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UM OLHAR SOBRE A IDENTIDADE MOÇAMBICANA: ESTUDO DO ROMANCE A VARANDA DO FRANGIPANI, DE MIA COUTO Dissertação Fátima Catarina Santos de Aguiar Porto Alegre, 2009

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UM OLHAR SOBRE A IDENTIDADE

MOÇAMBICANA: ESTUDO DO ROMANCE

A VARANDA DO FRANGIPANI,

DE MIA COUTO

Dissertação

Fátima Catarina Santos de Aguiar

Porto Alegre, 2009

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CENTRO UNIVERSITÁRIO RITTER DOS REIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

Linguagem, Interação e Processos de Aprendizagem

FÁTIMA CATARINA SANTOS DE AGUIAR

UM OLHAR SOBRE A IDENTIDADE MOÇAMBICANA:

ESTUDO DO ROMANCE A VARANDA DO FRANGIPANI,

DE MIA COUTO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras como requisito para obtenção do título de Mestre no Centro Universitário Ritter dos Reis. Porto Alegre

2009

UM OLHAR SOBRE A IDENTIDADE MOÇAMBICANA:

ESTUDO DO ROMANCE A VARANDA DO FRANGIPANI,

DE MIA COUTO

FÁTIMA CATARINA SANTOS DE AGUIAR

Aprovada em 25 de maio de 2009

Conceito A

Banca Examinadora: Profª. Dr. Maria José Blaskovski Vieira - UniRitter Prof. Dr. Antônio Marcos Vieira Sanseverino - UFRGS Orientadora: Profª. Dr. Regina da Costa da Silveira

Dedico este trabalho a minha família,

pelo apoio incondicional;

e à Rúbia, amor sempre presente.

AGRADECIMENTOS

Agradeço, de forma muito especial, à minha orientadora, Professora Regina da Costa da Silveira,

por ter acreditado no meu projeto, pela segurança e generosidade com que me orientou e

por ter dividido comigo experiências que construíram aprendizagem para além dessa dissertação.

Aos professores Antônio Marcos Vieira Sanseverino e Maria José Blaskovski Vieira

pela participação na minha qualificação e pela ajuda com críticas, sugestões

e indicações bibliográficas.

Aos professores da área de Literatura do UniRitter, de ontem e de hoje,

que fortaleceram em mim o amor pela arte literária – Antônio Marcos Vieira Sanseverino, Leny da Silva Gomes e Rejane Pivetta de Oliveira.

À professora Neiva Tebaldi Gomes

por me mostrar que sempre podemos mudar de opinião sobre algo

que tínhamos como definitivo.

RESUMO

Esta dissertação focaliza o romance A Varanda do Frangipani, do escritor Mia Couto, observando algumas características da identidade cultural moçambicana que estão nele representadas. A análise utiliza como suporte teórico central o conceito de intertextualidade, conforme o entende Julia Kristeva, para quem a idéia de intertextualidade é um cruzamento de superfícies textuais, diálogos de várias escrituras em que todo texto é absorção e transformação de outro texto. A vida cultural de uma sociedade pode, então, ser pensada como uma série de textos em intersecção, o que permitiu, neste trabalho, entrelaçar os conceitos de identidade cultural, multiculturalismo, oralidade, imaginário popular e tradição para conhecer um pouco da identidade moçambicana através da obra literária em análise, tomada como uma expressão simbólica da realidade que representa. O asilo de velhos de São Nicolau, espaço da narrativa no romance A Varanda do Frangipani, pode ser tomado como representação de Moçambique. A ação e as vozes das personagens mostram a necessidade de recuperação de certos valores tradicionais, não para estagnação da comunidade, mas para o estabelecimento de novas articulações com a modernidade. Na perspectiva dos habitantes de São Nicolau, a afirmação da identidade moçambicana passa pela discussão entre tradição e modernidade, entre oralidade e escrita, entre o velho e o novo, entre o sonho e a realidade, temas constantes na obra de Mia Couto. Palavras-chave: Mia Couto, A Varanda do Frangipani, intertextualidade, identidade cultural, multiculturalismo, oralidade, imaginário popular, tradição.

ABSTRACT This dissertation focuses on some characteristics of the Mozambican cultural identity that are represented on the novel Under the Frangipani by Mia Couto. The analysis has as central theoretical framework the intertextuality, as proposed by Julia Kristeva, to whom the definition of such concept lies on the crossing of textual surfaces, dialogues of various manuscripts in which every text is the absorption and transformation of another text. Thus, the cultural life of a society can be viewed as a series of intersected texts, allowing for concepts such as cultural identity, multiculturalism, orality, popular belief and tradition to be interlaced in this paper, in order to understand a bit of the Mozambican identity through the literary composition here under analysis, seen as a symbolic expression of the reality that it represents. The São Nicolau refuge for elderly, setting of the novel Under the Frangipani, can be seen as a representation of Mozambique. Both the actions and the voices of the characters display the need to retrieve certain traditional values, not as a form of stagnation for the community, but to establish new articulations with modern times. Under the inhabitants of São Nicolau’s perspective, the confirmation of the Mozambican identity undergoes the conflict between tradition and modernity, orality and writing, the old and the new, dream and reality, constant themes on Mia Couto’s work. Key-words: Mia Couto, Under the Frangipani, intertextuality, cultural identity, multiculturalism, orality, popular belief, tradition.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................. 08

1. INTERTEXTUALIDADE ............................................................................ 11

1.1 A malha textual ....................................................................................... 12

1.2 A intertextualidade e a produção de sentido no texto.............................. 15

1.3 A intratextualidade ................................................................................... 22

2 CULTURA................................................................................................... 28

2.1 Cultura e Estudos Culturais .................................................................... 28

2.2 A sociedade moçambicana ..................................................................... 36

2.3 Identidades .............................................................................................. 44

2.4 Multiculturalismo ...................................................................................... 53

2.5 Oralidade ................................................................................................. 58

2.6 Imaginário popular ................................................................................... 67

2.7 Tradição ................................................................................................... 78

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 83

REFERÊNCIAS ............................................................................................. 87

APÊNDICE .................................................................................................... 93

ANEXO 1 ....................................................................................................... 97

ANEXO 2 ..................................................................................................... 101

ANEXO 3 ..................................................................................................... 119

ANEXO 4 ..................................................................................................... 122

INTRODUÇÃO

[...] Existo onde me desconheço aguardando pelo meu passado ansiando a esperança do futuro. 1

Mia Couto

A plurifuncionalidade do texto literário permite a fruição estética da obra

e a sua articulação com a história e a cultura da sociedade na qual está

inserida. Bakhtin afirma que “as grandes obras da literatura são preparadas por

séculos; na época de sua criação colhem-se apenas os frutos maduros do

longo e complexo processo de amadurecimento”. (BAKHTIN, 2003, p. 362). A

declaração de Bakhtin deriva do seu entendimento de que a literatura está

intimamente ligada à história da cultura de uma sociedade, sendo mesmo parte

inseparável da cultura de uma época.

O objetivo desta dissertação é analisar o texto literário A Varanda do

Frangipani2, do escritor Mia Couto, estudando algumas características da

identidade moçambicana que estão nele representadas. Entendendo a cultura

como uma fonte de identidade e a literatura como uma fonte de cultura,

conforme afirma Tutikian (2006, p. 15), examino alguns aspectos da identidade

moçambicana que o texto de Mia Couto permite apreciar. Esse olhar sobre a

1 Do poema Identidade, de Mia Couto, integrante do livro Antologia da nova poesia moçambicana , organizado por Fátima Mendonça e Nelson Saúte. Maputo: Associação dos Escritores Moçambicanos, 1993. 448 p. 2 A partir de agora, usarei a sigla AVF para me referir ao romance A Varanda do Frangipani, de Mia Couto, 7ª edição, publicado em 2003 pela Editorial Caminho S.A., Lisboa, Portugal.

identidade de Moçambique é feito através do atento exame da riqueza cultural

que as personagens apresentam no romance AVF.

Emprego, como metodologia, a análise textual, método qualitativo que

trabalha com a informação do texto e a compreensão do seu significado. Como

método de abordagem, uso o conceito de intertextualidade que vai costurar

outros conceitos necessários à análise pretendida.

Embora há muito recorrente no campo dos estudos literários, o conceito

de intertextualidade, no romance em estudo, será empregado como elemento

estruturador das relações existentes entre as narrativas orais do imaginário

popular africano e a luta que se trava entre a tradição e a modernidade na

busca do progresso da nação. Essas relações aparecem nas vozes das

personagens, cujas histórias representam os múltiplos aspectos da cultura

moçambicana.

No primeiro capítulo, apresento o conceito de intertextualidade,

conforme o defende Julia Kristeva. Faço, por necessário, a conexão com o

pensamento de Bakhtin, de quem o entendimento de Kristeva deriva, e, além

disso, mostro, de forma rápida, a evolução que tal conceito atingiu,

especialmente quanto à produção de sentido no texto.

A partir do entendimento bakhtiniano de que o texto é construído por fios

dialógicos de vozes que em seu interior falam e polemizam, reproduzindo o

diálogo com outros textos, Julia Kristeva chegou ao conceito de

intertextualidade. Sob a definição bakhtiniana de que o romance é uma

construção polifônica, a intertextualidade embasa a idéia de que o texto,

literário ou não, entendido como trama, mantém relações com textos vários que

o precederam, como, por exemplo, as narrativas tradicionais e o texto histórico.

No segundo capítulo, dentro do amplo espectro do conceito de Cultura,

abordo os conceitos de Identidade Cultural, Multiculturalismo, Oralidade,

Imaginário Popular e Tradição. A Intertextualidade entrelaça todos esses

conceitos numa discussão que é produzida pela demanda identitária individual

e coletiva, assente na dicotomia entre tradição e modernidade, entre oralidade

e escrita, entre o velho e o novo, entre o sonho e a realidade, temas constantes

na obra de Mia Couto.

Sem nenhuma pretensão de engessar o texto literário aos conceitos

teóricos, ao examinar o discurso das personagens do romance, permito-me

traçar algumas linhas de vinculação entre a cultura moçambicana, que é

possível enxergar através das vozes postas no romance, e a teoria que

embasa este trabalho.

A escolha desta obra específica deveu-se a diversos motivos: em

primeiro lugar, ao caráter universal do texto literário, cuja leitura produz

sentidos ao representar a identidade humana; em segundo lugar, ao prazer

estético da obra de Mia Couto, autor que confessa manter um contrato

intertextual com o estilo do grande escritor brasileiro Guimarães Rosa, no que

respeita ao plano da expressão da língua; e, em terceiro lugar, à peculiaridade

dessa narrativa, que contesta e questiona a realidade moçambicana,

revelando, através das vozes das suas personagens, uma forte inquietação

produzida pelo novo contexto do país.

1 A INTERTEXTUALIDADE

No romance AVF é possível conhecer muito da identidade do povo

moçambicano. Os diálogos dos personagens representam a luta entre a

tradição e a modernidade, entre o velho e o novo; mostram a falta de ética no

poder, mesmo após as guerras3 que deveriam trazer ventos de mudança; falam

de um povo que ainda sofre com a falta de comida, de escolas, de

oportunidades, mas que tem como sagrada a cultura herdada de seus

ancestrais. A intertextualidade é o conceito que serve como fio que permite

tecer uma malha que une escrita e textos produzidos por uma sociedade que

se manifesta basicamente pela via da oralidade, assente na tradição e no

imaginário popular, uma sociedade plural pela diversidade e mestiçagem do

seu povo.

Este capítulo apresenta o conceito de intertextualidade, sua origem e

sua relação com a produção de sentido no texto. Trata, também, da

intratextualidade (intertextualidade restrita), tendo em vista que é prática da

escritura coutiana a alusão a seus textos anteriores, abordando temas

recorrentes em toda sua obra.

3 Primeira guerra colonial, que iniciou em 1956 e progrediu até 1975, quando Moçambique tornou-se independente de Portugal; e a guerra civil, também chamada de segunda guerra colonial, que vitimou a população moçambicana do final da década de 70 até a assinatura de um acordo de paz, em 1992. (TUTIKIAN, 2006, p. 61-64).

1.1 A malha textual

O termo intertextualidade foi empregado pela primeira vez por Julia

Kristeva para caracterizar a produtividade textual a partir do conceito de

dialogismo de Mikhail Bakhtin. No “Prefácio” da tradução francesa de A Poética

de Dostoiévski, Kristeva definiu a intertextualidade constitutiva do romance

como um “cruzamento de superfícies textuais, diálogos de várias escrituras em

que todo texto é absorção e transformação de outro texto.” (KRISTEVA, apud

BAKHTIN, 1970.)

No campo da literatura, não há como falar em intertextualidade sem

levar em conta a questão da interdiscursividade. Como uma multiplicidade de

conexões que se relacionam no intuito de compartilhamento para além do

discurso citado, o diálogo entre vozes, entre consciências ou entre discursos

revela a intertextualidade. Qualquer referência a um texto literário implica

referir-se também ao discurso que ele manifesta.

Bakhtin foi um dos primeiros autores a mencionar a noção plural de

polifonia de vozes a partir da leitura que fez de Dostoiévski. A originalidade da

teoria bakhtiniana sobre o romance procede diretamente da sua concepção de

que a língua é multidiscursiva e o discurso é multitextual. Sua definição de

enunciado aproxima-se da concepção atual de texto, considerado tanto como

objeto de significação (como um tecido organizado e estruturado) quanto como

objeto de comunicação, isto é, objeto de uma cultura, cujo sentido depende do

contexto sócio-histórico.

A noção de intertextualidade possibilitou pensar o texto como uma série

de intersecção com outros textos que possam ter “afetado” o autor e o receptor

do texto produzido. A raiz latina do termo intertextualidade refere-se ao

entrelaçamento de fios no ato de tecer, remetendo à idéia de redes. A partir da

noção de entrelaçamento, malha e estrutura reticulada, a palavra rede foi

ganhando novos significados ao longo dos tempos, passando a ser empregada

em diferentes situações.

Contemporaneamente é possível afirmar que a organização em rede

acompanha o ser humano desde os seus primórdios, quando precisou do outro

para prover calor, alimento e proteção. O próprio corpo humano opera como

uma malha químico-física interligando os diversos aparelhos e sistemas que

permitem a sua sobrevivência. As experiências humanas compõem o texto

sócio-histórico no qual a humanidade está mergulhada. Trata-se de um

hipertexto4 em que a literatura vai buscar elementos para composição de prosa

e de poemas.

Nessa direção, Kristeva apresenta o texto como sendo um sistema de

signos, quer se trate de obras literárias, de linguagens orais, quer de sistemas

simbólicos, sociais ou inconscientes. Para Kristeva, um texto é construído

mediante um mosaico de citações; qualquer texto é, portanto, a absorção e a

transformação de outro anteriormente existente.

No entendimento de Bakhtin, o texto é construído polifonicamente por

fios dialógicos de vozes que falam e polemizam no texto, nele reproduzindo o

diálogo com outros textos. A idéia de intertextualidade leva em conta não só o

4 As origens do conceito de hipertexto remontam aos anos cinquenta do século passado, quando Vannevar Bush propôs uma máquina Memex, na qual poderia armazenar uma biblioteca de informação científica que seria consultada por combinação de temas, isto é, de forma hipertextual. O hipertexto funciona por analogia ou por associação de idéias, da mesma forma que o pensamento humano: a partir de uma dada concepção, o pensamento pode passar para outra, de acordo com qualquer teia intrincada de sequências que estão armazenadas no cérebro. Da mesma forma, o hipertexto passeia por uma trama complexa de elementos textuais. O conceito de hipertexto, contemporaneamente, tem sido aplicado de forma mais efetiva aos textos que estão disponíveis na rede internacional de computadores.

texto literário, mas todo e qualquer texto, verbal ou não, sem recorrer aos

conceitos tradicionais de autoria, colocando em seu lugar o fato de que toda

obra literária ocorre efetivamente na presença de outros textos, à semelhança

dos palimpsestos5.

A imagem do palimpsesto foi introduzida nos estudos de literatura por

Gérard Genette (1989) para definir o fugaz e o provisório que acompanha o

texto literário. A evocação dos palimpsestos evidencia o fato de que todo ato de

escrever ocorre na presença de outros textos, atribuindo o significado da obra a

uma cadeia interminável de significações. Nesse sentido, o conceito de

intertextualidade abrange tanto os textos produzidos pela cultura oral das

sociedades ágrafas quanto os produzidos pela história, pela prosa literária e a

poesia, pela dança e a pintura, pelo teatro e o cinema, desde que a

ambivalência6 se manifeste nas diferentes etapas da organização desses

textos.

O termo – ambivalência – implica a inserção da história e da sociedade

no texto, e do texto na história e na sociedade. Para Bakhtin, o texto situa-se

na história e na sociedade. “Estas, por sua vez, também constituem textos que

o escritor lê e nas quais se insere ao reescrevê-las”. (NITRINI, 1997, p. 159).

Tanto a história quanto o texto literário correspondem a narrativas explicativas

do real que se renovam no tempo e no espaço, mas que são dotadas de um

traço de permanência ancestral, já que os homens, desde sempre,

5 Antigo material de escrita, principalmente o pergaminho, usado, em razão de sua escassez ou alto preço, duas ou três vezes, mediante raspagem do texto anterior. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 15ª impressão. Nova Fronteira) 6 Na teoria semiótica do discurso, a noção de ambivalência é aplicada à duplicidade dialógica de cada nível de descrição do texto, na caracterização dos discursos poéticos, como os jogos de manipulação e contramanipulação ou a polêmica entre o sujeito e o antissujeito no patamar narrativo, por exemplo.

expressaram pela linguagem a sua forma de ver o mundo. (PESAVENTO,

2006).

Segundo a historiadora Pesavento, os estudos sobre o imaginário

possibilitaram a recuperação das formas de ver, sentir e expressar o real dos

tempos passados, redimensionando as relações entre a história e a literatura.

Há uma tentativa de viés antropológico (Gilbert Durand, Yves Durand), que se baseia na idéia da possibilidade de divisar traços e rasgos de permanência na construção imaginária do mundo, num processo que beiraria o conceito dos arquétipos fundamentais construtores de sentido e que acompanhariam a trajetória do homem na terra. Por outro lado, em uma versão historicizada (Le Goff), articula-se o entendimento de que os imaginários são construções sociais e, portanto, históricas e datadas, que guardam as suas especificidades e assumem configurações e sentidos diferentes ao longo do tempo e através do espaço. (PESAVENTO, 2006, p. 11).

Os estudiosos contemporâneos da literatura e da história trabalham com

o imaginário e entendem a literatura como acesso privilegiado ao passado, e a

história como uma forma de literatura, ou seja, como narrativa portadora de

ficção.

1.2 A intertextualidade e a produção de sentido no text o

O processo de construção, reprodução ou transformação do sentido no

texto está intimamente ligado ao conceito de intertextualidade. A partir de

Kristeva, que chamou de texto e intertextualidade ao que Bakhtin denominou

enunciado e dialogismo, qualquer relação dialógica passa a ser designada

intertextualidade, embora haja, em Bakhtin, uma distinção entre texto e

enunciado. O texto, para o filósofo russo, é o suporte usado para manifestação

do enunciado. Enquanto o enunciado é da ordem do sentido, o texto, por sua

vez, é do domínio da manifestação. (FIORIN, 2006, p. 52).

A partir da noção de intertextualidade, pode-se pensar a vida cultural de

uma sociedade como uma série de textos em intersecção. Esse

entrelaçamento tem vida própria, “não se congela num ponto, num sentido

fixo”. (NITRINI, 1997, p. 159). Dessa forma, é vã a tentativa de dominar um

texto, porque o constante entretecer de textos e sentidos sai da alçada de

quem narra ou escreve e passa ao poder de quem ouve ou lê. O texto,

situando-se na história e na sociedade, é representativo dos contextos sociais

que lhe deram origem.

Convém salientar que a intertextualidade, em primeiro lugar, foi um foco

de estudo no campo da literatura. Entretanto, pode-se também empregar o

termo a outras produções textuais, imagéticas e midiáticas que trabalhem e

elaborem sua narrativa discursiva com este artifício. Na relação intertextual,

conforme Fiorin (2003), um texto é incorporado ao outro tanto para reproduzir o

sentido incorporado quanto para transformá-lo, isto é, a intertextualidade pode

ser polêmica, quando propõe uma oposição ao sentido do texto original, ou

contratual, quando o reforça e o enaltece.

O complexo polifônico da intertextualidade pode apresentar processos

diferentes de formação, de acordo com o entendimento dos estudiosos da

textualidade. Cito alguns brasileiros, como Fiorin (2003), para quem a

intertextualidade acontece através da citação, da alusão e da estilização; já

para Afonso Romano Sant’Anna (2002), há quatro processos de classificação

da intertextualidade: a paródia, a paráfrase, a estilização e a apropriação.

Paulino, Walty e Cury (1997) apontam oito formas de intertextualidade: a

epígrafe, a citação, a referência, a alusão, a paráfrase, a paródia, o pastiche e

a tradução. As autoras consideram que o objeto da intertextualidade pode

apresentar um sentido amplo e um sentido mais restrito.

Em seu sentido amplo, ela envolve todos os objetos e processos culturais, tomados como texto. Em sentido mais restrito, a intertextualidade terá como objeto apenas as produções verbais, orais e escritas. (PAULINO, WALTY e CURY, 1997, p. 14).

GOUVEIA (2007), em artigo que trata da intertextualidade como fator de

textualidade, define o texto como objeto cultural que possui uma existência

física delimitada pelo olhar e recriação do leitor.

Nessa perspectiva, o texto nunca está pronto, pois cada leitor participa desse jogo dialógico com o autor, realizando cortes, recortes, construções e reconstruções com a finalidade de atender aos seus interesses e as suas necessidades. (GOUVEIA, 2007, p. 60).

Para os objetivos deste trabalho, usarei a classificação que Fiorin (2003)

propõe para o princípio da intertextualidade: citação, alusão e estilização. A

citação é uma referência literal a outro texto, usando parte deste. Nos textos

científicos, a citação aparece marcada graficamente; já nos textos literários as

citações encontram-se incorporadas ao texto, sem nenhum sinal gráfico que as

denuncie. A alusão é um processo de reprodução de construções sintáticas em

que certas figuras substituem outras do texto original, permitindo ao leitor a

recuperação do sentido do texto aludido. A estilização é a reprodução do estilo

de outro autor, no plano da expressão ou no do conteúdo.

Mia Couto faz uso do recurso da citação ao iniciar seus livros e/ou

capítulos de livros. Algumas citações são dos próprios personagens da obra e

outras são de fontes externas, como no caso do romance Um Rio Chamado

Tempo, Uma Casa Chamada Terra em que Mia inicia citando Sophia de Mello

Breyner Andresen: “No princípio, a casa foi sagrada, isto é, habitada não só por

mortos e vivos como também por mortos e deuses”7. A partir dessa idéia, o

escritor acrescenta uma série de memórias antigas para contar a história de um

jovem estudante universitário que regressa a sua ilha natal para participar do

funeral de seu avô Mariano e, ao final, redescobre outra história para sua

própria vida e para a da sua terra.

O último livro de Mia Couto publicado no Brasil – Venenos de Deus,

remédios do Diabo8 – traz uma citação do poeta gaúcho Mario Quintana – “A

imaginação é a memória que se enlouqueceu.” – para introduzir o leitor ao

tema do romance. Bartolomeu Sozinho, um velho mecânico naval

moçambicano da era colonial, está enfraquecido pela doença e prestes a

morrer. Para manter a esperança de viver, põe a memória a serviço da

imaginação, revivendo lembranças e desejos que lhe saem em forma de

histórias emblemáticas da trajetória de todo um povo, na melhor tradição da

cultura oral africana.

No quinto capítulo de AVF, na confissão que faz ao inspetor Naíta, a

personagem do velho português Domingos Mourão afirma, referindo-se a

Moçambique: “Minha nação é uma varanda”. Essa fala cita elementos do

discurso proferido por Eduardo Lourenço, em 1995, quando da sua despedida

de Maputo. A expressão “Moçambique: essa imensa varanda sobre o Índico...”,

do texto de Lourenço, foi usada por Mia Couto na apresentação do romance

7 COUTO, Mia. Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 8 Publicação da editora Companhia das Letras, 1ª reimpressão, 2008.

AVF. (COUTO, 2003, p.7). A afirmação da personagem Mourão não altera o

sentido do texto proferido por Eduardo Lourenço.

No processo intertextual por alusão, não há uma citação explícita,

ocorre, antes, uma construção que reproduz a idéia central de algo já

discursado e que, como o próprio termo deixa transparecer, alude a um

discurso que é conhecido do ouvinte, do leitor ou do público em geral.

Há, no romance AVF, um conjunto de figuras que aludem ao tema do

romance Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. O personagem

Salufo Tuco vivia encantado com o moinho de vento que havia no asilo São

Nicolau. “Seus olhos visitavam as pás rodando e se inebriavam daquele

movimento. E dizia: aquele ventinho lá é todo feito à mão.” (COUTO, 2003, p.

115). Ao sentir a morte iminente, após ser violentamente agredido pelo diretor

do asilo, Salufo pede aos outros velhos que o amarrem ao catavento. Como

por magia, os ventos começaram a soprar e Salufo rodava com as hélices, feito

ponteiro de relógio. Assim, divertindo-se às gargalhadas, seu espírito voou com

o vento para a liberdade, longe das conseqüências da guerra e da ferocidade

de Excelêncio.

O texto de Mia Couto mantém com o texto de Cervantes uma relação

contratual. As fantasias de Salufo, de uma vida melhor para ele e seus

companheiros de asilo, e pelas quais acabou morrendo, transformaram-se em

decepção. Apesar do sofrimento da guerra, a ganância dos poderosos era a

mesma, e havia, ainda, uma imensa falta de respeito com os idosos. A

realidade matou o sonho.

Em Dom Quixote, a fabulosa cena na qual a personagem arremete

contra um gigante e é derrubada por um moinho de vento representa o choque

entre uma ideologia senhorial, cavalheiresca, e as novas práticas sociais ainda

inconsistentes.

As cenas protagonizadas por Dom Quixote e Salufo Tuco traduzem a

decepção diante de uma realidade social incapaz de promover a dignidade do

ser humano, mas que prospera nas formas de matar o sonho de justiça social.

A intertextualidade na forma da estilização pode acontecer através da

imitação de um texto, ou do seu estilo, sem a intenção de negar o que está

sendo imitado; é uma forma de reproduzir os elementos de um discurso

anterior, como uma reprodução estilística do conteúdo formal ou textual, com o

propósito de reestilizá-lo.

Mia Couto, em várias entrevistas sobre sua obra literária, faz questão de

declarar que o seu modo peculiar de escrita sofreu influência de escritores

brasileiros, principalmente de Guimarães Rosa. A obra de Couto é um exercício

de metaficção com a obra de Rosa, uma estilização em relação à realidade da

língua.

Na comunicação que fez na Universidade de São Paulo por ocasião das

comemorações de relançamento da obra de Jorge Amado9, Couto disse que “a

possibilidade de invenção, de mexer no léxico”, veio a partir de seu contato

com a obra Rosiana. “Parecia que, se o nosso lar fosse entendido como um rio,

era necessário, de fato, inventar a outra margem, para além do que é possível”,

revela Mia Couto. “Acho que todo escritor vive o mesmo drama; não há de fato

uma língua pronta para ser usada. É preciso recriar uma língua, deixar a sua

impressão digital”.

9 Anexo 1

Os processos de intertextualidade podem apresentar dois tipos de

referências: as explícitas, que trazem indicações claras da fonte, como no caso

da citação, já acima referido; e as implícitas, que são unidades fraseológicas –

provérbios, locuções ou expressões idiomáticas – de autoria desconhecida,

recolhidas do repertório da comunidade.

Por inúmeras vezes e lugares, Mia Couto tem confessado que a

moderna literatura brasileira influenciou sobremaneira os novos escritores

moçambicanos, que precisavam de uma “literatura que ajudasse a descoberta

e a revelação da terra”. Quando leu pela primeira vez um texto de João

Guimarães Rosa, Mia Couto experimentou uma sensação que já tinha sentido

quando, criança, escutava os contadores de história. Perante o texto de Rosa,

Couto não apenas lia, mas “ouvia vozes da infância. [...] Mais que a invenção

de palavras, o que me tocou foi a emergência de uma poesia que me fazia sair

do mundo, que me fazia inexistir”10.

Para se chegar àquela relação com a escrita é preciso ser-se escritor. Contudo, é essencial, ao mesmo tempo, ser-se um não-escritor, mergulhar no lado da oralidade e escapar da racionalidade dos códigos da escrita enquanto sistema único de pensamento. Esse é o desafio de desequilibrista – ter um pé em cada um dos mundos: o do texto e o do verbo. Não se trata apenas de visitar o mundo da oralidade. É preciso deixar-se invadir e dissolver pelo universo das falas, das lendas, dos provérbios. (COUTO, 2005, p. 107).

Tal como a obra roseana, a de Mia Couto é também permeada de

referências implícitas, principalmente os provérbios, recolhidos na fala de

comunidades rurais e desconstruídos na escrita. Nos contos de Estórias

10 Extraído de comunicação feita por Mia Couto na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, em 2004. Esse texto faz parte do livro Pensatempos : textos de opinião, editado pela Editorial Caminho em 2005.

Abensonhadas11, por exemplo, em ‘O cego estrelinho’: “Gigito Efraim estava

como nunca esteve S. Tomé: via para não crer”12; em ‘O perfume’: “Entre

marido e mulher o tempo metera a colher, rançoso roubador de espantos.”13;

em ‘O calcanhar de Virigílio’: “Para entendedor como ela meia palavra já é

demais”14.

As unidades fraseológicas15 fazem parte da identidade de um povo.

Mesmo desconstruídas pelo escritor, esse intertexto, que tem uma matriz oral,

é de fácil reconhecimento pelos leitores que dominam a língua na qual as

unidades foram construídas.

1.3 A intratextualidade

Lucien Dallenbach, no ensaio intitulado Intertexto e autotexto (1979), cita os

trabalhos de Jean Ricardou, que em um estudo apresentado em 1974 propõe

estabelecer a diferença entre uma intertextualidade geral e uma

intertextualidade limitada, o que já em 1971 havia demarcado a distinção entre

intertextualidade externa, entendida como a influência de um texto em outro

texto, e uma intertextualidade interna, a influência de um texto em si mesmo.

Por sua vez, Dallenbach propõe reconhecer três tipos de intertextualidade: a

geral, entre distintos autores; a restrita, entre distintos textos de um mesmo

autor; e a autárquica, aquela que se encontra dentro de um mesmo texto.

11 Editorial Caminho, 7ª edição, 2002, p. 27, 43 e 53. 12 Referência implícita a “Sou como São Tomé: vejo para crer.” 13 Referência implícita a “Em briga de marido e mulher não se mete a colher.” 14 Referência implícita a “Para um bom entendedor, meia palavra basta”. 15 Unidades fraseológicas são estruturas fixas da língua, de significados conhecidos por toda a comunidade e amplamente empregados, como os provérbios e ditados, as locuções idiomáticas e as expressões idiomáticas.

Aplico o conceito de intratextualidade (intertextualidade interna, para

Ricardou, ou intertextualidade restrita, para Dallenbach), àquelas relações

intertextuais que se apreciam entre o romance AVF, publicado em 1996, e os

textos coutianos anteriores: Vozes Anoitecidas, Cada Homem é uma Raça,

Cronicando, Terra Sonâmbula e Estórias Abensonhadas.

Roland Barthes (1987), em O Prazer do Texto, acentua a idéia de que o

texto não é um produto acabado, mas algo que está sempre em processo

gerativo. A idéia de tecido dá ao texto um caráter de entrelaçamento infinito, de

gerar-se permanentemente. Em seu ato criativo, Mia Couto não só se apropria

de textos produzidos pela oralidade, pela história e pela cultura moçambicanas,

evidenciando a presença da intertextualidade, como também o autor se recria a

partir dos seus próprios textos.

Para o leitor de Mia Couto, não é difícil perceber que alguns temas

abordados no romance AVF – a questão da tradição oral, a opressão do

colonizador, a violência das guerras16, a condição dos velhos no pós-

independência, a diversidade cultural, os problemas da modernidade – são

assuntos recorrentes em toda a obra coutiana. Ao repetir-se, ao aludir a seus

textos anteriores, Mia lança mão da intratextualidade como prática de escritura.

A primeira obra publicada por Mia Couto, e também a primeira lírica,

segundo as regras estilísticas e canônicas do modo, intitula-se Raiz de

Orvalho17. Ao vasto grupo semântico que envolve a palavra raiz, pode-se

relacionar o sentido de origem, de princípio, sentido a que também se remete a

16 A guerra para libertar-se de Portugal, de 1964 a 1975, e a guerra civil entre a RENAMO (grupo anticomunista apoiado pelo governo branco da África do Sul, baseado na Rodésia, atual Zimbabwe) e o governo socialista da FRELIMO, que durou do final dos anos 1970 até o acordo de paz assinado em 1992.(TUTIKIAN, 2006, p. 60-64). 17Editada em Moçambique em 1983. Os outros livros de poesia de Mia Couto são Raiz de orvalho e outros poemas, de 1999, e Idades Cidades Divindades, publicado pela editora Caminho em setembro de 2007.

palavra orvalho, relativa ao amanhecer, ao início do dia. Referindo-se ao Raiz

de Orvalho, o autor afirma: “Foi daqui que eu parti a desvendar outros terrenos.

O que me liga a este livro não é apenas memória. Mas o reconhecimento de

que, sem esta escrita, eu nunca experimentaria outras dimensões da palavra.”

(COUTO, 2001, p. 7).

A poesia é marcante e aborda temas como a busca de uma identidade

não encontrada, a importância que se deve conferir à memória, a simbologia

das aves, a procura da voz da terra, a consideração pela ancestralidade, a

importância do tempo, a dor da morte, o respeito pela alteridade, a esperança

num futuro melhor, e a dor de viver num país onde diariamente se sofre e se

assiste à dor humana. Ou seja, a temática da obra literária de Mia Couto já

estava presente no seu primeiro trabalho.

Os títulos das obras de Mia Couto revelam uma rede de conexões entre

elas – Vozes Anoitecidas, Cada Homem é uma Raça, Estórias Abensonhadas,

Contos do Nascer da Terra, Na Berma de Nenhuma Estrada, O Fio das

Missangas, entre outras – sendo este modelo de construção comum na

literatura moçambicana, conforme Ana Mafalda Leite (2003, p. 157):

Este gesto de apropriação do legado literário anterior é um traço característico da poesia moçambicana, como já referimos, que tende a estabelecer redes de referência através de títulos, epígrafes, dedicatórias, citações de versos, criando desde modo um diálogo, em teia ressoante, malha de ecos que se respondem ou interrogam numa tessitura complexa.

Dessa forma, há uma relação intratextual na obra coutiana, a começar

pelos títulos. O livro Vozes Anoitecidas, por exemplo, fala de vivências

particulares de múltiplas identidades que participam da construção identitária do

povo moçambicano. Povo este que, diante das atrocidades de uma guerra civil,

cujo produto foi o desespero, a fome e a dor, perdeu a capacidade de sonhar e

mitificou o universo criando outros mundos possíveis. Essas vozes que

anoiteceram, que estão no escuro, precisam readquirir a confiança no futuro e

reaprender a sonhar, isto é, precisam se tornar vozes abençoadas e

sonhadoras (para lembrar, aqui, o título de uma das suas mais importantes e

conhecidas obras, o livro de contos Estórias Abensonhadas).

Contudo, antes de atingir o estágio de vozes abensonhadas, o

moçambicano precisa ser visto como um ser livre, sujeito do seu destino,

independente da cor, crença ou local de nascimento. Em Cada Homem é uma

Raça, há o desejo de que o ser humano seja respeitado na sua diversidade

racial e cultural e que a sua riqueza interior e o seu desenvolvimento constante

estejam acima de qualquer preconceito. Preservados os direitos primordiais do

Homem, então, sim, é chegado o tempo de sonhar, de encontrar razões para

existir e procurar a sua transcendência.

A leitura de Estórias Abensonhadas convence da importância de sonhar.

É através do sonho que a efemeridade humana é combatida e a imortalidade é

alcançada. Só através da esperança e do esquecimento da finitude é que a

existência pode ser suportável. Dessa forma, o martirizado povo moçambicano

poderá continuar a viver. As estórias simples do cotidiano assumirão, neste

corpus textual, dimensões maravilhosas e fantásticas, criando outros mundos e

permitindo a antevisão de uma outra realidade futura.

Segundo Tutikian (2006), na década de 1980, a seca e a continuidade

da guerra civil, também chamada de segunda guerra colonial, provocam a fome

em grande escala. Este é o espaço relatado por Mia Couto em Terra

Sonâmbula18, a cuja temática alude o romance AVF. Em momentos diferentes,

os personagens de ambos os textos sofrem as consequências das guerras que

devastaram o país. Em um e outro romance o caldeirão cultural que forma o

povo moçambicano é o mesmo, o desrespeito com os mais velhos é da mesma

forma evidenciado e o povo anda perdido, sem identidade, como um

sonâmbulo.

Nos dois romances, sonhar é importante como sinônimo de fé, de

esperança num futuro melhor. Em uma das epígrafes de Terra Sonâmbula, o

personagem Tuahir afirma: “O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a

gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os

caminhos, para nos fazerem parentes do futuro”. (COUTO, 1995, p. 5).

Ermelindo Mucanga, o personagem narrador de AVF tem um último sonho:

“Agora era o último momento em que eu podia mexer no tempo. E fazer nascer

um mundo em que um homem, só de viver, fosse respeitado”. (COUTO, 2003,

p. 149).

Outro tema presente em AVF e que alude ao romance Terra Sonâmbula

é a questão da miscigenação formadora da população moçambicana.

Convivem, no asilo São Nicolau, uma população composta por pretos, brancos

e mulatos. Em Terra Sonâmbula, desfilam personagens representantes de

portugueses, árabes, e os nativos advindos de diversas tribos moçambicanas.

Assim a intratextualidade é recorrente na obra de Mia Couto porque o

escritor procura retratar a sociedade moçambicana representando-a na criação

literária em todos os seus aspectos: no encontro das suas várias culturas, nas

18 Primeiro romance de uma trilogia, seguido por A Varanda do Frangipani e O Último Vôo do Flamingo, que vai denunciar os efeitos devastadores da guerra sobre a população moçambicana.

relações sociais do dia-a-dia, na luta desse povo para conquistar o progresso

sem esquecer, contudo, as memórias ancestrais.

2 CULTURA

A cultura é um termo extremamente complexo, vinculado a diversas áreas

da atividade humana e, por essa razão, o seu conceito não foi construído de

forma unânime. A definição de cultura passou por modificações que

acompanharam os movimentos sociais e a evolução do pensamento ocidental.

Apresento, neste capítulo, os conceitos tradicionais de cultura e alguns

aspectos do debate teórico que Stuart Hall empreende sobre cultura e

sociedade, dentro dos Estudos Culturais. A pertinência do pensamento de Hall

neste trabalho diz respeito a sua preocupação em repensar a cultura no meio

de uma globalização complexa e contraditória, focalizando as dimensões

político-culturais da globalização a partir da diáspora negra. Teórico jamaicano

radicado na Grã-Bretanha, Hall é um dos mais proeminentes críticos da cultura

na atualidade.

2.1 Cultura e Estudos Culturais

Há o consenso de que cultura é o resultado de invenção social e, por ser

transmitida por ensinamentos a cada nova geração, é considerada uma

herança social19. Exclui-se do conceito de cultura os instintos, os reflexos inatos

e quaisquer outras formas biológicas hereditárias de comportamento humano.

A cultura, no mundo natural, é um tipo especial de fenômeno que

representa o mais alto nível da emergência evolutiva. A cultura adquirida por

qualquer indivíduo existe antes do seu nascimento e persiste depois da sua

morte. Os indivíduos e os grupos são os portadores e criadores da cultura, mas

a cultura tem um caráter de anonimato que a faz individual.

Em seu sentido mais amplo, a cultura consiste em uma série de padrões

integrados de comportamento, desenvolvidos a partir de hábitos de um povo. O

povo guarda seus próprios princípios e move-se de acordo com eles. Qualquer

que seja a forma pela qual um grupo de pessoas tenha chegado a seus

padrões comportamentais, estes são reflexos das idéias fundamentais que

movem esse grupo, como suas tradições, seus costumes, seu modo de ser,

suas normas de comportamento.

Essas normas, que na realidade são padrões culturais, na vida social

adquirem caráter compulsivo ou normativo. Os desvios às normas são vistos

com desagrado e socialmente combatidos, enquanto que a conformidade é

estimulada e recompensada. Cada novo indivíduo, quando nasce ou entra no

grupo, é submetido ao processo de aculturação. Os indivíduos são modelados

de maneira mais ou menos uniforme, segundo o paradigma comum. Um

mínimo de padronização é o destino de todos.

Quanto às normas e seus aspectos normativos, Shapiro observa que

existem diferenças entre os modelos de comportamento e o comportamento

real. “Há sempre uma distância entre aquilo que as pessoas dizem que fazem, 19 De todo o reino animal, o ser humano é a única criatura capaz de criar e conservar cultura, e essa capacidade é conseqüência da complexidade e plasticidade do seu sistema nervoso. (SHAPIRO, 1982).

ou que pensam que deveriam fazer, e aquilo que efetivamente fazem.”

(SHAPIRO, 1982, p. 225). As pessoas defrontam-se continuamente com o

conflito entre o interesse individual e suas obrigações em relação aos

interesses do grupo.20 Quando pensam e agem conforme o grupo a que

pertencem, expressam os padrões culturais desse grupo; quando agem para

satisfazer desejos individuais dominantes, podem contrariar frontalmente esses

padrões, criando, na própria cultura, normas usuais de violação dos padrões

culturais.

No romance AVF, há uma constante tensão entre os moradores do local,

velhos que representam a tradição, a memória do país, e a personagem do

inspetor Izidine Naíta, negro que estudara na Europa e “regressara a

Moçambique anos depois da Independência. Esse afastamento limitava o seu

conhecimento da cultura, das línguas, das pequenas coisas que figuram a alma

de um povo.” (COUTO, 2003, p. 44).

O asilo São Nicolau (antigo forte colonial), local em que ocorre a ação no

romance, apesar de ser um espaço reduzido, consegue representar o estado

em que vive o país no período pós-guerra.

O território está minado, as construções arruínam-se, a corrupção e a ganância refletem o poder, a organização familiar deteriora-se, o respeito pelos antepassados e pelas tradições esvanece-se e a nação está triste. Além disso, há um conflito palpável entre os novos valores de cariz ocidental e que se centram na alfabetização, na modernidade e na racionalidade e os valores antigos africanos erguidos sobre os mitos, o culto dos antepassados e a espiritualidade. (FARIA, 2005, p. 35).

20 Em AVF, a personagem Izidine Naíta evidencia a tensão entre o interesse da instituição a que se vincula por força do trabalho que exerce e os interesses do grupo que habita o Asilo São Nicolau.

A personagem do policial representa o moçambicano com formação

européia, aculturado, que não valoriza mais a tradição e, para os velhinhos do

asilo, o inspetor é um estranho, quase um estrangeiro, uma pessoa que não

merece confiança, pois viola os padrões culturais dessa comunidade.

Para a personagem Marta Gimo, enfermeira encarregada de cuidar dos

asilados e que comunga com eles os valores seculares da tradição

moçambicana, os velhos “estão a dizer coisas importantíssimas” ao inspetor,

mas este não os entende porque “não fala a língua deles”. Há conflito entre o

conhecimento transmitido pela tradição e o pensamento formado pela

educação adquirida nos moldes do colonizador, educação européia que traz

sopros de modernidade para dentro da comunidade fechada do Asilo São

Nicolau. Marta diz a Naíta que ele tem medo do passado, tem medo dos velhos

porque estes “lhe fazem lembrar de onde vem...” (COUTO, 2003, p. 78).

O que Shapiro (1982) entende como comportamento manifesto, aquele

que se expressa na atividade motora, está presente no romance através das

ações de feitiçaria de Nãozinha, da magia do pangolim, por exemplo; o

comportamento não-manifesto é aquele que se passa no íntimo dos indivíduos,

como pensamento, sonho e atividade das glândulas e órgãos internos. O

registro das impressões sensoriais conscientes, para Shapiro, é definitivamente

influenciado e muitas vezes determinado pela cultura.

Os antropólogos fazem uma diferenciação entre cultura material e cultura

não-material. A cultura material é sempre produto da ação manifesta e consiste

em bens tangíveis, enquanto que a cultura não-material consiste no

comportamento em si, tanto manifesto quanto não-manifesto.

Na discussão sobre a configuração da cultura, mostrou-se que o

comportamento de cada indivíduo é fortemente influenciado pelos padrões

culturais da sociedade em que vive. Cada cultura insere a sua marca sobre o

indivíduo que se desenvolve sob sua influência e cuja personalidade é uma

combinação resultante de sua constituição física e nervosa particular, dos

padrões de sua cultura e de suas experiências individuais em contato com o

mundo físico e com seus semelhantes. Cada homem é um tipo comum,

modelado pela cultura e pela sociedade e, no entanto, dono de uma

individualidade que a cultura não consegue sufocar.

No caso dos povos que sofreram o trauma da colonização, sejam eles

jamaicanos, brasileiros ou moçambicanos, a cultura nativa foi súbita e

violentamente invadida pela cultura do colonizador que, sem exceções, tentou

mudar radicalmente o modo de vida dos habitantes da terra, sob o pretexto de

trazer o benefício da civilização às populações conquistadas.

Por coincidência ou não, a própria vida do pensador Stuart Hall serve

para mostrar como a cultura, entendida como herança social, influencia a vida

de uma pessoa. Em entrevista a Kuan-Hsing Chen (HALL, 2006), sabe-se que

Hall nasceu e cresceu na Jamaica. Filho “mais escuro” de uma família de

classe média, viveu as tensões coloniais clássicas como parte da sua história

pessoal. Não compartilhava da cultura imperialista a que estava submetida a

maioria da população jamaicana, principalmente sua família. “Minha própria

formação e identidade foram construídas a partir de uma espécie de recusa

dos modelos dominantes de construção pessoal e cultural aos quais fui

exposto”. (Ibidem, p. 387).

A partir de problemas familiares, com uma mãe dominadora e colonialista

(sua irmã entrou em crise, da qual jamais se recuperou, após terminar o

namoro com um estudante de medicina que veio de Barbados para a Jamaica,

por imposição da família, porque o rapaz era negro) e um pai submisso, Hall se

conscientizou da contradição da cultura colonial, de classe e cor e de como

isso pode destruir uma pessoa, subjetivamente.

Isso acabou para sempre com a distinção entre o ser público e o ser privado, para mim. Aprendi, em primeiro lugar, que a cultura era algo profundamente subjetivo e pessoal, e ao mesmo tempo, uma estrutura em que a gente vive. Pude ver que todas essas estranhas aspirações e identificações que meus pais haviam projetado sobre nós, seus filhos, destruíram minha irmã. Ela foi a vítima, portadora das ambições contraditórias de meus pais naquela situação colonial. Desde então, nunca mais pude entender por que as pessoas achavam que essas questões estruturais não estavam ligadas ao psíquico – com emoções, identificações e sentimentos, pois para mim, essas estruturas são coisas que a gente vive. Não quero dizer apenas que elas são pessoais; elas são, mas são também institucionais e têm propriedades estruturais reais, elas te derrubam, te destroem. (HALL, 2006, p. 390),

Em 1951, Hall foi levado pela mãe para estudar na Inglaterra. “Ela me

trazia, pensava ela, ‘para casa’, num navio que carregava bananas, e me

entregou em Oxford.” (Ibidem, p. 392). Depois de décadas vivendo sob a

influência da cultura inglesa, tendo casado com uma historiadora inglesa, com

quem tem dois filhos, ingleses, Hall afirma que não é e nunca será um inglês,

embora não se sinta igualmente um jamaicano. Ele conhece intimamente os

dois lugares, mas não pertence completamente a nenhum deles, embora seja

um produto das duas culturas. É um ‘estrangeiro familiar’, aquele que viveu as

experiências de estar ao mesmo tempo dentro e fora de um lugar, de estar na

terceira margem.

De volta ao texto AVF, percebe-se que Domingos Mourão, o velho

português rebatizado Xidimingo, é um ‘estrangeiro familiar’ em terras

moçambicanas. Ele e a família, todos portugueses, moravam em Moçambique

desde o período colonial. Quando veio a independência do país, sua mulher,

ao ir embora com o ‘miúdo’, deu-lhe um ultimato: “– Você fica e eu nunca mais

lhe quero ver.” Mas era muito tarde para Domingos Mourão retornar. “Me sentia

como se tivesse entrado num pântano. Minha vontade estava pegajosa, minhas

querências estavam atoladas no matope21. Sim, eu poderia partir para uma

nova vida. Sou o quê, uma réstia de nenhuma coisa?” (COUTO, 2003, p. 48).

Mourão não é mais português e nem tampouco um moçambicano,

embora a África tenha lhe roubado o ser e o vazado de maneira inversa,

enchendo-o de alma.

É que estou tão desterrado, tão exilado que já nem me sinto longe de nada, nem afastado de ninguém. Me entreguei a este país como quem se converte a uma religião. Agora já não me apetece mais nada senão ser uma pedra deste chão. Mas não uma qualquer, dessas que nunca ninguém há-de pisar. Eu quero ser uma pedra à beira dos caminhos. (Ibidem, p. 49).

Izidine Naíta, embora de forma inversa a de Mourão, também é um

‘estrangeiro familiar’ na sua terra natal. Mesmo tendo retornado ‘para casa’,

voltou afetado profundamente pela cultura do colonizador. Culturalmente Naíta

não é nem moçambicano, nem português. Ambos, Mourão e Naíta, viveram a

experiência de estar dentro e fora de um mesmo lugar.

Voltando a Stuart Hall, em 1964, na Universidade de Birmingham, na

Inglaterra, ele participou da fundação do Centre for Contemporary Cultural

Studies (CCCS), “que deu o nome de Estudos Culturais a uma forma de pensar

21 Lodo, lama, conforme glossário apresentado ao final do romance AVF.

sobre cultura”, conforme explica Liv Sovik na apresentação que faz ao livro de

Hall, Da Diáspora: identidades e mediações culturais (2006, p.11).22

Foi no período sob a direção de Stuart Hall, de 1968 a 1979, que se consolidaram os Estudos Culturais, a partir de uma preocupação política e do projeto de colocar em bases teóricas mais sólidas as leituras de “textos” da cultura, que incluíam desde o fotojornalismo e programas de televisão, até a ficção romântica assumida por mulheres e as subculturas juvenis britânicas (leia-se teds, mods, skinheads, rastas) às vésperas do movimento punk. (SOVIK, 2002, in HALL, 2006, p. 11).

A professora Sovik afirma que Hall se associou, num primeiro momento, a

jovens caribenhos que formaram a primeira geração de uma inteligência negra,

anticolonialista. Mais tarde fez parte de um grupo fundamental para a formação

da New Left inglesa, que incluiu E.P. Thompson, Raymond Williams, Raphael

Samuel, Charles Taylor, muitos deles originários das margens, seja por motivos

de classe ou geografia.

Citando Williams, Hall (HALL, 2006, p. 125) concorda que, concentradas

na palavra ‘cultura’, existem questões diretamente propostas pelas grandes

mudanças históricas que as modificações na indústria, na democracia e nas

classes sociais representam de maneira própria e às quais a arte responde

também, de forma semelhante.

A linha de pensamento de Thompson define cultura ao mesmo tempo

como os sentidos e valores que nascem entre as classes e grupos sociais

diferentes, com base em suas relações e situações históricas, pelas quais eles

lidam com suas condições de existência e respondem a estas; e também como

22 Segundo a professora Liv Sovik, que organizou e fez a apresentação do livro DA DIÁSPORA : identidades e mediações culturais , só foi possível a publicação dessa obra graças à disposição do autor, STUART HALL, de sugerir textos e ver publicado no Brasil um livro unicamente de sua autoria, já que suas publicações acontecem, via de regra, em periódicos.

as tradições e práticas vividas através das quais esses ‘entendimentos’ são

expressos e nos quais estão incorporados.

Williams junta esses dois aspectos – definições e modos de vida – em torno do próprio conceito de cultura. Thompson reúne os dois elementos – consciência e condições – em torno do conceito de ‘experiência’. (HALL, 2006, p. 133).

Na visão de Hall, a vertente dos Estudos Culturais partiu dos melhores

elementos dos paradigmas culturalista e estruturalista. “Eles nos devolvem

constantemente ao terreno marcado pela dupla de conceitos fortemente

articulados, mas não mutuamente excludentes, de cultura/ideologia.” (Ibidem,

p. 148). Afirma, também, que não há nenhuma definição única e não

problemática de cultura. O conceito, para Hall, continua complexo – “um local

de interesses convergentes, em vez de uma idéia lógica ou conceitualmente

clara.” (Idem, p. 126).

2.2 A sociedade moçambicana

Na sua epopéia Os Lusíadas, Camões narra-nos a história da viagem de

Vasco da Gama, capitão da esquadra portuguesa que tinha como missão

encontrar o caminho marítimo para as Índias. O escritor não conta a história

dessa façanha de forma cronológica. No canto I, descreve a viagem da frota

partindo do Canal de Moçambique23, onde a esquadra aportou em 02 de março

de 1948, dois meses antes de chegar à Calecute, na Índia.

23 O Canal de Moçambique é um braço de mar do Oceano Índico que estabelece o limite leste do território de Moçambique com a ilha de Madagascar, as ilhas de Comores e a possessão francesa de Mayotte. O Canal é, hoje, uma rota de navegação preferencial nas ligações marítimas entre as Américas do Norte e do Sul, o Golfo Pérsico e a África Austral e Oriental. Esta rota comporta tráfego tanto de petroleiros como de navios contentorizados e de carga

Após esse primeiro contato com a costa oriental africana, citado por

Camões, os portugueses ocuparam Moçambique, oficialmente, em 1507. No

entanto, pelo menos dois séculos antes desses acontecimentos, o porto de

Moçambique já recebia comerciantes, especialmente árabes e indianos. Esse

fato, aliado à grande diversidade de tribos indígenas, gerado pelo império

Monomotapa, gerou uma sociedade multiracial e, portanto, multicultural.

Stephan (1975), moçambicano formado no Instituto Superior de Ciências

Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, apresenta algumas

considerações sobre a sociedade de seu país de nascimento, dados

importantes para uma estrangeira pensar sobre a estrutura cultural da

sociedade em Moçambique no ano em que Samora Machel tornou-se o

primeiro presidente do país livre do poder colonial.

Conforme Stephan (1975), a sociedade moçambicana já era organizada

segundo os usos e costumes tradicionais antes da chegada dos Portugueses a

Moçambique. A maior parte do povo moçambicano existente antes da

colonização pertencia ao grande grupo banto (ba-ntu)24, formado por etnias

diversas que constituem uma unidade lingüística e não uma raça local (Ibidem,

p. 52).

No poderoso reino de Monomotapa (Nwana wa Muthapa), que abrangia

toda a região norte de Moçambique, incluindo partes do centro, a estrutura

social era mais ou menos feudal25, enquanto que a estrutura familiar era

geral, bem como tráfego de cabotagem regional da África Austral e Oriental e cabotagem doméstica para Moçambique. 24 O termo banto foi criado por W.H.Bleck no século XIX, por volta de 1860. Ao verificar que um grande número de dialetos apresentava, para designar ‘pessoa’, o mesmo vocábulo ‘mu-ntu’, Bleck entendeu que devia apelidar este grupo de banto ‘ba-ntu’, plural de ‘mu-ntu’. (STEPHAN, 1975, p. 52). 25 Quando Stephan usa a expressão “mais ou menos feudal”, ele afirma que não devemos entender o regime feudal dos povos moçambicanos “do mesmo modo que se entende nos

essencialmente patriarcal. A região sul era dominada pelo reino de Gaza e

Manicusse, da dinastia dos Vátuas (Ba-twa), também sob um regime mais ou

menos feudal, e a estrutura familiar, até hoje, é de caráter patriarcal.

Por causa dessa sociedade bem organizada, segundo Stephan, os

europeus não foram bem sucedidos nas suas primeiras incursões sobre a terra,

porque quiseram acabar de imediato com os usos e costumes tradicionais. A

Igreja Católica, por exemplo, não teve sucesso em Moçambique porque os

negros, ao longo da história, nunca conceberam o celibato como um valor a

preservar, nunca descobriram a importância da monogamia, nunca entenderam

que consultar um adivinho ou tratar-se com um curandeiro representasse

algum tipo de mal.

Mesmo para os moçambicanos que se diziam católicos e faziam parte

das estatísticas (as conversões de fato eram em número reduzidíssimo,

conforme Stephan), a poligamia continuava a ocupar um lugar de destaque, o

adivinho continuava a ser consultado, o curandeiro continuava a ser procurado,

e a noção de vida além-túmulo, como prega o catolicismo, era tida como

duvidosa ou simplesmente rejeitada. O africano, de modo geral, acreditava, e

ainda hoje acredita, que a alma do defunto continua a viver na sua terra, perto

dos familiares.

Quanto à estratificação social do povo moçambicano, Stephan (1975)

apresenta dois grandes grupos: o urbano, formado por operários do meio

industrial; e o rural, composto por vários agrupamentos étnicos e com caráter

essencialmente comunitário.

países europeus ou outros, dado que as características que se verificam naqueles povos são totalmente diferentes das observadas nestes países” (Ibidem, p. 52), mas não informa quais são essas diferenças.

A camada rural era constituída por grupos de pastores, caçadores,

pescadores e camponeses que encontravam, no vínculo que os unia à terra,

um elemento de estabilidade, de segurança, ainda que essa segurança

estivesse sempre ameaçada por calamidades agrícolas, circunstâncias

atmosféricas, perdas de colheitas e interferências dos colonizadores.

A heterogeneidade da estrutura social da população urbana permitia a

distinção dos grupos nos seguintes aspectos: 1) um grupo formado por

brancos; 2) um grupo formado pelo cruzamento de colonos europeus com

mulheres negras, ou resultante do cruzamento de outros elementos não

aborígenes. Esse grupo, embora numericamente reduzido, era o segundo

grupo dominante do ponto de vista social. A ele se incorporaram os nativos que

assimilaram a cultura do colonizador26; 3) um grupo formado por negros em

processo de evolução cultural, ou seja, já não observavam a cultura tradicional

e nem acatavam a disciplina clânica ou tribal. Eram chamados de

“destribalizados” por romperem com os costumes da tribo a que pertenciam; 4)

e um grupo formado por elementos extra-europeus, principalmente asiáticos,

como os indianos, os paquistaneses e os chineses.

A diversidade étnica que formou o povo moçambicano criou, por

conseguinte, diferentes agrupamentos lingüísticos. Stephan (1975) apresenta

dez grandes agrupamentos étnicos e os seus respectivos subgrupos, bem

como os grupos lingüísticos que deles se originaram. Admite-se que

Moçambique recebeu povos não bantos, com línguas e dialetos próprios, mas

que, em contato com os povos bantos, foram perdendo a forma primitiva,

26 Os assimilados, assim chamados pelos colonizadores, consideravam-se brancos por serem os únicos que tinham direito a adquirir Bilhete de Identidade, enquanto que o resto da população negra podia apenas exibir uma Caderneta Indígena, indicando sua inferioridade perante os demais grupos sociais.(STEPHAN, 1975, p. 59).

dando origem ao grupo lingüístico banto, com diversas línguas e dialetos. No

Anexo 4 apresento o demonstrativo que Stephan (1975) faz dos grupos étnicos

e lingüísticos de Moçambique e suas respectivas línguas e dialetos.

Em que pese a quantidade de línguas e dialetos existentes em

Moçambique, a nova constituição do país, no seu artigo 10, define que a língua

portuguesa é a língua oficial da República de Moçambique. O artigo 9º da

mesma constituição enfatiza que “O Estado valoriza as línguas nacionais como

patrimônio cultural e educacional e promove o seu desenvolvimento e utilização

crescente como línguas veiculares da nossa identidade”.

A língua portuguesa, em Moçambique, é a língua de direito, mas não a de

fato. O Recenseamento Geral da População e Habitação, realizado em 1997,

chegou aos seguintes resultados: apenas 6% da população moçambicana tem

o português como língua materna e 40% declarou que a sabe falar; na capital

Maputo esses números sobem para 25% e 87%, respectivamente. Pela história

de outros países colonizados, sabe-se que a língua oficial irá aos poucos

ocupando maiores espaços nas comunidades e apenas as línguas nacionais

mais fortes (com um contingente maior de falantes) continuarão sendo usadas

junto com a língua portuguesa.

Na sua obra literária, Mia Couto apresenta ao mundo a língua portuguesa

repleta de influências de línguas africanas, árabes, indianas. A língua

portuguesa com sotaque moçambicano. Tal qual um artífice, Couto parte de

uma real situação de uso da língua pelas populações urbanas e rurais de

Moçambique – esses atores do cotidiano que se configuram como os

autênticos falantes, e que recriam a língua na dinâmica das suas vidas – e

transporta-a para a linguagem ficcional.

Na verdade, trata-se de uma linguagem que, mais do que uma invenção ou criação lingüístico-literária de Couto, corresponde às formas quotidianas de comunicação das camadas populares de moçambicanos que, tendo a língua portuguesa como língua segunda, se sentem muitas vezes na contingência de se expressar – não sem dificuldades ... mas expressando-se! – numa língua que, não sendo a sua, é a língua oficial da sua terra, além de ser uma língua de prestígio. (NGOMANE, 1999, p. 285).

Segundo Ngomane, a língua portuguesa em Moçambique tem uma outra

maneira de ser falada. É um falar saído das camadas onde um escritor atento

como Mia Couto vai buscar, além da matéria prima para a linguagem das suas

personagens, a inspiração para recriar a língua como ele a recria. A obra de

Mia Couto mostra um escritor criativo nos campos do léxico, da morfologia, da

sintaxe e da semântica da língua portuguesa, “onde, funcionando com os

mecanismos disponíveis na gramática dessa língua, instala um complexo

sistema de neologismos e outros tipos de expressões”. (NGOMANE, 1999, p.

286).

A sociedade moçambicana formou-se nesse caldeirão em que se

misturaram diferentes falares, múltiplas tradições, trágicos momentos

históricos. É um povo híbrido, multicultural. Conforme Mia Couto (em

entrevista27 à jornalista e escritora brasileira Marilene Felinto, publicada no

caderno Mundo do jornal Folha de São Paulo, em 21 de julho de 2002), depois

da independência do país houve um esforço dos governantes (primeiro

socialista, depois capitalista) de remodelar a sociedade moçambicana. Mas os

modelos não funcionaram porque “eram deslocados de nós, não despertavam

aquilo que era a cultura mais profunda, que era a alma mais funda deste país.”

(COUTO, Anexo 2). Conforme Mia Couto, é impossível compreender a África

27 Anexo 2

sem compreender uma coisa que nem tem nome, que é a religição africana,

chamada às vezes de animista.

Ermelindo Mucanga, o narrador de AVF, é um morto infeliz, um morto

desencontrado da sua morte, uma alma que vagueia de “paradeiro em

desparadeiro”. (COUTO, 2003, p. 11). Não será nunca um defunto definitivo,

com direito a ser chamado e amado pelos seus familiares, porque morreu e foi

enterrado longe da sua terra e em desacordo com os costumes da sua tribo.

Ermelindo foi desrespeitado no mais profundo da sua crença, na essência da

tradição dos Mucangas que é cumprir com as obrigações do antigamente.

Na entrevista à Felinto, Couto afirma que o racismo colonial era mais

forte contra os mulatos e os pretos. Ele era tido como branco de segunda,

porque nasceu em Moçambique, mesmo que seus pais sejam de nacionalidade

portuguesa. Por ser branco de segunda, não podia ter acesso a certas funções

no governo colonial. Seus pais eram brancos de primeira, Couto era branco de

segunda, seus filhos seriam brancos de terceira, e isso estava hierarquizado na

sociedade colonial.

Era um sistema que discriminava mais os pretos, mas criou-se uma

porta que determinou a diferença na comparação com a colonização inglesa.

Em Moçambique era possível, através do processo de assimilação, sendo

preto, ser branco. O assimilado, se abdicasse da sua cultura, da sua religião,

do seu nome (porque tinha que mudar de nome) passava a ter privilégios que o

resto da sua raça não tinha.

Em seu depoimento ao inspetor Izidine Naíta, Marta Gimo confessa: “eu

fui educada como uma assimilada. Sou de Inhambane, minhas famílias já há

muito perderam seus nomes africanos.” (COUTO, 2003, p. 129). Por ser

assimilada, Marta Gimo pode concluir um curso técnico profissional na área da

enfermagem. “Sou neta de enfermeiros.” (Ibidem, p. 129).

Nos primeiros anos da independência, segundo Mia Couto, os brancos e

mulatos passaram a ser discriminados. Ele, como militante da Frelimo28, nunca

foi objeto de racismo, nunca sofreu nenhum tipo de preconceito. No cotidiano,

Couto esquece-se da sua raça. “Agora, de vez em quando, em casos em que

pontualmente, por razões de um certo oportunismo, quando a porta é estreita e

só pode passar um, aí lembram-se que eu sou branco e que portanto eu não

seja tão representativo assim.” (COUTO, anexo 2).

No romance AVF, a personagem Vasto Excelêncio29 enfrenta problemas

pela condição de ser mulato. Serviu às frentes revolucionárias por entender

que o colonialismo era seu maior inimigo. “Me diziam que Vasto, nos campos

de batalha, se comportava sem moral, agindo da mesma forma que os inimigos

a quem ele chamava de demônios” (COUTO, 2003, p. 106), diz Ernestina,

viúva de Excelêncio, na carta que enviou à Marta Gimo. Depois da

independência de Moçambique, quando os homens por quem lutara assumiram

o poder, Vasto foi traído por ser mulato. Marta explica a Naíta:

Os melhores anos de sua vida ele os dera à revolução. O que restava dessa utopia? No início se descontaram aparências que nos dividiam. Com o tempo lhe passaram a atirar à cara a cor da pele. O ele ser mulato esteve na origem daquele exílio a que o obrigavam. Desiludido, ele não se aceitava. Tinha complexo da sua origem, da sua raça. (Ibidem, p. 131).

28 Frente pela Libertação de Moçambique. (TUTIKIAN, 2006, p. 62). 29 Vasto Excelêncio, após servir na guerrilha civil, foi destacado para ser o diretor do Asilo São Nicolau, antiga fortaleza colonial. Para investigar o seu assassinato é que o inspetor Izidine Naíta empreendeu viagem ao Asilo. (COUTO, 2003).

As diversas vozes que se manifestam no romance AVF representam uma

sociedade moçambicana multifacetada. A colonização portuguesa não teve

forças para matar os usos e costumes seculares da população, mesmo usando

da opressão política e religiosa com as quais pretendia submeter as nações

africanas aos costumes ditos civilizados. Não conseguindo aniquilar as culturas

dos povos locais, a colonização deu origem a um rico mosaico cultural, do qual

o escritor Mia Couto retira suas personagens que, sem poderem dar conta das

mudanças dramáticas da história, reinventam o seu cotidiano.

2.3 Identidades

Diferentemente das classificações histórico-antropológicas, que dividem

a existência humana em períodos (Pré-História, Idade Antiga, Média, Moderna,

Contemporânea) a partir de mudanças naturais (geológicas ou biológicas),

sociais ou fatos políticos relevantes, a modernidade recebe essa denominação

para configurar e denotar uma modificação no modo de compreensão do

mundo que se observa a partir de meados do século XV e que se desenvolve

até hoje.

O modo de compreensão moderna do mundo traz em si as seguintes

características: a valorização do elemento da subjetividade e da razão como

instância por excelência de definição dos parâmetros sociais, políticos, culturais

e cognitivos; a secularização30, que possibilitou ao indivíduo ser sujeito do seu

30 Na Idade Média, a Igreja Católica, representada pelo Papa, era uma organização constituída de um corpo de governabilidade, dotado de funções executivas, financeiras, administrativas e judiciais, que constituíam o Estado mais bem organizado da Europa. Em algumas regiões, a Igreja detinha mais poderes que os próprios imperadores, o que passou a incomodar alguns monarcas. A oposição entre poder secular e poder eclesiástico teve seu ápice na disputa entre o Papa Bonifácio VIII e o rei de França, Filipe, o Belo. Filipe venceu Bonifácio VIII com o apoio

próprio destino, atribuindo significado ao tempo e ao lugar no qual está

inserido; e a capacidade crítica da razão, cujo patamar de desenvolvimento

permite ao ser humano inserido na modernidade implementar uma permanente

discussão acerca dos pressupostos que o movem enquanto indivíduo e

enquanto ser social, bem como viabilizam o distanciamento necessário para

este reconhecer modos de compreensão de mundos diferentes do seu e

respeitá-los em sua especificidade. (HANSEN, 2000).

Segundo Boaventura de Sousa Santos (2005), a preocupação com a

identidade aparece com a modernidade, inicialmente como uma inquietação

em relação à subjetividade. O humanismo renascentista é a primeira afloração

paradigmática da individualidade como subjetividade. Trata-se de um

paradigma emergente onde se cruzam tensionalmente múltiplas linhas de

construção da subjetividade moderna. Santos dá importância às tensões que

ocorrem entre a subjetividade individual e a coletiva e entre a subjetividade

contextual e a abstrata.

O triunfo da subjetividade individual é propulsionado pelo princípio do

mercado e da propriedade individual, que acarreta consigo a exigência de um

super-sujeito que regule e consinta a autoria social dos indivíduos. Esse sujeito

monumental é o Estado liberal.

Sendo uma emanação da sociedade civil, por via do contrato social, o Estado liberal tem poder de império sobre ela; sendo, ao contrário desta, uma criação artificial, pode ser artificialmente manipulado ad infinitum; sendo funcionalmente específico, pode multiplicar as suas

dos civis franceses e alguns dissidentes do próprio clero francês. No final da Idade Média, apesar da excelente estruturação política da Cúria Romana, surgiam, vigorosos, os novos Estados europeus, com seus reis e príncipes pouco dispostos a se sujeitarem às ordens papais. Estavam germinando os Estados Modernos. Denomina-se secularização a esse processo de autonomia do poder civil frente ao poder eclesiástico, iniciado no século XIII. (RUST, 2006).

funções; sendo um Estado mínimo, tem potencialidades para se transformar em Estado máximo.(SANTOS, 2005, p. 138).

Contemporaneamente, estamos numa fase de revisão radical do

paradigma epistemológico da ciência moderna e, nessa releitura, o Estado-

Nação, longe de ser uma entidade estável, natural, começa a ser visto como a

condensação temporária dos movimentos que verdadeiramente caracterizam a

modernidade política: Estados em busca de nações e nações em busca de

Estados. A cultura nacional, tal como o Estado nacional, é confrontada com

pressões contraditórias. De um lado, a cultura global, do outro, as culturas

locais e as regionais. As identidades culturais são sempre resultados

transitórios e fugazes de processos de identificação.

Mesmo aquelas identidades tidas como mais sólidas, como a de mulher, homem, país africano, país latino-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em última instância pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades são, pois, identificações em curso. (SANTOS, 2005, p. 135).

Stuart Hall, em seu livro A Identidade Cultural na Pós-Modernidade

(2006), relaciona o conceito de globalização com a questão da identidade

cultural, tendo como item mediador o conceito de pós-modernidade. As velhas

identidades, responsáveis pela estabilidade do mundo social, segundo Hall,

começam a entrar em declínio, dando lugar às novas identidades,

caracterizadas pela fragmentação do indivíduo moderno. Diante dessa

realidade, Hall propõe três concepções de identidade: a do sujeito do

Iluminismo, baseado no indivíduo centrado; a do sujeito sociológico, em que o

núcleo interior do indivíduo não era autônomo e auto-suficiente, mas formado

na relação com outras pessoas; e a do sujeito pós-moderno, resultado de

mudanças estruturais e institucionais que torna o processo de identificação

instável e provisório, tornando a identidade pouco fixa e permanente.

De acordo com Hall, antes da Era Moderna o indivíduo encontrava sua

identidade ancorada em apoios estáveis, como as tradições e as rígidas

estruturas sociais. Na modernidade isso deixa de acontecer, o que vai gerar

profundas mudanças no sujeito e, consequentemente, na sua identidade. Já na

modernidade tardia31, conforme o autor, a concepção de identidade passa por

transformações substanciais porque o sujeito sofre um profundo processo de

descentramento, cuja origem pode ser buscada nas teorias revolucionárias de

Marx, Freud, Saussure, Foucault, entre outros. Essas transformações não

atingem apenas as identidades individuais, mas também as identidades

culturais/nacionais, igualmente deslocadas pela globalização. Para Hall, é

preciso considerar que

as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação. [...] Segue-se que a nação não é apenas uma entidade política, mas algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural. As pessoas não são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação; elas participam da idéia da nação tal como representada em sua cultura nacional. [...] As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. [...] As culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre a “nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. (HALL, 2006, p. 48-51).

As identidades nacionais são marcadas pelas diferenças, embora sejam

representadas como unificadas. Os conceitos aparentemente homogêneos de 31 Hall utiliza o termo com o sentido que lhe deu primeiramente Anthony Giddens (2002), como sendo uma nova interpretação do mundo contemporâneo.

etnia, raça, por exemplo, na vida real desnudam as divergências culturais. Com

o fenômeno da globalização, as identidades culturais/nacionais sofrem um

processo de deslocamento e fragmentação. Afirma Hall:

Quanto mais a vida se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem ‘flutuar livremente’. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. (Hall, 2006, p. 75).

Para o autor, a globalização contesta e desloca as identidades

centradas, que ainda se encontram fechadas numa cultura nacional, exercendo

uma influência pluralizante sobre as identidades, tornando-as mais diversas.

Em toda parte, para Hall, estão surgindo identidades culturais em transição,

que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais,

e que são o produto de complicados cruzamentos e misturas culturais cada vez

mais comuns no mundo globalizado.

Quando Hall fala no surgimento das identidades culturais em transição,

dentro do processo da globalização, está se referindo à diáspora dos países

pobres para os países ricos. Mas é possível aplicar esse entendimento à

identidade cultural moçambicana, tendo em vista o hibridismo promovido pelas

múltiplas culturas que aportaram em Moçambique, principalmente na área

urbana. Na área rural, os moçambicanos, majoritariamente, conservam os

costumes ligados à tradição.

Marcos Roberto Teixeira de Andrade (2008), que estuda o híbrido no

romance AVF, apresenta a personagem Navaia Caetano como o melhor

representante dessa sociedade de contrastes. Caetano define-se como o

menino-velho, aquele que sofre a doença da “idade antecipada”, um “menino

que envelheceu logo à nascença”. (COUTO, 2005, p. 28). Segundo Andrade,

Navaia Caetano é criança e ancião a um só tempo: o contraste habita nele. À

semelhança da sociedade moçambicana contemporânea, o antigo e o novo

combatem em seu íntimo. Há, corporificada nele, essa tensão entre a tradição

e o moderno. Essa sua condição ambígua de menino e velho decorre de uma

maldição familiar.

Qual a razão desse castigo? Ninguém falava, mas a origem do mal todos conheciam: meu pai visitava muito o corpo de minha mãe. Ele não tinha paciências para esperar durante o tempo que minha mãe aleitava. É ordem da tradição: o corpo da mulher fica intocável nos primeiros leites. Meu velho desobedecia. Ele mesmo anunciou como superar o impedimento. Levaria para os namoros um cordão abençoado. Quando se preparasse para trebeliscar a esposa ele amarraria um nó na cintura da criança. O namoro poderia então acontecer sem conseqüências. Resolvia-se, na aparência. Porque começou aí minha desgraça. Agora sei: nasci de um desses nós mal atados na cintura de um falecido irmão. (COUTO, 2005, p. 30).

Andrade (2008) observa que a maldição que pesa sobre o menino-velho

tem origem exatamente na quebra da tradição. “Esse complexo personagem,

que corporifica em si o contraste entre a tradição e o novo, já nasce sob o

signo da ruptura com a tradição” (Ibidem, p. 4). Uma das conseqüências da

maldição de Navaia é a proibição de contar a sua própria história, pois no

momento em que terminasse de contá-la, ele morreria. Apesar do

impedimento, Navaia não consegue abrir mão de contar sua própria vida (ou de

narrar sua identidade). Aconselhado por seu tio materno, Taúlo Guiraze,

Navaia conta a sua história com um pouco de verdade e um outro pouco de

invenção.

Esse parece ter sido, conforme Andrade, o estratagema adotado por

Navaia Caetano: no processo de narrar sua identidade, de produzir sua

imagem, ele opta pela invenção, pela idealização. Não conseguindo abrir mão

de “viver muito oralmente” (COUTO, 2005, p. 28), ele passa a inventar suas

histórias, “mas nem sempre, nem tudo”. (Ibidem, p. 36). A identidade que

emerge de suas narrações é uma identidade incerta, ambígua: há um misto de

invenção e verdade. É uma narrativa híbrida, inconclusa, que mescla o já

acontecido ao desejo do que pode ou deve acontecer. Navaia Caetano retoma

a sua narrativa, a cada noite, sem nunca a concluir. Como uma Xerazade

moderna, mantém suas histórias sempre em suspensão.

O próprio fato de ele retomar sua narrativa todas as noites é bastante significativo: há, aí, uma bela imagem da identidade como um processo em constante elaboração, ou como, segundo o dizer de Stuart Hall, “uma celebração móvel”. Assim, da mesma forma como os hibridismos contemporâneos têm produzido identidades ambíguas, não-resolvidas, da mesma forma, a identidade que emerge das narrativas de Navaia Caetano, o menino-velho, um ser híbrido, é ela também ambígua e não-resolvida – inconclusa. (ANDRADE, 2008, p. 7).

A respeito da pluralidade cultural própria da sociedade moçambicana (o

que é certo falar quanto às sociedades africanas de forma geral), Mia Couto

afirma que ao aceitarem a sua identidade como sendo múltipla, mestiça e

dinâmica os moçambicanos “têm a possibilidade de se reinventarem e não se

perderem em ilusórias viagens à ‘essência’ da sua identidade.” (COUTO, 2005,

p. 80). Quem é moçambicano e tem hoje entre quarenta e cinqüenta anos já

atravessou realidades históricas muito diversas.

Pertenceram, primeiro, a um Moçambique colonial. A um Moçambique que ainda não era Moçambique. Nessa altura, gastavam da cantina de um português que, às vezes, acertava na língua local mas falhava sempre nas contas. Gastavam pouco porque o dinheiro era escasso. Depois, veio o país da Independência, o cantineiro embalou a sua existência num apressado contentor. O cantineiro saía do país e Moçambique entrava no socialismo. Passamos a gastar na Loja do Povo. Gastar é um eufemismo. Porque não havia em que gastar. Veio essa coisa a que, à falta de nome, chamamos guerra civil e a ex-cantina virou ex-Loja do Povo. Tudo ardeu e até a saudade do cantineiro se consumiu lá num recanto de Portugal. Por fim, veio o Moçambique do capitalismo e a cantina reabriu com alguém que, às vezes, acerta na língua, mas que continua a errar nas contas. (Ibidem, p. 86 e 87).

Não foi só o país que mudou. Os moçambicanos também mudaram. A

própria idéia que tinham sobre quem eram foi alterada. Nas décadas de 70 e

80, a identidade moçambicana era simples e homogênea: eram

moçambicanos. “Não era pensável, nesse momento, concebermo-nos como

macuas, macondes, pretos, mulatos, brancos.” (Ibidem, p. 87). Segundo Mia

Couto, outras formas de pertencimento identitário estão nascendo junto com a

identidade primeira, que é ser moçambicano. Pode ser uma identidade racial,

tribal, religiosa. Alguém que possa ser identificado como sendo do mesmo

grupo, da mesma região, da mesma etnia, do mesmo sexo, da mesma religião.

Para Mia Couto, à primeira vista, não é errado que alguém faça uso de

uma das suas múltiplas identidades para “navegar nestas águas escuras. O

que pode estar errado, sim, é tentar criar hierarquias: os que são mais

moçambicanos, os que são menos moçambicanos.” (Ibidem, p. 89). O que

pode ser perigoso, segundo o autor, é criar identidades-refúgio, identidades

que nascem da negação da identidade dos outros.

Quando a personagem Domingos Mourão, no romance AVF, presta

depoimento ao inspetor Izidine Naíta, o velho português fala da forma como era

maltratado por Vasto Excelêncio, diretor do asilo. Numa tarde de mar e céu

muito azuis, Domingos Mourão desejou morrer porque “me sentia em

sossegada felicidade, nenhuma dor me atrapalhava”. (COUTO, 2003, p. 51).

Seus pensamentos foram interrompidos pelos insultos de Excelêncio: “ –

Queres mesmo morrer, velho? Ou não será que já morreste e, simplesmente,

não foste informado? [,,,] – Quer saber por que sempre lhe tratei mal, Mourão?

A você que é um anjo caído dos lusitanos céus?” (Ibidem, p. 52 e 53).

Ernestina tenta explicar ao português as atitudes do marido:

– Você não entende as maldades dele, não é? – Não. – É que você é branco. Ele precisa de o maltratar. – E porquê? – Tem medo de que o acusem de racismo. (Ibidem, p. 53).

Vasto Excelêncio, mulato, não era preto o suficiente para ser

considerado de confiança pelo novo poder que assumiu o governo de

Moçambique. Encontrava-se perdido e tentava a sua afirmação identitária na

negação da identidade do branco que sempre representou o inimigo do povo

moçambicano.

Segundo Mia Couto (2005, p. 86), a identidade é desenhada e

redesenhada pela própria vida. O Homem não deixa nunca de ser atacado pela

História. Os moradores do asilo São Nicolau, representantes da sociedade

moçambicana, trazem nas suas identidades as marcas que a dramática história

de Moçambique deixou em suas vidas.

2.4 Multiculturalismo

Nossas sociedades contemporâneas são inegavelmente multiculturais.

Nelas, as diferenças derivadas de dinâmicas sociais como classe social,

gênero, etnia, orientação sexual, cultura e religião expressam-se nas distintas

esferas sociais. O termo multiculturalismo, todavia, pode indicar diversas

ênfases: a) atitude a ser desenvolvida em relação à pluralidade cultural; b)

meta a ser alcançada em um determinado espaço social; c) estratégia política

referente ao reconhecimento da pluralidade cultural; d) corpo teórico de

conhecimentos que buscam entender a realidade cultural contemporânea; e)

caráter atual das sociedades ocidentais. (CANEN e MOREIRA, 2001). O

multiculturalismo representa, em última análise, uma condição inescapável do

mundo ocidental, à qual se pode responder de diferentes formas, mas não se

pode ignorar.

A conceituação de multiculturalismo deve ser entendida a partir do

próprio desdobramento do conceito de cultura. No século XVII, na França, o

conceito de cultura era utilizado para designar a formação e educação do

espírito humano e tinha um caráter de uniformização e universalidade. Já no

século XVIII, o termo passa a ser utilizado na Alemanha para fazer a distinção

entre várias culturas regionais. No pensamento alemão, o conceito de cultura

destaca o caráter de distinção e particularidade. No século XX, mantém o

confronto entre universalismo e particularismo. Desta tensão surgem

primeiramente duas correntes de estudos multiculturais: uma universalista, que

pretende adequar a uma proposta única a formação de diversos atores

culturais em um contrato de identidade cultural, consolidando a democracia e a

identidade nacional; uma outra, particularista, que denuncia a impossibilidade

de um contrato e busca a pluralidade das manifestações multiculturais e o

espaço para estas manifestações.

Já foi mencionado na apresentação deste capítulo que não há consenso

na definição de cultura. Mesmo na Antropologia, cujo centro é o conceito de

cultura, verifica-se duas tendências nas definições e conceituações do termo. A

primeira diz respeito ao aspecto particular e identitário de um grupo ou mesmo

de um indivíduo (herança alemã); a outra se refere a uma identificação

universalizante com o grupo maior, nação, povo (herança francesa). Dessas

duas heranças surgiram os estudos culturais e mais precisamente o

multiculturalismo.

Para esta dissertação, interessa-me o pensamento de Peter McLaren a

respeito das questões multiculturais. O termo multiculturalismo, segundo

McLaren, não pode ser visto como único e uniforme, posto que se apresenta

polissêmico, podendo incluir desde posturas de reconhecimento da diversidade

cultural sob lentes de exotismo e folclore, passando por visões de assimilação

cultural, até perspectivas mais críticas de desafio a estereótipos e a processos

de construção das diferenças.

O multiculturalismo, em seu sentido amplo, apregoa uma visão

caleidoscópica da vida e da fertilidade do espírito humano, seja em relação ao

um aspecto universalizante, como a cultura de um país, seja em um aspecto

particular, como as culturas de grupo, etnia, gênero, entre outras. A polifonia do

conceito deu margens a diversos tipos de multiculturalismo, que McLaren

apresenta em seu livro Multiculturalismo Crítico (2000), sob quatro

perspectivas: o multiculturalismo conservador ou empresarial, o humanista

liberal, o liberal de esquerda e o crítico e de resistência.

O multiculturalismo conservador apresenta uma visão colonialista em

que as pessoas afrodescendentes são representadas como escravos e

escravas, como serviçais e como aqueles que divertem os outros. De acordo

com o autor, tais visões estiveram fundamentadas nas atitudes auto-elogiosas,

autojustificatórias e profundamente imperialistas dos europeus e norte-

americanos. O multiculturalismo conservador usa o termo diversidade para

encobrir a ideologia de assimilação que sustenta sua posição, sendo

essencialmente mono-idiomático, não trabalhando a possibilidade da diferença.

Tal postura retrata a África como um continente selvagem e bárbaro ocupado pelas mais inferiores das criaturas que eram privadas das graças salvadoras da civilização ocidental. Ela também pode ser localizada nas teorias evolucionistas que apoiaram a política de destino manifesto dos Estados Unidos, a generosidade imperial e o imperialismo cristão. (McLAREN, 2000, p. 111).

McLaren critica ferrenhamente a postura do multiculturalismo

conservador que defende o inglês como única língua oficial e se opõe

virulentamente a programas educacionais bilíngües. Não questiona o

conhecimento elitizado e não interroga regimes dominantes de discursos e

práticas culturais e sociais que estão vinculados à dominação global e que

estão inscritos em convicções racistas, classistas, sexistas e homófobas. Por

fim, McLaren enfatiza que o multiculturalismo conservador deseja assimilar os

estudantes a uma ordem social injusta ao argumentar que todo membro de

todo grupo étnico pode colher os benefícios econômicos das ideologias

neocolonialistas e de suas práticas econômicas e sociais correspondentes.

“Mas um pré-requisito para ‘juntar-se à turma’ é desnudar-se, desracializar-se e

despir-se de sua própria cultura”. (McLAREN, 2000, p. 115).

O multiculturalismo humanista liberal argumenta, a partir de uma visão

universalista e essencialista, que existe uma igualdade intelectual natural entre

as pessoas, independente da população racial a que pertença. Esta

equivalência cognitiva permite a competição igual entre as raças em uma

sociedade capitalista, prescrevendo que a igualdade está ausente não por

causa da privação cultural, mas porque as oportunidades sociais e

educacionais não são suficientes para permitir a todas as pessoas uma

competição igual no mercado capitalista. “Diferente das concepções

conservadoras, esta outra postura multicultural acredita que as restrições

econômicas e socioculturais existentes podem ser modificadas e reformadas

com o objetivo de se alcançar uma igualdade relativa”. (McLAREN, 2000, p.

119).

Estes dois primeiros conceitos são acusados de serem formas

disfarçadas de monoculturalismo (SEMPRINI, 1999), uma corrente

essencialista que apregoa a uniformização e o desaparecimento das

diferenças. No monoculturalismo há posicionamentos ideológicos que buscam

a desqualificação da diversidade e a assimilação das diferentes subculturas e

culturas marginais através da cooptação e do mascaramento imperialista de

uma classe sobre a outra. Dessa forma, o monoculturalismo nega o

multiculturalismo e serve de arma contra este.

O multiculturalismo liberal de esquerda, também essencialista, sugere

que a ênfase na igualdade das raças abafa aquelas diferenças culturais

importantes entre elas, as que são responsáveis por comportamentos, valores,

atitudes, estilos cognitivos e práticas sociais diferentes. “O multiculturalismo

liberal de esquerda trata a diferença como uma ‘essência’ que existe

independentemente de história, cultura e poder. Na maioria das vezes solicita

documentos de identidade antes de iniciar o diálogo.” (McLAREN, 2000, p.

120).

Por fim, o multiculturalismo crítico e de resistência é definido por

McLaren como uma possibilidade de intervenção crítica nas relações de poder

que organizam as diferenças. Para defendê-lo, argumenta que o

multiculturalismo sem uma agenda política de transformação pode apenas ser

outra forma de acomodação a uma ordem social maior.

A perspectiva que estou chamando de multiculturalismo crítico compreende a representação de raça, classe e gênero como resultado de lutas sociais mais amplas sobre signos e significações e, neste sentido, enfatiza não apenas o jogo textual e o deslocamento metafórico como forma de resistência (como no caso do multiculturalismo liberal de esquerda), mas enfatiza a tarefa central de transformar as relações sociais, culturais e institucionais nas quais os significados são gerados. (McLAREN, 2000, p. 123).

Para Mia Couto (2005, p. 79), o continente africano é, “ao mesmo tempo,

muitos continentes. Os africanos são um entrançar de muitos povos. A cultura

africana não é uma única, mas uma rede multicultural em contínua construção”.

Para o escritor, os africanos vivem numa situação de fronteira: ao aceitarem a

sua identidade cultural como sendo múltipla, mestiça e dinâmica, eles têm a

possibilidade de se “reinventarem e não se perderem em ilusórias viagens à

‘essência’ da sua identidade”. (Ibidem, p. 80).

Moçambique é um país de confluência de muitos povos, etnias, raças e

culturas. Esse efervescente e enriquecedor encontro de pessoas oriundas de

várias culturas é representado na obra coutiana em diversos personagens: Em

Cada Homem É Uma Raça (COUTO, 2005), por exemplo, Rosa Caramela era

corcunda desde menina. “A corcunda era a mistura das raças todas, seu corpo

cruzava os muitos continentes”. (Ibidem, p. 15). No conto “a princesa russa”, do

livro recém citado, o narrador diz ao seu confessor que no passado a vila

recebera muitos estrangeiros em busca do ouro das minas. Russos, ingleses,

portugueses, cada um deixou um pouco da sua cultura para somar a já múltipla

cultura africana.

O romance AVF mostra a pluralidade cultural que existe no asilo São

Nicolau. Além das diferenças culturais apresentadas pelas personagens que

representam algumas das muitas etnias moçambicanas, há a presença da

cultura do colonizador através do português Domingos Mourão e da

assimilação que Izidine Naíta sofre ao estudar na Europa.

Não há mais como ignorar a condição multicultural nas sociedades

ocidentais. Conforme McLaren, as lutas pelo poder, na modernidade tardia, são

travadas no campo simbólico e discursivo, ou seja, no campo da cultura. O

multiculturalismo crítico pode ser visto como uma estratégia de luta contra o

poder opressor, na medida em que as diferenças culturais não podem mais ser

concebidas separadamente das relações de poder.

2.5 Oralidade

Os estudos que buscam investigar as culturas orais comparativamente

às culturas letradas emergiram a partir da segunda metade do século passado.

Abordando temas diversos e originários de países distintos, diferentes

pesquisadores – Havelock, nos Estados Unidos; McLuhan, no Canadá; Lévi-

Strauss, na França; e Jack Goody e Ian Watt, na Inglaterra – colocaram a

oralidade em destaque. Na avaliação de Ong (1998), pode-se considerar a

emergência desses estudos com preocupações semelhantes em um mesmo

período histórico como um movimento de redescoberta da oralidade,

decorrente do estabelecimento, por Saussure, do primado oral da linguagem.

Antes da invenção da escrita, num tempo denominado de oralidade

primária32, quando todo o saber era transmitido oralmente, linguagem e

memória eram dois aspectos de um mesmo fenômeno. A memória humana,

especialmente a auditiva, era o único recurso de que dispunham as culturas

orais para o armazenamento e a transmissão do conhecimento às futuras

gerações. A inteligência estava intimamente relacionada à memória. Os mais

velhos eram reconhecidos como os mais sábios, já que detinham o

conhecimento acumulado. A figura do mestre, aquele que transmite o seu

ofício, também exercia um papel importante nessas sociedades.

Nessa época, a organização temporal da narrativa desenhava o tempo

como circular. As histórias eram contadas de boca em boca, preservando uma

estreita relação entre a vida, a linguagem e a memória. O tempo se repetia na

linguagem, no recontar das histórias. Estava condenada ao desaparecimento a

idéia que não fosse retomada e exaustivamente repetida em voz alta para a

comunidade. O conhecimento, então, se constituía na reiteração da narrativa

oral e a linguagem revelava a experiência circular com o tempo. Todo o acervo

cultural do homem estava na manutenção do círculo progressivo das

lembranças.

32 A expressão “oralidade primária” é aqui usada com o sentido que lhe atribui Ong (1998) como sendo a oralidade das culturas intocadas por qualquer conhecimento da escrita.

A preservação da memória coletiva moçambicana se dá à medida que a

ancestralidade é resgatada. Mesmo sabendo que Moçambique passou por um

intenso processo de rupturas e descontinuidades, Mia Couto busca as estórias

passadas de geração a geração, para revelar a complexidade da formação

cultural do país. “Esse é o desafio de desequilibrista – ter um pé em cada um

dos mundos: o do texto e o do verbo. Não se trata apenas de visitar o mundo

da oralidade. É preciso deixar-se invadir e dissolver pelo universo das falas,

das lendas, dos provérbios.” (COUTO, 2005, p. 107).

No romance AVF, a narrativa é construída para preservar a memória e a

identidade singular do homem e da terra. As personagens suscitam tempos

que foram separados pela guerra, o antes e o depois da independência, num

“livro sobre as identidades culturais, não encaradas no absoluto do seu

isolamento e de um nacionalismo redutor, mas através da experiência histórica,

mesmo dramática ou castradora, que a assunção dos tempos instituiu de forma

indelével”. (SEIXO, 2001, p. 359, in FARIA, 2005, p. 73).

O narrador Ermelindo Mucanga apresenta-se ao leitor utilizando um

discurso em primeira pessoa e determinando o tempo em que decorre a ação

da narrativa: “Sou o morto.” (COUTO, 2003, p. 11). Mucanga faleceu junto com

o seu nome há quase duas décadas. ”Deixei o mundo quando era a véspera da

libertação da minha terra.” (Ibidem, p. 12). Também o português, rebatizado

Xidimingo, sente saudades dos tempos em que viveu em Moçambique. “E que

tempos foram esses! Quando veio a Independência, faz agora vinte anos, a

minha mulher se retirou. [...] Depois dela partir, vieram os distúrbios, a

confusão.” (Ibidem, p. 48 e 50). Domingos Mourão admite, com tristeza, que o

Moçambique que ele amou está morrendo e nunca mais voltará a ser como

antes. Sua nação, agora, é uma varanda.

Na carta que deixa à Marta Gimo, Ernestina afirma que a personagem

Salufo Tuco tinha servido como soldado nos tempos coloniais. Durante a

guerra conheceu Excelêncio e para com este tinha estranhos deveres de

fidelidade. Apesar disso, Salufo decidiu fugir do asilo São Nicolau e levar com

ele os velhos que desejassem partir. A fuga aconteceu sem incidentes.

Passados dois meses, porém, Salufo Tuco voltou. Vinha triste, esfarrapado,

profundamente magoado. “O mundo, lá fora, tinha mudado. Já ninguém

respeitava os velhos. Dentro e fora dos asilos era a mesma coisa.” (Ibidem, p.

111). A ganância dos enriquecidos tornou as cidades um lugar onde “tudo

estava permitido, todos os oportunismos, todas as deslealdades. Tudo era

convertido em capim, matéria de ser comida, ruminada e digerida em

crescentes panças. E tudo isso mesmo ao lado de aflitivas misérias.” (Ibidem,

p. 113). As personagens tendem a traçar um quadro comparativo entre o antes

e o depois da guerra, mostrando, através de reminiscências, alguns paradoxos

sociais que a independência prometera resolver.

Nas culturas de oralidade primária, as palavras, que eram apenas sons

sem suporte visual, estavam associadas diretamente a ocorrências, eventos e

acontecimentos. Ong cita Malinowski que, em suas pesquisas nas sociedades

tribais, constatou que a linguagem entre os povos ágrafos é muito mais um

modo de ação do que uma maneira de referendar o pensamento. Por isso as

palavras tinham um grande poder sobre as coisas, um poder relacionado à

magia.

Fernanda Cavacas, professora que pesquisa a literatura produzida nos

PALOP’s33, especialmente a obra coutiana, salienta a importância da palavra

em todas as áreas da vida do africano: “nem talismãs, nem mezinhas, nem

venenos são eficazes sem a acção da palavra. Tudo o que acontece no mundo

resulta do poder gerador da palavra de um muntu34, seja um homem, um

defunto ou uma divindade”. Para a pesquisadora, a narrativa coutiana “antecipa

a moçambicanidade através de uma escrita mágica numa língua portuguesa

oriunda de índicas mestiçagens”. (CAVACAS, 2006, p. 57 e 58)

O pensamento mágico, inobstante os aspectos teológicos, desempenha

uma função mnemônica nas sociedades ágrafas. O mito encarna, através dos

deuses, dos feitos heróicos e ancestrais, as principais representações de uma

comunidade. Segundo Lévy (1993), esse tipo de narrativa era a melhor

estratégia de codificação à disposição das culturas que não possuíam outro

instrumento de inscrição além da própria memória.

As representações que têm mais chances de sobreviver em um ambiente composto quase que unicamente por memórias humanas são aquelas que estão codificadas em narrativas dramáticas, agradáveis de serem ouvidas, trazendo uma forte carga emotiva e acompanhadas de músicas e rituais diversos. (LÉVY, 1993, p. 83).

Da mesma forma, Havelock (1996) afirma que nas sociedades orais a

responsabilidade do discurso residia na associação da poesia, da música e da

dança. A poesia era originalmente o instrumento operativo de armazenamento

de informação cultural para reutilização ou, ainda, o instrumento para o

estabelecimento de uma tradição cultural. De modo semelhante, Ong (1998)

argumenta que nas culturas orais a repetição e o recurso à memória

33 PALOP – Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. 34 Muntu – termo comum a várias línguas africanas para designar pessoa, indivíduo.

constituem a base dos processos de transmissão do conhecimento. O

pensamento contínuo em uma cultura oral está vinculado à comunicação.

Numa cultura oral primária, para resolver efetivamente o problema da retenção e da recuperação do pensamento cuidadosamente articulado, é preciso exercê-lo segundo padrões mnemônicos, moldados para uma pronta repetição oral. O pensamento deve surgir em padrões fortemente rítmicos, equilibrados, em repetições ou antíteses, em aliterações e assonâncias, em expressões epitéticas ou outras expressões formulares, em conjuntos temáticos padronizados (a assembléia, a refeição, o duelo, o “ajudante” do herói e assim por diante), em provérbios que são constantemente ouvidos por todos, de forma a vir prontamente ao espírito, e que são eles próprios modelados para a retenção e a rápida recordação – ou em outra forma mnemônica. As reflexões e os métodos de memorização estão entrelaçados. (ONG, 1998, p. 45).

Sobre a psicodinâmica da oralidade, além da palavra proferida como

poder e ação, Ong apresenta outras características do pensamento e da

expressão fundados na oralidade: mais aditivo do que subordinativo; mais

sintético do que analítico; redundante; conservador e tradicionalista; próximo

dos mundos de vida; expresso num tom agonístico ou controverso e de forma a

criar mais empatia e participação do que distância objetiva; situacional em vez

de abstrato; desinteressado por definições, isto é, as palavras ganham sentido

no momento da relação interpessoal.

A característica mais sintética do que analítica do pensamento oral é

expressa, segundo Ong, em agrupamentos de totalidades, como na grande

carga de epítetos – “Odisseu, o astuto” – e outras fórmulas que caracterizam a

expressão oral35, como os provérbios, os ditos, os clichês e outras bagagens

formulares36 que a cultura altamente escrita rejeita como pesados e

35 As unidades fraseológicas, ou “outras fórmulas que caracterizam a expressão oral”, já foram objeto de apreciação no primeiro capítulo, subtítulo 1.2, quando trato das referências implícitas, como os provérbios, expressões recolhidas na oralidade e desconstruídas na escrita coutiana. 36 Ong (1998, p. 35) utiliza os termos “fórmula” e “formular” como referentes, de modo inteiramente genérico, a frases ou expressões prontas, repetidas de modo mais ou menos

redundantes em virtude de seu peso agregativo. Para Ong (1998, p. 50), “uma

expressão formular, uma vez cristalizada, deve permanecer intacta”.

Ong considera que a oralidade primária promove o desenvolvimento da

estrutura da personalidade, tornando-a menos introspectiva do que é comum

entre os letrados. Como já referido, nas culturas de oralidade primária a palavra

tem a sua existência no som – sem qualquer referência a textos visuais

perceptíveis – que entra profundamente no sentido existencial humano e é

processado pela palavra falada. O som é o sentido humano mais interiorizado,

sendo, por isso, o principal responsável pela psicodinâmica da oralidade.

No artigo intitulado Cultura acústica e cultura letrada: o sinuoso percurso

da literatura em Moçambique, Lopes37 afirma que os fortes traços da oralidade

moçambicana “parecem configurar uma cultura essencialmente acústica”.

Lopes designa como acústica a cultura que tem na audição, e não na visão,

seu órgão de recepção e percepção por excelência. Segundo Lopes, numa

cultura acústica a mente opera de um outro modo, recorrendo (como artifício de

memória) ao ritmo, à música e à dança, à repetição e à redundância, às frases

feitas, às fórmulas, às sentenças, aos ditos e refrões, à retórica dos lugares-

comuns - técnica de análise e lembrança da realidade - e às figuras poéticas -

especialmente a metáfora. A oralidade é flexível e situacional, imaginativa e

poética, rítmica e corporal; vem do interior do ser, manifesta-se pela voz e pelo

exato em verso ou prosa, as quais possuem, na cultura oral, uma função mais crucial ou difusa do que qualquer outra que ela possa ter em uma cultura letrada. 37 José de Sousa Miguel Lopes é doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Publicou, entre outros, Política lingüística em Moçambique: os desafios do bilinguismo. O artigo supra referido encontra-se disponível no endereço <http:>www.catjorgedesena.hpg.ig.com.br/html/textos/miguel_lopes.doc. Acessado em 23.01.2009.

gestual penetrando no interior do outro através do ouvido, envolvendo-o por

completo no ritual da narrativa.

No romance AVF, os velhos do asilo vão narrando ao inspetor Izidine

Naíta a sua versão para o assassinato do diretor Vasto Excelêncio. O

interrogatório é uma oportunidade dessas vozes já esquecidas pela sociedade

serem ouvidas novamente. Embora falem ao inspetor apenas “em fingimento”,

os velhos transformam a inquirição em um solene momento narrativo; griots

mostrando ao jovem a importância da tradição. Antes de darem ao inspetor a

versão fantasiosa sobre o crime, os velhinhos necessitam contar as narrativas

das suas vidas, as suas verdadeiras histórias; e a palavra sai desnudando o

interior de cada um, carregada de ritmo, de gestos, de magia.

No décimo quarto capítulo, intitulado “A revelação”, a verdade sobre o

crime aparece a Naíta no desenrolar de um ritual de feitiçaria, protagonizado

por Nãozinha, na presença de Navaia Caetano, Domingos Mourão e

Nhonhoso. Nãozinha toma para si a incumbência que seria do halakavuma se

a tradição não tivesse sido esquecida. Profetiza a traição que ameaça a vida de

Naíta e vai “desvendando os sucessivos véus do misterioso assassinato do

diretor”. (COUTO, 2003, p. 142).

A cerimônia é de revelação, mas é, também, um ritual de iniciação. Em

cada noite, uma das escamas do pangolim tinha trabalhado a alma do inspetor.

Os velhos, que tinham Naíta como inimigo, concluíam que ele “é um fruto bom

numa árvore podre” (Ibidem, p. 141) e que tem a possibilidade de perpetuar a

tradição. Naíta representa a força que pode melhorar o presente sem esquecer

as raízes do passado. Nãozinha diz: “Você estudou em terra dos brancos, tem

habilidades de enfrentar as manias desta nova vida que nos chegou depois da

guerra. Esse mundo que está chegando é o seu mundo, você sabe pisar na

lama sem sujar o pé”. (Ibidem, p. 141).

Protegido por ritos ancestrais que aceitou sem protestar (a adivinhação

sobre a traição que sofreria, a unção com o óleo de baleia, o chamado do

xipoco para que fugisse da mira do helicóptero, a tempestade gerada pelo

halakavuma e o wamulambo), Naíta pode aliar a formação moderna que

recebeu na Europa à riqueza da tradição dos seus ancestrais para defender a

sociedade moçambicana dos torpes interesses dos donos do poder.

Ao comentar sobre o seu fazer literário, Mia (2005, p. 46) conta que para

escrever deixa-se maravilhar por histórias que escuta, por personagens com

quem cruza e deixa-se invadir por pequenos detalhes da vida cotidiana. Para

Couto, o segredo do escritor é anterior à escrita. Está na vida, está na forma

como ele está disponível para deixar-se invadir pelas falas, pelas histórias,

pelos gestos que encontra pelos caminhos; pelos pequenos detalhes de quem

se surpreende e se descobre um outro.

A terra onde nasci e onde vivo – Moçambique – é um país pobre e apenas um pequeno grupo tem acesso àquilo a que chamamos ciência. Mas existe nas zonas rurais gente que, sendo analfabeta, é sábia. Eu aprendo muito com esses homens e mulheres que têm conhecimentos de outra natureza e que são capazes de resolver problemas usando uma outra lógica para a qual o meu cérebro não foi ensinado. Este mundo rural, distante dos compêndios científicos, não tem menos sabedoria que o mundo urbano onde vivemos. Estar disponível para escutar nessa linha de fronteira: essa pode ser uma grande fonte de prazer. Só se conta uma história que seja bonita se tivermos prazer nesse empreendimento. (COUTO, 2005, p. 48).

Nesse mundo em que foi absorvendo pessoas de diferentes raças e

culturas, nesse território que já era habitado por diferentes clãs e tribos de

saberes seculares, nesse amálgama cultural, Mia Couto recolhe saberes do

povo, transmitidos desde longínquos rituais de contadores de história, para

mostrar, através de recriações literárias, a rica cultura da sua terra natal.

2.6 Imaginário popular

O termo “imaginário”, segundo Jorge Belinsky, foi introduzido nas

línguas romanas ao final do século XV com valor de adjetivo e significando

“irreal ou fictício”. Como substantivo, sua utilização é recente e significa

“domínio da imaginação”. A evolução do sentido de imaginário e imaginação

confunde-se com a do pensamento ocidental, “já que ambos têm uma função

mediadora: entre o mundo das essências eternas e o dos corpos, em Platão; e

entre o universo dos sentidos e o do intelecto, em Aristóteles”. (BELINSKY,

2007, p. 13).

Composto de imagens mentais, imaginário é definido a partir de muitas

óticas diferentes e até mesmo conflitantes. Bachelard, por exemplo, considera

que a imaginação só pode se apresentar essencialmente aberta e evasiva,

como a própria experiência da novidade, por causa do imaginário. Para Le

Goff, o imaginário está no campo das representações como uma tradução

criadora, poética.

Já para Gilbert Durand (1997, p. 14), o imaginário é o “conjunto das

imagens e das relações de imagens, que constitui o capital pensado do homo

sapiens”, o grande e fundamental denominador onde se encaixam todos os

procedimentos do pensamento humano. Durand confere ao dinamismo do

imaginário uma realidade e uma essência própria. Para ele, o pensamento

lógico não pode estar separado da imagem, que é a portadora de um sentido

cativo da significação imaginária. Este sentido, por sua vez, constitui-se em um

signo intrinsecamente motivado, isto é, um símbolo.

A simbologia é cronológica e ontologicamente anterior a qualquer

significância audiovisual; a sua estruturação está na raiz de qualquer

pensamento. O imaginário, desta forma, além de manifestar-se como atividade

que transforma o mundo, como imaginação criadora, revela-se como

“intellectus sanctus, como ordenança do ser às ordens do melhor”. (DURAND,

1997, p. 432).

Unindo o conceito de imaginário ao de popular, pode-se afirmar que o

imaginário popular é a herança cultural de uma comunidade; é uma memória

coletiva que contém, através de um conjunto de crenças, valores e normas

sobre uma dada realidade, a ideologia do grupo que o cultiva. É no imaginário

popular que o homem elabora pensamentos a respeito de si mesmo e da

realidade a sua volta.

O adjetivo popular significa aquilo que deriva do povo. O conceito de

popular tem sido modificado, ao longo do tempo, de acordo com as intenções

de quem dele faz uso, seja para benefício do próprio povo, seja para proveito

daqueles que querem do povo tirar vantagens. Adoto, aqui, a definição de

popular como sendo o conjunto de práticas sociais que possibilitam a

emancipação, a conscientização e a libertação do povo.

Nessa linha, Stuart Hall concebe o popular como sendo um espaço de

subversão, um lugar de inversão de valores. Depois de desconstruir alguns

famosos conceitos para o termo “popular”, Hall observa que o essencial em

uma definição de “cultura popular” é considerar as relações que colocam essa

cultura em uma “tensão contínua (de relacionamento, influência e antagonismo)

com a cultura dominante”. (HALL, 2006b, p. 241).

O imaginário popular, que cria um símbolo cultural e a ele atribui um

significado condizente com o campo social ao qual está incorporado, é a rica

essência da cultura popular. É a ferramenta básica de que o homem dispõe

para constituir-se enquanto ser social, para adentrar na intersubjetividade. É

nesse campo fértil que o imaginário popular atua, revelando sentimentos que

desabrocham em lendas, mitos, contos, crendices, superstições, provérbios e

em outras belezas que retratam a cultura de um povo.

Na construção do seu imaginário, a sociedade moçambicana valeu-se

da música, da dança, das imagens poéticas, especialmente das metáforas.

Lopes (1999) afirma que Moçambique tem

uma oralidade rítmica e corporal, imaginativa e poética, que emerge do interior, da voz, e penetra no interior do outro, através do ouvido, envolvendo-o na questão. Os integrantes desta cultura invariavelmente sabem escutar e narrar, contar histórias e relatar, utilizando uma enorme riqueza expressiva, na qual se conjugam precisão e clareza. (Ibidem, p. 16).

No universo de contos e fábulas, lendas e mitos, ritos e sonhos, as

histórias constituem uma tentativa de recriação do passado. As narrativas

criam uma memória coletiva cujas lembranças são selecionadas pelo povo que

as viveu. É neste imaginário popular que Mia Couto encontra os caminhos

ficcionais trilhados pelas suas narrativas, “que enveredam pelos labirintos e

ruínas da memória coletiva moçambicana como uma forma encontrada para

resistir à morte das tradições causada pelas destruições advindas da guerra”.

(SECCO, 1998, p. 161).

Na obra coutiana, há símbolos culturais que fazem parte da tradição

moçambicana e foram recebidos dos ancestrais como um código que inclui

história, ética e moral, e uma forma de transmissão do conhecimento e das

técnicas (HOMEM e CORREA, 1977, p. 33). No primeiro capítulo do romance

AVF, O Sonho do Morto, o narrador afirma que, ao morrer, um mucanga deve

ter o rosto virado para os montes Nkuluvumba, “lugar onde a primeira mulher

saltou a lua, arredondada de ventre e alma.” (COUTO, 2003, p. 11).

No relato de Navaia Caetano, o menino velho, sua mãe, apesar de saltar

muitas vezes a lua, dava à luz sempre o mesmo ser. Quando ela paria um novo

menino, o anterior desaparecia. As pessoas da aldeia suspeitavam que se

tratava de castigo porque o pai de Navaia não respeitava o período de

aleitamento e “visitava muito o corpo” de sua mãe. “É ordem da tradição: o

corpo da mulher ficar intocável nos primeiros leites”. (Ibidem, p. 30).

Para o imaginário africano, há três grandes causas de doença: os

espíritos dos antepassados, a feitiçaria e a poluição da morte, que vem do

contato com coisas ou pessoas impuras (pessoas ou objetos ligados à infração

de tabus). (HOMEM e CORREA, 1977, p. 38). Na terra de Marta Gimo, as

mulheres em luto só podem deitar ao relento. Após a morte de seu menino,

Marta acredita não haver água que a possa purificar da mancha da morte, por

isso, a partir de então, dorme sempre “sem teto”. Sentir-se-ia Marta culpada por

ter desejado tirar a criança ao pensar na possibilidade de os deuses terem

atendido o seu desejo de não ser mãe? (COUTO, 2003, p. 138).

O imaginário não é uma mera cópia do real nem um simples repositório

estático de imagens do mundo; é, sobretudo, uma rede dinâmica, uma

memória coletiva em constante mutação. Esse dinamismo do imaginário

confere ao homem a capacidade de fazer história, marca que o distingue

definitivamente dos outros animais. A rede dinâmica do imaginário, ao mesmo

tempo em que abre possibilidades de enquadramento do real, contém, a todo

instante, os seus próprios limites, os seus horizontes de possibilidades de

representação da realidade.

O narrador de AVF, Ermelindo Mucanga, foi sepultado debaixo de um

pequeno frangipani, uma árvore que ocupa a varanda da antiga fortaleza

colonial e que dá ao xipoco o carinho das suas flores de odor suave e doce. A

árvore é um dos temas simbólicos mais ricos de todos os tempos e civilizações.

Os povos que habitam o continente africano têm um profundo respeito pela

terra e as árvores são cultuadas desde tempos imemoriais. Símbolo de

verticalidade, elas estabelecem a comunicação entre o mundo subterrâneo

(pelas suas raízes), a superfície da terra (pelo tronco) e as alturas (através dos

ramos e da copa).

Mia Couto usa essas três dimensões sagradas da árvore para resgatar a

cultura do seu povo: no mundo subterrâneo, junto às raízes do frangipani, está

enterrado Ermelindo Mucanga que não perdeu a voz nem a audição, embora

tenha perdido parte das lembranças do tempo em que era vivo. Mucanga vive

com seu “animal de estimação”, o velho pangolim. Velho porque ninguém mais

lembra do seu valor mágico de fazer a interlocução entre o sagrado e o

humano, entre as alturas e o subterrâneo. Esse “bicho de escamas, o nosso

halakavuma”, criatura que está repleta de simbolismo na tradição

moçambicana, é um personagem fundamental em toda a narrativa, tendo em

vista o componente profético que o envolve. O pangolim “tomba na terra para

entregar novidades ao mundo, as proveniências do porvir.” (COUTO, 2003, p.

15). Desde o início, ele aconselha sabiamente Mucanga: o xipoco deveria

voltar a morrer, escolher alguém que tivesse no fim da vida e falecer

novamente nessa morte para, então, ser enterrado segundo as suas crenças e

tradições e, ainda, ao lhe serem prestadas as devidas homenagens, o herói

passaria ao estado de morto definitivo e seria amado e lembrado como tal.

Na superfície da terra está a varanda do frangipani, local de encontro

dos moradores do asilo São Nicolau. Aqui a árvore representa a vida, o

símbolo da transformação e evolução. O frangipani perde a folhagem no

período da floração, simbolizando as estações do ano e a passagem do tempo,

nos ciclos de morte e regeneração. Sob o frangipani, o velho português

Domingos Mourão, rebatizado em terras moçambicanas Xidimingo, revive as

suas recordações. Aquela planta tem para ele o valor de lembrar-lhe da sua

terra natal, onde as estações bem definidas marcavam a passagem do tempo

com inverno e verão, assim como o tempo passa inexorável na velha fortaleza.

O senhor é negro, inspector. Não pode entender como sempre amei essas árvores. É que aqui, na vossa terra, não há outras árvores que fiquem sem folhas. Só esta fica despida, faz conta está para chegar um Inverno. Quando vim para África, deixei de sentir o Outono. Era como se o tempo não andasse, como se fosse sempre a mesma estação. Só o frangipani me devolvia esse sentimento do passar do tempo. (COUTO, 2003, p. 47).

Os habitantes do forte tinham uma estreita ligação com a árvore do

frangipani: aos seus pés, os velhos gastavam o tempo em longas

reminiscências, em contemplar o mar, em solidificar amizades. Também pela

varanda passaram Vasto Excelêncio, Ernestina, Marta, Naíta. Uma comunhão

entre brancos, pretos e mulatos, miscigenação que é a própria identidade

moçambicana, união multicultural.

As árvores, ultrapassando largamente os homens em dimensão, altura e

longevidade, quase parecendo eternas, são consideradas, também, símbolos

da vida espiritual e do conhecimento; apresentam uma dimensão do sagrado,

da proteção que os seres divinos dispensam aos humanos, numa conexão com

a sombra que protege do calor. Depois de uma chuva, o tronco do frangipani

cobriu-se de matumanas que os velhos apanhavam aos gritos e comiam. O

suco leitoso das lagartas provocava delírios, como acontecia com os primitivos

xamãs e os feiticeiros africanos, após ingerirem o chá de algumas ervas. O

ritual aproximava os homens dos deuses e o conhecimento da magia dava

poder aos praticantes sobre os demais homens da tribo. O ritual das

matumanas faz renascer o culto à tradição, renovando a relação entre o

passado e o presente e mantendo, no romance, a esperança na renovação da

terra moçambicana.

Outro símbolo importante na cultura de Moçambique é a água. As

significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes:

fonte de vida, meio de purificação, centro de regenerescência. Esses três

temas encontram-se nas mais antigas tradições e formam as mais variadas e

coerentes combinações imaginárias. Há muitas alusões à água no romance

AVF, mas apreciarei a relação que Nãozinha mantém com esse símbolo.

Escute bem: em cada noite eu me converto em água, me trespasso em líquido. Meu leito é, por essa razão, uma banheira. Até os outros velhos me vieram testemunhar: me deito e começo transpirando às farturas, a carne se traduzindo em suores. Escorro, liquidesfeita. [...] Para dizer a verdade, eu só me sinto feliz quando me vou aguando. Nesse estado em que me durmo estou dispensada de sonhar: a água não tem passado. Para o rio tudo é hoje, onda de passar sem nunca ter passado. (COUTO, 2003, p. 85).

Tal como acontece nas cerimônias de batismo e nos rituais de iniciação,

mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver totalmente, é retornar às

origens, é recarregar-se num imenso reservatório de energia e nele beber uma

força nova. Afundar na água representa uma fase passageira de regressão e

desintegração, para voltar à superfície em uma nova fase de reintegração e

regeneração. Nãozinha, toda noite, mergulha na banheira e converte-se em

água. Toda noite ela retorna às origens e volta na manhã seguinte para cumprir

sua missão de não deixar a tradição morrer.

Naquela representatividade de “nação” que se tornou a fortaleza São

Nicolau, é Nãozinha que, mesmo considerando-se incapaz, dirige os rituais,

domina os poderes sobrenaturais, exerce a função mágica da feiticeira

mitológica. “Nesse estado em que me durmo estou dispensada de sonhar: a

água não tem passado. Para o rio tudo é hoje, onda de passar sem nunca ter

passado.” (COUTO, 2003, p. 85). A água apaga a história, pois restabelece o

ser num estado de novo. Nesse sentido, Nãozinha torna-se água para purificar

o seu passado de sofrimento. As suas memórias infelizes fazem-na desejar

esquecer, mas quando os seus companheiros de território necessitam dos seus

serviços de magia, ela cria um novo tempo em que a crença na cultura dos

seus ancestrais e a reabilitação do funesto convertem-se em novos sonhos e

superam a história, como nos episódios de ocultar as armas, de preparar o

corpo do inspetor para escapar da morte, e na distribuição dos ramos para

proteger os velhos da fúria da tempestade que impede a briga entre Nhonhoso

e Xidimingo.

Origem e veículo de toda vida, a água também pode ser destruidora,

como no caso das enchentes e das tempestades. No texto AVF, vemos que a

água une-se ao vento num propósito mágico. Segundo a mitologia hindu, muito

próxima ao povo moçambicano, o vento nasceu do espírito e foi gerado pela

luz. Para os gregos, os ventos eram divindades inquietas e turbulentas,

contidas na profundeza das cavernas das ilhas eólicas, de onde saíam para

promover destruição. De maneira geral, as culturas ancestrais tinham o vento

como um veículo mágico a serviço dos deuses, para premiar ou castigar os

seres humanos.

Para salvar Izidine Naíta de seus algozes, o halakavuma providenciou

uma grande tempestade, um furacão. O inspetor, símbolo da modernidade,

convenceu-se da importância da tradição cultural do povo moçambicano e deve

ser salvo pela sabedoria de Nãozinha, do halakavuma e de Mucanga,

representantes do passado. O narrador informa como tudo aconteceu:

O halakavuma me anunciava seus planos. Ele iria juntar forças deste e de outros mundos e faria desabar a total tempestade. Granizos e raios tombariam sobre o forte. [...] Todo aquele pensamento desfilava em minha cabeça quando, súbito, deflagrou a tempestade. Era coisa jamais presenciada: o céu pegou-se em fogo, as nuvens arderam e o mundo se aqueceu como uma fornalha. (COUTO, 2003, p. 148/149).

Na confissão de Nãozinha, há a referência a um ciclone que impede que

o português Domingos Mourão bata no moçambicano Nhonhoso, por

insistência do mulato Excelêncio. O povo moçambicano é formado por pretos,

brancos, mulatos e hindus. A própria natureza empenha-se para que as

diferentes etnias convivam harmonicamente na construção da identidade

nacional.

Outro símbolo do imaginário moçambicano, presente em AVF, é o dos

pássaros. Nas culturas antigas, o pássaro significava a liberdade, a elevação.

Na África, as andorinhas, por serem aves migratórias que chegam sempre na

primavera, estão associadas à fecundidade e à ressurreição e representam

também a pureza.

No sonho de Marta, na noite anterior ao parto, as andorinhas são

devoradas por morcegos. “Em plenos ares, eles as devoravam. E eram tantas

as avezinhas sacrificadas que respingavam gotas vermelhas em toda a parte.”

(Ibidem, p. 137). O sonho de Marta tem duas significações: remete à morte de

seu bebê e ao Moçambique pós-guerra: a nova elite gananciosa, corrupta e

inescrupulosa, que devora as pessoas simples do povo que ainda acreditam na

reconstrução de uma sociedade mais justa e igualitária, tal como foi prometido

pelos dirigentes da Frelimo38 e ainda não cumprido.

No último capítulo do romance, intitulado O último sonho, quando o céu

começava a clarear depois da tempestade, milhares de andorinhas soltaram-se

do buraco sem fundo do antigo depósito de armas. “As aves relampejavam

sobre as nossas cabeças e se dispersaram, voando sobre as colinas azuis do

mar. Num instante, o céu ganhava asas e esvoava para longe do mundo.”

(Ibidem, p. 149). Uma nova claridade no céu anuncia um tempo para sonhar,

um tempo de fecundidade e ressurreição para a sociedade moçambicana. Um

tempo de reconstrução após a destruição causada pela guerra. A reconstrução

alia a tradição à modernidade, representados pelo casal Marta/Izidine que

ficam na varanda. O casal representa o futuro, pessoas do povo, que podem

conciliar a memória cultural e o presente, que chega pleno de desejos de

progresso. Orientados por Nãozinha, os velhos caminharam por entre os

escombros da tempestade em direção ao forte. “À medida que caminhávamos,

38 FRELIMO – Frente pela Libertação de Moçambique, fundada em 1962. (TUTIKIAN, 2006, p. 62).

as ruínas se convertiam em imaculadas paredes, os edifícios se reerguiam

intactos.” (Ibidem, p. 149).

Opondo-se ao céu, a terra é o elemento natural que mais atrai o escritor

moçambicano. Enquanto o céu reenvia para um tempo futuro, aspecto

ressalvado na simbologia das aves, a terra representa a base, o chão, a

estrutura que nos prende ao passado, às raízes, àquilo que o país foi e às

culturas ancestrais que devem ser preservadas. “[...] agora,//ouço em mim//o

sotaque da terra//e choro//com as pedras//a demora de subirem ao sol.”

(COUTO, 2001, p. 63), diz Mia Couto no poema Sotaque da terra.

A importância da terra, na obra AVF, e de forma geral em toda a

literatura produzida por Mia Couto, só é comparável à importância da água. A

terra e a água são elementos de identidade nacional para os moçambicanos,

assim como a diversidade étnica e linguística.

Como universo simbólico temporal, o imaginário possui uma dimensão

mítica que é constantemente desafiada pelo homem e reatualizada em novos

padrões de racionalidade. Esse constante reenquadramento da dimensão

mítica do imaginário possibilita ao homem desafiar as barreiras da tradição

para que estas não se constituam em amarras que o encarcere na

temporalidade momentânea do seu universo simbólico. Isso é necessário para

que o imaginário não seja um instrumento de alienação do homem, mas um

veículo da sua libertação, da busca pela sua autonomia.

2.7 Tradição

Antes da descoberta da escrita – e mesmo depois dela, quando os

textos escritos ainda não tinham contaminado inteiramente o cotidiano do ser

humano –, as lembranças eram conservadas exclusivamente através da

tradição oral. Onde a memória falhava, entrava a imaginação para suprir-lhe a

falta. Assim, as narrativas da tradição oral constituem o resumo do assombro e

do temor dos seres humanos diante do mundo e uma explicação necessária

das coisas da vida. Todas as formas expressivas nasceram, certamente, a

partir do momento em que o homem sentiu necessidade de procurar uma

explicação qualquer para os fatos que aconteciam ao seu redor.

Os povos que habitaram o continente africano viviam numa relação

íntima com a natureza, elaborando a partir de suas experiências cotidianas

sistemas religiosos onde os elementos naturais eram predominantes. “A origem

comum dos homens não se ligava a um ancestral humano, mas sim a um

animal simbólico que selava o pacto da comunidade com a terra. Pertencer a

um clã significava ter um ancestral animal comum: um totem.” (HOMEM e

CORRÊA, 1977, p. 23). O totemismo, ao desaparecer, deu lugar ao culto dos

ancestrais, que pode ser considerado como um sistema ideológico transmissor

das experiências adquiridas pelo grupo e, simultaneamente, um referencial da

posição de cada membro com relação à hierarquia tribal. (Ibidem, p. 25).

A sociedade moçambicana é baseada em uma cultura de forte tradição

oral. A ligação entre as tradições e o presente é mantida através da memória,

que se cristaliza ao redor dos antepassados ancestrais. O passado se constitui

numa referência obrigatória, na qual a comunidade se inspira para as suas

atividades no presente para explicar os fenômenos do cotidiano. A memória é o

primeiro vetor da transmissão das ideias e, ao exteriorizá-la, os indivíduos

garantem que as tradições alcancem as gerações vindouras.

As culturas moçambicanas tradicionais não tiveram um sistema de

escrita, o que reforçou o papel da tradição oral como fonte histórica de acesso

imediato. Em sociedades dessa natureza, o conhecimento é a própria palavra.

É ela que transmite as informações de uma geração para outra e permite a

estruturação do corpo social. A palavra, atribuída ao ancestral comum, ao mais

velho, é repetida aos mais jovens ao serem iniciados na arte da memorização.

A palavra, então, ganha o revestimento da magia, do sobrenatural, que sempre

fizeram parte das crenças africanas e dos moçambicanos em particular.

O expoente máximo na tradição oral são os contadores de histórias; a

própria expressão oral localiza-se no cerne de uma tradição viva, associada à

noção de força vital da comunidade. A tradição oral nasce no passado

ancestral, espaço de gestação das identidades, e é transmitida através da

memória coletiva. As sociedades que vivem de forma simples, longe das altas

tecnologias e ainda utilizam a voz em larga escala como sistema comunicativo,

são as que detêm as condições favoráveis para a preservação dessa memória.

Os rituais narrativos, ao transmitirem às gerações mais novas as

memórias ancestrais de uma sociedade, constituem textos orais que permitem

a sobrevivência de uma determinada cultura, possibilitando, ao mesmo tempo,

a sua renovação. Isso acontece porque os receptores dessas estórias geram

novos entrelaçamentos textuais, atualizando a cultura que, por si, tem essa

característica de gerar-se permanentemente. Walter Benjamin (1994), ao

discorrer sobre a narrativa, já apresentava a idéia da rede intertextual como

que tecida pela reminiscência:

(...) um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois. Num outro sentido, é a reminiscência que prescreve, com rigor, o modo de textura. (...) Ela tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si. Uma se articula na outra, como demonstraram todos os narradores, principalmente os orientais. Em cada um deles vive uma Sherazade que imagina uma nova história em cada história que está contando. (BENJAMIN: 1994, p. 37; p. 211).

No universo do pensamento de Benjamin, é com a memória e através

dela que a narrativa popular se constrói. Essas considerações são importantes

para a apreciação crítica da obra de Mia Couto, porque essa apresenta-se, em

seu conjunto, pautada pela recolha preciosa de histórias da tradição e do

imaginário popular do povo moçambicano. Ao lançar o seu primeiro livro de

contos39, em junho de 1986, o seu desejo de contar e de inventar “rompeu o

silêncio da palavra e corrompeu a escrita com tonalidades de vozes

desconhecidas num cenário de autêntico encontro com os homens e as

mulheres que contam ao fim do dia estórias de antigamente e de sempre”.

(CAVACAS, 2006, p. 62).

Histórias têm sido compartilhadas em todas as sociedades como forma

de entretenimento, preservação da cultura e na tarefa educativa de transmitir

conhecimento e valores morais aos mais jovens. Os seres humanos têm uma

habilidade natural para usar a comunicação verbal para ensinar, explicar e

entreter, o que explica a importância das narrativas orais ainda em nosso

tempo.

39 Vozes Anoitecidas.

São ricas as manifestações verbais advindas da tradição oral que

chegaram preservados até nossos dias. Dentre elas, cito os contos, as lendas,

as anedotas, as adivinhações, os provérbios, os chistes, o canto popular e o

tradicional, os acalantos, as danças – de roda, cantadas e de divertimento

coletivo – as rondas e os jogos infantis.

Também em provérbios é riquíssima a obra de Mia Couto. No romance

AVF encontramos provérbios falados em comunidades moçambicanas que são

recriados pelo autor ao passarem para o texto ficcional. Segundo a professora

Cavacas (2000), expressões usadas por Domingos Mourão na conversa que

tem com Naíta (COUTO, 2003, p. 51) – “A velhice o que é senão a morte

estagiando em nosso corpo?” e “Quando se é velho toda a hora é de conversa”

– são recriações de ditos utilizados nos falares populares do sul moçambicano.

O primeiro tem relação com a expressão “o cesto ficou velho”, isto é, inútil; o

segundo refere-se à expressão “as palavras dos velhos dão resultados no fim

de um ano”, ou seja, os conselhos dos velhos são sempre válidos.

A expressão “Marta Gimo era mulher de se olhar e lamber os olhos”

(Ibidem, p. 23) tem uma correspondência com “mulher de lamber os beiços”,

muito utilizada pelos tradicionalistas no Rio Grande do Sul; “se não há

proprietário não há roubo” (Ibidem, p. 27) traz a essência da máxima “achado

não é roubado”, expressão conhecida não só no Brasil como em toda a

América Latina.

Atravessados pelo medo do desaparecimento, os suportes da memória e

das tradições têm utilizado a literatura como um meio de preservar a cultura

produzida pela tradição oral, impedindo que uma parte importante da memória

coletiva seja completamente esquecida. Mia Couto é um escritor que

demonstra, através de textos de opinião e da sua obra literária, que

Moçambique pode ser moderna sem perder a sua tradição cultural. O autor de

AVF descreve o quotidiano do povo moçambicano envolto em misticismo,

tradições, emoções, lutas, esperanças e simbolismos, criando uma literatura

que tem como objetivo encaminhar a nação rumo à identidade. Mas sua visão

não é purista. Ele acredita que a modernidade que os africanos estão

inventando nas zonas urbanas é tão africana quanto a tradição transmitida pela

ancestralidade.(COUTO, 2005, p. 60).

Nesse sentido, apesar de ser considerada um elemento vital da cultura,

a tradição tem pouco a ver com a mera persistência das velhas formas,

conforme enfatiza Stuart Hall (2006b, p. 243). Os elementos da tradição de

uma cultura popular não são fixos e podem ser modificados no fluxo da

tradição histórica de uma sociedade.

À luz dos conceitos teóricos, a leitura de AVF possibilita afirmar que Mia

Couto apropria-se da voz e de gestos resgatados da tradição ancestral para

tecer, com os fios históricos da luta pela libertação do país, o sonho de ver

Moçambique no caminho do desenvolvimento. O escritor vale-se, conforme se

observou até aqui, do passado no resgate constante da trama de

manifestações, de modo especial pela via da oralidade, que alicerçam essa

sociedade.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante os longos meses dedicados à produção deste trabalho, ao me

debruçar sobre as obras de Mia Couto, percebi que a sua escritura, tanto a

literária quanto a de opinião, mostra ao leitor um escritor com profundos

conhecimentos da literatura universal, maduramente consciente do

pensamento teórico do seu tempo, e um cidadão que tem um olhar engajado

nas questões sociais, políticas e culturais do mundo moderno, especialmente

aquelas que dizem respeito ao continente africano. São questões em que se

envolvem personagens, representantes, em sua obra literária, da população de

Moçambique.

As entrevistas, que o escritor concedeu em algumas oportunidades a

jornalistas brasileiros, expõem o pensamento do homem Mia Couto40 sobre

questões viscerais da sociedade moçambicana e que estão presentes no

romance AVF. A escrita coutiana está inserida em um contexto histórico de

imbricação tensional entre as tradições culturais das diferentes etnias que

fazem parte da sociedade moçambicana e a irrupção da modernidade em

Moçambique.

Conversando pela internete com Filgueiras41, Mia Couto afirma que não

é o território da oralidade, em si mesmo, que lhe interessa quando escreve. É a

zona de fronteira entre o universo da escrita e a lógica da oralidade. Essa

40 No Anexo 4, apresento alguns aspectos da biografia de Mia Couto, que me foram importantes conhecer durante a realização desta dissertação. 41 Anexo 3 – Entrevista concedida à Mariana Filgueiras, publicada no JB Online em 14.06.2008.

margem de trocas é que é rica, segundo o autor. Confessa, também, que

existe, sim, uma preocupação central em toda a sua escrita: é a negação de

uma identidade pura e única, a aposta na procura de diversidades interiores e a

afirmação de identidades plurais e mestiçadas.

Mia Couto utiliza-se do lirismo que a literatura permite para denunciar as

graves questões sociais do país. Para o escritor,

a escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo modernos nos ensinam. É uma outra janela que se abre para estrearmos outro olhar sobre as coisas e as criaturas. (COUTO, 2005, p. 45).

O objetivo principal da pesquisa embrionária desta dissertação permitiu-

me criar uma trama de conexões entre as representações identitárias

moçambicanas presentes no texto literário em análise e alguns conceitos dos

Estudos Culturais, tais como, a questão das identidades, do multiculturalismo,

da oralidade, do imaginário popular e da tradição.

Conforme definiu Kristeva, o romance apresenta-se como um

cruzamento de superfícies textuais, em que dialogam várias escrituras. No

primeiro capítulo deste estudo, a teoria que surgiu em torno do conceito de

intertextualidade aparece, na obra de Mia Couto, em diferentes processos de

formação – como citação, alusão e estilização – e de tipologia – como é o caso

da intratextualidade. No segundo capítulo, observam-se conceitos relacionados

à cultura de um povo no diálogo intertextual com as representações, presentes

em AVF, das diferentes facetas da múltipla cultura moçambicana,

especialmente aquela fundamentada na oralidade.

Do estudo empreendido, posso concluir que a intertextualidade entrelaça

os conceitos de identidade, multiculturalismo, oralidade, imaginário popular e

tradição numa discussão que é produzida pela necessidade que a sociedade

moçambicana tem de prover uma convivência pacífica entre a tradição e a

modernidade, entre o velho e o novo, entre o sonho e a realidade, temas

postos na obra A Varanda do Frangipani.

Na representação da história moçambicana no texto literário estudado, o

tempo não é mais o de batalha pela libertação. A luta dos personagens é, pois,

no tempo presente da narrativa, para aprender a se reencontrar depois de

tantos anos de dominação e de disputas internas. A violência das guerras

ainda é marca indelével na memória das personagens que habitam o asilo São

Nicolau, possível metáfora de Moçambique. Sedimentada, por um lado, pela

memória dos velhos e, por outro, pelo ressentimento calcado na ausência dos

rituais fúnebres, conforme costumes da terra do herói Ermelindo Mucanga,

nesse contexto é que a tradição renasce para modificar o presente. Trata-se de

um momento em que a natureza é conclamada e toda ela se movimenta em

favor da vida, para salvar do extermínio o jovem Izedine Naíta. Uma conivência

harmônica entre os homens e a natureza que garante o caráter insólito da

narrativa coutiana.

O policial Naíta, a quem é dado viver apenas mais seis dias no início do

romance, recebe a proteção dos velhinhos do asilo (e também do halakavuma,

que a cada noite seguinte trabalhou a alma do inspetor) para ser, afinal, o

personagem mediador, capaz de conciliar tradição e modernidade. Enquanto

os velhos vão rumando para as profundezas da frangipaneira, no final do

romance, Ermelindo Mucanga ouve a voz suavíssima de Ernestina, viúva de

Vasto Excelêncio, embalando um longínquo menino, numa clara alusão ao

círculo de vida, tema que universaliza o romance. É o sonho de renascimento

de uma nação, tema que aponta para a representação da história de

Moçambique na obra de Mia Couto. A vida, e a história do povo moçambicano

constituem, portanto, pretextos para Mia Couto desenvolver o exercício da

linguagem poética.

“Do lado de lá, à tona da luz, ficavam Marta Gimo e Izidine Naíta. Sua

imagem se esvanecia, deles restando a dupla cintura de um cristal, breve

cintilação de madrugada.” (COUTO, 2003, p. 152). O último olhar de Mucanga

pode ser entendido como o de alguém que vislumbra esperança. Marta e

Izidine representam, por sua vez, a possibilidade de uma nação conviver com o

moderno sem esquecer as tradições.

Durante o estudo de A Varanda do Frangipani deparei-me com outros

assuntos não menos interessantes e que também podem ser objeto de reflexão

acadêmica, como, por exemplo, a condição da mulher na sociedade

moçambicana, a língua como fator de identidade nacional, a tensão entre a

oralidade e a escrita, entre outros, e que, por não fazerem parte do objetivo

desta dissertação, remeto-os ao futuro. Desta forma, considero inacabado este

trabalho, como inacabados são os textos construídos pelas dinâmicas sociais e

que estão constantemente interrelacionando-se na construção do tecido

identitário de uma nação. Sonho, tal como Ermelindo Mucanga, que exista

sempre um momento em que as pessoas de boa vontade possam intervir no

tempo e fazer nascer um mundo em que um ser humano, só de viver, possa

ser respeitado.

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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura . Trad. Jerusa Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Educ, 2000.

APÊNDICE

Alguns aspectos importantes da biografia de Mia Cou to

Indispensável tratar da obra do escritor Mia Couto sem falar sobre o

sujeito Mia Couto: a sua história de vida, a sua experiência política, a

importância da sua obra como fator de construção da identidade nacional

moçambicana. A história de vida de Mia Couto relaciona-se diretamente à

história recente de Moçambique. Além disso, as representações históricas

postas no romance AVF produzem intertextualidade com textos produzidos

pela sociedade moçambicana.

Como já antecipei, falar sobre a vida de Mia Couto é tecer fios da sua

biografia com os textos produzidos pela história de Moçambique42, que ele

ajudou a construir; é mostrar a sua obra literária como sendo um dos meios de

projetar, além fronteiras, os cruciais problemas enfrentados pela população

moçambicana durante e após as guerras; é falar de dores e sofrimentos, mas

também é falar de sonhos, de esperança. Falar de Mia Couto é mostrar como

um homem pode usar sua vivência, sua emoção e seus conhecimentos para

42 Apesar de ter se tornado independente de Portugal há mais de trinta anos, o povo

moçambicano convive com a paz há apenas dezessete. Os últimos dados da Organização das Nações Unidas informam que metade da população de Moçambique é analfabeta, um milhão e meio de pessoas estão vivendo com o vírus da Aids e a expectativa de vida não supera os cinqüenta anos. A comparação entre o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano da ONU) de Portugal e Moçambique demonstra bem o quanto o colonizador se interessou pelo desenvolvimento da colônia: enquanto o IDH de Portugal ocupa o 28º lugar, Moçambique aparece com a 168ª posição (o Brasil ocupa a 69ª colocação).

transformar o cotidiano do seu povo em representações identitárias na arte da

literatura.

No dia 5 de julho de 1955, na cidade da Beira, província de Sofala, em

Moçambique, nascia Antonio Emilio Leite Couto, filho de pais portugueses. O

apelido Mia vem da infância, por gostar muito de gatos. “Eu era miúdo, tinha

dois ou três anos e pensava que era um gato, comia com os gatos. Meus pais

tinham que me puxar para o lado e me dizer que eu não era um gato.”43 O pai

de Mia Couto, poeta e leitor entusiasta do baiano Jorge Amado, deu o nome de

Jorge a um filho e de Amado a um outro. “Só eu escapei dessa nomeação

referencial”. 44

Com 14 anos de idade, Mia Couto publicou seus primeiros poemas no

jornal “Notícias da Beira”. Em 1972 deixou a cidade natal e transferiu-se para

Lourenço Marques (atual Maputo) com a finalidade de estudar medicina, curso

que interrompeu em 1974 para fazer jornalismo, tal como o pai. Foi militante

ativo nas lutas para libertar o país do colonialismo português. Com a

independência de Moçambique, tornou-se diretor da Agência de Informação de

Moçambique (AIM). Dirigiu também a revista semanal “Tempo” e o jornal

“Notícias de Maputo”. Em 1985 formou-se em Biologia pela Universidade

Eduardo Mondlane45, especializando-se em Ecologia.

43 Trecho de entrevista concedida à Marilene Felinto e publicada parcialmente no Caderno Mundo do jornal Folha de São Paulo, em 22 de julho de 2002. 44 Trecho de palestra proferida em São Paulo, no dia 25 de março de 2008, por ocasião dos festejos em homenagem ao escritor Jorge Amado. 45 Eduardo Mondlane foi o primeiro presidente da Frelimo, morto em 1969 e é frequentemente retratado como homem político, mentor da unidade nacional, líder nacionalista e intelectual. Há quarenta anos de sua morte, Mondlane continua sendo uma figura de relevância simbólica histórico-sociológica inegável em Moçambique, principalmente porque seus projetos, ou a ele atribuídos, de construção de uma nação moçambicana são ainda considerados válidos.(MATSINHE, 2001, p. 188).

Como biólogo tem realizado trabalhos de pesquisa em áreas diversas,

com incidência na gestão da zona costeira e na recolha de mitos, lendas e

crenças que intervêm na gestão tradicional dos recursos naturais. Trabalhando

nos últimos tempos na reserva natural da ilha de Inhaca, em Moçambique, “é

de imaginar que tenha feito desse lugar a imaginária Luar-do-Chão a que o

estudante universitário Marianinho retorna, depois de anos de ausência, tema

do romance Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra.“46

Gonçalves (2003) afirma que Beira, a cidade natal de Mia Couto, situada

às margens do Oceano Índico, é uma cidade em que todo homem tem a

impressão de não se encontrar em lugar nenhum.

Lugar de passagem e pouso durante as longas travessias, toda a costa moçambicana sempre foi um entrecruzar de civilizações. Ilhas, muitas ilhas, e portos que, primeiro, foram ocupados pelos naturais do lugar, que nunca foram poucos e sempre carregaram entre si históricas dissensões. Depois, vieram as (in)civilizações atraídas pela cobiça: os banianes, homens escuros que vinham da Índia e atravessavam toda a costa na longa faina do comércio; os lascarins de Goa, que trabalhavam nos serviços de reparos das embarcações; os muçulmanos que vinham do Norte e doutrinavam nações no Islã, como a dos monhés que andavam de branco e cofiós na cabeça; os hindus, que falavam o guzerate, mas tinham como língua religiosa o sânscrito; os cojás, de raça indiana, que vieram de Catiavar, e outros tantos islamitas; os franceses que vinham da ilha Reunião atraídos pelo tráfico de carne humana que se fazia nas praias; e os portugueses que chegaram antes, desde que Vasco da Gama passara por ali com seus barcos e homens. Lá, o Oriente sempre se fez mais forte, sufocando o pensamento ocidental. [...] Desde criança Mia Couto carrega essa alma oriental de quem cresceu em meio a esse mundo mestiço formado por negros, árabes, europeus e indianos. (GONÇALVES, 2003, p. 1).

Entre o passado a que não renuncia e o presente que quer diferente e

que ele próprio também vai moldando, Mia Couto afirma-se um escritor

africano, branco e de língua portuguesa. O idioma estabelece o seu território

preferencial de mestiçagem, o lugar em que ele se reinventa.

46 GONÇALVES, Adelto. Uma parábola da África pós-colonial.

Necessito inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individualidade africana. Necessito tecer um tecido africano e só o sei fazer usando panos e linhas européias. O gesto de bordar me ensina que estou inventando uma outra ordem e nessa ordem esses valores iniciais de nacionalidade já pouco importam. (COUTO, 1997, apud CAVACAS, 2006, p. 65).

Além da robusta obra literária e do trabalho como biólogo, Mia Couto é

professor da cadeira de Ecologia em diversas faculdades da Universidade

Eduardo Mondlane. É também membro correspondente da Academia Brasileira

de Letras desde 1998.

Inserida no vasto panorama das literaturas africanas de língua

portuguesa, a obra de Mia Couto transformou-se na voz de milhões de pessoas

excluídas do sistema, em situação de extrema miséria, que provavelmente nem

saibam da existência do escritor; mas é ela que vem mostrando ao mundo a

tragédia social por que passam as sociedades africanas, representadas, na

literatura produzida por Mia Couto, pela sociedade moçambicana.

ANEXO 1

PALESTRA DE MIA COUTO, PROFERIDA NO DIA 25/03/2008,

NA USP, POR OCASIÃO DAS COMEMORAÇÕES DE

RELANÇAMENTO DA OBRA DE JORGE AMADO 47.

Eu venho de muito longe e trago aquilo que eu acredito ser uma

mensagem partilhada pelos meus colegas escritores de Angola, Moçambique,

Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe. A mensagem é a seguinte:

Jorge Amado foi o escritor que maior influência teve na gênese da literatura

dos países africanos que falam português.

A nossa dívida literária com o Brasil começa há séculos, quando

Gregório de Mattos e Tomaz Gonzaga ajudaram a criar os primeiros núcleos

literários em Angola e Moçambique. Mas esses níveis de influência foram

restritos e não se podem comparar com as marcas profundas e duradouras

deixadas pelo baiano.Deve ser dito (como uma confissão à margem) que Jorge

Amado fez pela projeção da nação brasileira mais do que todas as instituições

governamentais juntas. Não se trata de ajuizar o trabalho dessas instituições,

mas apenas de reconhecer o imenso poder da literatura.

Nesta sala, estão outros que igualmente engrandeceram o Brasil e

criaram pontes com o resto do mundo. Falo, é claro, de Chico Buarque e

Caetano Veloso. Para Chico e Caetano, vai a imensa gratidão dos nossos

países que encontraram luz e inspiração na vossa música, na vossa poesia.

Para Alberto Costa e Silva vai o nosso agradecimento pelo empenho sério no

estudo da realidade histórica do nosso continente.

47 Fonte: O Estado de São Paulo, 5 abril 2008 Postado por Glória Reis no dia 11.04.2008 Marcadores: Literatura Disponível em <http:www.jornalrecomeco.blogspot.com/2008/04/mia -couto -e-jorge -amado .html>. Acessado dia 18.09.2009

Nas décadas de 50, 60 e 70, os livros de Jorge cruzaram o Atlântico e

causaram um impacto extraordinário no nosso imaginário coletivo. É preciso

dizer que o escritor baiano não viajava sozinho: com ele chegavam Manuel

Bandeira, Lins do Rego, Jorge de Lima, Erico Veríssimo, Rachel de Queiroz,

Drummond de Andrade, João Cabral Melo e Neto e tantos, tantos outros.

Em minha casa, meu pai - que era e é poeta - deu o nome de Jorge a

um filho e de Amado a um outro. Apenas eu escapei dessa nomeação

referencial. Recordo que, na minha família, a paixão brasileira se repartia entre

Graciliano Ramos e Jorge Amado. Mas não havia disputa: Graciliano revelava

o osso e a pedra da nação brasileira. Amado exaltava a carne e a festa desse

mesmo Brasil.

Neste breve depoimento, eu gostaria de viajar em redor da seguinte

interrogação: por que este absoluto fascínio por Jorge Amado, por que esta

adesão imediata e duradoura?É sobre algumas dessas razões do amor por

Amado que eu gostaria de falar aqui. É evidente que a primeira razão é

literária, e reside inteiramente na qualidade do texto do baiano. Eu acho que o

maior inimigo do escritor pode ser a própria literatura. Pior que não escrever

um livro, é escrevê-lo demasiadamente. Jorge Amado soube tratar a literatura

na dose certa, e soube permanecer, para além do texto, um exímio contador de

histórias e um notável criador de personagens. Recordo o espanto de Adélia

Prado que, após a edição dos seus primeiros versos confessou: “Eu fiz um livro

e, meu Deus, não perdi a poesia...” Também Jorge escreveu sem deixar nunca

de ser um poeta do romance. Este era um dos segredos do seu fascínio: a sua

artificiosa naturalidade, a sua elaborada espontaneidade.

Hoje, ao reler os seus livros, ressalta esse tom de conversa intíma, uma

conversa à sombra de uma varanda que começa em Salvador da Bahia e se

estende para além do Atlântico. Nesse narrar fluído e espreguiçado, Jorge vai

desfiando prosa e os seus personagens saltam da página para a nossa vida

cotidiana.

O escritor Gabriel Mariano de Cabo Verde escreveu o seguinte: “Para

mim, a descoberta de Amado foi um alumbramento porque eu lia os seus livros

e via a minha terra. E quando encontrei Quincas Berro d’Água eu o via na Ilha

de São Vicente, na minha rua de Passá Sabe.”

Essa familiaridade existencial foi, certamente, um dos motivos do

fascínio nos nossos países. Seus personagens eram vizinhos não de um lugar,

mas da nossa própria vida. Gente pobre, gente com os nossos nomes, gente

com as nossas raças passeavam pelas páginas do autor brasileiro. Ali estavam

os nossos malandros, ali estavam os terreiros onde falamos com os deuses, ali

estava o cheiro da nossa comida, ali estava a sensualidade e o perfume das

nossas mulheres. No fundo, Jorge Amado nos fazia regressar a nós mesmos.

Em Angola, o poeta Mario António e o cantor Ruy Mingas compuseram

uma canção que dizia: Quando li Jubiabá/me acreditei Antônio Balduíno./Meu

Primo, que nunca o leu/ficou Zeca Camarão. E era esse o sentimento: António

Balduino já morava em Maputo e em Luanda antes de viver como personagem

literário. O mesmo sucedia com Vadinho, com Guma, com Pedro Bala, com

Tieta, com Dona Flor e Gabriela e com tantos os outros fantásticos

personagens.

Jorge não escrevia livros, ele escrevia um país. E não era apenas um autor

que nos chegava. Era um Brasil todo inteiro que regressava à África. Havia

pois uma outra nação que era longínqua mas não nos era exterior. E nós

precisávamos desse Brasil como quem carece de um sonho que nunca antes

soubéramos ter. Podia ser um Brasil tipificado e mistificado, mas era um

espaço mágico onde nos renasciam os criadores de histórias e produtores de

felicidade.

Descobríamos essa nação num momento histórico em que nos faltava

ser nação. O Brasil - tão cheio de África, tão cheio da nossa língua e da nossa

religiosidade - nos entregava essa margem que nos faltava para sermos rio.

Falei de razões literárias e outras quase ontológicas que ajudam a explicar por

que Jorge é tão Amado nos países africanos. Mas existem outros motivos,

talvez mais circunstanciais.Nós vivíamos sob um regime de ditadura colonial.

As obras de Jorge Amado eram objeto de interdição. Livrarias foram fechadas

e editores foram perseguidos por divulgarem essas obras. O encontro com o

nosso irmão brasileiro surgia, pois, com épico sabor da afronta e da

clandestinidade.A circunstância de partilharmos os mesmos subterrâneos da

liberdade também contribuiu para a mística da escrita e do escritor.

O angolano Luandino Vieira, que foi condenado a 14 anos de prisão no

Campo de Concentração do Tarrafal, em 1964, fez passar para além das

grades uma carta em que pedia o seguinte: “Enviem meu manuscrito ao Jorge

Amado para ver se ele consegue publicar lá no Brasil...” Na realidade, os

poetas nacionalistas moçambicanos e angolanos ergueram Amado como uma

bandeira. Há um poema da nossa Noêmia de Sousa que se chama Poema de

João, escrito em 1949 e que começa assim: João era jovem como nós/João

tinha os olhos despertos,/As mãos estendidas para a frente,/A cabeça

projetada para amanhã,/João amava os livros que tinham alma e carne/João

amava a poesia de Jorge Amado.

E há, ainda, outra razão que poderíamos chamar de linguística. No outro

lado do mundo, se revelava a possibilidade de um outro lado da nossa língua.

Na altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma que,

sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até se dar o

encontro com o português brasileiro, nós falávamos uma língua que não nos

falava. E ter uma língua assim, apenas por metade, é um outro modo de viver

calado. Jorge Amado e os brasileiros nos devolviam a fala, num outro

português, mais açucarado, mais dançável, mais a jeito de ser nosso.

O poeta maior de Moçambique, chamado José Craveirinha, disse o

seguinte numa entrevista: “Eu devia ter nascido no Brasil. Porque o Brasil teve

uma influência tão grande que, em menino eu cheguei a jogar futebol com o

Fausto, o Leônidas da Silva, o Pelé. Mas nós éramos obrigados a passar pelos

autores clássicos de Portugal. Numa dada altura, porém, nós nos libertamos

com a ajuda dos brasileiros. E toda a nossa literatura passou a ser um reflexo

da Literatura Brasileira. Quando chegou o Jorge Amado, então, nós tínhamos

chegado à nossa própria casa.”

Craveirinha falava dessa grande dádiva que é podermos sonhar em

casa e fazer do sonho uma casa. Foi isso que Jorge Amado nos deu. E foi isso

que fez Amado ser nosso, africano, e nos fez, a nós, sermos brasileiros. Por ter

convertido o Brasil numa casa feita para sonhar, por ter convertido a sua vida

em infinitas vidas, nós te agradecemos companheiro Jorge. Muito obrigado.”

ANEXO 2 MIA COUTO E O EXERCÍCIO DA HUMILDADE48

Por Marilene Felinto49

MF: Por que você tem tantas profissões? Medicina, por exemplo, você estudou

quantos anos?

Mia Couto : Medicina eu fiz até o segundo ano; estudei três anos, repeti o

segundo ano e repetiria infinitamente o segundo ano. Eu tenho tantas

profissões porque não quero ter nenhuma. É uma estratégia de não ser coisa

nenhuma. Porque a partir do momento que eu me entendo a mim mesmo como

sendo biólogo ou sendo escritor ou sendo jornalista ou sendo outra coisa

qualquer, eu acho que fecho algumas janelas para o mundo e passo a ter uma

relação que depois se encaminha sempre por aí, e eu não quero. Acho que é

um empobrecimento. É evidente que eu posso fazer isso por uma felicidade

conjuntural. Não mereço isso, mas posso fazer isso. Estou vivendo a um certo

tempo num certo lugar. Sobre a segunda pergunta, eu tinha uma grande

paixão. Era escrever. Desde menino que eu tenho essa idéia que uma parte da

minha alma só se revela na escrita. Então, eu tinha uma certa idéia de que

poderia ser psiquiatra. Esse era o meu desejo. Ia para a medicina para ser

psiquiatra, mas depois apercebi-me de que a imagem que eu tinha de

psiquiatria era muito romantizada. E aquilo que eu depois fui visitar era um

mundo horrível, um mundo de prisão, e houve um grande desencantamento

com isso. Segundo, eu era já membro da Frelimo, já era militante da causa da

48 Disponível em <http:www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/mia-couto/mia-couto-e-o-exercicio-da-humildade .php> 49 Marilene Barbosa de Lima Felinto (1957) é natural do Recife (PE). Jornalista e escritora, colabora com diversos jornais e revistas nacionais. Entre seus livros podemos citar: As mulheres de Tijucopapo [Prêmio União Brasileira dos Escritores (1981) e Prêmio Jabuti (1982)], O lago encantado de Grongonzo, Postcard e Obsceno abandon”. Escreveu, também, um ensaio sobre Graciliano Ramos – Outros heróis e esse Graciliano.

independência e isso para mim era muito mais empolgante. Eu vivia isso muito

mais do que qualquer outra coisa. Portanto, quando chegou o momento da pré-

independência, 1974, um período de transição, a Frelimo pediu-me para que

eu, como se dizia na altura, me infiltrasse. Havia uma campanha de infiltração

nos órgãos de informação, que estavam nas mãos dos portugueses. E eu fui

destacado para essa tarefa. Gostei muito de fazer isso, porque tinha idéia de

que estava fazendo qualquer coisa ética, em nome do país.

MF: Como acontecia essa infiltração?

Couto : Os quadros que a Frelimo pensava que podiam contrariar esse domínio

que os portugueses ainda tinham, que era o período de transição, era

importante, e eu acho que isso de fato, no conjunto, essa campanha de

infiltração, como foi chamada, foi importante porque ajudou a criar consciência

e a contrariar aquela visão que ainda era dominante de que Moçambique não

só não tinha o direito como seria um grande desastre se este país chegasse à

independência.

MF: Mas o que você fez exatamente para se infiltrar?

Couto : Eu pedi um emprego. Estava no banco dos desempregados lá no jornal

e fui escolhido entre vários candidatos. Pedi emprego para a direção de um

jornal chamado “A Tribuna”. O termo “infiltrar” era usado naquela altura para

significar algo como uma pequena formiga corroendo, subvertendo um edifício

que estava completamente criado para fazer uma certa coisa. Então nós

havíamos de contrariar esse domínio. Mas não foi uma coisa heróica porque a

direção desse jornal era simpática à causa. Então eu não corri grandes riscos

com isso.

MF: Mesmo tão envolvido com uma causa política, você encontrou uma dicção

muito original e não panfletária para sua literatura. Como conseguiu?

Couto : Acho que não separei as duas coisas. Não havia sequer essa

preocupação em nós. O nascimento de uma literatura nacional é

contemporâneo do nascimento da própria nacionalidade. A maior parte dos

escritores moçambicanos foram em algum momento jornalistas na sua vida.

Eles são ou correspondem a um seguimento desse país que faz fronteira com

a modernidade, eles são quem está abrindo portas para a modernidade, para o

universo da escrita. E isso foi vivido na altura de uma maneira muito

empolgante. Nós acreditávamos mesmo que fosse uma ilusão, acreditávamos

que estávamos fazendo uma coisa ética, estávamos ajudando a criar uma

nação. E isso tinha algum sentido. Nós acreditávamos nisso porque eu sou

mais velho que o meu país. É uma circunstância histórica realmente singular.

Eu assisti o parto da própria nação a que pertenço e também fiz poesia

panfletária. Confesso que fiz poesia panfletária, e fiz poesia a serviço do país,

fiz a letra do hino deste país.

MF: O hino nacional de vocês está mudando exatamente agora, não é?

Couto : É. Está mudando agora. Tem uma história até muito engraçada. Em

1981, 1982, o presidente Samora, que era vivo na altura, pensou que o hino

nacional não funcionava. Era um hino muito partidário. Começava por “viva,

viva a Frelimo”. E ele tinha já a apreciação de que nem todos os

moçambicanos seriam da Frelimo. Então, era preciso um hino que cobrisse os

moçambicanos todos. Ele (Samora) colocou seis poetas e seis músicos numa

casa, fechou-nos lá e disse “vocês têm que sair daqui com várias propostas de

hinos feitas”. E fomos fechados numa casa aqui na Matola e aquilo era ótimo.

Aquilo não era uma prisão, era ótimo porque nós tínhamos comida, numa altura

em que não havia comida. E, portanto, guardávamos comida para a nossa

família quando nos iam visitar; tínhamos uma piscina na casa, vivíamos ali

bem. E quando vinham as sirenes, nós corríamos para trabalhar. Eles (a

Frelimo) vinham nos visitar para ver como era que estava sendo feito. E

produzimos meia dúzia de hinos que ficaram ali e nunca mais foram aprovados.

Agora, por causa do novo clima político que a partir de 1995 passou a existir,

um clima de democracia aberta e multipartidarismo, passou a ser mesmo

obrigatório que este país tivesse um outro hino. Pelo menos uma outra letra.

Depois fez-se um concurso aberto e eu fiz parte do júri que acolheu essas

propostas, mas eram todas muito fracas. E então alguém se recordou de

revisitar aquelas propostas (da época de Samora), e foi uma daquelas que foi

escolhida. Então, há razões que ajudam a triar essa idéia de que não é

separável a literatura e a militância.

MF: De todo modo, sua prosa de ficção hoje não é literatura de militância.

Couto : Certo. Esse foi um processo de tomada de consciência, por exemplo,

que nasceu sempre em rupturas, em pequenos conflitos. Porque hoje eu tenho

uma relação com essa militância já afastada, crítica, o que não quer dizer que

não tenha essa militância. A dos outros mudou e a minha também, se calhar,

mudou. E o primeiro livro de poesia que eu publiquei já foi numa briga, já foi

numa zanga. Me irritava muito o fato de que toda poesia que falasse do eu, que

falasse da intimidade fosse tida como uma poesia burguesa. e eu escrevi este

primeiro livro em 1983, já como que em oposição a isto. Era uma poesia lírica e

intimista, que falava do amor.

MF: Teve medo de que a política engolisse o escritor?

Couto : Não, nunca sequer ocorreu-me de pensar nisso, porque enquanto a

política foi uma coisa importante na minha vida, era importante porque eu me

divertia, porque eu era aquilo. O processo depois de sedimentação, de

diferenciação dessas duas áreas ocorreu tão naturalmente que não foi fruto de

reflexão não, eu não me sentei a pensar no assunto. Foi acontecendo e eu fui

aprendendo que cada um, cada coisa tinha seu lugar. E também, eu acho que

as circunstâncias de Moçambique ajudam muito, porque tu aprendes que ser

escritor é uma coisa pequena, que faz muito bem ao ego. Os escritores

pensam sempre que são muito importantes, que o mundo depende do que eles

estão fazendo. Aqui tu aprendes que não é tão importante, porque o universo

dos que lêem é tão pequeno, o livro circula em áreas tão pequeninas que é

uma espécie de aprendizagem de humildade que faz bem. Então tu tens, se

queres contatar com outros, se queres ter outras áreas de comunicação, tu não

podes depender do livro. E por isso eu comecei a envolver-me com grupos de

teatro, a trabalhar na rádio, na televisão, para ver se aquilo que eu queria dizer

podia ter outros canais que não fossem só o livro. Aqui é muito importante que

o escritor aprenda a não ser escritor, a deixar de ser escritor. Isso é um

aprendizado que eu acho que nos faz muito bem a todos nós.

MF: Você sempre estudou aqui? Nunca saiu? Você se diz muito influenciado

pela literatura brasileira. Como foi?

Couto : Estudei aqui, e sempre vivi aqui. Eu acho que quando tomei

consciência dessa contaminação pela literatura brasileira, eu já estava

“doente”, no sentido bom. Acho que a minha geração e a geração anterior

foram muito marcadas pela literatura brasileira. Havia uma certa redescoberta

com Graciliano, com Jorge Amado, de que, afinal, a língua pode ser outra

coisa. Há quem esteja trabalhando a língua de outra maneira; e há outras

culturas que pegam nesta coisa que é o português para trabalharem de outra

forma. E não só. Também as temáticas políticas, no caso particularmente de

Jorge Amado, eram coisas que coincidiam com uma época histórica aqui que

era preciso pôr em causa. Certo tipo de valores. Então, quando eu começo a

escrever, já havia toda esta envolvência, que era mais forte. O ambiente

literário de Moçambique estava muito mais fortemente ligado ao do Brasil do

que ao de Portugal. E por uma outra razão também, a censura, que era muito

forte em Portugal, aqui, nesse aspecto era mais tênue. Eram vendidos aqui

livros que em Portugal eram proibidos. Então, era mais fácil. Tudo, até aquela

revista “O Cruzeiro”, lembra? Era uma coisa que tinha aqui uma difusão

enorme. Quando chegava aqui “O Cruzeiro”, era uma espécie de janela para

um outro mundo que era muito familiar, e nós nos reencontrávamos, mais do

que lendo as coisas que vinham de Portugal.

MF: E a influência de Guimarães Rosa?

Couto : Primeiro tenho que falar de Luandino Vieira, o escritor angolano, que é

o primeiro contato que eu tenho com alguém que escreve um português que é

arrevesado, que está misturado com a terra. E Luandino marcou-me muito. Foi

o primeiro sinal da autorização de como eu queria fazer. Eu sabia que eu

queria fazer isso, mas eu precisava de uma credencial do mais velho que disse

“esse caminho é abençoado”. E ele confessa que foi autorizado, também ele,

por um outro, um tal João Guimarães Rosa que eu não conhecia, porque não

chegavam aqui estes livros. Depois da Independência deixaram chegar livros

do Brasil e é uma coisa irônica, do ponto de vista histórico. Houve mais

cruzamentos e trocas de livros no tempo colonial e fascista do que depois da

Independência. Então, eu tinha este fascínio. Eu tinha que conhecer este João,

este tal Rosa. E um amigo meu trouxe as “Terceiras Histórias”. E de fato foi

uma paixão. Foi de novo alguém que dizia “isto pode-se fazer literariamente”.

Mas, como tu dizes, eu já queria fazer isto, porque já estava contaminado

primeiro por este processo que não é literário, é um processo social das

pessoas que vêm de outra cultura, pegam o português, renovam aquilo, tornam

a coisa plástica e fazem do português o que querem. É um processo muito livre

aqui. As pessoas misturam português e como dizia uma camponesa da

Zambézia, “eu falo português corta-mato”, uma prova de atletismo que se faz

através do mato, de trilhas. E pronto. Eu não faria isto se não estivesse

marcado antes de Guimarães Rosa, antes de Luandino Vieira, se não estivesse

marcado por isto que é um processo que não é só lingüístico, não é, nem

letrado.

MF: Para sua geração, é como se fosse impossível ter vivido aqui sem se

envolver com o movimento pela Independência e com a guerra civil?

Couto : Não havia outra possibilidade. Isso era uma espécie de solução

existencial. Tu só eras se tu militasses. Nem nos colocávamos a questão de

optar por outros caminhos. E nós casamos de tal maneira com esse período da

história que eu agora fui para o Congresso da Frelimo e tenho muitas críticas.

Eu acho que já não sou da Frelimo, porque acho que a Frelimo se converteu

em outra coisa. Eles próprios confessam, já são sociais-democratas.

MF: Qual a sua principal crítica ao partido?

Couto : Acho que a Frelimo passou a ter um discurso falseado, mascarado,

com objetivos ainda socialistas quando eles todos já se tinham convertido em

empresários de sucesso. Eu já não estou lá. Mas quando a Frelimo cantava era

uma coisa que me fascinava. Lembro da primeira vez que eu vi Samora

Machel, que era um deus para nós, nós endeusávamos aquele homem. Era

nosso Guevara. E quando nós fomos como jornalistas ter com este homem na

Tanzânia, no percurso, todos nós íamos pensando em como íamos

impressionar aquele homem. Queríamos que ele gostasse de nós. E cada um

pensava no que dizer: “olha, eu sei parte dos discursos dele de cor, eu sei citar

coisas da Frelimo”. E quando chegamos ao pé dele, a grande impressão que

eu tive é que ele era um homem de um grande magnetismo, uma pessoa que

exalava esta aura, e era muito pequenino, baixinho, com uma grande energia.

E a primeira pergunta que ele nos fez foi “algum de vocês sabe cantar?”. E nós

não sabíamos. Como intelectuais sabíamos fazer coisas políticas etc. Esta

coisa depois me fez pensar. Ele nos disse: ‘como é possível um homem que

não sabe cantar, que não sabe dançar nada? Como é que vocês podem ser

pessoas se não sabem cantar nem dançar? O que é que sabem fazer?” Então,

nós sabíamos fazer coisas que, de fato, eram um pouco chatas, não é? Um

pouco aborrecidas. E este era o grande fascínio, a Frelimo cantava. E agora,

quando chego a este Congresso e começam aquelas canções e começam

aqueles velhos militantes que eu conheci e que eram jovens, todos, naquela

época, estava ali um pedaço da minha própria história, e estavam ali os mortos,

que sempre nos criam este sentimento religioso com o mundo, não é? Porque

estavam presentes esse mesmo Samora, esses heróis nacionais, estavam

sendo enfocados nesse clima de celebração, quase de missa. E eu pensava

assim, eu não posso deitar essa parte da minha vida fora, não posso. Porque,

senão, fica um vazio. Se eu não estivesse atento e vigilante, estaria dizendo os

mesmos “vivas”. Então, estou disponível para a defesa de certas coisas, mas

tenho que passar pelo crivo da minha consciência de hoje. Então, a Frelimo

credenciou-se desta maneira: “nós somos o país”. De fato, a Frelimo eram

todos os moçambicanos que comungavam com essa grande causa. E isso foi

bom enquanto um momento de grande euforia, mas, depois, passou a ser uma

coisa má, antes mesmo da morte de Samora Machel. Quando depois tu tinhas

o que já não era um plano de gerar, era um plano de gerir, e quando tu tinhas

que instalar modelos, fazer a governação, não era bom, para um sentido crítico

que devia estar presente. Pensar sempre que nós somos o país, acomoda. E

deixa de ser verdade.

MF: A guerra teria surgido por conta do descontentamento de vários grupos

com a Frelimo?

Couto: Num certo momento particular, eu acho que todo o povo moçambicano

comungava com a Frelimo. Era o grande objetivo nacional. Mas depois o que

surgiu foi que alguns dos dirigentes da Frelimo se tinham afastado por causa

do exílio, por causa de serem formados na Europa, por causa de terem sido

atraídos pelos modelos soviéticos de experiência e distanciaram-se

culturalmente do país. E o que eles desconheciam eram suas próprias raízes.

Aprenderam a desconhecer isso. E os grandes erros tiveram uma razão mais

cultural do que política, se é que se pode separar assim. Os modelos de

governação que foram instalados, quer fossem primeiro socialistas quer fossem

depois capitalistas eram deslocados de nós, não despertavam aquilo que era a

cultura mais profunda, que era a alma mais funda deste país. Eu acho que

quando se fala em África, e agora já posso falar em África, normalmente se fala

em África de uma maneira tão simplista, como se fosse uma coisa só. Mas em

geral em África não se dá a devida importância àquilo que é a religião, o fator

religioso. Não posso compreender os brasileiros se não compreender aquilo

que determina muito da alma brasileira, que é a religião, a católica no caso. E

eu não posso compreender a África se não compreender uma coisa que nem

tem nome, que é a religião africana, que chamam às vezes de animista.

Os próprios africanos também não entendem que têm de procurar esse

entendimento do que eles são, das suas dinâmicas atuais, a partir deste

entendimento do que é a sua ligação com os deuses. E eu acho que a Frelimo

falhou principalmente aí. A guerra que se instaurou foi também uma guerra

religiosa, era uma guerra de identidade, à procura de identidade. E isso explica

a violência que essa guerra assumiu.

MF: A guerra começou depois de quanto tempo?

Couto : Começou quase logo. Não se sabia bem. Eu acho que isto nem se

pode chamar guerra, isso que houve aqui com o nome de conflito generalizado,

de violência contra um Estado central e centralizador. Em 1977 tivemos a

guerra contra a Rodésia, o atual Zimbábue, uma guerra clássica, mas por baixo

dessa guerra já estavam sendo gerados os conflitos que depois se

encaminharam para essa coisa da Renamo e da guerra civil.

MF: Que você acha que teve origem na religião?

Couto : Eu acho que teve várias origens, uma delas é a religiosa. A Frelimo era

um regime marxista. Combatia a religião de frente. Não chegou a atuar como a

União Soviética porque não conseguia, não tinha capacidade, mas queria. O

que foi mais grave foi o que foi mais silencioso e que não era visível, porque

era essa guerra contra esta religião africana, que é a religião dos

antepassados. E aí não há uma instituição. Esta religião africana não tem

vínculo com o Vaticano, não tem um corpo separado. O líder religioso é ao

mesmo tempo o líder político, é o que faz a gestão da terra, são os chefes das

famílias. Essa agressão acabou por ter conseqüências que eram logo

imediatamente políticas.

MF: Você percebeu isso logo?

Couto : Não. Demorou Percebi isso quando já era demasiado tarde. É sempre

assim que acontece na minha vida, quando percebo alguma coisa já é

demasiado tarde. Eu acho que na altura só tínhamos sinais. Eu percebia que

alguma coisa não estava funcionando bem, não só do ponto de vista religioso

como do cultural. Por exemplo, as missangas foram retiradas como objeto de

troca pela comissão agrícola, porque se achava que aquilo não tinha

importância, que aquilo não tinha o valor monetário que se acreditava, e isso foi

um dos erros (A população rural usava missangas como moeda de troca, ao

invés de dinheiro.0 Eu percebia que alguma coisa não estava bem. Era um

poder que era cego em relação a tudo isso, por isso não deu resultado, mesmo

que politicamente tivesse boas intenções.

MF: Ninguém, na época, conseguiu enxergar isso?

Couto : No início, as vozes críticas eram poucas, depois as vozes que se

levantaram, principalmente contra as aldeias comunais, que foi uma grande

questão. A Frelimo queria organizar o campo de acordo com um modelo de

povoamento de território retirado de outros países. A idéia das aldeias

comunais foi um desastre. Tinha uma certa lógica da governação, a coisa

centralizada. Não podes fazer hospitais e escolas em todos os povoados.

Não funcionou porque foi feita de uma maneira apressada, administrativa. Não

foi feita por um esquema de sedução, em que se criavam atrativos, e depois as

pessoas se juntavam voluntariamente a isso, não é? Aqui a terra é uma igreja,

os mortos são enterrados. E aquele é o lugar onde eu me comunico com o

divino, com o sagrado. O valor da terra aqui tem que ser também dimensionado

nesse aspecto. Neste projeto que eu a estava a mostrar, provavelmente é

preciso retirar pessoas de dentro dessa região do parque. Há 20 mil pessoas

vivendo ali. Mas quando tu falas nisso, tu tens que pensar que a pessoa está

ligada à terra por este outro vínculo, que não tem substituição possível, não

tem compensação possível, é a mesma coisa que chegar no Brasil e destruir

uma igreja. O poder que têm os chefes tradicionais, embora eu não goste do

termo, “chefes tradicionais” no poder rural continua presente. Este é um país

rural, um país dominado pela oralidade, é um país em que a governação

moderna só administra uma faixa, um verniz. De resto, é governado por outras

forças, por outras lógicas. Esses chefes tradicionais têm o poder que têm

porque lhes foi conferida esta tarefa de gerir a sua terra, e pelos deuses, eles

são simples instrumentos dos deuses para administrar a terra. Quando tu tiras

um indivíduo do seu lugar, ele perde esse poder. Portanto, o assunto se torna

imediatamente político também, torna-se um assunto de poder. E por isso não

podes mexer nesses mecanismos de qualquer maneira.

MF: Havia muitos brancos nesse grupo da sua geração?

Couto : Eu sempre fui um dos poucos brancos. Os brancos neste país sempre

foram uma minoria que não conta.

MF: Na época da crise mais intensa, você era discriminado? Seus pais são

portugueses?

Couto : Meus pais são portugueses. O racismo colonial era contra os mulatos,

e os pretos. Eu era tido como branco de segunda, porque nasci aqui. Eu não

tinha acesso a certas funções no governo colonial. Meus pais eram brancos de

primeira, e eu era branco de segunda. Meus filhos seriam brancos de terceira,

e aquilo estava hierarquizado. Era um sistema que discriminava mais os pretos.

Mas criou-se uma porta que determinou a diferença na comparação com a

colonização inglesa. Aqui tu podias, sendo preto, ser branco. Podias ser

assimilado. E passar a ter privilégios que tua raça não tinha. Se abdicasses

daquilo que seria tua cultura, tua religião, o teu nome, porque tinhas que mudar

de nome. O fator raça, era um fator, mas não era o fator. Era um fator pelo qual

se podia transitar. Essa é a diferença do racismo inglês, que tu sendo preto não

tens saída, és preto sempre. Podes ser educado como preto, mas lá no meio

dos pretos. Depois da Independência, eu nunca fui objeto de racismo, nunca fui

discriminado assim. No cotidiano, não sinto. Esqueço-me da minha raça.

Agora, de vez em quando, sim, há casos em que pontualmente, por razões de

um certo oportunismo, por razões de quando a porta é estreita e só pode

passar um. Aí lembram-se que eu sou branco e que portanto eu não seja tão

representativo assim. Também tem uma grande força aquilo que falamos

ontem, o modelo americano da ação afirmativa.

MF: Isso tem força?

Couto : Tem força em alguns momentos. Não é uma política oficial, como é, por

exemplo na África do Sul, mas tem. É usado como argumento quando é

preciso.

MF: Você concorda com essa política?

Couto : Eu, não. Eu não sei pensar essa política lá no lugar onde ela nasceu.

Aparentemente ela nasce com propósitos completamente diferentes dos que

estão sendo usados ou aplicados aqui. A ação afirmativa nasce para impor

direitos de minorias. Aqui é usado pelo direito da maioria. O que é uma coisa

estranha. Por exemplo, o rap, que é um movimento de revolta contra quem

está no poder aqui tem tanta força porque mesmo os que estão no poder,

sendo pretos, são brancos. Neste sentido de que as pessoas que se sentem

excluídas culturalmente e para terem acesso a certa posição social têm que

copiar, têm que falar português, por exemplo. Tem que abdicar de sua cultura

original e isso cria um sentimento de intranqüilidade. E no fim as pessoas

acham legítimo um movimento de ação afirmativa porque estão lutando contra

uma coisa que é quase fantasmagórica. Um movimento de ação afirmativa aqui

devia defender a mim enquanto minoria, não é?

MF: Mas você é o colonizador, não é?

Couto : Mas eu poderia ser chinês. Imagine que eu fosse chinês. Há

moçambicanos chineses. São uma minoria ínfima, e eles podiam usar esse

mecanismo da ação afirmativa para dizer “ah, eu também tenho que estar

presente, que estar representado não sei onde”. E sucede o contrário disso.

MF: Como seus pais reagiram na época da Independência? Eles pensaram em

sair daqui?

Couto : Eles saíram, quatro vezes, sempre definitivamente e voltavam para

Portugal, pois este já não era o país que eles conheciam, de que aprenderam a

gostar.

MF: Eles saíram por medo?

Couto : Não, por desencontros.

MF: Como foram tratados os portugueses naquele momento?

Couto : Naquele momento havia 250 mil portugueses em Moçambique e saíram

quase todos logo nos primeiros dois, três anos da Independência. Saíram em

massa. Chamavam de o período dos contentores (“contêineres”), porque eles

metiam todas as suas coisas, os seus pertences, toda a sua vida, naqueles

grandes caixotes e iam de barco ou de avião.

MF: Teus pais saíram também?

Couto : Não, nesse período, não. Na minha casa, eu tive sorte, porque quando

meu pai saiu de Portugal, também já saiu por razões políticas, de oposição.

Meu pai colaborou na medida que ele pôde com a Independência de

Moçambique. Ele sempre nos dizia “vocês são outra coisa, são deste país, é

como se eu tivesse dado filhos para uma terra que já não é minha. Ele sabia

que isso ia acontecer. A minha mãe também.

MF: São quantos filhos?

Couto : Três. E todos nós nos engajamos e demos a vida, arriscamos algo

mesmo por este país, e lutamos contra aquilo que era Portugal. Nesse primeiro

momento, havia uma ignorância profunda, os portugueses que viviam aqui

genuinamente acreditavam que isto era Portugal. E foi uma surpresa. Para

eles, eles foram vendidos, é isso que eles diziam. Houve uma revolta, logo no

período de transição para a Independência. Nesse mesmo dia houve uma

revolta que se chamou "sete de setembro". Ficou conhecida assim. Por

exemplo, minha casa foi invadida, foi partida, porque achavam que meu pai,

porque era um jornalista que escrevia coisas a favor da Frelimo, era um traidor.

Então, a idéia era que nós, os portugueses, nós, os brancos, estávamos sendo

traídos, e os principais traidores, como eles não reconheciam na outra raça a

capacidade de ser sujeito, eram os brancos. A sua raiva toda era

principalmente contra os de sua própria raça, que eram tidos como traidores

que venderam o país à Frelimo. Aí tivemos que fugir. Tivemos que levar meu

pai para a Beira, e ele ficou lá um tempo, até que a Frelimo tomou conta da

situação novamente. Mas isso era uma situação excepcional. O resto dos

portugueses, não é que eles tenham sido maltratados, mas eles achavam que

o país não estava preparado, que os moçambicanos não estavam preparados,

que vinha um desastre, que eles estavam dentro do Titanic e antes que

aparecesse o iceberg eles tinham que sair. E fugiram. Era inevitável. Hoje em

dia há aquela tendência de tentar corrigir isso, quer dizer, de tentar retificar a

história. Alegam que talvez se tivesse tido uma política de transição maior. Isso

não é verdade. Foi uma transição bem feita. Não houve violência, exceto nos

casos de que já falei, e que foi provocada por eles mesmos.

MF: Você vive em um país em que 50% da população não sabe ler nem

escrever. As edições de livros têm tiragens baixas, mil exemplares em média.

Como isso te afeta?

Couto : A média chega a 3 mil exemplares. Obviamente é triste que haja esta

condição de que a maior parte das pessoas não sabe ler ou não tem acesso

aos livros. Por outro lado é um desafio que te obriga a perceber, como eu já

disse antes, que tu tens que ter outros canais, saber usar outros canais. E eu

acabo por transformar isso que é uma coisa negativa em uma coisa que é

positiva para mim. Por exemplo, a minha passagem pelo teatro foi uma das

melhores escolas que eu tive, eu escrevia para um grupo de teatro, ao qual

pertenço há 14 anos. E escrever para eles, e depois perceber como é que as

pessoas reagiam ao ver as peças de teatro aqui na cidade, nas zonas rurais,

quais eram as diferenças, me ensinou muito sobre o que é se comunicar com

os outros. Portanto, tu tens esse desafio, tu tens que perceber que a grande

fronteira não é entre o analfabetismo e o alfabetismo, é entre o universo da

escrita e o universo da oralidade. Esta é a grande fronteira. E o universo da

oralidade não é uma coisa menor, é uma grande escola, é um outro sistema de

pensamento. E é neste sistema de pensamento que eu aprendi aquilo que é

mais importante hoje para mim. Inclusive a maneira como eu escrevo nasce

desta condição de que este é um país dominado pela oralidade, um país que

conta histórias através da via da oralidade. E hoje eu me sinto assim, eu não

tenho nenhum território, neste aspecto de quando algo me fascina. Por

exemplo, eu leio Guimarães Rosa, eu leio 50 vezes a mesma página, porque

aquela escrita me atira para fora da escrita, me empurra para fora da página,

porque me acendem vozes dos contadores de histórias da minha infância.

MF: Você acha que falta em Moçambique um escritor, uma voz negra?

Couto : Tenho uma opinião dividida. Por um lado, eu acho que não tem

nenhum sentido falar em raças quando tu falas em literatura. Obviamente

quando tu perguntas "falta", é "falta" para quem? Para a própria literatura?

Essa seria a grande questão. Será que a literatura vive desse tipo de

representações? Por sexo, por raça? Mas, por outro lado, eu entendo que o

país precisa se rever naquilo que é alguém que constitui sua raça dominante. E

entendo que isso é um processo que tem que acontecer e já está acontecendo,

não pode acontecer administrativamente, não podes promover. Obviamente os

grandes escritores de Moçambique são vários, estão surgindo e são todos de

raça negra. Eventualmente haverá um mestiço. Porque não há nenhuma

hipótese. Só para se ter uma idéia, se os brancos moçambicanos forem 5 mil,

já são muitos. Em um país de 17 milhões de habitantes, isto não tem

significância nenhuma, este é um grupo condenado à extinção. Os mestiços

serão quantos? 30 mil? 40 mil?

MF: Existe miscigenação aqui?

Couto : Depende das regiões. No litoral, sim. No interior, não. Em algumas

províncias onde a presença portuguesa é mais antiga, como a Zambézia ou

Inhambane, há mais. Mas o problema para mim, para fechar esse trecho sobre

a literatura, eu acho que acontece é que mesmo os pretos que estão

afirmando-se como grandes nomes da nossa literatura são mulatos do ponto

de vista cultural, são todos eles urbanos, nasceram na língua portuguesa já, é

raro o que sabe falar uma língua que não seja o português. É assim que eu

também me sinto. Não me sinto como um representante da raça branca, eu

sinto que sou um mulato, culturalmente.

MF: Você já leu alguma crítica sobre a maneira como você representa o negro

na sua literatura? Sobre como o realismo mágico, que você utiliza muito,

facilitaria essa tarefa?

Couto : Acho que isto é um disparate. O escritor é um construtor de mundos

inventados. Desse ponto de vista aí, eu nunca deveria escrever sobre

mulheres, por exemplo. Ou uma mulher nunca poderia construir personagens

masculinas. No fundo, a literatura é a negação disso mesmo. A negação da

nossa condição, um urbano não poderia escrever sobre o mundo rural. O

Guimarães Rosa, que era um urbano, não podia escrever sobre o sertão

brasileiro. Eu, quando escrevo, na minha cabeça, estou construindo

personagens, e obviamente que são negros, quase todos eles, a não ser que

eu identifique-me de outra maneira. Porque este é o meu mundo, é o mundo

que eu vivi, que eu nasci e, por osmose, quando chego à Europa fico admirado

primeiro por uma sensação de ver tantos brancos. É a primeira reação que eu

tenho, de que não estou no meu lugar, porque há muitos brancos. Então,

naturalmente na minha cabeça, quando construo um personagem, ele surge

negro, porque sou moçambicano. Mas pode surgir outra coisa, claro. Acho que

é um disparate ler um livro assim.

MF: E por que o apelido "Mia"?

Couto : Por causa dos gatos. Eu era miúdo, tinha dois ou três anos e pensava

que era um gato, comia com os gatos. Meus pais tinham que me puxar para o

lado e me dizer que eu não era um gato. E isto ficou. Eu, lá fora, sou sempre

esperado como preto ou como mulher. Certa vez, numa delegação do Samora

Machel, que foi daqui visitar Fidel Castro, eu fui o único homem na vida a quem

Fidel Castro deu saias e colares e brincos, pensando que eu era mulher. Ele

deu prendas a todos, e a minha caixa. Isso me diverte. Essas questões de

identidade me divertem muito, quer seja do sexo, quer seja da raça. Eu não

tenho raça. Minha raça sou eu mesmo.

MF: Você acha que deveria haver mais contato entre o Brasil e Moçambique?

Couto : Tem que forçar nas áreas que é preciso forçar. Mas nas nossas áreas

algumas coisas podem depender de pessoas. Eu não acredito nas instituições.

Nesse aspecto as instituições vão seguir caminhos divergentes. O Brasil será

cada vez mais América e nós seremos África. E ainda por cima nós somos

África voltados para o outro lado. Nós estamos de costas, geograficamente,

para o Brasil. Então nós já somos Índia, já somos Oriente. Temos que nos

inserir numa outra coisa, num outro universo. Agora acho que pelo fato de as

relações históricas e culturais, estas que fizeram com que eu encontrasse um

irmão, eu falei em Guimarães, mas há outros importantes como Caetano, Chico

Buarque, que tiveram uma influência enorme. O Chico, o Caetano, o Gilberto,

essa gente nos fez ter orgulho desta coisa. Porque até certa altura até

tínhamos vergonha de falar a língua do colonizador, a língua dos mais pobres

mostrando que essa língua era rica e brilhava quando era cantada. Então isso

tem que ser continuado, e isso sempre foi feito contra a corrente, sempre foi

feito por pessoas e não por instituições.

_______________________________ Trechos desta entrevista foram publicados no caderno “Mundo” da “Folha de S. Paulo”, em 21 de julho de 2002.

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ANEXO 3 As Negas Malucas de Mia Couto

Mariana Filgueiras50

Os moradores da Vila Cacimba, onde se passa o novo romance do escritor

moçambicano Mia Couto –Venenos de Deus, remédios do Diabo – poderiam

viver parede e meia com os da Vila do Meio-Dia, do lendário musical Gota

d'água, de Paulo Pontes e Chico Buarque. Poderiam até ter organizado

protestos em grupo. Fosse Atlântico o oceano que banha o lado da África onde

fica Maputo, Deolinda, a mulata do romance africano, poderia até ter trocado

segredos com Esmeralda, a mulata de Mar morto, de Jorge Amado. A

familiaridade das histórias contadas pelo escritor, em que um médico, Sidónio

Rosa, apaixona-se pela bela Deolinda, em meio à sua conturbada ausência, é

instantânea. Faz lembrar a proximidade que há entre Brasil e os países

lusófonos, não só pela língua – agora ainda mais, pelo acordo ortográfico –

mas também pelos temas. Mia Couto venceu a guerra civil moçambicana e

evolui em uma trama repleta de universalidade: incesto, política, religião, dores

de saudades.

JB: De onde vieram Bartolomeu, Munda, Sidónio Rosa, Deolinda... Como as

histórias sopraram-lhe o ouvido?

Mia Couto – Nunca sabemos onde se localizam os personagens que criamos.

São vozes, são ecos que moram no fundo de nós, moram na fronteira entre

sonho e a realidade. No meu caso, estes personagens corporizam alguns

fantasmas relacionados com o sentimento do tempo e o facto de, pela primeira,

tropeçar naquilo que se chama "idade ".

50 Entrevista concedida por Mia Couto à Mariana Filgueiras, publicada no JB Online dia 14.06.2008. Destaques da entrevistadora. Disponível em <http:www.jbonline.terra.com.br/>. Acessado dia 29.08.2008.

JB: A aproximação com a oralidade, neste Venenos de Deus , remédios do

Diabo, é o traço mais forte da sua literatura, hoje?

Mia Couto – A oralidade é dominante na sociedade moçambicana. Mas não é

o território da oralidade, em si mesmo, que me interessa. È a zona de fronteira

entre o universo da escrita e a lógica da oralidade. Essa margem de trocas é

que é rica.

JB: Você diz que já é mais velho que o próprio país independente. Neste

romance, o tema colonial é o pano de fundo das "incuráveis vidas da Vila

Cacimba ". A colônia deixou de ser personagem?

Mia Couto – A colônia nunca foi personagem. Eu creio que, não apenas na

literatura, mas no imaginário dos moçambicanos, esse passado colonial foi

bem resolvido. É preciso pensar que a independência de Moçambique se deu

como resultado de uma luta armada que criou rupturas de cultura bem

sedimentadas.

JB: O tema da guerra civil esgotou-se? (Não é uma cobrança, só uma

provocação...)

Mia Couto – Já antes a guerra civil se havia esgotado. No O Outro pé da

sereia ele já surge.

JB: No fundo, você sempre escreve sobre o mesmo tema?

Mia Couto – Escrevi 23 livros, todos tratam de temas diversos. Existe, sim,

uma preocupação central em toda a minha escrita: é a negação de uma

identidade pura e única, a aposta na procura de diversidades interiores e a

afirmação de identidades plurais e mestiçadas.

JB: De que maneira percebe o ranço colonial na literatura dos países

lusófonos?

Mia Couto – Não há ranço. O passado está bem resolvido.

JB: O romancista é o historiador do seu tempo?

Mia Couto – Em certos momentos, sim. Por exemplo, depois da guerra civil os

moçambicanos tiveram um esquecimento colectivo, uma espécie de amnésia

que anulava os demônios da violência. Os escritores visitaram esse passo e

resgataram esse tempo, permitindo que todos tivéssemos acesso e nos

reconciliássemos com esse passado.

JB: "As formas de expressão usam-se quando se tem medo d e dizer a

verdade ", diz a sabedoria bruta de Munda, personagem do livro. O escritor diz

a verdade?

Mia Couto – O escritor é um mentiroso que apenas diz a verdade. Porque ele

anuncia como uma falsidade aquilo que é a sua obra.

JB: Um brasileiro, ao ler um romance de Moçambique, ganha riquezas

sobretudo de linguagem. Você acha que a língua portuguesa tem a perder com

o acordo ortográfico?

Mia Couto – As línguas nunca perdem . Os acordos apenas tocam numa

camada epidérmica, num lado convencional que não é o coração do idioma .

ANEXO 4

Agrupamentos étnicos de Moçambique 51 Grupo Subgrupo Localização

Suahile Província de Cabo Delgado, desde a foz do rio Rovuma até Memba.

Maconde

Maconde; Andondes Matâmbuès Mueras

Planalto dos Macondes, região de Mueda, Província do Cabo Delgado.

Ajaua

Njindos

Província do Niassa; entre os rios Rovuma, Lugenda e Luchilingo, embora os haja também encontrado no Malawi e no Tanganica.

Macua-Lómuè

Macuas Lómuès (Alolos, Anguros ou Acherimas)

Metos Chacas Muajes Maones Tacuanes

Toda a região do litoral norte, desde Vila Manica até Macomia e rio Lugenda, bem como toda a província de Moçambique, parte da Zambézia e do Cabo Delgado.

Marave

Nhanjas (Nyanjas) Nhassas Manganjas Chipetas Zimbas Chenas (Antumbas, Ambus)

Província de Tete, espalhando-se desde o rio Zambeze até Vila Gamito e fronteira com a Rodésia.

Complexo do Zambeze

Tauaras Chuabos (Borores, Mangaujas, Maindos)

Podzos (Senas...)

Disseminados ao longo do rio Zambeze.

Chope

Valengues (ba-lengue ou ba-lenge)

Bitongas Macambanas

Desde a região do rio Limpopo até Inhambane, ocupando as províncias de Gaza e Inhambane.

Chona (Caranga)

Barués Manicas Mateves Vandaus (ba-ndau, plural de mu-ndau)

Machanganas

Província de Manica e Sofala, desde a região do rio Save até o rio Buzi.

Tonga

Rongas (ba-dzonga, Tembes, Chirindzas)

Changanas (ba-tchangana)

Twas (ba-twa) Lênguas (ba-lengue; Macuácuas) Machenguas (baka-maxengwe) Tongas

Região compreendida entre os rios Maputo e Save, encontrando-se disseminado pelas províncias de Gaza e Inhambane.

Angune

Zulos (ba-zulu) Suázis (ba-swazi) Angonis

Desde o rio Maputo até a região da capital de Moçambique.

51 Conforme STEPHAN (1975, p. 60-64)

Agrupamentos Lingüísticos de Moçambique52

Localização Grupo

Lingüístico Subgrupo Línguas Dialeto s

Zona Norte Oriental

Suahile

Suaíle

Lamo Mvita Unguja Nguana

Zona Norte

Ajaua Maconde Muera Andonde

Ajaua Maconde Muera Ndonde

Njindo

Zona Norte Central

Nhanja Chena Sena Macua-Lómuè

Nhassas Nhanja Manganja Chipeta Setentrional Zeruro Caranga Sena (tchi-sena) Macua

Tambuca Tonga Nhanja Zeruro Caranga

Henga Camanga Manganja Peta Chena Tauara Chângua Gova... Chauacha Harava Gova Nóua Hera... Duma Jena Hári Govera Ngova... Nhúnge Chicunda Baruè Lómuè

Zona Sul Central

Chona

Ocidental

Nhai Nambzi Ródzi

52 Ibidem, p.68-71

Chona

Oriental

Caranga Talanundra Lirima Péri Húngua Teve Manica Unhama Carombe Búnji Nhamuca Guta

Zona Sul

Angune Suto (tchi- suthu) Tonga (dzonga-changana) Chope (tchi-tchopi)

Zulo (tchi-zulu) Suázi (tchi-suázi) Ronga (xi-dzonga) Tonga Tsua (tchi-tswa) Chope (tchi-tchopi)

Angoni Langano (hlangana) Jonga Bila Guamba Dzibi Macuácua Lêngua

Mapa de Moçambique 53

53 http://www.africanidade.com/content_images/5/mapa%20mocambique.bmp – Acessado em 12.06.2009

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