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Departamento de Teologia O REINO ESQUECIDO: ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DE ISRAEL NORTE Aluna: Flavia Mendes Serra Nunes Orientadora: Maria de Lourdes Corrêa Lima Introdução O autor Israel Finkeslstein, em sua pesquisa arqueológica, dá a Israel do Norte a sua devida importância, recolocando-o na História como um lugar de muita relevância. Foram muitos anos dedicados a essa pesquisa, que conta a história do Reino do Norte, principalmente nas suas fases formativas. Nosso trabalho inicialmente tinha o objetivo de analisar Israel do Norte em sua fase formativa, segundo as pesquisas de Finkelstein, e em sua parte final, confrontar os resultados obtidos com os trabalhos de outros dois autores: A.Mazar e M.Liverani. No entanto, no meio do processo, a aluna que iniciou o estudo precisou se ausentar e, por falta de tempo para nos aprofundarmos em mais dois autores, decidimos nos concentrar no estudo de Finkelstein, seguindo o cronograma da seguinte forma: "A cronologia baixa" de Finkelstein; o território cananeu no período do Bronze tardio e Ferro I; O Reino do Norte de Saul a Jeroboão ; O Reino do Norte com Omri e sua dinastia. 1. A formação do Reino de Israel-Norte segundo Finkelstein 1 A cronologia proposta por I. Finkelstein 2 O Reino do Norte governou sobre a maior parte do território dos dois reinos israelitas. Sua população representava três quartos dos povos de Israel e Judá juntos e foi mais forte que Judá tanto militar quanto economicamente. Apesar disso, o Reino do Norte permaneceu quase oculto, tanto na história contada na Bíblia Hebraica como na atenção prestada na academia moderna. Isto porque a história do Antigo Israel, na Bíblia Hebraica, foi escrita por autores judaítas em Jerusalém, capital do Reino do Sul e eixo da dinastia davídica. 1 Os segmentos 1 e 2 deste trabalho foram redigidos pela aluna Andreia Cristina de Morais. 2 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido: arqueologia e história de Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015, p. 15-27.

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Departamento de Teologia

O REINO ESQUECIDO: ARQUEOLOGIA E HISTÓRIA DE ISRAEL NORTE

Aluna: Flavia Mendes Serra Nunes Orientadora: Maria de Lourdes Corrêa Lima

Introdução

O autor Israel Finkeslstein, em sua pesquisa arqueológica, dá a Israel do Norte a

sua devida importância, recolocando-o na História como um lugar de muita relevância.

Foram muitos anos dedicados a essa pesquisa, que conta a história do Reino do Norte,

principalmente nas suas fases formativas. Nosso trabalho inicialmente tinha o objetivo

de analisar Israel do Norte em sua fase formativa, segundo as pesquisas de Finkelstein,

e em sua parte final, confrontar os resultados obtidos com os trabalhos de outros dois

autores: A.Mazar e M.Liverani. No entanto, no meio do processo, a aluna que iniciou o

estudo precisou se ausentar e, por falta de tempo para nos aprofundarmos em mais dois

autores, decidimos nos concentrar no estudo de Finkelstein, seguindo o cronograma da

seguinte forma: "A cronologia baixa" de Finkelstein; o território cananeu no período do

Bronze tardio e Ferro I; O Reino do Norte de Saul a Jeroboão ; O Reino do Norte com

Omri e sua dinastia.

1. A formação do Reino de Israel-Norte segundo Finkelstein1

A cronologia proposta por I. Finkelstein2 O Reino do Norte governou sobre a maior parte do território dos dois reinos

israelitas. Sua população representava três quartos dos povos de Israel e Judá juntos e

foi mais forte que Judá tanto militar quanto economicamente. Apesar disso, o Reino do

Norte permaneceu quase oculto, tanto na história contada na Bíblia Hebraica como na

atenção prestada na academia moderna. Isto porque a história do Antigo Israel, na

Bíblia Hebraica, foi escrita por autores judaítas em Jerusalém, capital do Reino do Sul e

eixo da dinastia davídica.

1 Os segmentos 1 e 2 deste trabalho foram redigidos pela aluna Andreia Cristina de Morais. 2 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido: arqueologia e história de Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015, p. 15-27.

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Os textos e tradições orais originais do Norte foram, provavelmente, trazidos para

Judá por fugitivos israelitas depois da queda de Israel, em cerca de 720 a.C., mas estes

textos, para serem incorporados ao cânon judaíta, foram submetidos à ideologia judaíta.

Finkelstein afirma que a pesquisa arqueológica também deu pouco valor ao Reino

do Norte. Apesar disto, ele não foi privado de expedições arqueológicas. Foram estas

pesquisas que permitiram escrever uma história de Israel sem a ideologia judaíta e que

se alcançasse uma reconstrução mais balanceada da história dos dois reinos hebreus.

Seu objetivo é apresentar a situação geopolítica no Sul do Levante, com a história

territorial de Israel e de seu “estado formativo”, isto é, do desenvolvimento de entidades

territoriais com aparatos e instituições burocráticas. Seu escopo cronológico vai do

Bronze Tardio II (1350 a.C.) até o Ferro IIB (700 a.C.).

Finkelstein, com seus estudos das escavações de Meguido3, propôs uma

“cronologia baixa” para a Idade do Ferro, um sistema cronológico apoiado por estudos

de radiocarbono. Estas escavações facilitaram o estudo da fase final da Idade do Bronze

Tardio nos vales do Norte e também ajudaram a compreender a prosperidade, no final

do Ferro I, no vale de Jezrael. Neste trabalho, foi usada a seguinte cronologia: a)

Bronze Tardio III: séc. XII até cerca de 1130 a.C.; b) Ferro Antigo I: final do séc. XII

e primeira metade do séc. XI a.C.; c) Ferro Tardio I: segunda metade do séc. XI e

primeira metade do séc. X a.C.; d) Ferro Antigo II: últimas décadas do séc. X e início

do séc. IX a.C.; e) Ferro Tardio IIA: restante do séc. IX e início do séc. VIII; f) Ferro

IIB: restante do séc. VIII e início do séc. VII a.C.4

Os estudos da arqueologia do Reino do Norte de Israel, de acordo com

Finkelstein, indicaram que não houve uma grande monarquia unida nos dias dos

fundadores da dinastia davídica (Davi-Salomão). Esta ideia bíblica seria uma construção

literária de autores judaítas; nos vales do Norte, o Ferro I ainda apresentaria uma cultura

material e uma disposição territorial “canaanita”. Por fim, poder-se-ia produzir um

mapa dos assentamentos das diferentes fases da Idade do Ferro e, com isso, adquirir um

maior entendimento da demografia, economia e mudanças sociais envolvidas na

ascensão das entidades norte-israelitas.

O livro, fundamentado nos estudos arqueológicos, pretende proporcionar um novo

entendimento da história do Antigo Israel, em especial nos aspectos da cultura material,

3 Meguido teve cerca de 100 determinações de radiocarbono de 60 amostras de 10 camadas, que cobrem cerca de 600 anos entre 1400 e 800 a.C. 4 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido, p. 23.

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das transformações nos assentamentos e da história territorial da Idade do Ferro nas

terras altas e baixas do Israel do Norte.

O território cananeu no período do Bronze Tardio e do Ferro I5

Para entender melhor o processo de assentamento e divisão territorial nas

montanhas e vales do Norte no Ferro Tardio I e Ferro IIA (1050-800 a.C.), Finkelstein

inicia sua pesquisa pelos períodos anteriores: o Bronze Tardio II-III e começo do Ferro I

(1350-1050 a.C.). A Canaã do Bronze Tardio II era territorialmente dividida em

cidades-Estado, num sistema de uma cidade principal com aldeias ao seu redor.

O autor identifica três ferramentas para reconstruir a distribuição territorial das

cidades-Estado deste período. A primeira é a evidência textual, tendo como fonte as

cartas de Amarna, do século XIV a.C.; trata-se de tabuletas encontradas no Egito que

incluem parte da correspondência diplomática entre os Faraós Amenófis III e IV e

governantes das cidades-Estado em Canaã; a segunda é a investigação petrográfica das

cartas de Amarna, identificando o território através da mineralogia da argila das

tabuletas; a terceira é a arqueologia. Finkelstein concluiu que as evidências textuais de

Amarna e as arqueológicas se correspondem. Suas pesquisas indicaram que as cidades-

Estado canaanitas estavam geograficamente localizadas nas terras baixas, com

territórios pequenos e densa população, e nas terras altas, com territórios amplos e

pouco habitados.

Na área que corresponderá ao futuro território do Reino do Norte, as principais

cidades-Estado foram: Siquém, como uma unidade política territorial; as da coalizão de

Siquém: Gezer, Ginti-kirmil, Tel Jocneão, Anaarat, Pehel e Shim’on; e as da coalizão

anti-Siquém: Meguido, Roob, Acsaf, Aco e Hasor.

5 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido, p. 29-55.

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Figura 1. Mapa da unidade política do Norte do Bronze Tardio, marcando as coalizões de Siquém (cinza-claro) e anti-Siquém (cinza-escuro).6

A queda das cidades-Estado do Bronze Tardio resultou num crescimento de

assentamentos nas terras altas. Com isso, houve um aumento da população

sedentarizada e a expansão da atividade agrícola. A maioria destes assentamentos

continuou ininterrupta até o Ferro II A-B, que corresponde ao tempo do Israel Norte.

Desta forma, esse crescimento de assentamentos deve ter dado início ao Israel

Primitivo.

Embora a tese de Martin Noth7 de que, antes dos tempos monárquicos, a

população israelita se organizava como uma anfictionia, isto é, numa liga de tribos cujas

instituições estavam ligadas a um santuário central, tenha sido rejeitada por diversos

estudiosos, não se poderia negar a existência de um lugar de culto importante; e este só

poderia ser Silo, sítio que foi escavado nos anos de 1980. Estudos arqueológicos

afirmam que este sítio foi devastado na segunda metade do século XI e que não houve

assentamentos significativos em Silo após a Idade do Ferro. Também não há evidências

de um santuário em Silo no Ferro I, mas apenas pilastras na encosta ocidental do sítio, o

que mais parece uma instalação de armazenamento e redistribuição de alimentos. Os

estudos revelam ainda que, nas terras altas do Ferro I, não há evidência de uma ampla

6 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido. Figura 3 da p. 31. 7 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido, p. 39.

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entidade político-territorial. Já nas terras baixas, situadas nos vales do Norte, os

principais centros urbanos recuperaram-se das destruições ou nem foram atingidos,

mantendo-se densamente povoados. Desta forma, o período do Ferro I foi de crescente

prosperidade para esta região.

Finkelstein chama o renascimento dos vales do Norte de “Nova Canaã”. Um

exemplo é a cidade de Meguido, que, depois de uma destruição parcial no Bronze

Tardio, foi totalmente restabelecida, se tornando uma próspera cidade do Ferro I. É

possível que Meguido tenha continuado a ser a referência central das cidades-Estado,

dominando sobre as regiões em seus arredores. Podem ser identificadas outras cidades-

Estado neste período do Ferro I, tais como: Tel Kinneret, Tel Keisan, Tel Jocneão,

Ginti-Kirmil e Tel Rehov.

Figura 2. “Nova Canaã”: cidades-Estados do Norte no final do Ferro I.8

A “Nova Canaã” prosperou graças à estabilidade do setor rural, ao crescente

intercâmbio com a Fenícia e à produção de cobre nos vales de Jezrael e Jordão. No final

do Ferro I, o sistema urbano da “Nova Canaã” foi destruído pelo fogo, e este pode ser

considerado o término do sistema canaanita. Os cinco sítios destruídos, ao serem

analisados pelos estudos do radiocarbono, são de datas próximas, mas diferentes.

Assim, pensa-se que a destruição se estendeu durante décadas e poderia ser associada a

ataques de grupos das terras altas.

8 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido. Figura 7 da p. 49.

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Estes fatos não podem ser encontrados nos relatos bíblicos, mas dois textos

podem representar a memória destes eventos. Um é o “Cântico de Débora”, no livro dos

Juízes (Jz 5), que pode ser considerado um dos textos mais antigos da Bíblia. Ele pode

ter sido escrito no Norte, antes do século VIII a.C. O outro é a história da morte do rei

Saul numa batalha contra os filisteus no monte Gelboé (1Sm 31). Este texto está

geograficamente fora de contexto com o restante do Ciclo de Saul e, desta forma, pode

ser considerado uma memória relacionada à expansão de uma antiga unidade política

norte-israelita nos vales do norte no séc. X a.C. Estes textos não foram escritos na época

a que se referem, mas possivelmente são tradições muito antigas que foram transmitidas

oralmente.

No início do Ferro IIA, o sistema de cidade-Estado foi substituído por

assentamentos modestos, podendo ser atribuídos ao Reino do Norte de Israel, pois estes

sítios dos vales do Norte apresentavam características da cultura material norte-israelita

e um sistema de reinos territoriais do final do século X até o início do século VIII a.C.

2. A emergência do estado israelita do Norte e a casa de Saul9 Finkelstein afirma que a região montanhosa central, entre os vales de Jezrael e

Bersabeia, devido ao grande número de assentamentos encontrados no final do Ferro I,

pode ser considerada a mais antiga unidade política do Norte israelita. Neste período

foram encontrados 250 sítios nessa região, numa área total construída de 220 hectares,

podendo ser estimada em cerca de 45.000 pessoas a população que vivia nessa região.

Apenas alguns sítios localizados na região platô de Gabaon-Betel, ao norte de

Jerusalém, podem ser considerados um assentamento central de um grupo governante.

Estes sítios do platô de Gabaon apresentam fortificações de casamata que são as

evidências de construções públicas no final do Ferro I.

O texto de 1Rs 14,25-28 menciona a campanha militar do faraó Sheshonq (bíblico

Sesac), atestada no templo de Amon, em Karnak, no Alto Egito, e seu período pode ser

alocado na metade do século X a.C. Os nomes das cidades conquistadas representam

claramente a realidade da Idade do Ferro; e, os que podem ser identificados, situam-se

no vale de Jezrael, na planície de Saron, na região de Gabaon, do rio Jaboc e de

Bersabeia. Nesta lista de Sheshonq não são mencionadas Jerusalém e as terras altas da

Judeia. Os estudos arqueológicos de Jerusalém mostram que, no século X a.C., ela era

apenas um pequeno assentamento. Com estas constatações, pode-se afirmar que a 9 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido, p. 57-84.

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descrição bíblica dos eventos de Roboão é improvável e que Judá, no século X, não

teria riquezas a serem cobiçadas pelo faraó. Assim, as referências bíblicas aos saques ao

Templo devem ser entendidas como uma construção teológica. A campanha militar do

faraó egípcio Sheshonq, que teve como foco a região ao redor de Gabaon e a região de

Jaboc, leva a concluir que estas regiões eram uma unidade política que ameaçava os

interesses egípcios.

Finkelstein, diferentemente de outros autores, acredita que a área de Gabaon-Betel

e a terra de Benjamim pertenciam ao território do Norte durante o período do Bronze e

do Ferro. Os autores que afirmam que estas regiões pertenciam ao Reino do Sul se

fundamentam em textos bíblicos deuteronomistas com ideologia judaizante, enquanto

Finkelstein utiliza textos pré-deuteronômicos e a arqueologia. Para ele, a região de

Benjamim fez parte do Reino do Norte até o fim da dinastia omrida (842 a.C.). Ela teria

sido tomada por Judá no tempo do rei Joás e continuado como parte de Judá do final do

século VIII até o tempo do exílio.

Tanto a lista de Sheshonq como as fontes bíblicas convergem para apontar a

região de Gabaá e do vale do Jaboc como unidades territoriais significativas na época de

Saul e no século seguinte. O primeiro livro de Samuel contém material pré-

deuteronomista; as tradições orais do rei Saul, do Norte, provavelmente chegaram até

Judá através dos refugiados israelitas, após a queda de Israel do Norte (722 a.C.). Estas

tradições foram incorporadas em Jerusalém a uma história antiga sobre os primeiros

dias da dinastia davídica.

Outro exemplo, que prova a preservação das antigas memórias do Israel do Norte

por transmissão oral, é Silo. Estas memórias podem ser encontradas nos livros de Josué,

Juízes e 1Samuel. Os dados arqueológicos mostram que Silo foi destruída e abandonada

no Ferro I e as análises por radiocarbono datam a destruição na segunda metade do

século XI a.C. Desta forma, não é possível associar a destruição de Silo com a conquista

do Reino do Norte pelos assírios, na época da destruição de Samaria. Em Judá, a

tradição da destruição de Silo foi valorizada seja porque atendia ao grande número de

refugiados provenientes do Norte, seja para justificar a rejeição de Saul e a eleição de

Davi. Este exemplo de Silo mostra que era possível manter por séculos tradições

antigas.

A partir dos dados bíblicos, o reinado de Saul é tradicionalmente datado nos anos

de 1025 a 1005 a.C. Muitos estudiosos calcularam a duração do reinado de Saul em 20

ou 22 anos. Sabendo que os números bíblicos são muitas vezes esquemáticos (40 anos

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de duração do reinado de Davi e outros 40 do reinado de Salomão), não se pode afirmar

que o número de anos de Saul seja atendível.

O texto bíblico localiza Saul num lugar conhecido como Gabaá de Saul. Por

questões arqueológicas, que não comprovam achados importantes no período do Ferro I,

é mais provável que ele deva ser colocado em Gaba ou Gabaon. Segundo os dados

bíblicos, Saul foi benjaminita e seu território compreendia a terra de Benjamin e seus

arredores ao norte, sendo mencionados sobretudo Ramá, Masfa, Gaba, Macmas e

Gabaon, todos localizados ao norte de Jerusalém.

Segundo 2Sm 2,9, Isbaal, filho de Saul, “foi feito rei sobre Galaad, sobre os

assuritas, sobre Jezrael, Efraim, Benjamin, e sobre todo o Israel”. Esta notícia é

considerada uma memória histórica genuína, pois isenta de interesse religioso. Não se

pode afirmar que Saul reinou também em Jerusalém, mas a notícia de que ele chegou ao

vale de Elah, região ao sul de Jerusalém, é aceitável pelo mesmo motivo.

O sítio de Khirbet Qeiyafa, localizado numa colina no lado sul do vale de Elah, é

atestado no final do Ferro I e teve seu fim neste mesmo período ou no início do Ferro

IIA (entre a segunda metade do século XI a.C. e a segunda metade do século X). Este

assentamento é rodeado por uma muralha casamata de pedras. Nada se pode dizer de

seguro quanto à identidade de seus habitantes, se israelitas ou não. De qualquer forma,

este assentamento deve estar ligado à unidade política israelita Gabaon/Gabaá, visto

que Judá, nessa época, não era uma entidade significativa. Os principais argumentos

para sustentar essa hipótese são: devido à construção da muralha, acredita-se que o

território, diferentemente do território de Judá, era suficientemente habitado para

oferecer mão de obra; um sistema de muralhas de casamata semelhante foi encontrado

somente na região de Gabaon-Betel; e a relação de Khirbet Qeiyafa com Gabaon/Gabaá

explicaria a tradição da presença do rei Saul no vale de Elah (1Sm 17,1-3).

Finkelstein conclui que uma unidade política de Gabaon/Gabaá no final do Ferro I

e início do Ferro II A (século X a.C.) é comprovada pela arqueologia, pela lista de

Sheshonq I e pelas tradições do Norte sobre a casa de Saul. Ela seria a primeira entidade

territorial do Norte israelita e abrangeria a parte norte da região montanhosa e Galaad.

Tentativas de expansão desta entidade na direção norte, do vale de Jezrael, e na direção

da planície costeira, teriam motivado o faraó Sheshonq I a atacar a região, levando a

unidade política Gabaon/Gabaá ao seu fim. Nesse sentido, para garantir seu domínio,

ele teria apoiado uma unidade política em torno de Tersa.

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3. O Reino do Norte após Saul: o reinado de Jeroboão I10 Os primeiros dias do Reino do Norte: a unidade política de Tersa11

No capítulo 3, Finkelstein trata da ascensão da identidade territorial do Israel do

Norte e de como se deu a substituição Gabaon/Gabaá por Tersa. Aqui, Finkelstein

escreve sobre os primeiros dias do reino da região do Norte e a discussão que se refere a

Tersa como “capital” desses primeiros dias. O processo começa estudando Canaã

(cidades-Estados, Siquém) e de como a queda das cidades-Estados resultou no

crescimento de assentamentos, início de Israel primitivo, pelo que se pode atribuir ao

Reino do Norte a sua primeira formação. Segundo o autor, a mais antiga unidade

política do Norte Israelita, Gabaon-Betel, assentamento central, região emergente que

ameaçava o domínio egípcio em Canaã, sofreu seu declínio no final do século X e, para

garantir seu domínio sobre a região, nasceu uma entidade norte-israelita chamada Tersa.

Os primeiros dias do Reino do Norte em Israel, que foi governado na cidade de

Tersa, ao norte de Samaria, se deram no período entre o final do Ferro I (1037-913 a.C.)

e os primeiros anos do Ferro II (866-760 a.C.). Chegou-se a essa data depois de muitas

pesquisas. O modelo cronológico baseado em centenas de amostras de radiocarbono

alocou essa fase em aproximadamente 920-880 a.C.

Mesmo com os relatos bíblicos sobre a fundação de Samaria, é razoável propor

que os maiores esforços de construção no Norte não tiveram lugar antes da metade do

Reino do Amri (884-873 a.C.). A lista de reis e seu tempo de reinado, tais como a Bíblia

hebraica apresenta, não é contestado pelo autor, somente no que diz respeito à ordem

desses reis: Jeroboão I, Nadab, Baasa, Ela, Zambri, Tebni e Amri. Mas as datas e as

fases são controversas. As escavações feitas na região mostram outras alternativas de

datas e de regiões possíveis dos reinados. O registro desses reis pode ter sido escrito um

século depois, em Samaria (capital) ou Betel, no início do séc VII a.C. após a queda do

Reino do Norte, e levado por israelitas para Judá.

O autor chama atenção para a necessidade de que toda história bíblica deve ser

lida e estudada, apoiada em informações arqueológicas e numa boa exegese, pois, por

trás dos textos bíblicos que se referem ao período da monarquia de Israel do Norte,

existiria uma tendência, por parte dos judaítas, de denegrir e deslegitimar o Reino do

Norte.

10 Os itens 3 e 4 deste trabalho foram redigidos pela aluna Flávia Mendes S. Nunes. 11 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido, p. 85-106.

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A cultura material dessa fase, início do Ferro II, apresenta uma nova tradição de

cerâmica caracterizada principalmente por vasilhames polidos com barbotina vermelha.

Não há evidências de arquiteturas públicas, palácios ou fortificações.

Tersa, citada nos textos bíblicos, é identificada seguramente nas terras altas, em

Tell el- Far´ah, a nordeste de Siquém, em uma região fértil. Nos relatos bíblicos do livro

de Primeiro Reis (12,25) há citações da cidade como primeira capital do Reino do

Norte. Tersa teria sido a capital de pelo menos seis dos sete reis que Israel do Norte

teve, entre um período de 40 a 50 anos. O autor do livro de Reis menciona, em algumas

passagens, que Jeroboão governou uma parte de seu reinado em Tersa. É uma memória

que destaca Tersa como capital que antecede à capital de Samaria. Existe uma forte

relação da pesquisa arqueológica com esse sítio de Tersa, lugar crucial para o estudo

dos primeiros dias do Reino do Norte.

Finkelstein, no terceiro capítulo do seu livro,estabelece a história do assentamento

de Tell el- Far´ah e correlaciona-a às evidências textuais sobre Tersa. Tell el Far´ah, a

região onde ficava o assentamento de Tersa, foi escavada e muito explorada, mas o seu

centro e seu setor oriental não receberam uma investigação satisfatória, e os resultados

dessas escavações deixaram lacunas de como teria sido a ocupação em Tersa nesse

período (Ferro I). Surpreende sua localização: lugar de nascentes, colina que surge em

vale fértil; em suma, um lugar estratégico. Mesmo com essas informações

arqueológicas, é impossível admitir que Jeroboão estabeleceu um assentamento

vultoso. Tersa, nesse período, entre o final do séc. X e o início do séc. IX a.C. foi um

assentamento relativamente pequeno, pouco construído e não fortificado;

possivelmente, foi escolhida por sua localização (terra fértil e rica em fonte de água).

É mencionado em 1Rs, especificamente, Tersa como capital do Reino do Norte,

sendo governado por Baasa (1Rs 15,21.33; 16,6 ), Ela (16,8-9 ) e Zambri e na primeira

metade do governo de Amri (16,23). Segundo dados arqueológicos, no entanto, Tersa

não se parece com uma capital governada por reis; escavações indicam que ela pode ter

sido escolhida como capital por ser um lugar neutro, sem passado relacionado com

antigos feudos do período do Bronze Tardio e Ferro II, mas deixam uma lacuna sobre a

ocupação de Tersa para a maior parte do Ferro I. Um assentamento humilde, no entanto

forte o bastante para expressar a natureza da capital do Reino do Norte e para sustentar

uma memória posterior.

Outra cidade ao norte, Dã, citada na Bíblia, certamente não foi governada por

Jeroboão. Dã tinha sido destruída, estava deserta em 886-760 a.C., tempo de Jeroboão,

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e só se tornou israelita em 800 a.C. Esses são argumentos que o autor utiliza para dizer

que Dã, nesse período dos primeiros dias da formação do Reino do Norte, era uma

região deserta. Betel, pela localização bíblica, foi também profundamente escavada nos

anos 1930 e 1950, pelo que se concluiu que não havia itens indicativos que

sustentassem nela um reinado, um governo de Jeroboão.

Examinando as passagens bíblicas, Finkelstein fala de uma construção não

histórica no que se refere a 1Rs 12,26-33. O autor Deuteronomista se utiliza de uma

realidade tardia para projetar um passado; são fatos ocorridos tempos depois que o autor

bíblico coloca no tempo anterior; segundo as pesquisas arqueológicas, não teriam

acontecido. O Deuteronomista constrói realidades históricas tardias a partir de sua

realidade mais próxima. Trata-se de um dado mais teológico do que histórico.

A arqueologia indica uma atividade significativa no vale de Jezrael na fase inicial

do Ferro IIA. Assentamentos na região de Meguido, os primeiros a exibir uma cultura

material, podem ser vistos como israelitas nessa fase. Quanto ao domínio egípcio nessa

região, o faraó não destruía as cidades porque tinha interesse econômico nas cidades

conquistadas. Os egípcios parecem não ter avançado para regiões mais ao Norte; o

limite dessa divisão seria o vale de Jezrael, região com pouca habitação.

Tudo isso parece indicar que a unidade política de Tersa governou sobre as terras

altas ao norte de Jerusalém, o vale Jezrael e o oeste de Galaad. Essa unidade foi

governada de um assentamento modesto e não fortificado. Os reis do Norte dominaram

uma área principalmente rural, sem grandes arquiteturas e monumentos. Tersa perdeu

sua importância no início do séc. IX a.C., quando Amri mudou a capital para Samaria.

A queda da unidade política de Gabaon/Gabaá pode ter facilitado a ascensão de

Jeroboão e do Reino do Norte, que tinha seu centro na região de Siquém-Tersa. A

intervenção egípcia na unidade Gabaon/Gabaá certamente ajudou na ascensão de

Jeroboão.

Nos seus primeiros dias de formação, Israel do Norte governou uma área mais

ampla e rica, em uma região fértil, e mais densamente ocupada do que Judá; ainda

assim, tratava-se de um assentamento humilde, não fortificado. A parte norte das terras

altas sofreu com tentativas frustradas de governos que não conseguiram se estabelecer.

Todas essas pesquisas inserem-se dentro da tentativa de explicar, mais adequadamente,

a fase inicial formativa do Reino do Norte.

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4. Israel-Norte sob a dinastia omrida12

O território governado pelos Omridas13 No capítulo 4, “O Reino do Norte sob a dinastia Omrida”, Finkelstein nos

apresenta os limites geográficos do território governado por esta dinastia. Considerando

o ciclo Elias-Eliseu do livro de Reis, que se desenvolve geograficamente numa região

limitada, pode-se supor que o Reino do Norte estava focado no vale de Jezrael, sem se

estender muito ao norte; portanto, numa área estrategicamente cercada, tendo como seu

núcleo a capital Samaria.

O autor lista uma série de locais, mencionados no livro dos Reis, que podem

ajudar a traçar uma linha limite entre os territórios governados pelos Omridas, sem

levar em conta a ordem cronológica, mas considerando somente o período em que

ocorreram os confrontos entre Israel e Aram pela conquista de territórios (séc. IX a. C.).

A Estela de Dã indica que um rei israelita tinha conquistado territórios

pertencentes a Aram, ou seja, territórios legítimos de Aram-Damasco foram

conquistados por Israel. Isso deve ter ocorrido, provavelmente, no tempo do rei Jorão e

explicaria a expansão Omrida dentro do território de Damasco.

As escavações de Hasor, e de duas fortalezas situadas na Alta Galileia,

demonstraram traços da arquitetura Omrida, podendo assim dar uma pista para o limite

geográfico do Reino Omrida. Tais fortalezas, construídas possivelmente pelos reis

nortistas, teriam a função de centro de controle.

As planícies costeiras e as colinas baixas estavam nas mãos dos fenícios. Ao

norte, a fronteira com Aram-Damasco pode ser localizada na região do mar da Galileia.

A oeste, os territórios Omridas deveriam ir até Dor, porém os dados não são

conclusivos, já que a existência de Dor é testemunhada só no séc. VIII a.C.; no período

da dinastia Omrida poderia ter sido uma porta marítima na Fenícia do Reino do Norte,

visto que Acab se casou com uma princesa fenícia (1Rs 16, 31). Ao sudeste, o território

Gezer pode ter alcançado a fronteira do Reino do Norte com o Sul e parece ter passado

bem próximo de Jerusalém. O ponto mais importante a respeito dos territórios Omridas

é indicar que suas fronteiras iam muito além do vale de Jezrael e que alcançavam o sul

da alta Galileia.

12 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido, p. 106-145. 13 Dinastia Omrida (884-842), período governado por quatro reis: Amri, Acab, Ocozias e Jorão. Tendo, no governo de Acab, experimentado total potência militar e seu auge de prosperidade.

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Nas suas fronteiras, a dinastia Omrida fixou fortes construções e centros

administrativos; havia construções de casamata e edifícios militares.

Figura 3. “Território do Reino do Norte em seus primeiros dias e no tempo da

dinastia omrida”.14

Composição demográfica do Reino Omrida Israel, no período da dinastia Omrida, estava densamente povoado, o que permitiu

e facilitou a mão de obra para as grandes construções sem afetar o setor agrícola, de

onde vinha o sustento do Reino. A estimativa de um grande número de habitantes nesse

período está baseada em resultados de pesquisas de superfície, considerando o material

de vasilhames encontrados. A população era formada por israelitas, canaanitas e por

uma mistura de descendentes de grupos locais, moabitas e fenícios.

A diversidade demográfica e cultural indica que, na política Omrida, havia o

objetivo de legitimar-se. A expansão dos territórios para regiões vizinhas; pacificando-

14 FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido, p. 102.

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as, garantiam-lhe lealdade. Era uma estratégia melhor do que a simples conquista. Esta

foi uma característica da dinastia Omrida, foi a forma usada para sua expansão: eles

visavam lugares lucrativos e estratégicos, onde erguiam suas construções, cercando seus

limites, com uma propaganda da legitimidade de seu Reino; As grandes construções e

projetos arquitetônicos impunham dominação e poder e, com isso, impressionavam o

povo local, garantindo lealdade e submissão.

Nenhuma outra região próxima ao Reino do Norte, nessa época, tinha tantas

construções e uma tal organização estrutural como Israel teve. A única região próxima

que se assemelhava ao reino Omrida era Aram-Damasco, que possivelmente disputava

os limites dos dois territórios. Conclusões

Com o estudo desses capítulos do livro do professor I. Finkelstein, fica clara a

importância de uma pesquisa arqueológica na área bíblica e o quanto esse tipo de

pesquisa pode contribuir para um melhor entendimento da História do Antigo Israel e

do povo bíblico. Fornecendo datas aproximadas para os acontecimentos narrados nos

textos bíblicos, a arqueologia permite compreendermos melhor o processo formativo de

Israel e como essa História se manteve durante tantos anos. Ao mesmo tempo, é certo

que uma leitura crítica da Bíblia auxilia na compreensão do seu texto, e o que esse texto

nos diz para nossos dias atuais.

O livro de Finkelstein é rico e consistente e muito adiciona ao processo de

compreensão da história bíblica. Fundamentado em recentes estudos arqueológicos, seu

texto proporciona um novo entendimento da história do Antigo Israel, especialmente no

que diz respeito aos aspectos de sua cultura material, das transformações nos

assentamentos e da história territorial da Idade do Ferro nas terras altas e baixas do

Israel Norte. Enfim, muito ainda se pode explorar nessas áreas, e muito ainda temos a

descobrir.

Referências

1 - FINKELSTEIN, I. O Reino esquecido: Arqueologia e História de Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015.

2 - Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.