melo,

em seu desabafo, revela sentir-se culpado pela falta de posicionamento

frente ao ataque de Vátuas e por não garantir a segurança de seus aliados, e

revela todas as violências cometidas pelo grupo.

A relação conflituosa entre Portugal e Moçambique também se refletia

na vida dos moçambicanos tanto quanto aos portugueses que residiam no

país africano. De um lado o país colonizado, Moçambique, representado na

narrativa por Imani, de outro o país colonizador, Portugal, tendo como

representante o sargento Germano de Melo. As diferenças partiam desde o

idioma falado, cultura, religião, sem deixar de mencionar a cor da pele, que

em vários momentos fica evidente através dos conflitos entre moçambicanos

e portugueses. A questão pode ser observada no relato da chegada do

primeiro europeu em terras moçambicanas, contada por um mensageiro

enviado por Tsangatelo, avô de Imani, para entregar uma carta de para sua

neta. Na ocasião, Imani pede ao mensageiro porque seu avô quis sair das

terras ao sul, no litoral:

74

Tudo começou numa manhã solarenga da estação das chuvas do ano

de 1862. Até então nunca Tsangatelo havia visto um branco. O primeiro europeu surgiu-lhe montado num cavalo, que era um

animal que ele desconhecia. O cavalo era branco, bem mais pálido

que o montador. O cavalo e o cavaleiro compunham de tal modo uma

inteira silhueta que o avô pensou que se tratava de uma única

criatura. E foi com horror que se apercebeu da intenção do aparecido de se separar da sua metade inferior. O cavaleiro desmontou e

Tsangatelo Nsambe escutou um rasgar de carne e um despedaçar de

ossos. Fechou os olhos para se salvar da visão do sangue espichando

como de um pescoço de galinha. [...]

[...] em poucos segundos, um mar de gente juntou-se em redor do

aparecido. Com receio de ser engolido pela multidão, o estrangeiro voltou a empoleirar-se na sela. Queria ser visto num plano elevado,

como se olham os deuses: em contraluz, em recorte do céu. Do topo

do seu cavalo, o português condescendeu um olhar altivo à sua volta

como se pensasse: tanta gente e nenhuma pessoa!

Junto do cavaleiro alinharam-se mais dois portugueses, igualmente a cavalo. Os animais eram bem diversos, de distintos tamanhos e

cores. Mas os brancos eram iguais: rosto encoberto pelos chapéus de

abas largas, bigodes longos e revirados e os olhos inquietos e

esquivos [...] (p. 242-243).

Pela descrição da personagem, o primeiro português que surge em

Moçambique é visto pelo avô de Imani. Não bastasse o estranhamento devido

à diferença de cor de pele, Tsangatelo vê também pela primeira vez o cavalo,

e cavaleiro e animal são, para ele, uma única criatura e o ato de descer do

cavalo torna-se um horror ao moçambicano: “O cavaleiro desmontou e

Tsangatelo Nsambe escutou um rasgar de carne e um despedaçar de ossos.

Fechou os olhos para se salvar da visão do sangue espichando como de um

pescoço de galinha”, fazendo referência ao seu contexto da época. Logo,

surgem outros moçambicanos para ver aquelas criaturas desconhecidas. E é

quando surgem os outros dois portugueses que percebemos a criação de

uma imagem simbólica de portugueses: “Os animais eram bem diversos, de

distintos tamanhos e cores. Mas os brancos eram iguais: rosto encoberto

pelos chapéus de abas largas, bigodes longos e revirados e os olhos inquietos

e esquivos”, alimentando a concepção que tinham os moçambicanos frente

aos portugueses, que todos são brancos usavam chapéus de abas largas que

encobriam seus rostos, além de terem longos bigodes revirados e os olhos

inquietos e esquivos. Já pelo fato de querer o português ser visto “num plano

elevado, como se olham os deuses: em contraluz, em recorte do céu”, como

se fosse uma pintura, demonstra a ideia que tinham os portugueses de

serem superiores em relação aos negros. O trecho “Do topo do seu cavalo, o

75

português condescendeu um olhar altivo à sua volta como se pensasse:

tanta gente e nenhuma pessoa!” fortalece essa premissa.

O painel histórico em que se sucede a narrativa Mulheres de cinzas

está intimamente ligado ao contexto histórico “oficial”, citando lugares nos

quais ocorreram diversos dos fatos registrados tanto na história de

Moçambique quanto de Portugal, como é o caso de Lourenço Marques, hoje

Maputo, capital de Moçambique; e na nomeação das personagens, muitas

remetendo à figura de alguém já conhecido pelo discurso histórico, e que por

si só já estão vinculadas ao discurso literário, por serem suficientemente

ricas em características e simbolismos, como é o caso de Ngungunyane,

personagem central na história de Moçambique, que aparece na fala de

Dubula, irmão mais velho de Imani, com seu pai, Katini:

- Mais vale Ngungunyane do que um qualquer português.

E explicava: o monarca nguni era um imperador já sem império; os

brancos eram um império sem imperador. Um imperador termina quando morre; um império faz morada na nossa cabeça e permanece

vivo mesmo depois de desaparecer. Era do inferno e não do demónio

que nos deveríamos defender (p. 250).

Os conflitos entre as nações portuguesa e moçambicana estendiam-se

também na família de Imani, como observamos através da constituição

familiar de Imani, em que uma parcela de personagens subordina-se a

Portugal - seu pai, Katini, e seu irmão, Mwanatu -, enquanto que outra,

formada por sua mãe, Chikazi, e seu outro irmão, Dubula, apoia o império

africano. Imani que além de mediadora entre Portugal e Moçambique, torna-

se a fronteira de sua família entre os dois impérios, ficando nesse entremeio

de escolhas:

Os meus irmãos eram a metade do mundo que me restava. Mas eles viviam agora longe do nosso lar. E por isso a casa tinha sido rasgada

ao meio. A mãe sonhava com o mar. Eu sonhava que os meus irmãos

regressavam. De noite acordava chamando pelos seus nomes:

Dubula e Mwanatu. Sentada no escuro, desfilavam por mim os

tempos em que foram meninos e partilhavam o nosso espaço (p. 49).

Dizer que “a casa tinha sido rasgada ao meio” significa na vida de

Imani a separação familiar, pois sua mãe desejava regressar à sua terra

76

natal, no litoral, terras dominadas por Ngungunyane, mesmo lado escolhido

por Dubula; enquanto seu pai e Mwanatu escolheram apoiar o império de

Portugal. E dessa divisão surgem enfrentamentos entre os familiares,

conforme observamos em uma discussão entre Dubula e Katini:

Vezes sem conta pedíamos a Dubula contenção na declarada

simpatia pelo ocupante. O cunhado Musisi não aceitaria esses

delírios. Em desespero de causa, o meu velho insistia, perguntando: - E se, no final desta guerra entre invasores, ganharem os VaNguni? Que diferença faz para nós?

- Se ganharem os VaNguni, eu sempre poderei ser alguém. Que

pessoas seremos se ganharem os portugueses?

Nós que víssemos, disse ele, o exemplo de Maguiguane, o chefe militar de Ngungunyane. Ele não era um nguni, mas tinha sido aceite

e promovido. E prosseguiu, em desafio: no exército lusitano, havia

um único chefe preto? Morreram milhares de negros lutando do lado dos portugueses. Alguma vez se viu uma homenagem, uma

recompensa aos africanos que tombaram? Só o nosso irmão

Mwanatu, que nascera tonto, é que ainda acreditava ter ganho o

respeito dos brancos. Tudo isso falou, empolgado, o mano Dubula (p.

251).

No decorrer desse trecho encontramos uma vez mais a função de

Imani entre os dois impérios: intermediar uma relação. A moça chega a

conclusão de que ela era quem conhecia os argumentos tanto do pai quanto

do irmão, servindo como uma espécie de conciliadora entre pai e filho:

Quando um pai e um filho discutem o verdadeiro motivo da disputa,

é sempre um outro, uma querela mais antiga que as palavras. Eu já

conhecia o desfecho dos argumentos, de um e de outro lado. E era o meu pai quem sempre fechava a querela: - Para mim não interessa a cor da cobra. O veneno que nos mata é sempre o mesmo (p. 251).

As diferenças entre as fronteiras e entre seus familiares no tocante aos

impérios escolhidos para defender, ou melhor, para se proteger, avançam

pelas diferentes personalidades de seus dois irmãos:

As diferenças entre os meus dois irmãos traduziam os dois lados da

fronteira que separava toda a nossa família. Os tempos eram duros e

pediam-nos que escolhêssemos fidelidades. Dubula, o mais velho,

não precisou escolher. A vida escolheu por ele. Ainda menino,

obedeceu aos rituais de iniciação, de acordo com as antigas tradições. Com seis anos foi levado para a mata, onde foi

circuncidado e instruído em assuntos de sexo e de mulheres.

Durante semanas dormiu na floresta, todo coberto com molhos de

77

capim, para que não fosse reconhecido nem por vivos nem por

mortos. Todos as madrugadas a mãe levava-lhe comida, mas não entrava na mata onde os iniciados se concentravam. A desgraça

eterna tombaria sobre a mulher que atravessasse aquele proibido

território.

[...]

Já Mwanatu, o mais novo, foi educado nas letras e nos números. Os rituais que teve foram o dos brancos: católicos e lusitanos. A nossa

mãe alertava: A alma que lhe deram já não se sentava no chão. A

língua que aprendera não era um modo de falar. Eram uma maneira

de pensar, viver e sonhar. E nisso éramos parecidos, eu e ele. Os

receios da nossa mãe eram claros: de tanto comer a língua

portuguesa, não teríamos boca para qualquer outra fala. E seríamos ambos devorados por essa boca (p. 50-51).

Nas reflexões de Imani, a escolha de Dubula em ficar ao lado do

imperador africano, tem relação com a escolha de seu nome e ao

direcionamento dado para a criação de Dubula, que levou em conta a

tradição da tribo:

Desde cedo Dubula se mostrou inteligente e expedito. Deram-lhe um nome zulu e essa escolha já dizia do seu estranho fascínio pelos

invasores VaNguni. Dubula quer dizer “disparo de arma”. Meu pai

deu-lhe esse nome porque, no parto desse filho e já cansado da

espera, empunhou a velha carabina e disparou sobre o teto da casa.

Foi com os nervos, desculpou-se depois. Na verdade, foi aquele

petardo que apressou o parto da criança. Dubula foi fruto de um susto, de uma faísca. Ele era como a chuva, filho de um trovão (p.

49).

Enquanto que Mwanatu foi enviado para a escola das missões e como

Imani recebeu os ensinamentos dos portugueses:

Em oposição, Mwanatu, o mais novo, era lerdo e incapaz. Desde

criança que vivia fascinado pelos portugueses. Essa simpatia fora

encorajada pelo nosso pai, que, ainda com tenra idade, o enviou para

a catequese. E ficou, junto comigo, internado na Missão. Quando

regressou, Mwanatu foi trabalhar como ajudante do sargento Germano, continuando a função que já cumpria com o cantineiro.

Residia no quartel, noite e dia, sem nunca mais nos visitar. Fazia as

vezes de sentinela, fingindo vigiar a porta do português. Tinham-lhe

oferecido um velho casacão militar e um boné de cipaio. Ele adorava

o fardamento, sem entender que aquela encenação era uma fonte de

diversão dos portugueses que por ali passavam. Mwanatu era um esboço de pessoa, uma caricatura de soldado. Dava pena aquele seu

empenho: nunca ninguém levara um afazer tão a sério. Em

contrapartida, nunca antes ninguém fora presenteado com tanta

chacota.

Mais do que ao uniforme, estava preso a uma promessa: a de embarcar um dia para Lisboa e ali ingressar numa Escola do

Exército. Essa viagem era por ele vivida como regresso. Voltava para

78

junto dos “seus”. A lealdade de Mwanatu para com a Coroa

portuguesa envergonhava a nossa família. Com exceção de meu pai, que tinha outro parecer: enquanto estivéssemos sob a proteção da

Coroa lusitana, aquela fidelidade, fosse ela verdade ou fingimento,

dava-nos imenso jeito (p. 50).

Mwanatu cresceu com a esperança de um dia servir ao exército dos

portugueses; porém, no entendimento de Imani, ele não passava de “uma

fonte de diversão dos portugueses que por ali passavam”, pois “era um

esboço de pessoa, uma caricatura de soldado”, porém com tamanha

dedicação que “Dava pena aquele seu empenho: nunca ninguém levara um

afazer tão a sério” (p. 50). Imani revela que ainda que Mwanatu tenha

dedicado seu trabalho ao exército português, recebera em agradecimento

todo tipo de zombaria, apontando para um despropósito e falta de

reconhecimento dos militares para com seu irmão mais novo e também para

com todos os demais moçambicanos. Após a morte de Chikazi, Mwanatu

volta para a casa de seu pai e começa a se transformar:

[...] Desde o seu regresso a casa um sonho o assaltava todas as

noites. Nesse sonho sucedia o seguinte: do topo da árvore onde se enforcara, a nossa mãe ordenava que se desfizesse da espingarda. E

que nunca mais se fizesse passar por cipaio dos portugueses [...].

Ele tinha muitas pessoas brigando dentro dele: um cabo e um Kabweni, um negro e um branco, um cristão e um pagão. Como

tornar-se uma só criatura? Como voltar a ser apenas o seu filho?

Ao descer o vale do Inharrime, o passo do meu irmão era vago e titubeante, revelador de todas essas inquietações. Bruscamente,

porém, mudou de direção e encaminhou-se para o quartel. Ia falar

com o sargento Germano antes de executar a sua promessa. Apesar

de ter abandonado o serviço de sentinela, não perdera a disciplina de

soldado. E precisava de uma bênção para tamanha desobediência.

[...] - Já te esqueceste de que essa arma te foi dada para matares os inimigos de Deus e de Portugal?

- Acho que não.

- Achas? Pois eu, se fosse a ti, devolvia a carabina. Aliás, devias ter feito isso assim que deixaste de ser sentinela. E vais devolver a arma e a farda, essa farda que ainda tens no corpo. Armas, munições e tu próprio pertencem à Coroa portuguesa. - Se não enterrar a arma, o que vou dizer à minha mãe quando ela me visitar nos sonhos?

- Diz-lhe qualquer coisa. Mente, diz que enterraste o raio da espingarda. Ela nunca irá confirmar a tua versão.

- Não fale assim da minha mãe! Não fale...

Mwanatu retirou-se, torcendo as mãos como se fossem panos. E o

português pela primeira vez teve medo do retardado sentinela. Passou-lhe pela cabeça que Mwanatu tinha sofrido de uma grave

regressão: voltara a ser preto. E, como preto que voltara a ser, não

merecia confiança. O sargento agravou ainda mais a sua

79

desconfiança: e se a arma do moço fosse capaz de matar? Seria

preferível, pois, que dela se desfizesse. E autorizou o enterro da Martini-Henry, com fingido remorso [...] (p. 293-296).

Imani percebe que Mwanatu estava mudado. Mwanatu volta para a

casa da família e já não era mais nem o rapaz que servia à Coroa portuguesa

e nem mesmo um chope, estava feito pelas duas metades. Mas, como se

precisasse acertar contas com ele mesmo, volta a firmar suas raízes

moçambicanas após retornar a casa. Essa procura por sua identidade negra

aparece quando Imani refere-se ao fato de que ele “reganhava raízes”,

fazendo com que Mwanatu aos poucos retomasse seu eu moçambicano: “Ele

tinha muitas pessoas brigando dentro dele: um cabo e um Kabweni, um

negro e um branco, um cristão e um pagão. Como tornar-se uma só

criatura? Como voltar a ser apenas o seu filho?” (p. 294). Os conflitos

identitários também circundam Imani e, nesse caso, podemos deduzir que os

nativos que receberam a educação lusitana passam por essas indagações

sobre sua identidade, em meio a tantas informações culturais, educacionais,

religiosas.

O diálogo de Mwanatu com o sargento Germano, transcrito por Imani,

ocorre justamente quando seu irmão regressa as suas raízes moçambicanas,

quando, talvez, tenha encontrado sua verdadeira identidade. E nesse

instante deixa o sargento com medo, pois como negro não inspirava

confiança: “Passou-lhe pela cabeça que Mwanatu tinha sofrido de uma grave

regressão: voltara a ser preto. E, como preto que voltara a ser, não merecia

confiança” (p. 295-296).

As diferenças entre Portugal e Moçambique dão-se, também, de forma

cultural, religiosa e simbólica, configurando-se como outro conflito

vivenciado pelos habitantes dessas terras colonizadas. Citamos uma

conversa entre o tio de Imani, Musisi, e o sargento Germano que, após o

enterro de Chikazi, colocou uma cruz de ferro sobre a sepultura e convidou

os presentes para fazer uma oração. Em oposição à atitude do sargento,

Musisi arranca a cruz e pronuncia palavras no idioma local, txitxope, e conta

com o auxílio de Imani para traduzir sua fala para a língua do sargento:

80

- Eu pergunto, senhor sargento, sendo esse seu Deus o Pai de todos nós e criador de todos os idiomas, será que Ele só entende português? E você, sobrinha, não se limite a traduzir. Diga-lhe como fazemos nós, os pretos. Ou já esqueceu da sua raça, Imani Nsambe?

A minha raça?, perguntei-me, em silêncio. Naquele momento entendi

que a minha tristeza era grande, mas que eu já era órfã antes. Esse

desamparo não era apenas meu, mas de todos os meus irmãos

negros. Essa orfandade não precisa que haja morte. Começa antes mesmo de nascermos.

Debrucei-me sobre a areia onde havia tombado o crucifixo e voltei a

colocá-lo sobre a sepultura da nossa mãe. E lembrei as suas

palavras, nesse seu jeito tão doce de falar: não são os mortos que

pesam. São os que não param nunca de morrer (p. 283).

Após o enterro de Chikazi, percebemos o conflito cultural instaurado

entre Portugal e Moçambique: o primeiro, ao tentar reproduzir sua tradição

cultural e religiosa; o segundo, ao se impor e rejeitar essa invasão. Imani,

além de tradutora e intérprete, é uma espécie de ponte entre as duas

culturas, africana e portuguesa, e por sua proximidade com ambas entra em

um conflito pessoal em relação a sua identidade - já não sabe ela a qual raça

pertence, conforme expressa seu pensamento: “A minha raça?” e seguindo

com sua reflexão a respeito da influência que a presença do colonizador

provoca nos colonizados: “Esse desamparo não era apenas meu, mas de

todos os meus irmãos negros. Essa orfandade não precisa que haja morte.

Começa antes mesmo de nascermos” (p. 283).

Ainda, observamos, por meio de outra reflexão de Imani, o conflito em

relação ao idioma estrangeiro:

Os erros de pronúncia da italiana faziam a língua portuguesa ser

mais doce. Abria as vogais das palavras, arredondava as arestas das consoantes. Certamente ela reprovaria nos exames do padre Rudolfo.

Estava ali patente essa dualidade de critérios. Os brancos podem

falar de variados modos: diz-se que têm sotaques. Só a nós, negros,

não é permitido outro sotaque. Não basta falarmos a língua dos

outros. Temos, que, nesse outro idioma, deixar de sermos nós. (p.

340-341)

Esse raciocínio advém após Bianca, uma italiana residente em

Moçambique, proferir palavras portuguesas com erros de pronúncia, o que

não era permitido aos negros e tais erros os fariam reprovar nos exames do

padre Rudolfo, o educador das missões. Esse pensamento é antecipado pela

fala de Germano de Melo, que diz o seguinte: “Gosto do teu sotaque, Bianca,

81

continua a falar, não pares de me falar” (p. 340), somando-se as diferenças

entre os idiomas e suas extensões.

Dentre todos os conflitos apresentados pelo romance Mulheres de

cinzas, percebemos que um se manifesta em todas as personagens da trama:

o conflito pessoal/identitário. Imani, em diversas reflexões, pega-se a pensar

em quem é realmente, como por exemplo, quando ela é interpelada por seu

tio Musisi, o qual se servia da ajuda de Imani como intérprete para

transmitir uma mensagem ao sargento Germano:

- Eu pergunto, senhor sargento, sendo esse seu Deus o Pai de todos nós e criador de todos os idiomas, será que Ele só entende português? E você, sobrinha, não se limite a traduzir. Diga-lhe como fazemos nós, os pretos. Ou já se esqueceu da sua raça, Imani Nsambe? A minha raça?, perguntei-me, em silêncio. Naquele momento entendi

que a minha tristeza era grande, mas que eu já era órfã antes. Esse

desamparo não era apenas meu, mas de todos os meus irmãos

negros. Essa orfandade não precisa que haja morte. Começa antes mesmo de nascermos (p. 283).

Imani encontra nesse questionamento um gatilho para refletir sobre si,

sua raça, associando a condição de sua nação, seus compatriotas que, antes

mesmo do nascimento, já estavam condicionados a serem órfãos de seu país,

sendo impositivamente agregados ao seu colonizador – Portugal – e a sua

cultura, idioma, religião etc. E por Imani ser essa mistura de identidades,

idioma e culturas, o próprio sargento Germano de Melo esquece que está

diante de uma moçambicana, conforme expresso em sua exclamação: “-

Finalmente, vejo que és africana! Por um momento cheguei a acreditar que

eras portuguesa (p. 159, grifos do autor)”. Essa fala ocorre no momento em

que Imani e Germano escutam Katini ensaiando uma nova composição em

um instrumento musical, chamado marimba. A garota deixa-se tomar conta

pela vontade de acompanhar aquela música através do balanço de seu corpo

e faz Germano perceber que apesar de todos os ensinamentos lusitanos que

Imani recebeu, ela ainda conserva em si uma porção de africanidade.

O conflito identitário reflete-se também na caracterização das

personagens, como em suas vestimentas:

82

Todos neste mundo vivem num único lugar e num irrepetível tempo.

Todos, menos nós, os de Nkokolani. Como os morcegos da lenda, nós morávamos numa encruzilhada de mundos. Uma invisível e

insuperável fronteira atravessava a nossa alma.

Essa duplicidade iria ser provada na manhã em que o tio Musisi

despertou mais cedo do que era de costume, amarrou na cintura o

mais solene dos panos e, sobre o tronco nu, ajustou o casaco que o pai lhe enviara das minas.

O seu corpo recebia assim trajes de dois mundos. [...] Ia visitar

Binguane, com a intenção de requerer aquilo que recusara pedir aos

portugueses: proteção contra os guerreiros de Ngungunyane (p. 174).

Imani, ao relembrar o momento em que seu tio Musisi, recusando-se

pedir ajuda e proteção para os portugueses, vai até uma tribo vizinha,

conversar com o chefe da tribo, faz de sua descrição a extensão do conflito

entre forças, mas também entre identidades e culturas; entretanto, Musisi

compõe-se pelos dois lados em guerra e a divisão entre esses mundos

atravessava-os além de suas fronteiras territoriais, afetava-os em sua

essência. E ainda que Musisi recusasse solicitar a ajuda dos portugueses,

estava ele compondo-se de artifícios europeus, o que vem a casar com a

reflexão de Imani, em um ato de rememoração:

Hoje penso que a nossa mãe estava certa nos seus receios. Onde o filho via palavras, ela via formigas. E sonhava que essas formigas

emergiam das páginas e mastigavam os olhos de quem lia (p. 51-52).

Imani percebe que o receio de sua mãe fazia sentido, ao referir-se à

educação lusitana aos seus filhos. O ensino destinado a Imani e Mwanatu

era, para ela, como formigas que invadem e consomem os olhos e a mente de

quem as vislumbra, como se os tornassem alienados a sua cultura, ensino e

identidade.

Além de conflitos, a narrativa nos apresenta o afeto que surge da

relação entre Imani e Germano, dois seres distintos, representantes de

diferentes nações, em diferentes situações: Moçambique – o colonizado –

Portugal – o colonizador. As pistas indicam que dessa relação algo está por

surgir...

83

3.2 O afeto e as cinzas: sempre Imani

- Gosto de Cinza – disse eu. – Faz-me lembrar anjos, não sei porquê.

- Dei-lhe esse nome para a proteger. Quando se é cinza nada nos pode doer.

Os homens bem me poderiam espancar. Ninguém haveria nunca de me magoar. Era essa a intenção

daquele batismo.

(Mia Couto)

Utilizamos esse diálogo entre Imani e sua mãe, Chikazi, como abertura

de seção, pois entendemos ser um trecho importante na configuração da

trama. Chikazi é descendente de uma família em que as mulheres sofrem

com a violência doméstica, como podemos ver no diálogo entre mãe e filha: “-

A sua mãe também era espancada? / - A avó, a bisavó e a trisavó. É assim

desde que a mulher é mulher. Prepare-se para ser espancada você também (p.

26). Porém, Chikazi sofre de uma doença congênita: “A enfermidade era

congénita: Chikazi Makwakwa não sentia dor. [...] Apenas eu sabia que era

uma deficiência de nascença” (p. 26). Ckikazi queria que Imani, como ela,

não sentisse dor, mas além de tudo, queria que sua filha fosse indistinta,

como as cinzas. Pois “num país assombrado pela guerra dos homens, a

única saída para um mulher é passar despercebida, como se fosse feita de

sombras ou de cinzas” (APRESENTAÇÃO...).

Imani foi educada com base nos princípios portugueses, aprendeu o

idioma do colonizador e o dominava como se fosse nativa da língua, fato que

a faz servir de intérprete ao sargento português, Germano de Melo, conforme

a moça se apresenta ao militar: - Sou Imani, patrão – anunciei-me, numa

desajeitada vénia. – O meu pai mandou-me aqui para o ajudar no que fosse

preciso (p. 62-63, grifos do autor). Fato que proporcionou a aproximação

entre Imani e Germano, pois ninguém mais, além da garota e seu irmão,

Mwanatu, conheciam e dominavam o idioma europeu, tanto quanto sua

língua local.

Outra razão para Imani ser orientada no contato com o português é

que pertencia a uma tribo que apoiava Portugal; e o fascínio pelos

portugueses é de família: inicia com seu avô, Tsangatelo, passando para seu

pai, Katini, e seu irmão, Mwanatu. É na família de Imani que Germano

84

encontra um pouco de Portugal, como observamos em sua segunda

correspondência ao seu conselheiro José d’Almeida:

Mesmo a fechar: disseram-me que há em Nkokolani uma família de

chopes que nos é aficionada e que é totalmente dedicada à nossa

peleja contra o diabo do Gungunhane. Dizem ainda que o chefe dessa família cristã já colocou à minha disposição um filho e uma

filha, ambos falantes do português e educados nos nossos preceitos

lusitanos. Dou graças a Deus por essa providencial ajuda (p. 60).

Com todo envolvimento que passara a ter com a educação, cultura e

idioma do colonizador, Imani vive um conflito identitário, apresentado em

diversos trechos da narrativa pelos seus questionamentos sobre si e em

relação a sua nação, alertando para uma possível generalização da

insegurança quanto à identidade que possui: moçambicana ou portuguesa?

E o preço que Imani pagava por pertencer a esses dois mundos era

alto. Além de suas confusões em relação a si, surgiam-lhe cobranças em

relação a sua condição de mulher moçambicana que era. Como, por

exemplo, na confissão de um sonho recorrente que a assombrava, o de estar

grávida e ser mãe:

Depois entendi: não era um sonho. Era uma visita dos meus entes

passados. Traziam um recado: alertavam-me que eu, com os meus quinze anos, já tardava em ser mãe. Todas as meninas na minha

idade, em Nkokolani, já haviam engravidado. Apenas eu parecia

condenada a um destino seco. Afinal, não era apenas uma mulher

sem nome. Era um nome sem pessoa. Um desembrulho. Vazio como

o meu ventre. (p. 19)

Por ter já quinze anos, Imani já estava atrasada em cumprir com seu

destino de procriar, pois as demais garotas todas já cumpriam esse dever.

Imani associa seu nome – quem é? na língua nativa –à sua condição

existencial. Esse temor convertia-se em fato quando ao retornar para sua

casa, Imani encontra Chikazi no quintal, a sua espera, para contar-lhe que a

mãe de sua melhor amiga havia estado ali, em visita:

A mãe aguardava por mim no quintal. Disse-me que tinha acabado

de sair daqui a sua comadre, mãe de Ndzila, a minha maior amiga de

infância. Fizéramos juntas a escola na Missão. - Ndzila está aqui? – perguntei entusiasmada.

85

A resposta demorou. As palavras foram encolhidas e amaciadas para

não me magoar. - Chegou ontem. Mas o pai dela mandou-a de volta para Chicomo. Não a quer cá. - Por minha causa? - Você é uma má companhia, é o que ele diz. Para esta aldeia, minha filha, você merece grandes suspeitas. O seu destino é ficar solitária, solteira e sem filhos. Agradeça isso ao seu pai.

Era o preço por me ter entregue ao mundo dos portugueses. A

hipótese de rever Ndzila tornou presente algo que fazia por ignorar.

Eu não tinha, em Nkokolani, amigo ou amiga. Mais grave ainda: não

tinha sequer desejo de ter amigos.

A mãe entendeu a minha tristeza e sentou-se ao meu lado. Não me tocou, não me olhou. Como se falasse sozinha foi dizendo: Eu era

mulher e as mulheres de Nkokolani devem pertencer a alguém para

deixarem de ser ninguém. É por isso que às moças solteiras se atribui o nome de lamu, palavra que significa “aquela que espera”. É

um modo de dizer que seremos pessoas apenas depois de sermos

esposas. - Não perca a esperança, filha. Você ainda não deixou de ser uma

lamu.

A certeza daquela condenação era o melhor consolo que a minha mãe me podia oferecer (p. 204-205, grifos do autor).

Chikazi sabia dos empecilhos que Imani enfrentava por pertencer a

duas nações distintas, o que faz com que a garota fique ainda mais isolada

em relação aos demais moçambicanos, pois não inspirava confiança e

ninguém se aproximava dela por ser tão próxima aos portugueses, julgando-

a como má companhia.

Germano de Melo percebe-se abandonado em solo africano, aferindo

um possível desinteresse do império português para com as terras sob seu

domínio e, por extensão, pelo sargento degredado. A respeito do isolamento

conferido ao sargento português, encontramos em duas de suas

correspondências, a primeira correspondência ao Conselheiro José

d’Almeida, datada em 21 de novembro de 1894, reclamando o abandono da

Coroa portuguesa em solo moçambicano:

[...] Do nosso rei e de outras eminências lisboetas não chega uma

palavra de conforto. Pobre reino o nosso que não reina nem aqui nem em Portugal. Pobre Portugal.

Desculpe, Excelência, por este longo e triste desfile de confissões que

são de ordem pessoal. Creio que entenderá que vejo em Vossa

Excelência a figura tutelar de um pai que, confesso, sempre me

faltou. (p. 36-37)

86

Num segundo momento, na carta de 12 de janeiro de 1895, também

endereçada ao Conselheiro José d’Almeida, o seguinte:

Não é apenas o estado decrépito do aquartelamento que tão

intensamente me perturba. Confesso, Senhor Conselheiro, a minha

surpresa em ver tão despovoadas de obras e de gente europeias todas estas extensas regiões. Ingenuamente, mantinha uma ideia

bem diversa sobre a colónia de Moçambique. Pensava que

reinávamos, de facto, nos nossos territórios. Afinal, a nossa presença

limita-se, desde há séculos, à foz de uns poucos rios, que prestam

serviços de aguadas. A triste realidade pode ser assim descrita: não

há senão cafres e baneanes neste imenso sertão. Os raros sinais da nossa presença são adulterados graças a pessoas da laia do

cantineiro (p. 78-79).

Germano de Melo estava encarregado de assegurar os domínios de

Portugal sob aquela região, porém mais luta pela sua sobrevivência do que

pela guarda do território. Entretanto, infere ser um degradado ao invés de

um militar, e oferece indícios de que um novo país está para surgir, o qual

seria sua pátria:

[...] Não me posso queixar do que me coube por pena, perante o veredito destinado à maioria dos revoltados, encarcerados com penas

de ilimitada duração. No meu caso, decidiram pela deportação para o

remoto sertão de Inhambane. Atuaram na esperança de que ali

encontrasse uma prisão sem grades e, por isso, mais asfixiante que

qualquer outro cárcere. Tiveram, todavia, a prudência de me confiar uma falsa missão militar. A italiana está coberta de razão: dentro

desta farda não está um soldado. Está um degredado que, apesar de

tudo, aceita o encargo dos seus deveres. Não tenho, porém, nenhum

ensejo de dar a vida por este Portugal mesquinho e envelhecido. Por

este Portugal que me fez sair de Portugal. A minha pátria é outra e

ela está ainda por nascer. Sei o quanto estes desabafos ultrapassam o tom que devia nortear este relatório. Mas espero que Vossa

Excelência entenda a absoluta solidão em que me encontro e como

esse isolamento me começa a roubar a capacidade de discernir (p.

35-36).

Germano começa a se inquietar com essa reflexão, pois mais do que

salvar a pátria, terá que salvar antes a si, além do que o sargento sofre com

a solidão e abandono por parte da coroa portuguesa, em Nkokolani, o que

afeta suas ações e pensamentos. Em Nkokolani, a pessoa mais próxima a ele

é Imani, a quem se afeiçoa, uma vez que ela é a sua companhia de todas as

horas e, também, é ela a intermediária entre a sua cultura e a dele, o que o

faz sentir-se menos solitário em terras estrangeiras. Por meio da relação que

87

se estabelece entre os dois, Imani e Germano, o ‘conflito’ cultural e político

ganha espaço.

Por causa da solidão do português e do conhecimento de Imani da

língua do colonizador surge, entre eles, o afeto, e esse sentimento é

recíproco. Imani era a pessoa mais próxima de Germano, conhecedora

exímia da língua e da cultura de Portugal, o que propiciou a aproximação,

cada vez maior entre os dois. Dada a ausência de outros portugueses no

local, o sargento torna-se um estrangeiro isolado de suas tradições, língua e,

principalmente, isolado de sua nação; e é em Imani que ele encontra a

interlocução necessária para dividir suas angústias e suprir o abandono:

O português estava perturbado, percebia-se pela rouquidão com que se expressou. Fez uma pausa e pousou em mim o azul dos olhos

para me interpelar de modo quase agressivo: Vens por causa das

aulas? Pois acabaram as aulas. - Acabaram? - Continua a visitar-me, mas não me ensines nada. Que eu vim para este fim de mundo para esquecer que existem línguas. Esquecer que existem pessoas, esquecer que tenho um nome...

E estendeu os braços sobre a mesa como se abraçasse o mapa. Assim derramado, repetiu: eu quero é esquecer. Avancei uns passos e

murmurei, a medo: - Posso pedir uma coisa? - O que queres tu? - Posso tocar no seu cabelo?

Sorriu e inclinou a cabeça. A minha mão deixou de ser minha e

apoiou-se no primeiro ombro dele para depois se perder na sua

espessa cabeleira. O português não deve ter percebido o meu pedido.

Movia-me apenas a curiosidade de tocar aqueles cabelos tão diversos dos nossos [...] (p. 193-194, grifos do autor).

Germano de Melo, pelas palavras de Imani, tinha olhos tão claros que

quase causaria uma cegueira. Vejamos a fala de Imani ao receber o sargento:

Relembro o dia em que o sargento Germano de Melo chegou a Nkokolani. [...] Aproximei-me, na altura, curiosa. O sargento

pareceu-me mais alto do que era, acrescentado de tamanho pelas

botas cheias de lama. O que mais notei foi a sombra que lhe toldava

o rosto. Os olhos eram claros, de uma cor quase cega. Uma nuvem

de tristeza, porém, lhe ensombrava o olhar (p. 62).

Nessa confissão de Imani fica evidente um paradoxo, elaborado pela

garota, para descrever o sargento que chegava em Nkokolani. Ao passo em

que ela percebe em Germano uma sombra que lhe cercava o rosto e uma

88

nuvem de tristeza que deixava seu olhar sombrio, ele tinha os olhos tão

claros, de uma cor quase cega. Sua descrição de Germano nos proporciona

pensar na sombra como uma consequência de uma luz e na presença e

ausência de cores: sombra/sombrio versus uma cor/luz que é intensa a

ponto de ofuscar o olhar.

Imani tornou-se, assim, muito mais que intérprete, ela era o elo entre

duas culturas distintas. Imani surpreende o sargento português com seu

domínio da língua portuguesa, e é questionada por ele sobre sua educação

lusitana: “És tu a tal moça? E que bem que falas português, a pronúncia

corretíssima! Deus seja louvado! E onde é que aprendeste? – Foi o senhor

padre que me ensinou. Vivi na missão, na praia de Makomani, durante anos”

responde Imani (p. 63, grifos do autor).

O que ocasiona a aproximação entre o sargento português e a

moçambicana está acima das obrigações de intérprete, pois se trata de um

sentimento afetuoso que os une - Germano de Melo vivia em completo

abandono e Imani era a pessoa mais próxima dele e o entendia como

ninguém. Percebemos na décima carta de Germano de Melo a revelação da

importância que Imani na vida do sargento:

No preciso momento em que redijo esta carta vou sendo atacado por

uma nostalgia que me paralisa. E é deitado que lhe escrevo, e será

por causa dessa posição que a minha tão louvada caligrafia se

converte nestes atabalhoados gatafunhos. É este torpor, Excelência,

que me tem incapacitado para uma missão que, no princípio,

pensava não entender e agora suspeito que nunca chegou a existir. Eis o que fui descobrindo: as aranhas que, logo no primeiro dia,

observei sobre a mesa sempre estiveram dentro de mim. E dentro de

mim fabricaram uma teia que me tolda não apenas os movimentos

mas toda a minha vida.

Dos rolos de sisal, dos panos velhos, das paredes da casa, de tudo isso fabriquei a minha teia. E fiquei aprisionado na esperança de que

este falso quartel fosse meu, fosse português, fosse a minha casa.

Não fui capaz. Uma criatura maior devorou a aranha e a teia. Essa

criatura chama-se África. Nenhuma parede, nenhuma fortaleza

poderia deter essa criatura. E ali estava ela entrando pelas frestas,

na forma de música de marimbas e vozes e choros de crianças. Ali estava transformada em raízes que cresciam entre as rachas dos

tijolos. Ali estava ela residindo nos meus sonhos, invadindo a minha

vida na forma de uma mulher. Imani (p. 236-237).

Junto à declaração de afeto por Imani, encontramos a generalização

desse sentimento do português Germano pela África, solo que fez sua casa,

89

familiarizando-se mais a esse chão do que ao deixado em Portugal, devido a

interferência de Imani. Através da moçambicana, o sargento toma

conhecimento das guerras pessoais daquela gente e, mesmo que aquele

território pertencesse a Portugal, nada seria suficiente para deter as forças

da África:

[...] O que ele fez foi levantar os braços e encher a concha das mãos

com os meus seios. E aconteceu o seguinte: os botões saltaram da

blusa e rodaram tontos pelo soalho. Depois cada um desses

pequenos botões se retorceu e se encarquilhou como se estivesse derretendo diante de um fogo invisível.

E o português persistiu nos seus corporais intentos. Quis resistir,

morder-lhe o braço, atacá-lo com toda a fúria. Mas deixei-me ficar,

parada, na educada submissão de mulher. Naquele momento,

confesso, um estranho torpor me entonteceu: pela primeira vez senti

o meu coração batendo em outro corpo. Os dedos do sargento acariciaram-me os mamilos como se fossem botões feitos de carne. E

demorei-me assim, adiando o propósito de me afastar. - O meu pai deve estar a chegar, vim aqui apenas para o prevenir da visita.

Bruscamente o português se arrumou e se retirou em silêncio. Fiquei

só, a blusa entreaberta. E contemplei o meu peito como se nunca antes o tivesse visto [...] (p. 194, grifos do autor).

É pela linguagem, que ora é expressa por palavras e expressões

próprias da tribo de Imani, ora pelo português corretíssimo dela, que os

laços se estreitam entre Imani e Germano. Apesar de opostos, em termos de

propósitos, são eles que darão forma e destino ao que se passa naquelas

terras. Em determinado momento, eles passam a ser “nós”, pois ambos

necessitam um do outro, a fim de manterem suas vidas e o lugar em que

estão inseridos. Assim, a rememoração do pretérito e de tempos um pouco

mais recentes é fundamental para que se funde uma nova identidade

moçambicana. A partir dos dois universos distintos (Moçambique e Portugal)

inseridos em um mesmo território, surgirá um novo país, fruto da

miscigenação cultural, racial e, talvez, ideológica. Imani é a mulher/terra

que será o elo entre essas forças conflitantes. O aparente silêncio dela é o

germe da força moçambicana, capaz de forjar uma nova sociedade que,

mesmo absorvendo a cultura portuguesa, não esquece sua tradição. Das

cinzas, metaforicamente falando, (re)surge um novo espaço simbólico que

será o novo país, com uma identidade mais própria, proveniente do

entrecruzar de percepções de mundo tão diversas.

90

CONSIDERAÇÕES FINAIS

[...] Agora entendo: aprendi a escrever para melhor

relatar o que vivi. E nesse relato vou contando a

história dos que não têm escrita. Faço como meu pai:

na poeira e na cinza escrevo os nomes dos que

morreram. Para que voltem a nascer das pegadas que

deixamos (Mia Couto)

Ao retratar a época em que Moçambique era colônia de Portugal, a

narrativa de Mulheres de cinzas retoma questões relevantes quanto à

construção econômica, social e cultural do país africano e, principalmente,

de seu povo. Impositivamente, por conta da dominação portuguesa,

aprenderam a cultura, a língua, os hábitos e a religião do país europeu,

provocando uma (trans)formação da identidade e da cultura moçambicana.

Ao presentificar um passado distante, a narrativa coutiana em estudo

revela-se permeada pela história, quase memorialística, trazendo à tona a

experiência da memória como (con)formadora de uma identidade que se dará

permeada pelo imbricamento entre a tradição moçambicana e a cultura

lusitana. Salientamos que o livro de Mia Couto aborda não apenas a questão

identitária moçambicana que, durante o domínio português, parece perder-

se de si, pela maneira com que os nativos são apresentados à nova cultura

que lhes é chegada; mesmo assim, permanecem fortemente enraizados na

sua tradição, mantendo-a viva, através de seus rituais, costumes, língua

local, mitos, etc.; mas, também, mostra um povo capaz de defender seu

território e retomar as terras sob o domínio império de Portugal.

O voltar-se para um passado histórico acontece pela ótica de uma

negra moçambicana, que constrói a narrativa a partir de suas vivências,

91

cultura e tradições moçambicanas, fato praticamente desconsiderado pela

história oficial, que apresenta apenas a narrativa pelo ponto de vista do

europeu colonizador, fazendo com que Mulheres de cinzas oportunize aos

povos que tiveram sua voz apagada no discurso histórico revelarem suas

memórias, lembranças, recordações.

Ao conjugar os tempos da história e da ficção, memória e identidade,

notamos a singularidade do romance de Mia Couto, Mulheres de cinzas,

como uma possibilidade de reformulação da história a partir das vivências e

marcas deixadas pelo colonialismo em Moçambique. Ao passo que, levando

em consideração os aspectos de construção física e psicológica das

personagens, assim como sua conexão com as nações a que pertencem, Mia

Couto faz com que sua narrativa contribua para o não silenciamento de

vozes não ouvidas pela história oficial. O autor não somente traz o

marginalizado para a trama como o faz protagonista, proporcionando uma

chance de expor sua voz, história, memórias e lembranças. As cartas de

Germano conversam com o relato de Imani, trazendo os fatos tanto pela

ótica da moçambicana quanto do português; são quatorze capítulos

destinados ao português e quinze à moçambicana, acentuando a

característica da obra de Mia Couto de recuperar o passado pelo olhar do

marginalizado.

Ao findar esse estudo, notamos que Mia Couto teve todo um processo

de captação de informações, procurando fontes e documentos que relatavam

eventos da época da colonização de Portugal em Moçambique, demonstrando

o cuidado com a memória, confirmando o que Jeanne Gagnebin, ao

promovê-la (a memória) diz ser uma tarefa ética, algo que está muito além de

ser apenas um objeto de estudo. Esse cuidado promove além de uma

preservação da memoria, resgate do passado, do desaparecido, do esquecido,

de modo que traz à luz da narrativa literária tradições, vidas, falas e imagens

(GAGNEBIN, 2006), em que o colonizado contribui para esse resgate e

permanência de sua história por meio da literatura. E, é assim, por meio da

criação literária, que os moçambicanos contribuem para o não apagamento,

para o não silenciamento de sua história e de suas vozes, para fazerem-se

presentes também no campo literário, e contribuir para o enraizamento de

92

suas memórias, cultura e tradição, também no cenário desse mundo

globalizado.

Conhecidamente, as cinzas são os vestígios do que o fogo devastou, ou

analisando pela ótica da colorimetria cinza é a cor resultante da mistura

entre as cores branca e preta, em que podemos deduzir ser Imani esse

produto oriundo dessa mistura de cores, culturas, religião, educação,

idioma, de nações, mas também ser os vestígios deixados por essa

devastação que foi a colonização portuguesa em Moçambique. Outra

assertiva é que as cinzas podem ser uma espécie de preparação do terreno

para receber uma nova semente, uma nova nação e identidade que surgem

dessa mistura entre Moçambique e Portugal, como uma espécie de fênix.

A autoridade feminina é vista em Mulheres de cinzas pela personagem

principal da narrativa ser uma mulher, assegurando a ela o direito de se

manifestar, expor seu ponto de vista, relatar sua visão, sua história. Nesse

caso, é Imani quem conduz a narrativa, representando tanto mulheres

quanto moçambicanos. A importância da mulher também se traduz pela

escolha do título do livro, que leva consigo um dos termos que designa o

sexo feminino.

Precisamos conservar na memória os fatos para que não se repitam,

talvez esse seja um dos objetivos do autor ao retratar em sua narrativa

literária alguns dos fatos passados pelo seu território. Jeanne Gagnebin,

citando Adorno, evidencia que a importância do passado se revela pelo modo

que se torna presente, ou seja:

Devemos lembrar o passado, sim; mas não lembrar por lembrar, numa espécie de culto ao passado. [...] a exigência de não-

esquecimento não é um apelo a comemorações solenes; é, muito

mais, uma exigência de análise esclarecedora que deveria produzir –

e isso é decisivo – instrumentos de análise para melhor esclarecer o

presente (GAGNEBIN, 2006, p. 93).

Assim, Imani e Germano, cada um a seu modo, são o estatuto

privilegiado das testemunhas de um tempo de guerra, de lutas pelo poder e

da solidão que lhes é imposta. E será com eles, a partir da partilha da

solidão e dos afetos que surgirá um novo Moçambique, fruto da mistura de

línguas, costumes e tradições que se imbricaram e fundaram a nova nação.

93

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