retratos de assentamentos

324
RETRATOS DE ASSENTAMENTOS Volume 14, Número 2, 2011 Arte de Capa: Arte em Aquarela, Regina Carmona Diagramação da Capa: Publiara Agência Escola de Publicidade e Propaganda da Uniara

Upload: vungoc

Post on 31-Dec-2016

295 views

Category:

Documents


9 download

TRANSCRIPT

Page 1: retratos de assentamentos

RETRATOS DEASSENTAMENTOS

Volume 14, Número 2, 2011

Arte de Capa: Arte em Aquarela, Regina CarmonaDiagramação da Capa: Publiara

Agência Escola de Publicidade e Propaganda da Uniara

Page 2: retratos de assentamentos

RETRATOS DEASSENTAMENTOS

Volume 14, Número 2, 2011

ISSN 1516-8182

Esta publicação reúne produtos de projetos de pesquisa financiadospelo CNPq.

Este número do Retratos é financiado pelo NEAD/MDA.

O Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural (NUPEDOR) évinculado ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento

Regional e Meio Ambiente – UNIARA.

Rua Voluntários da Pátria, 1309 – Centro – Araraquara-SPCEP: 14801-320 – Fone (16) 3301-7126Home-page: www.uniara.com.br/nupedor

Email: [email protected]

Page 3: retratos de assentamentos

RETRATOS DEASSENTAMENTOS

Volume 14, Número 1, 2011

PESQUISADORES:Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional e MeioAmbiente – UNIARA

Dulce Consuelo Andreatta WhitakerPrograma de Pós-Graduação em Ciências da Educação da UNESP – Araraquara

Luís Antônio BaroneProfessor do Departamento de Planejamento da FCT/UNESP – Presidente Prudente

Luiz Manoel de Moraes Camargo AlmeidaProfessor da Faculdade de Agronomia e Engenharia de Alimentos da Universidade

Federal de Goiás – UFG

PESQUISADORES BOLSISTAS:Ana Flávia Flores

César Giordano GêmeroDaniel Tadeu do Amaral

Daniele Torres AroHenrique Carmona Duval

Oscar Frederico Accioly LandmannOsvaldo Aly Júnior

Silvani SilvaThauana Paiva de Souza Gomes

EQUIPE TÉCNICA DA PUBLICAÇÃO:Editoração eletrônica: Lívia Nunes

Traduções: Silvana PalmaSecretária: Ana Flávia Flores

Page 4: retratos de assentamentos

CENTRO UNIVERSITÁRIO DE ARARAQUARA – UNIARA

Prof. Dr. Luiz Felipe Cabral MauroReitor

Prof. Flávio MódoloPró-Reitoria Acadêmica

Fernando Soares MauroPró-Reitoria Administrativa

Profa. Dra. Vera Lúcia Silveira Botta FerranteCoordenadora do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento

Regional e Meio Ambiente – UNIARA

EDITORES – Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante, Dulce Consuelo AndreattaWhitaker, Henrique Carmona Duval

CONSELHO EDITORIAL – Delma Pessanha Neves, Helena Carvalho DeLorenzo, Leonilde Sérvolo de Medeiros, Luís Antônio Barone, Maria AparecidaMoraes Silva, Oriowaldo Queda, Sônia Maria Pessoa Pereira Bergamasco

REVISTA RETRATOS DE ASSENTAMENTOS

Page 5: retratos de assentamentos

RETRATOS DEASSENTAMENTOS

Volume 14, Número 2, 2011

Retratos de Assentamentos – Revista do Núcleo de Pesquisa eDocumentação Rural (Nupedor) – UNIARA.Araraquara – SP – Brasil, 1994v.14, n.2, 2011. 324p.Publicação Semestral do Centro Universitário de Araraquara – Uniara.

ISSN 1516-8182

Page 6: retratos de assentamentos
Page 7: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 7

SUMÁRIO/CONTENTS

Apresentação/Presentation

Práticas eco-agrícolas tradicionais: ontem e hojeTraditional ecoagricultural practices: yesterday and todayEllen F. Woortmann

Das receitas às práticas de benzedura e cura: uma etnografia dosaberes tradicionais de mulheres assentadasRevenue to the practice of benzedura and cure: an ethnography oftraditional knowledge of women ruralThauana Paiva de Souza Gomes

"Caricultura": autonomia e resistência nas manifestaçõesartísticas no Assentamento Barra do LemeArt, autonomy and resistance: the 'caricultura' group in theRural Settlement of Barra do LemeAna Cecília dos Santos

O Assentamento Bela Vista do Chibarro em tempos anteriores:vida e trabalho na Usina TamoioThe early days of the Rural Settlement of Bela Vista do Chibarro:livelihood in the Tamoio Sugarcane MillÂngela Cristina Ribeiro Caires

Educação em dois tempos nas terras do Bela Vista: usina decana-de-açúcar e assentamento em Araraquara/SPTwo different approaches to education in the Bela Vista area:sugarcane mill and rural settlement in Araraquara/SPAna Flávia FloresVera Lúcia Silveira Botta FerranteMaria Cristina dos Santos Bezerra

.....................................15

.....................................11

.....................................33

.....................................95

.....................................75

...................................131

Page 8: retratos de assentamentos

8 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

A organização política de mulheres assentadas e quilombolasem São PauloThe political organization of the peasant women and quilombolasin São PauloAdélia Oliveira de FariasLuiz Antonio Cabello Norder

Direitos humanos e reforma agráriaHuman rights and agrarian reformDulce Consuelo Andreatta Whitaker

Um breve arrazoado do pacto agrário brasileiroA short review of the brazilian agrarian pactRaimundo Pires Silva

Políticas agrárias para o combate da pobreza extrema no meiorural: um problema de invisibilidadeAgrarian policies in brazil for poverty and extreme povertyalleviation in rural areas: a problem of invisibilityRoberto Kiel

Elementos para pensar indicadores sobre vocação produtivaagrícola: um estudo sobre a região de AraraquaraThe region of Araraquara: the identification of relevant skillsand resources for agricultural productivity improvementRicardo Campos Sapia

O (re)desenho produtivo e social dos assentamentos rurais apartir das políticas públicas: o caso do programa deaquisição de alimentosThe (re)design of production and social settlements ruralfrom public policy: the case of the programa de aquisiçãode alimentosMartha Esthela S. SilvaLuís Antônio BaroneJosé Gilberto de Souza

...................................151

...................................173

...................................187

...................................215

...................................229

...................................199

Page 9: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 9

Desafios para os assentamentos de reforma agrária:uma proposta de arranjo voltado para mercados institucionaisA major challenge for the agrarian reform settlements: arestructuring proposal for the institutional food market andregional markets systemsNewton Narciso Gomes JuniorLavinia Davis Rangel Pessanha

Projetos de desenvolvimento sustentável (PDS's) e os desafios naconstrução de novas políticas de assentamentoSustainable development projects and the challenges of ruralsettlement policies formationOsvaldo Aly Junior

Avaliação da aderência à agroecologia no Assentamento23 de Maio, Itapetininga/SPEvaluation of the adherence to agroecology principles in the23 de Maio Rural Settlement in Itapetininga/SPRicardo Serra BorsattoMaristela Simões do CarmoSonia Maria Pessoa Pereira BergamascoAnderson Antonio da SilvaFrancine de Camargo Procopio

Índices de produtividade agrícola: notas esparsas em busca deum sentidoIndices of agricultural productivity: understanding the author'spoint of viewOriowaldo Queda

Normas de publicação

...................................249

...................................263

...................................283

...................................305

...................................321

Page 10: retratos de assentamentos

10 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Page 11: retratos de assentamentos

APRESENTAÇÃORetratos de Assentamentos – um periódico em expansão! Ao tornar-se

semestral, busca reordenar sua trajetória em várias direções. Afinal, a questãodos assentamentos de Reforma Agrária no Brasil envolve diferentes abordagensque se interpenetram e criam complexidades caleidoscópicas a nos desafiar.

Num primeiro momento, ampliamos nossa publicação em duas direções. Naprimeira delas, aumentamos a frequência do nosso diálogo com o mundoacadêmico interessado em questões rurais ligadas à Reforma Agrária.

Esse diálogo, bastante fértil, cumprirá em breve duas décadas de publicações– há que se reconhecer, um registro formidável, inclusive para pesquisadores dofuturo, interessados em investigar, tanto os aspectos gerais, como também osmais pontuais da política de assentamentos criada a partir da democratização dopaís, após os 20 anos de ditadura militar. Ao tornar nosso periódico semestral,aumentamos as possibilidades de enriquecimento desses arquivos, a partir dofluxo contínuo de artigos que nos chegam de diferentes cantos do país, debatendoalternativas dessa importante política pública na produção da vida (leia-sealimentos e preservação do meio ambiente).

Mas o mundo rural, pleno de sociabilidade e de alternativas, não é só produção,sobrevivência, políticas públicas e não contém só assentamentos de ReformaAgrária.

Nas áreas rurais – frutos da Reforma Agrária ou dos pequenos produtoressobreviventes de continuidades históricas - ocorrem processos humanos ricosde significados culturais, aspectos que aliás sempre enfatizamos em nossaspesquisas e publicações. E chegamos agora à segunda direção na qual ampliamosnossa abrangência. Com a abertura para um fluxo constante de artigos enfocandooutros espaços rurais – os quais desvelam a persistência da vida camponesaatravés da História –, Retratos de Assentamentos só faz ampliar ainda mais aspossibilidades de diálogo entre pesquisadores voltados às diferentes realidadesdo campo brasileiro em toda sua complexidade. Capta, portanto, aspectos maisespecificamente rurais. Ainda que imbricados na dialética com o urbano, elesatestam do ponto de vista cultural, resistências à homogeneização e à destruiçãodos ecossistemas – fantasmas que nos assombram a todo o momento atravésdo avanço do agronegócio.

Privilegiamos, portanto, a cultura no sentido antropológico e estamosacolhendo artigos que focam aspectos nem sempre considerados relevantesdentro das análises dos embates políticos pela Reforma Agrária.

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 11

Page 12: retratos de assentamentos

Retratos de Assentamentos nº 14 (2) é um produto dessas novas abrangênciase o amplo espectro de questões nele apresentados vai da produção material eimaterial de homens e mulheres do campo até às políticas preocupadas comsustentabilidade e comercialização.

Assim, práticas ecos-agrícolas tradicionais de diferentes partes do país;receitas, ervas e chás captados diretamente da cozinha tradicional; emanifestações artesanais as mais variadas nos chegam de diferentes rurais, sendoo aspecto feminino a grande estrela dessas abordagens.

Contestando abordagens de base teórica economicista ou a bibliografia queanalisa processos ecológicos centrados no meio ambiente em si, pouco seaprofundando na relação homem/meio ambiente, são desvendadas reciprocidadese formas de imersão do universo camponês no meio ambiente.

Etnografias da prática cotidiana ligada à experiência do mundo vivenciada nocircuito da patrimonilidade imaterial representam, significativamente, contribuiçõesna luta pela valorização e reconhecimento da cultura local dos assentamentos.Comprovadamente, as rupturas que impregnam as trajetórias dos assentadosnão implicam em perdas definitivas de práticas tradicionais que agora são usadaspara compor uma nova identidade, na qual códigos e valores de suas origensrurais se fazem presentes.

A arte e a sociabilidade entram igualmente na análise do modo de vida dosassentamentos como forma de despertar os potenciais criativos das famíliasassentadas. Trata-se, sem dúvidas, de mais uma alternativa de inserção da culturapopular na pauta das políticas públicas, a ampliar o campo temático daspublicações do Retratos de Assentamentos.

Artigos procuram ainda reivindicar um olhar diferenciado dedicado à mulherque vive no campo, trabalhando na produção e garantindo a reprodução da vidafamiliar em circunstâncias diferentes daquelas que condicionam as relações degênero na cidade. São novas perspectivas...

Esse aspecto emerge ainda das lutas quilombolas – tema que interessa cadavez mais a todos nós, estudiosos da complexidade do mundo rural dentro datotalidade do processo histórico brasileiro.

Encontros de Mulheres Assentadas e Quilombolas têm questionado a atribuídainvisibilidade imposta à mulher no meio rural, evidenciando o protagonismo queas mulheres vêm assumindo na construção das condições de vida nosassentamentos e nos quilombos.

Busca-se ainda mostrar que os assentamentos, embora relativamente novos,também têm História e na região de Araraquara essa história já produziu registros.

12 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Page 13: retratos de assentamentos

Assim, dois textos resgatam História e histórias do Assentamento da FazendaBela Vista, um dos mais singulares no conjunto dos assentamentos do Estado deSão Paulo, principalmente no que se refere à sua história cultural e à educaçãoescolarizada.

Interessou-nos também iniciar debates sobre a questão dos direitos humanos– tema de ponta em estudos sobre problemas urbanos e que gostaríamos de verintensificados em relação ao mundo rural. Afinal, quando nos voltamos para osquilombos e quando tratamos do direito à terra de trabalho, não é de direitoshumanos que estamos falando?

Entre as novas perspectivas, também abrimos espaço para uma "nova" velhaquestão, a saber, a nossa não resolvida Questão Agrária. Num país que semodernizou sem abolir o latifúndio e a monocultura – agora travestidos emagronegócio – essa questão necessita estar constantemente reatualizada. E apartir daí, alguns artigos do nº 14 (2) do Retratos de Assentamentos voltam-senovamente para o plano da política, abordando nesse plano, tanto a nossa políticafundiária, como as políticas públicas de apoio àqueles que produzem alimentos(e não "commodities"). A questão da invisibilidade à multidimensionalidade dapobreza no meio rural é problematizada, sendo discutidas alternativas político-institucionais de enfrentá-la, superando a miopia das análises que se limitam auma relação estreita entre a pobreza e renda.

Desafios e propostas de arranjos voltados para os mercados institucionaisde alimentos e mercados varejistas regionais são discutidos no âmbito dasperspectivas de desenvolvimento para os assentamentos.

Estudos de casos voltados à atuação do Programa de Aquisição de Alimentosacrescentam ricos elementos à esta discussão. A possibilidade de seremestreitadas as relações campo/cidade, à medida em que os produtosagropecuários dos assentamentos de reforma agrária se materializam no espaçourbano, podendo intervir diretamente na condição social de reprodução dossujeitos cria, sem dúvidas, pontos de inflexão.

O PAA se constitui em um redesenho produtivo para os assentados ouconsolida a assistência social com estratégia de seguridade social? Controvérsiasé que não faltam nesta edição do Retratos.

A difícil, mas possível adoção de práticas agroecológicas nos assentamentosrurais é dimensionada em um artigo voltado às metodologias, sistemas capazesde efetuar avaliações sócio-ambientais imbuídos da decisão de apoiar osagricultores em sua transição rumo à construção de territórios mais sustentáveis.A análise dos dados sugeriu a necessidade de ações para melhoria dos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 13

Page 14: retratos de assentamentos

indicadores. Evidenciando o compromisso com o retorno social do conhecimento,este artigo propõe intervenções que possam auxiliar os assentamentos noplanejamento de suas ações. E há vontade política para isso?

A empreitada do Incra na construção de Projetos de DesenvolvimentoSustentável (PDS's) chega a bom termo? O modelo de criação de uma políticade desenvolvimento de assentamentos privilegiando o viés ambiental temconcreticidade? Questões polêmicas, de respostas nada simples, a exigir quenos debrucemos sobre o sentido e a possível (re) significação da Reforma Agrária.

Leituras positivas enfatizando expectativas inovadoras trazidas pelos PDS'smesclam-se a críticas e divergências sobre a concepção de sustentabilidadepriorizada pelos atores envolvidos nos projetos de desenvolvimentos dosassentamentos.

Temos, efetivamente, gargalos que têm se apresentado no desenvolvimentodos assentamentos, os quais exigem a problematização da liberação de créditos,a necessidade de reorientação da assistência técnica, a imperiosa urgência daquestão ambiental ser, de fato e de direito, incorporada na agenda de políticasdirigidas aos assentamentos.

Chega-se, ao final, às questões econômicas de produtividade esustentabilidade: índices, indicadores e questões de mercado, constituem partesde um grande desafio, sem cujo enfrentamento, os sonhos do homem e da mulherdo campo, do qual participam antropólogos e ambientalistas interessados emSociologia Rural, correm grandes perigos face à voracidade do agronegócio.

Assumindo mais uma vez a certeza da importância e da atualidade dasdiscussões envolvendo a Reforma Agrária e por ter a convicção de que existemalternativas de outro modelo de desenvolvimento rural, que podem gerar novasformas de uso da terra e dos recursos naturais é que os Editores convidam osleitores a compartilhar das controvérsias e contribuições do número 14 (2) dacoleção Retratos de Assentamentos, marcadas, mais uma vez, pelos sonhose utopias de um pensamento que continuadamente assume compromissos eestimula a crítica.

Os Editores

14 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Page 15: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 15

PRÁTICAS ECO-AGRÍCOLASTRADICIONAIS: ONTEM E HOJE

Ellen F. Woortmann 1

1Professora Doutora da Universidade de Brasília.

Resumo: o artigo analisa algumas práticas agrícolas etno-ecológicas tradicionaisdesenvolvidas por grupos camponeses. Especificamente, parte da noção dehabitus de Bourdieu e da noção de triângulo Deus, Homem. Natureza tal comodiscutida por Klaas Woortmann. A partir de princípios, noções, tais como "tomarágua esquentada no sol faz mal", práticas de proteção e preservação de recursosde água são implementadas: sempre que possível mantém-se as matas galeria,árvores são plantadas ou mantidas nas proximidades de poços e fontes, etc.Nesses grupos tradicionais o uso de recursos naturais são maximizados, taiscomo o plantio de inverno em áreas protegidas por geadas, a adecuação/compatibilidade entre as características do solo com as variedades de alimentos,etc. Discute-se também a relação entre rituais e práticas de preservação ambientale reflorestamento, por exemplo.

Palavras-chave: Práticas Etno-ecológicas; Processo Produtivo Agrícola; Rituaise Reflorestamento.

Abstract: This paper examines some ethno-ecological traditional farmingpractices developed by peasant groups and focuses on a specific section ofBourdieu's concept of the habitus and on the perceptions of the triad ofGod, Man and Nature, as discussed by Klaas Woortmann. In the light of theprinciples and concepts such as the one described herein as "it is not safe todrink water that has been left out in the sun for an extended period oftime", new practices have been adopted with the purpose of conservationand protection of water resources: for instance, whenever possible,communities were given the responsibility to protect gallery forests,promoting conservation and tree planting in the vicinities of the wells andfountains, and so forth. These traditional groups maximize the efficient use

Page 16: retratos de assentamentos

16 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

of natural resources by adopting the winter cover crops, assessing theadequacy/compatibility between soil type and food variety, and so forth.Other issues regarding the relationship between customs and practices forenvironmental preservation and reforestation were also discussed.

Keywords: Ethno-ecological Practices, Agricultural Production Process,Rituals and Reforestation.

IntroduçãoO meu tempo é hoje. Eu não vivo no passado. É o

passado que vive em mim. Paulinho da Viola

Este artigo resulta de dados levantados no decorrer de pesquisas sobreprocessos produtivos e reprodutivos entre grupos tradicionais rurais; centra-seno encontro entre a Antropologia e a História, em especial em sua dimensãoambiental.

Ao se analisar a bibliografia sobre camponeses em geral ou sobre algumgrupo tradicional em particular, percebe-se que as pesquisas de base teóricaeconomicista via de regra privilegiam a sua produção, isto é, o resultado dotrabalho familiar investido; por outro lado, as clássicas pesquisas (neo)marxistas,centram suas pesquisas no destino da produção, nos grupos sociais envolvidos,assim como sua conotação política. A relação entre processos cognitivos/produtivos e ambientais são pouco contemplados.

Por outro lado, a bibliografia que analisa processos ecológicos geralmente écentrada no meio ambiente em si, pouco se aprofundando na relação homem/meio ambiente. Além disso, esta última via de regra construída a partir de ideáriomarcado pela relação Hemisférios Norte /Sul, em que países como o Brasil sãoreceptores de pacotes conceituais e tecnológicos posteriormente aplicados emsituações etnográficas singulares.

As questões ambientais são trabalhadas como se antes da década de 1950/60 vigorasse uma ausência de consciência ecológica e como se esta últimativesse sido introduzida no Brasil através do esforço de incorporação do ideárionorte-americano ou europeu. Isto significa que se ignora por completo, por umlado, a existência de uma consciência ecológica camponesa local e se ignoratambém que grupos camponeses tradicionais desenvolveram processos

Page 17: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 17

adaptativos expressos em práticas ecologicamente positivas pautadas na releiturada noção de memoire longue, de Zonnabend (1980).

Meu objetivo neste trabalho é discutir algumas dimensões da suaWeltanschaung, isto é, da sua cosmovisão camponesa, configuradas face àreligião e ao meio ambiente e em estreito diálogo com diferentes processos demodernização ao longo do tempo.

Tal como apontado em trabalho sobre a relação entre gênero e meio ambienteno litoral do Rio Grande do Norte:

Por ambiente entendo aqui um espaço total composto por espaços específicosarticulados entre si pelo grupo que nele e dele vive. (...) Trata-se pois, nãoapenas de um ambiente natural dado, mas de um ambiente culturalmentesignificativo e socialmente utilizado. A noção de ambiente inclui, então, asrelações sociais e a cultura que fazem da "população", uma sociedade. Essanoção implica pois, não uma oposição entre natureza e sociedade, mas ainteração entre ambas...Na medida em que esse sistema envolve a interaçãoentre a natureza e grupos sociais, o espaço é socialmente construído. Talconstrução implica um processo de apreensão cognitiva do meio ambientenatural e processo de seleção de suas partes, seja no plano prático seja nosimbólico (WOORTMANN, p. 31-53, 1992).

Nesse quadro é importante acrescentar que nessa concepção o meio ambienteé dinâmico e opera ajustando-se a mudanças ou transformações internas oucom resposta à inovações/pressões externas.

Ao discutir a proposta de práticas ecológicas tradicionais é oportuno apontar,ainda que de forma resumida, alguns níveis de entendimento servem de base àessas práticas.

Elas são parte do que Norbert Elias (1997) e Pierre Bourdieu (1980 e 1983)definem como habitus. Ainda que ambos utilizem a mesma categoria, as suasconcepções são bastante distintas.

Para Elias, habitus consiste num saber socialmente incorporado "de cimapara baixo", numa relação unidirecional, isto é, configurado pela sociedade/grupo,sua família, escola, e introjetado, inculcado no indivíduo e nele seletivamentesedimentado. As práticas incorporadas formariam como que uma ponte entre acontinuidade, as práticas tradicionais, por exemplo, e a mudança, isto é, aintrodução de novas matérias primas, variedades de plantas, animais, etc.

Para Bourdieu (op cit), inspirado em Panofski, habitus consiste num saber

Page 18: retratos de assentamentos

18 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

social incorporado ou Bildung, resultante de um movimento de "mão dupla", ouseja, da sociedade/grupo para a pessoa e desta para o grupo ou sociedade aque pertence. Em outros termos, a pessoa é socializada, internaliza aquilo que afamília, escola, amigos, igreja, meios de comunicação, etc., lhe incutem: aconcepção do que é meio ambiente, sua relação com outras esferas tais como asocial, a religiosa, econômica, por exemplo. Contudo, nem sempre o que lhe foiincutido no plano do modelo, será posto em prática, lhe será operativo, sejadevido a circunstâncias alheias à sua vontade, seja por opção individual.

Por outro lado, de acordo com Bourdieu (op cit.), a pessoa também podeinfluenciar a sociedade ou grupo a que pertence, abrir novas perspectivas, criarnovas demandas ambientais e estéticas, por exemplo. Nos termos de Panofski:

Tratando-se de fenômenos históricos ou de fenômenos naturais, a observaçãoparticular apresenta o caráter de um 'fato' só quando pode ser relacionadacom outras observações análogas, de tal modo que o conjunto da série 'ganhesentido'. Portanto, este 'sentido' pode ser legitimamente utilizado a título decontrole , para interpretar uma nova observação particular dentro da mesmaclasse de fenômenos. (BOURDIEU, p. 343, 1983).

Bourdieu (op cit) propõe ainda a existência de disposições internalizadas enaturalizadas em relação dialética com as práticas, em outros termos, nacombinação entre "estruturas estruturadas e estruturantes" quer dizer, aquilo quefoi inculcado pela tradição em termos de concepções e relações com o meioambiente de um determinado grupo social e o que foi historicamente atualizadono decorrer do tempo.

Nessa perspectiva, uma localidade ou região é vista como um território noqual práticas são mantidas seletivamente no decorrer do tempo, configurando oque Pietrafesa (1997) define como "sistema do lugar" e distintos modos deexistência (2009).

A noção de prática aqui será concebida como decorrente do habitus de umgrupo ou pessoa, tal como discutido por Bourdieu em seu clássico Célibat etcondition paysanne (1962 ) noção que não se confunde com a de outros autores,tal como Sahlins (2004), com sua teoria da utilidade objetiva.

A partir desse quadro, propõe-se pensar e pesar a noção de práticasecológicas tradicionais como resultado de um domínio cognitivo do meio-ambiente; mais especificamente ele resulta de um manejo dos recursos disponíveiscom relação a um ambiente percebido, um fenômeno desenvolvido no interior

Page 19: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 19

de grupos tradicionais em muitos casos em fase agonística. Em alguns casosessas práticas ainda estão sendo operacionalizadas, em outros, elas somenteestão no plano da memória dos idosos e em outros ainda, essas práticas jáforam seletivamente descartadas.

Aproximando-nos de um nível etnográfico, centrado em populações ruraisbrasileiras, deve ser destacado o que Klaas Woortmann (2000) concebegraficamente como um triângulo, marcado pela égide de uma percepção articuladae holista do mundo. O vértice superior deste triângulo – numa percepçãotradicional pré-romanização – é ocupado por Deus, como Senhor e Criador domundo; no segundo vértice, subordinado a Ele, encontra-se o homem, comosua criação; e no terceiro, também como sua criação, está a Natureza. Háportanto, a configuração de um pacto hierárquico com valores, pesos,diferenciados: o Homem e a Natureza, com peso e valores menores,subordinados a Deus, o Criador.

É evidente que esta não é a concepção de mundo urbana, capitalista,globalizada, na qual Deus está fora desse universo, separado e encerrado nocontexto da religião formal e a natureza, numa relação verticalizada, estásubordinada ao homem e a seu serviço. Ademais, nesta concepção pode-seidentificar relações de causa e efeito, entre os dois últimos, porém sem correlaçãodireta com o primeiro.

Na concepção tradicional do triângulo articulado, Deus "fala" aos homensdiretamente através da religião, porém não no quadro da alta hierarquia romana;Ele fala aos homens no ideário do catolicismo popular. Estes por sua vez, searticulam com a natureza não como seus superiores; eles se relacionam com anatureza numa relação entre iguais compartilhando o status de criaturas de ummesmo Criador. Além disso, Deus também fala aos homens indiretamente atravésda natureza. Destarte, cada um dos vértices se torna um elemento de um todomarcado pela reciprocidade entre as partes.

Essa relação está explicitada, por exemplo, quando se analisa as fogueirasmontadas no dia de São José, dia 19 de março. As fogueiras são acesas em suahonra e como forma de agradecimento pela previsão de inverno que ele promove.Como afirma um camponês, hoje produtor de maracujá para o mercado deAracaju:

Desde o meu tempo de menino, nunca deixei de honrar São José. E botei nomeu filho o nome dele. Pode escrever aí, dona, ele diz para o povo como vaiser o inverno. Como assim? É isso mesmo. Dia de São José que cai aquela

Page 20: retratos de assentamentos

20 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

água boa, aquela chuva, chuvona, pode escrever que Deus vai mandar uminverno bom... vai ser aquela fartura, o povo aquela alegria da panela cheia,os bichos gordos, aquela beleza. Agora, quando não chove no dia de SãoJosé, é porque ele já está avisando para o povo que acredita, o inverno vaiser fraco, as roças... vai ser aquela tristeza, judiação... A gente não sabe,Deus é que vai mandar a benção das chuvas.

Nesse quadro, São José e os demais santos, operam como intermediáriosentre Deus e os homens, enviando avisos aos tementes a Deus, intercedendoface a ele, etc. Via de regra, essa intermediação é percebida como sendo atravésda natureza.

É no âmbito desse ideário que se entende a organização de procissões depessoas entoando ladainhas e rezas, carregando vasilhames com água, para lavarcruzeiros, como forma de penitência a Deus, para que Ele se apiede e enviechuvas. Nesse quadro, a seca não resulta de um fenômeno climático,cientificamente caracterizado como El Niño ou La Niña. Para esses camponeses"a seca é o castigo de Deus pela maldade dos homens". Portanto, constitui umaconcepção de meio ambiente completamente diferente da urbano-centrada atual.

De forma análoga, a solução antiga de problemas através de um pacto entreos três vértices, Átis como a expulsão de animais peçonhentos é dada no mesmoquadro referencial: para expulsar as cobras (natureza) de uma roça familiar, échamado um rezador (homem) – observe-se que ele não é um exterminador –que invoca a Deus e à interferência dos santos, os quais manterão a segurançaenquanto o rezador viver. Esse pacto permanece vigente enquanto o rezadorestiver vivo e ativo; com o seu falecimento, o pacto se extingue e deve serrenovado com outro rezador.

A concepção holista de Dumont (1970) deste ideário é evidente. Há um todoque se manifesta nos três vértices, que não podem ser desarticulados ouconcebidos em esferas separadas. E, de acordo com ele, a pessoa, como membrode sua família e por sua vez a sua família no grupo ao qual se vincula, igualmenteestão incluídos nesse todo ao qual também se encontra a natureza.

Assim, se a natureza é criada por Deus, pode ela ser corrigida? Será queDeus criou algo errado? Observe-se que somente algo que está errado ouimperfeito é que pode ser corrigido. Então como algo que foi criado por Deuspode ser corrigido?

Numa concepção próxima à romana, apontada por Fustel de Coulanges, ocamponês se pensa, não como proprietário da terra, vista como mercadoria ou

Page 21: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 21

investimento de curto prazo, que pode exaurida, mas como dono que a trabalhae que a passa de pai para filho. O camponês se concebe como responsável peloseu gerenciamento e portanto, da natureza. A terra lhe foi outorgada como legado,legitimado por Deus pelo trabalho nela investido2. Recebida da geração anterior,deve legá-la à próxima em condições positivas de reprodução.

Destarte, há um investimento de trabalho nesta terra-patrimônio. É o "suordo seu rosto" que legitima o acesso à ela, bem como o consumo do que nela foie é produzido. A rigor, o trabalho legitima o acesso à terra destinada ao camponêspor Deus. E nesse quadro ele deve prestar contas do que fez com e a ela e, porconseguinte, à natureza à geração seguinte e à Deus.

Essa concepção supõe que tal como há a proximidade do homem com anatureza, assim há a proximidade do homem com Deus.

Ao se analisar o detalhamento do processo produtivo camponês, constata-se que há uma relação de reciprocidade entre homem e natureza, na qual seidentificam "negociações", "diálogos", nos quais o camponês "fala" com ela.

Ao contrário dos técnicos a serviço do agronegócio, que após a análise dossolos determinam a "correção dos solos" a fim de atender às necessidades damercadoria a ser produzida, a produção camponesa parte do domínio cognitivodas condições e características do solo e da natureza. Haverá, como que uma"negociação" entre homem e natureza, na qual se identifica um ajuste entre aprodução para atender as necessidades da família e o "terra quer dar". Assim, ogerenciamento da terra, a configuração do processo produtivo, levará em contadois termos: 1.º as necessidades do homem e sua família e 2.º o potencial danatureza – no seu entendimento, os recursos disponibilizados por Deus a ele esua família.

Assim, por exemplo, no sertão do Nordeste, um terreno "brejado" não serádrenado para impor um determinado tipo de mandioca; atendendo ao que aterra quer dar, dentre as variedades de mandioca será escolhida aquela que maisse adéqua ao tipo de solo que retém maior índice de umidade. Da mesma forma,em local onde há alta incidência de formigueiros, planta-se melancia que "gosta"desses lugares ou pode ser aplicada "água da mandioca", subproduto dafabricação da farinha.

2Essa concepção era compartilhada no período inicial do MST através de mensagens taiscomo: Terra de Deus para quem ela trabalha". Sobre concepções de trabalho camponês, verBrandão 1986 e 2004.

Page 22: retratos de assentamentos

22 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Desse tipo de gerenciamento/negociação resulta uma diversificação daprodução diretamente associada à diversidade de solos disponíveis negociada,negociação essa alicerçada, como mencionado inicialmente, no "habitus, comosistema de esquemas inconscientes, ou profundamente internalizados, quetransforma a herança coletiva em inconsciente individual" (BOURDIEU, p. 347,1982). Além disso, supõe um domínio cognitivo detalhado dos elementos quecompõe o processo produtivo, tais como características específicas de cadavariedade das plantas utilizadas, a relação entre as mesmas em seus processo deflorescimento e produção, os tipos específicos de solos, o regime de chuvas,ventos, etc. Esse conjunto de saberes, que no mundo camponês implica emfazeres, compõe o que se define como "matriz camponesa".

Se essa negociação é alicerçada no habitus, ela, por sua vez, também tem denegociar com outras dimensões, com as condições de acesso à terra, porexemplo. Acredito que esse quadro explique o fato de que nas pesquisasrealizadas no sertão de Sergipe tenham sido identificadas 26 formas deconsorciamento3, algumas delas, antigas, apenas retidas na memória doscamponeses idosos e outras em uso. Há uma plasticidade no plano do modeloque permite os ajustes face às mudanças internas do grupo e/ou face às alterações/imposições externas.

No discurso desses camponeses observa-se que há como que uma"humanização" da natureza. Nesse ideário, o camponês "o que ela quer dar", "oque ela quer produzir", depois de produzir "ela precisa descansar" e necessita de"vitamina", isto é, adubo. Nesse discurso fica evidente a construção de relaçõesde reciprocidade positiva em que o camponês atende ao que ela quer (adubo,pousio, etc) e ela por sua vez atende ao que ele necessita, o produz o seu alimento.

A essas características de humanização positiva pode ser acrescentada,por outro lado, característica de humanização negativa: quando demasiadoexplorada, "a terra se vinga dando pouco rendo", isto é, numa evidentereciprocidade negativa, a natureza reage aos maus tratos dos homens, reduzindoo rendimento da sua produção de alimentos, provocando a fome. Da mesmaforma, quando uma área de mata é desnecessariamente queimada ou sem aobservância das práticas de tradicionais de prevenção (aceiro mal-feito, por

3Sobre formas classificações e de consorciamento, ver (DUBOIS, 1995 e WOORTMANN eWOORTMANN, 1997).

Page 23: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 23

exemplo, ou não observância das condições de vento, umidade, etc.) a natureza"pode se vingar" provocando incêndios nas imediações ou provocando ataquede animais em fuga.

É importante salientar que para o camponês é fundamental deixar a terra"descansar" até criar uma capoeira ou mesmo, se possível, capoeira grossa.Devido a pouca disponibilidade de terras, é motivo de grande orgulho para ocamponês deixar uma área em descanso até ela retornar à condição de mata.Legar uma área de mata aos filhos, ainda que pequena, é prova de ele é um bompai e um camponês "caprichoso". Ao legar-lhes a mata, ele lhes dá a oportunidadealtamente valorizada de ter acesso aos recursos que a mata disponibiliza e deiniciar um novo ciclo agrícola.

Remetendo ao que já foi mencionado acima, no âmbito dessa reciprocidadenegativa, incluem-se também, como já mencionado, as recorrentes secas quecastigam o sertão.

Essa forma de pensar, portanto, constrói o universo camponês como imersono meio ambiente, como parte dele, e não fora dele. Partindo dessa constatação,percebe-se que em certos grupos camponeses, tal como os do Mato Grosso,estudados por Almeida (1988 e 2007) a leitura de fenômenos da natureza édiferente. Eles, por exemplo, não compartilham com a percepção ocidentalmoderna de 4 fases da lua, isto é, concepção "compartimentalizada" da lua.Para esses camponeses a lua, num continuum, passa gradativamente de fraca(lua nova) a forte (lua cheia) e é ela, e não o calendário solar, que orienta/sinalizaas práticas do processo produtivo. Essa leitura da natureza que resulta, via deregra de modelos antigos ajustados no tempo, nem sempre são operativos faceao processo migratório. É o caso dos migrantes gaúchos estudados por Tavaresdos Santos (1983) ao transferirem os parâmetros de leitura do solo e plantasnativas do Rio Grande do Sul para a Amazônia incorreram em leitura equivocada.A mata exuberante, com a presença de certas variedades de plantas, que no Sulé expressão segura de solos férteis, profundos, no Norte, via de regra pode serexpressão de solos arenosos pouco férteis, com fina cobertura de húmus.

Dentre esse grande e variado universo de práticas ecológicas tradicionais,encontram-se, centrados em certos locais, grupos específicos nos quais práticasetno-ecológicas são identificáveis. Elas geralmente resultam de uma matrizcognitiva e de condições sócio-econômicas e ambientais para se manter e atualizar.Configuram um etno-manejo com características peculiares mais ou menosidentificáveis, a depender do processo de adaptação.

Assim é que entre os teuto-brasileiros do Vale do Rio dos Sinos, por exemplo,

Page 24: retratos de assentamentos

24 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

identificam-se ainda algumas práticas que poderiam ser definidas como etno-ecológicas tradicionais, resultantes de um processo de adaptação de uma tradiçãogermânica ao contexto e ideário brasileiro. Essas práticas são identificadas, porexemplo, em situações de etno-manejo da natureza tal como já apontado emoutro lugar:

Até cerca dos anos 1950, realizava-se como que um "reflorestamento ritual".Por ocasião do batizado de uma criança, o pai, padrinho ou avô com algumadisponibilidade de terras plantava algumas araucárias, em área ainda emmata, na margem de algum córrego ou mesmo na beira do caminho, formandocomo que um "corredor". Com isso, cada recém-nascido teria no futuro algopara "im Lebe' mit etwas anzufangen", isto é, ter algo para começar na vida.Desde a perspectiva da memória, era também uma forma de o ascendenteser lembrado na paisagem, principalmente quando "não estivesse mais aqui".Na periferia de Novo Hamburgo por exemplo, havia ainda , no final dadécada de 1990, alguns exemplares do "corredor de pinheiros da Vó Mentz",plantados entre 1920 e 1940, por essa sobrinha da líder do movimento Mucker(WOORTMANN, p. 137, 2004).

Como o casamento era tardio, esse reflorestamento de araucárias era umamaneira de formar uma poupança para os filhos, destinada a contribuir para acompra de terras em alguma colônia nova, à construção da casa, por ocasião docasamento, ou mesmo para a formação de uma "ajuda" em um novo começo nacidade. Essa "poupança" também podia ser usada para financiar o estudo emseminário para os filhos destinados ao sacerdócio Em caso de crise, há umredirecionamento do manejo dos pinheiros, que podiam ser vendidos pelo pai.Neste caso, o pai ficava em débito com relação ao filho ao qual pertenciam asárvores.

No caso de colonos "fortes", com mata maior e mais densa, na ocasião queantecedia ao batizado, o pai, com a ajuda de familiares, além de selecionarpinheiros nativos, selecionava algumas árvores de madeira de lei, destinando-asao recém-nascido e fazendo a limpa ao redor das mesmas "para que crescessembonito".

Os "pinheiros-poupança" do ritual do batizado não se confundiam com aquelesplantados para outro fim ritual: os Weihnachtsbäume, isto é, as "arvores deNatal" ou "pinheiros de Natal". Estes eram plantados pela mãe de família e nãoe eram cortados anualmente. Alguns deles, porém podiam ser transferidos para

Page 25: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 25

a categoria dos "pinheiros-poupança". Na medida em que haviam "sobrado"dos cortes anuais.

Em 2010, quando de uma visita à antiga colônia alemã de Santo Amaro (SP),hoje município de Parelheiros4 (3), ao perguntar sobre pequenas áreas de mataou reflorestadas e corredores de pinheiros adultos encontrados, me foi afiançadopor um colono que:

Isso todo mundo fazia. Era sempre um apoio para o futuro... Mas hoje agente não faz mais não. Não adianta. Se alguém ainda planta é longe daestrada porque no Natal vem as pessoas e roubam. O (inaudível) plantouuns, eles estavam bonitos, deste tamanho (cerca de 1,70 cm) e um diaamanheceu e tinham roubado todos. Eu não sei, mas eram uns 10 o 12."

–Até quando vocês ainda plantaram esses corredores?

– Assim, na beira da estrada, não sei bem, acho que já fazem uns 20 anos.Tem um ou outro que ainda planta mas são poucos.. mas é porque eles temlugar (seguro) para plantar mais para dentro.Minha mulher sempre tem osdela plantado, no Hof, mas é para Natal...

No contexto da dinâmica dessas práticas etno-ecológicas teuto-brasileiras,altera-se o significado do pinhão, fruto das araucárias. De um complementoalimentar da família e da criação de porcos, nas últimas décadas ele passa a terdemanda no mercado urbano, tornando-se uma fonte de renda complementarpara a família. Essa renda é, em muitos casos, usada para custear as despesasescolares do filho, "dono dos pinheiros", a quem cabe a coleta, sendo que acomercialização cabe ao pai.

No caso da produção de pinhão dos "pinheiros de Natal da mãe quesobraram", ainda que ele tenha sido comercializado pelo pai, o rendimento dopinhão era destinado à mãe, para atender às suas necessidades e comprar, porexemplo, um eletrodoméstico para a casa.

Essas práticas etno-ecológicas contudo, não se confundem com outra formareflorestamento de pinheiros, realizado em locais afastados das estradas, em

4Agradeço ao Instituto Martius-Staden pelo convite para a palestra e por ter-me viabilizadoa visita à Parelheiros e o contato com esses teuto-descendentes.

Page 26: retratos de assentamentos

26 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

terras de colonos aposentados com alguma disponibilidade de terras e poucaforça de trabalho. São os reflorestamento com plantio de pinheiros de Natal emmaior escala. Nesse caso, fazem parte do domínio masculino de trabalho, oplantio é realizado por força de trabalho não familiar, os pinheiros são destinadosao mercado e nem sempre são da variedade araucária.

Identificam-se entre esses teuto-brasileiro, também uma variedade de práticasetno-ecológicas pautadas, a partir do princípio de que "beber água esquentadano sol faz mal". À partir dessas práticas, recursos de água são preservadas pelascobertura de mata ou de árvores mantidas nas suas proximidades.

Assim é que, ao redor de fontes, açudes ou córregos que alimentam os animaisnos potreiros, deve-se manter a mata ciliar nativa ou realizar o seu re-plantio. Damesma forma, a água do poço ou fonte que abastece a casa e os animaisdomésticos, deve ser mantida fresca pelo plantio de árvores5 ao seu redor. Nessesentido também "faz mal" trabalhar com água no sol, e é por isso que as roupasdevem ser lavadas pelas mulheres em locais sombreados; algumas árvores devemser preservadas nas roças para sombrear os momentos de descanso /refeiçõesdos colonos em seus trabalhos durante os picos agrícolas. De forma análoga, osanimais devem ter acesso à sombra para que suas cabeças não esquentem e elesadoeçam.

É interessante que, na contra-corrente das tendências mais gerais dedesmatamento, hoje, em muitas dessas colônias teuto-brasileiras tradicionais, asáreas de mata nativa e de reflorestamento estão aumentando devido à reduçãomédia do número de filhos, à migração de parte deles para a cidade ou pelaredução das áreas de plantio de alimentos decorrente do trabalho em tempoparcial dos filhos como operários nas indústrias que para lá transferiram setoresde seu parque industrial, tal como discutido em Schneider (1999).

Alguns poucos "colonos bons", principalmente "fortes" com maior disponibilidadede terras, ainda tem condições de reproduzir práticas etno-ecológicas antigas.Mantém a sua reserva de mata nativa original ou replantada para obtenção demadeira para construção ou reparação da casa ou estábulos, confecção de cabosde ferramentas, moirões de cerca e lenha. Em geral essas áreas de mata se localizamnas encostas dos morros e são uma maneira de evitar que a chuva "levasse a terraboa embora" e houvesse o açoreamento dos cursos de água.

5Vale ressaltar que sempre há uma preocupação de escolher árvores que não perdem asfolhas ou cujo pólem suje a água.

Page 27: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 27

Aliás, a erosão, no ideário desses colonos é expressão de maltrato danatureza e é muito mal-vista por Deus, e por isso deve ser imediatamentecombatida. Numa combinação teuto-brasileira, galhos e ramas de árvores epalha devem ser colocadas logo após terminada a enxurrada, no sentido inversoao da água. A prática é concluída com o plantio de bananeiras, no sentidotransversal da fenda.

Retornando à questão do etno-manejo nas propriedades teuto-brasileiras,vale observar que nem todas as árvores em casas antigas estão relacionadas àproteção de recursos de água. Ipês amarelos antigos, por exemplo, encontradosem frente de Stammhäuser (1995), podem ser classificadas como "árvores-testemunho" de uma antiga identidade. Essas árvores sinalizavam aos passantesda estrada que este colono era membro de uma loja maçônica. Essas árvores-testemunho antigas possuem significado muito diferente de outras da mesmavariedade, de plantio recente, plantados por motivos tão somente estéticos, "porque são bonitos".

Como que numa atualização do ideário tradicional, explica-se a presença decinamomos, por exemplo, uma árvore exógena, introduzida na região em tornoda década de 1940. As folhas do cinamomo são repelentes naturais de insetos.Essa característica explica o plantio de cinamomos nas proximidades da casa,de preferência perto da janela da cozinha e dos estábulos. É o que detalha umacolona, hoje moradora na cidade:

Minha mãe sempre contava. Tinha tempos em que era triste. Era só começara fazer chucrute, matar um porco ou uma coisa assim, que apareciam asvarejeiras. Tinha também tempos que sempre tinha muitas moscas. A gentebotava 2,3 pegadores de moscas (Fliegerfänger)... e os vidros ficavam pretos.E não adiantava nada. Uma vez ou outra não tinha jeito, a gente botavaveneno mesmo...

Depois a gente ganhou a mudinha de cinamomo da minha madrinha. ...Foium alívio. Até hoje, quando tem muita (mosca), a gente brinca que traz elapara dentro: pega umas folhas e bota na mesa. Pronto, espanta elas... eespanta outro bichos também, pulgas, bicho de pé... Essas duas árvores sãofilhas das da mãe e eu já dei uma muda para o meu guri plantar na casadele... E cinamomo quando ele dá flor, nossa, que cheirinho bom...

Eu não uso veneno de mosca em casa. É só o cinamomo mesmo.

Page 28: retratos de assentamentos

28 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Vale mencionar que há uma outra razão, menor, é verdade, que explica apresença de cinamomos perto da casa. Devido às características da casca deseu tronco, ele é um excelente local para o plantio de orquídeas!

Tal como no "tempo dos antigos", alguns colonos ainda hoje procuram observaras práticas antigas, ao plantar, logo depois do inverno, a batata inglesa da "safra"nas roças mais altas dos morros, a fim de aproveitar melhor o sol da primavera,ao passo que a batata da "safrinha" deve ser plantada na encosta, com o soloprotegido com a palhada da safra anterior, a fim de proteger a terra do solinclemente do verão e evitar a erosão. De forma análoga, alguns poucos colonospossuem algumas áreas de terra definidas como "abençoadas". Elas são assimdefinidas "por que Deus não manda geada para esses lugares". Constitui umaexplicação, dentro da ótica acima discutida, para pequenas áreas protegidas dageada pela sua configuração geográfica.

Em todo plantio, numa perspectiva, que privilegia a utilização de recursospróprios, utiliza-se como adubo verde do gado e a cama das galinhas de criaçãoprópria. Como disse um colono, acerca do plantio das batatas, seu principalproduto de consumo familiar e comercialização:

E a plantação das batatas? Aí varia. Sempre que eu posso, eu só uso onosso adubo. Fujo de comprar adubo que nem o diabo da cruz.

Como assim, não entendi.

Cuida, uma vez. Eu uso o adubo que eu tenho por que quero me garantir. Eusei que ele é bom para a terra. Isso é dos antigos: terra "magra" precisamesmo é de adubo de gado. No ano passado o pai me deu duas carradas(de trator). Me ajudou muito... Comprar adubo de boi, desses caras quevem aqui de caminhão é muito arriscado. Meu cunhado comprou uma vez eele estava cheio de guaxumba;sujou toda roça dele; foi uma luta até eleconseguir tirar toda.

Esta parte do depoimento merece algumas observações. Em primeiro lugarhá a preocupação ecológica de atender às necessidades da terra, emconformidade com as etno-classificações teuto-brasileiras, que opõe solos magros(estéreis) à gordos (férteis). O adubo a ser utilizado, num papel análogo ao dosítio camponês do sertão, discutido em outro lugar (WOORTMANN eWOORTMANN ,1997), deve fazer parte do circuito próprio de insumos e

Page 29: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 29

produtos, no qual uma parte da propriedade supre outra(s) parte(s) Ele podeser obtido também como parte de um processo de reciprocidade de insumos,associado a circuitos de parentesco. A compra de estranhos, de fora da colônia,implica em assumir riscos quanto à sua qualidade.

E é interessante observar a noção de sujeira desses colonos. Ela é definidapela presença de variedades de ervas daninhas na roça ou potreiro, numa acepçãode desordem, que remete à análise de Mary Douglas (1966).

Em continuação, o mesmo colono acrescenta:

E o adubo químico?

Pensa, os técnicos vem aqui e falam, falam, falam, parece que eles é quesão os vendedores de adubo químico; ...não sei se eles não ganhamcomissão... Eu só compro quando não tem jeito mesmo. Quer ver? Essa(variedade de) batata nova, eles dizem que produz melhor se plantar com oquímico e ainda botar veneno...

É, às vezes não tem jeito, vou experimentar no Stück (pedaço de roça) queeu tenho lá na entrada...mas não vou pegar o (financiamento) banco esteano. Deus vai me ajudar..., a nossa (variedade antiga de batata, consumidaem ocasiões rituais) a minha mulher planta perto do estábulo, já fica maisfácil para ela.. Não, também não bota veneno, ela só planta cravo de defuntoao redor... Como não é muito, ela só usa o esterco e cama de galinha ... issojá era assim no tempo dos "velhos" e faz um tempo que ela está com opessoal da CAPA6

Essa parte do depoimento aponta para algumas questões interessantes. Emprimeiro lugar, constata-se a mesma estranheza face aos de "fora", sejam eles

6Numa modalidade de aproximação/negociação entre as práticas ecológicas tradicionaisdos colonos e as configuradas pelo ideário atual, a organização não-governamental Centrode Apoio ao Pequeno Agricultor (Capa), ligada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana,há 30 anos, presta assistência técnica para mais de 12 mil famílias de agricultores orgânicosnos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. A Ong atua no apoio técnico àsfamílias rurais, transmissão de valores sobre o cuidado da terra e na organização dosgrupos em associações e cooperativas.

Page 30: retratos de assentamentos

30 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

técnicos, representantes do banco ou vendedores de adubo químico. Além disso,de forma análoga aos nipo-brasileiros, produtores de morangos no DistritoFederal, esses colonos mantém a produção de suas variedades de consumopreferidas conforme seus modelos tradicionais, enquanto que nas variedadesrecentes, voltadas para a comercialização, são empregados adubos químicos,vários tipos de "cidas", indicados pelos técnicos.

Deve ser observado ainda, alguns elementos de gênero. Numa modalidadede "negociação" entre práticas etno-ecológicas tradicionais e a produção para omercado, cabe ao homem tratar desta última com insumos modernos. Contudo,se a prática tradicional teve de ceder lugar à novos modelos de produção,permanece ainda como uma sobrevivência do ideário tradicional, na localização,posição da roça na safra e safrinha, mencionadas acima. Via de regra cabe aohomem a participação em movimentos sindicais e em cursos ligados à produçãode produtos para o mercado.

Por outro lado, cabe à mulher o cultivo da variedade antiga, altamentevalorizada pelos colonos para consumo próprio, especialmente em festas,batizados, casamentos ou velórios tradicionais. Além disso, é a mulher que emseus espaços de cultivo possui as condições de reproduzir algumas das práticasetno-ecológicas de cultivo: tais como intercalar cravo de defunto, defensivo naturalna horta, utilizar tão somente adubos de sua própria criação7. Eventualmente elacomercializa parte de sua colheita dessa batata antiga para vizinhos e parentes,que também a valorizam porém não a produzem.

Além disso, numa forma maximizar o esforço a ser despendido pela mulherno seu trabalho de cultivo e articulá-lo ao trabalho da casa, a horta e outrosespaços produtivos de seu domínio são localizados em espaços próximos dacasa e das demais instalações. Cabe à mulher também participar de cursospromovidos por entidades com o intuito de melhorar a qualidade de vida dasfamílias.

Com frequência, o modelo de produção orgânica, como modelo antigo"renovado" e cientificamente validado, é introduzido e experimentado pela mulhernos seus espaços, como "ajuste moderno" à práticas etno-ecológicas antigaspreservadas. Posteriormente, como forma de reduzir as margens de risco à saúde

7Ao contrário do sertão do nordeste onde o gado é parte do domínio produtivo masculino,nas colônias de descendentes de alemães as vacas leiteiras e galinhas são atribuição,propriedade da mãe de família e, com frequência, sua principal fonte de renda.

Page 31: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 31

da família decorrente da aplicação de "venenos", e aumentar os rendimentosespecíficos, o modelo renovado é introduzido gradativamente pelo homem nosseus domínios de produção. O fato de ele introduzir o modelo orgânico deprodução em alguns produtos e áreas, contudo, não impede que outros produtos,em outras áreas sejam cultivados com o uso de "cidas" e "venenos".

E finalmente, vale ressaltar que as medidas impositivas de produção daagroindústria, com frequência impedem que essas práticas tradicionais possamser implementadas numa geração, o que leva a que esse ideário deixe de serrepassado para a geração seguinte.

Referências

BOURDIEU, P. Célibat et Condition Paysanne. Édtudes Rurales, nº 5-6,1962.

____________Le Sens Pratique. Paris, Éditons de Minuit, 1980.

____________A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo, EditoraPerspectiva, 1982.

BRANDÃO, C. R. Os nomes do Trabalho. In: Anuário Antropológico 85.Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1986.

____________ Sobre a Tradicionalidade que Há em Nós. In: Oliveira,A.U.de e Medeiros Marques, M.I. – O Campo no Século XXI. São Paulo,Edit.Paz e Terra / Casa Amarela, 2004.

ELIAS, N. Os Alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nosséculos XIX e XX. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 1997.

DOUGLAS, M. Pureza e Perigo. São Paulo, Editora Perspectiva, 1978.

DUBOIS, C.G. O Imaginário da Renascença. Brasília, EdUnB, 1995.

DUMONT, L. O Individualismo. Rio de Janeiro, 1975.

PIETRAFESA, E. de Godoi. O Sistema do Lugar. In: PIETRAFESA, E. de

Page 32: retratos de assentamentos

32 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Godoi e NIEMAYER, A.(org.) – Além dos Territórios. Campinas,Mercado das Letras, 1998.

SAHLINS. M. Cultura na Prática. Rio de Janeiro.Edit.UFRJ, 2004.

SCHNEIDER, S. A Agricultura Familiar e Industrialização. Porto Alegre,Editora Universidade, 1999.

TAVARES, J.V. dos Santos. Matuchos: exclusão e luta do Sul para aAmazônia. Rio de Janeiro, Edit.Paz e Terra, 1983.

WOORTMANN, E. F. Da Complementaridade à Dependência: Espaço,tempo e gênero em comunidades pesqueiras do Nordeste. In: RevistaBrasileira de Ciências Sociais. ANPOCS, n.º 18, Ano 7, 1992.

____________Herdeiros, Parentes e Compadres: colonos do Sul esitiantes do Nordeste. Brasília, HUCITEC/EdUnB, 1995.

____________O Saber Tradicional Camponês e Inovações. In: Oliveira eMedeiros Marques op cit, 2004.

WOORTMANN, E. F. & WOORTMANN,K O Trabalho da Terra: alógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília, Editora UnB, 1997.

WOORTMANN, K. O Selvagem na História: Heródoto e a questão dooutro. In: Revista de Antropologia, São Paulo, vol.43, nº1, 2000.

ZONNABEND, F. La Mémoire Longue. Paris, Presses Univ. de France,1980.

Page 33: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 33

DAS RECEITAS ÀS PRÁTICAS DEBENZEDURA E CURA: UMAETNOGRAFIA DO SABERESTRADICIONAIS DE MULHERESASSENTADAS

Thauana Paiva de Souza Gomes1 2

1Mestre em educação pela UNESP de Araraquara Professora da UNISEB Interativo epesquisadora do NUPEDOR.2A orientação deste trabalho foi realizada por Dulce Consuelo Andreatta Whitaker.

Resumo: Este trabalho é parte dos estudos desenvolvidos durante mestrado emcomunidade assentada rural do Brasil. Neste trabalho, estudamos a importânciado patrimônio imaterial na transformação dos espaços do assentamento em lugares,desenvolvendo um novo modo de vida carregado de memória e cultura tradicional,tendo nas mulheres um papel importantíssimo de guardiãs e transmissoras destessaberes. O objetivo deste estudo foi entender de que forma as mulheres se utilizavamdestes conhecimentos no dia-a-dia, nos cuidados com a saúde, nas receitas dequitutes ou na reprodução da vida. Destacamos que todo o inventário aqui registradodeve ser pensado para que os registros, as catalogações no sentido de nãotransformar a cultura em aspectos ideológicos, empobrecendo as compreensões eas devidas valorizações dos sujeitos. Como resultado da pesquisa foi realizado uminventário de saberes não-oficiais descritos nos principais lugares onde sãotransferidos: na casa registramos receitas tradicionais e os cuidados com a saúde.

Palavras-chave: Patrimônio Imaterial; Saberes; Mulheres; Tradição.

Abstract: This study, which is part of the master's thesis, was conducted in asettled rural community in the region of Araraquara (SP). In this paper, weinvestigated the importance of intangible heritage with respect to thetransformation of the rural settlement spaces into places, promoting thedevelopment of linkages between generations through cultural memory to

Page 34: retratos de assentamentos

34 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

learn about new ways of life, where women play crucial roles as guardiansand promoters of cultural knowledge. The aim of this study was to understandtheir abilities to use this knowledge in everyday life, in healthcare, in appetizerrecipes or in the reproduction of life. We highlight that all inventory recordsreported here should be well thought out for the preservation, cataloguingand conservation work, in order to avoid the transformation of ideologicalaspects of such a culture that can lead to an impoverished understanding andmay influence the values of individuals. As a result of the research, an inventoryof unofficial knowledge was carried out describing the major places wherethese knowledge transfers occurred: at the house, we gathered data abouttraditional recipes and healthcare.

Keywords: Intangible Heritage; Knowledge; Women; Tradition.

IntroduçãoEste trabalho faz parte das pesquisas desenvolvidas durante o mestrado e

tem como objetivo trabalhar as dimensões da patrimonialidade no que tange aoseu valor para as ressignificações cotidianas simbólicas e materiais. Neste sentido,buscamos neste artigo apresentar parte do inventário que enfoca o papel dasmulheres como guardadoras do patrimônio imaterial, bem como, a importânciada oralidade na transferência destes conhecimentos.

Ao propor uma análise da etnografia dos saberes não oficiais, é necessário,antes de tudo, pensar a respeito da cultura popular tradicional. Seguimos umaconcepção de que a necessidade de fazer o levantamento etnográfico dos saberesnão oficiais faz parte do que o IPHAN tem designado como patrimônio imaterial.Integramos ainda a essa ideia a concepção de que os conhecimentos costumeiros,aqui estudados, não podem ser considerados tradicionais puros, autênticos, masinformações que são marginalizadas pelo conhecimento oficial por seremfortemente ligadas à tradição e que constantemente se ressignificam num todohíbrido de modalidades sociais e étnicas que constantemente se renovam.

Assim, a cultura popular não pode ser entendida apenas como "expressão"da personalidade de um povo, justamente porque tal personalidade não existecomo uma entidade, mas como um produto da integração das relações sociais.Nem, tão pouco, como um conjunto de tradições ou essências, preservadas demodo puro.

De tal modo, é possível verificar que a cultura surge a partir das condiçõesmateriais de vida e, nas classes populares, as manifestações, as crenças, as festas

Page 35: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 35

estão intimamente ligadas ao cotidiano e ao trabalho diário ao qual se entregamquase todo momento (CANCLINI, 1982).

Atualmente, a UNESCO trabalha com a concepção de que proteger a memóriaatravés do físico é um consenso, mas segundo ainda esta instituição, não apenasde aspectos físicos se constitui a cultura de um povo, mas há muito mais nastradições, saberes, folclore e cotidiano transmitidos através de gestos ou línguae criados e recriados coletivamente ao longo do tempo. Tal fator pode serafirmado: "para as minorias étnicas e povos indígenas, este patrimônio é umafonte de identidade e carrega a sua própria história" (UNESCO, http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/intangible-heritage/,consultado em 20/12/10).

Vale lembrar que quando trabalhamos com a ideia de registros e inventários,não podemos deixar de mencionar que, segundo Vianna (2004) o bem cultural édinâmico e cheio de ressignificações e para preservação de referência cultural énecessário que se tenha mais do que um inventário, mas sobretudo os sentidosque vão dentro da cabeça de quem faz, de quem come, de quem vende ou sealimenta deste algo. Com base nesta compreensão podemos apresentar oinventário dos saberes das mulheres do assentamento.

O inventário dos saberes populares e o Assentamento Bela VistaEm pesquisas realizadas no assentamento Bela Vista do Chibarro em

Araraquara, as questões extraoficiais e subjetivas sempre estiveram muitopresentes nos relatos dos assentados, acrescentando às pesquisas fatoresextremamente interessantes.

A forma como as informações e costumes são passados para as crianças,através dos gestos e das falas, o lidar com a criação, com o pomar, com oexcedente, sempre é realizado de maneira muito natural no cotidiano. Para opesquisador, esses saberes brotavam nas conversas e visitas como uma nascentede água pronta para ser bebida e apreciada.

Uma contribuição interessante a esse respeito é a de Freitas (2005) queapresenta, um estudo sobre as imagens do Brasil colonial na obra de GilbertoFreyre. Freitas revela ser possível fazer uma história da educação a partir doinventário de gestos "que são interiorizados e convertidos em rituais de corpoobserváveis em muitas gerações, depois nas pequenas minúcias (...) ou nos gestostípicos dos homens" (p.171). Segundo ele, o inventário dos saberes e gestospode ser considerado utilíssimo para representar costumes que sobrevivem auma temporalidade, dando pistas para os pesquisadores e novos indícios para

Page 36: retratos de assentamentos

36 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

(re) olhar o que não está no saber oficial, burocrático, mas naquele que se encontranos gestos, expressões e falas. No caso aqui definido, para um saber que vemdos lugares da casa, do lote e da rua. Os saberes gestuais saltam do limite dacasa para o espaço da rua e, entre uma prosa e outra, trocam-se informaçõessobre plantio, mudas, conhecimentos de ervas medicinais, tratamentos ou mesmohistórias tradicionais.

A transferência dos saberes não oficiais a cada movimento modifica-se, masse mantém enquanto elemento agregado, revelando ao ouvinte sentimentos eexpressões mais íntimas de quem emite a mensagem. Em sentido amplo, significaa manutenção de hábitos adquiridos ao longo da história dos assentamentos e asmulheres têm papel central neste processo. Presente na trajetória de pesquisado Nupedor sob coordenação da Profª Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante.

A casa, a cozinha: lugares das receitas tradicionaisA dimensão da cozinha é um lugar tradicionalmente atribuído à mulher ao

longo da história, ressaltar os aspectos importantes dessa história necessariamentepassa pela dimensão da alimentação. Esta, por sua vez, está pautada não apenaspor aspectos da segurança alimentar e por questões de autoconsumo, mastambém, pela dimensão cultural que caracteriza os grupos, por desenhar, atravésdas receitas, os aspectos das territorialidades por onde os assentados passaram,o que torna tais tradições um patrimônio (VIANA, 2004).

Ao estudarmos as receitas, estamos também traduzindo os costumes, rituaise demais comportamentos, além de podermos mapear regionalmente adisponibilidade ou não de determinado alimento. A escolha da dieta de um grupoé determinada não apenas pelas reservas ambientais e econômicas, mas tambémpelas mentalidades, pelos ritos, pela carga valorativa das mensagens que se trocamquando se consome um alimento em companhia dos outros, pelos valores éticose religiosos, pela transmissão entre as gerações dos saberes e pela psicologiaindividual e coletiva que acaba por influir na determinação de todos estes fatores(SANTOS, 1997 apud GIMENES, 2006).

Nas entrevistas realizadas com as pioneiras do assentamento, percebemosque ao falar de receitas tradicionais por elas praticadas, há um grande prazer emensinar e dizer como as pessoas apreciam suas feituras. Muitas dessas receitassão consideradas como herança de mãe para filha. Em uma conversa com umaassentada, sobre a trajetória dela até chegar ao assentamento, ela informou queajudava no lote, mas que, às vezes, não podia acompanhar o marido pela manhãporque tinha que cozinhar para a família e quando ela terminava o neto levava o

Page 37: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 37

almoço. Nesse contexto, ela faz propaganda da receita de bolinho de arroz:

Sra.: A próxima vez que vocês vierem aqui vou fazer bolinho de arroz.Entrevistadora: Hum, que delícia! Como que a senhora faz?Sra.: Boto a carne moída no fogo, passo nos temperos, jogo tudo dentro equando acaba mexe tudo.Entrevistadora: Mexe com a mão?Sra.: Não, com a colher. E aí pra ficar durinho eu coloco a farinha de trigo.Entrevistadora: Mas e o arroz?Sra.: Arroz cozido né!Entrevistadora: Põe tudo junto?Sra.: É põe, quando acaba eu enrolo e passo na gordura bem quentinha.Entrevistadora: Na banha?Sra.: Não, pode ser no óleo mesmo. Dá trabalho, né, mas eu faço e amolecada come até... a hora que tiver durinho aí tá na hora de comer...Sra.: Coloca na forma, num papelzinho e deixa escorrer aquilo ali, o papelchupa todo aquele óleo, rapaz, mas a turma come, meu neto leva pra roça,na mochila, mas não dá pra fazer todo dia porque dá trabalho né... mas eufaço, a molecada come...(GOMES, 2010. Entrevista com R.).

No final da exposição da receita, a entrevistada diz o quanto é trabalhoso, masa recompensa vem com a comilança das crianças. Além disso, é uma forma queela encontrou de não desperdiçar o arroz, que não seria aproveitado, ou mesmoque as crianças já estariam enjoadas. A criatividade é uma constante no lugar dacozinha, onde os ingredientes sugerem inúmeras possibilidades de combinação.

Em outra receita, apresentada pela mesma entrevistada, ela traz os saberestípicos do nordeste, região onde nasceu. Em sua fala, ao lembrar-se de comoaprendeu a trabalhar na roça, podemos perceber o quanto a tradição de outroslugares vividos ainda se faz presente em seu cotidiano:

Entrevistadora: A senhora ajuda no lote?R.: Ajudo. De vez em quando eu vou mais o velho.Entrevistadora: desde criança a senhora trabalha com agricultura, ou não?R.: Trabalho na roça desde os meus sete anos de idade.Entrevistadora: Então a Senhora aprendeu naturalmente? E quem ensinoua senhora.

Page 38: retratos de assentamentos

38 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

R.: Meu pai.Entrevistadora: Como ele te ensinou?R.: Ele trabalhava lá numa terra, tinha sítio lá onde ele trabalhava e quandofoi um dia ele meu falou: vamos lá minha filha, vamos pra roça junto com opai, vamos trabalhar. Aí a gente chegava, ele fazia um roçado, queimava,jogava fogo, sobravam aqueles tocos e ele tocava fogo. Queimava aquelestocos todinhos. Depois arrancava aqueles toquinhos que sobravam e plantavamandioca.Entrevistadora: E como fazia pra plantar mandioca?R.: Com a enxada. Com a enxada fazia a cova e colocava a rama, depoiscobria com um pouco de terra. Plantava com a mão. Depois plantava feijãode corda, você conhece?Entrevistadora: Sei, sei. Dizem que é muito gostoso mas eu nunca comi. Opessoal diz que é bom fazer como salada.R.: Você descasca a vagem e prepara ele. O feijão de corda que é um...???Entrevistadora: Sei é aquele amarelinho?R.: É, você cozinha e faz uma farofinha, fica muito bom.Entrevistadora: A senhora cozinha como se fosse um feijão normal?R.: É como o feijão normal.Entrevistadora: Faz com caldo também ou não?R.:Se você quiser, faz com caldo, tempera e bota farinha e você vai ficar atédoente.Entrevistadora: Até virar o bucho??? Risos.... (GOMES, 2010. Entrevistacom R.)

Podemos acompanhar, através das receitas, a transferência dapatrimonialidade imaterial entre gerações. A entrevistada, através de duas receitasde bolo, mostra como o aprendizado da mãe foi repassado a ela e como essessaberes estão ligados também ao seu lugar de origem. A primeira é a receita debolo de biju:

Entrevistadora: Qual é a receita que a senhora aprendeu com a sua mãeque a família inteira gosta, que suas filhas quiseram aprender?R: Fazer bolo, fazer biju...Entrevistadora: O que é o biju?R: É da mandioca né...Entrevistadora: Ah, da farinha?

Page 39: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 39

R: Pega a mandioca ralada.. lá na Bahia tinha a farinha, espreme, pegaaquela massa, peneira, põe no forno, lá tem forno (?) da vontade eu faço nafrigideira mesmo. E faz no forno aquele beiju (?) come com feijão, cozinhaum frango e joga aquela farinha em cima. Hum, que gostoso! Bolo demandioca...Entrevistadora: Mandioca? E como que a senhora faz o bolo de mandioca,com a farinha de mandioca também ou com a mandioca?R: Com a mandioca. Rala a mandioca, espreme, bota ela pra enxugar umbocadinho. Quando tá mais ou menos...Entrevistadora: Úmido...R: A gente seca ela numa peneira, bate três ovos, joga dentro daquela massa,mexe com um pouco de farinha de trigo, joga uma xícara de farinha de trigodentro, bota 3 ovos, manteiga e bate, depois assa.

Na segunda receita, a entrevistada mostra como a memória tem um papelfundamental na permanência da patrimonialidade imaterial e da cultura, ela nãousa cadernos ou livros de receitas, pois sabe tudo de cabeça. O ato de fazer éum elemento essencial e estimulante para a memória, sua mãe a ensinou a "baterna colher" o bolo, e é assim que ela faz até hoje.

Entrevistadora: A senhora tem alguma receita boa, que a senhora aprendeucom a sua mãe de doce, de bolo, que a senhora sempre faz?R: Bolo eu tenho na cabeça.Entrevistadora: Na cabeça?R.: É. Minha mãe ensinava nós fazer batido na colher e assim eu faço atéhoje.Entrevistadora: O segredo é bater na colher?R.: É bater o ovo bem batidinho o ovo, bate, bate, bate, quando a clara tádurinha, que faz assim e não cai, aí coloca a gema e bate, bate. Aí põe navasilha de fazer o bolo, joga leite dentro, açúcar e a farinha de trigo e mexetudo junto.Entrevistadora: Mas e a quantidade?R.: Do ovo?Entrevistadora: Do ovo, da farinha...R.: Se põe 3 canecas ...Entrevistadora: Mas como a senhora sabe o ponto?R.: Vendo... põe um pacote de trigo eu faço pra dois bolos, que é muita

Page 40: retratos de assentamentos

40 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

gente. A gente mexe, mexe ele, coloca leite, manteiga, 3 ovos, bate bembatidinho, passa a manteiga na forma ou um pouquinho de óleo, bate, põe póRoyal, duas colherinhas de pó Royal pra ficar bem soltinho. Aí põe no forno.Quando tá querendo amarelar, põe meia xícara de açúcar, meio copo deleite e deixa ele ferver...Entrevistadora: Coloca o que a senhora falou, meia xícara de que?R.: Meio copo de leite com meia xícara de açúcar e mexe. Quando elecomeçar a fazer você tira, pega um outro leite bem docinho, um leite moçae mistura e derrama, passa na forma assim pra amolecer o bolo e o bolo ficasoltinho. Aí você come, passa aquele recheio de doce e come ele. Põe eledebaixo do fogão e deixa amornar. Quando ele esfriar, se quiser jogar algumacoisa, quando eu não quero fazer assim de bater que dá mais trabalho, eucoloco os ovos dentro da tigela, três ovos, boto duas colheres de manteiga,uma de açúcar, a farinha de trigo e bato bem batidinho. Quando tá bembatidinho, eu pego meia massa daquela que compra de pacotinho...Entrevistadora: Massa pronta de bolo? Vai também?R.: Vai meio pacote daquela massa no bolo e boto tudo junto. Aí eu mexo eboto uma colher de água e ponho na forma.Entrevistadora: E fica uma delícia! (GOMES, 2010. Entrevista com R.).

Podemos perceber que os processos de modernização e facilidades docotidiano, não deixam de sofrer adaptações, através de jeitinho próprio de sefazer a receita do bolo. O bolo de saquinho é incorporado à receita como maisum item a ser parte da composição do bolo. Uma forma clara dos processos deressignificação da cultura. Em outro momento, podemos perceber que o interessedas suas filhas em aprender esse saber é tão presente que, no casamento de umdos filhos, uma das irmãs quis fazer o bolo, mas como era muita gente ela disseque levaria mais um bolo para garantir; e que este não precisaria ficar de enfeitena mesa, poderia ser apenas a sobremesa.

Entrevistadora: E suas filhas, suas netas, aprenderam a fazer esse tipo debolo?R.: Minha filha, claro!Entrevistadora: Ah, não acredito...R.: Ela queria fazer o bolo de casamento.Entrevistadora: Mas com a senhora? Como que é? É pão-de-ló que fala?R.: Não, é bolinho. Agora, eu faço bolo grande de forma assim, mas é muito

Page 41: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 41

difícil fazer bolo de casamento. Ela faz um bolo de aniversário muito bom,com aquele recheio... Nossa, mas fica... Meu filho casou ai eu disse: deixaque o bolo eu levo.Entrevistadora: A senhora que quis fazer o bolo?R.: É, eu fiz o bolo do casamento dele, minha filha disse: é muita gente...Entrevistadora: Você fez um e sua filha fez outro...Raimunda: Ela acabou comprando o outro. Mas comeram o meu.Entrevistadora: Deixaram o dela e comeram o seu?R.: Era tão bonito enfeitado o que ela comprou e o meu eu fiz com fruta,depois põe fruta dentro..Entrevistadora: Sua filha ficou chateada então, que comeram o seu e nãocomeram o dela...R.: É porque pus abacaxi, banana...Entrevistadora: Dentro já, pra assar...R.: Pra assar. Abacaxi, banana, maçã, pêra, laranja...Entrevistadora: Deve ter ficado que nem um panetone...R.: Laranja, todas as frutas... uva... e joguei com coco em cima. É que eufaço pão, faço tudo. (GOMES, 2010. Entrevista com R.).

Mas não são apenas as mulheres que sabem as receitas tradicionais, umassentado originário da região nordeste apresenta uma receita típica, que trouxequando veio para o assentamento:

F.: Era coqueiro do gabiroba, o gabiroba, é mais gostoso. Eu tirava um dessetamanho, e era gostoso, que nem abobrinha de comércio. Eu pegava ele,cozinhava ele, ferventava ele, ferventava bem ferventado e picava unspedaços assim, grosso e grande. Ferventava bem ferventado. Quando eleestava bem mole, eu tirava, escorria a água, tinha lá uma boa quantidade decarne seca, cozinhava, aí eu temperava. Eu tirava o sal da carne seca, eu"ponhava" a carne seca pra ferver bem fervida e jogava o sal dentro e o saltira o sal da outra.Entrevistadora: Ah, não acredito!F.: Quanto mais sal, tira o sal. Aí eu picava ela bem picadinha, cozinhava elabem cozinhado, temperava com sal, com óleo, pimenta do reino, cebola... aíquando ela estava bem mole, aí eu deixava com pouquinho caldo e jogava opalmito dentro, temperadinho os dois e tampava e deixava tomar o tempero(GOMES, 2010. Entrevista com F.).

Page 42: retratos de assentamentos

42 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

A importância desse patrimônio imaterial alimentício nos remete ao circuitodo autoconsumo. A ideia de que as mulheres assentadas cuidam de atividadessecundárias, como a reprodução da família e participam das atividades agrícolaspequenas, geralmente associadas ao abastecimento alimentar, é uma falsa ideia,é uma situação que reproduz uma ideologia historicamente produzida dos papéissecundários pertencentes às mulheres, assim como o dos saberes informais que,de certa forma, permanecem alijados dos centros oficiais e das decisões. O queresulta na desconstrução humana e cultural (WHITAKER, 2002).

Cabe então dizer que a atribuição histórica de papéis, funções, exigências eexpectativas são construções sociais, não biológicas e, por isso, podem variarno tempo e no espaço. É preciso destacar ainda que os lugares de atuação dasmulheres, como o quintal e a cozinha devem ser entendidos como espaços dereprodução social, que têm por base a conservação das práticas sociaistradicionais. Com o processo de modernização e conquistas das mulheres, osconhecimentos tradicionais por elas guardados e alimentados, são, muitas vezes,desconsiderados nas formas técnicas de produção do lote, ainda que continuema fazer parte do seu ethos e marquem presença na teia do patrimônio imaterial.A devida valorização das informações técnicas de cultivos, por exemplo, orgânicoou agrecológico são, na maior parte, praticados e fomentados por elas, e, muitasvezes, desconsiderados nos processos teóricos e científicos. Por preconceitosque empobrecem a compreensão do vivido.

Do lugar das ervas e plantas às curas das benzedeiras: chás, rezas esimpatias

Durante muitos anos, a medicina foi restrita às áreas urbanas, e nas regiõesrurais não havia qualquer forma de auxílio aos doentes. A única forma detratamento conhecido até então vinha das benzedeiras ou das misturas de ervase plantas utilizadas pela medicina popular tradicional3.

3Existem várias formas de medicina popular: a fitoterapia, a medicina mágica, a medicinamística ou religiosa, a medicina escatológica ou excretoterapia. A fitoterapia é a queutiliza as plantas medicinais, através de chás, lambedouros, garrafadas, unguentos,purgantes, emplastros, remédios populares que são chamados de meizinhas na regiãoNordeste do Brasil. A medicina mágica procura curar o que de estranho foi colocado pelosobrenatural no doente ou extirpar o mal que o faz sofrer(...)aAs técnicas empregadas namedicina mágica são as benzeduras, conjunto de rezas, gestos ou palavras ditas por pessoasespecializadas como o curador, rezador ou benzedor; as simpatias, uma forma de benzedura,

Page 43: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 43

Para Guimarães (2005), graças à carência de médicos nas áreas rurais ondese dispersava a maioria da população brasileira, a medicina popular dos manuaisera justamente a única forma que senhores, senhoras, escravos, curandeiros ebenzedeiras tinham para curar seus doentes.

Dessa maneira, durante muitos séculos, a forma como a academia contribuíacom esses grupos responsáveis pela saúde de grande parte da população eraelaborando manuais de medicina tradicional, com tratamentos de doenças a partirdos saberes de ervas, plantas e chás medicinais, "era um saber enciclopédico,fruto do interesse em explorar o que se mostrava útil para o homem comum,dentro de uma diversidade de possibilidades que abrangiam formas ambivalentesde descrever a natureza" (DIAS, 2002, apud GUIMARÃES, 2005, p.503).

Foi a forma de divulgação de uma ciência com base em concepçõesastrológicas, diretamente ligadas ao conceito de influências de simpatias e antipatiasda natureza antropomórfica, de efeito à distância.

Esses saberes ligados à saúde tinham na personificação das benzedeiras ecurandeiros, mães e avós, os guardiões dessas técnicas, que ainda hoje sãopossíveis de serem encontrados, devido ainda à falta da presença médica emalgumas áreas rurais.

Histórias e memórias envolvendo ervas, simpatias e plantas medicinais,permanecem nos lugares das cozinhas e das casas dos responsáveis por esses

mas que podem ser executadas por qualquer pessoa; os patuás, amuletos, santinhos etalismãs, elementos materiais capazes de prevenir e evitar doenças e perigos, entre outros.A medicina mística ou religiosa usa a religião como força mágica da cura. Faz-se umaadivinhação simbólica para saber qual é a divindade ofendida, pela quebra de um tabu oudesobediência de uma determinação divina e, através de ritos, busca-se homenageá-la,como por exemplo, é feito no candomblé. Na devoção popular alguns santos da religiãocatólica romana são invocados como especialistas em um ramo da medicina.Algumas oraçõesvisam a proteção das pessoas, outras, a cura das doenças: São Sebastião cura feridas; SãoRoque cura e evita pestes; São Lourenço dor de dentes; São Brás protege das enfermidadesda garganta e salva de engasgos; rezas para São Bento protegem contra mordidas decobras, insetos venenosos e cães hidrófobos; Santa Luzia as doenças dos olhos; SantaÁgata os pulmões e vias respiratórias; São Lázaro a lepra e as feridas sérias; São Miguel ostumores malignos e benignos; Nossa Senhora do Bom Parto, a gestação e o parto. Achamada medicina escatológica ou excretoterapia utiliza como método terapêuticosubstâncias ou ações repugnantes ou anti-higiênicas, como fezes, urina, saliva, cera deouvido. Estas práticas muito antigas, já eram utilizadas pelos egípcios. (GASPAR, 2009,http://www.fundaj.gov.br>. Acesso em: 16/10/11).

Page 44: retratos de assentamentos

44 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

saberes de cura, que, de certa forma, se abrem aos membros do assentamentocomo se fosse uma obrigação de doação por conta do dom recebido.

Mulheres e ervas: um encontro de muitas afinidadesComo exemplo desses conhecimentos, o trabalho realizado na escola Hermílio

Pagotto no assentamento do Bela Vista do Chibarro nos mostrou como há umaforte presença das ervas e plantas medicinais, repassados especialmente pelasmulheres para as crianças. Esse saber começa a ser repassado, como apresentadonas discussões teóricas, pelo lugar da casa, sendo a família a responsável pelasociabilidade primária (DURKHEIM, 1973), tendo as mães e avós o papelfundamental nessa transferência.

Nesse levantamento dos saberes realizado na escola, verificamos a influênciada figura da mulher no papel desempenhado na cura dos filhos. Para Barbero,eram as mulheres que transmitiam "uma moral de provérbios e partilhavam receitasmedicinais que reuniam um saber sobre as plantas e os ciclos dos astros" (2006,p.173) e, justamente por representarem uma ordem tão organizada e influente,foram perseguidas como bruxas ou feiticeiras. Isso refletiu-se diretamente naforma como esses saberes são tratados atualmente. Apesar de serem parte dopatrimônio imaterial e de muitas utilizações serem registradas na medicina, nodiscurso dos assentados aparecem como algo não valorizado. Isso pôde serverificado no registro de campo, a entrevistada primeiro nega o uso, e depoisafirma a utilização:

Fui conversar hoje com a Dona M., e pelo que eu percebi, ela diz não tertantos hábitos tradicionais, ou pelo menos diz que não tem o hábito de fazerchás, ou usar chá como remédio. Mas eu compreendi que se tratava de umdiscurso religioso em relação à fé. Quando se trata de fé, ela é uma pessoamuito mais voltada para as questões místicas; como falou no depoimento:"foi curada por uma reza, um pedido a Deus e pelo chá que tomei". Elaacrescentou que costuma tomar esse chá pra tudo (GOMES, 2010. EntrevistaCaderno de campo 10/11/2010).

A centralidade da mulher foi representada de forma muito explícita nosdesenhos das crianças:

Page 45: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 45

Nos desenhos 1 e 3, podemos observar o papel da mulher como guardiã dossaberes de cura, ela ocupa uma centralidade entre o pomar das ervas e a casa.Nos desenhos 2,4,5,6 a mulher na figura da mãe e avó, aparece em umarepresentação de responsabilidade pela cura das dores e doenças de sua família,em especial pelos filhos. Já que eles se enxergam no próprio desenho realizado.

Desenho 1 – Mulher cuidando do pomar; Desenho 2 – Avó fazendo cháFonte: Pesquisa realizada com crianças do 4.º ano da escola Hermílio

Pagotto – Bela Vista do Chibarro.

Desenho 3 – Mulher e o lote; Desenho 4 – Mãe e cuidados com o filhoFonte: Gomes. T. Pesquisa realizada com crianças do 4.º ano da escola

Hermílio Pagotto.

Page 46: retratos de assentamentos

46 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Outro ponto importantíssimo a ser analisado são os lugares que se destacamnos desenhos. Há uma carga simbólica de valor muito elevado atribuída à cozinhae ao quintal, justamente onde ocorre a ação desses saberes, que, em certosmomentos, envolvem a técnica do plantio ou reconhecimento da erva no lugarao redor da casa, e em outros, que envolvem os segredos da feitura dos chás.Dois espaços predominantemente ligados à mulher e à ação de domínio damesma. Espaços estes onde ocorrem invisibilidades dadas pela interiorizaçãoda diferença pela mulher rural (FERRANTE, 2010). Elas têm dificuldades emdistinguir seus trabalhos agropecuários, na horta e no quintal, do seu cotidianocomo dona de casa. Assim, elas mesmas passam a subestimar suas jornadas detrabalho em atividades agropecuárias.

Dessa forma, as atividades que elas praticam são consideradas secundárias,na medida em que são do tipo mão-de-obra de reserva para atividades quedemandam mais trabalho na roça, como as colheitas e os plantios. Devido àsatividades domésticas não gerarem renda direta, o trabalho da mulher torna-seinvisível (BRUMER, 2005).

A hora e a vez das ervas nos assentamentos ruraisA pesquisa realizada com as crianças da escola, além dos desenhos, contou

com aplicação de um questionário com as famílias, que continham questões queavaliam a utilização, os tipos e as finalidades das ervas. Obtivemos os seguintesdados quanto à:

Desenho 5 – Cuidados com o filho; Desenho 6 – Cuidados com a filhaFonte: Gomes T. Pesquisa realizada com crianças do 4.º ano da escola

Hermílio Pagotto.

Page 47: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 47

1 – Utilização de ervas no assentamento

Fonte: Elaborado pela autora com dados de campo.

Em todos os questionários respondidos a afirmação quanto aos usos de ervasmedicinais foi generalizada. Dentre as que mais apareceram nas casas das criançasforam hortelã, erva cidreira, erva doce, folha de laranjeira e capim limão. Mastambém são utilizadas arruda, boldo, bálsamo, arnica, poejo e maracujá.

2 – Ervas utilizadas

Fonte: Elaborado pela autora com dados de campo.

As principais finalidades de usos foram chás, sucos e simpatias, conformeregistrado na tabela abaixo:

3 – Finalidade do uso das ervas

Fonte: Elaborado pela autora com dados de campo

Algumas representações das receitas de chás com as ervas foram registradaspelas crianças e em entrevistas com os pioneiros. Para curar a gripe:

Tipos Cidreira Hortelã Arruda Boldo Erva doce

Folha de laranjeira Cavalo/ limão

Outros: Bálsamo babosa, arnica, maracujá jabuti, poejo.

Total 7 8 2 3 6 5 7

Chás Sucos Simpatias Outros 10 13 8 6

Opção de resposta Sim Não Quantidade 12 0 Total 12

Page 48: retratos de assentamentos

48 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Poejo com hortelãIngredientes:1 punhado de poejo1 xícara de hortelãÁguaAçúcar a gostoModo de preparo:Colocar a água para ferver, depoiscolocar as ervas na água quente.Finalidades:Para cortar a tosse.(Receita levantada pelas crianças da Escola Hermínio Pagotto)

A primeira receita é resultado de um livro de ervas medicinais produzido como material das entrevistas realizadas pelas crianças com as avós, tias, irmãs emães. O segundo dado de campo mostra, a partir de uma ótica tipicamentetradicional, o uso das ervas. Nessas entrevistas podemos perceber que osconhecimentos das ervas se cruzam ora com as etapas de crescimento das plantas,ora com a finalidade de uso das mesmas:

Entrevistadora: Nunca fez... tem a religião também, né... não acredita. Etem algum chá que a senhora toma, costuma tomar, alguma erva que asenhora use como remédio?Dona R.: Quando eu tô com gripe eu tomo chá...Entrevistadora: Chá do que?Dona R.:Do xarope também né, mas esse xarope de hoje fica mais tossindo...tomo chá de "favacão"..Entrevistadora: "Favacão"? Não conheço, o que é o "favacão"?Dona R.: É uma folha do mato que tem aí, é igual a "favaquinha"... Conhece"favaquinha"?Entrevistadora: Não conheço...Dona R.: É aquela que dá no fundo do quintal, miudinha, cheirosinha... tema folha miudinha...Entrevistadora: É a folha?Dona R.: É folha... É um pezinho. "favaquinha" da um pezinho assim,pequenininho e "favacão" dá um pezão, grandão...Entrevistadora: São da mesma família as duas?

Page 49: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 49

Dona R.: É da mesma família, só que a favaquinha é original, é boa mesmo.Favacão é bom, mas favacão pra achar, nossa... (?) a gripe que tiver dor decabeça, a garganta doendo, aí cozinha um canecão de favacão...Entrevistadora: E pra que serve o favacão?Raimunda: Pra tudo. Pra pneumonia...Entrevistadora: Serve pra tudo? Dona R.: Pra tudo... dor de cabeça, dor de garganta... se tá com a gargantainflamada, cozinha o favacão, ferramicina, que é uma folha vermelha.Ferramicina, favacão e alecrim, amassa tudo junto...Entrevistadora: Põe tudo junto, num único chá?Dona R.: E folha da costa...Entrevistadora: Folha da costa? Como que é? Chama folha da costa oufolha santa?Dona R.: Um chama folha da costa, tem todos os nomes né...Entrevistadora: Como que ela é?Dona R.: Ela é um pezinho, a folha dela é um pezinho e aqui quando elacresce, ela vai crescendo, ela abre a folha dela em três palmos numa folha só.Entrevistadora: Três palmos?Dona R.: É numa folha só...Entrevistadora: Ah, assim...Dona R.: Ela abre assim, tem uma mãozinha. (?) bota tudo junto. É boa...Entrevistadora: serve pra tudo então... dor de cabeça...Dona R.: Dor de cabeça, dor de garganta, infecção do estômago, da garganta.Você tomou o chá de favacão e ferramicina, já começa a tossir e a sairaquele catarro, aquele catarro que fica agarrado no peito...Entrevistadora: Tira na hora?Dona R.: No outro dia começa a ficar madurinho... tem aquele problema nacabeça, sinusite, fazia o favacão, só ele só, aí toma banho, o banho da tardee não toma mais banho, lava a cabeça...Entrevistadora: Mas aí faz o chá ou só mói ele?Dona R.: Só cozinha ele, mas não bota açúcar não, joga na cabeça e tiratudo as dor da cabeça. Quando eu tenho dor de cabeça eu faço um chá delae tomo. Tomo com pão, é gostoso... (GOMES, 2010. Entrevista realizadacom R. em 02/12/2010).

Nesta entrevista percebemos que a palavra favacão ou favaquinha aparecemconstantemente para designar uma erva com poderes de cura da dor de cabeça,

Page 50: retratos de assentamentos

50 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

ao mesmo tempo em que curam, remetem a um saboroso chá a ser apreciadocom um pedaço de pão. Mas a palavra favaca ou favaquinha tradicionalmente éuma releitura da palavra alfavaca que em árabe significa manjericão de folhalarga. Uma demonstração pura de como a palavra falada também é recriadapelos assentados.

Em outras entrevistas, o uso de ervas foi também citado como elemento paracura da gripe, tosse e dores na garganta. As duas primeiras receitas foramlevantadas pelas crianças com as mães, e a última com uma pioneira, verdadeiraguardiã dos segredos de curas dessas ervas:

Folha de limãoIngredientes:1 Folha de limão1 colher de melModo de preparo:Juntar a folha amassada com mel.Finalidades:Parar a tosse e dor de barriga.(Receitas levantadas com as crianças da Escola Hermínio Pagotto)

Poejo com hortelãIngredientes:1 punhado de poejo1 xícara de hortelãÁguaAçúcar a gostoModo de preparo:Colocar a água para ferver, depois colocar as ervas na água quente.Finalidades:Para cortar a tosse. (Receitas levantadas com as crianças da Escola Hermínio Pagotto

Uma erva que aparece como importante para a cura da gripe é o alecrim,que pode servir também para quem tem pressão alta:

Entrevistadora: Alecrim eu conheço. Alecrim pra que que serve também?R.:Pra gripe. Alivia pressão também, é calmante. Pega o alecrim e o hortelã

Page 51: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 51

miúdo e pode bater tudo no liquidificador e bota um pouquinho de açúcar prabater junto, coar e tomar e toma pra baixar pressão (GOMES, 2010.Entrevista realizada com R. em 02/12/2010).

As receitas para curar gastrite também apareceram nas duas formas de coletade campo. No livro de receitas, desenvolvido com os dados levantados pelascrianças, a erva responsável pela cura ou alívio da gastrite é o boldo. Na receitaabaixo podemos verificar a aplicabilidade da mesma:

BoldoIngredientes:Folhas de boldoÁguaModo de preparo:Colocar a água com folhas de boldo no liquidificador, baterbastante depois colar.Finalidades:Gastrite, má digestão, para doença de chagas.(Receita levantada pelas crianças da Escola Hermínio Pagotto)

A sabedoria dos pioneirosA outra receita coletada foi em entrevista com uma mulher assentada idosa,

na qual ela aponta que os problemas de gastrite, de dor no estômago, de "vontadede comer alguma coisa" ou até os vermes, são solucionados com uma de misturade hortelã graúdo, miúdo e matruz:

Raimunda: Hortelã miúdo...Dona R.: Aquele lá é o que vende no mercado né.Dona R.: Você não conhecia não né...Entrevistadora: Aqui eu nunca tinha visto. Como chama esse hortelã?Dona R.: Hortelã graúdo.Entrevistadora: Hortelã graúdo?Dona R.: é. Hortelã graúdo, hortelã miúdo e mastruz.(...)Dona R.: Eu tomo quando tô com dor de estomago, em casa eu pego ohortelã e o mastruz, daí lava e cozinha e bebe o chá. Estômago faz bum,começa a fazer um rolo nas lombrigas...

Page 52: retratos de assentamentos

52 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Entrevistadora: Entendi. Então pra quem tiver com..Dona R.: Quem tiver com dor de estômago, uma coisa que às vezes tá comvontade de comer e com lombriga, cozinha e faz o chá (GOMES, 2010.Entrevista realizada com R. em 02/12/2010).

O mastruz ainda aparece em outra conversa como ingrediente importantepara dores na barriga e ajuda para combater vermes. Esta mistura, segundo aassentada é tão eficaz que se existir algum tipo de "lombrigas" na barriga o cháas elimina na hora:

Entrevistadora: Mastruz?R: É mastruz, mas aqui chama de erva de santa Maria né.Entrevistadora: Ah, espera aí... qual é a diferença?R: É a mesma coisa que esse daqui. É porque esse aqui tá com semente, asemente você tira assim, ó...Entrevistadora: Você conhece pelo cheiro?R: É pelo cheiro. Erva de santa-maria, hortelã graúdo e hortelã miúdo, pravocê fazer chá. E alho, pra dar pra cachorro.Entrevistadora: Mais um dentinho de alho?R: É pro bebê que está com lombriga. E também criança.Entrevistadora: e a gente não pode tomar?R: Pode...Entrevistadora: Pode também...tudo junto?R: Tudo junto, pra beber. Fica um cheirinho que criança não gosta muitonão, mas a gente dá na raça. O hortelã miúdo, tudo junto, hortelã graúdo. Acriança tem sobe com a cabeça pra cima, toma o remédio, desce tudo prabaixo. Mas até matar lombriga ...vai cagando ela, pondo ela pra fora. Esseaqui é um remédio muito bom! (GOMES, 2010. Entrevista realizada com R.em 09/12/2010).

O chá de camomila4 também é usado, segundo as mães das crianças do 4.ºano da escola Hermínio Pagotto, como uma erva que ajuda nas dores de barrigaprovocadas por gases:

4A propriedade medicinal dessa planta é antialérgica, adstringente, digestiva, auxilia naacidez do estômago, cólicas, problemas menstruais, gases, dentre outras.

Page 53: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 53

CamomilaIngredientes:1 copo de água de água quente2 colheres de açúcarCamomila à gostoModo de preparo:Colocar a água para ferver, depois colocar a erva cidreira naágua quente.Segredo:Nunca colocar as ervas em água fervente, mas jogar a águaquente sob as ervas, tampar o recipiente com um pires paraconservar as vitaminas e propriedades das plantas.Finalidades:Bom para gases(Receita levantada pelas crianças da Escola Hermínio Pagotto).

Outras receitas que coletamos também muito eficazes na memória dosentrevistados foram as ervas para cura das dores de cabeça, dentre elas, algumasprometem "acalmar os nervos". Como a descrita abaixo

MaracujáIngredientes:1 copo de água1 maracujá com cascaModo de preparo:Colocar a água para ferver junto com apolpa do maracujá e casca.Finalidades:Dor de cabeça(Receita levantada pelas crianças da Escola Hermínio Pagotto)

Erva-CidreiraIngredientes:1 colher de açúcar1 xícara de cidreiraModo de preparo:Colocar a água para ferver, depois colocar a erva-cidreira na

Page 54: retratos de assentamentos

54 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

água quente.Segredo:Nunca colocar as ervas em água fervente, mas jogar a águaquente sob as ervas, tampar o recipiente com um pires paraconservar as vitaminas e propriedades das plantas.Finalidades:Dor de cabeça e para acalmar os nervos(Receita levantada pelas crianças da Escola Hermínio Pagotto).

Tanto a erva-cidreira como o maracujá são certificados cientificamente comoplantas calmantes. A primeira tem ainda outras propriedades terapêuticas, comoa de ser "rejuvenescedora, revitalizante, antidepressivo, antialérgico, carminativo,hipotensor, nervino, sudorífero, tônico geral, antiespasmódico, bálsamo cardíaco,antidisentérico, antivômitos" (fonte: www.ciagri.usp.br. Acessado em 21/10/2011). Já o maracujá, além da função calmante, auxilia no combate ao estressee ajuda a reduzir o colesterol e o diabetes. Podemos verificar que o combateaos males do dia a dia são realizados com tratamentos simples, porémcuidadosamente elaborados.

No que tange ao tratamento dos males da pele, foi possível registrar duasformas de cuidados, a primeira é para furúnculos5. O tratamento é realizadocom compressas de erva saião, mais conhecida como folha-da-fortuna ou ainda"coirama e folha-da-costa e é usado popularmente para o tratamento de úlcerase como cicatrizante (...) pode ainda ser um tratamento sem dor e mais barato,também para a leishmaniose" (fonte: <http://www.abaixoaodesperdicio.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=191&Itemid=38>. Acessadoem 21/10/2011). Na receita apresentada pelos alunos da escola a utilização é amais indicada nas receitas dos livros e sites fitoterápicos:

FurúnculoComo fazer:Pegar folhas de saião deixar em cima do furúnculoFinalidade:

5"Um furúnculo é uma doença de pele causada pela inflamação dos folículos pilosos,resultando numa acumulação localizada de pus e tecido morto" (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fur%C3%BAnculo. Acessado em 21/10/2011).

Page 55: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 55

Curar furúnculo(Receita levantada pelas crianças da Escola Hermínio Pagotto).

Em entrevista com um homem também pioneiro e nortista do assentamento,ele expôs a utilização da maniçoba no tratamento de "grosseirão" na pele. Noentanto, vale lembrar que a palavra maniçoba é nacionalmente conhecida comouma comida típica. É uma feijoada paraense de origem indígena, com a utilizaçãode uma espécie de folha da mandioca denominada maniva. Justamente porser utilizada uma espécie muito tóxica de mandioca, a preparação desse pratodemora vários dias. Para ele, o nome dado à folha da mandioca utilizada paradoenças de pele é a palavra maniçoba, o que provavelmente se popularizounas zonas rurais, e por isso a denominação maniva (folha da mandioca) não étão conhecida.

A utilização medicinal das folhas é justamente a apresentada pelo assentado,ou seja, é excelente para prevenção de grande quantidade de doenças, como asrespiratórias, a cegueira noturna, a vista fraca, mas em especial no tratamento demanchas da velhice, acne e outros problemas de pele, promovendo um belobronzeado com pouca exposição ao sol, fortalecendo a pele. No uso popular:

Entrevistadora: ...pega ele e amassa...F.: Pega ele, faz a bucha e começa a esfregar em cima.Entrevistadora: Na hora em que tá tomando banho ou não?F.: Não, pode ser agora mesmo quando tá aqui, pode fazer esse serviço.Entrevistadora: E como chama isso aqui?F.: Maniçoba (GOMES, 2010. Entrevista realizada com F. em 3/12/2010).

Há ainda uma erva amplamente usada nas casas do assentamento e certamentepelas avós ou mulheres que tiveram contato com a vida rural, é a erva de santa-maria. Esta erva comprovadamente possuidora de fins medicinais, pode ser usadano tratamento de pancadas, roxidões e até mesmo no tratamento de feridas.

Segundo a ciência seu nome é Chenopodium Ambrosuoides, sua indicaçãode uso tem as seguintes finalidades: vermífugo, laxativo, gases, úlcera, cãimbras,angina, circulação, contusão, hemorragia interna e hemorroidas. Isso demonstraque os usos praticados pelos assentados estão associados a práticas muito maisantigas, incorporadas ao seu cotidiano e à utilização das plantas. Nas palavrasda entrevistada:

Page 56: retratos de assentamentos

56 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

R: Se tiver muito dor dá né. Isso aqui é bom pra tudo. Você machucouo dedo, você pega isso aqui, maceta, põe em cima...Entrevistadora: Ah, agora eu tô lembrando... essa é a erva de santa-maria? Minha mãe põe no álcool junto com...R: Arnica...Entrevistadora: Arnica! Isso! E aí passa na pancada.R: Pra pancada, isso.Entrevistadora: Tô lembrando desse cheiro, porque minha mãe faz.Limão, com erva de santa maria e o... limão não.. erva de santa-maria com arnica e e álcool. Daí deixa curtindo e depois passa napancada.R: Fica bom, é isso aí. Pra pancada, machucado, qualquer machucado.É um remédio bom. É bom pra tudo, pra estômago toma ferramicina.Entrevistadora: Ferramicina? O que ..que é?R: É uma folha roxa. Esse aqui eu tomo quando eu tô mais assim,com dor de lado, eu cozinho ele, mas sozinho e bebo. Isso aqui tiratudo o sangue que tem dentro. Se leva uma pancada por dentro, eletira o sangue, tira o pus. Se machuca o dedo, tem que macetar eamarrar em cima e deixar. Só maceta, põe em cima.Entrevistadora: Ah, macetar e colocar em cima.R: Com álcool, enfaixa no lugar certinho.(GOMES, 2010. Entrevista realizada com R. em 09/12/2010).

Todas as ervas aqui apresentadas, de uso corrente pelos assentados, mostramque possuem, não apenas uma lógica referendada pela tradição, têm uso,racionalidade, já que essas mesmas ervas são também aplicadas no tratamentode doenças pela medicina científica. Situação a demonstrar a importância dessessaberes nas práticas diárias e na ressignificação pelos grupos mais jovens.

Esses saberes são fonte de riqueza, pois protegem e guardam um conhecimentooriginário dos índios e população tradicionais do interior do país, e permitemacesso a tratamento de doenças e males do corpo que ainda, em muitos casos,não é oferecido a algumas áreas do país, em especial às esquecidas pela sociedadeurbanocêntrica em que vivemos, tal como assinalado por Whitaker (2002).

Essa visão associa-se às ideologias criadas pela sociedade na qual estamosinseridos, que justificam as hierarquias entre as culturas pela diferença social,étnica ou econômica. De tal modo que as tradições culturais, os saberestradicionais e as comunidades não urbanas são alijadas, não tanto pelas

Page 57: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 57

possibilidades de consumo6, mas por suas características populares e tradicionais.Esses saberes são tratados pela imprensa oficial e pela mídia como não científicose atrasados, por usarem símbolos, gestos, expressões que fazem sentido paraquem está envolvido no processo. Essas desqualificações os tornamdesinteressantes, na medida em que as novas gerações vão crescendo eacompanhando outros valores. Em registro de campo, uma conversa, com umadas mulheres, conhecida como guardiã do saber das ervas e benzimentos é bemreveladora de tal situação:

Perguntei a ela como havia aprendido os usos das ervas, ela disseque com a mãe dela, e a mãe com a avó. Segundo ela, aquela épocanão escrevia nada, então ela tinha que aprender quando a mãe delafalava (...) perguntei se ela passou este conhecimento para a filhadela, ela disse que a filha até chegou a anotar alguma coisa paraaprender, mas que não fez uso de nada (GOMES, 2010. Caderno deCampo 26/11/2010).

Ao analisarmos a fala de M. podemos perceber que o elemento fundamentalpara a cultura ser mantida é a memória, não basta escrever, registrar, é necessárioque se faça uso e que se ressignifique tais saberes. Os conteúdos são guardadosapenas enquanto tiverem algum sentido na memória, na vida e no cotidiano dosindivíduos e grupo no qual estão inseridos (MENESES, 2009).

E esses saberes não oficiais, parte integrante do patrimônio imaterial, tornam-se elementos de um processo de esquecimento, já que os remédios alopáticospossuem o que os tradicionais não têm, o interesse econômico das grandes empresasque investem na ciência para torná-los publicizados para a grande massa capitalizada.

Os males do corpo, as simpatias e as benzedeirasAo falar de simpatias e benzeduras, nos remetemos ao universo das religiões,

6Vale dizer que as possibilidades de consumo também constituem um processo de alijamentodestes grupos. Mas por ainda terem potencial consumidor, o processo capitalista os cooptapelos meios de comunicação de massa. No entanto, o caráter rural e tradicional é semprecolocado como atrasado e pouco relevante. O espaço rural hoje valorizado é o espaço dasmáquinas e das agroindústrias, um espaço racionalizado que nada tem a ver com o ruraltradicional.

Page 58: retratos de assentamentos

58 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

no qual a forte tradição cristã põe-nos diante de um conjunto de tradições,símbolos, rituais, costumes, que tendem a ser institucionalizados. Em nosso país,o padre e o pastor seriam os representantes oficiais da fé em Deus, e, a Igreja,o lugar por excelência para expressar a fé. No entanto, cabe lembrar que nossareligiosidade é historicamente sincrética (BRAGA, 2005). Misturaram-seindígenas, africanos, judeus, espíritas, protestantes de diversos matizes, o qualresulta em um todo híbrido (CANCLINI, 2003).

No Brasil, todo esse complexo misturou, desde os séculos XVI e XVII,alguns elementos da religiosidade popular. As práticas mágicas e de feitiçaria,confundiam-se com as práticas religiosas da Colônia. Mulheres eram acusadasde serem bruxas por praticarem benzeduras, simpatias e técnicas de cura pormotivos diversos, como, por exemplo, para obter sucesso nos amores. Estesrituais poderiam incluir pós, rezas, filtros, ervas, poções, fervedouros, ossosenforcados além do conjuro (exorcismo) de demônios (BRAGA, 2005).

As simpatias, as benzeduras e a utilização dessas ervas pelo povo sãoconsideradas, pela ciência oficial, como medicina popular ou rústica, na qual assubstâncias, drogas, gestos ou palavras são celebrados como forma de obter acura para a saúde das pessoas. Não se trata apenas de um conjunto de plantasusadas para prevenir ou curar doenças, trata-se, além disso, de um lado mágico.

Como discutido anteriormente, o acesso dificultado dos doentes pobres àsorganizações oficiais de saúde, os leva a recorrer a práticas da medicina popularque estão totalmente imersas na cultura dos portadores desses saberes. Nacultura popular "corpo e espírito não se separam em nenhum momento. Nemtão pouco se desliga o homem do cosmo, nem a vida da religião" (POEL, s/data. Fonte: http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/medicina.htm. -Acessado: 15/10/2011).

Na medicina popular, o tratamento geralmente é acompanhado de um ritual,que é realizado por um raizeiro, curandeiro ou benzedeira, consideradosintermediários privilegiados entre os homens e o mundo espiritual.

Os raizeiros são aqueles que procuram e vendem raízes medicinais, algumasmuito conhecidas pelas comunidades tradicionais. Já os curandeiros e asbezendeiras são aqueles possuidores de um dom divino, nos quais a comunidadeconfia e credita os valores espirituais do dom. Mas entre a categoria decurandeiro e benzedeira há uma diferenciação de gênero, há uma divisão nospapéis de cura.

O curandeiro ou benzedor (homem) é geralmente procurado para rezarcontra bicho mau, para estancar sangue, retirar cobras de locais, ou rezar e

Page 59: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 59

curar bicheiras de animais. Já a benzedeira ou rezadeira, faz suas orações paraespinhela caída, quebranto infantil ou adulto, vermes, erisipela, peito cheio oucaído, dor de cabeça, entre outros. Mas é importante salientar que, nesseuniverso de cura, as mulheres gozam de certo prestígio, justamente porque "oprestígio mágico-religioso e, consequentemente, o predomínio social da mulhertêm um modelo cósmico: a figura da terra-mãe." (ELIADE, 1992, p.121). Ospapéis de destaque se dão justamente pelo fato de a figura feminina relacionar-se à natureza e ao universo. A figura da mãe terra é carregada de simbologia,pois seria ela a responsável por cuidar e dar aos seus filhos (seres vivos)aquilo que é necessário.

Nos processos de curas, as benzedeiras e os curandeiros utilizam orações egestos que servem de elementos fundamentais nos processos de cura de malesque tanto são físicos como mentais. Para Brosso (1999), as ervas medicinais,em muitos casos, além de serem a própria receita de cura, também são utilizadasdurante o processo de benzedura. Elas servem como amuletos que são colocadosem contato com o corpo do doente, seja nas partes que necessitam de tratamentoou no processo de "despacho da coisa". Dessa maneira, passam a representar acura que as ervas provêm quando ingeridas. Além das ervas, podem ser usadasfotos ou imagens de santos, que vão desde Nossa Senhora Aparecida a SãoMiguel Arcanjo. Estas imagens de santos têm o objetivo de fortalecer a fé e opoder de cura daquele que benze.

Além dos amuletos, ervas ou objetos, as benzeduras sempre sãoacompanhadas da impostação desses símbolos mágico-religiosos (BROSSO,1999). Não basta, no processo de cura, fazerem-se imposições de ervas ouimagens de santos, é necessário entoar preces e orações durante as bênçãos,que geralmente são histórias contadas em versos e rimas que remetem ao poderde Deus, Jesus e Maria sobre os males a serem curados.

Essas palavras entoadas vão do conhecido Pai-nosso a orações inéditas:"Sem estas palavras sagradas, que desde o começo foram concebidas ao homem,este se sentiria completamente indefeso" (CASSIRER, 2003, p.55 apudBRAGA, 2005).

Ser benzedeira ou curandeiro não é uma escolha, é um dom que se recebe e,ao mesmo tempo, é aprendido através da memória com os guardiões dessessaberes (MENESES, 2009).

Em entrevista com M., uma senhora apontada por muitos assentados comouma especialista em benzimentos destaca que a mãe era benzedeira e, com oenvelhecimento da mesma, ela teve que aprender o dom para ele não ser perdido:

Page 60: retratos de assentamentos

60 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Entrevistadora: Fala uma coisa pra mim, a senhora aprendeu como?M.: Minha mãe me ensinou e assim eu aprendi...Entrevistadora: Sua mãe trabalhava na igreja?M.: Nós era tudo católico, desde que "nós" nasceu né. Minha mãenão sabia, ninguém sabia ler.(...)Entrevistadora: E aí a senhora começou a fazer isso quando?M.: As orações? Foi quando eu fiquei mais velha, e porque a minhamãe já era velha, velha de idade. Minha mãe me ensinava, mas elaera benzedeira, ela não mexia com outras coisas das outras vidasnão, Deus me livre!Entrevistadora: É, porque tem isso também né... (GOMES, 2010.Entrevista realizada com M. em 16/12/10).

Podemos perceber na fala da entrevistada quase uma obrigatoriedade emcontinuar o feito da mãe, mesmo não sabendo escrever, o que a fez aprender foijustamente o processo de identificação e ressignificação do saber. Salienta aindaa devoção de sua mãe, em servir apenas a um Deus e não a "outras coisas". Essadevoção é indispensável no papel de cura, já que as benzedeiras e curandeirosse apresentam como instrumento de Deus. É como se eles fossem um canalentre o céu e a terra. Justamente por isso a "profissão" não tem dia e nem horapara ser convocada, é preciso estar disponível as vinte e quatro horas do dia,pois não se sabe quando alguém irá precisar.

Retirar o quebranto: Recomendações e ações das benzedeirasNas rezas apresentadas pela entrevistada pudemos registrar seis grandes

orações, as quais têm maior utilização no cotidiano do assentamento por serempara doenças comuns entre as pessoas que procuram ajuda.

A primeira benzedura é destinada a crianças com quebranto, benzidas parapoderem dormir mais tranquilas, não chorarem ou ainda para reações estranhas.Na língua portuguesa, quebranto é definido como um "estado mórbido atribuídopela crendice popular ao mau-olhado", e este mau-olhado pode gerarproblemas para crianças como abatimento, enfraquecimento, prostração,fraqueza, morbidez (Dicionário online. Fonte: http://www.dicio.com.br/quebranto/, acessado em 1/11/11). Para retirar da criança todos esses sintomasé preciso que todo quebranto colocado nela através do mau-olhado seja retiradoatravés da benzedura. A oração é realizada com um ramo de erva doce que

Page 61: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 61

serve como símbolo de retirada do quebranto:

M.: Deus e Nosso Senhor Jesus Cristo...Entrevistadora: E esse daqui serve pra que, esta que a senhora estáfalando?M.: Serve pra benzer criança né...Entrevistadora: Para dor de estômago...M.: Desde quebrante.Entrevistadora: Ah tá. (...) Deus e Nosso Senhor...M.: Quanta dor há no seu santo mundo, tudo isso ele benzeu e curou...daí você coloca o que tem que curar- ventre caído, bucho virado equebrante- e com ele levou (GOMES, 2010. Entrevista realizada comM. em 16/12/10).

A cada oração a recomendação da benzedeira era a de rezar um Pai Nosso,uma Ave Maria em oferecimento às cinco chagas de Cristo, a Sagrada morte ePaixão de Cristo. Para retirar o quebranto de adulto, que passa a ser chamadode "olho-gordo", justamente porque envolve o sentimento de inveja, a oraçãorealizada deve ser repetida por três vezes: "Com dois te botaram com três eu tetiro, com os poderes de Deus e da virgem Maria. Rezar um Pai Nosso, uma AveMaria e oferecer sempre às cinco Chagas de Cristo".

O quebranto é tão presente no ideário popular, que já foi citado por váriasvezes em livros de medicina portuguesa, em poemas de Gil Vicente e na literaturabrasileira, além de sempre constarem em histórias do nosso folclore de Camilo.

A mesma entrevistada, quando vai ensinar a oração, pede ajuda a Deusexclamando quase uma penalidade por esquecer-se da sequência de palavras:"Oh, meu Deus, será que eu esqueci essa?". Depois ela reafirma o uso da oraçãopara quebrante de gente grande, como forma de resgatar, através da memória acadeia operatória necessária para aquela ação (GOURHAN, 1975). Nessarepetição, a benzedeira ganha tempo para se lembrar de algo que já estavaesquecido pela falta de uso e, para justificar a falta de lembrança, ela salientaque as rezas são muito longas e complicadas (MENESES, 2009; CANCLINI,1982, VIANNA, 2004):

Entrevistadora: Essa é pra peito aberto e espinha caída? Essa é a quea senhora falou pra bucho virado?M: Para quebrante!

Page 62: retratos de assentamentos

62 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Entrevistadora: Quebrante...M: Primeiro é o Nosso Senhor Jesus Cristo também. Oh, meu Deus,será que eu esqueci essa?Entrevistadora: A senhora está benzendo pouco né.M: Agora pra gente grande tem que rezar a Virgem Maria e tem querezar o Pai Nosso também.Entrevistadora: Então esse é pra quebrante?M: Só que pra gente grande né.Entrevistadora: Essa é boa pra quebrante também?M: Não, é bom só pra gente grande, pra benzer coisa que gente grandesente.Entrevistadora: Mau olhado, essas coisas?M: É.Entrevistadora: Então, Deus é nosso Senhor...M: Deus é nosso Senhor Jesus Cristo, com dois te colocaram e comtrês eu te tiro, com os poderes de Deus e da Virgem Maria, amém.Agora faz um Pai Nosso pra oferecer pra Jesus Cristo.M: É muito comprido essas coisas, é complicado viu.Entrevistadora: Aí o Pai Nosso... (GOMES, 2010. Entrevista realizadacom M. em 16/12/10).

Espinhela caída, peito aberto: o melodioso inventário das curasPara curar outro problema comum no assentamento, conhecido como espinhela

caída, peito aberto ou lumbago, que é a designação popular de uma doençacausada por fortes dores nas costas, nas pernas, na boca do estômago, cansaçoanormal ao submeter-se a esforço físico, a oração realizada durante a benzeduraé feita acompanhada do tratamento com chás de ervas medicinais.

A imagem representa o resultado da estrutura óssea das pessoas que estãocom a espinhela caída, é como se o doente fosse impelido a andar inclinado paraum lado por estar com a estrutura de seu corpo deslocada. A benzedura vaiajudar na reorganização óssea e no cansaço físico causado pela exaustão dotrabalho físico. Na verdade, a oração serve como um acalento mental, garantindoao solicitante da reza uma anestesia mental ao trabalho árduo e pesado do dia adia de quem trabalha na terra. A oração é feita da seguinte forma:

M.: É porque isso aí é pra quando a gente tá com dor no peito, espinhelacaída.

Page 63: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 63

Entrevistadora: Então esse aqui é pra quando vai abrir o peito, né...M: É para quando tem diabete, espinhela caída, tem a espinhela dagente e tem os peitos abertos.Entrevistadora: Geralmente é a pessoa que trabalha muito... benzeue curou...M: Espinhela caída levantou, o peito aberto se fechou, com o poderde Deus e da Virgem Maria. Agora você marca que é pra rezar umPai Nosso. Todo fim tem um Pai Nosso e uma Ave Maria, na intençãodas cinco chagas. Vai longe minha filha... Intenção das 5 chagas deNosso Senhor Jesus Cristo e a sagrada morte e paixão, porque assimcomo ele ficou livre...Entrevistadora: Agora repete para que possa escrever.Entrevistadora: Isto lembra o que Jesus passou né...M: Na intenção das cinco chagas... Mas agora tem que rezar um PaiNosso e uma Ave Maria e oferecer...Entrevistadora: Outro Pai Nosso..M: Já tem um Pai Nosso aí!Entrevistadora: Já tem um Pai Nosso.M: É depois da intenção das 5 chagas de Jesus.Entrevistadora: É tudo a mesma?M: É uma só...Entrevistadora: É todas servem pra peito aberto...M: E espinhela caída... (GOMES, 2010. Entrevista realizada com M.em 16/12/10).

Esta oração "Deus é nosso senhor Jesus Cristo, quanta dor há no seu santomundo. Tudo isto ele benzeu e curou. A espinhela caída ele levantou e o peitoaberto ele fechou! Com os poderes de Deus e da Virgem Maria", ditada pelaentrevistada lembra até um cordel, as rimas faladas são sonoras e nos remetemaos textos literários cantados pelos repentistas. A diferença é que a oração nãodeve ser escrita, mas sim memorizada na mente daqueles responsáveis pela cura.

Muitas benzimentos podem variar de região para região, mesmo sendo muitoparecidos, por vezes têm finalidades diferentes. Um bom exemplo é a oraçãoque a guardiã desses saberes nos apresentou para cura de erisipela7, doença

7Erisipela é um processo infeccioso cutâneo, podendo atingir a gordura do tecido celular

Page 64: retratos de assentamentos

64 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

cutânea que pode atingir o tecido gorduroso da pele, muitíssimo comum empessoas com diabetes, obesas ou com má circulação. Nessa oração é professadoo seguinte diálogo:

Deus nosso Senhor Jesus Cristo foi a Roma, com Pedro e Pauloencontrou.Disse: O que há Pedro e Paulo?Eles responderam: Muita doença Senhor!Deus: Por que não cura Pedro e Paulo?Eles: Por que estão todos surdos e mudos. E sem saber com que secura Senhor!Deus: Volta para trás Pedro e Paulo e vai curar!Eles: Com que se cura Senhor?Deus: Com água de nascente, azeite de candeia e cinza de fogão.Esipra, Erisipela curarão e nunca mais darão! Com os poderes deDeus e virgem Maria (GOMES, 2010. Trabalho de campo 16/12/11).

Recomenda-se que junto a essa oração se aplique e massageie com óleo osmembros que estão doentes. Em um trabalho desenvolvido por Francisco Poel8(s/data) na região do Vale do Jequitinhonha um benzimento muito parecido comesse, mas com adaptações locais, é utilizado para a cura de cobreiro:

Quando Jesus andava pelo mundo, encontrou São Pedro sentado numapedra fria. E pergunta a ele: Que tem Pedro?Pedro responde: Cobreiro bravo!Jesus: Curai Pedro!Pedro: Com o que, Senhor?Jesus: Com água da fonte, raminho do monte e as três pessoas daSantíssima Trindade Pai, Filho e Espírito Santo. Amém (POEL, s/data).

subcutâneo causado por uma bactéria que se propaga pelos vasos linfáticos. Pode ocorrerem pessoas de qualquer idade, mas é mais comuns em diabéticos, obesos e nos portadoresde deficiência da circulação venosa dos membros inferiores. Não é contagiosa e os nomespopulares usados são esipra, mal-da-praia, mal-do-monte, maldita ou febre-de-santo-antônio(Fonte: http://www.erisipela.com.br/. Acessado em 2/11/11).8Disponível em: http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/medicina.htm. Acessado:15/10/2011.

Page 65: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 65

Junto com esta oração há a recomendação da utilização de sumo do troncode banana-de-São Tomé. Poel (s/data) esclarece que algumas dessas fórmulassão tão antigas, que suas origens podem ser encontradas na mitologia germânicacéltica do início da história da Europa cristã. Há um exemplo de reza de erisipelaem um código austríaco do século IX, mas a adaptação acontece conforme anecessidade de cada benzedeira.

Tanto a primeira oração quanto a segunda demonstram bem o papel dinâmicoda cultura, a ressignificação de acordo com o contexto, mostra como o patrimôniose mantém. A memória e a fala são fundamentais nesse processo, primeiro porqueregistra o conhecimento, e segundo porque permite que ele seja repassado aosgrupos subsequentes (GOURHAN, 1975).

Esses saberes possuem ainda uma lógica prática, relacionada às doenças.No caso da primeira oração, o óleo tem um papel fundamental na cura daerisipela, já que ao massagear o local atingido estimula-se a circulação do sanguee, portanto, há alívio e ajuda no processo de cura. No segundo caso, o sumo dotroco da bananeira tem comprovado o poder cicatrizante9 de feridas na pele, oque representa um uso prático desses saberes populares.

Ainda registramos duas orações de benzimentos para curar dor de cabeça emau-jeito. Na primeira, recomenda-se colocar um ramo na cabeça e enfaixá-lacom ele. A entrevistada apresenta a seguinte oração:

M: Você quer aprender a da dor de cabeça?Entrevistadora: Quero! Qual foi aquela que a senhora me benzeu, foiuma oração comprida?Maria Reza: Foi essa!Entrevistadora: Então, dor de cabeça.M: Para dor de cabeça é assim: Deus é o sol, Deus é a luz, Deus é aclaridade e Deus é firme na verdade. Assim como Deus é o sol, Deusé a luz e Deus é a claridade e sereno ele ergue a cabeça da pessoaque tiver doente da cabeça.Entrevistadora: Repete a oração pra escrever. Põe o nome da pessoa?

9"Úlceras: Aplica-se, com algodão, a seiva da bananeira localmente. Observar cuidados deassepsia". A este respeito acessar: http://www.ednatureza.com.br/banana.htm e http://www.terracha.com.br/medicina_alternativa/cicatrizantes-naturais/. Sites acessados no dia02/11/11.

Page 66: retratos de assentamentos

66 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

M: Põe o nome da pessoa que está com dor.Entrevistadora: O nome da pessoa é para dizer tira dor da cabeça dofulano de tal. Tem mais coisa?M: O oferecimento é a mesma coisa.Entrevistadora: Pai Nosso e Ave Maria, na intenção de Jesus Cristo,pra ele ajudar a ficar bom (GOMES, 2010. Trabalho de campo 16/12/11).

Poel (s/d) apresenta um registro de uso de instrumentos no benzimento demau- jeito na cidade de Cruz, em Minas Gerais, que são os mesmos apontadospela benzedeira do nosso trabalho de campo. Durante as palavras proferidasnesse processo de cura da carne-quebrada, que conhecemos como luxação;em todas as partes do Brasil usa-se uma agulha e um novelo de linha. Benze-secosendo o novelo com a agulha.

A oração deve ser repetida por três vezes. No restrito trabalho de camporealizado por esta pesquisa, a reza aparece da seguinte forma: "Eu que te coso,carne triturada, nervo rendido e osso desconjuntado. Pior isso que coso pormando de São Virtuoso". Na recolhida por Poel (s/data), a reza é bastanteparecida, mas pergunta-se ao doente: "O que é que eu benzo?" E a própriabenzedeira responde: "Carne quebrada, nervo rendido e osso partido". Ambasapresentam a dimensão do corpo fragmentado de alguma forma, a agulha e onovelo representam a junção e a costura das partes que estão luxadas.

O patrimônio imaterial tem dois sexos: a presença masculinaNesse processo de cura do corpo, os homens, apesar de gozarem de um

prestígio menor do que o das mulheres benzedeiras, têm uma presença bastanteforte. No trabalho de campo, para levantamento dos nomes dos guardiões dopatrimônio imaterial, um curandeiro foi indicado por muitos assentados. Nasentrevistas, o rezadeiro não demonstrou ter uma fórmula única para curardeterminada doença. Para ele, as palavras saem de sua boca como um domdivino que flui sem ele menos esperar. Em suas palavras ele ressalta:

G.: A gente sabe de algumas coisas não é muita coisa, né.Entrevistadora: Mas o senhor não aprendeu isso com ninguém?G.: Não, por isso que eu digo que Deus que mostra pra gente. Olha eujá vi mulher costurar, comer sem dedo nenhum porque ela não tinhabraço nenhum. Costurava, jogava bola sem dedo, com o pé, bordava

Page 67: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 67

fazia tudo com o pé, não é?Entrevistadora: E quando é que o senhor descobriu esse dom?G.: Ah! Eu era rapazinho, eu via muita coisa, eu bebia muito, daí eu fuinum centro espírita, e fiquei lá trabalhando, trabalhei vinte e cinco anosno centro espírita. Daí um rapaz falou assim pra, olha vem umas coisasaí pro seu lado e você vai saber. Aí eu perguntei, sabe o que? Ele falouvocê vai ser conselheiro do povo. Eu falei: eu? Ah! Com essa cachaçaminha é que eu vou ser? Ele falou assim pra mim, mas é por issomesmo, ai falou assim pra mim, olha você vai embora pra muito longe,você vai largar sua mulher ou ela vai lhe largar, ainda sei de mais uma,você vai pra um lugar deserto, e lá, você não vai beber, quando vocêver a cachaça você vai sentir até raiva. E foi, acabou cachaça, acaboutudo. Eu melhorei nunca mais. Vai acontecer alguma coisa comigoamanhã, eu sonho tudo direitinho antes. No dia que eles botaram fogoaqui, eu sonhei com árvore e cobra, pra todo lado tinha cobra. Cobravocê sabe é traição, né. O problema é quase a metade do povo não crê,e é até bom que não creiam. A maioria me diz: Ah você é um besta!Outros falam pra você é doido! A mulher estava ruim, ruim, não comianada, nada, aí me chamaram e fui. Cheguei lá botei a mão na cabeçadela e disse: e a senhora não quer comer um bocadinho? E ela começoua comer. (GOMES, 2010. Entrevista com G.).

Aqui a imposição das mãos se torna uma espécie de amuleto, para retirar ador e a doença, tal fato pode ser percebido como ritual de cura em diferentesreligiões. Em outro trecho da entrevista ele diz como se curou de um problemana próstata:

Eu sempre confiei em mim. Eu estava com uma dor aqui, ó, noespinhaço, falei umas palavras lá e botei a mão em cima, a dor ó fezassim... (saiu pelos ares..) e aí depois de 2 segundos, não tinhamais dor nenhuma nenhuma! Eu ia obrar, eu vou contar pra vocês,dava cada cólica que corria lá, corria cá e, ginete, ginete, ginete eudisse: eu vou morrer, não tem jeito, é próstata, eu tenho o negóciode próstata, pensei vou morrer. Daí eu peguei e disse: Meu DEUStem dó de mim. Pus a mão naquele lugar, fui botando a mão, botei amão de novo, tirei a mão e a dor fez assim... (desenhou no ar quefoi embora...) você sabe que DEUS não é besta, não. Mas, não

Page 68: retratos de assentamentos

68 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

leva a conhecimento não, que é bobagem minha (GOMES, 2010.Trabalho de campo 3/12/10).

Em alguns momentos o entrevistado diz ser um adivinho das coisas queacontecem: aplica a identificação de símbolos aos sonhos que têm, por exemplo,a imagem da cobra como traição, como o fogo que colocaram em seu sítio.Revelado pela pessoa que o informou de que seria conselheiro do povo, eleavalia que a autoconfiança o levou à sua própria cura e de uma mulher. Nodepoimento de uma assentada, ela lembra quantas pessoas foram benzidas:

Entrevistadora: Benzedura, a senhora se lembra se tinha?S.: Tinha aqueles benzedor, a gente levava as crianças pra benzercom arruda, com galho daquele fedegoso...Entrevistadora: Pra que servia esse aí, o fedegoso?S: Pra tirar mau olhado, quebrante, tudo essas coisas. Quando via, tinhafila na porta da casa do feiticeiro lá. Eu acho que como tem fé nascoisas de Deus, dava certo! (GOMES, 2010. Entrevista com A. e M.).

Mas não há apenas curandeiros bons, existem nesse meio, os feiticeiros queconhecem poções e feitiços capazes de matar uma pessoa. Em outra entrevista,com um casal pioneiro no assentamento, que chegou trabalhar no casarão dafazenda Bela Vista, podemos identificar esse aspecto perigoso de um curandeiroque usa seu dom para o mal, algumas pessoas chegavam até a relacioná-lo coma morte de outras pessoas. Nas palavras do casal entrevistado:

S.: Fazia aquelas coisas, então ia fazer simpatia lá de baixo daqueles"pulador", aí você ia lá e via aquelas coisas tudo embaixo. Elesmatavam mesmo. Eles faziam o negócio deles... eu me lembro porqueuma vez eu fui com meu vô e eu não sei como é que foi, mas ofeiticeiro falou pro meu vô que ia matar ele. Falou que ia matar porquemeu vô fazia a roça dele grande e ele era preguiçoso, invejoso e nãofazia e não queria que ninguém fazia. Ele ia em Araraquara, e fazia afeitiçaria.S.: Com meu vô, aconteceu que ele caiu de cima do paredão. Ele iapassando, deu aquele vento e jogou ele lá embaixo. Aí quebrou perna,quebrou tudo e morreu... Mas ele fazia mesmo, pra muita gente. Era sóele bater os olhos numa criança...(GOMES, 2010. Entrevista com A.).

Page 69: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 69

A assentada relata o temor ao feiticeiro, a fala dela identifica o poder dossaberes sobrenaturais: além de matar, é capaz de, somente ao olhar para umacriança, colocar nela um quebrante.

Mas, há também, as possibilidades de cura que não estão apenas associadasàs benzedeiras, aos curandeiros e às ervas. São muito mais acessíveis e nãonecessitam de ter um dom para realizá-las. É preciso apenas ter fé. Esse tipo deação e gesto utilizado para a cura é tradicionalmente conhecido como simpatia.

Elas são representadas por fórmulas, gestos, símbolos que são remédios,mas a própria palavra sugere algo que não se explica, do grego é "sentir junto omesmo". Na medicina popular, elas servem para curar verrugas, hemorroidas,asma epilepsia, soluço, e algumas vezes, podem aparecer em conjunto comrezas e ervas. Elas revelam um aspecto diferenciado da terapia puramente racionale intelectual. Levam em consideração a experiência de quem conhece a doençaa partir do sofrimento dos outros ou por si próprio.

Apesar de não se explicar a simpatia, ela pressupõe uma relação íntima entreanimais, homens, plantas e planetas. As leis consideradas nesta relação estãomuito distantes da causa-fim (POEL, s/d). O que é considerado aqui é a analogiapara encontrar remédios para as doenças, prática esta que há muito praticada.

Levando em consideração tais pontos de reflexão e a grande utilização destaprática no Bela Vista, pudemos levantar algumas simpatias, no trabalho de campo,com as crianças da escola. Entre as simpatias estão aqueles para ver melhor,para parar de fumar, para ficar com o cabelo bonito, dentre outras. A primeirasugere o uso de uma erva como solução para ver: "Deve-se pegar folhas dearruda, colocar no sereno. No dia seguinte, colocá-las nos olhos. Finalidade éde lavar os olhos e ver melhor" (GOMES, 2010. Trabalho de campo).

A segunda simpatia registrada é para acabar com furúnculo, nesta é precisopegar as folhas de saião10 colocá-las em cima do furúnculo, depois de algunsminutos, com as folhas sobre a ferida, colocá-las para secar. Quando as folhassecarem, o furúnculo secará junto com elas. Se voltarmos à definição de simpatia,perceberemos que o sofrer junto é a chave para o entendimento desse tratamento,ou seja, ao colocar as folhas em contato com o furúnculo, o sentido simbólico

10O saião é popularmente conhecido como folha da fortuna, coirama e folha-da-costa, e éusado popularmente para tratamento de úlceras e como cicatrizante. É encontrado em várioslugares do Brasil e nas Américas e também comprado como planta ornamental. Fonte: http://www2.tvcultura.com.br/reportereco/materia.asp?materiaid=518. Acessado: 04/11/11.

Page 70: retratos de assentamentos

70 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

desse ato é a transferência. As folhas passaram a representar a ferida, e aoserem postas para secar, secaram o próprio furúnculo. Além disso, se verificarmosas propriedades dessa folha perceberemos que a mesma é usada medicinalmentepara curar feridas de pele, o que indica uma certa lógica no uso delas.

Em outro exemplo de simpatia, podemos ficar com o cabelo bonito. Práticamuito utilizada, inclusive pelas empresas de cosméticos, a receita pode ser feitade duas formas. Na primeira, deve-se pegar a babosa, retirar a baba e colocarfarinha de mandioca junto a ela, fazer pequenas bolas e colocá-las no sereno.No dia seguinte, deve-se engolir três bolinhas, e o cabelo ficará bonito. Nasegunda, seria mais um uso, do que propriamente uma simpatia, nesta deve-seretirar ao gel da babosa, passá-lo no cabelo, ficar durante alguns minutos e,depois, lavá-lo.

Registramos ainda uma simpatia apontada, por mais de um entrevistado,relacionada à queda de verrugas. Nesta, procura-se um pasto ou beira de rio,um osso de animal, que deve ser esfregado em cima da verruga. Após, coloca-se o osso com o lado que teve contato com a pele virado para sol. Após trêsdias a verruga cairá. A idéia inspirada aqui, relaciona-se ao desgaste natural queo sol, a chuva e o vento irão promover no osso. Como a lógica da simpatia é,através de um contato, de um gesto ou palavras transferir o problema para oobjeto, planta ou algo, neste caso o osso adquire a materialização da área ondehá verruga, e, quando desgastado, o resultado é o fim dela no local do corpo dapessoa que fez a simpatia.

Todas essas simpatias e benzeduras são saberes aprendidos no cotidianocom as doenças e os problemas vividos. Se não curam, pelo menos atingem umaspecto bastante valioso no processo de recuperação dos doentes, a mente. Jáque em grande parte do tratamento ela é fundamental. Isso tudo não é apenasparte do patrimônio imaterial de uma determinada comunidade. É parte de umacultura vivente, que a todos os momentos se recicla, se recria e se renova, porestar sendo usada e praticada pela memória história dos grupos participantes.

É preciso lembrar também que toda medicina funciona em um camposimbólico, e portanto, essas práticas e, muitas vezes, seus resultados, funcionamquando os atores sociais envolvidos se integram a esse campo simbólico e nelereconstroem sua identidade.

Considerações FinaisAo concluir o presente trabalho, pretende-se resgatar as principais reflexões

propostas ao longo do texto, para que se compreenda o tema desta pesquisa

Page 71: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 71

como um todo. Destacamos que o universo da patrimonialidade imaterial é umaspecto da cultura que merece sempre novas pesquisas, justamente pelo fato damemória ser infinitamente criativa e capaz de criar e recriar saberes, fazeres etécnicas do cotidiano.

Trabalhamos sob uma perspectiva metodológica da Sociologia Rural,fundamentada no trabalho etnográfico da prática cotidiana ligada à experiênciado mundo vivenciado, podendo assim identificar os modos de vida a partir datrajetória dos assentados.

Este trabalho, por sua vez, preocupou-se, sobretudo com aspectos cotidianosda memória, que se estabelecem nos saberes não oficiais, considerados comopatrimônio imaterial ou intangível.

Para se produzir de fato a cultura, é preciso que todas essas informaçõessejam vividas no processo diário e que as gerações possam recriar, a partir desua forma, o sentido para esses atos e informações.

O trabalho de registro e apresentação dos lugares de ocorrência do patrimônioimaterial. Tem uma história objetivada e uma outra, plena de subjetividades. Atrajetória deste trabalho foi resultado de anos de acompanhamento e envolvimentoafetivo com as histórias e as pessoas dos assentamentos investigados. Foi partede um interesse pessoal de valorizar o pouco valorizado desta gente que luta atodo momento. Luta para conquistar o lote, para receber crédito, para plantar,para colher, para estudar, para viver...

É uma tentativa de retribuir e indicar riquezas existentes nos assentamentosde Reforma Agrária, de despertar o interesse de conhecer e querer ver acontinuidade desta história. Os órgãos de valorização e fomento do patrimônioimaterial, para reconhecerem os saberes, as técnicas e as artes de fazer, exigemprocessos de registro e estudo prévios para dar a titulação a um grupo ou local.

Este trabalho representa uma pequena contribuição, na luta pela valorizaçãoe reconhecimento da cultura local e do assentamento. Além do registro, podeser lido como um sinal de alento para uma ação efetiva de políticas públicas deconservação desse modo de vida tão especial. Sem as raízes do patrimôniomaterial muito da riqueza deste modo de vida se perderia deixando para tráshistórias e memórias vivas.

Referências

BARBERO, J.M. Dos Meios às Mediações Comunicação, Cultura eHegemonia. Tradução: Ronald Polito e Sérgio Alcides. Rio de Janeiro:

Page 72: retratos de assentamentos

72 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Editora da UFRJ, 4ª ed., 2006.

BRAGA, G.G. A fotografia no imaginário das benzedeiras de Campo Largo.Discursos Fotográficos, Londrina, v.1, p.253-280, 2005.

BROSSO, R.;VALENTE, N. Elementos de Semiótica: comunicação verbale alfabeto visual. São Paulo: Panorama, 1999.

BRUMER, A. Gênero e geração em assentamentos de reforma agrária. In:FERRANTE, V.L.S.B.; ALY JR., O. (Orgs.) Assentamentos Rurais:impasses e dilemas (uma trajetória de 20 anos). São Paulo: INCRA, 2005,p.351-371.

CASSIRER. E. Linguagem e Mito. São Paulo: Perspectiva, 2003.

CANCLINI, N.G. As Culturas Populares no Capitalismo. Tradução deCláudio Novaes Pinto Coelho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.

DURKHEIM, H. Os pensadores XXXIII. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

ELIADE, M. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

FERRANTE, V.L.S.B. Os Assentamentos Rurais Sob a Perspectiva deGênero: divisão sexual do trabalho e políticas públicas em análise. ProjetoCNPq, 2010.

FREITAS, M.C. Fazer história da educação com Gilberto Freyre: achegaspara pensar o aluno com os repertórios da Antropologia. In: FARIA FILHO,L.M. (Org.) Pensadores Sociais e História da Educação. 1ª ed. BeloHorizonte: Autêntica Editora, 2005, p.167-185.

GASPAR, L. Medicina Popular. Pesquisa Escolar On-Line. 2009.Fundação Joaquim Nabuco, Recife/PE. Disponível em: <http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar>. Acesso em 06/08/2009.

GOMES, T.P. de S. Um estudo das relações sociais e políticas doassentamento Bela Vista de Araraquara através da festa junina. Simpósio

Page 73: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 73

Impasses e Dilemas da Política de Assentamentos, Araraquara, de 28 a 30 desetembro. In: Anais..., Araraquara, 2005.

_______ Sociabilidade x Conflito: projetos de assentamentos na região deAraraquara. 25ª Reunião da Associação Brasileira de Antropologia, junho de2006, Goiânia-GO. In: Anais..., 2006.

_________ De saberes a gestos: uma etnografia de transmissão dosconhecimentos não oficiais no assentamento Bela Vista de Araraquara - SP.IV Jornada de Estudos em Assentamentos Rurais, 2009, Feagri/Unicamp,Campinas. In: Anais..., Campinas, 2009.

__________. Saberes, Memórias e Tradição: Estudo em Assentamentos deReforma Agrária de Araraquara-SP. XXVII Congresso Internacional daAssociação Latino-Americana de Sociologia, 2011, Recife. In: Anais...,Recife, 2011.

GUIMARÃES, M.R.C. Chernoviz e os manuais de medicina popular noImpério. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, v.12, n.2, p.501-514,maio/ago, 2005.

LAPLANTINE, F.; TRINDADE, L. O que é Imaginário. ColeçãoPrimeiros passos. São Paulo: Brasiliense, 1996.

VAN DER POEL, F. Na Cultura Popular. S/d. Disponível em: <http://www.religiosidadepopular.uaivip.com.br/medicina.htm>. Acesso em: 15/10/2011.

SANTOS, C.R.A. dos. Por uma história da alimentação. História:Questões e Debates, Curitiba, v.14, ns.26/27, p.154-171, jan/dez,1997.

VIANNA, L.C.R. Legislação e preservação do patrimônio imaterial:perspectivas, experiências e desafios para a salvaguardura das culturaspopulares. Textos escolhidos de cultura e arte popular, vol.1, nº1, 2004.

WHITAKER, D.C.A. Sociologia Rural: questões metodológicasemergentes. Presidente Venceslau/SP: Letras à Margem, 2002.

Page 74: retratos de assentamentos

74 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Consulta eletrônica

UNESCO: <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia>. Acesso em: 25/09/2010.

IPHAN: <http://portal.iphan.gov.br>. Acesso em: 10/09/2011.

UNESCO:<http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/intangibleheritage>. Acesso em: 20/12/2010.

DICIONÁRIO ONLINE: <http://www.dicio.com.br/quebranto>. Acesso em:01/11/2011.

Page 75: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 75

"CARICULTURA": AUTONOMIA ERESISTÊNCIA NAS MANIFESTAÇÕESARTÍSTICAS NO ASSENTAMENTOBARRA DO LEME

Ana Cecília dos Santos1

1Graduada em Ciências Sociais na Universidade Federal do Ceará (UFC), Mestre em PolíticasPúblicas e Sociedade na Universidade Estadual do Ceará (UECE), atualmente doutorandaem Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Resumo: O artigo objetiva refletir sobre as relações entre seres humanos, a culturae o meio ambiente, onde a experiência artística realizada num assentamento estáatrelada à necessidade dos sujeitos reinventarem seus cotidianos independentementeda produção artística vigente nos centros urbanos. A pesquisa de campo ocorreunum assentamento agrário (Barra do Leme) no município de Pentecoste-CE. Pormeio de entrevistas e da técnica análise do discurso, os moradores do referidoassentamento descreveram seus cotidianos, suas expectativas, suas expressõesartísticas e culturais. Essa pesquisa busca compreender em que medida o grupo"Caricultura" é capaz de reinventar seus cotidianos, a partir da aproximação entrea arte e a vida, por meio de processos de sociabilidade que resultam num despertardos potenciais criativos dos moradores deste assentamento.

Palavras-chave: Arte; Meio Ambiente; Políticas Públicas.

Abstract: This paper aims to explore the relationship between people, cultureand the environment in a rural settlement where people experience art makingthe connection between art and their daily lives, highlighting the reinventionof everyday life, notwithstanding the existence of contemporary artisticproductions in metropolitan areas. The field research was conducted at arural settlement (Barra do Leme) located in the town of Pentecoste-CE. Datawere collected through interviews with the residents and discourse analysiswas used to explore their daily lives, including their expectations and forms

Page 76: retratos de assentamentos

76 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

of artistic and cultural expressions. This research seeks to evaluate the"Caricultura" group by their ability to reinvent themselves, exploring ideasconcerning the relationship between art and life, through the lens of socialprocesses for encouraging and awakening the creative potential in the residentsof this settlement.

Keywords: Art; Environment; Public Policies.

1.IntroduçãoDesde épocas mais remotas, encontramos manifestações culturais e artísticas

produzidas pelo homem que atestam suas formas de relacionamento com o mundo.Homens e mulheres organizaram tradicionalmente sua existência, deixando-arepleta de significados e revelando-a como linguagem, transformando, enfim,paisagens naturais em meio cultural.

Além de vincular o homem ao mundo, a arte possibilita animar o ser humano,uma vez que ela é expressão da razão, mas, também, dos sentidos, despertandosentimentos e pensamentos capazes de mobilizar e transformar sua vida. Funcionatambém como força integradora de uma comunidade, principalmente quando seencontra na arte o resgate da memória e a transmissão de saberes. Possibilita,ainda, uma reinvenção do cotidiano, servindo como um instrumento neutralizadordas angústias do homem diante da vida e da morte.

No contexto da reforma agrária, a arte pode desempenhar um papel importantepara a vida rural, ampliando sua capacidade poética e imaginativa, reconciliandoos seres humanos com a natureza. De acordo com Barroso:

O pensamento que liga o homem à natureza e o roceiro à terra em quetrabalha é parte de uma concepção tradicional do mundo, por alguns chamadamítica ou mágica. Esta, não se trata de uma lógica pré-científica ou de ummodo de comportar-se, de dar significação à realidade, ou seja, de umacultura ultrapassada. Tradição e modernidade, ciência e magia coexistem esão contemporâneos (BARROSO, p.59, 2005).

Para Barroso "os assentamentos de reforma agrária devem ser percebidoscomo um microcosmo (...) ligado ao mundo". (BARROSO, p.74, 2005). Porisso, o autor considera necessário cuidar do registro da memória do assentamentoe difundir a cultura e as tradições do campo, para, através das manifestaçõesartísticas, expandir a auto-estima e o sentimento de pertença entre os assentados.

Page 77: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 77

O autor afirma, a partir da obra de Roseli Caldart, que as manifestações artísticasarticulam um sentido para a luta pela reforma agrária no campo.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária do Ceará (INCRA/CE) desenvolveu através do Projeto do Ministério da Cultura, intitulado "Pontode Cultura"2, o Projeto "Arte e Cultura na Reforma Agrária" em váriosassentamentos no Estado. Seu objetivo principal é transformar assentamentosem espaços do 'fazer artístico', ou seja, de acordo com Silma Magalhães,coordenadora do projeto, o intuito é fortalecer a cultura tradicional no interiorcearense, através do projeto que envolve o registro e a divulgação dasmanifestações culturais em multimídia, a inserção da cultura popular na dinâmicaeducacional local, além da publicação de material de reflexão. Foram sete3

projetos culturais de assentamentos de reforma agrária no Ceará que se tornaram"Pontos de Cultura". O edital dos selecionados pela Secretaria de Cultura doCeará (SECULT) foi divulgado no dia 04/02/2009.

No sitio do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)4, que se refereao Projeto "Arte e Cultura na reforma agrária", chamou-me a atenção o resultadodo edital que premiou o município de Pentecoste-CE:

"Cantos da Mata", do assentamento Barra do Leme, em PentecosteA questão ambiental foi bastante difundida em Barra do Leme após arealização do Projeto Ciclovida, em que assentados viajaram de bicicleta

2Ação prioritária do Programa "Cultura Viva" do Ministério da Cultura (MINC) que assumea cultura, a educação e a cidadania, enquanto incentiva, preserva e promove a diversidadecultural brasileira. Por meio da Secretaria de Programas e Projetos Culturais, o MINC iniciou,em 2004, a implantação dos Pontos de Cultura, com a missão de reconhecer e reverenciar acultura viva de seu povo. O Programa "Cultura Viva" contempla iniciativas culturais queenvolvem a comunidade em atividades de arte, cultura, cidadania e economia solidária.Essas organizações são selecionadas por meio de edital público e passam a receber recursosdo Governo Federal para potencializarem seus trabalhos, seja na compra de instrumentos,figurinos, equipamentos multimídias, seja na contratação de profissionais para cursos eoficinas, produção de espetáculos e eventos culturais, entre outros. (Disponível em http://www.cultura.gov.br/cultura_viva).3Foram aprovados os projetos dos assentamento de Lagoa do Mineiro, localizado nomunicípio de Itarema; Barra do Leme, que fica em Pentecoste; Tiracanga II, em Canindé;Recreio, no município de Quixeramobim; Cachoeira do Fogo, localizado em Independência;Santana, em Monsenhor Tabosa; e Lagoa do Mato/Esperança, em Sobral.4Disponível em www.mda.gov.br.

Page 78: retratos de assentamentos

78 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

por todo o Brasil e países da América Latina divulgando a utilização desementes nativas e o respeito ao meio ambiente. O projeto Cantos da Matapretende ampliar esse discurso com a realização de um Seminário de Arte,Cultura e Educação Ambiental, de exposição fotográfica contando a históriado Projeto Ciclovida e a montagem de um espetáculo teatral em homenagema Chico Mendes. Um CD será gravado. O projeto prevê também a instalaçãode um Centro de Inclusão Digital e o resgate do Reisado local.

Anteriormente, tinha ouvido falar dessa experiência da viagem de bicicletado Ceará à Argentina, realizada por algumas pessoas do assentamento Barra doLeme. No ano de 2008, um aluno do mestrado acadêmico de Políticas Públicase Sociedade da Universidade Estadual do Ceará (UECE), havia me mostrado oblog5, criado pelos moradores do assentamento, onde se liam narrativas sobre aviagem. Após ler no sitio do Ministério de Desenvolvimento Agrário sobre oProjeto, obtive do mestrando o telefone dos moradores do assentamento quefizeram a viagem. Ele os conhecia pessoalmente, pois já havia passado algunsdias no referido assentamento. Resolvi, então, fazer minha pesquisa sobre oProjeto "Arte e Cultura" no assentamento Barra do Leme, pesquisando o projeto"Cantos da Mata".

Para Barroso "a cultura é entendida como a maneira de ser de um povo, asubjetividade de uma gente (...), seus imaginários e universos simbólicos"(BARROSO, p.22, 2005). Diante desta definição, minha preocupação inicialera saber até que ponto uma política pública, voltada para o fomento à cultura,que se propõe ao desenvolvimento social-econômico das comunidades, é capazde se relacionar com os imaginários, ou ainda com as dimensões subjetivas dohomem que vive no campo. Será que essa política pública contribuiria paracompreender as singularidades e necessidades culturais dos moradores doassentamento Barra do Leme, indo além de meros objetivos de progresso sociale econômico? Será que é capaz de estimular o desenvolvimento humano semintervir na espontaneidade e nos cotidianos dos assentados, assim como nassuas produções artísticas?

O objetivo geral é refletir sobre as relações entre homens, mulheres, cultura,meio ambiente, Política Pública Cultural em um dado assentamento rural.

5Disponível em Projetociclovida.blogspot.com.

Page 79: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 79

Especificamente observar como o grupo artístico desenvolve práticas desociabilidade, resgate cultural, discussões sobre o meio ambiente, a partir demanifestações artísticas vividas nos seus cotidianos. Os objetivos específicossão: conhecer o grupo artístico e o seu processo de formação; compreender asrelações sociais formadas dentro do grupo, assim como a arte e o cotidiano;identificar as representações dos integrantes sobre a natureza; identificar arepresentação dos moradores do assentamento Barra do Leme e doscomponentes do grupo sobre o trabalho artístico que vem sendo realizado;levantar as expectativas dos indivíduos que atuam no grupo percebendo a relaçãoentre o grupo artístico e a Política Publica promovida pelo INCRA-CE.

2.Percurso teórico metodológicoPara atingir os objetivos da pesquisa, foi necessária, além da pesquisa

bibliográfica, uma pesquisa de campo realizada no assentamento Barra do Leme.Nela foi utilizada a técnica da entrevistas e a trajetória de vida de algunspersonagens6. Durante as entrevistas, realizadas nesse trabalho, refletirei sobrealguns pontos que considero importantes para compreender o trabalho artísticoque realizam. Um deles é a própria representação da arte para os assentados.Através das entrevistas, tentarei compreender como a arte possibilita asexpressões dos sonhos, desejos e necessidades do cotidiano dos integrantes dogrupo artístico, enfim, como através da arte é possível ao assentado simbolizaros seus anseios perante o mundo, ao mesmo tempo contribuindo para fixá-lo emum território.

A primeira etapa da pesquisa foi iniciada e prosperou, mediante processosinesperados que surgiram na ida ao campo e durante as entrevistas com osinformantes. Para Bachelard, "um método excelente termina por perder suafecundidade se não se renova no seu objeto" (BACHELARD, p.95, 1978).

Por isso, a construção do conhecimento sobre o objeto pesquisado foibrotando durante o caminho da investigação, por meio da interação com o lugare com os personagens. De acordo com Geertz (1989), estudar as culturas é

6Utilizarei no decorrer deste trabalho a expressão "personagem" estabelecida a partir daidéia de representação teatral no cotidiano dos indivíduos, presente na obra "ARepresentação do Eu na Vida Cotidiana" de Erving Goffman. O autor emprega a perspectivade representação teatral para tratar do modo como os indivíduos se apresentam a si mesmose as suas atividades às outras pessoas.

Page 80: retratos de assentamentos

80 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

entender o mundo conceitual no qual vivem os sujeitos, é interpretar, buscar ossignificados, observar os comportamentos.

Para começar a pesquisa, fui ao campo com a intenção de adentrar no universodas pessoas que participam do grupo artístico, para assim, compreender seusprocessos, as particularidades do grupo, os mecanismos e regras de convivênciae as representações sobre essas regras. Realizei viagens a fim de conhecer avida, a rotina de um assentamento no sertão cearense, buscando dessa forma,uma integração com o campo da pesquisa.

Gravei entrevistas, almejando saber os motivos, as particularidades que oslevaram às ações praticadas, buscando conhecer e aprofundar as trajetóriassociais dos personagens da pesquisa. Para Elias (1984), a sociedade está numfluxo contínuo de mudanças rápidas ou lentas. Dentro da sociedade ocidental,existem outras sociedades vivendo conjuntamente. Por isso, nosso raciocíniodeve partir das unidades menores que compõem as maiores através de suasinter-relações. É importante investigar as primeiras como são em si, independentesde todas as suas relações com as outras. Segundo Laville e Dionne:

Um pesquisador se dedica a um dado caso, é muitas vezes porque ele temrazões para considerá-lo como típico de um conjunto mais amplo do qual setorna representante, que ele pensa que esse caso pode, por exemplo, ajudara melhor compreender uma situação ou um fenômeno complexo, até mesmoum meio, uma época (LAVILLE, DIONNE, p.56, 1999).

Utilizei o estudo das trajetórias sociais para melhor compreender os processos,os elementos motores que alguns personagens da pesquisa vivenciaram até osurgimento do grupo. Escolhi colocar na pesquisa a trajetória social para podercompreender os motivos que os levaram a realizar esse trabalho de resgate dacultura camponesa, da preservação do meio ambiente através das artes como amúsica, a xilogravura, a contação de história, o teatro e a dança. Os entrevistadosnarraram suas histórias livremente. Essa metodologia tem como objetivo percebermelhor a relação entre os indivíduos e as suas comunidades, dando voz aosindivíduos que através de suas histórias de vida, se tornam sujeitos produtoresda história e da vida social. Para Laville e Dionne:

Obtêm-se assim belas ocasiões de compreender como as pessoasrepresentam esses fenômenos e acontecimentos históricos, sociais ouculturais, como passaram por eles, vividos na indiferença ou na participação

Page 81: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 81

ativa. É uma maneira de recolocar o indivíduo no social e na história: inscritaentre a análise psicológica individual e a dos sistemas socioculturais, a históriade vida permite captar de que modo indivíduos fazem a história e modelamsua sociedade, sendo também modelados por ela (LAVILLE, DIONNE,p.159, 1999).

Em seguida, transcrevi as falas, e em alguns momentos, utilizando-me datécnica da análise do discurso, busquei compreender as falas dos informantesem determinado contexto. De acordo com Luis Henrique Eiterer7 a análise dodiscurso envolve algo mais do que saber o que se fala, envolve saber quem fala,para quem fala, como falam e para que falam, pois o discurso pode ter inúmerasfunções e significados.

A pesquisa de campo provocou a realização de novas leituras, fruto das falasdos informantes. Dessa forma, foi surgindo à necessidade de definir as categoriase os conceitos sobre cultura, mito, imaginário, religiosidade, políticas públicasculturais, além de alguns conceitos relativos ao mundo rural, que serviram comobase da pesquisa.

3.Dados e interpretação da pesquisaContatei numa passagem por Fortaleza Inácio e Ivânia, os fundadores do

grupo reconhecido pelo nome "Caricultura" que ganhou o edital para participardos "Pontos de Cultura". Falei sobre o que eu gostaria de pesquisar e trocamosalgumas idéias. Os dois moram no assentamento "Barra do Leme", sendo osresponsáveis pela mobilização dos trabalhadores rurais na luta pelo direito demorar nas terras onde é hoje o assentamento. Também foram eles, com aparticipação de jovens e crianças moradores da comunidade, os idealizadoresdo Projeto "Cantos da Mata", ganhador do edital de financiamento demanifestações culturais no interior do Ceará, por meio do "Arte e Cultura naReforma Agrária" (projeto administrado pelo INCRA), vinculado ao Programa"Pontos de Cultura" da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará. Inácio eIvânia juntamente com outros moradores do assentamento viajaram do Estadodo Ceará à Argentina de bicicleta, a fim de conhecer, mediante a experiência deoutros agricultores, diversas formas de "autonomia" em relação ao trato com aterra. Trouxeram dos locais que visitaram várias sementes que reproduzem

7Disponível em http://lheiterer.blogspot.com/2008/07/o-mtodo-da-anlise-do-discurso.html.

Page 82: retratos de assentamentos

82 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

conhecidas pelo nome de "sementes crioulas", pois segundo estes agricultores,as sementes que compram no mercado para plantar não se reproduzem.

Ao visitar o assentamento Barra do Leme, Inácio mostrou a vegetação, asmudas e as plantas que trouxeram de outros lugares. Mostraram um lugardevastado por queimadas e que ambos fizeram plantações que floresceram.Apesar de ouvirem os moradores reclamando, afirmando que as plantações nãoiriam vingar, Inácio e Ivânia persistiram e atualmente cultivam diversas plantasque frutificam nesse local. Durante a viagem à Argentina, o casal trouxe sementesde vários lugares, possibilitando a criação de diversas espécies de plantas.

A maioria dos moradores do assentamento "Barra do Leme" não planta, criabovinos e caprinos. Para a criação desses animais queimam a vegetação, a fimde formar pastos. Inácio e Ivânia não querem criar animais, mas plantar para asua subsistência no assentamento. Essa atitude gera conflitos entre os que queremqueimar a vegetação e os que querem cultivar as terras sem queimadas. SegundoIvânia, quando realizam as queimadas o solo fica empobrecido, dificultando oflorescimento das plantas.

No assentamento Barra do Leme encontramos outros pesquisadores quetambém estudavam o grupo artístico "Caricultura". Os integrantes do grupo deteatro conhecido pelo nome de "Nós de Teatro" estavam fazendo a pesquisa, afim de realizar um documentário. De acordo com A., o "Arte e Cultura na ReformaAgrária" (projeto do INCRA-CE) estão formando uma parceria com o "Nós deTeatro" com o objetivo de realizar uma pesquisa. A. revelou que também étécnico do INCRA-CE e faz acompanhamento pedagógico nos assentamentosparticipantes do "Ponto de Cultura", posição favorecedora do contato do "Nósde Teatro" com o "Arte e Cultura na Reforma Agrária".

Fiquei sabendo que escolheram apenas o assentamento "Barra do Leme"para a realização da pesquisa e perguntei o motivo. A8. respondeu:

Escolhemos a Barra do Leme por perceber que eles não se rotulam, porexemplo, pra fazer um texto cada um produz alguma coisa, todo mundo sejunta e faz um texto da peça e em relação à direção, não tem a figura dodiretor, não tem a figura que está lá para orientar. Cada um vai se orientandoe eles tratam muito intimamente a relação com a terra, com a ecologia e agente viu essa diferença em relação aos outros assentamentos.

8Os nomes dos depoentes estão abreviados para garantir o sigilo.

Page 83: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 83

Os integrantes do grupo "Nós de Teatro" realizaram uma reunião, que inicioucom uma dinâmica para descontrair. Em seguida, A. continuou levantando algumasquestões sobre a direção e a função do diretor em um espetáculo teatral. Adinâmica se desenrolou em torno do conceito de "poder" discutido exaustivamenteentre os integrantes do grupo, ou seja, no final da dinâmica percebi que o "diretor"poderia se tornar uma figura de opressão para os participantes da reunião.Acredito que A. tenha pensado nessas questões, pelo fato do grupo não possuirum diretor. Após o término das discussões, A. pediu que todos escrevessem umtexto expressando suas idéias em relação ao que havia sido discutido eentregassem em outro momento. Abaixo, entrevista com M., 19 anos, narrandocomo pensa e como refletiu sobre o que foi discutido na reunião:

Estou no grupo desde o começo. A gente ver isso: todo mundo tem acapacidade de construir alguma coisa e quando fica na figura do diretor nósvamos ser comandado, não vamos poder dar a opinião, nós vamos ficarvetado. Dificilmente a gente escreve um texto para peça. Cada um dá umaidéia e a gente vai encenando e se vai dando certo, vai ficando. Cada umcria. Quando vem a inspiração a pessoa dá a opinião e fica na peça quandoé consenso. A partir de uma discussão a gente forma uma peça e semprefazemos discussões. No começo a gente brincava e começou a surgir adiscussão sobre o porquê alguns brincavam e outros preferiam ficar emfrente a televisão. No nosso grupo as discussões são feitas em rodada ecada um dá a opinião e por menor que seja a pessoa, ela opina, por isso tema participação de cada um na peça.

O grupo Caricultura se mostrou aberto a sugestões, mas resistente quanto àintervenção de pessoas externas que desejassem modificar a estrutura inicial dogrupo, no qual não existe diretor e todos expõem suas sugestões a respeito daformação e construção das produções artísticas.

No grupo artístico do assentamento "Barra do Leme", o fazer artístico estetizaa existência. A arte surge como "forma de vida", permitindo aos indivíduos asustentação de sociabilidades ritualizadas no cotidiano do grupo, integrando acomunidade, fornecendo um "prazer de viver com o outro". As pessoascomungam dos mesmos problemas e das mesmas questões e as vivenciam pormeio das expressões artísticas. Assim, a arte aparece como referência simbólica,concreta e espontânea da realidade, tornando-se meio de transmissão deconhecimentos.

Page 84: retratos de assentamentos

84 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

A arte tem uma faceta revolucionária por não se submeter à racionalidade,podendo expressar-se a partir de metáforas, de símbolos, ou seja, a linguagemartística não tem compromisso com a objetividade. É uma forma de expressãodos sentidos e, dessa maneira, alcança as subjetividades, uma vez que revelaoutras dimensões, produzindo sensações muitas vezes incomunicáveis.

Para Marcuse (1975), o artista devolve à sociedade a ação que ela exercesobre ele e ao abrir outra dimensão, expõe coisas que não são percebidas navida cotidiana. Para o autor, o artista pode capturar toda a amargura e horror,todo desprezo e tristeza da realidade, e converter tudo isso de uma formarevolucionária em beleza, graças à forma artística.

Jung9, por meio de suas investigações, nos diz que a linguagem simbólica daconsciência, não dialoga com o inconsciente. Somente os símbolos são capazesde expressar a linguagem do inconsciente. Os trabalhos artísticos, por outrolado, têm a função de revelar aspectos do comportamento do indivíduo,constituindo uma possibilidade de manifestação do inconsciente coletivo10.

A vontade consciente não pode alcançar uma tal unidade simbólica, umavez que a consciência, nesse caso, é apenas uma das partes. Seu opositor éo inconsciente coletivo, que não compreende a linguagem simbólica daconsciência. (...) Só através do símbolo o inconsciente pode ser atingido eexpresso (JUNG, p.44, 1983).

No depoimento de M., 19 anos, integrante do "Caricultura", observamos aforça simbólica proposta por Jung presente na manifestação artística:

9Carl Gustav Jung (1875-1961) psiquiatra suíço, percebeu que a compreensão da criação desímbolos era importante para o entendimento da natureza humana. Ele então, explorou ascorrespondências entre os símbolos que surgem nas lutas da vida dos indivíduos e asimagens simbólicas religiosas subjacentes, sistemas mitológicos, e mágicos de muitasculturas e eras. "Inconsciente Coletivo", segundo o conceito de psicologia analítica criada pelo psiquiatrasuíço Carl Gustav Jung, é a camada mais profunda da psique humana. Ele é constituído deimagens e idéias análogas que foram herdados da humanidade e são comuns a todos osseres humanos. A existência do inconsciente coletivo não é derivada de experiênciasindividuais, tal como o inconsciente pessoal, trabalhado por Freud, embora precise deexperiências reais para poder se manifestar. Tais fatores funcionais do inconsciente coletivoforam chamados por Jung de arquétipos.

Page 85: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 85

Quando estou apresentando é mágico, muitas pessoas disseram que eu metransformo, sou outro. Quando pinto o rosto com a maquiagem, acho mágico,me transformo nem eu entendo o que acontece. Eu não consigo ser do jeitoque estou aqui para do jeito que fico quando estou mascarado, não consigoexplicar.

Nas trajetórias sociais do grupo, a arte também aparece como umanecessidade de expressão objetivando a resistência da cultura no campo. Pergunteisobre o envolvimento dos adultos do grupo com partidos políticos, movimentossociais ou movimentos religiosos e a resposta foi a de que o único movimento doqual participam é o de resistência na terra. Observei em minhas investigações adisposição deles para o diálogo com tendências diversas, mas resistem quantoàs intervenções que os possam institucionalizar, ou seja, a interferências contráriasà forma espontânea com que se organizam e atuam. Para eles, autonomia estásempre na pauta do dia de suas atividades. Essa forma de vivência é que mostraos processos de luta que levam a enxergá-los como um grupo de resistência nocampo.

O objetivo do grupo "Caricultura" é possibilitar a união e a luta dostrabalhadores e trabalhadoras do campo em relação aos seus cotidianos(principalmente em momentos difíceis como a seca) e ao distanciamento dassuas tradições, assim como a preservação do meio ambiente. Como esclareceInácio:

Essas formas de expressão cultural são formas que a gente tem para veicularum pensamento com atuação, uma atuação de luta. As formas de expressãoartísticas, a gente já tinha a literatura de cordel, xilogravura, um pouco demúsica. O que a gente exercitou pouco foi o teatro. É mais a música, acanção, a literatura de cordel. É interessante que essas formas vão surgirnos momentos difíceis de resistência. (...) Você vai encontrar essefortalecimento nas formas de expressão lúdica. Você não sabe como falar,então surge peças de teatro.

Para Bachelard, "tudo começa somente para aquele que sabe serespontaneamente espontâneo" (BACHELARD, p.147, 1991) e foi de formaespontânea, por meio das brincadeiras, do estímulo de sensações, isto é, a partirda capacidade de aguçar os sentidos para perceber as emoções que nasceu avontade de fazer teatro. Como Inácio expõe, "a arte não é propriedade de uma

Page 86: retratos de assentamentos

86 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

indústria cultural, ela brota a partir de um estímulo, de uma animação". A palavra"animação" no seu sentido etimológico significa ato ou efeito de animar, dar vida,infundir, ânimo, valor e energia. Tem origem na palavra latina anima que significaprincípio vital, sopro, alma11. Portanto, "a arte de animar" possibilitou "o partodos artistas". A arte aparece como necessidade de expressão, a partir dapercepção do cotidiano. Como afirma Inácio, um dos depoentes:

As músicas era uma forma que a gente utilizava pra animar. Então imaginaessas pessoas são carentes de tudo. Eles são famintos não só de pão, mastambém de cultura, de expressão. Elas querem se expressar e nisso elasforam muito despossuídas, despropriadas das suas formas naturais de ser.Então ela vai se reencontrando, se revalorizando.

Segundo Barroso (2005), na metade do século XX com a inserção dos meiosde transporte e comunicação do campo as manifestações artísticas camponesasadentraram no universo do mercado capitalista que os colocou sob exigências,que muitas vezes, distorcia a cultura no campo, imputando-lhe valores e gostosdiferentes ao seu meio cultural. Como narra Inácio:

Quando o capitalismo entrou no campo ele criou especialista, ele criou oartista, ele criou a estrela e não existe estrela, entende? Todo mundo éestrela, todo mundo é capaz. Cada um que tava participando daquela reuniãofez um texto digno de uma música que não perde pra nenhuma das eruditas,entende? Pessoas do campo, crianças, adolescentes, não perde.

Santos (2000) expressa que nos lugares geográficos se estabelecem forçascontraditórias: àqueles que visam o estabelecimento da cultura de massa e osque são afetados e desejam uma situação diferente:

É que no local tem-se a obediência e a revolta. Há sempre as duas coisas.Evidente que há a cultura de massa, que está presente em toda parte, masexiste também a cultura popular que renasce a cada momento, porque háuma produção de pobreza permanente. (...). O lugar geográfico é também olugar filosófico da descoberta, porque nele se batem forças contraditórias.

11Disponível em http://brincarte.blogspot.com/2004/11/palavra-animao-no-seu-sentido.html.

Page 87: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 87

Há, de um lado, os que buscam o lucro a todo custo e se apropriam dospontos mais vantajosos e há todos os demais, mais ou menos afetados poruma situação que desejam modificar (SANTOS, p.63-64, 2000).

De Certeau (1990) cita o questionado "sucesso" na conquista que oscolonizadores espanhóis tiveram perante os indígenas, uma vez que os mesmosrejeitavam e subvertiam as leis, os rituais, por meio de práticas cotidianas quemodificavam a maneira de usar o sistema da qual não podiam fugir. Para o autor,essas "maneiras de fazer" constituem uma "reapropriação" dos usuários do sistema,do espaço organizado pela produção sócio-cultural. São trilhas para impor outrosdesejos que não são determinados pelos sistemas, ou seja, o grupo "Caricultura"não fica embotado pela cultura de massa12, mas modifica seu espaço colocandoo seu desejo, a sua vontade de fazer algo diferente e utiliza a arte para isso.

Quando fui ao assentamento, pedi a Inácio os textos da peça do "Caricultura,"Inácio falou que ainda não as tinha escrito, pois cada integrante possuía a fala dapeça decorada e criada por eles nos ensaios. Na peça, eles falam da degradaçãodo meio ambiente pela mão humana, dos ventos, da água, do metal, do lixo,entre outras coisas. Lembro, no entanto, de um refrão da peça que fala: "arte,luta e cultura para cuspir na estrutura". Nesse momento, os participantes tomamuma posição claramente política13, ao se colocarem contra a estrutura vigente,ficando claro que eles não concordam com o que está sendo feito com o meioambiente. A. compara a forma teatral do "Caricultura" ao "Teatro do Oprimido"de Augusto Boal14, como podemos observar:

12Chama-se "cultura de massa", toda cultura produzida para a população em geral, veiculadapelos meios de comunicação de massa. Cultura de massa é toda manifestação culturalproduzida para a população, para o povo.13Entendendo política como forma de atividade humana. O poder político é o poder do homemsobre outro homem, descartados outros exercícios de poder, sobre a natureza ou os animais.14Augusto Pinto Boal (Rio de Janeiro, 16 de março de 1931 – Rio de Janeiro, 2 de Maio de2009) foi diretor de teatro, dramaturgo e ensaísta brasileiro, uma das grandes figuras doteatro contemporâneo internacional. Fundador do Teatro do Oprimido, que alia o teatro àação social, suas técnicas e práticas difundiram-se pelo mundo, notadamente nas trêsúltimas décadas do século XX, sendo empregadas não só por aqueles que entendem oteatro como instrumento de emancipação política mas também nas áreas de educação,saúde mental e no sistema prisional. Palavras de Boal: "O teatro do oprimido é o teatro nosentido mais arcaico do termo, todos os seres humanos são atores – porque atuam – eespectadores – porque observam. Somos todos espec-atores".

Page 88: retratos de assentamentos

88 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

A gente tá atrelando isso com o que a gente viu no Caricultura ao teatro dooprimido do Boal. O grupo Caricultura parte de uma história de autonomiaimensa.(...) Eu faço acompanhamento pedagógico nos grupos, é um olharmais técnico, um olhar diferenciado. O olhar diferenciado que vejo é essavisão de esquerda, essa visão libertária.

O "Caricultura" não se vincula a partidos políticos ou grupos religiosos e nemdemonstra interesse em seguir os parâmetros de qualquer escola tradicional deteatro. Em sua filosofia, encontramos influências de movimentos libertários,anarquistas, com o objetivo de não compartilhar os processos hierárquicos dosistema capitalista de produção. Essa postura pode ter sido herança de lutastravadas pela conquista da terra e no contato em suas caminhadas e manifestações,mas, também pela vivência nas capitais, com as mais diversas tendências dopensamento libertário. A maioria dos integrantes do "Caricultura" tem uma maneiradiferenciada de enxergar as vivências humanas e o meio ambiente, se comparadosa outros moradores do assentamento. Perguntei a M. 19 anos, participante dogrupo, como o "Caricultura" influenciou a sua vida e a resposta foi:

Eu era de uma família tradicional do interior, uma família machista,preconceituosa e (...) com nossas discussões eu me acho uma pessoa commenos preconceito. (...) Tem núcleos de assentamento que não tem a mesmadefesa quanto à ecologia. A gente não concorda com o humor preconceituosode alguns grupos de assentamentos. É a visão que é diferente. Aqui aspessoas têm uma mesma visão. No início do assentamento existiam famíliasque discutiam essa questão do poder e por mais que tenham entrado outrasfamílias que não têm esse mesmo pensamento, mas (...) o grupo adotouesse pensamento. O nosso teatro não é um teatro para formar atores, umteatro profissional. Acredito que em outros assentamentos querem criar atorespara ir para mídia e a gente não tem esse pensamento. Pensamos a questãoecológica desde o início do grupo. Por exemplo, hoje tem famílias que nãoqueima e tão fazendo agro - ecologia e a peça da gente ta voltada em cimadisso e a gente quer repassar isso para quem poder ver e ouvir. Dentrodesse assentamento tem pessoas machistas, preconceituosas e que não ligapra natureza e até mesmo no grupo existem essas pessoas. O grupo nãoveta ninguém, o grupo é aberto.

M. outra integrante, conta como o grupo "Caricultura" influenciou seus

Page 89: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 89

princípios e no modo como direciona sua vida:

Hoje não estou mais na casa da minha mãe, estou na minha casa e tentoconstruir minha vida seguindo esses princípios da agro ecologia e eu comeceia amadurecer isso no caricultura (...) venho com o caricultura abrindo essadiscussão e trazendo isso para minha vida (...) A primeira coisa é não queimare construir uma boa relação com a terra (...). É isso que me baseio, euplanto, eu não queimo, eu não destruo,eu só tiro o necessário.

Percebi que alguns jovens do "Caricultura", na faixa etária entre quinze evinte e dois anos, demonstram ter, no contexto de suas vidas cotidianas, umengajamento e um discurso revelador do interesse por questões planetárias comoo cuidado com a natureza, com a terra, a luta contra as queimadas, desmatamentoirregular, poluição etc. Em seus depoimentos, percebi que seus anseios giramem torno da realidade que os cercam. Alguns deles participam das assembléiasgerais para discutirem as atividades que serão realizadas no assentamento; outrosse encarregam de divulgar as práticas ecológicas e artísticas na "Barra do Leme".O grupo "Caricultura" aparece aqui como forte elemento condutor das açõesdessa juventude, sendo uma importante peça de sociabilidade do assentamento.

Antes de realizar a entrevista com Inácio e Ivânia e conhecer o grupo"Caricultura" no assentamento "Barra do Leme", fui ao INCRA-CE conhecer oprojeto "Arte e Cultura na Reforma Agrária" nos assentamentos rurais. Converseicom a coordenadora do projeto, Silma Magalhães, que narrou o percurso dedesenvolvimento do trabalho voltado para a cultura nos assentamentos rurais.Apesar de ter tentado em 1994, 1995 e 1996 levantar um mapeamento dasexpressões culturais no campo, somente em 2003, no governo Lula, quandoEduardo Barbosa assumiu a superintendência do INCRA-CE, é que se conseguiuapoio para levar adiante esse projeto.

Percebendo a cultura como fonte de desenvolvimento, firmaram convêniocom o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE-CE) e dessa forma, realizaram capacitação dos técnicos e dos assentados,produziram um mapeamento das manifestações culturais e organizaram umseminário estadual. Contavam com setenta integrantes nesse seminário, ampliadopara cento e setenta e oito. Número, que segundo Silma Magalhães, mostrou ointeresse das pessoas pelo tema da cultura. Nesses debates estavam presentes aSecretaria da Cultura do Ceará e o Banco do Nordeste. A partir do mapeamento,levantaram-se questões sobre a cultura popular, juventude e educação. A partir

Page 90: retratos de assentamentos

90 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

daí, começaram a definir o trabalho, pensando em fazer pontes entre as políticasculturais e os grupos culturais.

De acordo com Silma Magalhães, as propostas culturais foram surgindo deforma espontânea, isto é, foram sugeridas pelos próprios assentados etrabalhadas coletivamente. Juntamente com o "Programa Valorização das CulturasRegionais", um programa da (SECULT, 2003 a 2006)15, se criou uma linha dedifusão das criações artísticas dentro dos assentamentos. Com o desenvolvimentodo trabalho, se realizaram mais de cem apresentações no interior do Ceará, noRio Grande do Sul durante a Conferência Nacional de Desenvolvimento Cultural,em São Paulo e Rio de Janeiro. Foi publicado, ainda, o livro de Oswald Barroso16,"Arte e Cultura na Construção da Reforma Agrária"; realizada uma exposiçãofotográfica conhecida por "Uma Terra que Jorra Leite e Mel"; foi feito umdocumentário com Rosenberg Cariry17, participação do ano de comemoraçõesBrasil e França denominado "Terra e Cultura na Construção da Cidadania",articulado com Organizações não Governamentais (ONG'S) e a UniversidadeFederal do Ceará (UFC).

Silma Magalhães revela que a dimensão econômica não é a questão

15Na Secretaria Estadual da Cultura do Ceará, na gestão de 2003 a 2006, criou-se o PlanoEstadual de Cultura do Ceará que tinha como meta a Valorização das Culturas Regionais, ouseja, esta meta visava uma aproximação com os municípios cearenses, buscando umadescentralização ao acesso às formas de fomento a cultura. Segundo Leitão: Com a criaçãode uma política de editais de fomento às artes (...) demos o primeiro passo para a inclusão,pois garantimos em lei que pelo menos 50% dos recursos do Fundo Estadual de Culturaseriam voltados ao apoio de projetos advindos do interior do Estado. (LEITÃO, 2009,p.550). Nesta gestão, foram construídas redes que possibilitavam o diálogo com artistas egestores de equipamentos e outros profissionais da cultura no interior.16Oswald Barroso: poeta, jornalista, ator, folclorista e teatrólogo. Tanto na atividade artística(poesia e teatro), quanto na atividade jornalística (particularmente, como repórter do jornalO Povo), e na atividade acadêmica e de pesquisa, tem trabalhado sobre temas relacionadosà cultura popular cearense, notadamente, aos movimentos sociais, à religiosidade, aoartesanato, às festas e aos folguedos.17Filósofo de formação, Rosemberg Cariry começou sua carreira cinematográfica em 1975com documentários de curta metragem sobre artistas populares e manifestações artísticasdo Ceará e do Nordeste. Na década de 80, realizou os seus primeiros filmes. Seus principaisfilmes de Longa metragem são: A Irmandade da Santa Cruz do Deserto (1986); A Saga doGuerreiro Alumioso (1993); Corisco e Dadá (1995). Um traço marcante da obra de RosembergCariry é a busca sempre renovada das fontes e dos encontros na cultura do Nordeste doBrasil.

Page 91: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 91

fundamental, ou seja, a intenção da proposta não é fazer os assentados ganharemdinheiro por meio das suas manifestações artísticas. O objetivo, discutidocoletivamente entre os assentados, é trabalhar a auto-estima, a coesão social, aeducação e a sociabilidade dos jovens. Para ela, o processo de desenvolvimentodeve-se pautar nos traços culturais da comunidade e a partir daí, é que deve serpensado o desenvolvimento local.

Para Turino, os "Pontos de Cultura" é um aproximador de iniciativas a açõese só se concretiza quando articulado em rede. O "Cultura Viva" é concebidocomo uma rede orgânica que tem como base de articulação o "Ponto de Cultura".Turino cita o exemplo do "Homem Vitruviano" de Leonardo da Vinci paraexemplificar essa relação, ou seja, o "Ponto de Cultura" é a base e o "CulturaViva" é a alavanca que impulsiona a integração entre os sujeitos produtores decultura em diversas localidades do Brasil. Um dos objetivos dessa política públicaé abrir espaço para os indivíduos participarem de forma ativa e formuladora, apartir daí, criar novas concepções de desenvolvimento social fundamentada noprotagonismo social.

São sete assentamentos envolvidos no projeto "Pontos de Cultura",recebedores da quantia de R$ 180.000,00 (cento e oitenta mil reais). Há ainda,previsão da disponibilização de um Kit multimídia, internet e divulgação dasmanifestações artísticas da comunidade. Segundo Silma Magalhães, a autonomiaé um dos objetivos buscado pelo projeto, por isso, o intuito é trabalharconjuntamente, mas buscando a autonomia dos assentados. Estão previstos cursosde desenvolvimento cultural no assentamento, a fim de qualificar tecnicamenteagentes de desenvolvimento cultural, qualificação essa, promovida pelaUniversidade Federal do Ceará (UFC) e Instituto Federal de EducaçãoTecnológica (IFET).

Inácio revela que o "Ponto de Cultura" traz muitas obrigações e burocraciasque eles não estão acostumados a administrar. Por exemplo, as prestações decontas dos gastos com o projeto e a administração de uma determinada quantiade dinheiro (duzentos mil reais), principalmente, porque a intenção inicial dogrupo não seria ganhar dinheiro e nem tampouco administrá-lo. O objetivo étrazer uma reflexão a respeito da resistência da cultura tradicional camponesa,perante os valores do meio urbano e participar dos eventos sobre cultura paradivulgar suas propostas ecológicas de preservação do ambiente.

Nas falas de Inácio, Ivânia e Silma Magalhães, aparecem repetidas vezes apalavra "autonomia". Observei que essa palavra é pronunciada a partir de sentidosdiferentes. Para Silma Magalhães, "autonomia" está relacionada ao

Page 92: retratos de assentamentos

92 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

desenvolvimento econômico do assentamento; com a capacitação dos assentadospara que os mesmos gerenciem seus negócios e problemas provindos das suasfamílias e da comunidade, obtendo melhorias econômicas, desenvolvendo pormeio das expressões culturais, a sua auto-estima.

Silma Magalhães enxerga o trabalho de qualificação técnica de agente dedesenvolvimento cultural, como um meio de possibilitar o aparecimento de pessoas"capacitadas", para animar através das manifestações artísticas e culturais, osassentados, fazendo com que os mesmos desenvolvam a dimensão cultural desuas vidas no assentamento.

O grupo "Caricultura" foi construído por meio de vivências espontâneas ecotidianas que envolviam amizades, sentimentos, diversões e também discussõesdos problemas e questões provindas do dia-a-dia. Todos esses episódiosanimavam e motivavam as crianças, jovens e adultos a participar e criar dentrodo grupo. As condutas dos indivíduos foram construídas em cima de umaaspiração do mundo no qual vivem e estão impregnadas por valores e convicçõesecológicas construídas ao longo de sete anos. A vinda de pessoas tentandoensinar ao grupo a "arte de animar", não é bem vista pelos integrantes do"Caricultura", pois de acordo com os integrantes do grupo, "não precisa deagentes culturais ensinando a arte de animar", uma vez que a animação e asmanifestações culturais vêm ocorrendo ao longo desses sete anos. Autonomiapara alguns integrantes do "Caricultura" representa plantar para subsistênciaindepende do mercado e do sistema capitalista. A autonomia também estárelacionada ao modo como organizam o grupo, onde todos participam naconstrução das peças teatrais e não existe a figura do diretor.

4.ConclusãoOs integrantes poderiam permanecer preocupados apenas com questões

individuais, mas, ao contrário, percebo uma busca de integração não só com oassentamento, mas também com o mundo. Razão que leva alguns integrantes avisitarem muitos lugares, buscando contatos com pessoas, a fim de repartir eaprender. Atitude que mostra uma disposição nômade, pois alguns integrantesdo grupo não se comportam como árvores que estabelece um ponto e ali sefixam assumindo uma atitude sedentária, mas comportam-se como rizomas quepercorrem espaços, assumindo variadas formas, vencendo obstáculos. De acordocom Deleuze e Guattari, "um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas,organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutassociais" (DELEUZE, GUATTARI, p.14, 2009). Alguns integrantes do grupo

Page 93: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 93

"Caricultura" buscam "linhas de fuga" dentro do que está posto pela sociedade,por meio de suas "resistências" mudam de natureza se conectando a outras formasde ser e estar no mundo.

As experiências deste grupo permitem microprocessos revolucionários queocasionam mudanças no dia a dia dos moradores do sertão. Com pequenasações autônomas, esses indivíduos burlam formas de controle social que massificae padroniza comportamentos, apresentando seus próprios desejos esubjetividades. A subjetividade aqui compreendida não é concebida a partir dapsicanálise tradicional que se baseia numa estrutura fixa do inconsciente, mas naconcepção trazida por Guattari, onde o inconsciente aparece como processuale a subjetividade produzida por instâncias individuais, coletivas e institucionais.Nesse entendimento de subjetividade, os sujeitos estão constantemente sendoconstruídos e ao mesmo tempo construindo a realidade circundante.

A experiência artística realizada no referido assentamento, aponta para umacaracterística dos sujeitos desta pesquisa relacionada com a necessidade dereinventar seus cotidianos, independente da produção artística vigente nos meiosurbanos. Desse modo, podemos compreender esses sujeitos em suas experiênciascomo operadores de suas próprias vivências em suas "linhas de fuga" (DELEUZE,GUATTARI, 2009), uma vez que são portadores de processos criativos egrávidos de novas possibilidades de ser/estar no mundo.

O grupo "Caricultura" vem durante sete anos, levantando questões relacionadasà agroecologia como as queimadas, os agrotóxicos, os transgênicos, etc. Aproposta do grupo artístico é estabelecer uma boa relação entre os elementosda natureza e os agricultores, principalmente, porque os componentes do"Caricultura" têm um histórico familiar de constante contato com a terra. Talvez,por isso, tenham conseguido enxergar um sentido de vida voltado para o cultivoda terra, ao mesmo tempo do cultivo das solidariedades. Através da vida comoforma de arte, o "Caricultura" vai além da mera solução de problemas imediatos,mas desenvolvem indagações sobre o ser/estar dos seres humanos no mundo.

Referências

BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade: ensaio sobrea imaginação das Forças. 1a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

__________________. O Novo Espírito Científico. In: Os Pensadores.São Paulo: Abril Cultural, 1978.

Page 94: retratos de assentamentos

94 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

BARROSO, Oswald. A Arte e a Cultura na Construção da ReformaAgrária. Fortaleza: INCRA-CE, 2005.

CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. Petrópolis:Vozes, 1990.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofênia,v.I, São Paulo: Editora 34, 2009.

ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. São Paulo: LCT, 1989.

GOFFMAN, Erving. A Representação do Eu na Vida Cotidiana.Petrópolis: Vozes, 2008.

LAVILLE, Christian; DIONNE, Jean. A Construção do Saber: Manual deMetodologia da Pesquisa em Ciências Humanas. Porto Alegre/BeloHorizonte: Artmed/UFMG, 1999.

MARCUSE, Herbert. Eros e a Civilização: uma interpretação filosófica dopensamento de Freud. 6a Ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.

SANTOS, Milton. Território e Sociedade: entrevista com Milton Santos.São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000.

TURINO, Célio. Ponto de Cultura: O Brasil de Baixo para Cima. SãoPaulo: Anita Garibalde, 2009.

Page 95: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 95

O ASSENTAMENTO BELA VISTA DOCHIBARRO EM TEMPOSANTERIORES: VIDA E TRABALHO NAUSINA TAMOIO

Ângela Cristina Ribeiro Caires1

1Doutora em Sociologia pela UNESP/Araraquara e docente das Faculdades Integradas deJaú e Faculdade do Interior Paulista (Barra Bonita).

Resumo: A história do Assentamento Bela Vista do Chibarro passanecessariamente pela história da Usina Tamoio, antiga proprietária das terras nasquais este assentamento se encontra. Partindo deste dado fundamental, o objetivodeste artigo é resgatar a história da Usina Tamoio, do grupo social constituído porseus trabalhadores e moradores, e por conseguinte do Assentamento Bela Vistado Chibarro em tempos anteriores. A matéria-prima para a recuperação dessahistória são as experiências dos trabalhadores e moradores. Sujeitos que viveramtempos cruciais de suas existências naquelas terras. Suas lembranças erepresentações são o fio condutor que permitem re-tecer uma história rica emfatos, acontecimentos, esquemas vividos e compartilhados. A ênfase da análiserecai sobre o período Morganti que se estende de 1917 a abril de 1969 (data daaquisição da usina pela família Morganti até sua venda para o grupo Silva Gordo).Nesse período, o Império Tamoio é reconstituído em seus aspectos objetivos esubjetivos, por meio do complexo feixe de relações sociais e atividades quecercavam aquele mundo e a vida das pessoas que lá viviam e trabalhavam. Assim,com os olhos no passado, busca-se compreender um pouco do presente.

Palavras-chave: Assentamento Bela Vista do Chibarro; Usina Tamoio; RelaçõesSociais.

Abstract: The history of Bela Vista do Chibarro Settlement encompasses thehistory of Tamoio Sugarcane Mill, the former landowner of this land, wherethe settlement is currently located. On the basis of this fundamental fact, the

Page 96: retratos de assentamentos

96 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

purpose of this paper is to trace the history of Tamoio Mill, including thesocial group constituted by workers and residents, and thus the early days ofBela Vista do Chibarro Settlement. The workers and residents' experiencesexplored in the survey are key factors used to recover historical data. Thechallenging times that these individuals have faced in those lands have beentaken into account in this study. Therefore, their memories and representationsof past events served as tools for reconstructing their history with richdescriptions, full of interesting facts, events, and shared experiences. TheMorganti era, from 1917 to 1969 (April), corresponding to the interval elapsingbetween the acquisition of the sugarcane mill by the Morganti Family and itssale to Silva Gordo Group, was highlighted in this investigation. During thisperiod, the Tamoio Empire is reconstituted with respect to its objective andsubjective aspects, through the complex social processes involving socialrelations and social practices of everyday life in their physical and socialenvironments. Thus, in the light of these data, this study seeks to betterunderstand the present.

Keywords: Bela Vista do Chibarro Settlement; Tamoio Mill; Social Relations.

IntroduçãoO assentamento Bela Vista do Chibarro tem sido objeto de vários estudos

preocupados com a luta pela terra. Sem dúvida, estes estudos oferecemimportante contribuição para o entendimento da realidade recente desteassentamento. Os pesquisadores ao tratarem da temática mencionam a sua origema partir de um processo de crise vivido pela Usina Tamoio, antiga proprietáriadas terras onde está instalado. Este registro é fundamental.

A história do Assentamento Bela Vista do Chibarro, do espaço no qual seencontra, comporta, no entanto, outro tempo. Tempo em que aquelas terraspertenciam à Usina Tamoio. Tempo marcado na memória e na vida de muitossujeitos: homens e mulheres, que trabalharam, moraram e viveram nessa usina.

Se o Assentamento Bela Vista do Chibarro é hoje um dos mais importantesdo estado de São Paulo, com uma estrutura que o diferencia de outros projetosdo tipo, isso resulta da herança obtida da Usina Tamoio. Hoje, novaspersonagens habitam, trabalham e vivem no lugar. Uma nova história foi e estásendo produzida. Esta história, contudo, não se fez e não se faz no vazio, masem um espaço determinado, construído por sujeitos concretos que viveram alitempos cruciais de suas existências. Se este assentamento é hoje o que é,

Page 97: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 97

existe na sua história outra história. História que marcou corpos e almas. Históriade trabalho, de vida, de lutas... Que se funde e se confunde com a história daempresa – a Usina Tamoio.

Assim, compreender o assentamento Bela Vista do Chibarro nos dias atuaisimplica em voltar no tempo, em um passado não muito distante e buscar nossujeitos que trabalharam, moraram e viveram na Usina Tamoio, em suas memórias,as suas experiências. Experiências em um tempo, recordações de uma vida.

Este é o objetivo deste trabalho. Resgatar um pouco da história da UsinaTamoio, e por conseqüência do Assentamento Bela Vista do Chibarro em temposanteriores. O esforço de análise aqui empreendido compreende uma tentativade restabelecer o vínculo entre passado e presente. Com o olhar no passado,procura-se compreender a realidade da Usina Tamoio e do Assentamento BelaVista do Chibarro hoje. Para isso buscou-se nos sujeitos, em suas recordaçõese representações a matéria-prima que permitiu re-tecer, com os fios da memória,um pouco de uma história que compreende tempos diversos. Ligados entre si,mas que carregam marcas distintas.

Este trabalho trata, portanto, de dois tempos: o tempo em que a Usina Tamoioesteve sob o controle acionário da família Morganti, de 1917 a março de 1969,e o tempo que ficou conhecido com o período Silva Gordo, de março de 1969a meados de 1982. O tempo Morganti, todavia, compreende duas fases: aprimeira situa-se entre a aquisição da usina por Pedro Morganti em 1917 e vaiaté agosto de 1941, quando ocorre o seu falecimento e a segunda vai de agostode 1941 até março de 1969, período em que a administração da empresa ficousob o comando dos filhos de Pedro Morganti, especialmente na pessoa do senhorHélio Morganti. O tempo Morganti, em suas duas fases, é privilegiado na análise.É nesse período, mais precisamente até a década de 50, que é construído oImpério Tamoio.

Desta forma, procura-se compreender a constituição desse Império em seusaspectos objetivos e subjetivos, resgatar a história por meio do complexo feixede relações e atividades que cercavam aquele mundo e a vida das pessoas quelá viviam e trabalhavam, recuperar fatos e acontecimentos, esquemas vividos ecompartilhados.

Para tanto, empreendeu-se uma pesquisa de caráter qualitativo que incluiufontes diretas e indiretas, além de um sistemático levantamento bibliográfico.Essa pesquisa realizada no período de 1988 a 1993, por ocasião do cursode mestrado em Sociologia, contou com 27 (vinte e sete) entrevistas semi-estruturadas, sendo 26 (vinte e seis) com trabalhadores e moradores, que

Page 98: retratos de assentamentos

98 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

ocupavam níveis hierárquicos diferentes na estrutura produtiva e administrativada usina e 1 (uma) com o senhor Hélio Morganti, antigo usineiro. Todas asentrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente tiveram os seusconteúdos analisados. Além disso, a pesquisa incluiu análise de documentos dausina, levantamento de processos trabalhistas em arquivo da Justiça do Trabalho,consulta a publicações da Revista Umuarama, órgão de divulgação interna dausina e análise de material jornalístico, particularmente publicações do períododa greve da empresa em 1982.

A porta de entrada para a pesquisa foi um conjunto de entrevistas com umgrupo de antigos trabalhadores e moradores da Seção Bela Vista, na maiorparte antigos colonos de cana, que ao sair da usina no início dos anos 60,fixaram moradia em um bairro periférico na cidade de Araraquara/SP, onde apesquisadora também morava. Nesse momento, o objetivo era investigar otrabalho no sistema de colonato. A partir desse primeiro contato, a fortevinculação com o antigo local de moradia manifestada pelos trabalhadores,com constantes retornos em eventos que lá aconteciam: bailes, festas entreoutros, chamou a atenção. Assim, a pesquisa foi redefinida, especialmente asentrevistas, quando procurou-se indagar exatamente sobre o trabalho e a vidanaquele local (Seção Bela Vista) e na Usina Tamoio como um todo. Asdescrições da usina e da seção Bela Vista como um lugar privilegiado paratrabalhar, morar e viver apareceu nos discursos desses antigos trabalhadorese moradores, enfaticamente. A vida entre muito trabalho era descrita como umtempo bom. Depoimentos emocionados indicavam saudades e um subjacentesentimento de perda de um tempo de sociabilidade e solidariedadeirrecuperáveis. A partir disso, e em função da proposta de estudo, a pesquisa,em particular as entrevistas, procuraram indagar sobre as representações queos trabalhadores e moradores faziam a respeito de uma realidade próxima doseu cotidiano. Suas experiências de vida e de trabalho, os momentos vividos,suas lembranças foram enfocadas sem dicotomizar objetividades/subjetividades. Os aspectos retidos pelos trabalhadores e moradores, aslembranças do passado como um tempo das festas, dos bailes, da fartura, dofutebol, das relações de vizinhança cordiais, enfim da alegria reinante no interiorda usina continuaram a aparecer, caracterizando aquele espaço como um lugarprivilegiado para se trabalhar, morar e viver – um "paraíso".

Percurso TeóricoNas descrições dos trabalhadores e moradores, o mundo da Usina Tamoio

Page 99: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 99

apareceu como um mundo no qual vida e trabalho se confundiam. Na lutacotidiana, tempo de vida e de trabalho eram momentos indissociáveis. Era emtorno do mundo do trabalho que tudo girava: família, lazer, sociabilidade,representações.

Ao serem questionados sobre o trabalhar e viver na Usina Tamoio,ostrabalhadores e moradores enfatizavam a complexa rede de relações sociaissubjacentes à produção do açúcar, relações estas produzidas e reproduzidasnão só no espaço de trabalho, mas também no espaço da moradia, espaçoreprodutivo, caracterizando a Usina Tamoio como um lugar privilegiado derelações, de vida e de trabalho. Isso apontou para um tipo de dominaçãoespecífica interiorizada e legitimada pelos sujeitos. Esta dominação se apoiavanão apenas em operadores materiais enfaticamente destacados, mas tambémem aspectos simbólicos.

A partir dessa observação, a interpretação desse mundo e da suacomplexidade impôs desafios analíticos. Como dissecar as relações constitutivasdesse Império do Açúcar sem cair em categorias estáticas? Como compreenderas formas de ser de um sistema de dominação específico a partir das experiênciasvividas pelos sujeitos? Como entender as relações de sujeição e as perspectivasde contestação em um terreno que, embora descrito como um paraíso, revelavamomentos de resistência, portanto, de contradição e de luta?

Na busca de compreensão da complexidade desse mundo, da ampla redede relações sociais que lá eram produzidas e reproduzidas procurou-se nãoamordaçar o objeto em rígidos esquemas teóricos. Tentou-se dirigir um olharsociológico para a tessitura das relações constitutivas dessa usina a partir, masnão exclusivamente, de todo um trabalho de investigação voltado à análise dosolhares e representações dos seus trabalhadores e moradores, que expressavamo tempo trabalhado e vivido na Usina Tamoio como um tempo bom. Assiminvestigou-se sobre formas de dominação como o sistema fábrica-vila operária,para o que os trabalhos de Blay (1980), Leite Lopes (1978; 1979; 1986; 1988),Alvim (1984) foram de extrema valia. O entendimento da questão do poder nasorganizações também foi de extrema importância, tendo sido utilizado para issoparticularmente a obra de Pagés et al. (1990).

A percepção da existência de um sistema de dominação específico remeteuaos estudos de Weber (1969), mas especialmente de Bourdieu (1974; 1989)para quem a dominação não é conseqüência de uma vontade única e central,mas comandada dos dois lados. A respeito da contribuição que dão os agentesao exercício da dominação Bourdieu assim se pronuncia:

Page 100: retratos de assentamentos

100 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Ao atribuirmos, como faz o mau funcionalismo, os efeitos de dominação auma vontade única e central, ficamos impossibilitados de apreender acontribuição própria que os agentes (incluindo os dominados) dão, querqueiram quer não, quer saibam quer não, para o exercício da dominação pormeio da relação que se estabelece entre as suas atitudes, ligadas às suascondições sociais de produção, e às expectativas e interesses inscritos nassuas posições no seio desses campos de luta, designados de formaestenográfica por palavras como Estado, Igreja ou Partido. A submissão acertos fins, significações ou interesses transcendentes, quer dizer, superiorese exteriores aos interesses individuais, raramente é efeito de uma imposiçãoimperativa e de uma submissão consciente. É assim, porque os fins ditosobjectivos, que só se revelam, no melhor dos casos, tarde demais e do exterior,nunca são apreendidos e postos como tais de modo imediato, na própriaprática, por nenhum dos agentes, nem mesmo pelos mais interessados –aqueles que teriam mais interesse em fazer deles os fins conscientes – querdizer, os agentes dominantes. A subordinação do conjunto das práticas auma mesma intenção objectiva, espécie de orquestração sem maestro, sóse realiza mediante a concordância que se instaura, como por fora e paraalém dos agentes, entre o que estes são e o que fazem, entre a sua 'vocação'subjectiva (aquilo para que se sentem 'feitos') e a sua 'missão' objectiva(aquilo que deles se espera), entre o que a história fez deles e o que ela lhespede para fazer, concordância essa que pode exprimir-se no sentimento deestar bem 'no seu lugar', de fazer o que se tem que fazer, e de fazer comgosto - no sentido objectivo - ou na convicção resignada de não poder fazeroutra coisa, o que também é uma maneira menos feliz certamente, de sesentir destinado para o que se faz (BOURDIEU, 1989, p.86-87).

O conceito de dominação, como é tratado por Bourdieu, ofereceu importantecontribuição para o entendimento do que acontecia na Usina Tamoio, porém,ainda no esforço de explicação permaneciamos na "encruzilhadas do labirinto".Para sair dessa "encruzilhada" recorreu-se a Thompson e ao conceito "quefaltava", ou ao "termo ausente": a "experiência humana". Segundo Thompson,

Os homens e as mulheres também retornam como sujeitos, dentro destetermo – não como sujeitos autônomos, 'indivíduos' livres, mas como pessoasque experimentam suas situações relações produtivas determinadas comonecessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida 'tratam' essa

Page 101: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 101

experiência em sua consciência e sua cultura (...) das mais complexasmaneiras (...) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre através dasestruturas de classe resultantes) agem, por sua vez, sobre suas situaçõesdeterminadas (THOMPSON, 1981, p.182).

O conceito de experiência permitiu alcançar a "estrutura transmitida emprocesso e reinserir o sujeito na história" ( D'AQUINO, 1992, p.23).

A experiência diz Thompson:

[...] foi, em última instância, gerada na 'vida material' foi estruturada emtermos de classe, e, conseqüentemente o 'ser social' determinou aconsciência social. La Structure ainda domina a experiência, mas dessaperspectiva sua influência determinada é pequena. As maneiras pelas quaisqualquer geração viva, em qualquer 'agora', 'manipula' a experiênciadesafiam a previsão e fogem a qualquer definição estreita da determinação(THOMPSON, 1981, p.189).

Ao articular experiência e cultura, a autor chega a um ponto de junção e diz:

As pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como idéias,no âmbito do pensamento e de seus procedimentos, ou (como supõem algunspraticantes teóricos) como instinto proletário etc. Elas também experimentamsua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na culturacomo normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades, comovalores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicçõesreligiosas. Essa metade da cultura (e é uma metade completa) pode serdescrita como consciência afetiva e moral (THOMPSON, 1981, p.189).

O conceito de experiência, tal como elaborado por Thompson, permitiuanalisar o viver na Usina Tamoio. Um viver que não estava desligado do trabalho;ao contrário era o trabalho que o determinava, não em suas objetivações, masna forma de apelos e apegos passados aos seus trabalhadores e moradores. Éna experiência dos sujeitos, nas memórias e representações que faziam desseviver indissociado do trabalho que busca-se a explicação da história. Entende-se que é a realidade social própria que articula a memória, as representações, esão os próprios sujeitos que contam suas experiências, nas suas próprias vozes.

A formulação de Marx de que "os homens fazem a sua história" não pode ser

Page 102: retratos de assentamentos

102 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

vista num prisma teleológico, mas é preciso considerar esse homem, dentro douniverso concreto no qual está inserido, pois abstraindo-se do concreto tudo oque tem de concreto, corre-se o risco de reduzi-lo ao abstrato (MARX, 1978).

A experiência, continua Thompson, surge espontaneamente no ser social,mas não surge sem pensamento:

Surge porque homens e mulheres (...) são racionais, e refletem sobre o queacontece a eles e ao seu mundo. A experiência 'compreende a respostamental e emocional, seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitosacontecimentos inter-relacionados ou a muitas repetições do mesmo tipo deacontecimento' (THOMPSON, 1981, p.16).

Seguindo os ensinamentos de Thompson (1981, p.188-189) procurou-se:

[...] examinar todos os sistemas densos, complexos e elaborados pelos quaisa vida familiar e social é estruturada e a consciência encontra realização eexpressão [...] parentesco, costumes, as regras visíveis e invisíveis daregulação social, hegemonia e deferência, formas de dominação e deresistência, fé religiosa e impulsos milenaristas, maneiras, leis, instituições eideologias - tudo em que em sua totalidade, compreende a 'genética' de todoprocesso histórico, sistemas que se reúnem todos, num certo ponto, naexperiência humana comum, que exerce ela própria (como experiências declasses peculiares) sua pressão sobre o conjunto.

Usina Tamoio: a Construção do ImpérioA Usina Tamoio está localizada em Araraquara, município do interior paulista.

Adquirida por Pedro Morganti, imigrante italiano, em 1917, quando ainda eraum pequeno engenho denominado Engenho Fortaleza, esta usina viveu a suafase áurea na década de 1950, quando se destacou na indústria sucroalcooleirada região, do estado de São Paulo e do Brasil.

O Engenho Fortaleza ao ser adquirido por Pedro Morganti apresentava umprédio industrial e em seu entorno benfeitorias como a construção de algumascasas. A área da propriedade, na ocasião, em torno de 2.000 alqueires,compreendia o que hoje é ocupado pela sede industrial e as já extintas seções:Chibarro, Salto e parte Mantuana. Na época, a propriedade estava sendoocupada com os cultivos de cana-de-açúcar e café.

A partir da aquisição desse Engenho, Pedro Morganti, grande empreendedor,

Page 103: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 103

passou a investir em capital constante e a incorporar no patrimônio já existentetecnologias nacional e estrangeira, o que permitiu a ampliação do parqueindustrial. Esta ampliação, conjugada com a absorção de grandes extensõesterritoriais, antigas fazendas cafeeiras, e uma ampla organização social, fizeramda Usina Tamoio a maior organização industrial do Grupo Morganti2,assegurando-lhe índices elevados de produtividade e posição privilegiada nomercado de açúcar. Na década de 1950 era destacada como modelo no Brasile na América do Sul.

No período que se estende de 1917 até a morte de Pedro Morganti emagosto de 1941, a extensão territorial da usina, provavelmente favorecida pelacrise cafeeira, foi ampliada para aproximadamente 5.000 alqueires. A expansãoindustrial acompanhou a agrícola.

Em dezembro de 1941, de acordo com dados publicados na RevistaUmuarama, seu órgão de divulgação interna, a Usina Tamoio era constituídapela sede industrial e pelas seguintes seções agrícolas: Santa Elza, Salto, Mantuana,Jacaré, Morro Azul, Serra D'água, Bela Vista, Aparecida e Andes, numa extensãoterritorial de 5.046.795 alqueires. Mais tarde foram adquiridas as seçõesBanhadinho, Lucânia, Santa Inês, São Carlos, Barreiro, Chibarro, Mariza, SantaBeatriz, Marilú e Santa Joana.

Dentre essas seções, a Bela Vista constituía uma das maiores e melhororganizadas. Sua bem estruturada organização material e social apenas ficava adever à sede industrial, onde se observava uma estrutura tipicamente urbana.Distante da sede industrial 12 quilômetros, aproximadamente, na Bela Vista casas,igreja, escola, clube recreativo, ambulatório médico e outros equipamentos, quese misturaram com a antiga estrutura de uma fazenda cafeeira, permitiam que avida acontecesse em meio a muito trabalho, mas também muito prazer erealizações.

Os trabalhadores e moradores, até hoje, descrevem os tempos trabalhadose vividos na seção Bela Vista, ligada à Usina Tamoio, como um tempo memorável.Bailes, inclusive carnavalescos, festas, jogos de futebol nas alegres tardes dedomingo, quermesses, novenas, outros eventos profanos e sagrados, e ainda asboas relações de amizade, permeavam um tempo de muito trabalho, mas tambémde alegria, prazer e satisfação, produzindo a percepção do espaço daquele e da

2Além da Usina Tamoio o grupo Morganti era proprietário da Usina Monte Alegre emPiracicaba e também possuía empreendimentos ligados à refinação de açúcar em São Paulo.

Page 104: retratos de assentamentos

104 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

usina como um todo como um paraíso e o tempo vivido e trabalhado na empresacomo um tempo bom. Tempo em que "A gente era feliz e não sabia", comoafirmou uma antiga trabalhadora.

O Período do "Velho Morganti": a construção da ideologia da grandefamília

Evidentemente esta maneira de perceber o espaço, a vida e o trabalho naUsina Tamoio, bem como a construção do Império tem que ser pensada emrelação a forma como Pedro Morganti conduzia suas ações e principalmente asrelações de trabalho na empresa. Como os burgueses de sua época, procuroudifundir entre seus trabalhadores e moradores a ideologia do trabalho comofundamento da riqueza. Sua história, envolta por um simbolismo mitológico,procurava realçar a imagem de um trabalhador dedicado que enriqueceu graçasao seu trabalho. Reproduzida em monumentos, retratos e discursos, a imagemdesse empresário, como um homem trabalhador e guerreiro exercia sobre ostrabalhadores e moradores a força de um poder simbólico3.

Pedro Morganti – o "Velho Morganti", como era chamado pelos trabalhadores,"cuidava do que era dele"4. Circulando pela usina, por todas as seções, entre ostrabalhadores e moradores, procurava provê-los em suas necessidades materiaise espirituais. Desta forma, era visto por todos como um pai generoso. A atençãoque dedicava a todos, sobretudo aos menos favorecidos, incluía visitas em suasresidências e o interesse por seus problemas pessoais e familiares. A generosidadeque não vinha somente do empresário, mas também de sua esposa – DonaGianina – sua acompanhante nas visitas às casas dos trabalhadores e andançaspela usina, produzia a idéia de que o casal patronal, como pais generosos, cuidavade seus "filhos" particularmente nos momentos de crise, doença, morte, mastambém nas festas.

Especialmente na época de natal oferecia presentes e outras prendas àscrianças e pessoas idosas. Os trabalhadores ao relembrarem esse tempo enfatizamas generosidades vindas dos patrões. Os presentes natalinos são destacadoscomo a "rememoração nostálgica" de uma modalidade de dominação tradicionalque inclui contato pessoal e oferecimento de presentes, o que constitui parte

3Muitos trabalhadores mantinham em suas casas, em lugar privilegiado (paredes das salas),o retrato de Pedro Morganti.4Expressão usada por um trabalhador entrevistado.

Page 105: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 105

importante para a interiorização dessa forma de dominação pelo grupo dominado.Diante de uma situação de vida, às vezes precária, essas práticas criavam edevam sustentáculo à formação de uma ideologia do trabalho que ao conjugar-se com a figura do "bom patrão" garantia trabalho obediente e disciplinado, cujalegitimação e valorização pode ser percebida no depoimento que segue:

Principalmente nessa época agora (mês de dezembro, época da realização daentrevista) ele (o patrão) corria todas as seções prá ver os mais necessitadosprá presente de natal. Olha bem, o casal de velhos! Agora era a época (...)Chegava essa época agora, os velhos chegou em casa de família por famíliaprá ver a necessidade. Prás crianças era brinquedo, pros velhos, os maisidosos cobertor (...) As viúvas ganhavam... as velhas ganhavam cobertor depresente de natal. Presente de natal era cobertor, roupas... Vinha aquelescaminhão, aqueles caminhão lotados. Então tinha uma enorme festa mesmo!Podia comer, beber à vontade. Diversão tinha várias entendeu ? E prás pessoasque às vezes não tinha roupa prá vestir eles fornecia (....) Eles conheciam asfamílias que eram mais prejudicadas em doença e não podiam trabalhar, maisgente prá tratar em casa, então ..." (ex-colono).

Essas práticas paternalistas e clientelísticas com as quais Pedro Morganticonduzia as relações de trabalho foram de extrema importância para a construçãoda ideologia da grande família, mas não suficientes. A construção de uma ideologiado trabalho compatível com as necessidades da acumulação do capital exigiuainda investimentos que procuraram respaldar as demandas sociais da populaçãotrabalhadora e de seus familiares.

Com aproximadamente 3.000 empregados fixos e suas famílias, na sua faseáurea, a usina abrigava um contingente de moradores que variava entre 7.000 a10.000 habitantes5. Compunham essa população trabalhadores ligados àagricultura, à industrialização e ao setor de transportes, sendo eles: colonos decana, assalariados agrícolas, operários de fabricação e de manutenção,empregados da administração, escritórios, transportes, inclusive ferroviário6.

5Há informações não comprovadas de que a usina chegou a abrigar de 12.000 a 15.000pessoas em seu território.6A usina mantinha em suas terras uma linha férrea que era utilizada para o transporte dacana-de-açúcar (matéria-prima) até a moenda.

Page 106: retratos de assentamentos

106 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

No aparelhamento da usina para o atendimento das demandas sociaisdos trabalhadores, a aquisição de antigas fazendas cafeeiras paratransformação de suas áreas em canaviais possibilitou o reaproveitamentoda infra-estrutura já existente. Além disso, mais casas foram construídas,constituindo um conjunto de aproximadamente 1.500 casas, que serviamde residência para as famílias moradoras, divididas entre os setores agrícolae industrial. A usina contava ainda com o "Pavilhão" e a "Ilha"– alojamentosonde ficavam instalados os trabalhadores solteiros e os migrantesnordestinos, respectivamente.

Nesse sistema de trabalho, no qual a mão-de-obra é contratada e alocadacom base na família e não em trabalhadores individuais, como anota Leite Lopes,a casa e as concessões que giram em torno dela são condição determinante paraque o trabalhador, chefe de família, decida por trabalhar e continuar na empresa(LEITE LOPES, 1988).

Foi pensando nisso que Pedro Morganti, desde muito cedo, procurou provera usina com os equipamentos necessários para a fixação da mão-de-obra nolocal. Em 1918, instituiu o atendimento médico domiciliar, que mais tarde foiampliado com a construção de ambulatórios médico e odontológico, farmácia eatendimento farmacêutico, além da manutenção de convênios com hospitais deAraraquara (Santa Casa de Misericórdia Santa Isabel) para internações econvênios com médicos de especialidades diversas: oftalmologista,otorrinolaringologista, clínica geral etc.

Também o setor de educação recebeu a atenção do empresário. Desde adécada de 1930, a Usina Tamoio mantinha em seu território um grupo escolar eseis escolas isoladas. Uma complexa rede cercava o sistema educacional nausina incluindo a instituição de merenda escolar (sopa), desde 1941, concessãode Bolsas de Estudo e curso ginasial, que será tratado mais adiante.

Para atender os trabalhadores e moradores em suas necessidades materiais,a usina, desde muito cedo, instituiu o sistema de armazém na sede industrial,além de lojas de tecido, de armarinhos, açougue e outros equipamentos.

No setor de esporte e lazer, na gestão de Pedro Morganti, foram construídoscampos de futebol7, mais tarde incrementados com a construção do grandeEstádio Esportivo "Comendador Freitas", que será objeto de comentáriosposteriores, campos de bocha e outras modalidades esportivas. Bares e clubes

7O Tamoio Futebol Clube foi fundado em 1928.

Page 107: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 107

recreativos também estavam presentes neste universo8.A vida religiosa também começa a ser organizada desde essa época com

construção de capelas na sede industrial e nas seções agrícolas.Esse padrão de organização que incluía ainda banda de música dentre outros

equipamentos era necessário para a consolidação desse sistema de dominação,mantendo as "casas sempre cheias", como afirmou Hélio Morganti, o usineiroentrevistado.

O Período dos Filhos do Morganti: o augeCom o falecimento de Pedro Morganti, em agosto de 1941, seus filhos

assumem a administração da usina. Esta fase, como citado, é personificadaespecialmente na pessoa de Hélio Morganti, que o ocupava o cargo de DiretorAdministrativo.

Os filhos de Pedro Morganti procuraram, com pequenas modificações, darcontinuidade à política de trabalho do pai. Nesse período, mantêm-se orelacionamento pessoalizado e paternalista, porém, agora, maior distanciamentomarca as relações entre patrões e empregados, aproximando-se ao que no sentidoweberiano se equipara ao sistema de dominação burocrático-patrimonial.

Nesse momento, a presença menos frequente dos patrões entre ostrabalhadores e moradores é interpretada como "abandono", "descuido". O fatode Hélio Morganti residir em São Paulo e deixar a usina sob o comando dosempregados – a "chefaiada" – como se referem os trabalhadores àqueles quecompunham a hierarquia da usina, é percebido como uma atitude de quem deixade "cuidar do que era dele", como revela o depoimento que segue:

Depois ele (Pedro Morganti) faleceu e ficou por conta dos filhos, e os filhossabe como que é, eles tinha a riqueza, eles não incomodava com aquilo edeixava nas mãos dos empregados. Eles ia na fazenda uma vez por mês só.Os empregados que faziam tudo que queriam (...) deixou por conta dosempregados (ex-tratorista).

Ocorre nesse período um processo de profissionalização da administraçãoda usina e, por conseqüência, maior racionalização das relações de trabalho.

8Na Usina Tamoio existiam dois clubes recreativos: O "Cruzeiro" – clube dos brancos e o"Rancho Alegre" - clube dos negros.

Page 108: retratos de assentamentos

108 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Paralelamente a isso, a usina vive um momento de grande expansão, tantoem seu parque industrial como em sua organização social, favorecida,provavelmente, pelo Estatuto da Lavoura Canavieira (ELC) de 1941 e peloDecreto-Lei no. 6969, em 19449. Nesse momento, o Instituto do Açúcar e doÁlcool (IAA)10, sob a rubrica de "Assistência Médico-Legal", criava subsídiospara a ampliação dos serviços de assistência à produção sucroalcooleira. Ainda,como indica GNACARINI (1972), a reação neoliberal e a política livre cambistados usineiros paulistas, empreendida contra a política dirigista do IAA, favoreceo crescimento das usinas paulistas, no período de 1946 a 1950.

Entre o final dos anos 1940 e anos 1950, a Usina Tamoio atingiu sua fasemais pujante. Em 1943 tem início a construção da suntuosa igreja de São Pedro11,mandada erigir pelos filhos em homenagem ao pai. Com a construção dessaigreja, cuja consagração ocorreu em 194512, as atividades religiosas, que antesestavam restritas à capela da sede industrial, foram incrementadas e estendidaspara as outras seções agrícolas. Com a instituição das irmandades religiosas:Santíssimo Sacramento, Congregação Mariano, Filhas de Maria, SagradoCoração de Jesus, Irmandade de São Benedito, além das já tradicionais práticasreligiosas, tais como batismo, crisma, casamento, missas e comunhão, a igrejase consagra como um espaço privilegiado de relações, amplamente estimuladaspela direção da empresa. Ainda, com parte significativa da vida social acontecendoem seu redor, a igreja de São Pedro se transformou no maior símbolo da usina.Sua suntuosidade e beleza, destacada não apenas pelos trabalhadores emoradores, mas também por pessoas que visitaram a usina, naquela época eque a visitam ainda hoje, faziam e fazem da igreja de São Pedro a expressãomáxima do poder daquele grupo usineiro13.

Nessa fase, o setor educacional assiste também grande ampliação. Das seis

9Dispõe sobre os fornecedores de cana e dá outros providências.10O IAA foi extinto pelo presidente Fernando Collor de Mello no início dos anos 1990, comoparte da política neoliberal que começa a ser implantada no Brasil desde então.11Esta igreja, depois de construída passou a ser considerada a mais rica da Diocese de SãoCarlos. Hoje, é em torno da igreja que os antigos trabalhadores e moradores retornam àusina no dia da Festa de São Pedro que ocorre anualmente, mesmo a usina pertencendo aum novo grupo usineiro – Grupo Raízen.12Administrava a igreja dois padres residentes na usina, assessorados por uma equipe devinte coroinhas e dois capelões.13É histórica a passagem pela Usina Tamoio de pessoas ilustres como os ex-presidentes daRepública Juscelino Jubstichek e Jânio Quadros, além de Pelé e outros famosos.

Page 109: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 109

escolas isoladas construídas ainda na gestão de Pedro Morganti, duas são elevadasà categoria de Grupo Escolar: a da seção Bela Vista e a da seção Jacaré –,completando um conjunto de três grupos escolares e nove escolas isoladas.

O ensino noturno como forma de redução do analfabetismo existente noterritório da usina; a extensão da sopa escolar, já oferecida aos alunos da sedeindustrial desde 1941, aos das seções agrícolas; a criação do "Jardim da Infânciado Seu Hélio"; e a instituição do "Ginásio Estadual da Usina Tamoio", que começoua funcionar em meados da década de 1960, completaram o amplo sistemaeducacional que a usina sustentava, propiciando aos jovens, tanto da sedeindustrial como das seções agrícolas, maior acesso ao ensino ginasial, atual ensinofundamental, e ampliando as oportunidades de estudos para aqueles que nãoeram contemplados com a Bolsa de Estudos oferecida pela usina14.

Também nesse período mais casas foram construídas para servir de residênciaaos trabalhadores e suas famílias, aperfeiçoando-se, ainda, os serviços de infra-estrutura básica, com a extensão de melhorias da rede de água, energia elétricae esgoto15. Os serviços de assistência médica e hospitalar, odontológica,farmacêutica, à maternidade e à infância foram ampliados com a construção deum centro de puericultura que oferecia atendimento pediátrico e fornecimentode leite às crianças até um ano de idade.

No setor industrial, em 1951, a usina adquire e instala uma moenda FULTONde seis ternos, importada dos Estados Unidos e o que havia de mais modernopara a época. Essa moenda, primeira do tipo no Brasil, permitiu que, definitivamente,a usina conquistasse hegemonia no mercado açucareiro. A bem estruturadaorganização industrial, com utilização de tecnologia avançada, conjugada à amplaorganização social caracterizou o pioneirismo desta usina na indústria sucroalcooleirade São Paulo, assegurando-lhe, ainda, na década de 1950, como já destacado, aposição de usina modelo do Brasil e da América do Sul.

Com toda esta ampliação, a Usina Tamoio, que no âmbito municipal já ocupavaposição de destaque desde a década de 192016, passou a ser ainda maisdestacada. Na medida em que seus lucros eram redistribuídos em atividades de

14É importante destacar que a Bolsa de Estudos oferecida pela usina contemplavaespecialmente os filhos dos empregados da administração.15Em 1951 foi concluída a construção de um bloco de 50 casas na sede industrial.16MARTINEZ CORREA, Ana Maria, em seu trabalho sobre a história social de Araraquara,destaca a Usina Tamoio como a maior e mais importante indústria açucareira da cidade eregião desde 1926.

Page 110: retratos de assentamentos

110 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

cunho assistencial e cultural na cidade de Araraquara, que vinha de um períodode retração na sua expansão urbano-industrial, a Usina Tamoio e seus dirigentespassaram a gozar de grande prestígio na sociedade araraquarense e na comunidadeindustrial local17.

Nos últimos anos da década de 1940, até o final da década de 1950,registram-se, ainda, ampliações em sua organização industrial e social, com aconstrução de oficinas mecânicas, implementação das atividades de assistênciamaterial, médica, religiosa e recreativa, com o equipamento de um armazém defornecimento e um ambulatório médico na seção Bela Vista, em 1950 e 1958,respectivamente, aquisição de uma ambulância, em 1948, construção de umprédio para funcionamento do Círculo Operário Católico (COC), em 1951,construção de um campo de pouso para aviões de pequeno porte, em 1958;construção da capela de Santa Elza, na seção do mesmo nome, em 1960,organização de uma biblioteca e construção de uma sala de projeções de filmese apresentações de peças teatrais na sede industrial. No conjunto de ampliaçõesocorridas nesse período, a construção de um grande estádio – o Estádio Esportivo"Comendador Freitas" – também na sede industrial, incrementando as atividadesesportivas e recreativas representou, segundo os dirigentes da empresa, "maisum passo na política de assistência ao trabalhador".

O Estádio Esportivo "Comendador Freitas" foi palco de grandes jogos etorneios esportivos. A presença de personagens famosas do mundo futebolístico,como Pelé marca a história deste estádio. Também a passagem de políticosimportantes para a história do Brasil, como Jânio Quadros e Juscelino Kubitscheké destacada na história dessa usina18.

Ainda, outros equipamentos tais como padaria, loja de ferramentas, torrefaçãode café, fábrica de sabão, leiteria, sorveteria, instituto de beleza, gabinete dentário,agência postal, serviço telefônico, um serviço de ônibus que ligava a cidade deAraraquara à Estação de Tamoio, em horários compatíveis com os trens da Cia

17Data do final dos anos 40 e anos 50, a intensa colaboração da família Morganti com obrasde ampliação da Maternidade Gôta de Leite de Araraquara e Asilo de Mendicidade,construção de um prédio para funcionamento do Posto de Puericultura na Vila Xavier,Construção da Escola de Belas Artes de Araraquara, além de outros patrocínios na áreacultural.18A Usina Tamoio era passagem necessária para políticos e outras pessoas ilustres quevisitavam Araraquara.

Page 111: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 111

Paulista de Estrada de Ferro e hospedaria, atribuíam à usina, em particular à suasede industrial, características urbanas. Esse "aparato institucional19, fortementeestruturado, assegurava que todas as condições e necessidades de reproduçãosocial dos trabalhadores e de suas famílias fossem satisfeitas no interior da usina,permitindo, ainda, que todo o ciclo de vida dos trabalhadores e suas famílias sepassasse em seu território e sob o olhar vigilante do patrão. Deslocar-se de lá,conforme afirmam os trabalhadores e moradores, era necessário apenas pararegistrar um filho, ou visitar um parente que morasse em outra localidade; coisarara, aliás, pois toda, ou quase toda a família dos trabalhadores morava na usina.Muitos nasceram, cresceram e se lá não passaram toda sua vida, ao menosparte significativa de suas histórias está ligada à usina.

Ainda no setor industrial houve a construção da Ponte sobre o Rio Jacarépara a expansão da Estrada de Ferro até Guarapiranga, finalizada em 1958,expandindo assim a rede de estrada de ferro que servia às lavouras de canada usina.

Toda essa organização reforçava a percepção daquele mundo como um lugarideal. A manutenção pela empresa de uma organização com promoção do prazerpor meio do lazer e garantias de sobrevivência estimulava o trabalho, ao mesmotempo em que dissimulava o controle que perpassava o seu sistema de dominação.A manutenção dos trabalhadores em verdadeiras colônias, conjugada com todaessa organização social, além de outras concessões extra-monetárias, pode serentendida como expressão das formas utilizadas pela usina para a fixação de suaforça de trabalho, num ambiente controlado, regrado e disciplinado. Isso implicouna percepção dos trabalhadores como elementos subordinados na estruturaorganizacional e na justificação do sistema de dominação.

"Você tinha tudo!, "Lá tinha tudo!", "O Morganti dava tudo". Frasescomo estas, invariavelmente repetidas pelos trabalhadores, revelam a boaaceitação das práticas patronais como "dádivas".

Na Usina Tamoio, esperava-se que os trabalhadores trabalhassem e elespróprios se sentiam comprometidos com a expectativa que sobre eles eraimprimida. Mostravam-se assim conformados e, até certo ponto, pode-se dizerque contribuíam para o exercício da sua própria dominação, de forma consciente

19O uso do conceito de "aparato institucional" é feito por LEITE LOPES, José Sérgio em ATecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés. Brasilia/DF, Marco Zero/UNB, 1988.

Page 112: retratos de assentamentos

112 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

ou não, por meio da relação que se estabelecia entre as suas atitudes, ligadas àssuas condições sociais de produção e às expectativas de interesses inscritos nassuas posições no seio desse campo de luta (BOURDIEU, 1989).

A identificação do trabalhador com sua função, manifestada no sentimentode estar bem no seu lugar, de fazer o que tem que ser feito e fazer com gosto, éexpressa pelos trabalhadores da Usina Tamoio, como o "amor de trabalhar",como mostra o depoimento abaixo.

Lá na usina a gente era tão alegre! Fiscal não precisava se preocupar que agente trabalhava mesmo. Tinha amor de trabalhar. Hoje em dia, ninguémmais trabalha com amor. Só trabalha porque precisa do salário e a gente erao contrário. A gente não ligava prá dinheiro. A gente trabalhava porquegostava de trabalhar. Não estava preocupado em ganhar tanto. A gentetinha o que comer. Não tinha o luxo que tem hoje (...) A gente estava semprecantando (...) a gente tinha remédio, tinha médico, hospital, tinha tudo"(ex-colona).

Ao colocar em ação o lado objetivado da história, construindo casas, prédios,monumentos etc, a usina ativava também o outro lado da ação histórica, a "históriano seu estado incorporado"20.

Trabalhar e Viver na Usina Tamoio: "uma família só", a "irmandade"Tamoio na língua Tupi Guarani quer dizer o velho, o avô. Portanto, se ao

batizar a usina com este nome Pedro Morganti desejou dar um sentido de unidade,experiência e sabedoria, como afirma Manoel de Ornellas – seu biográfo – emboa medida seu sonho se tornou realidade. Com esse gesto, não era um simplesnome que dava à usina. Nessa escolha repleta de significados e forte conotaçãofamiliar, elaborava um projeto, traçava um caminho a ser trilhado por uma empresae por um povo. A usina Tamoio foi nas representações de seus trabalhadores emoradores uma "família só", uma "irmandade", a cujo pai generoso se devia

20Para BOURDIEU, "Toda ação histórica põe em presença dois estados da história (ou dosocial): a história no seu estado objectivado, quer dizer, a história que se acumulou aolongo do tempo nas coisas máquinas, edifícios, monumentos, livros, teorias, costumes,direito, etc. e a história em seu estado incorporado, que se tornou um habitus" BOURDIEU(1989, p.82).

Page 113: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 113

obediência e lealdade. Esta ideologia que procurava apresentar a usina comoum espaço prolongado de uma grande família, ou "colméia de trabalho" perpassoutodo o seu tempo de existência e deixou marcas profundas na memória e na vidados seus antigos trabalhadores e moradores.

A grande família, como produção ideológica, não era, contudo, apenas frutodas idéias difundidas pela empresa. Na medida em que era compartilhada peloconjunto dos trabalhadores e moradores encontrava os elementos necessáriospara sua elaboração e reprodução.

Desta forma, entender o trabalhar e o viver na Usina Tamoio significa entendertoda a complexa organização social e familiar que a empresa sustentava. Maisque isso significa partir de um exame detalhado, que busque apreender todos osmomentos constitutivos da vida naquele lugar, sem, contudo, perder de vista quevida e trabalho constituíam momentos indissociáveis. Significa, ainda, entrar pelomundo da moradia procurando ver aquele espaço não apenas como lugar básicopara a recomposição e reprodução da força de trabalho necessária a produçãocapitalista, mas também como espaço aglutinador de experiências vividas esentidas, onde o dia a dia produzia muito açúcar e álcool, mas também alegria,satisfação, prazer.

A vida na Usina Tamoio era marcada pelo trabalho, pelo atendimentodas necessidades básicas da família trabalhadora e por uma sociabilidadepeculiar. Além do alimento tirado da terra ou dos armazéns mantidos pelausina, as festas, os bailes, os presentes de natal, o futebol, a religiosidade,a amizade e a solidariedade eram os ingredientes que nutriam uma vidafarta e feliz e permitiam aos trabalhadores o enfrentamento do dia a diadentro dos limites da exploração econômica. Eram esses, portanto, oselementos favorecedores do ocultamento da dominação e subordinaçãoque pesavam sobre suas vidas.

Distribuído geograficamente no espaço, de acordo com a posição ocupadano processo produtivo, o contingente de trabalhadores e moradores era marcadopor heterogeneidades e diferenciações. Se em um primeiro momento isto podiagerar afastamentos, conseqüentes da posição ocupada no espaço social, aaproximação desses diferentes segmentos passava a ser alimentada por elementosconstitutivos da ideologia que apresentava o viver na usina em torno de um"nós", que parecia diluir as diferenciações. A grande família, na verdade, encontravano cotidiano do trabalho um esforço deliberado de fazer-se, desfazer-se e refazer-se. Na medida em que todo o rendimento e crescimento da empresa eramatribuídos ao esforço conjugado de todos, portanto, do trabalho coletivo, a

Page 114: retratos de assentamentos

114 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

função essencial dessa ideologia não era apenas mascarar as relações sociais deprodução, mas reforçava a dominação e conseguia a exploração consentida dostrabalhadores.

A casa constituía o elemento central desse morar, viver e conviver. Era emtorno da casa que girava trabalho, vida, lazer e representações. A ocupaçãoda casa se dava correlata à inserção do trabalhador no processo produtivo. Amaior ou menor prescindibilidade dos seus serviços, podendo resultar emconvocação extra-horário para o trabalho, fazia com que a usina procurassealocar nas casas mais próximas da fábrica os trabalhadores consideradosimprescindíveis, enquanto os "prescindíveis" moravam em casas mais afastadas.Esse sistema de alocação da mão-de-obra e distribuição dos indivíduos noespaço, além de reforçar as diferenciações conseqüentes da inserção noprocesso de trabalho, garantia a sua reprodução nos espaços frequentados,como revelam os depoimentos que seguem:

A Bela Vista na verdade, eu acho que até mesmo antes de mim, ela eradividida em três partes: Existia um a parte que morava do grupo prá cima,tinha uma mentalidade; do grupo prá baixo era outra mentalidade e umacolônia ao lado, que era outra mentalidade. Nós, as crianças, nós não nosrelacionávamos mais de maneira alguma com as crianças do lado de baixo.Existia diferença! Eu morava perto do bar. Então a parte de cima não serelacionava com as crianças da parte de baixo, em conseqüência dasamizades dos pais! O pessoal que morava na minha rua era mais pessoal demecanizada, fiscais... Então era um pessoal que ...era uma ... como que eudigo? Economicamente ganhava melhor do que o pessoal da parte de baixo.(ex- balanceiro)

Lá existia duas categorias, mas era... Então na época que eu cheguei, entãose dizia: Salão dos brancos, salão dos pretos. Como de fato tinha dois salão.Mas era muito bonito, não tinha essa discussão. Os brancos sim! Os classebaixa era no salão dos pretos, vamos dizer, era o Rancho Alegre e a classealta, naquele tempo era uma grande chefia, então os mais poderosos eramseparados, mas só nos bailes. Agora no jogo de futebol e coisa lá era tudoigual. (ex-administrador).

Na lavoura, a forma de ocupação da casa seguia o mesmo critério adotadopara o setor industrial. Com um projeto arquitetônico mais modesto, podendo

Page 115: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 115

chegar ao limite da rusticidade21, as casas variavam em tamanho, possuindo dedois a dez cômodos e eram ocupadas obedecendo a relação: número detrabalhadores na família/número de cômodos.

Em fins dos anos 1940 e início dos anos 1950, aproximadamente, a usinaaprimora alguns serviços oferecidos aos seus trabalhadores e moradores. Nesseperíodo verifica-se a extensão da rede elétrica, implantação de um sistema defornecimento de água em grupo, construção de vascas (tanques) coletivas paraa lavagem de roupa, além de melhorar as condições de saneamento implantandoum sistema de esgoto doméstico corrente. Esse sistema de esgoto que passavapor todas as casas das colônias, era despejado diretamente em um rio próximo.Com essas melhorias, a usina facilita a vida de seus moradores, especialmentedas mulheres responsáveis pelas tarefas domésticas. A seção Bela Vista foi aque mais se beneficiou com esses melhoramentos. As outras seções agrícolas,por não apresentarem condições favoráveis, continuaram a utilizar o tradicionalsistema de fossa externa. Esses novos equipamentos infra-estruturais, ao valorizaras condições de moradia e, portanto, o ato de morar e viver na Usina Tamoiocontribuíram para reforçar o discurso positivo em torno da casa.

Nas representações dos trabalhadores, a casa é, de fato, o ponto de partidado bem morar e viver naquele local. Ao conceder moradia para a famíliatrabalhadora, a usina se encarregava de todo o trabalho de sua manutenção econservação. Uma vez por ano, as residências eram pintadas com cal e tinhamfeitos os reparos necessários. A limpeza das ruas e outros prédios garantia, deacordo com a percepção dos trabalhadores, uma paisagem higienizada e bonita22.Nos discursos dos trabalhadores, a casa e tudo que girava em torno dela foiamplamente ressaltado, demarcando o tempo da fartura com plena satisfaçãodas necessidades de sobrevivência23.

O fornecimento de produtos pelo armazém também foi outro elemento

21Na sede industrial, as casas eram amplas e confortáveis. A maioria possuía instalaçõessanitárias internas e as dos empregados que ocupavam maior posição hierárquica tinhaminclusive banheira. Já nas seções agrícolas. Nos documentos e controles das casas sãomencionadas casas cobertas com taboa e piso de chão batido.22Os trabalhadores se referem a isso lembrando das casas "branquinhas e bem cuidadas",que davam aspecto de homogeneidade no espaço.23Os trabalhadores da sede dispunham de quintal que favorecia a criação de animaisdomésticos (galinhas, porcos e até cabritos) e os da lavoura, além do quintal, dispunhamtambém de área para a plantação de subsistência.

Page 116: retratos de assentamentos

116 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

importante e amplamente destacado pelos trabalhadores e moradores:

E os armazéns nossos eram completos.. Nós vendíamos de tudo. Tudo oque você podia pensar: louça, ferragem, tecido, armarinho... Secos emolhados... Tudo! Tudo você entrava no armazém: do linho vagabundo atéo linho 120 (...) Porque nós tínhamos todas as categorias.. Quer dizer domenor até (ex-gerente do armazém).

Porque o Morganti ele tinha toda a parte de fornecimento pro povo. O povonão precisava comprar nada fora né. Tudo lá tinha e usava uma caderneta.Agora a gente debitava naquela caderneta e era descontado no salário dagente; eles só fazia aquele pagamento do restante né (ex-colono).

O armazém, em conjunto com os outros equipamentos que a usina oferecia,atuava como um elemento de retenção da força de trabalho. Muitos trabalhadores,não conseguindo saldar, de um ano para o outro, tudo que o deviam no armazém,ficavam devendo. Esta dívida podia ser parcelada ou perdoada pelo patrão.Principalmente quando perdoada, produzia o sentimento de dever, obrigação,contribuindo para a fixação do trabalhador no local.

A assistência médica, o fornecimento de remédios através da farmácia, olazer alimentado e controlado pela usina, assim como as festivas tardes dedomingo passadas no grande Estádio Esportivo "Comendador Freitas" ou noscampos de futebol das seções agrícolas, os campeonatos inter-seçõesorganizados pela usina, os bailes, as festas, o carnaval, a religiosidade, entreoutros eram os elementos que asseguravam uma vida feliz, reforçando a eficáciadeste sistema de dominação.

E a gente vivia bem lá. A gente era feliz e não sabia (...) Porque nós tínhamosmédico (...) a gente tinha enfermeiro, tinha padaria, tinha açougue, tinhaarmazém, tinha loja de roupa, tudo o que você precisava você achava ali.Você tinha loja de ... a gente falava ferragem, mas é prá ... Coisas ....Utensílios domésticos, justamente ... tinha torrefação de café, tinha refinaria...O açúcar era refinado lá mesmo. Então a gente era super feliz, a gentecriou os filhos (ex-colona).

E a festa de São Pedro e 1º de maio. Então essa era fora de série! Tinhatoda quanto é diversão prá criançada brincar, todo esporte, tudo! Até a hora

Page 117: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 117

do jogo que era a sensação prá todo mundo. Das 8 horas da manhã queacabava a missa até a hora do jogo era prá turma lá. Era jogo de seção.Começava às 8 horas, ia disputar o torneio de um com o outro, et. Era umafamília desde as da sede até a última seção. Uma família só, né (ex-administrador).

Semana Santa era perfeita! Todo mundo saía de casa prá participar daSemana Santa. A procissão do enterro, em Tamoio, na Sexta feira da paixão,é inacreditável ! Porque hoje... Nós que contamos isso e vivemos... Eraprocissão quilométrica, era por quilômetro e todo mundo saía de casa. Aquelepessoal da seção vinha todos eles prá igreja. A usina punha condução, punhaem cada seção, dois, três ônibus, vinha de caminhão. E eles queriamparticipar. Era uma maravilha ! Uma maravilha mesmo ! Você não vê maisisso hoje. Infelizmente! Porque o povo se sentia bem! Você olhava no povode Tamoio, todo mundo sorria" (ex-gerente do armazém).

Ainda, a igreja, o clube, o cinema compunham uma corrente propiciadora deprazer, que só terminava com o trabalho. Um trabalho, entretanto, que não erapercebido como uma atividade desgastante e penosa. Os vários elementospropiciadores de satisfação e prazer transformavam as longas jornadas de trabalhoem um tempo vivido com alegria e trabalho realizado com amor.

A Crise dos MorgantiNo final dos anos 1950 e até meados dos anos 1960, em meio às ampliações

a crise já se anunciava. Mudanças na agricultura da cana, com modernizaçãotecnológica, imposição de novo padrão de organização do trabalho, contrataçãode técnicos especializados – os agrônomos –, marcam esse período. A instituiçãode um novo padrão de relações de trabalho mais racional rompe gradativamentecom as relações de trabalho pautadas na pessoalidade e paternalismo. A empresacomeça a promover um sutil processo de expulsão dos trabalhadores emoradores.

Na agricultura, acompanhando o novo padrão de relação de trabalho nocampo, o sistema de colonato é extinto e os membros das famílias colonastransformados em assalariados agrícolas. No setor industrial, a usina deixa deempregar os filhos dos trabalhadores que se vêem obrigados a sair da usina parase empregar nas cidades vizinhas – Araraquara, Ibaté e São Carlos –, o quegera muito descontentamento por parte dos pais, que acompanham seus filhos,

Page 118: retratos de assentamentos

118 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

passando a morar nestas cidades. Aos poucos as concessões vão sendo cortadas.Começa a ser cobrado aluguel das casas, energia elétrica, fornecimento de água.Os armazéns enfraquecem, se esvaziam, já não é mais possível conseguir alitudo que os trabalhadores e moradores precisam para a sobrevivência. Aumentaa dependência da cidade.

Nesse contexto, as contradições começam a aparecer e alguns trabalhadoresfundam um sindicato no interior da usina: o Sindicato da Indústria da Alimentaçãode Araraquara (STIAA), cuja origem se deu, portanto, na Usina Tamoio.Organizados no sindicato, muitos trabalhadores, insatisfeitos com as mudançasnas relações de trabalho, encaminham reivindicações pela via legal, fazendo apareceros primeiros processos trabalhistas na Justiça do Trabalho, que se transformará noprincipal campo e cenário das lutas desses trabalhadores. Os processos seavolumam na Justiça do Trabalho anunciando o tempo que estaria por vir.

O Tempo Silva Gordo: outras relações, novas lutasEm abril de 1969, após um período de turbulências e de decadência anunciada

desde o final dos anos 1950, a usina é transferida por meio de venda para ogrupo Silva Gordo – forte detentor de capital financeiro.

As inovações promovidas pelo novo grupo proprietário, com aquisição deamplo maquinário para incrementar a mecanização da lavoura iniciada ainda noperíodo Morganti, afetaram sobremaneira as relações de trabalho e aceleraramo processo de transformações que já vinha ocorrendo. Os principais postos decomando passam a ser ocupados por pessoas contratadas de outras organizaçõesusineiras, medida adotada pelo novo proprietário para garantir eficiência24. Nessemomento, o modelo administrativo voltado à racionalidade rompe definitivamentecom as antigas formas e relações de trabalho, como revela a fala do trabalhadorabaixo transcrita.

Ah, você nem via a cara dele (do patrão) Eu que era fotógrafo, que estava emtodas, se vi a cara do Silva Gordo umas três vezes vi muito! Ah! O Morgantivivia com ... via com eles lá, tratava de igual prá igual. Silva Gordo, que eu queestava em todas, eu consegui ver o homem três vezes! (ex-fotógrafo).

24Logo após a transferência da usina para o novo grupo proprietário, observa-se na Justiçado Trabalho uma série de acordos realizados com empregados que ocupavam posiçõeschaves na administração anterior.

Page 119: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 119

Novas formas de controle, novos códigos intensificando o trabalho e avigilância sobre os trabalhadores são implantados:

Agora no outro tempo modificou bastante. No tempo do Seu Silva Gordo,modificou muito, completamente! A mudança que houve era o seguinte:Eles chegaram lá, dizendo que eles tinham muito dinheiro prá organizar, queeles queriam serviço, mas também, eles queriam ... queriam muita ordem.Então eles puseram lá, aqueles guardas com jipe, correr lavoura, correr anoite, de dia... Até puseram o nome até de "Caravela" Tipo de polícia, tipode polícia né. Nas seções todas puseram lá guardas nas seções... a noite...nas entradas... Puseram um policiamento, uma espécie de policiamentomesmo né. Aí modificou, o pessoal já não sentiu aquele conforto que existiano tempo do Morganti, ficou com um pouco de receio também né. Aícomeçou... modificou mesmo. Exigindo trabalho também, exigiram trabalho(...) Então começou complicar, exigir muito da turma, horário... e muitaexigência mesmo, naquele tempo né. Agora começou aquela modificaçãocompleta mesmo, a mudança. Então o pessoal sentiram a mudança, tevemuita mudança (ex-fiscal).

A imposição de uma política de trabalho compatível com nova orientaçãogerencial exigia ainda mais cortes nas concessões que giravam em torno da casa,promovendo a mercantilização da vida e tornando o dinheiro uma mercadoriaimprescindível:

Fechou tudo aquilo lá. Aí era só dinheiro né. Você ia ficar sem pagamentoque jeito ? (...) Cortou armazém, cortou bastante coisa né. E só tinha farmácia,tinha ambulatório médico.(...) Mudou porque virou uma guerra! Porque amaioria não tinha condições de comprar fora né, e ou outros não tinha jeito... não sei, mudou o povo todo e virou aquele negócio. Aí começou a guerra(ex-eletricista).

O desmantelamento da cultura local exigiu medidas mais radicais. Houve umprocesso de expulsão e os primeiros a serem atingidos foram os trabalhadoresmais antigos, portadores de estabilidade, que foram convidados a realizar acordos,muitas vezes bastante onerosos. O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço(FGTS) instituído ainda no período Morganti se apresentou, nesse momento,como um instrumento extremamente útil para a exclusão dessa força de trabalho

Page 120: retratos de assentamentos

120 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

enraizada, como denuncia ex-trabalhador abaixo:

Aí começou a chamar o cara prá assinar fundo de garantia. Ninguém queriaassinar porque já tinha passado dez anos, quinze anos de serviço até aí.Ninguém queria fazer fundo de garantia, sem ganhar um pouco e elescomeçaram a querer tapear os outros (...) Aí a gente ficou pensando aquilo,pensando aquilo...trabalhando e cada dia encolhendo o serviço, porque aí aadministração não concordava com o serviço da gente. A gente nãoconcordava com o mandato deles. E vem um, troca outro e pior. Troca outroé pior. Eles manda de um jeito, a gente sempre trabalhou de um jeito, elesquer que trabalhe de outro, e a gente está vendo que está errado (...) Aícomeçou a chamar um. Aí vem um e diz: - "Eh cara, não tem acordo, ohomem não qué dá nada! O homem que dá uma miséria prá mim! Eu tô aquicom vinte anos, dezenove anos de serviço aqui, vinte e o homem me dá isso!O que eu faço com esse dinheiro? (ex-mecânico).

Aceleraram-se nesse período as saídas dos empregados estáveis, com arealização de acordos para pagamento da indenização em parcelas que chegavamao número de 12 (doze). Alguns, sentindo-se acuados, optaram"espontaneamente" pelo FGTS como forma de acelerar o processo de seudesligamento da empresa.

Eu optei porque eu queria ir embora, eu queria sair da usina. Justamente foiquando meu filho foi prá Rio Preto. Foi lá e participou de um concurso lá.Ele era menino...da Companhia Paulista de Força e Luz. Ele passou emsegundo lugar, então ele foi trabalhar lá, e foi morar lá com um irmão meu.Então eu queria ir embora. Até eu optei pelo fundo de garantia de dar odireito deles me mandarem embora, eu optei em 69 (...) de livre e espontâneavontade (ex-encarregado de fabricação).

Aqueles que continuaram na empresa, sob a condição de estabilitários, tiverama opção pelo FGTS barganhada por melhores salários e ascensão profissional.

E depois começou a haver no fim, mas depois, bem depois do Morganti,então já começou a haver. O cara trabalhava no custo, trabalhava no ...quer dizer... correspondência, cada um fazia uma coisa. Então o caratrabalhava lá e o salário dele era igual, vamos dizer, encarregado de folha de

Page 121: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 121

pagamento, ganhava igual o cara de custos, o mesmo salário. Então o carado custos fez opção, ele tinha aumento de salário; o cara da folha não fez,ele ficava lá. Isso já foi no fim, mas já na época do Silva Gordo" (ex-encarregado de fabricação).

No processo de substituição da mão-de-obra agrícola por mão-de-obratemporária iniciado no período Morganti e acelerado no Silva Gordo com amecanização da lavoura, a possibilidade de permanecer na empresa, vislumbradapor alguns trabalhadores, colaborou para que esses aceitassem o "convite" daempresa, optando pelo FGTS como forma de garantir o emprego, o que aindaera visto por eles como promoção25.

O fundo de garantia, por exemplo, em troca da mudança. Veja bem, emtroca da mudança de serviço em 69. Eu saí da lavoura, prá entrar prámecanização. Eu fui convidado a assinar o fundo de garantia ( ex-motorista).

Naquela época já existia o fundo de garantia, mas a gente era... (...) E eudesisti daquilo lá, daquele tempo de casa, que eu tinha direito, prá optar pelamecânica (ex-mecânico de manutenção).

Na Usina Tamoio, sob a administração Silva Gordo, esse processo, quecomeçou ainda no período Morganti se intensificou, adquirindo em alguns casoscaráter de violência explícita e perseguição sobre aqueles trabalhadores queoptaram pela manutenção no regime antigo, conforme se verifica no relato dessetrabalhador.

Quando o Silva Gordo comprou, ele mandou uma folha da nova lei do fundode garantia prá passar na lei nova, do fundo de garantia, ele passou umafolha prá cada trabalhador, prá eles pôr o que eles quisesse ali sobre atransferência e mandar para o escritório.(...) Então eu não pus nada e devolvi

25O mecanismo de barganhar melhores salários e ascensão profissional dentro das empresascomo forma de pressionar os trabalhadores a "optarem" pelo FGTS, abrindo mão do tempode trabalho anterior, prática comum utilizada pelas empresas nos anos imediatamente apósa promulgação da lei 5.107/66, que cria o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, foianalisado por Ferrante em sua obra intitulada FGTS: Ideologia e Repressão. São Paulo:Editora Ática, (Coleção Ensaios, 44), 1978.

Page 122: retratos de assentamentos

122 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

e falei que não, que as propostas deles não me agradava, que eles mandavauma proposta e mandava uma folha prá gente pôr né. Eu devolvi tudo, faleique a proposta não me agradava, que continuaria na lei velha. Até a maioriados trabalhadores foram na conversa deles e optaram prá lei nova. (...) E eupor esse motivo de eu ter ficado na lei velha, eles começaram me perseguir.Eles reajustava o salário dos outros empregados e o meu não reajustava. Sóreajustava o que vinha dentro da lei, o que lei dava. Naquela época é dosmilitar, quase não vinha aumento né. (...) e começou aquela pressão, aquelapressão! E eu fui aguentando a mão, aguentando a mão e eu tinha 30 anosde casa, ele não podia fazer nada comigo né (ex-cozinheiro).

Embora as formas de pressão sutilmente utilizadas pela empresa não tenhamconseguido seduzir a todos, a grande maioria acabou por optar pelo FGTS. Apartir de 1974, verifica-se na Junta de Conciliação e Julgamento de Araraquaranúmero crescente de opções pelo FGTS com efeito retroativo a 196726. Aopção pelo regime do FGTS, a partir de então, abrangendo trabalhadores daindústria e da agricultura, finalmente enquadrados como industriários pelaComissão de Enquadramento Sindical, criou flexibilidade para que a empresarealizasse acordos com os empregados mais antigos. As indenizações em tornode 60% do total devido foram negociadas para pagamento em até 30 parcelas,cujos pagamentos foram interrompidos logo após a liquidação das primeirasparcelas, tendo os trabalhadores que acionar a Justiça do Trabalho para orecebimento do restante, ou ainda para pleitear a anulação da transação.

Nos sete primeiros anos da administração Silva Gordo, o movimento deações trabalhistas iniciado no período Morganti teve efetiva continuidade. Oretardamento na resolução da polêmica em torno da questão do enquadramentosindical dos trabalhadores da lavoura gerou um volume grande de açõestrabalhistas, nas quais os trabalhadores, sob a mediação do Sindicato dosTrabalhadores das Indústrias de Alimentação de Araraquara (STIAA), pleitearamo pagamento de diferenças de salários, de férias, de décimo terceiro salário, de

26Entre 1974 e 1982, o total de opções pelo FGTS, com efeito retroativo a 1967, atingiu 344opções. Esse processo de opções pelo FGTS, estaria, possivelmente associado àpromulgação da Súmula no 57 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) de 1974 que estipulavao enquadramento dos trabalhadores da lavoura de cana das usinas açucareiras comoindustriários.

Page 123: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 123

horas extras e descanso semanal remunerado, decorrentes da não aplicação dodissídio intersindical. E ainda, as reivindicações de pagamento de diferenças deindenizações, e outras verbas rescisórias, pelo mesmo motivo, levadas a cabopelos trabalhadores demitidos, foram os principais objetos que engrossaram ovolume de ações trabalhistas no período de 1970 a 1976.

O ano de 1977 inaugurou uma nova fase na administração Silva Gordo. Ostempos de euforia, de ampliações, de reformas e de pagamentos até adiantadoscederam lugar a um novo tempo, no qual o pagamento dos salários passou a ser"artigo de luxo", conforme denuncia o depoimento deste antigo trabalhador:

Ele (o Silva Gordo) chegou lá feito um doido! Começou a reformar tudo,casa... gastou dinheiro a beça, pintou e rolou. Nunca vi tanto dinheiro naminha vida! O pagamento nosso saía dia 29, não saía nem dia 30. Era oBanco Português que fazia o pagamento. Ele chegou num feriado de Primeirode maio a contratar o Santos e a Ferroviária prá fazer um jogo amistoso lá.Reformou aquilo, a usina ex- inteira. Fez o diabo lá! Só que depois arriou prátrás, acabou o dinheiro (ex-escriturário).

Nesse quadro crítico, representado pelo não pagamento de elevados débitosfiscais para com o fisco estadual e federal, com constantes atrasos nos pagamentosde salários dos trabalhadores e o não recolhimento do FGTS, trabalhar na UsinaTamoio passou a ser uma desventura27. O não cumprimento das obrigaçõescontratuais, sobretudo no que se refere ao pagamento dos salários, a situaçãode instabilidade a que os trabalhadores estavam submetidos, vivendo sob o típicosistema de vales, endividando-se em armazéns e mercearias das cidades deAraraquara e Ibaté, levaram alguns a pleitear rescisão indireta do contrato detrabalho. No total foram 90 pedidos de rescisão indireta entre os anos de 1977e 1982. Muitos se desligaram "espontaneamente", compondo-se amigavelmentecom a empresa perante a Justiça do Trabalho, desonerando-a, assim, de boaparcela de suas obrigações trabalhistas.

27A Usina Tamoio, nessa época, contava, em períodos de entre-safra, com um númeroaproximado de 1.000 empregados, sendo 650 ligados às atividades industriais e 350 àlavoura. O número de mulheres que trabalhava eventualmente na lavoura com registro econtrato de trabalho por tempo indeterminado era aproximadamente de 100. Na safra, recorria-se de 800 a 1.000 volantes e a mulher normalmente era contratada por empreiteiros parareceber a mesma diária do homem. (FERRANTE, 1984).

Page 124: retratos de assentamentos

124 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Aí o pessoal ia no armazém (de fora), fazia uma despesa, deixava prá pagaresse mês. Quando era no outro mês não fazia pagamento. Ele vai pagarcom o quê?(...) até quando eu vi que a coisa estava assim... Por isso que eusaí, senão estava lá até hoje (ex-eletricista).

Nos três anos seguintes, a situação de instabilidade se agravou, tornando-se insustentável. Em 23 de dezembro 1981, sem garantias de sobrevivência,não podendo nem mesmo contar com o crédito dos comerciantes locais, quepassaram a negar o fornecimento de mercadorias para o pessoal da UsinaTamoio, trabalhadores da indústria e da lavoura, já esgotados, decretam greve,levando adiante um movimento que durou 120 dias, em períodos alternados(FERRANTE, 1984).

Esse movimento grevista brilhantemente analisado por Vera Lúcia Silveira BottaFerrante em artigo intitulado Tamoio: Olha tem nó na cana, publicado na RevistaPerspectivas, número 7, de 1984, da Universidade Estadual Paulista (UNESP) deAraraquara, páginas 3l a 40, como bem demonstra a autora foi marcado por vaise vens, tentativas de esvaziar o movimento por parte da usina, acordos nãocumpridos e grande exposição dos trabalhadores. Legítimo e legal em suasreivindicações, uma vez que estas se voltavam para a obtenção dos salários nãopagos, esse movimento que teve como marca a falta de tradição de luta por partedesse grupo de trabalhadores, acabou sendo ofuscado, inclusive, pelo peso dacultura fortemente enraizada desde o período Morganti. Assumiu desta formacaracterística de um "marcapasso" com reações e manifestações fragmentadas.

O movimento foi às ruas, conquistou visibilidade, angariou a solidariedade emobilização de toda a sociedade araraquarense. Reuniões foram realizadas emSão Paulo, Piracicaba com o usineiro com o intuito de resolver a situação dosTrabalhadores da Usina Tamoio que se tornava cada vez mais crítica, no entanto,as tentativas de negociações se mostraram infrutíferas. Apesar de a imprensa resistirna divulgação, ganhou repercussão em nível nacional. Órgãos governamentais comoo IAA, Secretaria da Agricultura, Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário,Ministério do Trabalho, entre outros, foram acionados na perspectiva de se conseguiruma solução para o caso. Discutiu-se a perspectiva de desapropriação da usinapelo não cumprimento dos interesses sociais, aplicando-se o Estatuto da Terra,proposta barrada pelo Sindicato da Indústria da Alimentação de Araraquara(STIAA) que, visivelmente comprometido com os interesses dos usineiros,propunha a resolução do conflito pela via legal e apoiava-se na polêmica questãodo enquadramento sindical dos trabalhadores rurais de usinas.

Page 125: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 125

Muitos esforços foram realizados, no entanto, se mostraram inúteis. Comtodas as outras possibilidades fechadas pelo Sindicato e pela empresa, inclusiveas discussões de desapropriação por interesse social e a formação de umaCooperativa de Trabalhadores, a luta se concentrou em torno da questão dossalários atrasados e FGTS não recolhido, engrossando o processo 466/82, cujacomplexa trajetória pelos tribunais do trabalho, por mais de seis anos, resultouem um calhamaço de seis volumes, com mais de 5.000 páginas.

Este processo que foi solucionado apenas em 1988 teve como foco de interesseo pagamento dos salários atrasados e FGTS não recolhido. Para o pagamento dadívida foi penhorada a Fazenda Chibarro, leiloada pelo sindicado em 1983. Noleilão, os 110 alqueires da fazenda, com valor estimado em Cr$ 180.000.000,00(Cento e oitenta milhões de cruzeiros), receberam um único lance irrisório de Cr$50.000.000,00 (Cinqüenta milhões de cruzeiros). Foi então decidido adjudicar apropriedade em nome do sindicato para o pagamento dos débitos trabalhistas.

Entretanto, a expedição da carta de adjudicação esbarrou em sérios problemas.Através do seu bem aparelhado departamento jurídico, a empresa se empenhouem emperrar a expedição da carta de adjudicação, deixando a nítida impressãode tentar, com os expedientes legais de que dispunha ganhar tempo para nãoentregar aos trabalhadores o que lhes era de direito. Esse processo que se inicioucom o pedido de nulidade da adjudicação, sob a alegação de farsa e simulação naarrematação por não possuir o arrematante, segundo a empresa, qualidade ecapacidade econômico-financeira para tal ato, esbarrou ainda em dois mandatosde segurança impetrados contra a juíza do trabalho de Araraquara, e na cessão etransferência dos direitos aquisitivos, por meio de liquidação do salário de maio/82, de 40,033587 das suas partes ideais da Fazenda Chibarro, havidas por meiode adjudicação, por um grupo de 266 trabalhadores, em grande parte pertencentesao setor administrativo. Mecanismo diabolicamente utilizado pela empresa, parareaver boa parcela da fazenda adjudicada. Com essa artimanha, a usina conseguiuque a expedição da carta de adjudicação fosse protelada por dois anos, quandofinalmente em 27 de abril de 1987 foi expedida em nome do Sindicato dosTrabalhadores da Indústria da Alimentação de Araraquara (STIAA).

Expedida a carta de adjudicação, a possibilidade de uma apropriação porparte dos trabalhadores das terras da fazenda não chegou a ser cogitada. Osindicato, que defendia a hipótese de venda da fazenda em hasta pública para aliquidação dos débitos trabalhistas, não chegou a levar esse projeto adiante,deixando transparecer o desejo de tentar medidas conciliatórias com osproprietários da usina. Durante o ano de 1987, até maio de 1988, se limitou em

Page 126: retratos de assentamentos

126 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

liquidar parcialmente alguns processos individuais, utilizando para isso recursosobtidos com a venda de algumas casas de um conjunto de 494 residênciasarrestadas em garantia do processo e localizadas no município de Taquaritinga.Com esse procedimento, sindicato e empresa ganharam tempo para as discussõesda conciliação que, finalmente, foi publicizada em Abril de 1988. Como a primeiraproposta de liquidação dos débitos trabalhistas em cinco parcelas foi rejeitadapelos trabalhadores, foi feita uma segunda proposta de pagamento em trêsparcelas, devidamente corrigidas, que finalmente foi aceita por eles.

Na assembléia de liquidação do processo 466/82, realizada na sede doSTIAA, em junho de 1988, defendendo a proposta da empresa e difundindo aidéia do acordo como algo favorável aos trabalhadores, o advogado do sindicatoapresentou a conciliação como única alternativa possível, sob o risco do processocontinuar embargado na Justiça do Trabalho, por longo tempo.

Assim, induzindo os trabalhadores a aceitarem a proposta da empresa, aprópria assessoria do sindicato, que em tempos anteriores defendeu a luta pelavia da legalidade, pareceu, naquele momento, difundir a descrença na Justiça doTrabalho como campo de luta. O prazo de 10 a 20 anos estimado pelo advogadoresponsável pela condução das negociações não deixou outra alternativa paraos trabalhadores que, de um lado pressionados pela necessidade imediata dodinheiro, de outro ludibriados pela direção sindical altamente suspeita, e cansadosda longa espera, decidiram por meio do voto direto pela aceitação da proposta.

Para tal decisão, colaborou muito a crença de que a terra de nada lhes serviasem as condições técnicas para trabalhá-la. A ilusão de que a usina podia vir aser reativada impediu que os trabalhadores mantivessem o desejo de se tornarproprietários das terras que, segundo alguns deles, representam o pulmão dausina. É na Fazenda Chibarro que se encontra a represa, fonte de água para ausina e da qual ela não prescinde.

Mais uma vez, parece ter prevalecido a crença de que a terra do patrão erainviolável. Parece ter pesado nessa decisão resquícios da fidelidade sentida edevida desde o período Morganti, fortemente enraizada na memória e na vidados seus antigos trabalhadores.

Considerações FinaisAo longo deste trabalho procurou-se contar um pouco da história da Usina

Tamoio, e do grupo constituído por seus trabalhadores e moradores. Buscou-se entender o complexo mundo de relações sociais que se estruturava emtorno da Usina Tamoio, o seu sistema de dominação e a forma como esta

Page 127: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 127

dominação foi interiorizada e legitimada pelos dominados. Nas representaçõesdos trabalhadores e moradores, nas suas memórias, buscou-se os significadosde viver e trabalhar naquele espaço.

No processo de investigação, a descrição da usina como um lugar privilegiadopara trabalhar, morar e viver sobressaiu no discurso dos trabalhadores,independentemente da posição ocupada na estrutura social da empresa.Especialmente sob o domínio Morganti, que coincide com a expressão máximada fartura e do prazer, a usina é lembrada como parte de suas vidas e o tempotrabalhado na Usina Tamoio como um tempo bom.

Adotou-se como princípio analítico a consideração de que a estruturaçãodesse universo simbólico aparece imbricada ao mundo do trabalho. As reflexõesfeitas acerca da forma como os sujeitos representam aquele mundo levaram aconcluir que suas representações foram geradas num tempo vivido, na experiênciaque "compreende a resposta mental e emocional, seja, de um indivíduo, ou deum grupo social, a muitos acontecimentos interrelacionados ou a muitas repetiçõesdo mesmo tipo de acontecimento" (THOMPSON, 1981, p.15).

A experiência se formou no ato de viver e de trabalhar, em um mundo e em umlugar onde os indivíduos, guardadas as necessárias diferenciações, têm "na históriacomum do vivido, uma história compartilhada" (FERRANTE, 1992, p.559). Issoleva a pensar que a forma como representam aquele mundo não é fruto de umaação maniqueísta da usina, mas resultado de um tempo concreto de vida.

O paraíso vivido e sentido no período Morganti cedeu lugar a um tempo deagruras e aflições no período Silva Gordo, mas mesmo as lutas, até certo pontoem vão, levadas a cabo pelos trabalhadores nos últimos tempos da usina, nãomodificaram neles a lembrança de um tempo marcado na memória.

E, portanto, a partir dessa realidade que entende-se ser necessário pensar oAssentamento Bela Vista do Chibarro hoje. Entende-se que ele é umdesdobramento da História da Usina Tamoio e da Seção Bela Vista. Sua históriarecente, portanto, não pode ser abstraída dessa história anterior. História quemarcou corpos e almas de pessoas concretas, de carne e osso. Pessoas quenaquelas terras, trabalharam, naquelas casas moraram, naquele lugar viveram.Sim viveram, pois foi ali que tiveram a possibilidade de realizar seus sonhos,correndo o risco de ser felizes ou infelizes.

Referências

ALVIM, Maria Roselene Barboza. Família e Proletarização industrial: A

Page 128: retratos de assentamentos

128 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Constituição de um mercado de trabalho "específico de uma Fábrica Têxtil.Anais do IV Encontro Nacional ABEP, 1984.

ALVIM, Maria Roselene Barbosa. Constituição da Família e TrabalhoIndustrial: Um Estudo Sobre Trabalhadores Têxteis numa Fábrica com VilaOperária. Tese (Doutorado em Antropologia Social). Museu Nacional, Rio deJaneiro, UFRJ, 1984.

BOURDIEU, Pierre. Sistemas de Ensino e Sistemas de Pensamento.Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectivas, 1974.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel/BertrandBrasil, 1989.

D' AQUINO, Teresinha. Do Barro ao Pó: A maldição do Oleiro. Tese(Doutorado em Sociologia). Universidade de São Paulo (USP), 1992.

FERRANTE. Vera Lúcia Silveira Botta. FGTS: Ideologia e Repressão.São Paulo: Editora Ática, 1978.

FERRANTE, Vera Lúcia Silveira Botta. Tamoio: olha tem nó na cana.Revista Perspectivas, São Paulo, n.7, UNESP, p.31-40, 1984.

FERRANTE, Vera Lúcia Silveira Botta. A Chama Verde dos Canaviais(Uma História das Lutas dos bóias-frias). Tese apresentada para o concursode Livre Docência, Araraquara/UNESP, 1992, (mímeo).

GNACARINI, José Cesar A. Estado, Ideologia e Ação Empresarial naAgroindústria Aúcareira no Estado de São Paulo. Tese (Doutorado emSociologia). Universidade de São Paulo, São Paulo, 1972.

LEITE LOPES, José Sérgio. O vapor do diabo: o trabalho dos operáriosdo açúcar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

LEITE LOPES. José Sérgio. Fábrica e Vila Operária: considerações sobreuma forma de servidão burguesa. In: Mudança social no Nordeste. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1979.

Page 129: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 129

LEITE LOPES, José Sérgio. Aspectos da formação de um grupo detrabalhadores numa fábrica com vila operária: a instituição de uma forma dedominação através do processo de recrutamento de força de trabalho. In:Relações de trabalho e relações de poder: mudanças e permanências.Ceará, Imprensa Universitária, 1986.

LEITE LOPES, José Sérgio. A tecelagem dos conflitos de classe nacidade das chaminés. Brasília: Editora Marco Zero - UNB em co-ediçãocom MCT/CNPq, 1988.

MARTINEZ CORRÊA, Ana Maria. História Social de Araraquara - 1817/1930. Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade de SãoPaulo, São Paulo, 1967.

MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Os Pensadores. SãoPaulo: Abril Cultural, 1978.

ORNELLAS. Manoelito de. Um bandeirante da Toscana: PedroMorganti na Lavoura e na Indústria Açucareira de São Paulo. SãoPaulo: Edart, 1967.

PAGÉS, Max, et al. O Poder das Organizações. São Paulo: Atlas, 1990.

THOMPSON, Edward P. A Miséria da Teoria ou um Planetário deErros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

WEBER, Max. Economia y Sociedad. México: Fondo de CulturaEconómica, 1969.

Page 130: retratos de assentamentos

130 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Page 131: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 131

EDUCAÇÃO EM DOIS TEMPOSNAS TERRAS DO BELA VISTA:USINA DE CANA-DE-AÇÚCAR EASSENTAMENTO EMARARAQUARA/SP

Ana Flávia Flores1

Vera Lúcia Silveira Botta Ferrante2

Maria Cristina dos Santos Bezerra3

1Graduanda em Pedagogia da Terra na UFSCar. Pesquisadora bolsista I.C.- Funadesp –Nupedor (Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural). Uniara (Centro Universitário deAraraquara). Email: [email protected] Doutora e Coordenadora do Mestrado em Desenvolvimento Regional e MeioAmbiente da Uniara e do Nupedor. Email: [email protected] Adjunta do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos.Pesquisadora do GEPEC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo) daUFSCAR. Email: [email protected] .

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar os processoseducacionais vivenciados no Assentamento Bela Vista do Chibarro emAraraquara/SP. Distinguimos o processo que permeou a construção pedagógicada Escola do Campo "Prof. Hermínio Pagôtto" em dois momentos distintos:quando as terras da fazenda eram de uma usina de cana-de-açúcar e, depois,enquanto assentamento rural. No período da usina de cana-de-açúcar, a escolatinha como objetivo servir ao crescimento do capital da usina, com umaconcepção de ensino-aprendizagem que valorizasse a formação do amor aotrabalho e respeito às autoridades. Já no período do assentamento a escolatoma novo rumo para os filhos dos trabalhadores, passando a contemplar umaformação que valorize e contribua na formação de uma consciência mais crítica,possibilitando uma autonomia reflexiva sobre as experiências vivenciadas nacomunidade e na sociedade. A metodologia utilizada foi pesquisa bibliográfica,com o aprofundamento histórico daquele local, bem como a investigação dosprocessos históricos da transformação de um Grupo Escolar para uma Escola

Page 132: retratos de assentamentos

132 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

do Campo e observação direta da realidade.

Palavras-chave: Grupo Escolar e Escola do Campo.

Abstract: This paper aims to present the teaching methods adopted byteachers in the settlement of Bela Vista do Chibarro in Araraquara/SP. Wefocus on the development of a pedagogical approach employed by the Escolado Campo "Prof. Hermínio Pagôtto" over two distinct time periods: thefirst period refers to the period when the sugarcane mill was the landownerof the farming lands and, the second period began with the establishmentof the rural settlement. During the operational period of the mill, the schoolwas designed to achieve the goals of the mill, such as the capital growth,and the major strategies used in teaching included moral values such asfidelity to duty and respect for authority. Whereas during the period of thesettlement, the school provided new direction for education to the worker'schild, enhancing education and contributing to the process of criticalconsciousness formation, encouraging students to become autonomous andreflective practitioners with respect to their experiences in their communityand in the society. The methodology used in this study included literaturereviews, bibliographic searches, and an exhaustive investigation of thehistorical documentation of that area as well as the examination of historicalprocesses of transformation of a rural elementary school into a ruralmainstream school, and direct observation of reality.

Keywords: Rural Elementary School and Rural Mainstream School.

IntroduçãoO Assentamento Bela Vista do Chibarro está localizado no município de

Araraquara e é próximo a duas importantes usinas da região: a Usina ZaninLtda. e à Açucareira Corona S/A4. Esta região é considerada um grande centroagroindustrial, fazendo parte da macro-região de Ribeirão Preto. SegundoFerrante (1990) e Silva (1995):

4Atualmente as duas usinas foram compradas pela Cosan S/A Indústria e Comércio, quevem promovendo a monopolização da produção sucroalcooleira no estado de São Paulo.Sob seu comando, estão dezesseis usinas, além de terminais privativos no porto de Santos.

Page 133: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 133

A região é conhecida como Califórnia Brasileira em função do grandepotencial econômico que as agroindústrias da cana e da laranja trouxerampara a região, o que gerou a verticalização da produção e uma grandeconcentração de renda, em contrapartida, gerou a expropriação dos pequenosprodutores e péssimas condições de vida aos bóias-frias [...] Mudando opanorama das cidades próximas às usinas, transformando-as em cidadesdormitórios (FERRANTE; SILVA, Apud BAÚ, 2001, p.7).

Este assentamento teve, em seus momentos históricos, diferentes rumosem relação à região centro-oeste do Estado de Paulo, na qual está inserida,pois segundo Mascaro (2003), está constituído nas terras de uma antiga fazendade café, chamada Bela Vista, estabelecida no fim do século XIX. Em agostode 1934 a fazenda foi agrupada às terras de uma usina de açúcar (UsinaTamoio5), sendo aumentada e utilizada como vila operária (prédios, habitações,mão-de-obra) que acabaram servindo à produção do açúcar. Com adecadência da usina, as áreas da fazenda foram desapropriadas pelo InstitutoNacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA – para reforma agrária,no ano de 1989.

Nessas terras surgiu um grupo escolar, em terras de uma usina e, depois, estemesmo grupo tem uma nova configuração na sua história. Atualmente as terrasforam destinadas à reforma agrária e a escola passou a atender filhos deassentados com uma nova caracterização e organização.

Usina de cana-de-açúcar e o grupo escolarFundada em 1917, com o nome Engenho Fortaleza (propriedade na qual se

iniciou a Usina Tamoio), foi adquirida pelo Grupo Morganti. Na década de 1950,se tornou uma das maiores usinas do Brasil, (FERRANTE, 1984). A fazendaBela Vista é marcada pela intensificação da produção açucareira, dentro de umausina que foi pioneira na instalação da primeira moenda de cana do mundo e nautilização da vinhaça como fertilizante agrícola.

O Engenho Fortaleza nasceu com status de usina, pois "além de um prédioindustrial, apresentava benfeitorias que compreendiam a construção de algumas

5Usina Tamoio era o nome fantasia da empresa, a razão social era Refinadora Paulista S/A.E Tamoio vem do termo "tamuya" que em língua tupi significa "os velhos, os idosos, osanciãos", os que mais prezavam os costumes tradicionais.

Page 134: retratos de assentamentos

134 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

casas em torno da planta fabril. A área da propriedade girava, na ocasião, emtorno de dois mil alqueires" (CAIRES, 1993, p.55).

A transformação do Engenho em usina sucedeu através de investimentos emcapital constante e com a incorporação de tecnologias e, principalmente, emvirtude da aquisição de fazendas cafeeiras localizadas nas proximidades, quedevido à crise do café eram vendidas a baixos custos. Entre os anos 1920 a1930 a usina Tamoio respondia por aproximadamente 12% da produção totalde cana-de-açúcar do Estado de São Paulo.

E em 1946 a usina se transformou na maior indústria sucro-alcooleira do paíse da América do Sul. Segundo Caires (1993) os trabalhadores da usina eramdivididos entre trabalhadores da agricultura e trabalhadores da industrialização,compostos de: colonos de cana (ficavam nas seções agrícolas), assalariadosagrícolas, operários de fabricação, manutenção, empregados da administração,escritórios, inclusive os trabalhadores do transporte ferroviário que transportavaa matéria-prima até as moendas6. Foram construídas na época 1.500 casas queserviam de residência para as famílias moradoras da usina. Essas casas eramconstruídas nas fazendas de café que Pedro Morganti ia adquirindo. Ao redorda usina foram compradas 5.278 alqueires e "abrigava um contingente demoradores que variava entre 7.000 a 10.000 habitantes" (CAIRES, 1993, p.65).

Pedro Morganti organizou na usina toda uma infraestrutura para atender àsdemandas sociais dos trabalhadores que incluíam construções de lazer eassistência para manter os trabalhadores ligados ao local. A usina possuíaestruturas como:

Oficinas mecânicas, um ambulatório médico localizado na Seção Bela Vista,ambulância, prédio do Circulo Católico, um campo de pouso para aviões depequeno porte, pelo menos uma capela em cada seção, uma biblioteca, salade projeção de filmes e peças teatrais, um grande estádio esportivo, armazém,açougue, farmácia, padaria, loja de ferragens, loja de tecidos e armarinhos,torrefação de café, fábrica de sabão, leiteira, sorveteria, instituto de beleza,gabinete dentário, agência postal, serviço telefônico, um serviço de ônibusque ligava a cidade de Araraquara à estação de trem Tamoio, uma catedralreligiosa, além de uma hospedaria similar a um hotel citadino (TEIXEIRA,2010, p.24).

6As estradas de ferro estavam estendidas por todas as seções da usina.

Page 135: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 135

Ao que tudo indica, o dono da usina garantia que todas as demandas sociaisde seus empregados fossem satisfeitas no interior da usina.

No que diz respeito à organização social, podemos destacar o setoreducacional na usina, pois desde 1930 existiam seis escolas isoladas7 nas seçõesda usina, e um Grupo Escolar D. Giannina Morganti. Destas seis escolas isoladas,duas foram elevadas à qualidade de Grupo Escolar.

O Grupo Escolar Comendador Pedro Morganti (construído em 1942) estavasituado na seção Bela Vista, que possuía aproximadamente 150 casas, um postode saúde, uma igreja católica, uma estação de trem (TEIXEIRA, 2010).

Este grupo escolar foi construído para atender colonos residentes nas terrasda usina. Como as seções às vezes eram muito distantes da sede, não era possívela todos os filhos dos trabalhadores terem acesso à escola, uma vez que só nasede tinha o Grupo Escolar D. Giannina Morganti e só as crianças das seçõesmais próximas conseguiam frequentar a escola. A instalação de um grupo escolarna seção Bela Vista, uma das maiores da usina, possibilitou que fossem atendidascrianças de 13 seções próximas ao Bela Vista.

Um fator importante de destaque é que em uma usina do interior paulistaexistam três Grupos Escolares, o que era considerado um símbolo damodernização educacional. Conforme dados colhidos em sua pesquisa, Souza(s/d) mostra que "a superioridade organizacional e material dos grupos escolaresfez com que fossem considerados estabelecimentos escolares arquetípicos doque melhor havia no ensino primário" (SOUZA, s/d, p.01). Os Grupos Escolareseram "vistosos prédios públicos que rivalizam com a igreja, a câmara municipale as mansões mais importantes tanto da capital como das principais cidades dointerior" (SAVIANI, 2004, p. 3).

Os grupos escolares foram uma implantação dos republicanos no Estado de

7Desde a implantação dos grupos escolares no final do século XIX, o projeto republicanode difusão da escola graduada encontrou na "dispersão" geográfica do meio rural umgrande obstáculo. Neste período, grande parte da população encontrava-se em regiõesafastadas dos centros urbanos onde, muitas vezes, dada a distância e as dificuldadesmateriais encontradas, a instalação e manutenção dos grupos escolares tornavam-se inviável.Dessa forma, para atender o meio rural a alternativa encontrada para a difusão da instruçãoprimária foi a implantação de escolas isoladas, o que não era muito favorável. Localizadasem casas adaptadas e com poucos recursos, falta de material escolar, providas por professoresem início de carreira e sem a presença do diretor e de outros professores com os quaispudessem trocar experiências, restava-lhes pedir remoção ou afastamento (SILVA, s/d).

Page 136: retratos de assentamentos

136 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

São Paulo como forma de acabar com o passado Imperial, e instalar um sistemade ensino moderno, cuja organização pedagógica servia como modelo para outrosEstados brasileiros. Isto significou um progresso oposto ao atraso do regimeImperial, "uma nova expectativa de vida, um novo projeto social e a educaçãofoi estabelecida como condição primeira para a ordem e o progresso necessárioao desenvolvimento do país" (JESUS, FOERSTE, s/d, p.1).

A Reforma de 1892-1893 viabilizou a idéia de ajuntar várias escolaspreliminares e montá-las em um único prédio (os grupos escolares). Em 1894,esses grupos vão ampliar seus trabalhos de forma integrada, na qual, haverá umprofessor responsável para cada classe.

Como podemos observar, os Grupos Escolares foram pensados para o meiourbano, mas segundo dados encontrados no relatório de ensino de 1936, ogrupo escolar da Usina Tamoio foi um prédio construído no meio rural para sercedido ao Estado:

O grupo escolar da Usina Tamoyo funcciona em prédio construídoespecialmente para esse fim pelo Sr. Cavalheiro Pedro Morganti, proprietárioda Usina, que o cede gratuitamente ao Estado. Além disso, fornece o Sr.Morganti inteiramente livre de qualquer pagamento, casa ao director eprofessores do grupo. Estas habitações foram também especialmenteconstruídas e dispõem de todo o conforto moderno (DELEGACIAREGIONAL DO ENSINO DE ARARAQUARA, 1936, p. 43).

Mas, qual seria a função educativa presente naquele sistema educacional?Segundo Souza (s/d) a concepção de ensino nos grupos escolares tinha comoprincípio essencial a formação do caráter e a aprendizagem da disciplina social,ou seja, a "obediência, asseio, ordem, pontualidade, amor ao trabalho,honestidade, respeito às autoridades – virtudes morais e valores cívico-patrióticosnecessários à formação do espírito de nacionalidade" (SOUZA, s/d, p.3). E écom o princípio de amor ao trabalho e respeito à autoridade que a usina sustentavaum complexo sistema educacional, que levou a pensar em um:

Sistema integrado à formação de um aparelho ideológico com a utilizaçãode práticas pedagógicas, que tinha por objetivo socializar as crianças, futurostrabalhadores, inculcando-lhes valores éticos de apego ao trabalho, àmodernização e arranjos implantados pela direção da empresa (CAIRES,1993, p.69).

Page 137: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 137

A finalidade desse sistema integrada na formação do trabalhador da usina erano sentido de valorização do trabalho, com objetivo de sair homens conscientes,livres, operários, lavradores e obreiros que não decepcionam a organização queconta com trabalhadores dedicados para seu sucesso da produção e crescimentoda usina (CAÍRES, 1993).

Desde muito cedo, as crianças eram inseridas no trabalho, ajudando emplantações de subsistência8. Elas eram treinadas para se tornar em trabalhadoresda lavoura. No Grupo Escolar Comendador Pedro Morganti da seção BelaVista, o currículo escolar incluía aulas práticas de corte e plantio de cana,desenvolvidas durante o ano letivo. Esta seção concentrava o maior número detrabalhadores agrícolas, em particular colonos. Conforme o depoimento de umcolono, apresentado por Caíres (2008):

O Grupo Escolar era rural! (grupo escolar seção Bela Vista). Então tinhauma área de cana no grupo escolar que os alunos, todos os alunos dogrupo tinha que trabalhar meia hora de serviço, como rural. Tinha horta,tinha pomar [...] Chegou uma época engordava até porco no grupo escolar.E tinha uma ordem ali dentro: "Todos os alunos trabalhar meia hora pordia!" Porque era rural! O nome do grupo era: "Grupo Escolar RuralComendador Pedro Morganti", é o que está lá até hoje e [...] Pra nós eraaté interessante isso daí! Os professores também tinha que ser prático,ser professor rural, o grupo tinha uma área grande, e fora da área dogrupo tinha uma área de cana que pertence ao grupo escolar. Essa canasegundo se ouvia falar, essa cana era posto na usina e o dinheiro erarevertido em material para os alunos, essas coisas. Se é que era né?(CAIRES, 2008, p.170).

Como mostra o depoimento, o currículo escolar visava uma educação queensinasse como trabalhar na terra, na qual a educação tinha que ser para rural, oespaço era rural e até os professores deveriam entender o rural. Isso demonstrao que o período estava vivendo no plano da educação que vai ser o "RuralismoPedagógico". A década de 1930 foi importante para o plano educacional no

8Realizadas em lotes cedidos aos colonos as plantações de subsistência baseavam-sefundamentalmente em milho, feijão, arroz e pasto em menor escala, que atendia asnecessidades básicas das famílias.

Page 138: retratos de assentamentos

138 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

país que partiu de uma tomada de posição de rearticulação do ideário educacionalcom base no nacionalismo. Para a efetivação de uma nova "ideologia educacional,que proclamava a importância da escola como via de reconstrução da sociedadebrasileira, advogando para tal a necessidade de reorganização do ensino"(BRITO, s/d, p.12). O que estava presente no currículo escolar no Grupo EscolarComendador Pedro Morganti, com aulas práticas de corte e plantio de cana, avalorização do trabalho e os chamamentos a cooperação estavam vinculados auma organização do ensino em nível nacional, com base no nacionalismo, naordem e no progresso do país.

Outro diferencial para o período foi o discurso do "Ruralismo Pedagógico"que tinha por objetivo promover a fixação do homem no campo:

A escola do campo teria então a função de proporcionar o desenvolvimentodas populações tirando-as da situação de miséria econômica e intelectual e,mantendo-os no campo [...] Educar para o progresso seria manter o homemno campo na roça, com uma educação mínima e pautada nos ideais urbanos(JESUS; FOERSTE, s/d, p. 2).

A idéia de fixação do homem no campo devia-se ao fato que a sociedadebrasileira da época estava vivenciando um movimento migratório interno no país,nos anos de 1910-1920, quando grandes números de pessoas deixaram o campoem busca das áreas urbanas. Segundo Leite (1999) o ruralismo "contou tambémcom o apoio de alguns segmentos das elites urbanas, que viam na fixação dohomem no campo uma maneira de evitar a explosão de problemas sociais noscentros citadinos" (LEITE, 1999, p. 29).

Ao mesmo tempo, a idéia de fixação do homem no campo era defendidacomo forma, para disfarçar a preocupação com o esvaziamento populacionaldas áreas rurais, diminuição social e político do patriarcalismo e demonstraroposição ao movimento progressista urbano (LEITE, 1999). Diante doesvaziamento do campo e início de urbanização, Morganti percebe na escolauma das formas de manter os trabalhadores na usina. Caíres (1993), em seustextos traz informações sobre chamamentos educacionais que estimulavam ostrabalhadores a desenvolver uma visão positiva e perceber a usina como partede suas vidas. Esta visão funcionava tanto para atrair trabalhadores comopara mantê-los ali, vivendo e trabalhando para garantir a produção e o avançoda usina.

Outro marco importante para justificar o Ruralismo Pedagógico aconteceu

Page 139: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 139

em 19429, quando, houve uma atribuição a uma educação que "ruralizasse orural", por meio da construção de uma escola que considerasse às exigências dohomem rural e o prendesse à terra, cultivando ainda o amor à pátria e a serviçoda produção:

Uma escola que desperte e forme uma consciência cívica e trabalhista [...]alicerce da nossa produção e da nossa riqueza [...] que faça desaparecer oferrete da humilhação e desprestigio impresso no trabalho rural desde os temposda escravatura [...] que extinga os resquícios doentios de uma aristocraciafalida e inoperante, herdada dos colonizadores; que represente uma reação[...] contra o doutorismo, o diplomismo [...]; que engrandeça as atividades nocampo e da lavoura; que faça do trabalho organizado e produtivo o códigosocial do Estado (CALAZANS, Apud, JESUS; FOERSTE, s/d, p. 3).

A educação no Grupo Escolar Comendador Pedro Morganti, foi organizadanos moldes do "Ruralismo Pedagógico", sem deixar de lado a base nonacionalismo, que valorizava a ordem, a disciplina, o amor ao trabalho, virtudesmorais e valores cívico-patrióticos. Os chamamentos educacionais queestimulavam os trabalhadores a desenvolver uma visão positiva em relação àvida na usina.

Esta idéia compactua com Mészáros (2005) que define educação comomercadoria de alienação, na qual, através de condições de legitimação do sistema,se explora o trabalho como mercadoria, para induzir as pessoas à aceitaçãopassiva, utilizando também o processo de "internalização" dos valores capitalistas,neste caso, os valores dessa empresa usineira. Mészáros (2005) faz uma analiseda educação e seus processos de dominação, que a educação deve ser delibertação humana e não de dominação. Uma educação emancipatória em queos indivíduos possam entender e interpretar os fenômenos econômicos, sociaise políticos que acontecem dentro da sociedade. De acordo com o autor aeducação, pode dar conta de fazer a diferenciação entre explicar e entender umfenômeno social.

O sistema ideológico que permeava a educação dentro da usina era paragarantir a permanência da mão-de-obra conforme o posto que cada um devesse

9Ano que também foi construído o Grupo Escolar Comendador Pedro Morganti, na seçãoBela Vista.

Page 140: retratos de assentamentos

140 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

ocupar no processo de produção. Outro diferencial é que os objetivos desteGrupo Escolar foram além dos conhecimentos curriculares, pois tambémtransmitiam ensinamentos destinados ao meio rural.

A escola estava atrelada a um processo, como agência educativa, ligado àsnecessidades do progresso da usina para socializar os trabalhados e hábitoscivilizados, que correspondessem à vida e ao trabalho (SAVIANI, s/d). Assim,podemos dizer que a função da escola naquele período era a de formartrabalhadores obedientes e que valorizassem o trabalho na usina, ou seja, ela eraum instrumento para que a família Morganti pudesse exercer sua dominaçãosobre os trabalhadores.

Os primeiros sinais da crise começam a aparecer em 1957 com os atrasosnos pagamentos salariais dos trabalhadores e se agravaram a partir de 1965 e1966. A década de 1960 foi marcada por mudanças na legislação trabalhistacom a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural – E. T. R. – em 1963,regulando as relações de trabalho no campo, que até então estavam à margemda legislação trabalhista como também a política do Instituto de Açúcar e doÁlcool – I. A. A. – que limitava a cota de fabricação e regulação dos preços doaçúcar, em favor das usinas do nordeste e causando prejuízo aos usineirospaulistas. Muitos usineiros, ansiosos por recuperar a rentabilidade de suasempresas, optaram por aumentar a capacidade de suas lavouras de cana, ecapacidade de suas máquinas. Isso teria provocado um endividamento que levoucerca de duas dezenas de usina do estado a enfrentarem sérias dificuldadesfinanceiras (CAÍRES, 1993).

Neste processo, os colonos foram os primeiros a serem atingidos pelaracionalização do trabalho. Consequentemente ficou difícil continuar a arcar coma manutenção desses colonos e operários presentes tanto na sede quanto nasseções, nos antigos moldes assistenciais, que incluíam casa, salários, escola,saúde, lazer, etc. Com a modernização da usina e a ocupação de todas as terrasdisponíveis com plantações de cana, eliminando assim toda a área que serviapara pastos e culturas de subsistência dos colonos, acelerou-se o processo deexpulsão dos colonos.

Desta forma, em abril de 1969 a usina foi vendida ao Grupo Silva Gordo, oque permitiu uma relativa tranquilidade para o grupo durante cinco a seis anos.Como também significou a ruptura com as antigas formas de trabalhos, ou seja,ampliação da mecanização total das lavouras de cana, o que modificou as relaçõesde trabalho. Novos trabalhadores são contratados para os mais diversos cargos.Este novo grupo era para os trabalhadores em geral, uma figura distante ou, até

Page 141: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 141

mesmo, inexistente. Todas as funções executivas e de direção da empresapassaram a demandar, exclusivamente, trabalhadores assalariados.

O Grupo Silva Gordo começou um processo de expulsão dos poucostrabalhadores estáveis que ficaram desde a época da antiga administração.Segundo Ferrante (1984) o novo grupo preparara armadilhas para banir essestrabalhadores:

Com prática já rotineira de não pagamento dos salários, vencer ostrabalhadores pelo cansaço e afastar definitivamente da Usina os moradoresque, na verdade, representam uma incômoda pedra no seu caminho, 700famílias, aproximadamente 2.500 pessoas vivem nesta usina (FERRANTE,1984, p.31).

A crise vivida pela usina atingiu também o Grupo Escolar Comendador PedroMorganti, localizado na seção Bela Vista, com a diminuição do número de alunosmatriculados que, segundo Teixeira (2010), foi reduzido em cerca de 39%, poismostrava que o novo grupo Silva Gordo, relacionando a administração no novomodelo de desenvolvimento, mais pautado na mecanização da cana-de-açúcarem razão da perda da mão-de-obra dos trabalhadores agrícolas. As mudançasnesse modelo administrativo foram sentidos em todos os setores de trabalho nausina e a escola sofreu esse processo chegando, em 1980, com apenas 37 alunosmatriculados, uma redução de 52% dos alunos que atendia. Teixeira declara que:

A quantidade decrescente de alunos está intimamente ligada, às ações postasem práticas pelo novo modelo organizacional e operacional adotado na UsinaTamoio durante os anos 70. O enxugamento do corpo de empregados,provocou o acelerado esvaziamento do corpo discente do grupo escolar.Ainda conforme dados registrados no Quadro de Matrículas, essa instituiçãode ensino iniciou o ano de 1980 com 37 alunos, em 1985 possuía 17 alunos,em 1986 haviam 14 alunos e nos dois anos seguintes o número de 11 alunosmatriculados (TEIXEIRA, 2010, p.35).

A usina não resistiu à crise vivida e suas terras foram divididas. Alguns pedaçosforam vendidos, outros hipotecados para saldar parte das dívidas contraídas nomomento de crise. "O império do açúcar estava acabado. A imensa propriedadeque a família Morganti construiu e que o grupo Silva Gordo havia adquirido nãoexistia mais" (ROSIM, 1997, p. 46).

Page 142: retratos de assentamentos

142 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Assentamento de reforma agrária e a escola do campoA luta pela terra na região de Araraquara, através do movimento que vinha

acontecendo em Guariba/SP em 1984, mostrou que a organização da categoriade bóias-frias estava em plena mobilização por direitos trabalhistas. Essemovimento refletiu nas terras da usina alguns anos depois, mais precisamente naseção Bela Vista que havia sido arrendada pela Caixa Econômica do Estado deSão Paulo (CEESP).

Pode-se afirmar que a Greve de Guariba foi o grande movimentoimpulsionador da luta pela terra e pela Reforma Agrária na região central doEstado de São Paulo. A reivindicação por terras na região de Araraquara,articuladas pelo sindicato e pelos trabalhadores participantes da grande Grevede Guariba, foi uma luta que resultou nos primeiros assentamentos da região, oMonte Alegre em 1984 e o Bela Vista do Chibarro, em 1989.

Ferrante (1984) afirma que aquele foi o momento dos trabalhadores ruraisassalariados conseguirem escapar das armadilhas que lhes eram impostas pelopróprio sistema de produção adotado pelos usineiros de São Paulo, "oscortadores de cana da região de Ribeirão Preto têm demonstrado, na prática, apossibilidade de desfazer os "nós" e os passa-moleques dos patrões por umaação coletiva de resistência" (FERRANTE, 1984, p. 39).

O objetivo de fazermos esta contextualização da luta pela terra na região,especificamente nas terras da Usina Tamoio, é apontarmos os váriosmovimentos que transformam essas terras em um assentamento. A formaçãodo assentamento Bela Vista do Chibarro é caracterizada por seis grupospioneiros: o Grupo dos Antigos Moradores da fazenda, o Grupo que veio deacampamentos de Sertãozinho/SP, o Grupo organizado pelo Sindicato dosTrabalhadores Rurais de Araraquara, o Grupo que veio de acampamentos deSete Barras, no Vale do Ribeira/SP, o Grupo que veio de acampamentos dePromissão/SP e o Grupo dos 36.

Esses grupos vão ocupar a Bela Vista em 1988 e depois de um ano deocupação aquelas terras foram declaradas de interesse social para fins de reformaagrária, pelo Decreto nº 97.660, em 13 de abril de 1989, classificada comolatifúndio por exploração. Segundo Rosin (1997) a luta pela terra e sua realizaçãopara reforma agrária teve um significado todo especial, pois se tratava de realizarum assentamento encravado no meio de grandes latifúndios rurais.

Os assentados do Bela Vista contaram com uma infra-estrutura pronta, naqual já existam casas, posto de saúde, campo de futebol e principalmente oprédio do grupo escolar. O Grupo Escolar Comendador Pedro Morganti tomou

Page 143: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 143

novos rumos após a falência da Usina Tamoio. A escola ficou fechada no períodode legalização das terras do assentamento para fins de Reforma Agrária de 1988a 1990. Depois da homologação do assentamento em 1989, em 1990 acomunidade começou um processo de reivindicação para reabertura da escola,apresentando à Delegacia de Ensino de Araraquara uma demanda real de criançasem idade escolar (TEIXEIRA, 2010). As aulas se iniciaram no mesmo ano,sendo multisseriadas, ou seja, duas salas com alunos de 1ª e 2ª e outra de 3ª a4ª. Funcionou assim por um ano. Em 1994, passa a ser chamada Escola Estadualde Primeiro Grau Rural Profº Hermínio Pagôtto e, em 1996, ficou sobre aresponsabilidade da Escola Estadual Antonio Cunha Soares.

Mas, a tentativa de multisseriar as quatro séries iniciais entraram em cenanovamente, em 1997 quando houve uma tentativa de agrupamento em que ogoverno do Estado de São Paulo, pressionou para que fossem implantadas asséries multisseriadas, utilizando como argumentos o pequeno número de alunospor classe (BASTOS, 2006).

Essa tendência de redução de classes por causa dos números restringidos dealunos é histórica no país, que desvaloriza a educação no meio rural (BASTOS,2006). As escolas multisseriadas foram consideradas como de segunda categoria.O que se esperava das escolas multisseriadas era que desparecessem naturalmente.

Mas o fato é que a comunidade do assentamento Bela Vista conseguiu reverterà tentativa de agrupar as séries na escola. A escola possuía o ensino de 1ª a 4ªsérie e, para continuar os estudos as crianças e adolescentes teriam que concluiro ensino fundamental e médio em escolas da cidade de Araraquara. Nestecontexto, iniciaram-se as reivindicações junto ao poder local para a ampliaçãodo ensino fundamental, de 5ª a 8º série. Desencadeando o debate sobre amunicipalização da escola, mas para que isso fosse efetivo, a Secretaria Municipalde Educação determinou que a escola construísse um projeto que justificasseesse pedido (OLIVEIRA, BASTOS, 2004).

Assim, o debate sobre a construção de um projeto político pedagógico (PPP)para as escolas rurais de Araraquara, foi realizado no Grupo de Trabalho deEscola Rural no Fórum Municipal de Educação que antecedeu a I ConferênciaMunicipal de Educação "Educação para a Cidadania", realizada pelo municípioem 2001 (OLIVEIRA, BASTOS, 2004), o que possibilitou desenvolver adiscussão sobre escola do campo no município:

Esse processo garantiu, como assegura o documento final da Conferência,a implantação, em caráter de urgência, de políticas públicas voltadas para

Page 144: retratos de assentamentos

144 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

as escolas rurais. Entre essas políticas estavam a municipalização da escolado assentamento Bela Vista (Prof Hermínio Pagôtto), a implantação de umaproposta pedagógica para três escolas rurais da cidade e o desenvolvimentode um programa de formação continuada aos educadores (as) do campo(OLIVEIRA, BASTOS, 2004, p. 153).

Outro fator importante, para a construção do projeto foi examinar na legislaçãoas frestas para a construção de um projeto diferenciado para as escolas docampo no município. Podendo destacar algumas leis: a primeira é a Lei Federal9.394/96 que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) eprevê no art. 28 da oferta de educação básica para a população rural, comconteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades dosalunos.

A segunda lei para embasar o projeto das escolas do campo foi a Lei Federal10.172/01 do Plano Nacional de Educação (PNE) que prevê um tratamentodiferenciado para as escolas rurais.

E a terceira esta vinculada a proposta de Plano Nacional de Educaçãoelaborado pela Sociedade Civil, que fez a seguinte referência no II CongressoNacional de Educação (CONED) "prever formas mais flexíveis de organizaçãoescolar para a zona rural, bem como a adequada formação profissional dos/asprofessores/as, considerando a especificidade do alunado e as exigências domeio" (PNE, 1997, p. 57).

Um importante apontamento nesse processo de construção do projeto dasescolas do campo para o município foi o aumento do debate sobre a educaçãodo campo e a pressão dos movimentos sociais em esfera nacional, quando em2002 foi promulgado as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nasEscolas do Campo (Resolução do CNE/CEB nº 1, 2002), completando asreferências feitas às escolas rurais na LDB, o que é importante para "a identificaçãode um modo próprio de vida social e de utilização do espaço, delimitando o queé rural e urbano sem perder de vista o nacional" (CNE/CEB Nº 1, 2002, p. 32).

Para acompanhar todo esse processo de conquista, de um novo projetopolítico pedagógico, estavam presentes: representantes da Secretaria Municipalde Educação, de Universidades, de Movimento Sindical, assentados do BelaVista e do Monte Alegre, entre outros atores, que contribuíram na elaboraçãode um projeto que justificasse uma educação do campo de acordo com arealidade ao qual a escolas rurais de Araraquara estavam inseridas. Umacontribuição fundamental foi a do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem

Page 145: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 145

Terra (MST) pelo avanço que estavam conquistando na luta pela educação docampo em âmbito nacional10. Após várias reuniões foram definidas dez diretrizesgerais distintivas do projeto político pedagógico, que garantisse os objetivosgerais e específicos, a justificativa, a metodologia, que concretizou o projeto da"Escola do Campo", no município:

1) Qualidade social da educação; 2) inserção num contexto global; 3)educação voltada para a valorização do trabalho no campo (teoria e prática);4) democratização do acesso ao conhecimento; 5) gestão democrática coma participação da comunidade na tomada de decisões; 6) criação de espaços,tempos e práticas alternativas de educação; 7) construção de um novo homeme uma nova mulher a partir do resgate da identidade; 8) resistência e luta dohomem no campo; 9) integração e interação com o meio ambiente econscientização ecológica; 10) concepção de que a história é construídapelas lutas sociais (OLIVEIRA, BASTOS, 2004, p. 157).

O projeto político pedagógico foi implementado na escola no início do anoletivo em 2002, com a municipalização da mesma e a extensão do ensinofundamental, instituindo uma Educação do Campo. A preocupação do projetopolítico pedagógico partiu da necessidade de se construir com os alunos umaconsciência crítica, explorando a criatividade, a partir de conhecimentosvivenciados na escola e na comunidade e de conhecimentos acumuladashistoricamente pela ação humana, podendo assim ampliar a percepção dos alunospara uma consciência mais crítica da sociedade (OLIVEIRA, BASTOS, 2004).

Assim, se no início a função da escola era a formação dos trabalhadores dausina, para adaptar os mesmos para o trabalho rural dentro da usina (TEIXEIRA,2010), atualmente é previsto no projeto político pedagógico da escola que afunção social da mesma é de "ampliar os conhecimentos dos alunos partindo darealidade que ele vive e expandindo esse conhecimento para que ele possa teracesso aos conhecimentos atualizados, significativos, valorizados pela sociedadeao mundo contemporâneo" (PPP, 2011/2013, p.19).

10Para maiores informações sobre essa construção ver os Cadernos de Formação (nº 1, 2, 3,4, 5, 6 e 7) da Coleção Por uma Educação do Campo publicado por representantes daArticulação Nacional Por uma Educação do Campo (CNBB, MST, INCRA, MDA, UNESCOe UNICEF).

Page 146: retratos de assentamentos

146 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Saviani (1991) afirma que a questão da eficiência no trabalho escolar é algoque deve ser enfrentado por todos aqueles que estão incomodados com aeducação, sendo que a função da escola é a de "dotar a população daquelesinstrumentos básicos de participação na sociedade" (SAVIANI, 1991, p. 172).Assim através do processo educativo, "assegura-se uma compreensão elaboradada realidade mediante a incorporação dos instrumentos teóricos e práticaselevadas à condição de elementos ativos de transformação social (SAVIANI,2011, p. 7).

A função primordial da escola, segundo Leite (1999) é ensinar, permitindoque o aluno tenha percepções diferenciadas de mundo, de vida, de trabalho e deprodução, tendo novas interpretações de realidade. Ensinar é transmitir valorese traços da história e da cultura de uma sociedade, mas sem, perder aquilo quelhe é próprio, que lhe é referência.

Enfim, a nova proposta do projeto político pedagógico da "Escola do Campo",proporcionou que a escola tomasse um novo rumo para os filhos dostrabalhadores, a sua função social, passou a contemplar uma formação quevalorizasse e pudesse contribuir na formação de uma consciência mais crítica epossibilitasse uma autonomia reflexiva sobre as experiências vivenciadas nacomunidade e na sociedade.

Considerações finaisPensar em Educação do Campo é dar um novo significado para o local em

que os assentados vivem como espaço de ensino, que proporcione utilizar omeio no qual a escola está inserida, como espaço pedagógico para utilização demetodologias que envolvam a escola e seu entorno. A Educação do Campo trazuma nova valorização do conceito campo, que é o campo defendido por muitosautores expostos neste trabalho, como lugar do sujeito do campo, como espaçode produção, vida, trabalho, cultura, com qualidade de vida e da família, consumoalimentar. Um campo que se contrapõe ao agronegócio lugar homogêneo, atravésda composição uniforme da monocultura se caracterizando pela pouca presençade pessoas. A Educação do Campo valoriza o desenvolvimento de todas asdimensões da vida.

Com isso, é dado um novo valor para função social da escola noassentamento Bela Vista. Se antes, os conhecimentos transmitidos tinham comoobjetivo construir uma consciência nacionalista e que valorizasse o trabalhodentro da usina, para crescimento da mesma, agora com a Escola do Camposeu objetivo ou sua função é transmitir conhecimentos para o crescimento do

Page 147: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 147

sujeito do campo, para torná-lo consciente do seu papel na sociedade e paraa transformação social.

A Escola do Campo coloca em pauta a sua função social para conciliar noensino-aprendizagem que valorize o conhecimento da comunidade com osconhecimentos sistematizados pela humanidade. Apesar de a proposta serrelevante, ela encontra amarras que vão além do querer dos seus dirigentes ealunos. A escola esta vinculada às orientações do município, por isso, recebeuma orientação já montada sobre o ensino-aprendizagem que teve nortear aescola. Como saída, a Escola do Campo, procura trabalhar com a valorizaçãode metodologias que aproveitam o espaço da escola e seu entorno, para facilitaro ensino-aprendizagem do aluno e valorizar a vida no campo e facilitar aaprendizagem dos alunos.

Apesar das dificuldades da Escola do Campo, colocar em práticas um ensino-aprendizagem que valorize os conhecimentos tanto da comunidade quantoconhecimentos sistematizados pela humanidade, a escola trouxe um avanço nasdiscussões de novos caminhos do conhecimento que tende proporcionar umareflexão mais crítica sobre a sociedade e sua conjuntura política, econômica esocial. Centrando-se o conhecimento na resistência vivenciada por seus alunos.

Referências

ARARAQUARA. Projeto Político Pedagógico (PPP) "EMEF do CampoProf. Hermínio Pagôtto", 2011/2013.

BASTOS, V.A. de; OLIVEIRA, T. de. A proposta de educação do campodas escolas rurais de Araraquara-SP: destaque na construção da qualidade devida. Retratos de Assentamentos. Araraquara/SP: UNIARA, Nupedor(Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural), nº 09, p. 147-166, 2004.

BASTOS, V.A. de. A construção da gestão democrática em uma escola docampo. Retratos de Assentamentos. Araraquara/SP: UNIARA, Nupedor(Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural), INCRA, nº 09, p. 97-111,2006.

BAÚ, C.H.R. Pequenos produtores de cana-de-açúcar na região deAraraquara (SP): uma estratégia de produção e sobrevivência noassentamento Bela Vista do Chibarro. Dissertação (Mestrado em

Page 148: retratos de assentamentos

148 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Sociologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia. FCL/ UNESP.Araraquara, 2001.

BRASIL. Lei Federal 9.394/96. Lei de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional (LDB), 1996.

BRASIL. MEC. Resolução CNE/CEB 01/2002. Diretrizes Operacionaispara a Educação Básica nas Escolas do Campo.

BRASIL. Plano Nacional de Educação (PNE). Brasília: Plano, 2002.

BRASIL. Plano Nacional de Educação – Proposta da SociedadeBrasileira. II Congresso Nacional da Educação (CONED). Belo Horizonte/MG, 1997. Disponível em: <http://www.fedepsp.org.br/documentos/PNE%20%20proposta%20da%20sociedade%20brasileira.pdf> Acesso: 6/10/2011.

BRITO, S.H.A. A Educação no projeto nacionalista do primeiro governoVargas (1930-1945). Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_101.html> Acesso em: 19/10/2011.

CAIRES, A.C.R. Nem tudo era doce no império do açúcar. Vida, trabalho elutas na usina Tamoio - 1917/1969. Dissertação (Mestrado em Sociologia).Programa de Pós-Graduação em Sociologia. FCL/ UNESP. Araraquara, 1993.

_______ O colonato na Usina Tamoio. IN: NEVES, D.P.; SILVA, M.A. deM. Processos de constituição e reprodução do campesinato no Brasil,formas tuteladas de condição camponesa. Vol. 1, ed. UNESP, NEAD,MDA, p.163-183, 2008. Disponível em: <http://www.iica.int/Esp/regiones/sur/brasil/Lists/Publicacoes/Attachments/67/Processos_de_constitui%C3%A7%C3%A3o_e_reprodu%C3%A7%C3%A3o_do_campesinato_no_Brasil.pdf> Acesso em: 18/05/2011.

FERRANTE, V.L.S.B. Tamoio: Olha! Tem nó na cana. Perspectivas, SãoPaulo. 31-40, 1984.

_____ Retratos de Assentamentos. Araraquara/SP: UNIARA, Nupedor

Page 149: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 149

(Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural), nº 09, 2004.

FLORES, A.F.; SILVA, S.; FERRANTE, V.L.S.B. Ausência de políticaspúblicas e formas de resistência da juventude assentada. Retratos deAssentamentos. Araraquara/SP: UNIARA, Nupedor (Núcleo de Pesquisa eDocumentação Rural), nº 14, p. 151-174, 2011.

JESUS, J.G. de; FOERSTE, E. Educação do Campo no Brasil: umaaproximação. Disponível em: <http://www.ce.ufes.br/educacaodocampo/down/cdrom1/ii_06.html> Acesso em: 29/10/2011.

LEITE, S.C. Escola Rural: urbanização e políticas educacionais. São Paulo/SP: Cortez Editora, 1999.

MASCARO, L.P. Arquitetura e Modo de Vida no assentamento RuralBela Vista do Chibarro. Dissertação de Mestrado. São Carlos: USP, 2003.

MÉSZÁROS, I. A educação para alem do capital. São Paulo: Boitempo,2005.

ROSIN, L.H. Nas terras da Usina, O Fazer-se de um assentamento.Dissertação (Mestrado em Sociologia). Programa de Pós-Graduação emSociologia. FCL/ UNESP. Araraquara, 1997.

SÃO PAULO, Delegacia Regional de Ensino de Araraquara, 1936.Arquivo Público do Estado de São Paulo.

SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. SãoPaulo: Cortez Autores Associados, 1991.

_____ A Escola pública brasileira no longo do século XX (1890-2001).III Congresso Brasileiro de História da Educação. Sessão de ComunicaçãoCoordenada: "O século XX brasileira: da universalização das primeiras letrasao Plano Nacional de Educação (1890-2001)". Curitiba, 2004.

______ A Pedagogia Crítica e a Defesa do Ensino Público. RevistaCaros Amigos, ano XV, nº 53, p. 07, junho 2011.

Page 150: retratos de assentamentos

150 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

_____ O Trabalho como Principio Educativo Frente as NovasTecnologias. Disponível em: <http://forumeja.org.br/go/files/demerval%20saviani.pdf> Acesso em: 19/10/2011.

SILVA, D.G. da. Ilhas de Saber – Representações e Práticas dasEscolas Isoladas do Estado de São Paulo (1933-1943). Disponível em:<http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe3/Documentos/Individ/Eixo4/160.pdf> Acesso em: 19/10/2011.

SOUZA, R.F. de. Lições da escola primária: um estudo sobre a culturaescolar paulista ao longo do século XX. Disponível em: <http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe3/Documentos/Coord/Eixo3/485.pdf> Acesso em: 18/04/2011.

TEIXEIRA, R.A. Grupo escolar Comendador Pedro Morganti: estudohistórico sobre a cultura escolar de uma escola primária do meio rural-1942/1988. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Programa de Pós-Graduaçãoem Sociologia. FCL/ UNESP. Araraquara, 2010.

Page 151: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 151

A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DEMULHERES ASSENTADAS EQUILOMBOLAS EM SÃO PAULO

Adélia Oliveira de Farias1

Luiz Antonio C. Norder2

1Fundadora e Presidente da Omaquesp; discente do Bacharelado em Agronomia com Ênfaseem Agroecologia e Sistemas Rurais Sustentáveis na Universidade Federal de São Carlos;bolsista PIBIC/CNPq 2011. Email: adé[email protected] Adjunto do Departamento de Agroecologia da Universidade Federal de SãoCarlos (UFSCar). Email: [email protected].

Resumo: Este texto analisa a mobilização política de mulheres assentadas equilombolas em São Paulo e a formação da Omaquesp (Organização de MulheresAssentadas e Quilombolas do Estado de São Paulo), com destaque para suaatuação no sentido de combater a desigualdade nas relações de gênero e para aformulação de demandas coletivas e propostas de políticas públicas de formageral para os assentamentos de reforma agrária e áreas quilombolas. A pesquisamostra que a partir do final dos anos 90, houve uma intensa e significativaparticipação das mulheres assentadas e quilombolas no Estado de São Paulo eque a realização de encontros estaduais de mulheres destes grupos sociais temgrande relevância no fortalecimento da participação das mulheres rurais na esferapública.

Palavras-chave: Participação Política; Mulheres Assentadas e Quilombolas;Desenvolvimento Rural.

Abstract: This article analyses the woman political organization in landreform settlement and afro descendent communities in São Paulo and thecreation of the Omaquesp (Settled and Quilombola Woman Organization inSão Paulo). It emphasizes the mobilization against the inequality in genderrelations at family level and the claim for a gender focus for the ruraldevelopment public polices. The research shows that there was a intense

Page 152: retratos de assentamentos

152 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

and significant political participation of theses segments of rural woman inSão Paulo State. Besides, it is argued that the organization of meetings atState level has a expressive relevance to the rural woman empowerment atthe public arena.

Keywords: Political Participation; Peasant Woman; Rural Development.

IntroduçãoO debate sobre gênero e agricultura familiar junto aos movimentos populares

no campo tem se intensificado nos últimos anos, reforçando a crítica à invisibilidadedo trabalho feminino e ressaltando a perspectiva de se promover a inclusão damulher em atividades profissionais e políticas (VERUCCI, 1999; LIMA, 2006).Ao mesmo tempo, um conjunto de instituições vem atuando no sentido defortalecer a agricultura familiar e os assentamentos de reforma agrária.

De acordo com dados do Censo Agropecuário de 2006, o modelo deagricultura familiar representa 80% dos estabelecimentos rurais brasileiros e estáassociado à produção de boa parte dos alimentos consumidos no país(FRANÇA, 2009). A participação da mulher neste segmento é especialmenterelevante. Cerca de 600 mil unidades familiares, correspondendo a quase 14%do total, vinham sendo administrado por mulheres, ao passo que nosestabelecimentos não-familiares, este percentual era 50% menor.

Neste contexto, cresce o número de mulheres rurais que se tornam arrimo defamília e titulares de lotes em assentamentos. Essas mulheres foram construindouma nova face para agricultura a partir dos quintais, onde muitas vezes sãoformados sistemas agroecológicos, em geral voltados para o aumento da qualidadede vida da família. O espaço doméstico na agricultura familiar e em populaçõestradicionais caracteriza-se por suas múltiplas funções: cuidados no quintal, nahorta e no pomar, a criação de pequenos animais, a costura, o artesanato, alimpeza, o cuidar dos filhos e dos idosos etc.

Trata-se de um dos componentes das estratégias familiares de produçãoeconômica e de reprodução social que geralmente não é contabilizado nemtraduzido em um parâmetro econômico-monetário. O trabalho feminino naagricultura familiar, muitas vezes subestimado e historicamente concebido como"apoio eventual" ao trabalho masculino, contribui de forma decisiva para oaumento na qualidade de vida e para a diversidade do trabalho e da produçãona agricultura.

No entanto, a agricultura familiar continua, em grande parte, reproduzindo

Page 153: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 153

relações hierarquizadas de gênero, centradas na figura do pai como chefe defamília - e com isso a mulher permanece no âmbito do não-remunerado, do não-comercializado, do invisível.

Mesmo que as mulheres tenham conquistado a igualdade formal nos direitosa terra na Constituição Federal de 1988, sua parcela de participação noprograma de reforma agrária, se comparada a de outros países da AméricaLatina, continua sendo muito baixa. A titulação em conjunto só passou a serreivindicada a partir do ano 2000, uma década após a conquista do direitoconstitucional (DEERE, 2002).

Isso mostra o quanto é lenta a transformação na estrutura agrária,principalmente quando o direito destacado tem um forte corte cultural de gêneroque tende a anular a presença da mulher na esfera pública: "esta anulação naesfera doméstica ou a manipulação de sua participação na vida públicasão produtos da dominação masculina, que muitas vezes, de tãonaturalizada, tornou-se imperceptível para ambos os sexos" (MORAES,SILVA, BARONE, 2011). As mulheres são maioria no país e assumem cadavez mais o comando das famílias.

O conceito de gênero expressa o entendimento que as diferenças sãosocialmente construídas. Isso significa que homens e mulheres são moldadospela sociedade, o ser homem e o ser mulher correspondendo a papéis sociaisestabelecidos: masculino e feminino (CELUPPI; PANZER, 2006).

A partir de 2003, o Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) ampliouos direitos das mulheres à terra e elas passaram a ser obrigatoriamente incluídasem todos os procedimentos administrativos. Desde então, o índice de mulherestitulares de lotes de reforma agrária passou de 24,1% em 2003 para 55,8% em2007. Famílias com mulheres "arrimo de família" passaram de 13,6% para 23%no mesmo período3. Houve portanto uma inserção das mulheres na direção econdução dos assentamentos mais intensa do que aquela verificada na agriculturafamiliar como um todo.

3Cf. Ministério do Desenvolvimento Agrário em 2011: http://www.mda.gov.br/portal/aegre/programas/lt_Organizao_Produtiva.

Page 154: retratos de assentamentos

154 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

A configuração de relações desiguais e hierarquizadas de gênero, nas quais ofazer masculino e o fazer feminino são pré-determinados, faz com que a mulherpermaneça circunscrita ao campo privado, na casa e em seus arredores, naprodução voltada para a subsistência familiar e em atividades tratadas comosecundárias; ao mesmo tempo, aparece como uma "ajuda ao homem" no espaçoonde "ele" desenvolve atividade que geram valor, excedente e dinheiro.

A mulher agricultora passa cada vez mais a questionar esta condição socialno espaço rural, podendo elaborar estratégias como a migração, o enfrentamentoou a permanência em situação subalterna (STROPASOLAS, 2004). A dinâmicada família camponesa e suas relações sociais transformam-se mediante a açãodo conjunto da família, com participação, ainda que desigual, de todos os seusmembros, e não apenas uma conseqüência exclusivamente masculina tanto noque se refere ao processo produtivo como nas decisões nas esferas políticas ecomunitárias.

Esta perspectiva torna-se relevante para a análise da organização e dascaracterísticas dos sete encontros estaduais de mulheres em São Paulo, bemcomo da formação da Omaquesp e dos convênios que esta associaçãoestabeleceu com agências estatais visando a implementação de projetos deEducação de Jovens e Adultos (EJA) no âmbito do Pronera (Programa Nacionalde Educação na Reforma Agrária).

Estas iniciativas contribuíram para que as mulheres pudessem se dedicar aocampo da educação e ao debate coletivo sobre o aprimoramento das políticaspúblicas para os assentamentos rurais e comunidades quilombolas. Com isso, omovimento de mulheres e a Omaquesp passaram a contar com o reconhecimentodas demais entidades que atuam no campo em São Paulo.

No Estado de São Paulo, o mais urbanizado e industrializado do país, compopulação de aproximadamente 41,2 milhões de habitantes em 2010, foramcriados assentamentos, vinculados a diferentes programas de reforma agrária, apartir do início dos anos 80, para um total aproximado de 16 mil famílias. Já oreconhecimento e titulação de terras de 35 comunidades quilombolas(agrupamentos ancestrais de populações negras em geral com histórico deresistência à opressão) foi objeto de políticas específicas, não apenas em SãoPaulo, mas em vários outros Estados, a partir da segunda metade dos anos 90,o que se desdobrou no Decreto n. 4.887, de 20 de novembro de 2003.

Este texto tem o objetivo de analisar as principais características damobilização política de mulheres assentadas, acampadas e quilombolas em SãoPaulo e, como parte destas ações, a criação da Omaquesp (Organização de

Page 155: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 155

Mulheres Assentadas e Quilombolas do Estado de São Paulo). A realização dapesquisa contou com a análise de documentos da própria organização e com arealização de entrevistas semi-estruturadas com a finalidade de produzir umainterpretação qualitativa.

Contexto HistóricoEm meados dos anos 90, o Estado de São Paulo estava passando por

profundas modificações no que diz respeito à atuação na área agrária e fundiária.O ITESP (Instituto de Terra do Estado de São Paulo), órgão responsável pelaimplantação dessas políticas na esfera estadual, era um dos principais atores doPlano de Ação para o Pontal do Paranapanema, que tinha o objetivo de destinarterras devolutas para os assentamentos de trabalhadores rurais e propiciarcondições para viabilização das unidades de produção familiar que estavam sendocriadas.

O Plano de Ação, concebido como um instrumento de desenvolvimentoregional, previa uma ação integrada de governo, além de ações voltadas para aestruturação da produção, incluindo assistência técnica, crédito e programas defomento agropecuário. Foram desenvolvidas medidas para facilitar o acessodas famílias às políticas públicas, especialmente nas áreas de educação, saúde,habitação e eletrificação. Naquele período, eram expressivas as manifestaçõesdos movimentos sociais, com a organização de ocupação de terras, reivindicaçãode criação de assentamentos e a melhoria das condições de vida para as famíliasassentadas.

Algumas lideranças femininas já se destacavam na defesa da demanda socialpor melhores condições de vida para as famílias assentadas, principalmente paraeducação, saúde e para a criação de alternativas de geração de renda para apopulação jovem. Vale salientar, para ilustrar esse quadro, a ação dos grupos demulheres de Mirante do Paranapanema, que enviaram para o então GovernadorMário Covas um vídeo demonstrando a condição precária da Escola São Bentona Fazenda Haroldina, localizado no local hoje conhecido como Pé de Galinha.

Esta reivindicação das mulheres se desdobrou em diversas outras ações locais,que resultaram na formação de um centro comunitário de serviços, com postode saúde, escola para 800 crianças, quadra poliesportiva e outros equipamentossociais. Uma dessas mulheres assentadas era Nazaré de Montemor, que chegoua ser eleita vereadora em Mirante do Paranapanema.

Ao mesmo tempo, em 1996, um grupo de dez mulheres residentes noAssentamento Timboré, no município de Andradina, muitas delas esposas de

Page 156: retratos de assentamentos

156 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

lideranças atuantes da área, foram ao ITESP para reivindicar crédito específicopara as mulheres, apresentando um projeto de pequenas granjas e reivindicandoapoio para fomento no então Departamento de Assuntos Fundiários (DAF).Acreditavam que tais unidades de produção gerariam retorno financeiro àsfamílias. Todas utilizavam vistosos lenços e chapéus – e por esta característicaficaram conhecidas por um longo período.

As famílias do Assentamento Timboré, naquele momento, não tinham maisdireito ao crédito de investimento do Procera (Programa de Crédito Especialpara a Reforma Agrária), pois todos os recursos haviam sido irregularmentedestinados a um projeto de eletrificação do assentamento. Os assentados ficaramendividados e sem acesso a outros meios de geração de renda, um fenômenoque também ocorreu em vários outros assentamentos em São Paulo. Naquelecontexto, as mulheres de chapéu reivindicavam recursos específicos para seusprojetos e o ITESP chegou a adquirir alguns itens necessários à construção daspequenas granjas para a criação de galinhas caipiras.

O grupo de mulheres de Andradina também questionou a assistência técnicado ITESP. Segundo as representantes, em discussões de grande importância,apenas eram chamados os "chefes de família", ou seja, "os homens da casa". Emassembléias, cada família tinha direito a um único voto – que era o voto masculino.

Inclusão de Gênero, Inclusão de PautaUma das principais representantes desse grupo do Assentamento Timboré

(Fátima) era uma líder bastante carismática, com histórico de formação e lutapelo MST, que havia acumulado muitas experiências e um grande envolvimentocom as questões sociais - e que insistia na importância da participação das mulheresem todos os assentamentos como uma das formas de se ampliar a qualidade devida no campo.

A partir destas atividades surgiu a idéia de realizar um primeiro EncontroEstadual de Mulheres Assentadas para discutir os assentamentos do ponto devista das mulheres e para ampliar sua organização política e participação social.Assim, o I Encontro Estadual de Mulheres Assentadas do Estado de SãoPaulo, realizado no município de Castilho em 1998, contou com a participaçãode 164 assentadas e de trinta técnicos do ITESP que participaram da organizaçãoe programação do evento, cujo objetivo principal era discutir o papel da mulherna organização das demandas comunitárias e no desenvolvimento da agriculturafamiliar.

O Secretário da Justiça e Cidadania do Estado e algumas autoridades

Page 157: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 157

municipais estiveram presentes no evento. Os/as profissionais do ITESPapresentaram palestras sobre diversos temas, entre os quais: a organização políticae direito das mulheres, cidadania, educação, saúde, lazer. O Encontro teve comofoco principal a discussão sobre a importância da agricultura para as comunidadesassentadas e a necessidade da participação das mulheres na realização de projetode produção e de comercialização. Reafirmava-se reiteradamente o compromissodas mulheres presentes no sentido de atuar pela melhoria das condições sociaisdos assentamentos, na elaboração de propostas e projetos de produção e geraçãode renda e na divulgação, junto às suas comunidades e à sociedade em geral,dos direitos das mulheres assentadas.

Foi naquela ocasião eleita a Comissão Estadual de Mulheres Assentadasdo Estado de São Paulo, que tinha como objetivo acompanhar essa articulaçãoe organizar encontros regionais e estaduais. Essas delegadas, com apoio doITESP, comprometeram-se a repassar o resultado do Encontro para as mulheresde suas comunidades e incentivar o trabalho e a organização das assentadas naformação de associações e no fortalecimento dos grupos já existentes.

Salienta-se que, já naquela época, as mulheres reivindicavam a ampliação nacontratação de assistentes sociais, destacando a importância da atuação destes/as profissionais nos assentamentos do Pontal do Paranapanema, principalmenteno que diz respeito à informação e acesso à previdência social. Argumentavamque os/as assistentes sociais poderiam introduzir no cotidiano dos técnicos umadiscussão mais qualificada sobre os problemas de ordem social, valorizando aatuação dos grupos de mulheres e jovens. Elas pretendiam que esta abordagemfosse difundida para todas as outras áreas de assentamento e que as equipestécnicas do ITESP se empenhassem na construção de relações de gênero maisequitativas.

Naquele I Encontro de 1998 ficou clara a dificuldade de organização dasmulheres na maioria das áreas, devido a vários fatores: os compromissosdomésticos, a diversidade entre os assentamentos, a falta de informação para aelaboração de um diagnóstico dos problemas e de um plano de ação; a restriçãonos meios de transporte, de comunicação e de apoio dos escritórios locais dasagências governamentais.

Naquele período, pensou-se em mais uma estratégia para valorizar oconhecimento das mulheres sobre sua organização política, através da promoçãode reuniões dos grupos locais de mulheres em vários assentamentos com aslideranças de Andradina, com a finalidade de fomentar a troca de experiências.O ITESP apoiou a participação duas assentadas (Fátima e Vilma) do

Page 158: retratos de assentamentos

158 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Assentamento Timboré em algumas dessas reuniões, nas quais foram discutidosvários assuntos de interesse das assentadas, como a previdência, educação esaúde, entre outros. A assentada Fátima narrava sua história de luta e as estratégiasde ação para fazer com que o assentamento pudesse conquistar alguns dessesdireitos, ressaltando sempre a necessidade da construção de uma políticaespecífica para as mulheres assentadas.

A intenção de organizar as mulheres assentadas persistiu no Estado de SãoPaulo ao longo dos anos 90, com alguns acúmulos também em outras regiões,como é o caso do grupo de "mulheres da terra" no assentamento Sumaré II.Esse grupo, criado no início dos anos 90, foi fundado pela assentada AparecidaSegura. Muitas das participantes destas reuniões eram lideranças em suascomunidades, vinculadas à movimentos sociais de luta pela terra, e que selançavam em no desafio da construção de um movimento autônomo de mulheresrurais.

Em dois desses eventos houve a participação de convidadas como AdéliaSchmitz, do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), com bastanteexpressão em Chapecó/SC e que veio a ser uma espécie de referência nomovimento de mulheres. Ela, posteriormente, sumarizou esta atuação da seguinteforma:

O MMC se caracteriza por ser um movimento autônomo; quem decide osrumos são as mulheres organizadas; nós não somos mandadas por sindicato,por igrejas, nós mesmas definimos o que queremos. As decisões somosnós que tomamos, somos um movimento democrático e popular; asmulheres têm voz e voto. (CF. PALESTRA NO IV ENCONTRO, Euclidesda Cunha/SP, 2002).

O MMC, que vem atuando na organização das mulheres trabalhadoras docampo desde 1981 (SALVARO, 2008), se apresentava com base suficientepara eleger vereadoras em muitos municípios catarinenses e contribuiu de formadecisiva para eleger Luci Choinacki, a primeira mulher agricultora no CongressoNacional.

A Organização via EncontrosAs demandas comunitárias relacionadas à produção, educação e saúde e

outros assuntos, identificadas por diversas mulheres da organização e por algunsfuncionários do ITESP, norteou a realização dos encontros de mulheres. Havia

Page 159: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 159

certo apoio do governo estadual, que manifestava a intenção de formular políticaspúblicas que incorporassem as demandas apresentadas pelas mulheres. Isto fezcom que esta forma de organização política de mulheres, realizada em boa medidaatravés da organização de Encontros, fosse bastante questionada pelosmovimentos sociais de luta pela terra que atuavam em São Paulo naquele período.

Vimos que o I Encontro Estadual de Mulheres Assentadas do Estado deSão Paulo foi realizado em 1998 e teve o objetivo principal de discutir o papelda mulher na organização das comunidades para a conquista da cidadania epara o desenvolvimento da agricultura familiar. Rosa Oyassi, assentada em Araras/SP, afirma, no entanto, que "nesse encontro as agricultoras tiveram poucaintervenção, apenas se limitando em ouvir o que os programas de governoofereciam" (cf. entrevista em agosto/2011).

O II Encontro Estadual de Mulheres Assentadas foi realizado no municípiode Rosana (região do Pontal do Paranapanema) em 1999, contando com aparticipação de 245 mulheres. Prevaleceram as discussões sobre o papel dasmulheres assentadas, com destaque aos assuntos ligados ao seu cotidiano e aomeio ambiente.

O III Encontro de Mulheres Assentadas foi realizado em Promissão, noano 2000 com a participação de 335 agricultoras, representandoaproximadamente 100 comunidades de assentamentos, acampamentos e de áreasquilombolas, além da participação de 73 técnicos da fundação ITESP econvidados(as). Este III Encontro também teve o objetivo principal de discutira organização de mulheres para a cidadania e para o desenvolvimento daagricultura familiar e desdobrou-se, nos meses seguintes, na realização de váriasreuniões locais e regionais com representantes de grupos de mulheres.

O expressivo número de participantes, notadamente em um ano de eleiçõesmunicipais, juntamente diante das demandas apresentadas pelas comunidades,tornou este Encontro um objeto de disputa tanto no plano das formulações,como de direção. Compunha a pauta de discussões a titulação das terras públicas,educação, saúde, eletrificação, produção, crédito especial para as mulheres,reservas ambientais. As mulheres começaram a ampliar a pauta de discussãopolítica – e com maior autonomia em relação às orientações dos técnicos estatais.

Naquele III Encontro, que contou com a participação de representantes devários movimentos que vinham atuando no campo naquele período, a discussãosobre inclusão das mulheres na titulação da terra era concebida como parte deuma dívida histórica derivada das desiguais relações de gênero. Criticava-secom isso um determinado modelo de reforma agrária que reproduzia o sistema

Page 160: retratos de assentamentos

160 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

tradicional da propriedade e que negava às mulheres o pleno direito à terra.Em uma das oficinas ocorridas durante o evento, que contou com a

participação de representantes do INCRA de Brasília, as mulheres colocaramcomo principal reivindicação a anistia das dívidas oriundas do Procera quedeveriam ter sido utilizadas na produção e que tinham sido realocadas para aconstrução de redes de eletrificação rural nos assentamentos em Promissão,Andradina, Rancharia e Araraquara.

Isso ilustra a forma como as mulheres assumiram um papel protagonista naconstrução das condições de vida nos assentamentos. O conjunto de temasdiscutidos durantes esses Encontros não deixa dúvidas de que havia um crescentee diversificado interesse do movimento de mulheres pelo conjunto de questõesreferentes às políticas públicas para os assentamentos. O acesso à eletricidade,cujo impacto na vida doméstica é bastante intenso, foi objeto de uma amplaarticulação política das mulheres assentadas.

Alguns mediadores, durante o III Encontro, tiveram uma participação degrande relevância para a formulação de propostas e encaminhamento de políticaspúblicas, como é o caso de Tânia Andrade, então Diretora Executiva do ITESP,e de Walter Bianchini, na época representando o DESER (Departamento deEstudos Econômicos Rurais), e que fomentou uma análise de conjuntura quedirecionou o Encontro para as questões produtivas, como a agroindustrializaçãoe a comercialização.

Além disso, grupos de mulheres com experiências em produção coletivapuderam trocar experiências com as demais participantes. Durante os Encontros,havia uma grande diversidade de produtos que essas mulheres traziam, porexemplo: café beneficiado, hortaliças, doces artesanais e roupas.

A Diversidade e a Organização de MulheresA realização dos Encontros de mulheres no Estado de São Paulo deparava-

se com forte limitação de recursos para transporte, alojamento, alimentação eoutros custos. Este condicionante repercutia também no estabelecimento de umadependência em relação ao Estado, no caso, o ITESP. Paralelamente, esboçava-se a proposta de se criar construir uma organização de mulheres de formaautônoma e que pudesse sistematizar as reivindicações que emergiam desteprocesso de mobilização.

A pauta de negociação junto ao Estado foi se tornando bastante abrangente,mas com um foco crescentemente direcionado para dois grandes componentes:a implantação do Programa de Saúde da Família e a Alfabetização de Jovens e

Page 161: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 161

Adultos, dado o elevado índice de analfabetismo nos assentamentos. Quanto àinfra-estrutura, a pauta incluía crédito para habitação, acesso à água, energia,estradas, transporte, telefonia e calcário, entre outros itens.

No que se refere ao meio ambiente, destacava-se a relevância da participaçãodas mulheres na preservação de matas ciliares e de reservas florestais, além dointeresse na reciclagem de materiais. Reivindicava-se a participação dos(as)assentados(as) no Conselho do PRONAF (Programa Nacional de Crédito paraa Agricultura Familiar), a criação de linhas de crédito para as mulheres e aformulação de uma política de gênero para as atividades das agênciasgovernamentais.

Quanto à organização das mulheres, o III Encontro definiu ainda como diretriza construção de sua autonomia em relação ao Estado. Foi então sugerida acriação de uma organização das mulheres assentadas, acampadas e quilombolasdo Estado de São Paulo, contemplando todas as vertentes políticas existentesnos assentamentos, com a definição de comissões regionais e estadual.

No IV Encontro, realizado em 2001 no município de Araraquara, que contoucom a participação de aproximadamente 360 mulheres, foi definida a maiscompleta pauta de reivindicações que norteou a organização política de mulheresrurais do Estado. Para Tânia Mara Baldão, esse Encontro foi fundamental paraa criação da Omaquesp. Reforçava-se a noção de que era preciso aprofundar aconstrução da autonomia para conquistar maior credibilidade:

As próprias mulheres começaram a ver as dificuldades nos assentamentose começaram a se reunir. Sempre que uma liderança desses grupos vinha,corríamos atrás, indo até as prefeituras etc. A partir de então começaram arealizar os encontros de mulheres, onde se encontravam com mulheres deoutros assentamentos e elas perceberam que os problemas enfrentados eramquase sempre os mesmos. Então surgiu a idéia e a vontade de se organizarno nível de Estado (INTEGRANTE DA OMAQUESP, CITADO PORVALENCIANO, 2002).

Valenciano (2002; 2006) mostra que as próprias mulheres começaram aidentificar as dificuldades nos assentamentos e começaram a se reunir localmente.O ITESP favoreceu a coordenação dos grupos de mulheres nos assentamentos,que já estavam em processo de formação desde 1986, em Sumaré, em Promissão,Andradina e no Pontal do Paranapanema. Entre as reivindicações daquele períodoestavam o reconhecimento da profissão de agricultora, o acesso ao salário

Page 162: retratos de assentamentos

162 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

maternidade e as mudanças no sistema previdenciário.

Dinâmicas, Simbologias e IdentidadesApós o IV Encontro, um grupo de 36 mulheres se reuniu em Promissão, em

28 de fevereiro de 2002, para discutir os encaminhamentos relacionados àdeliberação de se criar uma associação de mulheres. Houve a presença dediversos mediadores: funcionários do ITESP, do MST, a advogada Dra. MercedesLima (Comissão de Mulheres da OAB/SP) e a Prof. Dra. Miriam Lourenção,da UNESP de Marília, além de estudantes da mesma universidade.

Desde sua fundação, como vimos, a Omaquesp foi norteada por umaexpressiva diversidade de interpretações sobre as linhas de ação, inclusive emrelação à sua própria criação. Mesmo entre as 36 mulheres presentes na reunião,este era um assunto polêmico. Para algumas das presentes, a Omaquesp deveriaser uma ONG (organização não governamental) para buscar recursos, semnecessariamente romper a relação com o Estado. O nome Omaquesp tambémdeu margem para boa discussão.

Uma das participantes argumentava que a Omaquesp deveria ser "um braçoem um corpo maior", no caso, a Comissão Estadual de Mulheres Assentadase Quilombolas. Para outras, a Omaquesp teria que substituir esta Comissão, terautonomia e deixar para outro momento a decisão sobre seu perfil e formas deatuação (se de quadro ou de massas, se uma entidade feminista ou feminina). Asmulheres militantes do MST decidiram não participar da associação argumentandoque esta linha de atuação levaria à uma divisão na luta social no campo.

Agregar em uma mesma entidade grupos como assentadas e quilombolaslevava a uma reflexão sobre a própria noção de reforma agrária. Argumentava-se que as comunidades quilombolas já estavam envolvidas na luta pela terradesde os tempos da escravidão. Os assentados seriam, nesta construção deidentidade, os novos quilombolas. Algumas participantes sugeriram incluir asacampadas, o que veio a ser refutado sob o argumento de que a situação dosacampamentos é temporária e que a fase definitiva era a de serem assentadas ouquilombolas. Houve, no entanto, participação de acampadas em todos osEncontros.

Surgia assim, em meio a tais controvérsias e indefinições, a Omaquesp, complanejamento estratégico, estatuto e logomarca. O Estatuto da Omaquesp definiaa entidade como ferramenta fundamental para uma ampliação na participaçãodas mulheres na vida pública de uma forma geral e deixava claro que o objetivoda entidade era o desenvolvimento das mulheres e de suas comunidades, do

Page 163: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 163

ponto de vista socioeconômico, cultural e educacional:

[...] promover em todos os níveis a defesa e a proteção dos direitos einteresses das mulheres em sua comunidade, visando à eliminação dasdiscriminações, promover o bem estar e a integração das mulheres na vidasocial, econômica, política e cultural, buscar recursos e política pública juntoao Estado de acordo com o interesse da comunidade.

Durante a reunião de fundação da Omaquesp, houve empenho das liderançasno sentido de se criar uma simbologia relacionada ao movimento. Para tanto,foram realizadas três dinâmicas: uma utilizando um kg de argila, para a criaçãoda logomarca da entidade, incluindo as participantes do Encontro que resolveramnão aderir à Omaquesp; em uma segunda dinâmica, várias pedras brancas foramcolocadas no interior de uma bacia com água, para que cada fundadora daentidade retirasse uma das pedras, incluindo a produção de uma fotografia daquelemomento; e uma terceira dinâmica, na qual todas as participantes do Encontroescreviam em uma folha de papel os episódios de tensão e discórdia quepudessem no futuro vir a destruir as organizações coletivas e prejudicar orelacionamento entre as pessoas – e todas as folhas foram agrupadas e queimadasem um caldeirão de ferro.

A primeira dinâmica, que levou à elaboração do logotipo, incluía a intençãode se construir uma identidade sócio-política para o grupo. Um quilo de argilafoi passando de mão em mão para que fosse moldada uma marca representativada entidade, do conjunto de mulheres ali presentes e dos princípios daorganização que estava sendo fundada. Cada mulher tentava fazer uma obracompleta.

Esse símbolo passou por diversos formatos: flores, anjo de guarda etc. Nofinal da roda, uma das agricultoras moldou um coração e com a sobra da argilafoi completando o símbolo do feminismo. Após a dinâmica foi feita uma discussãosobre as imagens. A idéia da logomarca foi construída no próprio dia da fundaçãoda Omaquesp e foi enviada para a SOF (Sempre Viva Organização Feminista),uma entidade parceira que construiu a versão final da logomarca.

A cor vermelha definia a Omaquesp como entidade de classe, o que contrariavaalguns segmentos da entidade, principalmente porque uma das companheirashavia sido eleita vereadora. Algumas pessoas e funcionários/as do ITESPpropuseram que a marca fosse vinculada à imagem de mulheres de chapéu.Consolidava-se a noção de que a Omaquesp precisava construir uma concepção

Page 164: retratos de assentamentos

164 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

empreendedora, com mulheres com boa auto-estima e que tivessem disposiçãopara lutar pela educação e pela geração de renda, entre outras demandas.

No período subseqüente, no entanto, a Omaquesp passou por expressivosrefluxos, gerando um relativo descrédito por parte de pessoas vinculadas a outrasinstituições, que não acreditavam que a entidade pudesse ter continuidade aolongo do tempo.

A Estruturação da Omaquesp e o Foco na EducaçãoEm 2002, no Município de Euclides da Cunha, região do Pontal do

Paranapanema, ocorreu o V Encontro Estadual de Mulheres Assentadas eQuilombolas do Estado de São Paulo, que contou com a participação deaproximadamente 400 mulheres representando diferentes regiões do Estado.Foram discutidos temas como educação, previdência social e titularidade daterra em áreas de reforma agrária.

As representantes da Região do Pontal do Paranapanema desistiram em blocode participar da Omaquesp, com o argumento de que era preferível construir aOMAP (Organização de Mulheres do Pontal do Paranapanema), tendo em vistaa distância entre seus municípios de origem e os das demais dirigentes da entidadeem formação. Outras militantes manifestavam maior afinidade com os coletivosde gênero dos movimentos sociais e/ou sindicais. Assim, a fundação da Omaquespocorreu com a adesão de apenas uma parte das mulheres que vinham seorganizando nos Encontros.

O VI Encontro Estadual de Mulheres Assentadas e Quilombolas, realizadoem 2003 no município de Araras, contou com a participação de aproximadamente430 mulheres, com uma série de discussões sobre políticas públicas. O grupoda Região do Pontal do Paranapanema manteve a proposta de fortalecer aOMAP (Organização de Mulheres do Pontal do Paranapanema) e parte dasmilitantes continuou manifestando preferência por uma inserção da pauta gênerono interior dos movimentos sociais de luta pela terra.

Tal pluralidade não impediu, todavia, que houvesse uma expressivacontribuição destes Encontros no sentido de fomentar o debate específico sobreas questões de gênero nos movimentos populares. Os Encontros aglutinavamtoda uma pauta de reivindicações, mas, além disso, apresentavam uma simbologiae representavam uma forte expectativa para as mulheres. Além disso, a construçãode uma entidade de mulheres rurais já era um fato político consumado no Estadode São Paulo.

A diretriz, reforçada a partir de 2003, de se tratar a educação como um

Page 165: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 165

componente estratégico para a Omaquesp, tendo em vista sua importância paraa redução das desigualdades sociais, veio a ser efetivado, inicialmente, com arealização de um Convênio de Alfabetização INCRA/Unimep, no ano de 2006,após dois anos de tramitação.

A Omaquesp passa então a atuar no âmbito do Pronera, o que veio a serimplementado a partir de janeiro de 2006, com a elaboração conjunta eaprovação do Convênio Unimep/INCRA para a criação de 11 salas dealfabetização. A tramitação para a realização desse convênio estendeu-se de2003 a 2005, enfrentando variados empecilhos políticos e administrativos. OProjeto foi iniciado com a realização de assembléias nas comunidades. Foramalfabetizados 259 agricultores distribuídos nos diversos assentamentos nosmunicípios de Bebedouro, Sumaré, Guatapará, Jaboticabal e Pradópolis. Asaulas aconteciam nos espaços comunitários e os educadores faziam avaliação eplanejamento das atividades curriculares e extracurriculares.

Esse projeto contribuiu para consolidar a Omaquesp como parte domovimento social, com atuação crescente na educação e presença ativa tambémno Curso de Pedagogia da Terra oferecido pela UFSCar (Universidade Federalde São Carlos), com oito de suas educadoras cursando pedagogia.

A entidade volta então a indicar a necessidade de organização do VIIEncontro Estadual, que veio a ser realizado em Araraquara em entre os dias28 a 30 de março de 2006, com o objetivo central de problematizar as relaçõesde gênero, a educação e a geração de renda. O tema do Encontro era Mulherese Organização política, geração de renda e educação. Havia uma expressivadiferença em relação aos encontros anteriores. A Omaquesp estava maisestruturada e o Encontro chegou a ser noticiado pela TV Record News e notava-se uma intensa participação de representantes do governo Federal e Municipal ede outras entidades que vinham atuando no campo paulista.

Encontrava-se já em funcionamento, com a participação da Omaquesp, ocurso de Pedagogia da Terra pela UFSCar e o convênio de EJA com a Unimep/INCRA (VIEIRA, 2007). A condução das oficinas no Encontro reforçava apercepção de que a Omaquesp vinha conseguindo se desenvolver. As agricultorasparticipantes conseguiram se hospedar em hotéis, com apoio financeiro doINCRA/SP e do MDA e apoio logístico e político da Feraesp (Federação dosEmpregados Rurais do Estado de São Paulo).

A advogada da Feraesp, Dra. Olga Maria, colaboradora da Omaquesp queatuava na OAB com a Lei Maria da Penha, compareceu ao evento e falou sobreas relações de gênero e reforma agrária. Para ela, era necessário que as mulheres

Page 166: retratos de assentamentos

166 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

fizessem uma nova reflexão sobre seu papel na família, pois a mulher já vinhaconquistando o acesso ao credito rural e às políticas públicas, o que demonstravaseu protagonismo na melhoria das condições de vida e de trabalho nosassentamentos. Era também o momento de se enfrentar e superar mais um desafio:o da violência doméstica. Foi consensual entre as mulheres presentes que oEstado deveria retirar os indivíduos violentos dos assentamentos.

Rosa Oyassi, que acompanha a questão quilombola na Omaquesp, falousobre a importância da participação das mulheres quilombolas na entidade. AProfa. Dra. Dulce Whitaker (Unesp/Araraquara, pesquisadora do CNPq)argumentou sobre a indissociável relação entre gênero e educação. Para ela, amulher deveria lutar para conquistar uma educação que valorizasse o feminino(educação pela terra, meio ambiente, agroecologia).

O analfabetismo apesar da persistência está diminuindo. Os assentamentosde reforma agrária ressocializam as pessoas porque estão organizadas ereivindicam seus direitos. Em 1996, o I Censo da Reforma Agrária do Brasilregistrou o índice de 29,5% de analfabetos nos assentamentos. O CensoDemográfico de 2000 registrou que 30,7% da população do campo eramanalfabetas. A Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária revelouque a população analfabeta acima de sete anos de idade é de 7,4%, ou seja,o menor índice de analfabetismo do campo brasileiro está nos assentamentosde reforma agrária (FERNANDES, 2003).

Neste VII Encontro tornava-se notório o crescimento da Omaquesp. Osdebates tinham mais contundência sobre as questões de gênero, organização eas participantes tornavam-se mais seguras no sentido de exigir do Estado aformulação e implementação de políticas publicas para os assentamentos e áreasquilombolas.

Propunha-se no Encontro a criação de espaços específicos para as mulheresnas áreas sociais dos assentamentos, com a finalidade de incentivar suaorganização política e social; e delineava-se como prioridade a efetivação dosdireitos das mulheres, com destaque para a aposentadoria e o acesso ao auxiliomaternidade. Mais uma vez, a previdência se afigurava com um tema em destaque,levando em conta que as mulheres dos assentamentos e comunidades quilombolasvinham manifestando essa demanda desde o início dos Encontros.

Durante uma oficina sobre geração de renda, surgiram algumas propostasconcretas: a criação de cozinhas comunitárias para trabalhadores rurais, através

Page 167: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 167

do aprimoramento de 128 padarias até então criadas a partir de recursos doGoverno do Estado; a melhoria na comercialização do artesanato, a organizaçãode uma cooperativa de mulheres agricultoras e artesãs, a captação de recursospara as mulheres junto ao PRONAF e outras linhas créditos, a elaboração deprojetos de desenvolvimento e a reivindicação de liberação de um técnico paracolaborar com a elaboração e o desenvolvimento destes projetos.

Trajetória, Desdobramentos, PerspectivasO universo sociocultural masculino inclui um amplo repertório de atividades

no espaço público, como as partidas de futebol, os bares, as reuniões, o comércioetc. Muitas dessas mulheres sentiam-se intimidadas pela figura expressamentemasculina na condução das demandas sociais e políticas das comunidades. Porfalta de opção, as mulheres passam a ser em geral uma mera espectadora deatividades ocorridas fora da esfera doméstica. Nos grupos de mulheres e nosEncontros, o direito à palavra surge da necessidade de cada participante de seexpressar.

Os Encontros realizados e as diretrizes da Omaquesp reforçavam aimportância de se de se formar novas lideranças e de se viabilizar a presença dasmulheres em eventos para além do ambiente doméstico. Os grupos de mulherescomeçaram a se constituir como um espaço social importante para suaorganização. A tabela abaixo resume as principais informações sobre aorganização dos Encontros.

Page 168: retratos de assentamentos

168 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Tabela 1 – Organização de Encontros de Mulheres Assentadas eQuilombolas em São Paulo

(*) Este número não inclui convidados, funcionários públicos, professores, pesquisadores,estudantes, colaboradores e simpatizantes, apenas o total de delegadas representantesdas comunidades de assentamentos e quilombolas.

Evento Ano Município Delega-

das *

Resumo

I

Encontro

1998

Castilho

164

Seu objetivo principal era discutir o papel da

mulher na organizaçã o das comunidades para

a conquista da cidadania e para o

desenvolvimento da agricultura fa miliar.

II

Encontro

1999

Rosana

245

P revaleceram as discussões sobre o papel das

mulher es assentadas, com destaque aos

assuntos liga dos ao cotidiano e ao meio-

ambiente.

III

Encontro

2000

Promissão

335

Neste Encontro houve a incorporação de

representantes dos quilombos na Comissão

Estadual de Mulheres. Estiveram presentes 15

mulher es quilombolas.

IV

Encontro

2001

Araraquara

360

Deste Encont ro saiu a mais completa pauta de

reivindicações que norteou a organização

polít ica da organização de mulheres rurais de

São Paulo. Participaram 12 mulheres

quilombolas .

V

Encontro

2002

Euclides da

Cunha

400

Foram discutidos t emas como educação,

previdência social e titularidade da terra.

Cons titui-se formalm ente a OMAQUESP.

Participaram 10 mulheres quilombolas.

VI

Encontro

2003

Araras

430

Neste Encontro foram discutidas algumas

polít icas públicas do governo federal, com a

participação de 6 mulher es quilombolas.

VII

Encontro

2006

Araraquara

289

O tema principal foi Educação, negociação

colet iva para projetos produtivos de mulheres

e direitos inscritos na Lei Maria da Penha. As

quilombolas não participaram por ausência de

condições logísticas .

Page 169: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 169

Em entrevista por email em maio de 2011, a advogada Dra. MercedesLima, que construiu em conjunto com as agricultoras o estatuto da Omaquesp,tece alguns comentários sobre a trajetória da entidade e deste movimento demulheres em São Paulo, bem como sobre sua interação neste processoenquanto mediadora:

Emocionei-me (sincera e realmente) neste momento em que abri seu e-mail[de Adélia Oliveira de Farias], lágrimas aos meus olhos. Que coisa bonita! Éverdade, acho que ninguém sabe o que a gente trabalhou para a formaçãoda Omaquesp. Cheguei a ouvir (quando atendi ao pedido de vocês na OAB/SP de ir aqui e ali...) que eu estava perdendo meu tempo, pois as mulheresdo campo não conseguiam se organizar enquanto feministas, e outrasbobagens. Acho que foi por isso que chorei! Fui atendendo vocês. A glória éde vocês, toda de vocês, eu apenas acreditei na luta de vocês, como creioaté hoje que cumpri simplesmente meu papel (ENTREVISTA COM A DRA.MERCEDES LIMA, 2011).

No segundo semestre de 2011, a Omaquesp já se preparava para firmar umterceiro convênio com a Unimep/Pronera/INCRA, tendo aprovado a instalaçãode 30 salas de EJA no Estado para 2012. Há também o planejamento derealização do VIII Encontro de Mulheres. Para as dirigentes, o ponto fraco daorganização continua sendo a reduzida disponibilidade financeira para suaviabilização dos Encontros.

Ao longo do processo de organização dos Encontros, que vinham reunindoum número expressivo e crescente de mulheres, nota-se a presença e participaçãode mulheres jovens tanto na organização política como na realização de atividadespedagógicas:

A principal dificuldade de trabalhar a alfabetização é educar os idosos queme viram criança e me ensinaram tudo o que eu sei de reforma agrária;dizer para eles que eu também tinha algo para ensinar me deu um frio nabarriga, até que eu me acostumei e ganhei segurança com a pedagogia doPaulo Freire (CF. ENTREVISTA DE VANIA DALILA SILVA DE SOUZA,EDUCADORA NO ASSENTAMENTO GUARANI EM PRADÓPOLIS,DIRIGENTE DA OMAQUESP, 2010).

Segundo a dirigente Tânia Mara Baldão, moradora no Assentamento de

Page 170: retratos de assentamentos

170 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Córrego Rico no Município de Jaboticabal, a organização de mulheres no Estadose desdobrou na realização de três projetos de educação pelo Pronera. Outroprojeto foi realizado por 16 educadoras que trabalharam alfabetização eletramento para 300 beneficiários da reforma agrária.

Considerações FinaisA organização política de mulheres assentadas e quilombolas caracteriza-se

pela constituição de uma agenda de debates, de formulação de demandas sociaispara os assentamentos e comunidades quilombolas de forma geral, e sobre asrelações de gênero em particular. Observa-se, por um lado, uma contínuaampliação da pauta de temas em discussão e de reivindicação e, por outro, umaatuação mais focada em projetos educacionais.

A realização de Encontros de Mulheres evidencia uma grande importâncianesta dinâmica de participação política, tanto pela oportunidade de diálogo etrocas de conhecimentos, como pela afirmação da atuação autônoma da mulherna esfera pública.

Uma das questões mais relevantes nesta trajetória da Omaquesp refere-se àsua própria criação, o que chegou a ser interpretado como uma segmentaçãoem relação aos movimentos sociais de luta pela terra, especialmente em relaçãoao MST. Além disso, a criação de uma organização política de mulheresassentadas na região do Pontal do Paranapanema, devido à distancia e àdificuldades de locomoção e comunicação, fez com que fossem criados outrosgrupos de ação política de mulheres trabalhadoras rurais em São Paulo.

A constituição de uma pauta de discussão e de reivindicação socialcontribuiu significativamente para a formação dos assentamentos de reformaagrária em São Paulo, uma vez que fez com que temas até então invisíveis,como a titularidade das mulheres na reforma agrária, entre outros, viessem aganhar maior ressonância e tornar-se um componente da regulamentação edos processos decisórios. O movimento de mulheres assentadas e quilombolase a criação a atuação da Omaquesp representam, portanto, um componentealtamente relevante na história da luta das mulheres e na luta pela reformaagrária no Estado de São Paulo.

Referências

BRASIL. IBGE Censo Demográfico 2000: Perfil das mulheres responsáveispelos domicilio no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2000.

Page 171: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 171

CELUPPI, D.; PANZER, M. H. A gestão do trabalho a partir do olhardas mulheres agricultoras familiares. Relatório de pesquisa, RIMISP,UERGS: Francisco Beltrão, 2005 (mimeo).

DEERE, C. D.; LEÓN, M. O empoderamento da mulher: direitos à terra edireitos de propriedade na América Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS,2002.

FERNANDES, B. M. Reforma Agrária no Governo Lula: A Esperança.Presidente Prudente: Universidade Estadual Paulista, 2003.

FRANÇA, C. G. et al. O Censo Agropecuário de 2006 e a AgriculturaFamiliar no Brasil. Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2009.

LIMA, M. E. B. (org.). Mulheres da CUT: Uma História de MuitasFaces. São Paulo: CUT, 2006.

MORAES, A. P. S.; SILVA, E. A.; BARONE, L.A. A participação da mulhernos assentamentos rurais: um estudo no Pontal do Paranapanema. Retratosde Assentamentos, Araraquara, v.14, n.1, p.115-133, 2011.

SALVARO, G. I. J.; LAGO, M. C. S. O desafio de protagonizar questões:uma releitura da criação do movimento de mulheres agricultoras de SantaCatarina. VIII Seminário Internacional Fazendo Gênero: Corpo, Violência ePoder, 2008. In: Anais..., Florianópolis: Universidade Federal de SantaCatarina, 2008.

STROPASOLAS, V. L. O valor do casamento na agricultura familiar.Estudos Feministas, 12(1), p.253-267, janeiro-abril 2004.

VALENCIANO, R. C.; TOMAZ Jr, A. O papel da mulher na luta pela terra:uma questão de gênero e/ou classe. Scripta Nova, Universidade deBarcelona, vol. VI, nº119, agosto de 2002.

VALENCIANO, R. C. Organização das Mulheres no Pontal doParanapanema: O caso Omaquesp. Presidente Prudente: UniversidadeEstadual Paulista, 2006.

Page 172: retratos de assentamentos

172 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

VERUCCI, F. O Direito da Mulher em Mutação. Belo Horizonte: DelRey, 1999.

VIEIRA, M. A. L. Educação em Assentamentos Rurais: Avaliando aExperiência de Alfabetização no Pronera. IX Seminário de Extensão, 2007.In: Anais..., Piracicaba: Universidade Metodista de Piracicaba, 2007.

Page 173: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 173

DIREITOS HUMANOS EREFORMA AGRÁRIA

Dulce Consuelo Andreatta Whitaker1

1Pesquisadora CNPq junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da UNESPem Araraquara. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural – NUPEDOR/UNIARA.

Resumo: O texto trata da Questão Agrária, à luz da emergência histórica dosDireitos Humanos. Argumenta então que o direito à vida, proclamada por todasas Constituições dos Estados de Direitos exige a integração dos despossuídos àterra de trabalho, via Reforma Agrária, como forma de restaurar-lhes a dignidadeque lhes fora atribuída ao nascer, conforme a Declaração Universal dos DireitosHumanos e que lhes foi usurpada em trajetórias de vida cheias de rupturas e deexclusão social. Entender a Reforma Agrária por esse prisma permite a todos osassentados, bem como a todos os habitantes do campo, reivindicarem os direitosfundamentais concedidos aos habitantes da cidade e pensados sempre do pontode vista do espaço social urbano.

Palavras-chave: Questão Agrária; Direito à Vida; Políticas Públicas para a ZonaRural.

Abstract: This paper focuses on the Agrarian Question and examines theemergence of human rights from a historical perspective. Great emphasisis placed on the right to life guaranteed by the State Constitutions of theCountries of the World that contained an elaborate Bill of Rights, providingstrategies of territorial integration through agrarian reform, allowinglandless to reside on and use land as a means to restore their dignity whichthey were assigned at birth, according to the Universal Declaration of HumanRights, although their rights have been usurped in the trajectories of theirlives by social disruptions and exclusion. From this perspective, the agrarianreform might be understood in a way that allows settlers and people wholive in rural areas to argue that the political process should be concerned

Page 174: retratos de assentamentos

174 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

with ensuring them equal rights taking into account all aspects of urbanand social space.

Keywords: Agrarian Issue; Right to Life; Public Policies for the Rural Area.

IntroduçãoAs pesquisas em assentamentos de Reforma Agrária têm levado os estudiosos

da vida rural à abordagem dos mais variados temas, o que se explica pelacomplexidade desse espaço humano historicamente novo, com seus novos atoressociais, tal como já teorizado por diferentes autores na última década do séculopassado (WHITAKER, FIAMENGUE, 1994).

Frente a essa complexidade baseada em relações sociais intermediadas pelanatureza (WHITAKER, 2011), os pesquisadores se deparam com problemasque vão da questão ambiental às preocupações com o resgate das manifestaçõesartesanais, passando, obviamente, pelo estudo de importantes relações de podere pelo caleidoscópio de ligações que acontecem em função da produção e dacomercialização dos resultados dos seus esforços.

O argumento deste artigo é de que a todas essas questões interessa a temáticados Direitos Humanos, o que nem sempre tem sido abordado diretamente. Aindaque a Reforma Agrária seja uma espécie de "calcanhar de Aquiles", lembradaconstantemente pelos estudiosos da nossa Questão Agrária, que apontam a suanão implementação como fator importante do nosso atraso histórico, o acesso àterra como um direito natural dos seres humanos fica obstaculizado pelo direitoà propriedade, proclamado pelas constituições burguesas e consolidado em nossopaís pela força do latifúndio, que se apoderou historicamente do espaço rural.Tenta-se então partindo de uma política pública importante, qual seja, a dosassentamentos rurais, mostrar as relações entre Direitos Humanos e ReformaAgrária e a forma como esse dois temas se tangenciam, quer seja no plano dasabstrações teóricas, quer seja em situações concretas como o cotidiano dosassentamentos rurais.

A Emergência Histórica dos Direitos Humanos na Cultura OcidentalNão caberia, no curto espaço de um artigo, fazer um balanço histórico do

desenvolvimento dessa complexa questão, o que o levaria para longe do temaproposto.

Para o que se pretende argumentar, basta resumir recentes pesquisas históricasque situam o aparecimento da idéia moderna de Direitos Humanos à época do

Page 175: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 175

Iluminismo, desvelando relações com a literatura do romantismo – notadamenteos romances de Rousseau e de seu antecessor Samuel Richardson, a partir decujas leituras teria sido despertado o sentimento da compaixão (HUNT, 2009).

Embora esse aspecto subjetivo possa parecer secundário – já que as séculosXVIII e XIX são enfatizados muito mais pela luta política e social em tornodos direitos proclamados pelas revoluções burguesas de um lado e pelasreivindicações socialistas de outro - o fator psicológico deve ser lembradosempre que se trate da extensão da titularidade de direitos a novas categoriassociais. Para que se compreenda a força do despertar dos sentimentos bastalembrar que:

A discussão internacional sobre direitos humanos iniciou-se logo após ogenocídio imposto pelo nazismo na Segunda Guerra, culminando com aDeclaração Universal dos Direitos Humanos (FERNANDES,PALUDETO, 2010).

O trecho acima toca diretamente no sentido da compaixão, como motor daDeclaração Universal dos Direitos Humanos – diploma legal por excelência na"mundialização" desses direitos durante a segunda metade do século XX.

E o que declara, logo em preâmbulo, esse emocionante documento?Exatamente a dignidade de toda pessoa humana! "Visto que o reconhecimentoinerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais einalienáveis, da justiça e da paz no mundo" (DECLARAÇÃO DOS DIREITOSHUMANOS apud HUNT, 2009).

O que leva diretamente ao artigo 1º "Todos os seres humanos nascem livrese iguais em dignidade e direitos" (grifos da autora). E ao artigo 3º que afirma "Odireito à vida, à liberdade e à segurança pessoal" (DECLARAÇÃO DOSDIREITOS HUMANOS apud HUNT, 2009).

A questão da dignidade exige uma primeira reflexão. Ser digno é estar deposse de todas as características que nos diferenciam enquanto seres humanos,entre elas o direito mais sagrado para todas as constituições democráticas – odireito à vida (o que implica liberdade e segurança). O direito à vida traz implícitoo direito à alimentação (WHITAKER, 2008), já que não pode estar em estadode dignidade o sujeito destruído pela fome, cujo corpo esquálido e menteobscurecida o tornam incapaz de exercer a sua humanidade, seja no plano social,seja no plano biopsíquico.

Assim, enunciar o direito à vida e pensar as exigências de dignidade remete

Page 176: retratos de assentamentos

176 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

diretamente à questão da segurança alimentar, e principalmente da soberaniaalimentar, conforme teorizado por Whitaker (2008). E pensar em segurançaalimentar é pensar em Reforma Agrária.

A Questão Agrária no país que se quer urbanizadoEstudiosos de diferentes matizes políticos observam que a nossa Questão

Agrária não está resolvida (MALAGODI, 2011). Apesar dos avanços obtidospela política de assentamentos de Reforma Agrária, o aprofundamento dasrelações capitalistas no campo através da expansão do agronegócio, exaltadopelos corifeus da grande imprensa, é um entrave considerável à resolução dessaquestão.

Os militantes da luta pelos Direitos Humanos se concentram nos problemasdas cidades, os quais decorrem perversamente da explosão urbana quecaracterizou a América Latina no último quartel do século passado. Essaurbanização não planejada estabeleceu as metrópoles inchadas, nas quais, adesumanização se acentuou como decorrência contraditória da acumulação docapital.

Nesse quadro, os Direitos Humanos aparecem ilusoriamente como direitosdos habitantes das cidades. Afinal, "cidadão" não é pela sua etimologia, aqueleque vive na cidade?

O que nem sempre os militantes percebem é que tais bolsões de problemas ede ausência de direitos básicos que ocorrem no espaço urbano (paralelamenteao brilho científico e tecnológico da riqueza gerada pelo capital) nada têm deparadoxal, já que são consequências contraditórias, não só da acumulação quesustenta a riqueza, como principalmente da História Agrária, no país formadocom base no latifúndio, na monocultura e na escravidão (PRADO JR., 1963),que se travestiu modernamente no paraíso do agronegócio da cana, da laranja,da soja... (WHITAKER, 2009).

O homem comum, dominado pelo processo ideológico pensa muitas vezes asoja como o "ouro do Brasil atual", não percebendo que a produção de sojapara alimentar o gado europeu (ou o frango o japonês) fere gravemente a suadignidade, na medida em que privilegia engordar animais para alimentarconsumidores ricos, cujos níveis de vida jamais alcançará. E fere ainda adignidade, ameaçando a vida de populações inteiras no continente africano, omais violentado pelas potências européias, cujos direitos à humanidade ( e àdignidade) foram negados em quatros séculos de escravidão. Hoje, a política desubsídios aos cereais na Europa (e ao algodão dos U.S.A.) contribui para o

Page 177: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 177

desparecimento (e para a fome do campesinato) em diferentes países da África(BOUVÉ, DUFOUR, 2001).

Ora, dentro desse quadro macroeconômico perverso, os assentamentos deReforma Agrária – ainda que não satisfaçam nossas ânsias utópicas por um ruralequivalente às conquistas do pensamento social – se apresentam como alternativa.

São alternativas porque, ainda que de forma precária, oferecem à populaçãovulnerada pela exclusão estrutural e ameaçada pela marginalidade, a oportunidadedo uso da terra como terra de trabalho, aquela que se usa de acordo com ospreceitos da natureza. Ou seja, para matar a fome e não para provocá-la, comotem ocorrido neste país, a partir da expulsão do homem do campo, muitas vezesvítima da monocultura dos grandes cultivos (WHITAKER, 2008).

O argumento deste texto é que, ao voltar à terra – ou optar por ela, conformeo caso a família trabalhadora recupera direitos: o direito à alimentação, base dodireito à vida, sem a qual não há possibilidade de qualquer encaminhamento deseus direitos fundamentais. A posse de um lote em assentamento de ReformaAgrária, por insatisfatória que seja a magnitude do módulo adotado, significainclusão sistêmica, encaminhando portanto, em direção à recuperação dadignidade, atributo que recebeu ao nascer (proclamado em tantos diplomas legais)e que lhe foi usurpado, à medida que os torvelinhos na sua trajetória o tangiamna direção da exclusão, com dolorosas rupturas culturais (WHITAKER, 1995).

Os efeitos da História que, no caso do capital, mudam a estrutura apenaspara fortalecê-la, nem sempre são perceptíveis. Somos comandados porforças econômicas que não se apresentam à nossa percepção imediata,graças ao processo ideológico que as obscurece (MARX, ENGELS, 1986;CHAUÍ, 1980).

Da mesma forma, como o homem comum tem dificuldades para compreendero movimento dos astros no céu estrelado (e prefere acreditar em horóscopos emapas astrais), assim o movimento da História lhe aparece como resultado doacaso e de mistérios insondáveis que o assombram. Mas o fato de haver lutapela terra e volta ao campo em plena era da ilusória urbanização do mundoproclamada pelos tecnocratas, indica os vislumbres desse mesmo homem comumsobre as utopias do futuro.

Ou seja, a luta pela terra implica a busca pela re-inclusão e como decorrênciaa re-conquista da dignidade que um dia se perdeu a partir da espoliação de quesão vitímas potenciais todos aqueles que não participam dos processos deacumulação.

E aqui já estão os fatores para o equacionamento da questão proposta: a luta

Page 178: retratos de assentamentos

178 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

pela terra já fornece os primeiros elementos para reconstrução da dignidade.Tais elementos aparecem claramente em muitos estudos e teses que resgatamaspectos dessa luta. Veja-se, por exemplo, o trecho abaixo, selecionado entremuitos registros feitos por pesquisa na área dos estudos rurais: "então por quevaleu a pena? Porque a gente teve um sonho, acreditou nesse sonho e hoje estesonho está realizado [...] porque teve esperança e fé" (TEIXEIRA, DUVAL,BEZERRA, p.198, 2011).

Observem o discurso girando em torno de três elementos: o sonho, aesperança e a fé. São elementos emocionais do ser humano que só podemdecorrer da postura de dignidade. E a fala do sujeito entrevistado desvela ummomento de autoestima e de avaliação de uma conquista sinalizando nessa direção.Seria interessante um estudo, rastreando nas pesquisas dos anos 1980/1990 (eaté hoje) os elementos subjetivos que re-compõem esse importante atributo – adignidade do ser humano destruída durante trajetórias excludentes, marcadaspor rupturas ou por vertiginosa mobilidade vertical descendente.

Mas prefere-se agora, para que o texto não seja acusado de romântico,discorrer sobre dignidade, com base no direito à vida em sua forma material eobjetiva, o que sempre é mais concernente quando se pensa em sobrevivência ere-inclusão social.

Assim, o argumento tem que partir da alimentação, sem a qual, a vida nãoseria possível. De uma existência que garanta segurança alimentar, brotam adignidade e o direito à vida bases de um elenco de direitos humanos que seamplia a cada instante (FERNANDES, VAIDERGORN, 2010).

Ao conquistar um lote de Reforma Agrária, o excluído se re-inclui, deixa deser tangido de um lado para outro da terra "que queria ver dividida" (como diziao grande poeta João Cabral), mas que estava sempre "cercada" pelo capital.Pisa finalmente "seu território". Eis aqui o primeiro elemento na recuperação dadignidade: possuir um território, plantar seus alimentos, garantir comida para afamília e um dia vender o excedente.

Esse plantio de subsistência, tão desprezado à esquerda e à direita pelosepígonos do pensamento evolucionista foi, no entanto, a base histórica sem aqual nenhum progresso teria sido possível. Foi com base nesse plantio que seconstruiu a tríade alimentação-vida-dignidade, materialidade do que se proclamahá mais de meio século como direitos fundamentais da pessoa humana. A relaçãoé tão óbvia que, paradoxalmente ou não, pouco se fala dela. Chonchol (2005)lembrou recentemente que as potências ocidentais se preocuparam em socorreráreas de fome endêmica nos anos 1960/1970/1980 do século passado, tempos

Page 179: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 179

de Guerra-Fria, quando se temia o avanço do comunismo entre as populaçõesfamintas. Derrotado o socialismo real, a "compaixão" das potências perdeuintensidade? Ou seja, cerca de um bilhão de pessoas passam fome no mundo,sem abalar a consciência aburguesada pelo neoliberalismo.

Mas, voltando ao concreto da Reforma Agrária, é preciso lembrar que, emassentamentos já consolidados, há indicadores confiáveis de segurança alimentarcomo as baixíssimas taxas de mortalidade infantil e a presença de feiras(agroecológicas ou não) em cidades que lhe são próximas, o que tem sidoestudado por pesquisadores em diferentes pontos do país2.

Entre os assentamentos da região de Araraquara, o caso dos núcleos daFazenda Monte Alegre já chamava atenção dos pesquisadores nos anos 1990,pouquíssimo tempo após a consolidação dos seus assentados – pela riqueza dadiversidade dos seus produtos e pelas atividades que conseguiam desempenhar(WHITAKER, FIAMENGUE, 2000).

Muitos estudiosos se dedicaram às pesquisas sobre essa diversidade e olivro "Da Terra Nua ao Prato Cheio" realizado a partir de pesquisas do ITESP,organizados por Ferrante e Santos (2003), atesta as possibilidades dadas pelaânsia de diversidade que anima as famílias quando a recuperação da dignidadetorna possível a realização dos sonhos e a confirmação de que a "esperança e afé" encaminham soluções, o que leva novamente às questões subjetivas. Afinal,dignidade implica sentimentos e, portanto, sensações subjetivas – embora combases objetivas conforme o argumento deste texto.

Ampliando a Questão dos Direitos para Assentamentos RuraisO fato de considerar que a pose da terra de trabalho, ao gerar a segurança

alimentar restabelece a dignidade e o direito à vida não significa, porém, que osassentados estejam sendo reconhecidos como portadores de direitos. Em nossopaís, muitas pessoas ainda pensam que as políticas públicas garantidoras dedireitos se constituem em assistencialismo, o que estabelece para o cidadão alvodessas políticas uma sociabilidade baseada na prestação do "Favor" (MACIEL,2009). Pelo qual deve suplicar e agradecer (o que significa negação da cidadania).

É preciso, portanto, mudar a ótica através da qual a sociedade encara osassentamentos de Reforma Agrária. A conquista do direito à vida não esgota a

2Veja-se, por exemplo, Nishikawa (2004) e Duval, Valêncio, Ferrante (2009).

Page 180: retratos de assentamentos

180 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

esfera dos direitos fundamentais. A posse da terra via políticas públicas não éassistencialismo e sim resultado da luta – e a luta não é por esmola e sim pordireitos.

Cumpre, portanto, a todos que se interessam pela solução da não resolvidaQuestão Agrária (MALAGODI, 2011), denunciar as violações dos direitosfundamentais que se escondem sob a confortável ideologia do "atraso do homemrural". Com base nessa ideologia, negam-se aos espaços rurais todos osbenefícios dos equipamentos impropriamente chamados urbanos (hospitais, boasescolas, transportes adequados) e proclama-se o campo como lócus do atraso,invertendo-se causa e efeito um exemplo, dos mais eloqüentes da manifestaçãoda falsa consciência tal como elaborado por Marx e Engels (1986).

Lembrando que tais benefícios concedidos às populações urbanas pelo Estadosão pagos por impostos que derivam da riqueza produzida pelo trabalho humano,inclusive o da zona rural (MARX, 1983), busca-se elencar agora alguns dosdireitos negados ao rural – notadamente aos próprios assentamentos, alertandopara a necessidade da ampliação de políticas públicas geradoras de direitos queatinjam a sociedade como um todo incluindo o campo como espaço da cidadaniae não como um território alternativo que se precisa manter como válvula deescape aos métodos extorsivos do capital.

A posse do pequeno lote, em terras nem sempre produtivas (lembrar que aConstituição impede essas desapropriações) não é justiça social no sentido pleno.Após essa conquista, há muito o que reivindicar porque, como cidadãos agoraincluídos, fornecendo alimentos para zonas urbanas, esses novos atores sociaissão portadores de todos os direitos atribuídos hoje aos moradores das cidades.

Apresentam-se agora algumas reflexões sobre direitos fundamentais pelosquais ainda devem lutar – uma luta que estimula motivações geradas pela dignidadeconquistada Ferrante (2010), por exemplo, investiga a luta das mulheres pelaconquista de alguns desses direitos e observa a presença feminina nas discussõesdo Orçamento Participativo no município de Araraquara. Políticas de promoçãosocial para aprovar lideranças femininas têm sido incrementadas sob suacoordenação (FERRANTE, 2011), a partir do NUPEDOR (Núcleo de Pesquisae Documentação Rural) em associação com a UNESP/Araraquara e financiadaspelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e SecretariaEspecial de Políticas Públicas para as Mulheres, mas nem sempre os gestoresreconhecem a importância da capacitação para o plano feminino.

A questão da mulher rural tem que ser estudada com cuidado, dadas asduras condições do trabalho na terra tanto para os homens como para as

Page 181: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 181

mulheres. Não se pode simplesmente transportar uma visão burguesa do feminismoe esperar que funcione numa situação em que certa divisão sexual do trabalhopode ser produtiva e benéfica à mulher.

A mulher rural tem ainda direitos à saúde que a singularizam e nunca sãoenfatizados. Aliás, a preocupação com a saúde das populações rurais nem sempreestá na agenda dos governos municipais. E aqui se trata também da saúde doshomens. Tratamentos que deveriam estar ao alcance imediato dos moradoresdos assentamentos exigem locomoção para centros urbanos. E onde o transportepúblico – limpo e confortável que garanta o direito de ir-e-vir, um dos maisprecocemente enunciados na história política do Ocidente? Como assessorartransporte rápido em caso de mal súbito do tipo que mata quando há ausênciade socorro imediato? Medicina social, eis outro direito a ser reivindicado!

E as crianças? O acesso à escola de boa qualidade proclamada pelaConstituição Brasileira e pelo E.C.A. (Estatuto da Criança e do Adolescente) édireito fundamental em qualquer espaço rural ou urbano. É inadmissível quecrianças e adolescentes tenham que caminhar no escuro da madrugada parachegar a um ônibus precário que as leva para a cidade e frequentar escolasurbanas nas quais são tratados com desprezo (BRANCALEONE, 2002;ARAÚJO, 1996).

Também em relação às crianças, a visão burguesa deve ser cuidadosamentecalibrada. As duras condições de vida, no que se refere ao trabalho na zonarural, exigem que os filhos ajudem seus pais, tanto no trabalho doméstico quantonos aspectos lúdicos das atividades mais simples e isso pode ser educativo, jáque historicamente a educação das crianças sempre se fez através do trabalho(WHITAKER, 2005)3. Uma educação escolar respeitadora da cultura rural temsido concedida em alguns municípios do Brasil graças a uma política"Paulofreiriana" no plano federal que pensa a diversidade cultural como um bemprecioso a ser conservado – eis outro direito fundamental. É preciso, no entanto,observar que a educação escolar está municipalizada. Como se dá, em diferentesmunicípios, – a escolarização das crianças nesses novos espaços rurais? É óbvioque ao optar pela vida rural, esses novos atores, não desistiram do arbitráriocultural dominante (BOURDIEU, PASSERON, 1975), a subcultura hegemônica

3O que não se pode permitir, em hipótese alguma é que a criança trabalhe para o capital, oque significa extração da mais valia e trabalho violentando seus corpos em desenvolvimentoe afastando-os da escola.

Page 182: retratos de assentamentos

182 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

que permite acesso aos níveis mais confortáveis do sistema social. Mas elesprecisam ver respeitado também seu próprio arbitrário cultural: a subcultura, naqual construíram suas identidades e com base na qual se constroi a ponte nadireção dos conteúdos escolares (WHITAKER, 2008).

No caso de Araraquara, por exemplo, o projeto de Educação do Campo foisubstituído pelo sistema SESI (...), um tipo de educação voltada para conteúdosurbanos e ideologicamente comprometidos com a indústria, o que está merecendopesquisas a partir do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regionale Meio Ambiente da UNIARA.

Educação e Saúde: a proclamação desse binômio tornou-se quase um"slogan", ou seja, um clichê banalizado pelo discurso fácil das promessas eleitorais.Paradoxalmente, é o que falta para boa parte da população do país – notadamentenas áreas rurais.

E o direito à moradia? Residir em espaços rurais não significa, ou não deveriasignificar desconforto e carência. É bem verdade que a eletricidade foi estendidaao rural pelas recentes políticas públicas no país. É preciso reconhecer tambémque ao receber um lote, o assentado já alcança o primeiro requisito para construira sua moradia. Mas que conforto consegue colocar nessa moradia? E a qualidadeda água à qual tem acesso? E o serviço de esgoto? E a poluição nos mananciais?A visão romântica costuma associar a vida rural ao ar puro, à água limpa, àsarvores frondosas e isso é possível. Mas assentamentos de Reforma Agrária sãomuitas vezes implantados em regiões dominadas pelo agronegócio e sabemostodos que nossa fronteira agrícola avança vorazmente até sobre a Amazônia.Assim, o entorno de um assentamento é muitas vezes o grande cultivo da cana,da laranja, da soja, cada qual com seus venenos específicos, que se espalhampara além dos plantios que deveriam "envenenar com exclusividade".

A soja, por exemplo, está se tornando transgênica exatamente para suportarcargas de agrotóxicos cada vez maiores e a laranja é constantemente pulverizadacom tais produtos prejudiciais aos seus entornos. E então? Como se apresentamos rios e o próprio ar, no qual flutuam tais emanações? E ainda há pesquisas quese preocupam com os prejuízos ambientais causados por assentados quandoderrubam árvores para plantar o alimento que lhes garante o direito à vida!

Tangenciam-se aqui os direitos ambientais – direitos difusos coletivos e, porisso, mesmo pouco contemplados pelo individualismo burguês. Mais do quepensar em educação ambiental (que em geral é ministrada aos pobres e às crianças– ou seja os mais inocentes dos crimes ambientais) o Estado deve atender àsreivindicações que visam proteção para as populações de modo geral em relação

Page 183: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 183

aos efeitos perversos da industrialização da agricultura - e esse aspecto é crucialem assentamentos de Reforma Agrária, ameaçados de invasão pelo entorno dograndes cultivos.

Proteção contra a poluição não é único direito ambiental ou fundamental aser reivindicado, por esses novos atores sociais (cidadãos no Estado de direitos).É importante que os governos municipais estendam aos assentamentos o serviçode coleta de lixo (que também na zona rural deixou de ser apenas orgânico), ocuidado com as estradas, e um transporte rural-urbano que seja também rural-rural. São direitos básicos da cidadania pelos quais a sociedade paga substanciaisimpostos em todas as classes sociais.

Enfim, o homem rural e a mulher rural, ou seja, a família que reside em espaçosrurais, são titulares de direitos tanto quanto aqueles que optaram pelo espaçourbano. Ao reivindicar um olhar diferençado para o feminino ou para a infânciano campo, não se pretende em olhar menos cuidadoso. Ao contrário, o texto emuita experiência em pesquisa sugerem um olhar mais atento para especificidadesque não os desqualificam e sim exigem ampliação das obrigações do Estado naárea de Direitos Humanos.

Referências

ARAÚJO, Rosane Ap. Os pés-vermelhos e a proposta de agrupamentoda Escola Rural. Dissertação (Mestrado em Ociologia). UniversidadeFederal de São Carlos, São Carlos, 1996.

BASTOS, Valéria Ap. de; OLIVEIRA, Tatiana de. A proposta de educaçãodo campo das escolas rurais de Araraquara-SP: destaque na construção daqualidade de vida. IN: FERRANTE, Vera L. S. Botta. Retratos deAssentamentos, Araraquara/SP, Nupedor/Uniara, n.09, p.147-166, 2004.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean C. A Reprodução. Rio de Janeiro:Francisco Alves, 1975.

BOVÉ, José; DUFOUR, François. O mundo não é uma mercadoria:camponeses contra a comida ruim. Editora: UNESP, 2001.

BRANCALEONE, Ana P. Do rural ao urbano: o processo de adaptaçãodos alunos moradores de um assentamento rural à escola urbana. Dissertação

Page 184: retratos de assentamentos

184 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

(Mestrado em Psicologia). Faculdade de Filosofia, Universidade de SãoPaulo, Ribeirão Preto, 2002.

CHAUÍ, Marilena. Ideologia e Educação. Educação e Sociedade,Campinas, v.05, Cortez Ed. e Autores Associados, p.24-40, 1980.

CHONCHOL, Jacques. A Soberania Alimentar. In: Estudos Avançados,São Paulo, Universidade de São Paulo, 1955.

DUVAL, Henrique C.; VALENCIO, Norma F.L.S.; FERRANTE, VeraL.S.B. Da Terra ao Prato: a importância da memória nas estratégias desegurança alimentar de famílias assentadas. Retratos de Assentamentos,Araraquara, v.12, p.189-216, 2009.

FERNANDES, Angela V. M.; PALUDETO, Melisa, C. Educação e DireitosHumanos: desafios para a Escola Contemporânea. In: Educação e DireitosHumanos: contribuições para o debate. Cadernos Cedes. v.30, n.81,maio/agosto, 2010.

FERNANDES, Angela V. M.; VAIDERGORN, José. (Orgs.). Educação eDireitos Humanos: contribuições para o debate. Cadernos Cedes. v.30,n.81, maio/agosto, 2010.

FERRANTE, Vera Lucia Silveira Botta. Mulheres assentadas em movimentona casa e na rua, espaços de resistência. In: WHITAKER, Dulce C. A.;FIAMENGUE, Elis. C.; VELÔSO, Thelma. M. G. (Orgs.) Ideologia eEsquecimento: aspectos negados da memória social brasileira.Presidente Venceslau/SP: Ed. Letras à Margem, 2010.

FERRANTE, Vera Lucia Silveira Botta. (Coord.) Capacitação em gênero einserção no atendimento em rede às mulheres em situação deviolência. Projeto UNIARA/UNESP/Secretaria Especial de PolíticasPúblicas para as Mulheres, Araraquara/SP, 2011.

FERRANTE, Vera Lucia Silveira Botta; SANTOS, Isabel Péres dos. DaTerra Nua ao Prato Cheio: produção para consumo familiar nosassentamentos rurais do Estado de São Paulo. Araraquara/SP: Fundação

Page 185: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 185

ITESP/UNIARA, p 15-20, 2003.

HUNT, Lynm. A Invenção dos Direitos Humanos: uma história. Ed.Companhia das Letras, São Paulo, 2009.

MACIEL, Carlos A. B. Benefício de prestação continuada: as armadilhas.Presidente Venceslau/SP: Ed. Letras à Margem, 2008.

MALAGODI, Edgard. A relevância da Questão Agrária na atualidade. In:BERGAMASCO, Sônia M. P. P.; OLIVEIRA, Julieta T. Aier; ESQUERDO,Vanilde F. de Souza. Assentamentos Rurais no século XXI: TemasRecorrentes. Campinas/SP. FEAGRI/UNICAMP/INCRA, p. 37-66, 2011.

MARX, Karl. O Capital: Vol. I Marx os economistas. Ed. Abril Cultural.São Paulo, 1983.

MARX, Karl; FRIEDRICH, Engels. A Ideologia Alemã. São Paulo.Hucitec, 1986.

MORIN, Edgard. O Método. Vol.II. Publicações Europa América, Portugal,1994.

NISHIKAWA, Dulcelaine L. L. Levantamento das práticas sustentáveisnos assentamentos da Fazenda Monte Alegre na região de Araraquara/SP. Dissertação (Mestrado em Ciências da Engenharia Ambiental).Universidade de São Paulo, São Carlos, 2004.

TEIXEIRA, Ana C.; DUVAL, Henrique C.; BEZERRA, Maria C. Do romperda cerca ao acesso à terra: resgate e registro dos caminhos percorridos pelasfamílias pioneiras da Comunidade Agrária 21 de Dezembro Descalvado/SP.Retratos de Assentamentos, Araraquara, Nupedor/Uniara/CNPq. v.14,n.1, p.197-216, 2011.

PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo,Brasiliense, 1963.

WHITAKER, Dulce C. A.; FIAMENGUE, Elis C. Assentamentos de

Page 186: retratos de assentamentos

186 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Reforma Agrária: novos atores e novos espaços sociais no campo. Retratosde Assentamentos, Araraquara/SP. F.C.L/UNESP, ano II, n.2, 1995.

WHITAKER, Dulce C. A.; FIAMENGUE, Elis C. Assentamentos deReforma Agrária: uma possibilidade de diversidade agrícola. Retratos deAssentamentos, Araraquara/SP. Nupedor/Unesp/CNPq, ano VI, n.8, p.19-31, 2000.

WHITAKER, Dulce C. A. O rural na escola brasileira. Retratos deAssentamentos, Araraquara, Nupedor/Uniara/CNPq, n.11, 2008.

____________Educação Rural: da razão dualista à razão dialética. Retratosde Assentamentos, Araraquara/SP, Nupedor/Uniara, n.11, 2008.

___________O papel da Sociologia Rural frente às teorias da complexidade.In: BERGAMASCO, Sonia M. P. P.; OLIVEIRA, Julieta T. A.;ESQUERDO, Vanilde F.S. Assentamentos Rurais no século XXI: temasrecorrentes. Campinas/SP: FEAGRI/UNICAMP/INCRA, 2011.

___________La questión de La diversité dans les noyeux de reforma agrarie.In: AUBEE, Marion; BERGAMASCO, Sônia M. P. P. Chaiérs du BrésilContemporaine. Paris, CRBC, nº51, p.239-256, 2003.

___________Soberania Alimentar e Assentamentos de Reforma Agrária. In:FERRANTE, Vera L.S.B.; WHITAKER, Dulce C.A. (Orgs.) ReformaAgrária e Desenvolvimento. Brasília/DF. NEAD, p.223-240, 2008.

__________Reforma Agrária e Meio Ambiente: superando preconceitoscontra o rural. Retratos de Assentamentos, Araraquara/SP, Nupedor/Uniara/CNPq, n.12, 2009.

Page 187: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 187

REFLEXÕES SOBRE O PACTOAGRÁRIO BRASILEIRO

Raimundo Pires Silva1

1Engº Agrônomo, mestre em Desenvolvimento Econômico, na área da Economia Agrária eAgrícola/UNICAMP.

Resumo: Este artigo tem por objetivo tecer o eixo cognitivo da questão agrárianuma perspectiva crítica do pacto agrário, abordando que a questão agráriapermaneceu/permanece inalterada no tempo, de tal modo que o antigo nunca foimudado - a maioria da população rural se encontra dissociada do padrão deacumulação, sendo privadas de uma situação de direitos; e ainda, destaca àimportância epistemológica das reflexões acadêmicas e dos movimentos sociais/sindicais, resaltando as suas preposições e formulações de políticas públicas.

Palavras-chave: Questão Agrária; Pacto Agrário; Latifúndio; Lutas Sociais eSindicais; Reforma Agrária; Políticas Públicas Agrárias.

Abstract: This article aims to provide an understanding of the perceptionsof agrarian issues, highlighting the agrarian pact, in a critical perspective,and seeks to establish that the agrarian question remains unresolved, andno comprehensive solution has been found to date - most people living inrural areas settings experience various forms of disadvantages such as thedissociation from the social patterns of accumulation, and they are deprivedof their own rights; moreover, the paper highlights the epistemologicalsignificance of the empirical and academic reflections, and the social andunion movements with respect to the proposals for the formulations of publicpolicies.

Keywords: Agrarian Question; Agrarian Pact; Landowners; Social andUnion Struggle; Land Reform; Agrarian Public Policy.

Page 188: retratos de assentamentos

188 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

IntroduçãoO presente artigo tem por objetivo tecer um breve panorama da questão

agrária nacional, tendo em vista a importância epistemológica da terra, numaperspectiva crítica ao pacto agrário nacional. Tenta-se dar uma ideia dacomplexidade do tema, que tende aumentar com processos novos que tomam olugar dos antigos.

A tendência neste arrazoado foi ou ora somar os processos novos aos antigosou ora interpretar os processos novos dentro da ótica dos antigos, de tal modomostrar que o antigo nunca foi aniquilado.

O conflito, a contradição, a complexidade, a expectativa e a luta de classesestiveram (e estão) no eixo cognitivo da questão agrária, contrariando aperspectiva linear do pacto, portanto, colaborando com uma interpretação dosproblemas sociais, políticos, ambientais, fundiários e econômicos do ruralbrasileiro.

Como comentário inicial, uma breve olhada em Marx (1997, p.52): "(...) agrande propriedade territorial, apesar de suas tendências feudais e de seu orgulhode raça, tornou-se completamente burguesa com o desenvolvimento da sociedademoderna".

Na questão agrária nacional não houve mudança desde primórdios do país, aocupação da terra e seus reflexos vêm transcorrendo, praticamente, sem alteraçãode hábito e conteúdo: alta concentração fundiária e degradação dos recursosnaturais convivendo com a migração, o êxodo e as baixas condições de vida ede trabalho da população pobre rural.

Há uma vocação inelutável do latifúndio no domínio do espaço físico fundiário:"a terra", pois segundo Ribeiro (2007), esse sistema da agricultura latifundiáriaopera com base numa apropriação pletórica de terras, infinitamente superior àque possa utilizar, mas indispensável para que detenha o comando da economiaagrária e da sociedade.

Esta realidade histórica acontece porque houve (e há) um pacto agrário2

entre proprietários (latifundiários) e governantes, sendo que, posteriormentesomaram-se a eles os agroindustriais (conformando-se uma tríade). A oligarquiarural articula-se com os interesses dos industriais convertendo o Estado numverdadeiro lócus de conciliação dos interesses convergentes e divergentes dasclasses possuidoras e dirigentes.

2Nominação de Delgado (2011-b).

Page 189: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 189

A elite rural delimitou (e delimita) um relacionamento com o poder público,com papel destacado na organização social e política do Estado3.

Em decorrência dessa trindade não aconteceu (e não acontece) a regulaçãoe efetiva aplicação dos direitos e deveres da propriedade rural. Portanto, a ordemlegal da terra sempre esteve sujeita ao uso dos latifundiários, que se tornaramcaudatários da grilagem ou da apropriação de significativas glebas de terraspúblicas e devolutas4.

Em qualquer sistema social as instituições políticas estão intimamenterelacionadas com as econômicas, sendo todas interdependentes. Poder eriqueza usualmente andam juntos. A posse de riqueza gera poder, assim comoo poder é desejado porque leva à riqueza. E ambos são desejados porquedão prestígio, que pode ser valorizado como um meio para alcançar os outrosdois (MEDINA, 1972).

O que segue naturalmente à tríade são os problemas agrários, que Kageyama(1994, pag. 15) revisitando os autores clássicos, assim descreve: "seja sob aforma de um excedente estrutural da mão de obra (população sobrante deRangel); seja sob formas extorsivas e extra-econômicas de exploração do trabalho(Alberto Passos); seja sob o sistema de baixos salários e desamparo legal queperpetua a pobreza rural (Caio Prado e Celso Furtado)".

A partir destas interpretações a autora conclui que a questão agrária não seconfunde de maneira simplista com a concentração fundiária, embora apropriedade da terra e suas formas históricas de sua ocupação tenham papelfundamental na conformação dos problemas agrários, a expressão desses dá-seno plano da população.

No período do pós-guerra a produção agropecuária no conjunto da economiabrasileira passou a ser coordenada pela reprodução do capital urbano, isto é, oexcedente econômico agrário passou a ser apropriado pelo setor industrial,nacional ou mundial5.

3O "agrarismo" do Estado brasileiro está atribuído a Sérgio Buarque de Holanda (1995), aRaimundo Faoro (2000), Caio Prado (1976), Celso Furtado (1987), entre outros.4Para melhor compreensão ver Ligia Silva (2008), Sonia Moraes (1987).5Desde os anos 50, o Estado assumiu um papel preponderante na implantação de segmentosrelevantes da indústria pesada, e ainda, no investimento em infraestrutura. Forma-se apartir desses anos um tripé entre o capital estatal, o capital externo e o capital privadonacional, que se constituíram num bloco de inversões, que configura o processo dedesenvolvimento industrial e urbano do país (CANO, 1993).

Page 190: retratos de assentamentos

190 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

No interregno do regime militar se consolida no ambiente agrário brasileiro oprocesso de acumulação de capital denominado de modernização conservadora6,ficando tudo mais a margem, principalmente, as inquietações e implicações sociais,fundiárias e ambientais.

A velocidade e a natureza do processo de transformação das bases técnicase socioeconômicas da agricultura (monocultora com uso intensivo de insumosmecânicos, genéticos e mecânico, voltada para mercado do externo – perspectivada produção patronal; e especialização convivendo com a substituição pormáquina e o êxodo – perspectiva do trabalho) não tiveram correspondência nosplanos da justiça social e da preservação ambiental.

Assim, a questão agrária foi sendo empurrada pela modernidade e poucomodificando a estruturação das relações de poder nos níveis nacionais,regionais e locais, continuando de cunho autoritário e socialmente predatório(TAVARES, 1999).

Na maior parte dos casos, a integração internacional da agricultura patronal elatifundiária está sendo protagonizada por grandes corporações internacionais decommodities, como também, por empresas estrangeiras incorporando à nacional,e ultimamente, por um crescente processo de aquisição de terras por estrangeiros.

Isso tudo, está concentrando o mercado e reduzindo o emprego,estabelecendo novas formas de gestão e de tecnologia que estão reorganizandotoda a cadeia produtiva proveniente da agropecuária7.

A agricultura sob influência dessa realidade impõe um novo padrão decompetitividade de mercado e de acessibilidade tecnológica, e isto, avilta aindamais a reprodução e a permanência da produção familiar, como ocasiona umanova dinâmica para o emprego rural8, quer dizer, no campo não há mais lugarpara economia familiar e o trabalho manual; intensificando o problema agrário.

6Na sua trajetória o espaço rural brasileiro passou por um processo de acumulação decapital no campo denominado de modernização conservadora, cujas transformaçõesresultaram numa agricultura complexa, diversificada e industrializada, mas também comaltas taxas de concentração fundiária e de renda, além da concentração populacional nascidades, resultante do êxodo rural. Ver Graziano (1996).7Ver Belik (2001).8Há necessidade de mão de obra qualificada, no campo da informática, no uso de insumosmecânicos, genéticos e químicos, entre outras. Ocorre uma carência de trabalhadoresespecializados para as demandas existentes, faltam: motoristas para dirigir os modernoscaminhões, operadores para o novo maquinário (tratoristas, mecânicos, etc).

Page 191: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 191

Outro aspecto da modernização conservadora a ser lembrado é que nemtodo latifúndio se modernizou por completo, neste vasto território nacional, háalgumas regiões (por exemplo, na região oeste do Estado de São Paulo, naregião da Amazônia Legal, entre outras localidades), que ainda, permanecemsob o hábito de ocupação da oligarquia latifundiária caracterizada pela integraçãomarginal à indústria, produção extensiva de pecuária de corte, uso irregular deinsumos e baixa produtividade, mas, com expressão na política local (em algunscasos até na nacional).

Esse arranjo (socioeconômico e político) não foi hegemônico em todo territórionacional excluiu (e ainda exclui) amplos contingentes populacionais da economiafamiliar rural9. Parte significativa do agrário nacional ficou de fora da intensificaçãotécnica conduzida pela elite rural e pelas cadeias agroindustriais, sob fortepatrocínio das políticas públicas de Estado (DELGADO 2011).

Na economia agrária coexistem diferentes formas de acumulação e até deexclusão, sendo que essa coexistência não é ocasional é necessária. A drenagemdo excedente econômico gerado no campo "para fora" (mercado interno e externo)redunda num impacto estrutural e dinâmico sobre o seu próprio meio social.

Nessa ordem de cogitação estão inseridos indivíduos e grupos sociais:latifundiários, parte da economia familiar e trabalhadores rurais assalariados quemesmo reduzidos à pobreza conseguem transformar o trabalho em mercadoria.

No entanto, a maior massa da população rural (economia familiar etrabalhadores rurais) ficava (e ainda fica) parcial ou totalmente excluída daspossibilidades desse modo de produção. Por conseguinte, há trabalhadores ruraise despossuídos (os sem ou com pouca terra) vivendo dentro das fronteiras docapitalismo, mas fora de sua rede de compensações e garantias sociais,conformando numa massa de pobres e miseráveis10.

9Por mais precária tenha sido a política de expansão dos assentamentos, eles representamhoje cerca de um quarto dos agricultores familiares, de 4,4 milhões de produtores familiares,1 milhão são assentados (INCRA). O censo de 2006 revelou a existência de 1 milhão de nãoproprietários, deste total, 412 mil são posseiros que ocupam áreas inferiores a 2ha; entre osproprietários familiares (3,9 milhões) 1,8 milhões tem área inferior a 2 ha. Há entorno de10.000 famílias quilombolas cadastradas no programa "bolsa família" (MDS).10Perfil da extrema pobreza no Brasil: 16,27 milhões (8,5% da população total), em áreasrurais 46,7% e 53,3% situam-se em áreas urbanas. De um total de 29.83 milhões que residemno campo, praticamente em cada 1 de 4 se encontram na extrema pobreza (25,5%), perfazendoum total de 7,59 milhões de pessoas (MDS: www.mds.gov.br).

Page 192: retratos de assentamentos

192 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Essas pessoas que formam a maioria da população rural vêem-se dissociadas(ou participando de forma esporádico-segmentária) do regime capitalista, quenão lhe oferece condições econômicas, sociais e culturais, sendo privadas deuma "situação de direitos", portanto, são ignorados na partilha dos benefícios dacidadania e do progresso. Esta situação social não possui o mesmo significadoem todas as partes ou localidades, mas é suficientemente geral para cobrir todoterritório nacional, e para existir mesmo nas áreas rurais "mais prosperas".

Esta realidade dual (moderno e atraso), adversa e excludente de acumulaçãodo capital no meio rural, cujo denominador comum é o latifúndio, intensifica oêxodo e a migração, convertendo o excedente populacional rural em excedenteurbano.

Segundo Gomes (1996, p.184-185) o excedente populacional se expressada seguinte forma:

(...) a modernização da agricultura (...) prossegue no processo de expulsão,mediante a substituição do trabalho por maquinaria, herbicidas, implementose recursos de informática poupadores de mão de obra (...) A equação damigração é simples e óbvia: o rurícola é expulso do campo, na cidade nãotem emprego e a favela, onde costumava refugiar-se, está hoje ocupadapelo crime organizado. Daí só existe dois caminhos: ou ele se incorpora àmarginalidade - criminosa ou não - ou pressiona o recurso disponível, a terraociosa que não cumpre sua função social (....).

Na verdade, a mão de obra rural se urbanizou não porque a cidade precisavadela, mas simplesmente porque a economia rural em que esta população estavainserida se desagregou.

Em outros termos, Rangel (2000, p.144-145) aponta o seguinte sobre aquestão do êxodo: "Um descompasso entre os dois processos – de liberação demão de obra pelo complexo rural ou autarcia familiar e de integração dessa mãode obra no quadro da economia social (de mercado ou socialista) – éprecisamente o traço dominante do fenômeno estudado como crise agrária".

Como sugeria Florestan Fernandes (1972), o dilema rural brasileiro não sereduz apenas de ordem econômica e técnica, ele implica e impõe um desafiosocial em termos especificamente político.

Contudo, há uma pressão social que desemboca através dos conflitosfundiários, desde mobilizações de massa dos "com pouca terra" e dos "semterra" as lutas sindicais dos trabalhadores rurais estão a todo o momento (re)

Page 193: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 193

colocando o acesso à terra, a reforma agrária e a função social da propriedadeno cenário agrário nacional.

Portanto, conflito agrário decorrente desse quadro fundiário excludente edesigual não está somente marcado por êxodo, por violência e mortes de homens,mulheres, jovens e crianças, mas também, por conquistas expressas sob diferentescontextos: assentamentos rurais de reforma agrária dos trabalhadores sem-terra;na permanência dos posseiros em suas ocupações (regularização fundiária); nademarcação das terras indígenas; na titulação coletiva das áreas quilombolas;demarcação das reservas extrativistas dos seringueiros.

Estes territórios de conquistas vão se conformando no cenário nacional comouma localidade de inclusão social e têm estimulado de forma solidária alternativasem contraponto ao desemprego e a exclusão social e econômica.

Vale dizer que estes que se mantiveram e/ou que tiveram acesso à terra seapresentam como uma espécie de segmentos de produtores que os singularizamdiante do Estado, instaurando processos reivindicatórios: seja para o apoio e ofomento à produção (crédito, cooperação, agregação de valor e comercialização);seja para atender as suas demandas sociais, de infraestrutura, entre outras.

De acordo com Martins (1996) os assentamentos rurais têm demonstradoque a reforma agrária pode ser a solução para diversos problemas nacionais aoatenuar os efeitos negativos e dramáticos da exclusão social que o desenvolvimentoeconômico e tecnológico do país gera.

Outro enfoque importante a destacar, é que essa forma acumulação no meiorural, cujo eixo nuclear está circunscrito à agricultura latifundiária, também convive,por diversas razões, com passivos ambientais: desde problemas de erosão, perdade fertilidade de solos, degradação dos recursos ambientais (ar, solo, água,vegetação) à perda da biodiversidade; do recorrente tema do desmatamento àsrelações entre o desenvolvimento das áreas destinadas à agropecuária e seusimpactos nas mudanças climáticas; mais recentemente a produção de agroenergiaversus a de alimentos.

A agricultura de commodities, segundo a CNBB (2010) exacerba a tensãoda "terra de negócio" sobre a "terra de trabalho" e tem graves conseqüênciassobre a estrutura agrária, que se concentra; sobre o manejo ambiental que sedanifica sob o peso das monoculturas; e principalmente, sobre o trabalho humano,que fica ora super-explorado, ora prescindível.

Acumulação e concentração do capital acentuam-se a ociosidade da mão deobra e coloca em risco a nossa soberania alimentar, fundiária e ambiental.

Diante desse quadro agrário excludente e depredador ambiental o ceticismo

Page 194: retratos de assentamentos

194 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

à mudança sob auspícios do desenvolvimento econômico, parece um bom refugiopara as forças democráticas e progressistas que chegam ao poder nas instituiçõespúblicas.

É cômodo para os diversos governos passados, inclusive o atual, permanecercom a tríade do pacto agrário, mantendo a diretriz estratégica da política agrícola:aprofundar acumulação de capital no setor primário da economia, com vistas àdemanda externa de commodities. Converte a agropecuária em espaçoscontrolados pela propriedade latifundiária mercantil e pela agroindústria, comcrescente participação do capital externo.

Apesar dos ditames da agricultura patronal latifundiária e seus aliados, ficouestabelecido à propriedade pela Constituição Federal (1988) o instituto múltiploda função social, instituído pelo Estatuto da Terra, Lei 4504 em 1964: níveissatisfatórios de produtividade, conservação dos recursos ambientais, observânciadas disposições que regulam a relação de trabalho, favorecer o bem-estar dosproprietários e trabalhadores.

Diante tudo isso, a questão agrária nacional vem instigando a reflexão e aodebate sobre o universo rural, principalmente, porque a terra é patrimônio danação, portanto está permeada pelo interesse público e a sustentabilidadeambiental, como pelo cumprimento da função social.

Inverter este curso agrário nacional é difícil, mas é possível? O que há a fazer?Há tempos que a reflexão empírica, acadêmica e dos movimentos sociais e

sindicais (através de suas lutas e conquistas) vem apontando algumas alternativase políticas públicas, tais como:

a. democratizar o acesso à terra;b. regular as várias formas de propriedade (privada, estatal, pública) no

contexto do cumprimento da função social;c. subordinar a produção agrícola à soberania alimentar, territorial e

ambiental;d. assegurar os bens comuns da humanidade (ar, água, solo, vegetação e

outras formas de vida);e. redefinir os enclaves da soja, da carne, da madeira celulose, açúcar e

álcool em valores crescentes de tecnologia, inclusão social e sustentabilidadeambiental;

f. regular (ou suprimir quando necessário) o oligopólio e a"multinacionalização" de empresas do setor.

É possível impor outro paradigma para o agrário nacional, como vislumbraesperanças tanto Emir Sader (2011) em seu blog: "... a história humana é um

Page 195: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 195

processo aberto de alternativas pela ação consciente, organizada, solidária doshomens e mulheres...".

E por fim, como prega a CNBB (2010, p.54):

Uma nova economia, movida pelas demandas de necessidades humanas eforjada por regras de cooperação, solidariedade e partilha, vem se inserindonas margens da economia capitalista. Falta-lhe ainda o eixo da política públicae do direito social (....). No século XXI precisamos conviver e experimentarum projeto de desenvolvimento rural que respeite a natureza, produza bemsaudáveis, ocupe produtivamente a população rural, gere segurança alimentare promova sustentabilidade ambiental para toda a população.

São preposições coletivas, expressas pelas lutas sociais e sindicais ao mitodo desenvolvimento, transferindo o foco para além do crescimento econômico,para o bem estar do ser humano e o meio ambiente. E também ao Estado, quepode ser mobilizado para um desenvolvimento com justiça social, equidade esustentabilidade ambiental.

Estas perspectivas coletivas de futuro para agrário nacional estão calcadasaxiologicamente: nos direitos social e agrário; no complemento da técnica com aética; na solidariedade e na democracia, a fim de redimir e resgatar a terra paranação, descosturando o pacto, construindo um projeto agrário nacional, inter-social e inter-setorial.

Tanto que diversos intelectuais com diferentes matizes epistemológicasalçaram vôos de analise sobre o rural brasileiro, Raimundo Faoro, CelsoFurtado, Alberto Passos Guimarães, Caio Prado, Sergio Buarque de Holanda,Florestan Fernandes, Plínio de Arruda Sampaio, Inácio Rangel, MariaConceição Tavares, Tamás Szmrecsányi, José de Souza Martins entre tantosoutros. Essa conjunção do pensamento crítico nacional apontou para a naçãorumos e alternativas de desenvolvimento com orientações e formulações depolíticas públicas, onde com certeza o maior legado está na herança de JoséGomes da Silva: Estatuto da Terra, Lei 4504/64.

Referências

BELIK,W. Muito além da porteira – Mudanças nas formas decoordenação da cadeia agroalimentar no Brasil. Campinas, SP: UNICAMP/IE, 2001 (Coleção Teses).

Page 196: retratos de assentamentos

196 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

BOLETIM REFORMA AGRÁRIA/ABRA. A Reforma Agrária noEstatuto da Terra. São Paulo, ano VI – mai/jun - nº 5/6, 1976.

CANO, W. Para uma política de resgate do atraso do Brasil na décadade 90. UNICAMP/IE: Revista Economia e Sociedade, nº 2, ago, 1993.

CNBB. Igreja e questão agrária no início do século XXI. 2010 (mimeo).

DELGADO, G. Articulações em torno ao Código Florestal abramfratura no pacto do agronegócio. Disponível em:www.correiocidadania.com.br, 2011-a.

DELGADO, G. Questão Agrária e Saúde. Material didático para mini-curso, 2011-b (mimeo).

FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato políticobrasileiro. São Paulo: Globo; Publifolha, vol.1, 2000 (Grandes nomes dopensamento brasileiro).

FERNANDES, F. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio deJaneiro: Zahar Editores, 1972-a.

FERNANDES, F. Anotações sobre um capitalismo agrário e a mudançasocial no Brasil. In: SZMRECSÁNYI, T.; QUEDA, O. (Orgs.) Vida Rural eMudança Social. São Paulo: Editora Nacional, 1972-b.

FURTADO, C. Análise do modelo brasileiro. São Paulo: EditoraCivilização Brasileira, 1986.

FURTADO, C. Formação econômica do Brasil. São Paulo: EditoraNacional, 1987.

GOMES DA SILVA, J. Caindo por terra, crises da reforma agrária naNova República. São Paulo: Editora Busca Vida, 1987.

GOMES DA SILVA, J. A reforma agrária na virada do milênio. ReformaAgrária/ABRA. Campinas, 1996.

Page 197: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 197

GRAZIANO, J. A nova dinâmica da agricultura brasileira. Campinas:UNICAMP/IE, 1996.

SILVA, J.F.G. (Org.) A Questão Agrária, Industrialização e Crise Urbanano Brasil - IGNÁCIO RANGEL. Porto Alegre/RS: Editora da UFRGS,2000.

GUIMARÃES, AP. A crise agrária. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra,1979.

HOLANDA, S.B. Raízes do Brasil. São Paulo: Editora Companhia dasLetras, 1995.

IANNI, O. Relações de produção e proletariado rural. In: SZMRECSÁNYI,T.; QUEDA, O. (Orgs.) Vida Rural e Mudança Social. São Paulo: EditoraNacional, 1972.

MARTINS, J.S. O sentido do associativismo empresarial no Brasil agrário. In:SZMRECSÁNYI, T.; QUEDA, O. (Orgs.) Vida Rural e Mudança Social.São Paulo: Editora Nacional, 1972.

MARTINS, J.S. Exclusão Social e a Nova Desigualdade. São Paulo: Ed.:Paulus, 1996.

MARX, K. O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Tradução LeandroKonder e Renato Guimarães. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

MEDINA, C.A. Estrutura de poder e resistência à mudança: reforma agráriae os obstáculos à sua implantação. In: SZMRECSÁNYI, T.; QUEDA, O.(Orgs.) Vida Rural e Mudança Social. São Paulo: Editora Nacional, 1972.

MORAES, S.H.N.G. O Estado e a propriedade agrária no Brasil:fórmulas jurídicas e vigência política. Dissertação (Mestrado em Direito).Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1987.

PRADO, C.J. História Econômica do Brasil. São Paulo: EditoraBrasiliense, 1976.

Page 198: retratos de assentamentos

198 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

RANGEL, I.M. A Questão Agrária Brasileira. Recife: Editora Condepe,1961.

RIBEIRO, D. As Américas e a Civilização: processo de formação e causasdo desenvolvimento desigual dos povos americanos. São Paulo: EditoraCompanhia da Letras, 2007.

SADER, E. De céticos a cínicos. Blog do Emir/Carta Maior. Disponível em:www.cartamaior.com.br, 2011.

SAMPAIO, P.A. Reforma agrária e projeto de construção nacional.Disponível em: www.dataterra.org.br/documentos/plínio.htm, 1998.

SANTOS, B.S. Carta às esquerdas. Disponível em:www.cartamaior.com.br, 2011.

SILVA, L.O. Terras devolutas e latifúndio: efeitos da lei de 1850.Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2008.

SINGER, P. Agricultura e desenvolvimento econômico. In:SZMRECSÁNYI, T.; QUEDA, O. (Orgs.) Vida Rural e Mudança Social.São Paulo: Editora Nacional, 1972.

SZMRECSÁNYI, T; QUEDA, O. Vida Rural e Mudança Social. SãoPaulo: Editora Nacional, 1972.

TAVARES, M.C. Destruição não criadora: memórias de um mandatopopular contra a recessão, o desemprego e a globalização subordinada. Riode Janeiro/São Paulo: Editora Record, 1999.

UMBELINO, A.O. A longa marcha do campesinato brasileiro: movimentossociais, conflitos e reforma agrária. Estudos Avançados, São Paulo,Universidade de São Paulo, v.5, n.43, set/dez, 2001.

Page 199: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 199

POLÍTICAS AGRÁRIAS PARA OCOMBATE DA POBREZA E EXTREMAPOBREZA NO MEIO RURAL DOBRASIL: UM PROBLEMA DEINVISIBILIDADE

Roberto Kiel1

1Eng. Agrônimo, Perito Federal Agrário do Incra do Rio Grande do Sul, M.Sc. emSensoriamento Remoto pela UFRGS. [email protected].

Resumo: Este artigo foi desenvolvido para discutir o potencial das políticasagrárias, especialmente da reforma agrária, na diminuição da pobreza e extremapobreza rural no Brasil. Nele são comparadas as diversas linhas da pobreza,discutidas as estatísticas mais recentes da população rural e da estrutura agráriabrasileiras, e apontados alguns caminhos para políticas públicas voltadas à misériano meio rural.

Palavras-chave: Linha da Pobreza; Extrema Pobreza; Reforma Agrária;Regularização Fundiária e Minifúndio.

Abstract: The purpose of this paper is to evaluate the effectiveness ofagrarian policies, in particular those policies towards land reform aimed atreducing poverty and extreme rural poverty in Brazil; in this study, thelatest census data was used to examine the characteristics of the ruralpopulation and the agrarian structure in Brazil, which allowed an assessmentof different poverty lines; moreover, new paths to improve public policiesaimed at reducing human misery in rural areas are recommended.

Keywords: Poverty line; Extreme Poverty; Land Reform; Land TenureRegularization; Small land.

Page 200: retratos de assentamentos

200 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

IntroduçãoNo início do seu mandado, o Presidente Lula definiu o combate à fome como

o diapasão para todas as políticas sociais e o amadurecimento dessa diretriz foipotente para organizar a institucionalidade de seu governo na forma, por exemplo,do Ministério do Desenvolvimento Social e das várias iniciativas dedesenvolvimento social e econômico que floresceram em quase todas as áreas.

O conjunto dos esforços traduziu-se em políticas importantes como o FomeZero, o Bolsa Família e os programas voltados para a agricultura familiar, alémda melhoria e ampliação da cobertura da Previdência e a sistemática elevaçãodo salário mínimo. O resultado concreto foi uma significativa redução do númerode brasileiros miseráveis, que ao longo de seu mandato caiu de 28% para 15%da população brasileira quando pelo menos 20 milhões de pessoas superaram alinha da miséria.

No início governo da Presidenta Dilma, desta vez, o diapasão escolhido foi aprópria pobreza, para a qual não é possível aceitar outra meta que não a sua daerradicação, haja vista seu lema " Brasil – País Rico é País sem Pobreza". Porémse sabe que este desafio é tão necessário, quanto complexo e os tempos políticos,medidos em mandatos, não são convenientes para sua solução derradeira.

Independente do tempo até a meta, o certo é que se inicia um grande projetoestratégico de desenvolvimento social e econômico para o País em basesdemocráticas, distributivas e sustentáveis.

Carece, porém, ao conjunto do governo, uma definição clara do conceito depobreza (extrema) e de como medi-la, pois é dramática a situação do formuladorde políticas públicas que precisa fixar o alcance de suas propostas e localizar ospúblicos alvo, uma vez que está diante muitas e diferentes linhas de pobreza,propostas pelo próprio governo, academia e até organismos internacionais.

Diagnóstico e Público AlvoO Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), por exemplo, propõe

R$ 112,06/mês-pessoa como a linha da pobreza, a Fundação Getúlio Vargas(FGV) R$ 144,00/mês-pessoa e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE) um quarto de salário mínimo (R$ 135/mês-pessoa), já o Banco Mundialcom U$ 1,25/dia-pessoa, cerca de R$ 68/mês-pessoa (atualizandomonetariamente: U$ 2,00).

Patamares tão discrepantes implicam em grandes diferenças entre as tentativasde estimar os públicos potenciais para programas de combate à pobreza e àpobreza extrema. Em números aproximados, o Ipea aponta para 13,5 milhões

Page 201: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 201

de brasileiros pobres, a FGV para 28 milhões e o IBGE para 20 milhões, já oBanco Mundial (BIRD, 2003), conforme seu estudo de 2003, utilizando a linhade pobreza mais baixa, estima em 22 milhões o contingente de brasileiros pobresapenas no sudeste e nordeste, dos quais, mais ou menos, 10 milhões estão nomeio rural destas regiões; daí que a definição de uma Linha da Pobreza oficialdeve fazer parte do conjunto das primeiras medidas do que se pretende que sejao plano de governo.

Por outro lado, todas estas estimativas estão baseadas em linhas de pobrezamedidas por certa quantidade de renda monetária, calculadas a partir demetodologias consolidadas, porém economicamente unidimensionais. Noentanto, se sabe que a pobreza e a pobreza extrema são fenômenos de naturezamultidimensional, tanto que é crescente o número de pesquisas sobre fome emiséria no mundo, que partem deste pressuposto e, assim, na medida em quebuscam o entendimento mais amplo das causas destes fenômenos, tambémapontam caminhos mais sólidos para vencê-los com medidas estruturantes.

Neste prumo está o recente Relatório de Desenvolvimento Humano doPrograma das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2010) e intituladosugestivamente "A Verdadeira Riqueza das Nações: Vias para o DesenvolvimentoHumano".

Ele revitalizou de forma importante o Índice de Desenvolvimento Humano(IDH) ao propor seu ajuste pela desigualdade, de forma a ressaltar a tendência,nos países estudados, daqueles com menor desenvolvimento humano, depossuírem perdas maiores no desenvolvimento humano, relacionadas a umadesigualdade maior.

As diferenças computadas entre o IDH e o IDH Ajustado à Desigualdadeserviram para computar o novo Índice de Gênero (IDG), o qual por valorizarindicadores como a taxa de mortalidade maternal e a representação femininanos parlamentos, é capaz de captar diferenças na distribuição das realizaçõesentre mulheres e homens.

É, no entanto, ao propor o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), que orelatório do PNUD avança, de fato, na contribuição do estudo da pobreza e dapobreza extrema, as causas e os meios para vencê-las. O IPM identifica privaçõesnas mesmas dimensões do IDH, a saber: a saúde, a educação e os padrões devida, porém permite ressaltar o conjunto das pessoas multidimensionalmentepobres e relacionar em quais dimensões enfrentam privações no nível familiar,complementando eficazmente as abordagens baseadas apenas na renda.

O IPM é abrangente, pois usa 10 indicadores para determinar a pobreza e

Page 202: retratos de assentamentos

202 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

três privações para considerar uma família como pobre, além disso, é flexível,pois pode ser decomposto por região, etnia e outros grupos, bem como pordimensão, e pode ser adaptado para estudos de âmbito nacional.

Este novo índice revisa para cima o número de pessoas em estado de pobrezano conjunto dos 104 países avaliados que representam 78% da populaçãomundial. Segundo o IPM há 1,75 bilhões de indivíduos que vivem na pobreza ecom multiprivações, ou seja, quase um terço das populações totais. A estimativaanterior mais utilizada era de 1,44 bilhões de pessoas calculada pela linha fixa derenda diária de US$ 1,25 proposta pelo Banco Mundial, utilizando o dólarcorrigido pela paridade do poder de compra, que considera a variação do custode vida entre os países.

No Brasil o IPM revela que 9,6 milhões de brasileiros (5,2% da população)estão na pobreza extrema, outros 16 milhões (8,5%) vivem em pobrezamultidimensional e, mais 24 milhões (13,1%) estão ameaçados de entrar nessacondição. Há, também, 20,2% de habitantes com ao menos uma grave privaçãoem educação, 5,2% em saúde e 2,8% em padrão de vida.

Estes resultados podem ser comparados com os dados disponíveis daPesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), realizada em 2009 peloIBGE, por meio dos estudos da pesquisadora Sônia Rocha (ROCHA, 2006;2011). Neles ela estabelece linhas de pobreza e de indigência2 para diferentesregiões e conforme áreas urbana, metropolitana e rural. A metodologia éconsistente e está baseada nas cestas alimentares da Pesquisa Sobre OrçamentosFamiliares (POF), também do IBGE.

Em termos nacionais a pesquisadora aponta para uma estimativa de 9,6 milhõesde indigentes, exatamente o resultado do IPM. Ambos são resultados consistentescom o público potencial estimado para o programa Bolsa Família, que é 10milhões, encontrado através de uma linha de pobreza extrema da renda familiarper capta mensal fixada em R$ 70,00.

Os resultados, ao corroborarem, sugerem uma alta correlação, de forma quese pode recomendar a adoção dos estudos, haja vista a vantagem deles delimitaremo conjunto dos pobres e dos indigentes residentes no meio rural do País.

2Pobres: indivíduos cuja renda familiar per capita é inferior ao valor que corresponderia aonecessário para atender a todas as necessidades básicas (alimentação, habitação, transporte,saúde, lazer, educação, etc.). Indigentes: aqueles cuja renda familiar per capita é inferior aovalor necessário para atender às necessidades básicas de alimentação.

Page 203: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 203

Assim, a população brasileira de 185 milhões em 2009 tem o percentual de15,2% no meio rural, ou seja, 28 milhões de indivíduos, dos quais se podeesperar que 6,2 milhões (22%) estejam na pobreza e outros 2,7 milhões (9,6%)na pobreza extrema (i.e. indigentes).

Olhar a evolução da pobreza e da indigência, considerando o subgrupo dosdados nacionais pesquisados desde 20043, permite ver que a pobreza rural estácaindo perto de 6% ao ano e a da indigência rural a 4%, reforçando duasexpectativas: primeiro, que as medidas sócio-econômicas do governo Lula deramresultados significativos, segundo, que a indigência possui uma resilência maior.

Já ao examinar a distribuição da pobreza e da indigência rurais no país em2009, se torna flagrante a concentração delas no nordeste. Nesta região estão4,6 milhões de pobres (74%) e 2 milhões de indigentes (75%). As regiõesrurais do norte e sudeste possuem pesos parecidos: no norte estão outros 8%dos pobres e quase 9% dos indigentes, no sudeste estão mais 9% dos pobrese 7% dos indigentes. Os pesos do centro-oeste e do sul são próximos: emcada uma destas regiões estão aproximadamente mais 5% dos pobres e 4%dos indigentes rurais.

Políticas Agrárias de Combate à Pobreza e à Pobreza Extrema No MeioRural Brasileiro

Sob a luz dos resultados do PNUD e da pesquisadora Sônia Rocha, é possívelpropor ações de combate à pobreza e à pobreza extrema rurais considerando:A concentração delas no nordeste brasileiro.O público potencial de 3 a 6,6 milhões de pessoas, dependendo do corte na

linha da pobreza ou pobreza extrema. As regiões norte e sudeste do País, compúblicos estimados da mesma forma acrescentam 0,2 e 0,7 milhão cada uma.A maior resilência da pobreza extrema. Fundamental para respeitar, na

fase de formulação das políticas, as especificidades de cada público, osdeterminantes locais e territoriais e as dimensões de gênero, raça e idade.A condição de inclusão injusta na agricultura familiar dos agricultores e

agricultoras familiares pobres e extremamente pobres, que não conseguem transporas barreiras de acesso às políticas públicas de desenvolvimento rural disponíveis,tão pouco às políticas sociais de direitos universais, donde são invisíveis.

3Ano a partir do qual o norte rural começou a ser coletado gerando séries completas paratodo o território nacional.

Page 204: retratos de assentamentos

204 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

A questão da invisibilidade da pobreza e da pobreza extrema rurais aos olhosdo Estado pode ter várias causas, mas em maior ou menor grau, todas serelacionam com o fator de produção terra e com o acesso aos recursos naturaisinerentes a ele.

Sob esta ótica, é possível propor uma divisão dentro do público potencialque se assenta sobre a presença de terra suficiente ou não para estas famílias –neste caso a ausência de terra é a condição mais grave de acesso insuficiente.Há, portanto, agricultores e agricultoras familiares pobres e extremamente pobrescom terra suficiente, com terra insuficiente e sem terra.

Para Agricultores e Agricultoras Familiares com Terra SuficienteNas famílias com terra suficiente, a condição de inclusão injusta deve emanar,

principalmente, da ausência da cobertura de políticas sociais e de desenvolvimentorural. Fato superável pela expansão e qualificação das políticas públicas detransferência de renda, financiamento produtivo, financiamento habitacional,assistência técnica, educação e saúde.

É claro que a inclusão justa destas famílias não ocorrerá mecanicamente, tãopouco será fácil, porém, o esforço necessário contempla mais ajustes e qualificaçõesnas políticas públicas disponíveis, do que o desenho de novas formas de ação.

Nesta categoria também estão diversas famílias beneficiárias da reforma agráriaque ainda não atingiram um nível de desenvolvimento sócio-econômico suficiente,seja porque a implantação do projeto de assentamento ainda não foi finalizada,seja porque as condições locais são muito adversas e, por isso, exigemcomplementos na infraestrutura, saneamento e serviços, e determinam um prazomaior para o desenvolvimento sócio-econômico destas comunidades atingir níveissustentáveis.

Em que pese estas famílias assentadas não sofrerem da invisibilidade aludidae já terem iniciado o caminho para fora da pobreza (extrema)4, devem sercontempladas no conjunto das ações, com a aceleração das ações previstas deimplantação e priorização dentro da programação operacional da autarquia.

4O Incra assentou perto de 380 mil famílias no nordeste desde 1995, cifra perto de um milhãoe meio de indivíduos. A pesquisa da Avaliação da Qualidade dos Assentamentos (http://pqra.incra.gov.br/ ) em seus dados preliminares, captou em 2010 problemas de renda emmenos de 20% delas, um percentual admissível porque 14% (50 mil) foram assentadas nostrês últimos anos, tempo insuficiente para estabelecer sistemas produtivos sustentáveis.

Page 205: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 205

Para Agricultores e Agricultoras Familiares Sem TerraSimilar ao subconjunto dos agricultores e agricultoras familiares com terra

suficiente, a Reforma Agrária implementada pelo Instituto Nacional deColonização e Reforma Agrária (INCRA) também assegura alguma visibilidadepara estas famílias, porém o viés no atendimento do público mobilizado socialmenteexige aperfeiçoamentos nas ações de identificação e cadastro do público alvo;estimado em torno de 80 mil famílias no nordeste, segundo os dados do INCRAe da Ouvidoria Nacional Agrária.

Neste caso, o primeiro esforço deve ser na democratização do cadastro eidentificação de candidatos, para se tornar mais ativa, voltada também para osdemandantes passivos, que não pertencem aos movimentos sociais e não estãonos acampamentos. A priorização da seleção ativa dos beneficiários deve serorientada para o atendimento das famílias mais expostas à miséria, diferenciandofavoravelmente as mulheres – inclusive solteiras – e os jovens.

Definição de metas para a captação de políticas de segurança social destinadasàs famílias cadastradas durante o período de espera até o acesso à terra - o quepode durar de meses a vários anos. Neste caso se trata de assegurar, durante otempo de espera, pelo menos, condições mínimas de moradia, saneamento,serviços sociais, educação, saúde e alimentação, diretamente ou por transferênciade renda.

A viabilidade desta medida, em grade parte, depende de alteração na legislaçãoatual, de forma que seja permitido o acampamento provisório das famílias semterra dentro dos assentamentos já existentes. Há vários acampamentos quepoderiam ser deslocados para os assentamentos já consolidados nasproximidades, onde as famílias poderiam acessar as políticas públicas disponíveiscom mais racionalidade, mesmo que transitoriamente, além de disporem dainfraestrutura coletiva e justificarem, inclusive, investimentos em habitações ecozinhas coletivas, espaços educativos e transporte escolar.

Por fim, é possível criar, como medida emergencial para os casos de extremapobreza e difícil obtenção de terras, incentivos para que as famílias já assentadase consolidadas aceitem, temporariamente, para coabitar em seus lotes com asfamílias cadastradas, de forma que estas possam participar da vida produtiva esocial dos assentamentos.

Para Agricultores e Agricultoras Familiares Com Terra InsuficienteTrata-se aqui de um contingente extremamente grande de agricultores e

agricultoras extremamente pobres que habitam minifúndios no nordeste.

Page 206: retratos de assentamentos

206 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Esta condição injusta e desigual dos minifundiários é a principal causa da suainvisibilidade diante das políticas públicas vigentes, porque não conseguem superaras barreiras de acesso. Estão impedidos para o desenvolvimento sócio-econômico, sem educação nem saúde e, por outro lado, precisam dedicar tantotempo à sobrevivência, que não conseguem se organizar para participar da vidapolítica de suas localidades e reivindicar melhorias.

Estes agricultores e agricultoras familiares em condição de inclusão injustadificilmente são captados pelas políticas de reforma agrária, haja vista o focoexcessivo no atendimento dos trabalhadores rurais sem terra e socialmentemobilizados. Este fato deixa as oportunidades opacas, em que pesem osatendimentos indiretos, quando os filhos assentados levam os pais para morarem seus lotes.

De outro lado, a insuficiência de terra, na maioria das vezes, está acompanhadade outras dificuldades que se acoplam, reforçando a armadilha da miséria emque estas famílias estão presas. O solo infértil, a água insuficiente e sistemasprodutivos com baixíssima produtividade do trabalho e sem responsividade aofinanciamento produtivo estão presentes em quase todos os minifúndios donordeste. Sem dúvida um circulo vicioso difícil de ser quebrado, se não foremformuladas políticas específicas para este público.

Tanto é assim, que a mais rasa investigação da condição destes minifúndiosidentificará que é impossível eles acessarem, por exemplo, o Pronaf, porque nãopossuem produção suficiente para garantir a operação de crédito e não há o quese falar de garantias reais, pois nem a terra está regularizada na grande maioriados casos.

Esta parcela de minifundiários extremamente empobrecidos da agriculturafamiliar brasileira pode ser captada no Censo da Agricultura Familiar do IBGE(IBGE, 2006) que revelou haver 4,3 milhões de estabelecimentos familiares noBrasil e que a metade deles está no nordeste (2,2 milhões), ocupando apenas35% da área total da agricultura familiar, com a menor média do Brasil: 13hectares por estabelecimento.

Os dados acima podem ser complementados quanto à renda pelo estudo doBanco Mundial sobre a pobreza rural no norte e nordeste do Brasil. Este estudorevelou que, além de 15% das propriedades familiares destas regiões seremchefiadas por mulheres, no nordeste perto de 50% delas são menores que 10hectares e a propriedade média tem 5,1 hectares.

Neste conjunto estão famílias minifundiárias de 4,7 pessoas que dispõem deaté 2 hectares e auferem, na média, uma renda mensal de R$ 102,00, 58%

Page 207: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 207

advinda da produção agrícola, 15,7 de salários e 9,5% de rendas não agrícolas;daí que o terço mais pobre destes agricultores e agricultoras sobreviva na extremapobreza, com renda média mensal de R$ 61,00 per capita, sem nunca teracessado o crédito rural, pois não é mais que 2% a quantidade dos que receberamalgum tipo de assistência técnica.

Diante destes resultados fortes, pode-se estimar que há 1 milhão de famíliasminifundiárias só no nordeste sobrevivendo na extrema pobreza sobre possescom no máximo 5 hectares, possivelmente sem água suficiente, tão pouco acessoà saúde e à educação.

Desta forma não parece possível equacionar uma proposta de ação semlevar em consideração a necessidade básica de promover o reordenamentoagrário destas regiões pobres do nordeste, onde estão concentrados osminifúndios.

As ações de regularização fundiária desenvolvidas nos últimos anos peloIncra em parceria com órgãos de terras dos estados nordestinos,especialmente no Ceará e no Rio Grande do Norte, além de resultarem emmetas numerosas5, permitiram a construção compartilhada de um detalhadocadastro sobre a realidade sócio-econômica destas famílias e suasnecessidades urgentes.

Sob a luz destas informações, a proposta de reordenamento agrário paraesta região pode ser bem focada e bastante simples e deve iniciar por estudospreliminares a partir dos dados disponíveis, para encontrar os territórios ruraismais deprimidos, onde se espera a concentração maior dos minifúndios e daextrema pobreza. Atenção especial deve ser dedicada para a identificação decomunidades quilombolas.

Um segundo passo é o cadastramento destas famílias com dupla função, deum lado suprirá de dados o Sistema Nacional de Cadastro Rural para iniciar osprocessos de regularização fundiária dos posseiros (colateralmente identificarterras potencialmente devolutas e ou griladas), de outro permitir que as famíliasdevidamente identificadas possam acessar os serviços de proteção social e aspolíticas públicas de transferência de renda, por meio de seus municípios, desdeo início das ações.

O cadastramento dará as informações geográficas necessárias para garantir

5Em 2010, segundo o Balanço de Gestão 2010 do INCRA, foram tituladas mais de 100 milfamílias desde o início do programa de regularização fundiária no nordeste.

Page 208: retratos de assentamentos

208 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

que o Incra elabore, ou dê os meios para que sejam elaborados, Planos Locaisde Desenvolvimento Agrário (PLDA) para as comunidades identificadas,inclusive quilombolas, onde os níveis de pobreza recomendem açõesemergenciais.

Os PLDAs devem ser elaborados em parceria com os estados e municípiose visar, essencialmente, a captação dos recursos necessários (físicos e financeiros)para que cada comunidade alcance a segurança alimentar e um patamar mínimode qualidade de vida. Para tanto devem prever a infraestrutura necessária,moradias dignas, água suficiente, saneamento básico e estradas, além do acessoà saúde e educação. Recomenda-se que constem, também, ações dirigidas paramulheres e crianças, considerando estes públicos como os mais vulneráveis napobreza extrema.

Em todas as localidades onde houver viabilidade técnica e econômica, osPLDAs devem incorporar a previsão de toda a infraestrutura complementar(energia elétrica, sistemas mais complexos de tratamento de dejetos,equipamentos coletivos, etc.) e demais serviços (inclusão digital, capacitações,assistência técnica, etc.).

É necessário que os PLDAs sejam acompanhados de perto por todas asentidades e órgãos envolvidos, porém parece fundamental que a coordenaçãoocorra compartilhada entre o poder local, com representantes da sociedadecivil envolvida, na forma de conselhos de combate à pobreza.

Os conselhos, ou outras formas de governança, são importantes parapermitir que os diversos PLDAs possam ser articulados em um planejamentoregional para atrair novas oportunidades e racionalizar recursos. Esta medidase mostra importante ao se considerar que as ações de combate à pobrezase tornam mais eficazes quando são implementadas de baixo para cima, comforte participação e controle social, desta forma contribuem para aorganização social das comunidades, agregando valor substancial a este tipode política pública.

Concomitante à elaboração e implantação dos PLDAs, deve iniciar uma amplae massiva titulação das posses familiares, minifúndios ou não, para que se inicieo processo de inclusão produtiva destas famílias.

Esta medida tem dois objetivos: operar a reconstrução da cidadania destasfamílias, reconhecendo-as pelo Estado e libertando-as da situação de pequenosposseiros sem direito ao futuro; e a identificação colateral das grandespropriedades rurais nas proximidades das comunidades atendidas, que serãoalvo de retomada, se comprovada a posse ilegal das terras devolutas, ou então,

Page 209: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 209

para compra6 pelo INCRA, pelo Estado, ou por ambos.A finalidade de obter estes imóveis para o reordenamento agrário destas

comunidades é fundamental, porque com base na legislação da colonização, épossível implantar nestes imóveis Projetos Coletivos de Economia Solidária(PCES) voltados para a produção de alimentos e agregação de valor. Esta medidaé necessária porque, embora a incorporação de áreas diretamente nos minifúndiosnão deva ser descartada, esperam-se muitas dificuldades operacionais para suarealização.

Os PCES têm a potência necessária para destravar a baixa produtividade dotrabalho e elevar o valor da parcela do trabalho agrícola na renda das famíliaspobres. Isto será possível se estes projetos partirem de uma escala razoável,com financiamentos assegurados e adotarem tecnologias apropriadas, intensivasem capital e trabalho.

Nestas condições se espera o transbordamento dos efeitos da implantaçãodestes projetos para o conjunto das famílias, na medida em que os PCESpromovam a contratação da mão de obra das próprias famílias envolvidas, naforma de cooperativas de produção e trabalho solidárias e, assim, incrementemdiretamente a renda do seu trabalho agrícola.

Outro aspecto positivo da inserção das famílias diretamente no processoprodutivo é a capacitação em trabalho, assessorada pela assistência técnica,para que uma parcela desta renda extra e dos novos conhecimentos adquiridosfaça florescer processos produtivos mais eficientes nas propriedades familiares,impactando positivamente a produção de subsistência imediatamente, em seguidaà renda agrícola.

Resumo à guisa de conclusãoA presente proposta discute a pobreza e a extrema pobreza no Brasil rural,

seus determinantes, sua concentração no nordeste seguido pelo norte, e algunscaminhos para libertar delas agricultores e agricultoras que sobrevivem na miséria.

Um segundo esforço contemplado aqui foi a revisão do estado da arte sobrea quantificação e qualificação da pobreza rural no Brasil, de forma a delimitar opúblico potencial para estas ações de combate à miséria.

6Devem ser adquiridos, ou desapropriados pelo interesse social e não para fins de reformaagrária, pois assim a finalidade do imóvel não fica consignada à para projetos deassentamentos.

Page 210: retratos de assentamentos

210 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Adota-se aqui o percentual de 15,2% da população brasileira habitando nomeio rural; são 28 milhões de indivíduos dos quais 6,2 milhões (22%) vivem napobreza e outros 2,7 milhões (9,6%) na pobreza extrema.

O foco proposto para a superação desta condição está no nordeste rural doBrasil, onde estão 74% dos pobres e 75% dos extremamente pobres. O públicopotencial foi definido, então, em 4,6 milhões de pobres e 2 milhões deextremamente pobres, computando o total máximo de 6,6 milhões de indivíduosou 1,4 milhão de famílias com 4,7 membros em média.

A concepção multidimensional da pobreza foi debatida e assumida, firmandoa necessidade de contemplar, na formulação das políticas públicas de combate àpobreza e pobreza extrema, uma abordagem baseada não apenas na renda - umparâmetro importante.

Corroboram com esta decisão os resultados recentes da pesquisa dedesigualdade de rendimentos no meio rural. Ela revelou que o capital físico,mormente a terra, é o principal determinante da concentração da renda agrícola.

A par destas informações, se propõem possíveis Políticas Agrárias de Combateà Pobreza e à Pobreza Extrema no Meio Rural Brasileiro que considerem adistribuição da pobreza, o público potencial e sua natureza, obedecendo à seguintesubdivisão, conforme a presença do principal fator de produção.

Agricultores e Agricultoras com Terra SuficienteAmpliação qualificada das atuais políticas públicas de desenvolvimento

social e econômico, ressaltando-se a importância da adaptação das ações paraa realidade do meio rural e para as características intrínsecas das famílias deagricultores e agricultoras pobres e extremamente pobres, especialmente no quediga respeito às barreiras de acesso.No tocante ao subconjunto das famílias já assentadas na Reforma Agrária,

postula-se identificar aquelas que ainda se encontram em vulnerabilidade e dotá-las de prioridade nacional, com a finalidade de acelerar os processos deimplantação e desenvolvimento de seus projetos de assentamento.

Agricultores e Agricultoras Sem-TerraDeterminar ao INCRA que aprimore seus processos de cadastramento e

identificação de candidatos, diferenciando favoravelmente mulheres, inclusive asjovens e solteiras, foque nas famílias mais pobres e assuma uma postura ativa,capaz de alcançar o conjunto dos demandantes, estimado em 80 mil famílias nonordeste – especialmente aqueles que não estão integrados aos movimentos

Page 211: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 211

sociais e mobilizados nos acampamentos.Captar políticas sociais para o período de espera das famílias cadastradas

até o acesso à terra, buscando assegurar as condições mínimas de moradia,saneamento e serviços de proteção social.Fomentar o acampamento provisório das famílias sem terra cadastradas e

selecionadas, dentro dos assentamentos existentes.Criar emergencialmente incentivos para que as famílias já assentadas e

consolidadas aceitem, temporariamente, famílias cadastradas e selecionadasem situação de extrema pobreza, para coabitar em seus lotes, até que acessema terra.

Agricultores e Agricultoras com Terra InsuficientePúblico estimado em 1 milhão de indivíduos sobrevivendo em extrema pobreza

em minifúndios de até 2 hectares, configurando o maior desafio do combate àpobreza e à pobreza extrema no meio rural, pois são invisíveis para a maioriadas políticas de desenvolvimento sócio-econômico.

Estes indivíduos estão incluídos injustamente na agricultura familiar e, porisso, não conseguem superar as barreiras de acesso às políticas de crédito(inclusive fundiário) e assistência técnica e sua pulverização localizada nas áreasmais remotas contribui para restringir a presença da rede de proteção social,donde a dificuldade de lhes transferir renda e assegurar educação e saúde. Poroutro lado, como são possuidores de terra, mesmo que insuficiente, não sãofacilmente captados pela política de reforma agrária.

Para este público propõe-se um amplo Reordenamento Agrário nas seguintesbases:Estudos preliminares, para encontrar os territórios rurais mais deprimidos

e dar-lhes prioridade para o investimento público.Cadastramento massivo das famílias minifundiárias para iniciar a

regularização fundiária dos posseiros e canalizar as ações da rede de proteçãosocial.Elaborar Planos Locais de Desenvolvimento Agrário (PLDA) para as

comunidades identificadas, onde os níveis de pobreza recomendem açõesemergenciais. Os PLDAs devem visar à captação dos recursos necessários paraque cada comunidade alcance a segurança alimentar e um patamar mínimo dequalidade de vida.Concomitante à elaboração e implantação dos PLDAs, promover a massiva

titulação das propriedades familiares, para viabilizar o início do processo de

Page 212: retratos de assentamentos

212 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

inclusão produtiva.Operar o reordenamento agrário nestas comunidades, com base na

legislação da colonização, complementando as ações de regularização fundiária,obtendo pela compra (ou retomada) grandes propriedades rurais, próximas àscomunidades, para implantar Projetos Coletivos de Economia Solidária (PCES),voltados para a produção de alimentos e agregação de valor que destravem abaixa produtividade do trabalho e elevem a renda das famílias pobres eextremamente pobres através do trabalho agrícola assalariado.Desenvolver os PCES a partir de uma escala razoável, com financiamentos

assegurados e adotar neles tecnologias apropriadas, intensivas em capital etrabalho para contratar neles a mão de obra das próprias famílias, por meio decooperativas de produção e trabalho solidárias e, incrementar a renda do trabalhoagrícola delas, inserindo-as diretamente no processo produtivo, sob um regimede capacitação em trabalho capaz de impactar positivamente a produção familiar.

Estas propostas articulam indissociavelmente terra, trabalho e capital e devemser tomadas apenas no conjunto, é por isso que são definidas como agrárias.

Elas partem do pressuposto que no meio rural o maior determinante da pobrezade agricultores e agricultoras familiares é a insuficiência (ou ausência) do principalfator produtivo, a terra.

Para desarmar esta armadilha que prende as famílias na miséria é necessáriopartir da realidade na qual elas estão inseridas, compreendendo-a para agir deforma eficaz sobre as forças presentes, especialmente aquelas que impedem aspessoas de viverem como valorizam e de se organizarem para prosperar.

Referências

BIRD. Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento. RuralPoverty Alleviation in Brazil, 2003.

PNUD. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. AVerdadeira Riqueza das Nações: Vias para o DesenvolvimentoHumano. 2010. Disponível em: <http://hdr.undp.org/en/media/HDR_2010_PT_Complete_reprint.pdf>. Acessado em: 15 de fevereiro de2011.

ROCHA, S. Pobreza no Brasil. Afinal, de que se trata? Editora FGV, Riode Janeiro, 2006.

Page 213: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 213

__________. Pobreza e indigência. In: Instituto de Estudos do Trabalho eSociedade (IETS), 2011. Disponível em: <http://www.iets.org.br/article.php3?id_article=915>.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário2006. Agricultura Familiar – Brasil, Grandes Regiões e Unidades daFederação – Primeiros Resultados, 2006.

NEY, M.G.; HOFFMANN, R. Educação, concentração fundiária edesigualdade de rendimentos no meio rural brasileiro. Revista de Economiae Sociologia Rural, Brasília, v.47, n.01, p.147-182, jan/mar 2009 –Impressa em abril, 2009.

Page 214: retratos de assentamentos

214 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Page 215: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 215

REGIÃO DE ARARAQUARA:ELEMENTOS PARA PENSAR UMINDICADOR SOBRE VOCAÇÃOPRODUTIVA AGRÍCOLA

Ricardo Luiz Sapia de Campos1

1Sociólogo e pesquisador, coordena projeto "jovem pesquisador em centros emergentes"da FAPESP junto ao Departamento de sociologia da UNESP/FCL/Ar. É professor do Programade Pós-graduação em Sociologia da UNESP/FCL/Ar. Email: [email protected].

Resumo: Busco apontar e discutir alguns elementos que considero centrais parapensar o desenvolvimento produtivo em geral, e o desenvolvimento de pequenosempreendimentos agrícolas da chamada "região de Araraquara" em particular.Considero e relevo fatores como localização, infra-estrutura, dentre outros maisobjetivos, todavia me atenho mais pontualmente aqueles de cunho imaterial ecognitivo, com destaque para o saber, conhecimento, interação, comunicação, eparticularmente a institucionalidade histórica de práticas cooperadas e deresistência produtiva.

Palavras-chave: Desenvolvimento Local; Saber e Conhecimento;Reciprocidade; Empreendedorismo Agrícola.

Abstract: This paper seeks to explore some key elements that are relevantto improve overall productivity including, particularly, the small agriculturalenterprises in the so-called "region of Araraquara". Location andinfrastructure, among other factors, are of paramount importance; howeverI endeavor to highlight those, which I consider are the most significant andrefer to aspects of cognitive and immaterial labor in the sense that its productsare intangible, such as knowledge, communication, interaction, focusingon institutional collaborative activities and productive resistance.

Keywords: Local Development; Knowledge and Understanding; Reciprocity;Agricultural Entrepreneurship.

Page 216: retratos de assentamentos

216 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

IntroduçãoO artigo é parte da pesquisa de pós-doutorado na qual buscava entender o

funcionamento do SAI – Sistema Agroindustrial Integrado do SEBRAE e suaaplicação na região de Araraquara quando este ainda se constituía em módulo("módulo Araraquara"). Portanto, a proposta de um programa como "módulo" esua aplicação nos dezenove municípios2 que compunham este quadrantecompõem o projeto de estudo elaborado entre os anos de 2006 e 2007, sendoque a pesquisa, e, portanto, todas as referências se reportam a 2008, quandorealizamos o trabalho de campo.

Aqui aponto fatores que considero importantes na definição e constituiçãode um "local da produção". Aponto indicador sobre vocação produtiva nestebuscando a partir de ai entender a ação do agente no contexto produtivo doterritório. A "troca de dias" aparece como fator em destaque que impulsionaatividades coletivas e de inter-relação entre as "células" de produção. Esta práticaé recuperada e apresentada com o uma "instituição antiga" e reformada nosmoldes do estudo. A chamada "cultura intercalada" prática antiga e sobre a qualjá se deu a devida ênfase em estudos que podem ser considerados clássicossobre a economia agrícola de formação do interior paulista, é relacionada comoutras práticas. A comunicação um destes fios condutor do savoir-faire é formadaa partir desta miríade de relações que transformam e fazem da relação entre osagentes produtivos pressuposto básico para composição ou produção social noâmbito do território

Indicador sobre vocação produtivaPor vocação produtiva entendo uma miríade ou relação complexa de fatores,

todos ou alguns identificáveis ou não que se cristalizam ou estão cristalizadosnum determinado local ou território constituído ou em vias de se constituir fazendodeste local um ambiente propício ou facilitador para determinado tipo de produtoou produção de maneira geral. São tanto materiais como a localização, qualidadedo solo, via de acesso etc., quanto imateriais á exemplo de fatores ligados atradição, conhecimento e saber que se cristalizam na especificidade de

2Os municípios que compunham o "módulo Araraquara": Américo Brasiliense, Araraquara,Boa Esperança do Sul, Borborema, Cândido Rodrigues, Dobrada, Fernando Prestes, GaviãoPeixoto, Ibitinga, Itápolis, Matão, Motuca, Nova Europa, Rincão, Santa Ernestina, SantaLúcia, Tabatinga, Taquaritinga, Trabiju.

Page 217: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 217

determinada produção, etc.Fatores determináveis podem ser identificados e recorrentemente se repetem

como "contaminação produtiva", facilitação e acesso a fatores tecnológicos ecomunicativos, informação, dentre outros (GURISATTI, 1999). Fatores nãodetermináveis ou complexos são uma série de relações normalmente subjetivasque dosadas ao acaso em determinado território fazem deste um ambientepropício e "singular".

Para estabelecer um indicador sobre vocação produtiva local defini algunsíndices e ocorrências estabelecidas a partir da análise do material produzido eda quantificação dos dados. São fatores que normalmente incidem numaterritorialidade aproximada, correspondendo, porém não se limitando adelimitação político-administrativa de municípios ou região.

Considerei aqui apenas as ocorrências que puderam ser verificadasapresentando índices de relevância. Também fator de ordem mais objetiva quesão considerados e citados como distancia da propriedade, escoamento daprodução. Também fatores sobre a composição das famílias ou negócios, comoo que a pesquisa aponta 41,67% serem compostas de dois membros, e, 31,25% de apenas um membro que trabalha e aufere renda do empreendimento, e osdemais entrevistados, em torno de 27% serem de mais de dois membros.Sugerindo que os negócios ou empreendimentos com maior número de pessoas(com poder de decisão) tendem a serem mais democráticos, ocasionandomelhores resultados efetivos de sucesso no mercado.

"Culturas intercaladas" e "troca de dias"Tomo institucionalidade como a maior ou menor recorrência de fatores que

interferem no recorte dum contexto de vocação produtiva. São praticas instituídase cristalizadas ao longo do tempo. Aponto aqui duas, que considero centrais naformação histórica do interior paulista. Tais institucionalidades e seusdesdobramentos são práticas e relações entre os agentes produtivos, e destesmudando constantemente as características do território que incide.

Portanto, instituição ou institucionalidade é definição abrangente, porémarticulada ao contexto cultural, político, e socioeconômico (SCOTT, 1995.).Ou numa perspectiva mais abrangente em que instituições são compreendidas,envolvendo regras formais e informais, bem como os códigos de comportamento,normas, conduta, que estruturam o comportamento dos indivíduos isolados ouem grupos (MARQUES, 1997). Considero como casos clássicos de ordeminstitucional as chamadas "culturas intercaladas" e da "troca de dias".

Page 218: retratos de assentamentos

218 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Como se sabe no início do século XX começa a surgir nesta região como emoutras consideradas dentro num arco mais amplo, pequenas propriedades rurais3

em mãos de famílias de pequenos e médios proprietários, muitos dos quaisimigrantes europeus e principalmente no caso desta região daqueles origináriosdo norte da Itália4. Terras que inicialmente foram adquiridas por compra graças,na maioria dos casos, as economias feitas a partir do trabalhando nas fazendasde café, e geralmente em sistema de colonato. A economia para compra deterras, principalmente pelo grupo de imigrantes, foi possível devido a uma praticaantiga chamada de "culturas intercaladas"5. Zuleika Alvim (1986) define aformação e prática desta atividade no interior paulista já no final do século XIXcom a "acomodação das primeiras famílias italianas nas fazendas paulistas:

Nesta etapa da formação, o trabalho consistia em fazer covas em pontospreviamente marcados, plantar o café e manter o terreno limpo durantequatro anos. Nesse período, podiam cultivar milho e feijão entre as fileirasdo cafezal. Enquanto a lavoura crescia, o empreiteiro era obrigado, segundoo contrato, a erguer uma cobertura de madeira ou de folhas de milhosecas (casinha), nos meses de abril e maio de cada ano, para proteger as

3No contexto daquele momento histórico é preciso considerar pequenas propriedadesrurais aquelas com até trinta ou quarenta alqueires ou em alguns casos um pouco mais. Ovalor da terra, as possibilidades de aquisição e acesso, o significado e impacto da produçãoque estas "pequenas propriedades" tinham diante das grandes fazendas da época erambastante distintos do momento atual.4A região em questão, e não só, estendendo de uma faixa de terra que dos arredores dacidade de São Carlos, segue pela antiga estrada de ferro Sorocabana até a cidade deCatanduva, foi marcada fortemente pela imigração predominantemente do norte da Itália.VerALVIM, Z. Brava Gente! Os italianos em São Paulo 1870 - 1920, São Paulo, Brasiliense: 1986.5Cultura intercalada foi uma prática sistematicamente desenvolvida pelos imigranteseuropeus nesta e noutras regiões do Estado. Como se sabe os imigrantes eram alocadospara o trato dos cafezais e eram mantidos a pagas de fome. Ocorre que perceberam queentre os pés, ruas de café, havia um espaço vago que deveriam manter limpo de mato eervas daninhas, mas que não "servia para nada" segundo o modelo agrícola e a organizaçãosócio-cultural. Começaram, sem resistência dos patrões, que não souberam prever osignificado daquela prática, a cultivar estas terras com culturas de subsistência. Destamaneira formaram um mercado paralelo de pequenos produtos como arroz, feijão, milho,abobora, batata, etc., melhoraram o consumo doméstico, e conseguiam "poupar",economizar dinheiro que mais tarde seria utilizado principalmente para a aquisição depequenas propriedades e fatias de terras.

Page 219: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 219

plantas mais frágeis, com menos de dois anos, desfazendo tais coberturasnos meses de setembro e outubro. Depois de dois anos, o milho e o feijãoplantado entre as fileiras do café ajudavam a protegê-lo, dispensando taltrabalho (p. 79).

Não existia mercado interno constituído para os produtos provenientes destaprática. Com a reiterada incidência do plantio e principalmente com a comunicaçãoentre os grupos é que este mercado se desenvolve. Com o desenvolvimentodeste mercado interno tais produtos passam a serem valorizados conforme apontaDurham (2004), possibilitando além de melhor alimentação, ganhos extras, eeconomias por parte dos grupos de imigrantes. Os fazendeiros que não tinhaminteresses comerciais nestes produtos viam com bons olhos seus "pés de café"serem melhor cuidados com a completa eliminação de pragas e ervas daninhasdada a valorização que passa a ter estes vãos livres para prática das culturasintercaladas.

Marx ao fazer a análise da "força de trabalho" como capital variável apontaum misto de independência relativa que se organiza fora do capital, ou seja, nãointegra o circuito de valorização do capital. Esta independência consisteexatamente em relações sociais, também em formas de trabalho que em princípionão integram o circuito de valorização do capital. O autor clássico cita comoexemplos há seu tempo e leitura, os valores da cooperação operária que não sereduz à valorização do capital, ou seja, sendo irredutível à organização capitalistado trabalho; bem como o conjunto de valores históricos e morais que sãorenovados pelo movimento das lutas dos trabalhadores. E ainda, como no casoem questão, a "relativa independência da pequena circulação, o vínculo com aterra, e a chamada economia familiar".

As praticas sistemáticas acabaram ao longo de anos por se constituírem comofoco de resistência para os grupos que a praticavam conforme aponta Alvim(1986). Comportam num mesmo ato a vertente da negação (da recusa), que nocaso era a negação da condição de miséria presente, e, a construção de alternativaa esta negação (MEZZADRA, 2006)

Dentre os entrevistados 88%, observando que a incidência ocorre mais entreos que residem na propriedade e que têm mais de 40 anos, apontaram umaprática antiga e que sempre foi bastante difundida entre pequenos proprietáriosrurais desta região. Trata-se do que eles próprios denominam de "troca de dias".Na troca de dias um produtor ou proprietário trabalha para outro normalmenteseu vizinho, ou mesmo não sendo vizinho, com quem mantêm constantes relações

Page 220: retratos de assentamentos

220 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

de reciprocidade (parentesco, compadrio, etc.) quando aquele precisa geralmentepor motivos urgentes. Normalmente quem recebe o trabalho é que tem anecessidade, e no mais das vezes urgência. Nem sempre quem lhe executapoderia fazê-lo, não fosse a necessidade do primeiro aliado a relação que antecedeesta necessidade e principalmente o sistema de troca que se estabelece. No fimsomam-se os dias trabalhados, sendo que aquele que recebeu pelo serviço ficadevendo "em dias" àquele que prestou os serviços. Uma prática cooperada entrepessoas ou proprietários estruturada em laços de reciprocidade e confiança, eque já estava presente na "bagagem" dos imigrantes italianos, mas que a seumodo acontecia no Brasil antes o fluxo imigratório conforme os "mutirões"descritos por Antonio Candido (2009) em seu clássico Parceiros do Rio Bonito.Putnan (2005) faz referência a esta prática identificada no norte da Itália e apontadacomo sendo um dos pontos fundamentais da formação das "comunidades cívicas",locais, e que recebe o nome de aiutarella. A aiutarella funciona ou funcionavade maneira muito parecida, quase idêntica a da troca de dias que apontamos. Adiferença fundamental é que na aiutarella troca-se mais a ajuda em si do que osdias ou horas trabalhadas. A aiutarella, ou a prática da ajuda mutua consiste notrabalho coletivo e organizado, geralmente em períodos de exceção ou "sufoco".Putnan (2005) cita o caso da confecção de tulhas para armazenamento de grãosnos EUA, ou numa clássica citação de David Hume, aponta á exceção dosperíodos de colheita.

Dos entrevistados com a pesquisa poucos apontam não trocar ou terem"trocado dias". A totalidade se pode dizer dos entrevistados afirmam utilizar ouentão ter utilizado até um passado baste recente deste tipo de prática. Outraincidência alta, de 48, 96%, afirmam utilizar o trabalho de "diarista", que emalguns casos, ainda tem a denominação antiga de "jornaleiros" (de jornada detrabalho). O trabalhador "diarista" é contratado no início da jornada (dia) detrabalho e dispensado no final do dia. Isso significa que há facilidade e mobilidadequanto a quantidade e a qualidade do trabalho. Precisando do trabalho faz-se aescolha diante a demanda de mão-de-obra disponível, ou, se a experiência dodia anterior me foi vantajosa, volto a contratá-lo no dia seguinte.

Uma prática comum, diria até que a mais comum entre pequenos proprietáriosde determinados bairros rurais e micro-regiões é o "empréstimo de implementosagrícolas". A totalidade dos entrevistados que possuem implementos, ou entãoos utiliza, afirmam fazer uso desta prática, que é bastante conhecida e difundidaem pequenos núcleos produtivos. Prevalecendo entre os que responderam aoquestionário, 20,83%, uma espécie de relação ética em "colaborar e receber

Page 221: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 221

colaboração" dependendo das relações estabelecidas; Esta relação é reforçadaquando outros 20,83% dos entrevistados sobre esta mesma questão apontamque existe ao mesmo tempo uma ampla concorrência e colaboração entre osprodutores de determinado bairro. De qualquer maneira, a "troca de implementos"é uma prática, uma "instituição" à qual ninguém se nega em participar. Inclusivepor isso é uma instituição. (MARQUES, 1997). De uma maneira ou de outra ébastante comum o fluxo de troca de implementos que para definição eentendimento é melhor chamam de "empréstimo". Diferente da troca de dias emque a retribuição ou restituição é dada na proporcionalidade de horas trabalhadasna "troca de implementos" muitas vezes uma das partes não possui implementospara troca. Mesmo assim tomando emprestado ativa-se uma espécie de dividana qual, inclusive moralmente, aquele que recebe se obriga tacitamente retribuirnalguma oportunidade. Retribuição que no mais das vezes acontece das maisdiferentes maneiras conforme verificamos ao longo da pesquisa: informação,(sobre ocasião de pequenos negócios de animais e insumos), favores de todaordem que vai além da reciprocidade com relação ao negócio. Trabalha-se naajuda de determinada tarefa que pode ser colheita, trato, reparo e manutençãode equipamentos, reparo em estruturas como barracões e até casas de moradiaetc. "Divida de gratidão" que produz resultados.

Com relação à prática da "troca de dias", conforme soube mediantedepoimentos recolhidos durante o trabalho de campo, estas procuram "esconder-se" uma vez que os fiscais do Ministério do Trabalho buscam punir quem aspratica por se caracterizarem numa espécie de burla às normas trabalhistas.Caso típico, portanto, de choque entre o trabalho regulado (assalariado), e formase relações de trabalho construídas a partir da experimentação coletiva de vida,trabalho inventivo e experimentação.

Informação, comunicação e tecnologiaA circulação e o fluxo de informação, a comunicação entre os agentes

produtivos é a peça chave para o desenvolvimento de determinada região. Arelação entre informação e comunicação versus isolamento, são os fatores queclassicamente caracterizavam a antiga condição do camponês, e que aindacontinua definindo o moderno agricultor (CAMPOS, 2007).

Por informação e comunicação entendo uma série de fatores que propicia,facilita e instiga a interação entre produtores ou grupos de produtores fazendocom que positivamente o acesso a informação e a interação comunicativa resultemconcretamente em melhora e aprimoramento da produção, e conseqüentemente

Page 222: retratos de assentamentos

222 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

em melhores condições de vida de maneira geral.Tecnologia é o uso de técnicas de produção como, por exemplo, confinamento

animal, inseminação artificial, pastejo rotacionado, técnicas de silagem earmanezamento de grãos, conservação e trato intensivos do solo etc. Fatoresque recorrentemente observamos na pesquisa. Com relação ao uso, ou mesmoa "aceitação" de inovações técnicas e introdução de novas tecnologias deprodução, a escolaridade é um parâmetro formal importante, sendo, contudo,necessário analisá-la relativamente a outros fatores e condições da propriedadede maneira geral. A média de escolaridade é alta entre os agricultores querealizamos a pesquisa. 18,75% responderam possuir nível superior e 2,08%pós-graduação, destacando a maior incidência de 48% dos entrevistadosapontando terem concluído o segundo grau.

Ocorre relacionar a escolaridade com a renda auferida com a propriedadeem que 45% das respostas apontam uma renda acima de dez salários mínimos,com incidência da ordem de 23,96% respondem auferir com a propriedaderenda entre um até três salários. Lembrando que no questionário ponderei "usode tecnologia", em que todos apontam fazer. Porém quando perguntados o queé esta tecnologia apontam tratores, implementos agrícolas, poço artesiano, etc."Tecnologia da informação", conforme pondera Gorz (2005) integra o própriocapital fixo material e é usada sistematicamente e de forma coordena, por umgrupo reduzido de produtores. (cursos de aprendizagem, adequação e novastécnicas de produção, literatura específica, acompanhamento técnicoespecializado, etc).

É trabalho dos sociólogos qualificar as estatísticas nos moldes classicamenteapontado por Thompson (1989). Cabe questionar, portanto, o que se escondepor trás de respostas e informações como as do tipo em que, quandoperguntados aos produtores entrevistados sobre a orientação técnica dapropriedade, particularmente da figura do agrônomo ou em casos do técnicoagrícola, praticamente todos respondem positivamente, indicando que "temalguém" que dá este tipo de assistência técnica. Quando perguntado sobre aprocedência ou origem desta assistência a maioria indica como sendoprovenientes das cooperativas, seguida em incidência de casos da assistênciaproveniente da "casa da lavoura", que como se sabe é órgão do Estado. Ocorreque quando buscamos saber que "cooperativas" são estas da qual provémgrande parte da assistência técnica dispensada aos produtores, descobrimosque todas elas provêm de cooperativas de produtores de cana-de-açúcar,com exceções dos casos raros da COFRUCAR – Cooperativa de Citricultores

Page 223: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 223

de Cândido Rodrigues e da COAGROSOL – Cooperat iva dosAgropecuaristas Solidários de Itápolis.

As cooperativas de produtores de cana mantêm um setor de vendas deinsumos e defensivos agrícolas que são impulsionados pela "política de receitas".Ou seja, o agrônomo ou técnico avia receita para compra que é vendida pelaprópria cooperativa. Lembrando que a maioria, ou seja, 92% dos agricultores(pequenos empreendedores agrícolas) que entrevistamos, apresentam umacaracterística interessante para pensar a organização socioeconômica da região.Possuem parcela da propriedade (normalmente a maior parte) destinada a cana-de-açúcar para fornecimento para usinas. Reservam uma porcentagem das terraspara empreender seus negócios.

Normalmente estes negócios caracterizados na pesquisa como pequenosempreendimentos agrícolas são voltados para um mercado diferenciado quetraz dentre suas características o fato de serem extremamente qualificados.Uma nova organização produtiva que valoriza produtos e saberes que sejulgavam extintos pela divisão social do trabalho fordista. Mercados, no sentidocolocado por Dimaggio e Louch (1998) construídos e reconstruídoscoletivamente pela experimentação comunicante de trocas praticadas pelosagentes, e que valorizam formas de vida e organização da produção e produtosdiferenciados (GORZ, 2005).

Saber e conhecimento como força produtivaSavoir-faire6 da tradição francesa é terminologia adequada para pensar a

nova força produtiva que se forma nestes núcleos de produção agrícola. Conformeaponta Gorz (2005), acerca do conhecimento:

Os saberes comuns ativados pelo trabalho imaterial, não existem senão emsua prática viva, e por ela. Eles não foram adquiridos e produzidos em vistade trabalho que podem realizar ou do valor que podem assumir. Eles não

6Indica um tipo de saber completamente distinto daquele valorizado pela sociedade industriale pelo uso e contenção da técnica. Trata-se de um tipo de conhecimento completamentediferente daquele "criado" para as soluções pontuais e específicas de problemas. É umconhecimento em movimento (ativo) e, portanto, em completa mutação, e que pertence asociedade, ou coletividade que o produziu. "Conhecimento dotado de saber" e que apenasse aprende fazendo, ou no curso da vida.

Page 224: retratos de assentamentos

224 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

podem ser destacados dos indivíduos sociais que os praticam, nem avaliadosem equivalente monetário, nem comprados ou vendidos. Os saberes resultamda experiência comum da vida em sociedade e não podem ser legitimamenteassimilados ao capital fixo (p.33).

As experiências produtivas em pequenos núcleos de empreendimentos comos quais trabalhamos na pesquisa escapam à organização técnica cientifica dotrabalho regulado tal qual conhecemos com o desenvolvimento das ditassociedades industriais. Por definição, estas experiências produtivas não separamo ato da concepção da produção.

As colocações que faz Paolo Gurisatti (1999) com relação ao sucessoprodutivo do chamado nordeste italiano e mesmo do circulo Alpino servem comodefinição para entender a "explosão" produtiva que vem acontecendo a seusmodos em diferentes locais:

Contrariamente ao que ensinam os manuais de economia, a Europa do ArcoAlpino, soube encontrar uma trajetória de crescimento baseada naconservação do ambiente e da comunidade local e na maior valorização dosaber prático (tácito-contextual)7, em relação ao saber cientifico e aosconhecimentos high-tech, e não enfrentou as grandes transformações, asgrandes fraturas que o desenvolvimento fordista da grande empresa trouxepara a Europa das Capitais, com conseqüências aparentemente inevitáveisdo progresso (p.80).

Esta nova organização produtiva tem como característica a valorização dosaber, e a recuperação de formas de produção que julgávamos extintas, conformeos autores Souza, Santana e Deluiz (1999) apontam:

A resposta à crise, ou melhor, como querem os teóricos da especializaçãoflexível, a antecipação ao estrangulamento, não surgia de elementostotalmente inusitados. Antes, viria de uma certa recuperação de elementosou formas produtivas que sucumbiram diante do sistema fordista, sem seextinguir. Aquilo que pode-se chamar de sistema de manufatura concorreracom as idéias chaves que se articulariam mais tarde no fordismo, sendo

7Grifo nosso.

Page 225: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 225

derrotado enquanto linha mestra do mundo produtivo, continuando a existirao longo do tempo em experiências isoladas. A derrota teria se dado devido,sobretudo, à intervenção de ordem política, sustentada pela visão deevolucionismo tecnológico (p. 41).

Na pesquisa trabalhei exatamente com este perfil de pequeno produtor ruralque posteriormente (como resultado de pesquisa) chamo de "alternativa" sãocasos que recuperam saberes e formas de vida que passam a ser valorizadaspor um mercado em construção. Exemplos como doces em geral e alimentos,aguardente, alguns produtos artesanais e principalmente produtos convencionaisproduzidos de forma alternativa como o caso dos orgânicos. E vale ponderar,apesar de não ter sido foco da pesquisa o caso da produção de alternativas e"modos de vida" como chácaras de residentes ou de veraneio.

Arnaldo Bagnasco (1999) perseguindo os fatores centrais que proporcionaramo desenvolvimento do caso italiano aponta:

(...) as sociedades locais que souberam aproveitar o crescimento da pequenaempresa beneficiaram-se de um tecido urbano composto de cidades depequeno e médio porte, perfeitamente equipado e distribuído sobre o conjuntodo território, onde toda uma rede tradicional de empresas comerciais,artesanais, de fábricas de produção em série limitada, de serviços bancáriose administrativos, de infra-estruturas viárias e civis, de equipamentos culturaise de administração local apropriada e eficaz, desempenhava suas funçõesurbanas. Essas cidades ativaram esse processo em interação com as regiõesrurais caracterizadas, do seu lado, por uma estrutura social particular: a dafamília rural autônoma, proprietárias de pequenos lotes de terra, em fermage,ou em métayage. Essa família forneceu no mercado de trabalho das pequenasempresas industriais, operários polivalentes, formados num meio rural auto-suficiente e culturalmente direcionados para a autonomia e a mobilidade.Além disso, ela oferecia uma certa segurança frente ao mercado de trabalhoincerto e, às vezes, aleatório, compensações à renda oriunda do trabalhoassalariado e uma gestão integrada das rendas suplementares. Em inúmeroscasos, em somente uma ou duas gerações surgiram dessas famílias rurais,artesãos e pequenos empresários. Assim, a ação combinada dessas duascondições permite melhor entender a razão pela qual o meio mais favorávelà expansão da pequena empresa foi o que um economista designou de "campourbanizado" (p. 38)

Page 226: retratos de assentamentos

226 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Campo urbanizado no contexto italiano para arriscar uma aproximação vis avis aceitável é uma realidade típica de comunidades rurais de pequenosproprietários, produtores e artesãos. No caso da pesquisa ponderei que boaparte dos hoje agricultores ou pequenos empreendedores agrícolas da região deAraraquara no passado trabalharam em regimes como meação particularmente.E, 70% dos que respondem terem trabalhado em regime de meação respondemtambém terem adquirido a atual propriedade ou negócio na forma de comprasendo que as economias provenientes deste sistema de meação contribuírampara a compra do negócio. É quase nula as incidências de respostas que incidemem casos de que os hoje proprietários foram anteriormente assalariados agrícolas.

ConclusãoNo texto procurei apontar elementos que considero centrais para entender a

emergência produtiva de pequenos empreendimentos agrícolas na região deAraraquara. Todos os temas levantados, mesmo os apontamentos conceituais eteóricos, foram propostos a partir da verificação e ocorrência de casostrabalhados na pesquisa de campo. Persiste a idéia de uma "localização"desterritorializada, ou seja, de uma localização que particulariza (no caso regiãode Araraquara) levando em consideração fatores de ordem imaterial na formaçãoda identidade produtiva. Uma localização que se "des-territorializa" nesta quedefinimos como região de Araraquara, ou então num "módulo Araraquara"conforme proposta de política publica que o SEBRAE propunha desde os temposdo SAI – Sistema Agroindustrial Integrado, e que continua atualmente com oAgrosebrae.

Consiste em recapitular os elementos centrais da constituição do território natentativa de definir uma identidade produtiva para este território. Pensar umindicador de vocação produtiva significa recapitular, valorizar e entender estelocal e a sua identidade. Como, por fim, o conhecimento produzido pelascomunidades rurais e historicamente pelos núcleos agrícolas circulam em interaçãocom outros territórios se conectando num circuito mais amplo.

Referências

ALVIM, Z. Brava Gente! Os italianos em São Paulo 1870 – 1920. SãoPaulo, Brasiliense: 1986.

CAMPOS, R.L.S. Desenvolvimento rural, conhecimento e cooperação como

Page 227: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 227

força produtiva. Perspectivas, Revista de Ciências Sociais da UNESPAraraquara/SP, v.32, 2007.

CANDIDO, A. Os Parceiros do Rio Bonito. Rio de Janeiro, Vozes, 2009.

BAGNASCO, A. Desenvolvimento regional, sociedade local e economiadifusa. In: COCCO, G.; URANI, A.; GALVÃO, A. P. (Orgs.) Empresáriose empregos nos novos territórios produtivos: o caso da terceira Itália. Riode Janeiro: DP&A, 1999.

DIMAGGIO P.; LOUCH, H.W. Socially Embedded Consumer Transactions:For What Kinds of Purchases do People Use Networks Most? AmericanSociological. Review (October), p.619-37, 1998.

DURHAM, E.R. A Dinâmica da Cultura. São Paulo: Cosac & Naify,2004.

GORZ, A. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo:Annablume, 2005.

GURISATTI, P. O nordeste italiano: nascimento de um novo modelo deorganização industrial. In: COCCO, G.; URANI, A.; GALVÃO, A. P. (Org.)Empresários e empregos nos novos territórios produtivos: o caso daterceira Itália. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

MARQUES, E. C. Notas críticas à literatura sobre estado, políticas estatais eatores políticos. BIB, Rio de Janeiro, n.43, jan./jul. 1997.

SCOTT, R. W. Institutions and organizations. California: SageFoundations, 1995.

MARX, K. Elementos fundamentales para la Crítica de la. EconomiaPolítica (GRUNDRISSE) 1857 - 1858. México D.F: Ed. Siglo Veintiuno,1972.

MEZZADRA, S. Diritto do Fuga: migrazioni, cittadinanza, globalizzazione.Verona: Ombre Corte, 2006.

Page 228: retratos de assentamentos

228 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

PUTNAM, R. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna.Rio de Janeiro: Ed FGV, 2000.

SOUZA, D.B; SANTANA, M.A.; DELUIZ, N. Trabalho e Educação:Centrais Sindicais e Reestruturação Produtiva no Brasil. Rio de Janeiro:Quartet & Comunicações, 1999.

THOMPSON E.P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Paz e Terra:São Paulo, 1989.

Page 229: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 229

O (RE)DESENHO PRODUTIVO ESOCIAL DOS ASSENTAMENTOSRURAIS A PARTIR DAS POLITICASPÚBLICAS: O CASO DO PROGRAMADE AQUISIÇÃO DE ALIMENTOS

Martha Esthela S. Silva1

Luís Antônio Barone2

José Gilberto de Souza3

1Geógrafa, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia, IGECE- UNESP – RioClaro.2Sociólogo, Professor Assistente Doutor, FCT-UNESP – Presidente Prudente.3Geógrafo, Professor Livre Docente, IGECE-UNESP – Rio Claro.

Resumo: Este artigo faz uma análise sobre a atuação do Programa de Aquisiçãode Alimentos (PAA) no município de Presidente Venceslau (SP). O PAA é umapolítica pública que consiste na compra de produtos oriundos da agriculturafamiliar e doação à pessoas em situação de insegurança alimentar e paraentidades sociais (creches, asilos, casa do menor, orfanatos e escolas). A análisepermite considerar que o PAA tem estreitado as relações campo-cidade, à medidaque os produtos agropecuários produzidos nos assentamentos de reforma agráriase materializam no espaço urbano e são capazes de intervir diretamente nacondição social de reprodução dos sujeitos, ao mesmo tempo que consolida asações de assistência das instituições, aproximando uma dimensão produtiva docampo – com fundamento na reforma agrária – e a assistência social, comoestratégia de seguridade social.

Palavras-chave: Programa de Aquisição dos Alimentos; Segurança Alimentare Assentamentos Rurais.

Abstract: The article makes an analysis on the performance of the FoodPurchase Program (PAA) in the municipality of Presidente Venceslau (SP),

Page 230: retratos de assentamentos

230 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

the PAA is a public policy that is buying products from family farms andgiving the people insecure food and social institutions (kindergartens,nursing homes, home of the minor, orphanages and schools). The analysisto suggest that the PAA has narrowed rural-urban relations, as theagricultural products produced in agrarian reform settlements materializein urban space and are able to directly intervene in the social condition ofreproduction of the subject and at the same time consolidate actions toassist institutions, consolidating a connection between the productivedimension of the field as the basis of land reform and social welfare as astrategy for social security.

Keywords: Public Policies, Food Security, Rural Settlements.

IntroduçãoO presente artigo faz uma análise da atuação do Programa de Aquisição de

Alimentos (PAA), na sua capacidade de articular de forma positiva odesenvolvimento econômico no campo e o desenvolvimento social na cidade.Nosso universo empírico de estudo é o município de Presidente Venceslau (SP).O referido programa é uma política pública que consiste na compra da produçãoda agricultura familiar, sendo que, esses produtos são doados à entidades sociaise para pessoas em situação de vulnerabilidade social. É uma política que articulareforma agrária em conformação com a segurança alimentar e tem como objetivocriar mercado para a pequena produção agropecuária e aumentar a doação dealimentos.

A reforma agrária é um dos elementos fundamentais para supressão da fome,na medida em que retira pessoas de condições precárias de vida, devolvendo-lhes a dignidade, ao mesmo tempo em que contribui para o aumento da produçãode alimentos. O PAA possibilita diretamente acesso aos alimentos minimizandoa fome e intervém no aumento da produção de alimentos.

Os assentamentos rurais têm aumentado e diversificado sua produção. Agarantia de comercialização que o programa proporciona oportunizou o cultivode alimentos (verduras, frutas, legumes, feijão) nos lotes, alterando beneficamentea dinâmica de trabalho que agrega mais pessoas na produção.

Assim, neste trabalho analisa-se os dados do PAA no município de PresidenteVenceslau, localizado no oeste do estado de São Paulo, região que abriga umagrande quantidade de assentamentos. Presidente Venceslau, em seu território,conta com cinco assentamentos rurais, dos quais quatro estão inseridos no

Page 231: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 231

programa. Este reativou o cultivo da terra anteriormente tomada pela pastageme produção canavieira. A paisagem se (re)configura com diversos elementosconcretos e abstratos ligados ao ideário da reforma agrária.

Fome de Reforma AgráriaNo Brasil a problemática da terra tem tido desdobramentos desfavoráveis à

população que é desprovida dos meios de produção. A intensa concentração deterras contribuiu para o aumento da pobreza e da fome no país (SOUZA, 2008).A expulsão dos camponeses para a cidade teve como consequência o aumentoda população que vive em condições precárias e sub-humanas, com um segmentocom difícil acesso aos alimentos. Tudo isso é fruto das relações econômicas quesão pautada prioritariamente no capital.

A produção de alimentos teve um aumento significativo, mas devido aomonopólio da produção a distribuição é desigual. De acordo com o geógrafoAriovaldo Umbelino Oliveira (2010) no Brasil tem diminuído a produção dealimentos devido a expansão da produção de agrocombustíveis, com a alta dopreço dos alimentos o número de famintos eleva-se.

A "fome de reforma agrária" permanece latente nos trabalhadores sem-terrasque lutam para conquistar um pedaço de chão, matando a fome em todos ossentidos. Objetivamente, são dois lados da mesma moeda, são dois lados damesma fome, pois ao mesmo tempo em que o camponês retorna ao campo paramatar sua fome e garantir sua reprodução social, aumenta a oferta de alimentosna cidade.

A fome, no seu grau mais latente, transforma-se em luta pela mínimarecomposição das necessidades de reprodução social e faz com que muitossem-terra compreendam a importância de sua inserção nos movimentos sociais.Os assentamentos rurais são expressões contundentes que se é possível minorara fome, esta possibilidade de supressão denomina-se reforma agrária. Naspalavras de Ferrante e Barone os "assentamentos rurais são uma alternativapara a geografia da fome" (FERRANTE e BARONE, 1996).

A geografia da fome é presente na sociedade em que vivemos, quando secartografa as terras destinadas ao cultivo para produção de agrocombustíveis ede soja para exportação. Verifica-se a diminuição de terras para a produçãoalimentar e consequentemente aumento do preço dos alimentos (SOUZA, 2008).A concentração de terras produtivas e a não desapropriação de terrasimprodutivas em nosso país tem sido um dos motivos para que não se acabecom fome e a miséria.

Page 232: retratos de assentamentos

232 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

O atual estágio das forças produtivas e das relações sociais de produção tempossibilitado o monopólio da produção de grãos, de modo que o acesso aosalimentos é realizado, prioritariamente, mediante a compra, ficando a parcelada população que é desprovida ou mal provida de renda excluída desse mercado,com uma alimentação com déficit nutricional.

Com a destinação de grande parte das terras para a produção de monoculturastais como a soja e a cana-de-açúcar houve uma drástica diminuição da produçãode alimentos, uma vez que as terras e as políticas de crédito se concentram nasmãos do agronegócio. De acordo com Oliveira:

Os dados do IBGE entre 1990 e 2006 revelavam a redução da produção dosalimentos imposta pela expansão da área plantada de cana-de-açúcar quecresceu neste período mais de 2,7 milhões de hectares. Tomando-se osmunicípios que tiveram a expansão de mais de 500 hectares de cana noperíodo, verificava-se que neles ocorrera a redução de 261 mil hectares defeijão e 340 mil de arroz. Nesta área reduzida poder-se ia produzir 400 miltoneladas de feijão, ou seja, 12% da produção nacional e, um milhão detoneladas de arroz equivalente a 9% do total do país. Além, disso reduziram-se nestes municípios a produção de 460 milhões de litros de leite e mais de4,5 milhões de cabeças de gado bovino. (OLIVEIRA, 2010, p.27)

O agronegócio invade o campo, destitui milhares camponeses de suas terras,diminui a oferta de alimentos e aumenta a fome. É voraz a disputa pela terra queo mesmo coloca e a destruição da natureza também. O aumento da produçãode cana de açúcar, em detrimento da produção de alimentos, agrava ainda maiso quadro de insegurança alimentar.

Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação(FAO) 850 milhões de pessoas passam fome e essa fome se regionalizaprincipalmente nos países da África, Ásia e América Latina. A desigualdadesocial e a concentração de renda deixam milhões de pessoas em situação deinsegurança alimentar sobrevivendo com a fome cotidiana. (SILVA, 2008).

A expansão do capitalismo no campo expropriou milhares de camponesesde suas raízes e tradições, expulsando-os do campo, de modo que muitos foramcompulsoriamente para as cidades E se tornarem trabalhadores assalariados.Neste momento, torna-se necessária a intensificação da luta pela reforma agrária(SOUZA, 2010).

A luta pela reforma agrária vai além da distribuição de terras, questiona o

Page 233: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 233

modelo social, cultural e econômico vigente, propondo novas relações sociaisde trabalho, produção e sociabilidade. Ela potencialmente propõe uma sociedadejusta e com equidade social.

De acordo com os autores:

A agricultura familiar gera mais ocupações que a agricultura patronal, utiliza-se de forma mais eficiente os recursos escassos da terra, trabalho e capital,e irradia mais o desenvolvimento local. A pequena agricultura une eficiênciaeconômica e social" (GUANZIROLI, ROMEIRO, BUAINAIN,SABBATO, BITTENCOURT, 2001, p.6).

A reforma agrária é uma ameaça aos interesses da classe dominante, pois suaessência questiona o modelo de desenvolvimento econômico que está (im)postoe se coloca contrária a lógica de ordenamento territorial controlada pelo capital,que privilegia a agroindústria em detrimento da agricultura camponesa.

Com a intensificação da luta pela terra, o Estado com sua política fundiária –que para o agronegócio garante apoio irrestrito e para os trabalhadores sem-terra garante a militarização da questão agrária – aumenta a violência no campoe a morte de milhares de trabalhadores. (MARTINS, 1985). O que era amilitarização, agora é criminalização. A criminalização da questão agrária(FERNANDES et al., 2003) tem como objetivo suprimir, também de maneiraviolenta, a luta dos camponeses, sendo que, a reforma agrária toca diretamentena estrutura de poder, na perspectiva de construção de outro modelo desociedade e no que é prioritariamente intocável no Brasil: a propriedade privada.Criminalizam-se os movimentos sociais com a condenação, prisão e mortes deseus militantes.

A luta pela terra no Brasil é mantida na pauta da política nacional por pressãodos Movimentos Sociais, que não mais reivindicam somente o acesso a mesma,querem o direito à permanência no campo, o direito ao trabalho, à educação e àsaúde. Assim, pressionam o poder público pela (re)formulação e efetivação depolíticas públicas que garantam uma vida digna no campo. Lutam pela cidadania,que é usurpada pois, para muitos, essa "cidadania" somente se encontra no planosimbólico, já que os princípios básicos de sobrevivência são negados ou retirados.

O acesso à terra é uma luta infindável, pois quando conquistada a terra, a lutapermanece cotidianamente. A permanência no campo torna-se uma duraresistência dos trabalhadores que, de uma forma ou de outra, se negam a obedecerà ordem do sistema capitalista, que conspira para que o viver e trabalhar no

Page 234: retratos de assentamentos

234 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

campo sejam uma utopia.O viver no campo é imbricado de diversas concepções de vida, de trajetórias

e experiências. Porém, tem-se o desejo comum de continuar na terra provendoseu sustento por meio do trabalho na mesma. Desfrutar dos resultados da lutaconsolida-se na esfera subjetiva de cada um desses trabalhadores e trabalhadorasque ousaram sonhar e que, mais ainda, ousam tornar o sonho realidade, quandoassumem sua condição de sem-terra e se lançam às beiras das estradas comsuas lonas pretas, sem saber se durará um ano ou vinte anos a condição deacampado. Entretanto, essa é uma condição assumida por eles mesmos.

Os camponeses têm enfrentado muitas dificuldades pela falta de políticaspúblicas que contemplem suas demandas, enquanto que o agronegócio tem umtratamento prioritário, produzindo um contexto historicamente desfavorável aostrabalhadores do campo. Ainda assim a pequena agricultura se vale de diversasestratégias econômicas e sociais para se manter o campo.

A agricultura familiar é um dos pilares da alimentação, sendo responsávelpela maioria dos produtos da mesa do brasileiro. A promoção da agriculturafamiliar torna-se um elemento estratégico para a formulação de políticas para aquestão da segurança alimentar. As políticas de segurança alimentar devem serarticuladas entre governo e sociedade civil, por meio da proteção da agriculturafamiliar, pois 70% dos alimentos produzidos no país o é pelo segmento daagricultura familiar.

A segurança alimentar associa-se ao objetivo de garantir a todos condiçõesplenas de acesso a alimentos de qualidade. Negar o direito a alimentação énegar o direito básico à vida. Com a participação direta da agricultura familiar, opotencial de diminuição do quadro de fome que muitos brasileiros vivem serámaior, redundando numa eficiente política de supressão da carência alimentar.

Segurança AlimentarA questão da Segurança Alimentar passa a ser discutida e definida no período

do Pós-Segunda Guerra, onde se formulou políticas que garantissem acesso àalimentação em qualquer situação, até mesmo em períodos conflituosos. Nestemomento, a discussão de segurança alimentar entra no cenário global.

No Brasil, o debate sobre segurança alimentar fica evidente na década 1990.Ampliou-se, então, o conceito de segurança alimentar como referência para aspolíticas nos vários níveis da administração pública, isto é, nos organismos federais,estaduais e municipais de agricultura e abastecimento.

De acordo com Galeazzi (1996), "a alimentação nutricional adequada é um

Page 235: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 235

direito do cidadão, e a garantia de Segurança Alimentar é um dever do Estado"(p.134). A Segurança Alimentar passa pelo principio de cidadania, onde o direitoa uma vida digna é diretamente ligado ao direito a uma alimentação saudável ediária.

De acordo com essa autora:

A segurança Alimentar poderá, então, ser definida como direito inalienávelde todos os cidadãos de terem acesso permanente aos alimentos necessários,em quantidade e qualidade, a uma vida digna e saudável. Para tanto érequerida uma produção suficiente e sustentada de alimentos emconformidade com os hábitos alimentares das populações das diversas regiõesbrasileiras. (GALEAZZI, 1996, p.156)

O combate à fome no Brasil tem se materializado pela promoção de políticaspúblicas para a agricultura familiar, que está produzindo mais para atender aomercado interno e principalmente a pessoas em situação de insegurança alimentar.

A partir de 2003, o tema sobre a segurança alimentar no Brasil ganha destaque,já que um dos principais temas da campanha da candidatura de Luis Inácio Lulada Silva (PT), era o Programa Fome Zero, que se concretizou nos dois mandatode governo (2003-2006 e 2007-2010) e continua presente na política da atualpresidente Dilma Rousseff.

A primeira necessidade básica do ser humano, que é se alimentar, para muitosbrasileiros é uma necessidade que não é sanada diariamente, embora sejagarantindo pela Constituição brasileira, conforme reza o 2o artigo do capitulo 1da Lei Magna:

Art. 2.o A alimentação adequada é direito fundamental do ser humano,inerente à dignidade da pessoa humana e indispensável à realização dosdireitos consagrados na Constituição Federal, devendo o poder público adotaras políticas e ações que se façam necessárias para promover e garantir asegurança alimentar e nutricional da população. (Lei 11.349/2006).

Embora a segurança alimentar é garantida na Constituição (assim como auma educação de qualidade, a função social da terra, o direito de liberdade deexpressão etc.), o direito a uma alimentação adequada é usurpado e a problemáticada fome permanece.

O fenômeno da fome não é natural, a fome é produzida pelo homem através

Page 236: retratos de assentamentos

236 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

das relações sociais. O assunto sobre a fome chega quase ser um tema proibido,na maioria das vezes a palavra "fome" é substituída por má alimentação,desnutrição, entre outros conceitos que tentam mitigar o impacto da palavra. Afome é fabricada pela classe dominante, é fruto das desigualdades sociais queassolam os dominados. (CASTRO, 1952).

A desigualdade de distribuição de renda e a concentração da riqueza e dosmeios de produção limitam o poder de compra para a grande maioria dapopulação, que não possui determinado poder aquisitivo. Assim, tem-se umacesso extremamente limitado aos alimentos que lhes garantem uma alimentaçãosaudável e diária. Como coloca Maria Moraes e Silva, "exclusão, marginalização,fome produzida são marcas que definem o processo de expropriação eproletarização deste país. Processo concreto, histórico, caracterizado pela relaçãoentre famintos e produtores da fome" (SILVA, 1996, p.27).

Ao se colocar a questão da segurança alimentar, temos que evidenciar quaissão as raízes da fome, para na cairmos na armadinha de descaracteriza-la. Énecessário colocar quem são os produtores da fome e não confundi-la com asegurança ou a insegurança alimentar.

Segurança Alimentar é disponibilidade de alimentos suficientes, gerando-seuma oferta capaz de atender às necessidades de consumo alimentar de todas aspessoas. O direito à alimentação é o direito à vida, é a primeira condição decidadania. Ter acesso a uma alimentação saudável independente da condiçãoeconômica, sendo este um dever do Estado.

Ainda convivemos com a miséria e a fome, que são frutos da desigualdadesocial em várias partes país, de sul a norte. Somente haverá segurança alimentarno Brasil no momento em que todos os brasileiros tiveram acesso em quantidadee qualidade aos alimentos necessários para uma alimentação saudável. A criaçãode programas ou políticas públicas, como o Programa de Aquisição dosAlimentos, torna-se uma estratégia para acabar com a fome.

O Programa de Aquisição de Alimentos tem acoplado a agricultura camponesaà segurança alimentar, incentivando os assentados a produzir mais alimentos,gerando assim mais trabalho e renda no campo e, ao mesmo momento,melhorando a segurança alimentar, pois a produção de alimentos dosassentamentos rurais de reforma agrária são doados a quem precisa.

Programa de Aquisição dos Alimentos (PAA)O PAA se constitui como uma das políticas estruturantes do Programa Fome

Zero para combater a fome e a miséria no país. Combate à miséria, pois tem

Page 237: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 237

gerado renda aos assentados e combate à fome, pois os alimentos produzidossão doados a pessoas em situação de vulnerabilidade social e a entidades sociais.

O Programa vem como uma política pública que integra segurança alimentarpor meio da promoção da agricultura familiar. Essa política é realizada no âmbitode governança federal, estadual e municipal. No decorrer da década 1990, oconceito de segurança alimentar começou a sustentar uma pauta de políticasdestinadas à redução da fome, aos poucos articulada à agricultura familiar e suasestratégias de desenvolvimento, entrelaçando as duas questões, ou territórios(campo-cidade).

No Brasil, no primeiro ano do governo de Luís Inácio Lula da Silva, foicriado o programa Fome Zero, a fim de combater a fome e a miséria depopulações em situação de insegurança alimentar em várias regiões do país.Dentre as políticas estruturantes do Programa Fome Zero, encontra-se o PAA.

O Programa de Aquisição de Alimentos – PAA – foi instituído pela Lei nº10.696, de 02 de julho de 2003, juntamente com o Programa Bolsa Família,sendo estas iniciativas governamentais com o objetivo de estruturar políticas decombate à fome e à pobreza no país, as quais se encontram articuladas às demaisações do Programa Fome Zero, gerido pelo Ministério do DesenvolvimentoSocial (MDS).

O programa consolidou-se como um instrumento de combate à fome eincentivo à agricultura familiar por meio de políticas públicas no âmbito da reformaagrária, definido pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome(MDS), auxiliado, ainda, pelos Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão,Ministério do Desenvolvimento Agrário, Ministério da Agricultura, Pecuária eAbastecimento e Ministério da Fazenda, que são responsáveis pela implantaçãodo programa, tendo também a participação de órgãos gestores estaduais,municipais e federais. (CONAB, 2010).

O PAA, se efetiva em cinco modalidades (Compra Direta da AgriculturaFamiliar, Compra Antecipada da Agricultura Familiar, Compra AntecipadaEspecial da Agricultura Familiar, Compra Direta Local da Agricultura Familiar eIncentivo à Produção e ao Consumo de Leite). A modalidade que abordamosem nossa pesquisa é a de Compra Direta da Agricultura Familiar, tambémconhecida como doação simultânea. Esta modalidade visa garantir renda aopequeno agricultor, através da compra direta da produção ao preço de mercadoe doação de alimentos.

O programa destina-se à compra de produtos agropecuários oriundos dapequena agricultura, para combater a fome, fornecendo alimentos para entidades

Page 238: retratos de assentamentos

238 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

sociais como asilos, casa do menor, orfanatos, hospitais, creches e escolaspúblicas e, também, às pessoas em situação de insegurança alimentar e/ouvulnerabilidade social.

A comercialização e distribuição dos produtos ocorrem mediante convêniosentre órgãos governamentais, tanto na esfera federal como estadual e municipal,dispensando o processo de licitação, desburocratizando a compra e venda,possibilitando que mais produtores participem. Através da leitura sistematizadados documentos do PAA, observa-se que há uma tentativa de desburocratizaçãodo processo de aquisição dos produtos da agricultura familiar, porque o mesmodispensa as regras de licitação requeridas pela Lei 8.666/93.

Mattei (2007) discorre sobre tais convênios:

A compra de produtos da agricultura familiar visa garantir renda a estesegmento de produtores, ao mesmo tempo em que poderá melhorar ascondições de alimentação das pessoas que se encontram em situação devulnerabilidade social ou em situação de insegurança alimentar. Portanto, osinstrumentos do programa beneficiam tanto o agricultor familiar como osconsumidores, especialmente aqueles grupos anteriormente citados. Destaforma, busca-se uma associação entre a política de segurança alimentar enutricional e as políticas de promoção da agricultura familiar. (2007, p.14).

Certamente esses são os pontos mais importantes que a política do PAAconsegue realizar. Aliando a política de agricultura familiar com a política decombate à fome, o governo consegue propor uma alternativa eficiente,consideradas suas limitações, resolvendo parte dos problemas nos assentamentos(como o escoamento da produção) e, nas cidades – sobretudo aquelas comgrande número de pessoas em situação de insegurança alimentar, que sãobeneficiadas pelo programa.

O PAA foi concebido para estimular e fortalecer a agricultura familiar brasileirae compreende um conjunto de ações relativas à aquisição da produçãoagropecuária e sua distribuição para grupos de pessoas em estado de insegurançaalimentar, além de contribuir para a formação dos estoques estratégicos dealimentos do país. Deste modo, o PAA destina-se à aquisição de produtosagropecuários fornecidos pelos agricultores familiares, sendo dispensada alicitação, desde que os preços dos produtos adquiridos não ultrapassem o valordos preços praticados nos mercados locais e regionais. Segundo Hespanhol(2008):

Page 239: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 239

Isento de licitação, o Programa funciona de maneira a adquirir alimentosproduzidos pelos agricultores familiares a preços baseados pela cotação domercado regional e fornecê-los a escolas e/ou instituições assistenciais queatendem grupos de pessoas carentes. Dessa forma, os produtos adquiridospelo programa podem destinar-se à merenda escolar; à alimentação emcreches, abrigos, albergues, asilos e hospitais públicos, restaurantes popularese cozinhas comunitárias; entre outros (HESPANHOL, 2008, p13).

O programa colabora com a agricultura familiar, que há muito tempo não temum tratamento especial, de maneira que possa suprir as necessidades dosassentados e pequenos agricultores. O programa em questão apresentaparticularidades, como ter o assentado no foco da política e o incentivo àpermanência das famílias assentadas no campo, o que pode se caracterizar comouma política eficiente para a manutenção da reforma agrária.

Um dos impasses dos assentados era a comercialização de seus produtosque ficavam aquém da sorte, sem certeza de venda e que, por vezes, perdiam aprodução que é de baixa durabilidade e alta perecibilidade (frutas, verduras elegumes). Ou ficavam sujeitos a atravessadores de má fé, que faziam a comprae não pagavam, ficando os assentados sem capital de giro para pagar dívidas nobanco e plantar novamente.

O problema de escoamento da produção agrícola foi sanado, pois o programase propõe-se a realizar a compra direta da produção dos assentados, garantindo-lhes uma renda complementar.

Porém, as demandas por assistência técnica aumentaram e o quadro defuncionários que já era deficitário permanece o mesmo. Encontra-se, aí, umentrave, pois a falta da assistência técnica atinge diretamente a qualidade equantidade dos alimentos.

A transferência de alimentos realizada através do PAA concretiza a reformaagrária no meio urbano. A vinda dos alimentos do campo para cidade materializaessa espacialidade, pois muitas das pessoas que vivem na cidade têmconhecimento da reforma agrária. A relação campo-cidade ainda é permeadapor uma série de preconceitos, pelos quais ocorre uma hierarquização, com acidade sobre o campo, o que acaba por não evidenciar a interdependência dosdois espaços.

A produção de alimentos ocupa lugar de destaque nos assentamentos ruraisde reforma agrária que aderiram ao programa, retomando seu papel na vida docamponês. Ela agrega o trabalho familiar, a terra retorna ao seu valor de uso e é

Page 240: retratos de assentamentos

240 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

dela e nela que se reproduzem relações sociais, que estavam sendo extintas peloagronegócio.

Como cita Souza:

A terra como natureza, é valorizada na relação estabelecida pela sociedadeem seu processo de produção do espaço. Essa natureza incorporada à vidahumana, no âmbito de suas necessidades, tem a denominação em Marx:valor de uso. Uma categoria não cronológica, de dimensão histórica-teóricaintrínseca à trajetória humana na terra, como a riqueza material. A terraapropriada no sentido mais geral de satisfação (SOUZA, 2009, p. 122).

Quando a terra é reconquistada pelo camponês, o direito de extrair dela,pelo trabalho, o alimento e a moradia torna o camponês realmente ligado aocampo: a terra retorna ao seu valor de uso e o homem ao seu lugar no campo.

Este conceito, ou esta dimensão prática da vida campesina pode ser reportadaaos assentamentos de Presidente Venceslau, onde a produção se diversifica, otrabalho na terra torna-se possível e o viver no campo, real.

De acordo com Ferrante e Santos:

Nas duas últimas décadas, a monotonia da paisagem rural de algumas regiõesdo Estado de São Paulo, como é o caso do Pontal do Paranapanema, foiquebrada drasticamente pela expansão dos assentamentos rurais. No lugarde pastagens extensivas, onde antes se avistavam apenas algumas cabeçasde gado, agora florescem pequenas propriedades rurais, sítios, nos quais apresença do homem é marcante, onde começam a fazer sentido estas duaspalavras: agricultura familiar (FERRANTE, SANTOS, 2003, p.21).

Hoje a paisagem não somente se reconfigura fisicamente com as mudanças,mas passa a ser cheia de sentidos e esperança. O campo, ainda que com suaslimitações, oferece moradia e emprego para dezenas de pessoas que viviam namiséria, pois estes dois princípios básicos de sobrevivência estavam distante desuas realidades. A terra traz outros significados, a concretização de sonhos eideais, que se materializam com os assentamentos rurais. O PAA reativou ereforçou o associativismo dentro dos assentamentos rurais de reforma agrária,tirando do campo parte do trabalho alienado. É, potencialmente, uma novacondição, na qual os assentados trabalham para eles mesmos. O trabalho é,assim, algo do cotidiano, que os humaniza, os faz pensar no próximo, pois têm

Page 241: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 241

consciência que aquele alimento por ele produzido destina-se a pessoas quenecessitam.

A diversificação da produção agrícola nos espaços construídos pelasexperiências de reforma agrária faz com que os sujeitos estabeleçam e tambémconstruam novas relações sociais de produção e, de modo amplo, redefinem arelação do homem com a natureza. O uso da terra em vários dos assentamentostraz a riqueza da biodiversidade de culturas, preservação do meio ambiente e deuma produção agrícola verdadeiramente sustentável. Os assentados se valem,principalmente, da combinação de diversas estratégias sociais e econômicas parater condições de viver uma vida digna no campo.

Nosso universo empírico de pesquisa é o município de Presidente Venceslau,que já tem o PAA consolidado em quatro assentamentos. Presidente Venceslausitua-se no oeste do Estado de São Paulo, no Pontal do Paranapanema, regiãoconflituosa pela disputa por terra no Estado. Hoje, concentra muitosassentamentos rurais, que foram conquistados tendo como protagonista desseprocesso os movimentos sociais de luta pela terra.

O PAA em Presidente VenceslauOs assentamentos rurais se tornaram uma alternativa para a miséria de muitos

que foram expulsos do campo. Outros, que viviam na cidade em condiçõesprecárias ou viviam como meeiros e/ou arrendatários, hoje vivem de seu própriotrabalho nos assentamentos.

O município de Presidente Venceslau tem em sua extensão territorial cincoassentamentos rurais de reforma agrária: os assentamentos Primavera (124 lotes),Tupanciretan (74 lotes), São Camilo (35 lotes) Radar (29 lotes), e Santa Rita(19). Dos cincos assentamentos citados, somente o Assentamento Santa Ritanão participa do PAA.

A produção leiteira é majoritária nos assentamentos do município de PresidenteVenceslau. A produção de hortaliças, verduras e frutas para comercializaçãonão era tão significativa há alguns anos, mas este quadro tem sido revertidograças ao PAA: a diversificação da produção tem sido possível.

A discussão sobre adesão ao PAA no município começou ainda em 2007.No começo de 2008 algumas associações de produtores dos assentamentosdecidiram aderir ao programa e, atualmente, temos cinco associações deassentamentos rurais que entregam sua produção para o programa.

Para aderir ao PAA é necessário que o assentamento tenha uma associaçãojuridicamente constituída. É a associação que realiza as transações de compra

Page 242: retratos de assentamentos

242 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.1, 2011

da produção; a mesma faz um projeto com o número de produtores, com aquantidade de produtos, caracterização da produção que pretende entregar equais são as entidades que receberão as doações. Uma das exigências daCONAB é que cada associação entregue no mínimo 20 variedades diferentesde alimentos, estimulando assim a diversidade na produção. O projeto deve serassinado por um técnico. Com a aprovação do projeto, inicia-se o convênio quetem duração de um ano. Ao final do convênio a associação manda novamenteum novo projeto, que será aprovado dependendo da verba pública destinadaao programa.

A CONAB estabelece um valor anual para cada produtor que atualmente éde R$ 4.500,00. A produção entregue de cada assentado não pode ultrapassareste valor. Criou-se um marco jurídico capaz de possibilitar uma maior presençado Estado no apoio aos processos de comercialização da produção dosagricultores familiares e também representar um maior controle da produçãodos assentados, a partir do momento que a delimita.

O PAA, em seu tempo de existência, aumentou o limite anual de compra porprodutor, o que evidencia o potencial da agricultura familiar e a necessidade desupressão da fome. Colocamos esse aumento esquematizado na tabela abaixo.

Tabela 1 – Renda Anual e Mensal do PAA Por/Produtor (2003/2012).

Fonte: www.conab.com.br (25/1/2012).Org: Martha Esthela S. Silva.

A tabela acima evidencia alguns entraves do Programa, pois o limite máximode venda que o produtor pode repassar para a CONAB não gera mensalmenteum salário mínimo. Alguns assentados conseguem atingir a meta em até seismeses, tendo condição de produzir mais, porém sem garantia de venda daprodução excedente. Entretanto, a valorização do trabalho do produtor passa aocupar papel central na alimentação dos moradores da cidade que se encontramem situação de insegurança alimentar.

Ano Limite Anual Renda Mensal

2003 – 2006 R$ 2.500,00 R$ 208,00

2007 – 2008 R$ 3.500,00 R$ 291,00

2009 – 2012 R$ 4.500,00 R$ 375,00

Page 243: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.1, 2011 243

No município em estudo tem-se ao todo 5 associações que participam doprograma, tendo um montante de 143 produtores assentados cadastrados. Atabela abaixo mostra a atuação dos assentamentos para a produção no PAA.

Tabela 2 – Participação dos Assentamentos do Município dePresidente Venceslau no Programa de Aquisição de Alimentos

(produção e valores) 2011/2012.

Fonte: www.conab.com.br (25/1/2012).Org.: Martha Esthela S. Silva

Os assentados produziram cerca de 440 toneladas de alimentos no decorrerde um de ano, com uma variedade de mais de 60 tipos de alimentos que foramdoados. Esses alimentos abastecem não somente a população de PresidenteVenceslau como a de alguns municípios ao seu entorno: as cidades de PresidenteEpitácio e Santo Anastácio também recebem doações dos alimentos produzidosno município de Presidente Venceslau.

O PAA tem atendido mais de 20 instituições, que recebem as doações. Nomunicípio de Presidente Venceslau, essas instituições são escolas municipais,creches, asilos, casa do menor, projetos sociais, orfanatos, associações, entidadesfilantrópicas e igrejas. As igrejas e as associações repassam os alimentos a famíliasem vulnerabilidade social. O impacto econômico passa a ser significativo nacidade, sendo injetados, no período de um ano, R$ 516.059,00 reais na economialocal, gerando uma receita maior para a cidade.

Os alimentos são entregues semanalmente. Os assentados levam sua produçãoà sede do assentamento, as associações fazem o controle da produção de cadaassentado, para posterior pagamento. A logística dos alimentos é feita pela

Assentamento Nº de Associações

Nº de Lotes

Nº de Produtores

Alimentos

(t)

R$

Radar 1 29 19 64,176 80.370,00

Tupanciretan 1 74 45 154,043 190.350,00

Primavera 2 124 53 135,422 135.359,80

São Camilo 1 35 26 87,907 109.980,00

Total 5 262 143 441,548 516.059,80

Page 244: retratos de assentamentos

244 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Prefeitura que leva os alimentos do campo para a cidade, onde é entregue àDivisão de Agricultura Abastecimento e Meio Ambiente. A doação dos alimentosé semanal e o controle da divisão é feito pelas entidades, que se auto-organizamtambém, fazendo a divisão de acordo com suas necessidades. O controle e aparticipação da sociedade civil nesse programa ocorrem em algumas partes doprocesso.

Um dos aspectos interessantes do programa é o controle social que os mesmotêm, reforçando a questão da auto-organização já existente no assentamentoque se efetivava com as Associações de Produtores Rurais (SILVA, 2011).

Os assentados passam a ser atores econômicos e políticos nas associaçõesde produtores, cooperando na sustentação da reforma agrária, as associaçõespassam a ser capazes de aumentar a renda dos assentados. No sentido de evitarequívocos de avaliação, centrando apenas no viés econômico das associações,deve-se pensar também nas relações de cooperação e emancipação que estapossibilita.

O associativismo pode ser entendido como um instrumento de luta dosassentados, proporcionando a permanência na terra, gerando uma resistênciasocial e econômica. A capacidade que as associações têm de inserir a pequenaprodução rural no circuito econômico traz ao assentado uma alternativa de vendade sua produção, podendo assim, lhe proporcionar uma melhor renda.

Este programa consegue estabelecer uma relação entre o campo e a cidade,que foi constatada nos trabalhos de campo para a realização desse estudo.Recolheu-se, sobre isso, o depoimento de um assentado que revela fatosinteressantes sobre o PAA, no que tange à relação campo e cidade:

O pessoal da cidade agora respeita a gente, pois estão vendo que a gentetrabalha mesmo, nossa produção está indo ajudar a quem precisa, o nossotrabalho está chegando na cidade, e matando a fome de muita gente, é otrabalho dos sem-terras. (Neném, assentado no P.A. Tupanciretan, 2010).

Esta frase elucida, da melhor maneira possível, a relação que o PAA promoveentre o campo e a cidade. A distribuição de produtos agropecuários paraentidades que, em geral, estão na área urbana dos municípios, traz um novoolhar da cidade para o homem do campo que é assentado. O mesmo que temsido vítima de preconceitos, agora coloca o fruto do seu trabalho, de formadireta e visível, para a cidade. Assim, alguns segmentos da sociedade acabampor constatar a importância da agricultura familiar e da reforma agrária, com um

Page 245: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 245

olhar mais curioso e talvez menos preconceituoso.Evidenciamos novos rearranjos sociais nos assentamentos, desde a paisagem

que aos poucos se diversifica com a produção, bem como com o trabalho dafamília assentada dentro do lote e, com isso, configurando novas relações sociaisna produção. Nas hortas, observamos, temos o trabalho feminino e o do jovemmuito presente.

O aumento dos recursos para o programa deve ampliar o acesso dosagricultores familiares a esta política, possibilitando chegar às famílias que passamfome os alimentos provindos da reforma agrária. O mesmo reforça ocompromisso de inclusão social, emancipação e autonomia dos produtores demodo não assistencialista. A fome é, também, um problema de acesso ao alimentoe o PAA representa uma mudança, ao comprar com preço justo e promover adistribuição para quem tem fome.

Considerações FinaisA supressão da Fome passa prioritariamente pela democratização da terra e

dos direitos a populações anteriormente destituídas, voltando a terra à sua funçãosocial. Assim, a erradicação da pobreza é inerente à Reforma Agrária e osmovimentos sociais são protagonistas neste processo de construção de novasterritorialidades.

O Programa de Aquisição de Alimentos traz parte da materialidade da reformaagrária para o espaço urbano. Isto tem tido desdobramentos favoráveis no campoe na cidade: o acesso a alimentos para quem tem fome e renda a quem precisa,gera importante destaque no desenvolvimento local.

O PAA contribui para a aproximação do Estado ao campo, mas coloca novosdesafios ao poder público: a demanda por assistência técnica, por exemplo,cresce e tem uma influência direta na qualidade e quantidade dos alimentos.Torna-se necessário a articulação de uma série de ações de apoio à agriculturafamiliar, oferta de alimentos e ampliação do acesso a terra.

Este programa é uma construção coletiva e sua efetivação ocorre comdiferentes sujeitos. Começa com a associação, que é a articulação dos assentadose com as entidades que receberam os produtos doados. As entidades por suavez se articulam internamente para o recebimento ou repasse dos alimentos. Asentidades de repasse transferem para a população carente os alimentos,retornando o ciclo da organização.

O programa se consolidou com uma alternativa para o escoamento daprodução dos assentamentos rurais e o combate à insegurança alimentar,

Page 246: retratos de assentamentos

246 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

reforçando a interdependência do campo e da cidade, sem sobreposições.Essa política coloca em evidência o papel da pequena agricultura, leva o

trabalho do campo para a cidade, que passa a enxergar de outra maneira oassentamento rural. A produção dos assentados materializa-se na cidade e ossujeitos urbanos, pautados pelos estigmas da velha aristocracia rural, entram emconflito com seus pensamentos, que podem ou não gerar uma nova síntese acercados sem-terra.

A produção da agricultura camponesa reascende no campo e traz novoselementos, ou traz novamente os velhos elementos que, de tão esquecidos,parecem que são novos: a cooperação, a valorização, a autonomia, a identidadee a humanização. O homem do campo, ao olhar seu lote, enxerga sua produçãocom diferentes cores e sabores. A agricultura pede passagem ao pasto e apaisagem volta a ser o "lugar" que antes era apenas saudades, saudades dotempo que se plantava de tudo no campo. Hoje se reconfigura em realidadeesse "lugar".

A "fome de reforma agrária" permanece viva em todos seus sentidos, nocampo e na cidade: uma dívida histórica para com os explorados que enxergamoutra possibilidade de vida e lutam pela concretizam da mesma.

Referências

CASTRO, J. Geografia da fome: o dilema brasileiro, Rio de Janeiro,FDE, 1952.

FERNANDES, B.M. et alli, "Inserção sócio-política e criminalização da lutapela terra: ocupações de terra e assentamentos rurais no Pontal doParanapanema - São Paulo". In: FERRANTE, V.L.S.B. et alii (orgs.)Dinâmicas familiar, produtiva e cultural nos assentamentos rurais deSão Paulo. Araraquara/Campinas/S. Paulo, EdUNIARA/FEAGRI/INCRA,2003.

FERRANTE, V.L.S.B.; SANTOS, I.P. Da terra nua ao prato cheio.Produção para consumo familiar nos assentamentos rurais do Estado de SãoPaulo. Araraquara, SP: Fundação ITESP/UNIARA, 2003.

FERRANTE, V.L.S.B.; BARONE, L.A. Assentamentos rurais: umaalternativa à geografia da fome. In: GALEAZZI, M.A.M. Segurança

Page 247: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 247

alimentar e cidadania: a contribuição das universidades paulistas. Campinas,Mercado das letras, 1996.

GALEAZZI, M.A.M. Segurança alimentar e cidadania: a contribuição dasuniversidades paulistas. Campinas, Mercado das letras, 1996.

GUANZIROLI, C., ROMEIRO, A., BUAINAIN, A. M., S, SABBATO, A.,BITTENCOURT, G. Agricultura familiar e reforma agrária no séculoXXI Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2001.

HESPANHOL, R.A.M. Mudança das políticas públicas para o campobrasileiro: o programa de aquisição de alimentos. Anais do X ColóquioInternacional de Geocrítica. Barcelona. 2008.

MATTEI, L. Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar(PAA) Antecedentes, Concepção e Composição geral do Programa.Cadernos do CEAM (UnB), v. 7, p. 33-44, 2007.

MARTINS, J.S. A militarização da questão agrária. São Paulo, Hucitec,1985.

OLIVEIRA, A.U.A Questão da Aquisição de Terras por Estrangeiros noBrasil - um retorno aos dossiês. Revista Agrária. São Paulo. Vol.12. P.03-311. 2010. Disponível em: <http://www.geografia.fflch.usp.br/revistaagraria/revistas/12/2Oliveira_AU.pdf> Acesso em: 15 abril. 2012.

SILVA, M.A.M. A Produção de Alimentos e Agrocombustíveis noContexto da Nova Divisão Mundial de Trabalho. Presidente Prudente.Vol. 9. p(63-80). 2008. Disponivel em: <www4.fct.unesp.br/ceget/.../04-9-1-MariaAparecidaMoraesSilva.pdf> Acesso e, 03 jan 2012.

_______________ Errantes do fim do Século. São Paulo: Ed. daUnesp,1996.

SILVA, M.E.S. Associativismo em Assentamentos Rurais: Resistência eAcomodação na Reforma Agrária. 2011. 126f. Bacharelado (Graduação emGeografia). Faculdade de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual

Page 248: retratos de assentamentos

248 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Paulista, Presidente Prudente, 2010.

SOUZA, J.G. La production d'agro-carburants au Brésil : Bio-essence ouNécro-essence?. Terre-à-Terre Portail Environnement - Canada,Montréal - Canada, 21 jul. 2008.Disponível em: <http://portailenvironnement.ca/agriculture/la-production-d%E2%80%99agro-carburants-au-bresil-bio-essence-ou-necro-essence/>. Capturado em 03 deabril de 2012.

SOUZA, J.G. A Geografia agrária e seus elementos de crítica sobre o avançodo capital monopolista no campo brasileiro. Canadian Journal of LatinAmerican and Caribbean Studies, v. 34, p. 147-176, 2010.

SOUZA, J. G. Limites do Território. Revista Agrária. São Paulo. Vol.10/11.P.99-130. 2009. Disponível em: <http://www.geografia.fflch.usp.br/revistaagraria/index.htm> Acesso em: 15 dez. 2011.

Sítios da internet consultados:

CONAB, disponível em: <www.conab.gov.br>. Acesso em 20 fev 2012.

Page 249: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 249

DESAFIOS PARA OSASSENTAMENTOS DE REFORMAAGRÁRIA: UMA PROPOSTA DEARRANJO VOLTADO PARAMERCADOS INSTITUCIONAIS1

Newton Narciso Gomes Junior2

Lavína D. Pessanha3

1O artigo foi objeto de apresentação oral no VI Simpósio NATRA 2011, UNESP/Franca/SP.2Professor Adjunto do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília epesquisador do Núcleo de Estudos Agrários (Neagri) CEAM/UnB, Coordenador Núcleode Estudos Agrários, Desenvolvimento e Segurança Alimentar PPGPS/UnB/[email protected] Adjunta e Pesquisadora da Escola Nacional Ciências Estatísticas-ENCE/IBGE,pesquisadora do Núcleo de Estudos Agrários (Neagri) CEAM/UnB, Pesquisadora do Núcleode Estudos Agrários, Desenvolvimento e Segurança Alimentar PPGPS/UnB/CNPq.laví[email protected].

Resumo: O artigo tem como objetivo discutir um arranjo de comercializaçãoque possa em alguma medida contribuir para melhorar o desempenho dacomercialização de alimentos a partir da produção em assentamentos de reformaagrária. Assumido que a comercialização e a desarticulação da produçãorepresentam uma mistura letal ao sucesso dos assentamentos, o artigo sugerecomo objetivo de uma produção balizada pelas reais necessidades do mercadoa separação de quem produz de quem irá se encarregar de vender a produção.Para isso, a criação de uma empresa comercial convencional especializada nosmercados institucionais de alimentos e mercados varejistas regionais é apresentadacomo uma das possíveis soluções para reverter o quadro de penúria que dominaos assentamentos em todo o país.

Palavras-chave: Assentamentos de Reforma Agrária; Mercado Institucionalde Alimentos; Mercado Varejista Regional; PAA; Compra Direta; FNDE.

Page 250: retratos de assentamentos

250 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Abstract: This article aims to discuss a marketing arrangement that cancontribute in some measure to improve the performance of the marketingof food from production in agrarian reform settlements. Assumed that thedislocation of production and marketing are a lethal mixture to the successof settlement, the article suggests as a goal of producing mapped out by thereal market needs of those who produce the separation of who will takecharge of selling the output.

Keywords: Agrarian Reform, Settlements, Trade, Food Production.

IntroduçãoDentre os muitos problemas que acompanham o cotidiano dos agricultores

familiares dos assentamentos de reforma agrária, as dificuldades com acomercialização da produção figuram entre os de maior impacto sobre osrequerimentos para a manutenção da família na terra recém conquistada.

A partir de meados dos anos 1990, com a implantação do Pronaf comomecanismo de crédito para a agricultura familiar (AF) e os programas que a elese somaram a partir do Programa Fome Zero de 2003 tais como o Programa deAquisição de Alimentos (PAA), as compras diretas que permitiram que osmunicípios adquirissem alimentos diretamente dos produtores familiares para acomposição da alimentação escolar e programas assistenciais, são iniciativasque sem dúvida representaram um alento de oportunidades para a agriculturafamiliar.

Na linha de ampliação da participação da produção de alimentos oriundosda AF uma resolução de 2009 publicada pelo Fundo Nacional deDesenvolvimento da Alimentação Escolar (FNDE) estabeleceu que pelo menos30% do volume dos alimentos a serem utilizados na produção das refeições nasescolas, deveriam proceder da unidades de produção familiares.

Contudo, quando a intenção contida nas iniciativas governamentais seencaminha para a sua consecução, ou seja, quando os produtores são chamadosa efetivamente participar dos certames de compra para a alimentação escolar, afragilidade da organização do segmento, especialmente daqueles produtoreslocalizados nos assentamentos de reforma agrária, funciona como uma barreiraintransponível, oferecendo justificativa para as prefeituras optarem pelamanutenção de seus esquemas tradicionais de compras no mercado.

Para a absoluta maioria dos assentados o acesso à terra é o início da realizaçãode um sonho que começou quase sempre num passado de privações e

Page 251: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 251

desproteção. Assim, assumir a propriedade e dela tirar seu sustento significapara cada família a condição básica para mudar o sentido da vida. Logo, abusca que anima o cotidiano desses atores, não é outra senão alcançar umaestabilidade econômica e uma autonomia que lhes permitam dar curso aos seusplanos mais ambiciosos.

Nesse artigo a proposta é discutir um tipo de arranjo que possa oferecer umaopção para alterar o cenário de fragilidade e dependência que predomina nosassentamentos de reforma agrária. Assim, nosso ponto de partida é a assunçãode que tal possibilidade somente será possível a partir de um arranjo que sebaseie nos pressupostos do mercado e da profissionalização das atividadescomerciais.

A partir de uma combinação do que definimos como arranjo solidário paradentro e empresa comercial convencional para fora, o artigo propõe a organizaçãode um conjunto de assentamentos de uma mesma região para produzir voltadopara a demanda dos mercados institucionais e regionais, nos primeiros tendocomo objetivo a alimentação escolar e na vertente privada, a ocupação de espaçocom a comercialização de produtos com identidade regional.

Por se tratar de um arranjo que tem como meta o mercado, os conteúdoscomuns da economia solidária aqui se apresentam com força limitada e aplicadaexclusivamente na organização da produção agrícola do assentamento. Como oobjetivo final é melhorar o desempenho da comercialização da produção e comisso remunerar adequadamente os agricultores envolvidos, as relações quedeverão se desenvolver com a empresa à jusante do processo em nada diferirádaquelas presentes nos negócios com a iniciativa privada. Assim, a construçãoda autonomia dos produtores deverá ser resultado de uma combinação dodomínio de informações do mercado, planejamento e eficiência da produção.

Um arranjo misto para a produção e comercialização de alimentos nomercado institucional de alimentos

O momento de encontro com a realidade para os assentados da reformaagrária pode para muitos não significar exatamente a realização do sonho queembalou a luta pela terra.

Enquanto na realidade do acampamento as ações coletivas tinham força emfunção do domínio da urgência que instabiliza a vida de quem enfrenta uma totalprivação de direitos e está exposto ao desabrigo de qualquer proteção social,no momento em que cada família se instala na parcela que lhe caberá dali parafrente esse cenário, pelo menos no imaginário social, se altera.

Page 252: retratos de assentamentos

252 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Na raiz do processo de luta pela terra está a busca pelas condições que pelosenso comum asseguram um sentido para a vida. Se no espaço urbano essascondições de apresentam bi-partidas na forma da casa própria e trabalho comcarteira assinada, no campo ela se realiza na posse de um pedaço de terra,titulado de sorte que nada ou ninguém, em tese, possa tomá-lo de volta. Emambos os casos, o tema da propriedade privada se antecipa á realização dosdemais sonhos. Nada há de surpreendente nisso, posto que as histórias de vidadas pessoas no Brasil e de resto na maior parte do mundo se desenrolam nosmarcos das relações capitalistas onde propriedade dos meios de produção, lucroe dinheiro figuram como componentes básicos para que as mesmas tenhamsentido.

Destarte, impulsionados por essa compreensão, os novos produtores ruraistendem a se movimentar com os recursos de que dispõem para consolidar suasituação, inicialmente a partir de uma ação simbólica traduzida pela construçãoda cerca que delimita a propriedade para em seguida iniciar o trabalho na terrade modo a prover a família e obter produtos para a venda no mercado.

A necessidade de produzir e comercializar a produção logo mostra-se umdesafio muito além das limitações que esses novos proprietários enfrentam. Dasdimensões da propriedade à degradação dos solos - fator comum nas áreaspara assentamento -, da inexistência de assistência técnica ás restrições do crédito,do desconhecimento do mercado á necessidade urgente de assegurar meiospara a sobrevivência, tudo isso contribui para que entre o sonho e a sua realizaçãose imponha uma distância oceânica que reforça a precariedade da vida dessesprodutores rurais.

Premidos por um leque de restrições, se sujeitando a descarregar a qualquerpreço seus produtos no mercado, amargando perdas significativas na medidaem que quase todos produzem as mesmas coisas que, por sua vez, pertencemao grupo de produtos cuja oferta é abundante, as consequências que advém sãodevastadoras. Da situação de miseráveis e sem-terra passam à condição depobres, com terra, mas, ainda assim, sujeitos às mesmas precariedades da vida.

Mas, como bem nota Santos (2005), essa condição hegemônica das relaçõesde produção capitalista não se interrompe, uma vez que esse modo de produçãonão dá conta de contemplar toda população economicamente ativa, que sedesenvolva concomitantemente a outros modos de produção.

As formas cooperadas de organização da produção têm um histórico secularno campo do desenvolvimento da economia popular que, segundo Arroyo (2006)se organiza com base no atendimento das demandas imediatas da população em

Page 253: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 253

um espaço determinado. O mesmo autor aponta para o trinômio metodológico:crédito, organização e formação, como condição primordial para queempreendimentos dessa natureza prosperem. Ainda para Arroyo (2006), aeconomia popular solidária se substantiva a partir de um arranjo coletivo entrepessoas voltado para a constituição de um empreendimento e um arranjo dessesempreendimentos de modo a emular-lhes a competitividade.

De acordo com o ponto de vista de Gadotti (2001) a economia popularsolidária representa uma novas opção de vida na medida em que se assenta emoutro modo de produção que sinaliza para um novo projeto de sociedade e devalores com os quais rentabilidade e lucro perdem relevância.

Por seu turno, Gutierrez (2001) pondera que a tendência a de tomar essesarranjos solidários como contribuições à democratização econômica e à geraçãode emprego tende a desconsiderar que essas iniciativas, quando emuladas porsetores externos á realidade onde atuam e vivem os atores econômicos podemservir para amortecer contradições políticas, transferir responsabilidades e custospara os cooperados solidários além de justificar a situação de desproteção socialcomum nos experimentos de empreendedorismo.

A advertência que faz Gutierrez (2001) ganha particular significância quandoo objeto de intervenção é o do assentamento de reforma agrária. Além dascontradições que foram aqui destacadas o conflito de interesses no governo –de um lado a pressão do setor do agronegócio e seus representantes e de outroos que se alinham em defesa da reforma agrária e da agricultura familiar –representa um caldo de cultura muito rico para o surgimento de alternativas quereduzam as pressões sociais sobre os Ministérios envolvidos com a questão daprodução e agrária.

Nessa estratégia, os arranjos de economia solidária têm relevância na medidaem que sinalizam para o imaginário social que essa organização pode fazer adiferença entre o sucesso e a volta para a condição de precariedade anterior.

No debate de experiências de economia solidária promovido pela FundaçãoBanco do Brasil em 2009, Streit chamava a atenção para o que considera umdos principais gargalos para o desenvolvimento dessas iniciativas. A baixa ofertade crédito bancário para suprimento das necessidades de capital de giro e outrasdespesas em razão de a maioria das instituições financeiras considerarem ascooperativas nascidas sob o regime solidário como projetos sociais e nãoempreendimentos econômicos.

Em função da sistemática de avaliação de riscos adotada pela maioria dosbancos, que não considera os requerimentos básicos para a sustentabilidade

Page 254: retratos de assentamentos

254 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

desses arranjos, a inexistência de prazos de carência que protejam a consecuçãodo primeiro ciclo produtivo obrigando o pagamento das parcelas dofinanciamento logo no mês seguinte à assinatura do contrato de crédito, amanutenção de taxas de juros altas para capital de giro e a exigência de garantiasreais por parte dos solicitantes do empréstimo, têm sido os fatores que explicamnão só a existência de poucos empreendimentos de natureza solidária como,também, o alarmante número de insucessos dessas iniciativas (STREIT, 2009).

Para Gomes (2009) além dos problemas relacionados com as restrições decrédito e precariedade da assistência técnica há ainda um duplo risco relacionadocom o processo de comercialização que contribui para a instabilidade deempreendimentos sejam eles de natureza solidária ou, simples associaçõesinformais montadas diante da possibilidade de uma oportunidade de negócios.Esse risco refere-se á realização concomitante de duas atividades complexas eque exigem, cada uma delas, especialização e atenção para desenvolve-las. Emoutras palavras, Gomes chama a atenção para o fato de que aquele que estáenvolvido com a produção dificilmente terá êxito se tentar comercializá-la. Osriscos no mercado em função das variações dos preços ao longo do processode comercialização pode muitas vezes determinar a necessidade de vendas rápidassob cotações desfavoráveis como forma de barrar ou minimizar prejuízos.

Os elementos aqui destacados- o tema poderia ser ampliado com muitasoutras situações contenciosas- cumprem o papel de questionar a possibilidadede uma organização que ao mesmo tempo em que fortalecesse a idéia decooperação entre assentados de sorte a dar escala para a produção e reduzircustos por intermédio de compras coletivas de insumos, contratação de máquinas,assistência técnica usando para tanto, de modo mais racional os recursos dePronaf oferecidos pela ação do Governo encontrasse como contrapartida umempreendimento econômico que voltado inicialmente para um mercado de baixorisco, conseguisse construir a autonomia dos agricultores envolvidos.

Um arranjo de comercialização peculiarJá nos referimos aqui á resolução do FNDE que assegura que pelo menos

30% das compras para a alimentação escolar das escolas públicas sejamrealizadas a partir da produção da agricultura familiar.

O mercado institucional de alimentos(MIA) representa uma das opções maisseguras para se comercializar a produção com o menor risco possível. Os recursospara as compras da alimentação escolar, por exemplo, são transferidos pelogoverno federal para os municípios e esses se sujeitam ao conjunto de regras e

Page 255: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 255

recomendações seja quanto o uso do dinheiro público seja no que toca áconstituição nutricional do cardápio a partir do emprego de alimentosrecomendados pelo FNDE.

Há que se considerar, ainda, que as compras quando realizadas, a considerara quantidade de alunos matriculados em toda a rede pública de um municípioultrapassam os limites definidos pela Lei 8.666 que regulamenta as aquisições edefine regras para os certames de compra no poder público Logo, as comprasdo mercado institucional de alimentos para a alimentação escolar, à parte do quepode ser feito pela via direta garantida pelo Programa de Aquisição deAlimentos(PAA) que assegura recursos no valor de até R$3.500,00 por anopor produtor familiar fornecedor da prefeitura, são feitas pela via da licitaçãopública baseada em edital publicado para esse fim.

A partir dessas rotinas, qualquer empresa ou associação de produtores quepretenda participar desses certames, além da documentação requerida para ocredenciamento junto ao poder público na condição de fornecedor necessitareunir as condições objetivas para, caso vença a licitação, assegurar ofornecimento dos itens contratados.

Se tomados esses pressupostos iniciais – a regularidade das comprasinstitucionais e as garantias de pagamentos e os requerimentos necessários parauma empresa ou indivíduo participar dos certames na condição de fornecedorpara o setor público – o passo inicial para orientar qualquer decisão entre osprodutores rurais quanto ao que fazer se inicia com o histórico dos editais domunicípio e a realidade da alimentação escolar.

No que toca ao primeiro requisito a intenção é dispor de informações sobrea pauta de compras, as quantidades e formas de entrega além das modalidadesde pagamento e os demais itens, na qual, direitos e obrigações se encontramespecificados. O conhecimento do histórico das compras permite ainda umconhecimento do perfil dos fornecedores o que poder ser útil na hora de sedecidir quanto a "entrar no jogo".

Mas, é do segundo ponto que advém as informações mais significativas. Aose conhecer a realidade da alimentação escolar local entra-se em contato com arealidade, a começar pelas instalações nas escolas, se a produção da alimentaçãoé de responsabilidade do poder público ou de terceiros, se os conselhos dasescolas opinam sobre a qualidade da merenda ou refeição, se os cardápiosadotam gêneros in natura ou processados, etc.

Assim, no processo de construção de qualquer arranjo de produção ecomercialização envolvendo agricultores familiares assentados o momento inicial

Page 256: retratos de assentamentos

256 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

deve ser representado por diagnóstico da realidade do mercado institucional dealimentos que deve contemplar pelo menos os seguintes itens:

a) Histórico dos editais de compra de alimentos para a alimentação escolarcom foco em variedades de produtos e quantidades respectivas, formas deentregas e pagamentos, valores envolvidos, documentação requerida, etc.

b) Radiografia da estrutura operacional do programa de alimentação escolarenvolvendo instalações e equipamentos, mão de obra, existência de reclamaçõese demandas não atendidas.

c) Cotejamento dessas informações com a realidade da produção ou potencialda produção local e as possibilidades de ajustá-lo a uma futura demanda.

Deste modo a equação de organização que normalmente começa a sermontada a partir da intenção de produzir coletivamente como forma de resistência,ganha um novo contorno. À idéia de se associar junta-se, como condicionante,a proposição:cooperar para quê?

Se o objetivo é produzir para o mercado institucional pressupõe-se que cadaprodutor deverá abrir mão das suas opções individuais quanto ao planejamentoda produção e se ajustar a um plano voltado para as necessidades daquelemercado particular. Logo, a equação de produção sofre aqui uma inversão, namedida em que as determinações para a sua composição nascem no plano externoda propriedade, ou seja, quem passa a determinar a composição da produção éo mercado que se pretende atingir.

Note-se, contudo, que esse arranjo embora se apresente subordinado aomercado, por se destinar á versão institucional desse espaço de trocas se beneficiada existência de um conhecimento prévio da composição da demanda, seja notocante às quantidades seja em relação á pauta de produtos, que são previamentedeterminados a partir das recomendações do FNDE e das práticas alimentareslocais.

Não obstante o "conforto" que o conhecimento antecipado da demanda possarepresentar para a planificação da produção prevalecem contenciosos relevantestais como a necessidade de equacionar a relação entre produzir e comercializar,os espaços de disputa no interior das prefeituras que influem na construção doseditais e suas regras, etc.

Antes de prosseguirmos é preciso alertar que a solução proposta a seguirnão tem como objetivo a solução imediata dos problemas existentes hojeenvolvendo a produção e a comercialização de alimentos a partir dosassentamentos de reforma agrária. Trata-se aqui de uma proposição que obedecetodos os ritos convencionais do mundo dos negócios, portanto, os pressupostos

Page 257: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 257

são os do mercado e nada mais. A vertente solidária da proposta não representauma alternativa ao modo de produção vigente. Apenas, de modo pragmático,ela destina-se a aproveitar os componentes organizativos e explorar aspossibilidades existentes envolvendo desde a concessão de crédito, assistênciatécnica até as vantagens mercadológicas presentes nas mercadorias resultantesde arranjos solidários.

Nosso ponto de partida é a incubação de uma empresa comercial tradicionalque se especialize na atuação em mercados institucionais. São inúmeras aspossibilidades para esse tipo de empreendimento, desde o estabelecimento deparcerias com universidades públicas e centros de desenvolvimento tecnológicodessas instituições até o SEBRAE.

O envolvimento dos produtores com essa fase deve se dar a partir da seleçãoentre todos de indivíduos que já tenham tido experiências comerciais ou querevelem habilidades para o exercício desse mister.

Um programa de qualificação formal dos selecionados oferecerá osinstrumentos necessários para qualificar a intervenção no plano do mercadoinstitucional de alimentos e envolverá desde o conhecimento da legislação,procedimentos contábeis, elaboração de propostas, conhecimentos sobre ofuncionamento da máquina pública, enfim, todos os elementos com os quaistrabalham as empresas. Como corolário dessa demanda está o total desvinculaçãodesse operador das atividades na propriedade da família; a condição de pluriativonesse contexto parece ser a mais recomendada como forma de reduzir o ritmode estiolamento dos vínculos deste com a atividade rural. Essa preocupação seexplica pela natureza da relação desse agente com a empresa. Como qualquerempreendimento as relações de trabalho serão mediadas pela legislação vigente,o que significa que todos ali serão regidos pela CLT sejam ocupantes de cargosde direção ou qualquer outro. Portanto, no horizonte desse indivíduo estarásempre a possibilidade da sua desvinculação e, por conseguinte sua volta paraas lides rurais na propriedade da família.

O pressuposto aqui é de que o controle da empresa se exerça partir de umconselho administrativo composto pelos produtores que participam do arranjodois representantes da empresa e um número de conselheiros externos escolhidosa partir das relações com o empreendimento. O determinante na composiçãodo conselho de administração é que a maioria dos votos só possa ser alcançadaem decorrência de um acordo entre os distintos segmentos ali representados.

A incubação da empresa é o primeiro movimento do arranjo proposto. Isso,contudo, não implica no adiamento da organização solidária visando a produção

Page 258: retratos de assentamentos

258 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

agrícola. O desafio nesse caso é, primeiramente identificar e quebrar asresistências eventualmente presentes entre os produtores do assentamento.

Já nos referimos anteriormente às transformações que se operam na percepçãode cada assentado no momento em que se consolida sua situação de proprietáriorural. Nessa condição a idéia de sobrevivência passa pela identificação dosdemais como concorrentes que precisam ser superados, a única forma de garantiros meios necessários à provisão da família e seu desenvolvimento a partir deuma melhor posição no mercado.

Desse modo, uma proposição que parta da idéia de que cada integrante doarranjo deva aceitar organizar sua atividade a partir de uma combinação préviaque determine que cada um se dedique a produzir um determinado elenco deprodutos em detrimento à situação anterior onde cada um decidia o que fazer,certamente deverá enfrentar resistências.

Nesse ponto a organização solidária pode ser o melhor caminho para contornaressas dificuldades. Contudo, esse trabalho difere de outras ações comuns nosexperimentos de economia solidária na medida em que a organização não é umaemergência que signifique a diferença entre obter os meios para a sobrevivênciaou passar aquele dia á míngua. Nosso pressuposto é de que, pelo menos no quetoca á alimentação, cada agricultor envolvido tenha isso equacionado.

Mesmo com as sucessivas melhoras que a legislação brasileira que rege acriação de cooperativas experimentou ao longo dos anos ainda persistemexigências que para a maioria das iniciativas de associação pesam como restriçãopara que se transformem em cooperativas.

Na maioria dos assentamentos a exigência de um mínimo de vinte associados,por exemplo, para ingressar com a solicitação para a formação de umacooperativa representa uma dificuldade exatamente pelas dificuldades de seconstruir um consenso em razão das expectativas individuais desses agricultores.

Portanto, o arranjo solidário que melhor se encaixa nesse empreendimentodeve ser a constituição de uma associação formal de produtores familiares quepossa desenvolver algumas atividades planejadas como contratação de serviçosde máquinas , compra conjunta de insumos para obter redução de preços viaescala e iniciar uma aproximação de uma produção planejada, inicialmente voltadapara as trocas internas no grupo e comercialização de excedentes em espaçospúblicos sob a forma de feira do produtor de realização semanal.

A opção por esse tipo de alternativa bastante desgastada em razão de revezessofridos nos anos 1980 quando na retomada da democratização do país surgirammuitas dessas opções assentadas na falsa idéia de que a redução de preços,

Page 259: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 259

grande desafio num período dominado pela inflação, poderia advir de iniciativasdo tipo do produtor para o consumidor, compras coletivas no atacado entreoutras, tem um caráter pedagógico no sentido de reconstruir uma mentalidadeassociativista sacrificada além de influir no imaginário social da população locala partir da idéia de que os alimentos provenientes desse arranjo, são confiáveis.

Em razão do crescimento da demanda por produtos orgânicos pode serinterpretado como um sinal importante de mudanças de comportamento doconsumidor. Uma interpretação possível para essa tendência reside no crescimentoda insegurança da sociedade em relação á qualidade da comida que consome.O filão dos orgânicos se sustenta na comercialização de produtos que pelasegurança de sua qualidade são oferecidos por preços quase proibitivos para amaioria da população. Contudo, a razão para que alguns se disponham a pagarmais por alimentos cujo diferencial único seria a garantia de que na sua produçãonão se empregaram substâncias que interferiram no desenvolvimento daqueleproduto pode ser traduzida como uma busca do consumidor por uma identidadecom quem produz a comida que aqueles compram.

A retomada da produção associada com vistas á comercialização dosexcedentes no mercado tradicional embute essa mesma vantagem dos orgânicosna medida em que o fato daqueles produtos que estão sendo ofertados na feirasão os mesmos que aqueles produtores consomem no seu dia a dia, logo, devemser seguros.

O corolário dessa alternativa é a construção de uma identidade para osprodutos da agricultura familiar calcada na idéia de que se quem produz consomenão pode ser nocivo. A extensão dessa compreensão é direta. Se a alimentaçãoescolar contar com produtos provenientes da agricultura familiar o entendimentodo senso comum é de que seus filhos que frequentam as escolas públicas contarãocom uma alimentação saudável e segura.

Se essa possibilidade de constituição de uma associação informal deprodutores pode representar uma preparação para um futuro associado áprodução a ser entregue à empresa de comercialização montada à jusante doprocesso, persiste, já desde o início o problema do crédito. Ainda que cadasócio informal possa ter acesso às linhas do Pronaf, como a responsabilidadepelo pagamento do empréstimo nesses casos é individual, nada há que "amarre"o compromisso de produção cooperada se, por exemplo, uma opção imediatade melhor preço for oferecida para os produtos de um determinado produtor.

Para Gilmar Carneiro (2009), trata-se de um equívoco imaginar que aquelesque se envolvem com arranjos solidários o fazem movidos pelo voluntarismo ou

Page 260: retratos de assentamentos

260 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

trabalho social. Por se tratar de uma opção que se opõe aos limites que assaídas individuais representam para aqueles cujos projetos de desenvolvimentose dão sob o signo da precariedade, quando os indivíduos se envolvem com aeconomia solidária o objetivo que deve move-los é a busca de resultados quelhes assegurem renda e estabilidade. Assim, a alternativa que se apresenta paracontornar a informalidade de uma associação que se sustente nas possibilidadesde trocas internas e comercialização de excedentes tal como sugerido emparágrafos anteriores é, a partir do amadurecimento da experiência de produçãosolidária informal, a constituição de uma empresa de produção associada a umaincubadora.

A idéia é que essa empresa de produção solidária (EPS) possa captar créditojunto às instituições bancárias que operem com linhas solidárias, contratar serviçosde máquinas e assistência técnica de sorte a viabilizar uma produção planejada eadequada ás necessidades do mercado institucional de alimentos e centralizar oprocesso de comercialização atacadista dessa produção de sorte que uma empresacomercial que pretenda aproveitar a possibilidade oferecida pela determinaçãogovernamental de que pelo menos 30% das compras da alimentação escolar tenhaorigem na agricultura familiar, encontre num único agente vendedor a possibilidadede compro sua pauta de produtos para disputar licitações no MIA.

Cabe observar que nessa composição da EPS fica respeitada a noção deque produção e comercialização devam ser atividades separadas. Acomercialização da produção fica por conta do setor comercial da empresa quena sua incubação obedeceu ao mesmo pressuposto da empresa voltada para omercado, de profissionalizar as atividades de gestão.

ConclusãoO desenho aqui proposto foge dos arranjos tradicionais na medida em que

se apresenta bi-partido, na forma de duas empresas que se complementam,mas, que são totalmente independentes nas suas operações. Enquanto uma resultade um processo de amadurecimento de iniciativas solidárias informais deprodutores que evoluiu para um arranjo que denominamos EPS, voltado para aprodução e a comercialização atacadista sob contrato de compra, a outra já seconstitui como uma empresa comercial convencional com foco dirigido para omercado institucional de alimentos a partir das garantias que uma carteira defornecedores representados por agricultores familiares associados oferece.

Se a EPS tem uma natureza econômica e social traduzida pela geração derenda e a construção da estabilidade do conjunto de envolvidos a partir de

Page 261: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 261

práticas solidárias, a outra ponta da linha se insere no campo empresarialconvencional, mas, o faz a partir de uma vantagem competitiva representadapela sua ligação com a EPS o que significa a garantia de que a sua mercadoriaoferecida vai ao encontro da exigência para a disputa de 30% do volume dascompras do MIA para a alimentação escolar.

Podem, ainda, serem identificadas outras vantagens decorrentes desse arranjo.A primeira delas sem dúvida é representada pela possibilidade de construção deuma identidade para os produtos resultantes desse arranjo solidário com omercado de consumo tradicional. A idéia de as mercadorias produzidas na regiãoobedecem na sua produção os ritos tradicionais cultivados na agricultura familiar,pode influir no imaginário social criando uma cumplicidade que fomente apreferência pelo consumo de produtos de origem conhecida.

Essa possibilidade representa na medida em que se expanda para centros deconsumo maiores, tanto no que toca á alimentação escolar quanto á oferta nomercado tradicional de alimentos, um fator de resistência aos processos de"standardização" dos padrões alimentares que vêm contribuindo para oagravamento do quadro de insegurança alimentar.

Do ponto de vista dos assentamentos de reforma agrária, o êxito desse tipode construção pode significar no médio prazo a redução significativa de riscosde insucessos que determinem a volta das famílias para a condição de sem terras,além de diminuir a dependência de programas assistenciais de governo e afastarde vez os fatores de precariedade que fazem desses produtores um expressivocontingente de mão-de-obra de reserva no campo.

Como ficou assinalado ao longo dessa reflexão, a proposição apresentadadistancia-se daquelas que têm como foco a questão social no campo. Nossaintenção aqui é intervir numa situação criada a partir dos assentamentos de modoa viabilizar econômica e financeiramente esses agricultores de modo a integra-los efetivamente no mercado que, afinal, é o objetivo que move cada um delesna sua luta pela sobrevivência.

Referências

ARROYO, João Cláudio Tupinambá. Economia Popular e Solidária: aalavanca para o desenvolvimento sustentável e solidário. Coleção BrasilUrgente, 1ºedição, São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.

CARNEIRO, Gilmar. O crédito como instrumento para a solidariedade. In:

Page 262: retratos de assentamentos

262 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

MELLO, C. et al. (Org.). Geração de Trabalho e Renda. São Paulo:Fundação Banco do Brasil/Publisher, 2009.

GADOTTI, Moacir. Educação Comunitária e Economia Popular. In:GADOTTI, M.; GUTIERREZ, F.(Orgs.). Educação Comunitária eEconomia Popular. São Paulo: Cortez 2001.

GOMES JÚNIOR, Newton N. A difícil arte de comercializar. In: MELLO, C.et al. (Orgs.) Geração de Trabalho e Renda. São Paulo: Fundação Bancodo Brasil/Publisher, 2009.

GUTIERREZ, Francisco. Educação Comunitária e Desenvolvimento PolíticoIn: GADOTTI, M.; GUTIERREZ, F. (Orgs.) Educação Comunitária eEconomia Popular. São Paulo: Cortez 2001.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Produzir para viver: os caminhos daprodução não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.

STREIT, Jorge. O gargalo da baixa oferta de crédito para osempreendimentos econômicos solidários. In: MELLO, C. et al. (Org.)Geração de Trabalho e Renda. São Paulo: Fundação Banco do Brasil/Publisher, 2009.

Page 263: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 263

AVALIAÇÃO DA ADERÊNCIA ÀAGROECOLOGIA NOASSENTAMENTO 23 DE MAIO,ITAPETININGA-SP

Ricardo Serra Borsatto1

Maristela Simões do Carmo2

Sonia Maria Pessoa Pereira Bergamasco3

Anderson Antonio da Silva4

Francine de Camargo Procopio5

1Professor Associado da FATEC – Itapetininga, Doutor na Área de Planejamento eDesenvolvimento Rural Sustentável ([email protected]).2Professora do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Agrícola da UniversidadeEstadual de Campinas (UNICAMP) ([email protected]).3Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Agrícola da UniversidadeEstadual de Campinas (UNICAMP), Livre Docente, bolsista Produtividade CNPq([email protected]).4Professor Assistente II da Fatec – Presidente Prudente, Doutorando da Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas da USP ([email protected]).5Tecnóloga em Agronegócio ([email protected]).

Resumo: O presente trabalho teve como objetivo avaliar como os agricultoresdo assentamento 23 de Maio (Itapetininga-SP) vêm se apropriando do discursodifundido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) queincentiva a adoção de práticas agroecológicas dentro dos assentamentos rurais.Para tanto foi utilizado o Sistema de Avaliação de Aderência à Agroecologia(SAAGRO), idealizado para esta pesquisa, que se caracteriza por ser umametodologia capaz de efetuar avaliações sócio-ambientais em assentamentosrurais e, concomitantemente, apoiar os agricultores em sua transição rumo àconstrução de territórios mais sustentáveis. Os resultados de sua aplicaçãodemonstraram que, no caso do 23 de maio, houve uma Moderada Aderência,sendo necessárias ações para a melhoria dos indicadores. A metodologia permitiua elaboração de uma lista com propostas de intervenções que auxiliaram os

Page 264: retratos de assentamentos

264 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

assentados no planejamento de suas ações.

Palavras-chave: Agroecologia; Assentamentos Rurais; MST; IndicadoresSócio-Ambientais.

Abstract: The purpose of this paper is to examine adaptation strategiesthat have been adopted by farmers of the 23 de Maio Settlement, located inItapetininga (SP), in order to meet the goals and principles of the LandlessRural Workers Movement (MST) discourse which promotes theimplementation of agroecological practices in rural settlements. This studyapplied a conceptual model for participatory evaluation, namely theEvaluation System of the Adherence to Agroecology (SAAGRO), which wasdesigned to conduct this research, characterized by a methodologicalapproach for evaluating social and socio-environmental aspects in ruralsettlements, and was likewise aimed at supporting those farmers in theprocess of transition towards sustainability and the sustainable developmentof rural areas. The results showed that in the case of the 23 de MaioSettlement there was a moderate adherence to the principles, which requiresessential actions to improve the indicators. The methodology allowed forthe creation of a list of proposals for interventions designed to assist settlersto develop and implement their action plans.

Keywords: Agroecology; Rural Settlements; MST; Socio-environmentalIndicators.

IntroduçãoAtualmente no rural brasileiro estão em disputa duas visões antagônicas de

desenvolvimento: a primeira comumente chamada de agronegócio, cujaspremissas baseiam-se no consumo intensivo de bens de origem industrial para aprodução agropecuária, e a segunda denominada de visão agroecológica que,ao inverso da primeira, preconiza a utilização de recursos autóctones pelosagricultores.

Esse antagonismo não se estabelece sem motivos, visto que a opção por um,ou outro caminho, repercute em diferentes âmbitos da sociedade; seja nos setoresindustriais de produção de insumos agrícolas e de alimentos, seja na dimensãoambiental, ou na segurança e soberania alimentar das populações e, até mesmo,no padrão de consumo da sociedade.

Page 265: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 265

É certo que o modelo aqui denominado de agronegócio ainda é hegemônicona realidade rural brasileira, porém, por outro lado, é perceptível um crescentequestionamento de seus princípios.

Dessa percepção dos problemas sócio-ambientais ocasionados por essemodelo dominante, alguns grupos sociais passaram a internalizar outros valorese princípios epistemológicos que se refletem na construção de uma novaracionalidade produtiva para o campo, edificada sobre bases de sustentabilidadeecológica e equidade social.

Um desses grupos, de marcante relevância no cenário rural brasileiro, quepassou a introspectar essa nova racionalidade, é o Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem Terra (MST). Nas últimas décadas esse Movimento tem migradode um discurso que se baseava na mesma lógica produtiva do agronegócio paraoutro mais aderente à visão agroecológica, passando a incorporar, ao centro deseu ideário, conceitos como o de respeito e resgate da agricultura camponesa,modelos de produção mais sustentáveis, além de outras diretrizes da Agroecologia.

Apesar de ser perceptível a existência de várias experiências agroecológicasem seus assentamentos, o MST ainda não possui uma metodologia capaz deobservar a eficácia da adoção dessa macro diretriz. Com base nesse problema,o presente artigo apresenta os resultados da aplicação do Sistema de Avaliaçãode Aderência à Agroecologia (SAAGRO) no assentamento 23 de Maio(Itapetininga-SP). Essa metodologia foi desenvolvida por Borsatto (2011) e temo intuito de avaliar como o discurso agroecológico adotado pelo MST tem sematerializado dentro dos assentamentos rurais.

A Agroecologia no MSTEm meados da década de 1990, com a crise e o questionamento da proposta

de coletivização levada a cabo até então pelo MST, abriu-se espaço para novasdiscussões e avaliações, que culminaram na elaboração de outras orientaçõespolíticas. Nesse novo contexto, o debate sobre a Agroecologia (mesmo aindanão estando bem claro o que este termo significava) começou a ganhar relevâncianos espaços internos do Movimento (BARCELLOS, 2010; BORGES 2010).

Isso pode ser verificado na Proposta de Reforma Agrária do MST de 1995(MST, 2005), na qual o questionamento ao modelo preconizado anteriormente,com forte viés produtivista, começou a sofrer críticas. E mais do que isso, foramelaboradas propostas para a construção de um novo modelo produtivo para osassentamentos.

Picolotto e Piccin (2008) creditam essa mudança de rumo das orientações

Page 266: retratos de assentamentos

266 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

políticas do MST a três fatores: a) a reforma neoliberal do Estado brasileiro quepôs fim às políticas setoriais, de preços mínimos e abriu os mercados; b) o fimdo Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária (PROCERA) em1999; e, c) a formação da Via Campesina.

Segundo os autores, os dois primeiros fatores dificultaram a continuidadedas estratégias produtivas até então desenvolvidas pelo Movimento, enquanto oterceiro ampliou o leque de relações institucionais do MST, colocando as suaslideranças em contato com outros movimentos sociais internacionais que já haviamincorporado a questão ambiental em sua pauta.

Deste modo o MST passou a introspectar novos referenciais, ampliando oseu discurso sobre a questão agrária e sua gama de reivindicações.

A partir de seu IV Congresso Nacional realizado em 2000, o MST, trouxepara o centro de seus debates a discussão sobre a organização dos assentamentos.Isto ocorreu devido à percepção de que era necessário aprimorar o modelo deassentamento realizado até então, que se caracterizava por priorizar, notadamentedurante a implantação, as dimensões ligadas ao trabalho e à produção; modeloeste que acabava por priorizar os aspectos econômicos da existência e relegava aum segundo plano as outras dimensões da vida (BORSATTO et al., 2007).

Costa Neto e Canavesi (2003) identificaram referências a pelo menos trêsoutras dimensões – ambiental, política e cultural – nos documentos oriundosdesse Congresso, o que, em suas concepções, intensificou o conteúdo do discursodo MST rumo à sustentabilidade.

Em relação à destinação da produção, sugeriu-se que esta deveria estarvoltada prioritariamente à segurança alimentar da família, garantindo alimentaçãode qualidade e abundante.

Como aludem Gonçalves (2008), Barcellos (2010) e Borges (2010) foi apartir de seu IV Congresso Nacional que o MST assumiu de forma explicita aAgroecologia como uma base na qual deveria se erigir a realização da reformaagrária no Brasil.

Assim a Agroecologia emerge não somente como uma prática agrícola menosagressiva ao meio ambiente, mas emoldurada por um forte questionamento políticoem relação às políticas agrícolas que estavam sendo adotadas pelo Estado brasileiro,que, por sua vez, fomentavam uma agricultura de larga escala, fortementemecanizada, voltada para exportação e dependente de complexos agroindustriaisoligopolizados (COSTA NETO, CANAVESI, 2003; KARRIEM, 2009).

Valadão e Moreira (2009) destacam que a Agroecologia para o Movimentoexerce dois papeis importantes, o de resistência e o de superação, sendo que o

Page 267: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 267

primeiro se manifesta como uma resposta ao modelo de agricultura convencionalque expulsa os camponeses do campo; e o segundo pela possibilidade de seconstruir um novo modelo para o campo, centrado na valorização do ser humanoe demais formas de vida. Ainda concluem afirmando que para o MST a Agroecologianão é um fim, mas uma estratégia para alcançar uma sociedade mais justa e solidária.

A partir de seu IV Congresso Nacional, várias foram as ações deferidas efomentadas pelo Movimento com vistas a internalizar a Agroecologia nosassentamentos rurais. Por suposto que essas ações não foram realizadas com amesma intensidade por todo o território nacional, uma vez que diferenças emnível estadual são facilmente verificáveis.

O conhecimento tradicional camponês, antes rejeitado, assume um lugar centralnas propostas para o desenvolvimento dos assentamentos, assim como tambémsão quebradas as barreiras internas que separavam a luta pela reforma agráriada questão ambiental.

No V Congresso Nacional, realizado no ano de 2007, o MST aprofundaainda mais a valorização dos preceitos agroecológicos como caminho para aconsolidação da reforma agrária, que passa a ser denominada de popular.

A temática da soberania alimentar, bandeira de luta principal da Via Campesina(VIA CAMPESINA, 2011), passa também a ser uma das principais bandeirasde luta do MST.

Atualmente, como podem ser verificadas em sua Proposta de ReformaAgrária Popular, todas as demandas e esforços relativos à questão da produção,realizados pelo MST, enquanto instituição para o avanço da reforma agrária,vão em direção ao fomento da Agroecologia, que é citada de forma constanteno texto (MST, 2009b).

Em suma, a defesa da Agroecologia dentro do MST está em uma curvaascendente, em contraposição ao discurso de coletivização e fomento de grandesunidades de exploração agrícola especializadas, antes vigente.

Descrição do SAAGROO SAAGRO se caracteriza por ser uma metodologia para realizar avaliações

sócio-ambientais nos assentamentos rurais, mas também apoiar os agricultoresem sua transição rumo à construção de assentamentos mais sustentáveis. Assimeste sistema se baseia em algumas premissas como a fácil apropriação pelossujeitos da pesquisa; a de possuir um elevado grau de envolvimento dosagricultores avaliados, sendo participativa em todos os seus níveis; não sersomente um instrumento de avaliação, mas também de problematização da

Page 268: retratos de assentamentos

268 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

realidade vivenciada; e ser flexível para se adaptar as realidades sócio-ambientaiscaracterísticas dos assentamentos brasileiros.

O SAAGRO possui uma estrutura piramidal, o que significa dizer queapresenta diferentes níveis de análise e de integração de dados, sempre em fluxoascendente, conforme apresentado na figura 1.

Figura 1 – Representação esquemática da estrutura do fluxo deinformações dentro do SAAGRO.

Fonte: Borsatto (2011).

De forma sistematizada o seu processo de funcionamento pode ser descritocomo segue.

a) Categorias de análise (dimensões). As categorias de análise podem serconsideradas, como o primeiro nível de recorte analítico de uma determinadarealidade. No caso do SAAGRO adotam-se as seguintes categorias: Ecológica,Econômica, Social, Cultural, Política e Ética, que foram definidas baseadas naproposta de Caporal e Costabeber (2002).

b) Indicadores para cada categoria de análise: um indicador pode serdefinido como "uma medida dotada de significado social substantivo". Essamedida, com valor quantitativo ou qualitativo, é usada para substituir ouoperacionalizar um conceito social abstrato, em geral de interesse teórico (paraa pesquisa acadêmica) ou programático (para a formulação, análise e avaliação

Page 269: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 269

de políticas) (JANNUZZI, 2009).No Quadro 1 são apresentados os indicadores utilizados pelo SAAGRO,

distribuídos entre as categorias de análise.

Quadro 1 – Lista das categorias e indicadores do SAAGRO.Fonte: Borsatto (2011).

Dimensão (Categoria de análise) Indicador Código

Econômica

Comercialização IE-01 Agregação de valor IE-02 Renda IE-03 Autoconsumo IE-04 Crédito IE-05 Bens e Patrimônio IE-06 Área Cultivada IE-07

Social

Saúde IS-01 Lazer IS-02 Transporte IS-03 Moradia IS-04 Água IS-05 Educação IS-06 Alimentação IS-07

Ambiental

Solo IA-01 Água IA-02 Resíduos IA-03 Biodiversidade IA-04 Legislação Ambiental IA-05

Uso de Adubos e Agrotóxicos IA-06 Sistema de Produção IA-07

Cultural Prá ticas Artíst icas e Culturais IC-01 Modo de Produção IC-02 Influências Institucionais IC-03

Política Organização Social IP-01 Gêner o e Geração IP-02 Relações Institucionais IP-03

Ética Ambiental IT-01 Social IT-02 Econômica IT-03

Page 270: retratos de assentamentos

270 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

c) Variáveis: Cada indicador é composto por uma ou mais variáveis deanálise, as quais são sub-níveis analíticos. A somatória das variáveis de umdeterminado indicador tem a função de explicá-lo, ao mesmo tempo em que sãoelas que determinam quais as informações que devem ser coletadas a campo.

No quadro 2 são apresentadas as variáveis que fazem parte do SAAGRO.

Quadro 2 – Lista de variáveis do SAAGRO (conclusão).Fonte: Borsatto (2011).

CATEGORIA INDICADOR CÓDIGO VÁRIÁVEL CÓDIGO

ECO

MIC

A (1

4)

Comercialização IE-01 Organização para comercialização VE-01 Canais de comercialização VE-02

Agregação de valor IE-02 Presença de selos VE-03 Presença de marca VE-04 Embalagem VE-05

Renda IE-03 Percepção da renda VE-06 Dependência de bolsas VE-07

Auto consumo IE-04 Presença de hortas VE-08 Soberania alimentar VE-09

Crédito IE-05 Acesso ao crédito VE-10 Inadimplência VE-11

Bens e patrimônio IE-06 Presença de bens materiais e patrimônio VE-12 Mecanização agrícola VE-13

Área cultivada IE-07 Área cultivada VE-14

SOC

IAL

(11)

Saúde IS-01 Acesso aos serviços de saúde VS-01 Lazer IS-02 Acesso a atividades de lazer VS-02 Transporte IS-03 Acesso ao assentamento VS-03

Moradia IS-04 Saneamento VS-04 Condições da moradia VS-05 Disponibilidade de energia VS-06

Água IS-05 Tratamento da água VS-07 Qualidade da água VS-08

Educação IS-06 Acesso à escola VS-09 Grau de escolaridade VS-10

Alimentação IS-07 EBIA VS-11

AM

BIE

NTA

L (1

6)

Solo IA-01 Qualidade do solo I VA-01 Qualidade do solo II VA-02 Erosão VA-03

Água IA-02 Qualidade da água I VA-04 Qualidade da água II VA-05

Resíduos IA-03 Embalagens de agrotóxicos VA-06 Lixo doméstico VA-07

Biodiversidade IA-04 Fauna VA-08 Flora VA-09

Legislação Ambiental IA-05 APP VA-10

RL VA-11 Uso de Adubos e Agrotóxicos IA-06 Agrotóxicos VA-12

Adubos VA-13

Sistema de Produção IA-07 Queimadas VA-14 SAF VA-15 Agricultura Orgânica VA-16

Page 271: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 271

Quadro 2 – Lista de variáveis do SAAGRO (conclusão).Fonte: Borsatto (2011).

e) Instrumentos de coleta de informação: Os instrumentos de coleta dedados são compostos por questionários que priorizam questões fechadas capazesde identificar a percepção dos sujeitos avaliados sobre a sua realidade.

São 2 instrumentos de coletas de informações distintos (cadernos de questões),um para ser trabalhado junto aos coletivos representativos de assentados e outropara aplicação junto às famílias selecionadas aleatoriamente dentro doassentamento, ambos com perguntas e possibilidades de respostas fechadas.

g) Determinação dos pesos de relevância das categorias de análise e dosindicadores: Antes de realizar a aplicação dos questionários, é realizada juntoàs lideranças da comunidade uma etapa participativa na qual elas definem quaisindicadores e categorias possuem importância em sua realidade, bem comodecidem qual o grau dessa relevância nos momentos das avaliações.

h) Tabulação e Análise dos dados: Toda a tabulação e análise matemáticados dados do SAAGRO são realizadas em planilhas do software MicrosoftOffice Excel 2007.

A apresentação dos dados do SAAGRO é feita por meio de gráficos em

CU

LTU

RA

L (9

)

Práticas Artísticas e Culturais IC-01

Festas coletivas VC-01 Grupos culturais VC-02 Mística VC-03

Modo de Produção IC-02 Arrendamento VC-04 Monocultura VC-05 Dependência de insumos externos VC-06

Influências Institucionais IC-03

Igreja VC-07 ATER VC-08 MST VC-09

POLÍ

TIC

A (5

)

Organização Social IP-01 Instituições formais VP-01 Instituições informais VP-02

Gênero e Geração IP-02 Mulheres VP-03 Jovens VP-04

Relações Institucionais IP-03 Políticas públicas VP-05

ÉTI

CA

(12)

Ambiental IT-01

Insumos VT-01 Agricultura orgânica VT-02 Resíduos VT-03 Recuperação ambiental VT-04

Social IT-02

Mutirões VT-05 Relações interfamiliares VT-06 Ajuda mutua VT-07 Apoio a outras instituições VT-08 Mulheres VT-09

Econômica IT-03 Participação nos processos decisórios VT-10 Produção VT-11 Produto VT-12

Page 272: retratos de assentamentos

272 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

formato de teia de aranha, onde é possível visualizar, de forma simples, o graude aderência de um assentamento à Agroecologia, bem como de cada categoria.

Com o intuito de facilitar a interpretação dos dados, foi estabelecida umaescala de valor que relacionou a avaliação obtida, com um grau qualitativo deaderência à Agroecologia (tabela 1).

Tabela 1 – Escala para avaliação qualitativa da aderência à Agroecologia.

Fonte: Borsatto (2011).

Local da pesquisaO assentamento 23 de Maio foi instituído recentemente, tendo a sua emissão

de posse em 08 de novembro de 2008. Trata-se de uma área rural situada nodistrito de Tupy, pertencente ao município de Itapetininga, sudoeste do Estadode São Paulo.

Diferentemente do padrão verificado em projetos de assentamentos paulistas(BUENO et al., 2007), o 23 de Maio está localizado, na opinião dos própriosassentados, sobre um solo de elevada qualidade, ademais se situa a beira darodovia Raposo Tavares (SP-270), um dos mais importantes corredoresrodoviários do país, no Km 186. Dista 25 quilômetros do centro urbano deItapetininga e respectivamente 80 e 180 quilômetros das cidades de Sorocaba eSão Paulo. Além disso, sua área faz divisa com a zona urbana do distrito deTupy, que possui escola, posto de saúde e atividades de comércio.

Antes da constituição do assentamento, o local era uma fazenda de gadodenominada "Fazenda Eldorado", cuja proprietária era a pessoa jurídica FazendasReunidas Boi Gordo S/A, empresa de especulação financeira baseada na vendade derivativos de gado, que entrou em colapso financeiro, deixando grandesdívidas junto aos seus investidores e ao governo.

Por pressão do MST, o INCRA adquiriu essa propriedade para destiná-laao programa de Reforma Agrária.

Trata-se de uma área com cerca de 515 hectares, que foi dividida em 46

Avaliação (%) Classificação qualitativa

0 a 25 Ausente 26 a 50 Pouca aderência 51 a 75 Moderada aderência 76 a 100 Elevada aderência

Page 273: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 273

lotes cedidos para o uso das 46 famílias que antes estavam acampadas em beirasde rodovias da região. Grande parte dessas famílias é oriunda dos municípios deItapeva e Itaberá, também localizados no sudoeste do Estado de São Paulo,possuindo relações de parentesco ou amizade com assentados destes municípios(CAMARGO, 2011).

O processo de distribuição dos lotes respeitou a vontade dos assentados elevou em consideração a presença de três diferentes grupos de afinidades pré-organizados. A cada família foi destinado um lote com área de aproximadamentesete hectares. Ressalta-se também a presença no assentamento de altadisponibilidade hídrica, com nascentes e açudes, todos sem matas ciliares, sendoque as áreas destinadas para preservação permanente totalizam aproximadamente58 hectares e as de reserva legal 20 hectares, ambas para futuro reflorestamento.

Apesar de uma heterogeneidade de sistemas de produção, o princípiodominante reproduz a lógica dos assentamentos de Itapeva e Itaberá,caracterizando-se pela produção de grãos (principalmente feijão e milho)baseados na utilização de agroquímicos. Outro ponto a ser destacado se refereàs lideranças do assentamento que são dedicadas e articuladas na busca demelhorias coletivas, isto apesar de serem perceptíveis as disputas de poder pordiferentes projetos políticos entre essas lideranças.

Resultados do SAAGRO no Assentamento 23 de MaioO SAAGRO foi aplicado no assentamento 23 de maio no mês de setembro

de 2010. Para responder o questionário coletivo foi convocada uma assembléiana qual compareceram representantes de 30 famílias assentadas, abrangendo osdiferentes grupos de afinidades.

Cada questão apresentada ao grupo foi debatida e atribuída por eles de umaresposta, sempre em consenso. Por suposto que algumas questões geraramdebates acalorados, enquanto outras foram de rápida resposta.

Durante esse processo, muitos dos problemas que o assentamento atravessavaforam debatidos, de modo que os participantes tiveram a oportunidade deperceber o quanto já evoluíram desde sua chegada, e também o que é necessárioser feito para melhorar as suas condições de vida. Verificou-se que a metodologiacumpriu com seu objetivo de não ser somente um instrumento de avaliação, mastambém de problematização da realidade vivenciada, constituindo-se igualmenteem um instrumento de ensino-aprendizagem.

Nesta mesma data, foram selecionadas aleatoriamente as famílias queresponderiam o questionário específico para levantamento de informações no

Page 274: retratos de assentamentos

274 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

âmbito familiar. No caso do 23 de Maio foram escolhidas 12 famílias,correspondendo a aproximadamente 25% do total.

A análise dos resultados do SAAGRO possibilitou identificar em quaisdimensões (categorias), os assentados estão mais avançados no concernente àAgroecologia e, em quais precisam dedicar maiores esforços.

A figura 2 apresenta em forma de gráfico os resultados da aplicação dametodologia no assentamento 23 de Maio, que mostrou uma Aderência àAgroecologia de 55%, se enquadrando na faixa de Moderada Aderência, deacordo com a tabela 1.

Pela análise do gráfico verificou-se que as categorias Social (65%), Ambiental(62%) e Cultural (64%) apresentaram Moderada Aderência, enquanto a Política(36%), Ética (47%) e Econômica (46%) Pouca Aderência à Agroecologia6.

De forma geral, pode-se afirmar que as famílias do 23 de Maio precisamrealizar um forte esforço coletivo e multidimensional para a melhoria da Aderênciaà Agroecologia do assentamento.

6A análise decomposta em categorias desconsidera os pesos atribuídos as mesmas,contemplando as ponderações dos indicadores.

Page 275: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 275

Figura 2 – Gráfico da aderência à Agroecologia no Assentamento 23 deMaio, 2010.

Fonte: Dados da pesquisa.

A metodologia adotada também permitiu que fossem realizadas análises paraevidenciar quais os indicadores que conferem pior desempenho em cada categoriaavaliada, o que auxilia a construção de propostas para melhorias7.

O quadro 3 apresenta a avaliação decomposta por indicadores, de onde épossível analisar os que obtiveram pior avaliação.

7A decomposição da análise em indicadores desconsidera os pesos atribuídos pelosassentados.

Page 276: retratos de assentamentos

276 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Quadro 3 – Aderência dos indicadores à Agroecologia doAssentamento 23 de Maio.Fonte: dados da pesquisa.

No caso do 23 de Maio, os indicadores que receberam pior avaliação foramos de Agregação de Valor (0%), Renda (10%), Lazer (10%), Legislação Ambiental(0%), Práticas Artísticas e Culturais (3%) e o de Gênero e Geração (18%).

DIMENSÃO INDICADOR ADERÊNCIA INDICADOR

Econômica

Comercialização 55%

Agregação de valor 0%

Renda 10% Autoconsumo 55%

Crédito 100%

Bens e Patrimônio 65%

Social

Saúde 50%

Lazer 10% Transporte 100%

Moradia 82%

Água 48%

Educação 77%

Alimentação 85%

Ambiental

Solo 100%

Água 85%

Resíduos 40%

Biodiversidade 38% Legislação Ambiental 0%

Uso de Adubos e Agrotóxicos 75%

Sistema de Produção 40%

Cultural

Práticas Artísticas e Culturais 3%

Modo de Produção 78% Influências Institucionais 100%

Política

Organização Social 44%

Gênero e Geração 18%

Relações Institucionais 55%

Ética Ambiental 42% Social 43%

Econômica 64%

Page 277: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 277

Quanto ao indicador Agregação de Valor, foi informado pelos assentados nomomento da avaliação que não era realizado no assentamento nenhum processonesse sentido, sendo que toda a produção era vendida in natura e a granel.Investir em processos que agreguem valor aos produtos do assentamento,provavelmente impactaria positivamente também indicador de Renda, melhorandoa avaliação da categoria Econômica como um todo.

Os indicadores Lazer e Práticas Artísticas e Culturais refletiram que osassentados destinam pouca atenção às atividades ligadas ao ócio, sejam elasesportivas, culturais, comemorativas. Não foi identificado nenhum coletivodestinado a organizar atividades desse tipo. A conformação desses gruposcertamente propiciaria melhora nesses indicadores.

Um fator evidenciado pela metodologia se refere à baixa participação dasmulheres e jovens nos processos políticos e decisórios do assentamento. Nãofoi verificada a presença de nenhum coletivo organizado desses grupos sociais.Incentivar e abrir espaços para a participação das mulheres e dos jovens nosprocessos de debate e tomadas de decisão dos problemas do assentamento,além de fomentar relações mais democráticas, permitiria o encontro de outroscaminhos rumo à sustentabilidade, o que certamente refletiria de forma positivaem diversos indicadores, especialmente nos de Gênero, Geração e Ética social.

Já o indicador Legislação Ambiental, bem como outros relacionados à questãoambiental, estavam negativamente afetados, em parte pelo histórico da área, jáque anteriormente era uma fazenda de gado, cujos proprietários não respeitarama legislação no tocante a manutenção de Áreas de Preservação Permanente(APPs) e de Reserva Legal (RL). Deste modo, apesar de as áreas destinadas àrecomposição ambiental já estarem delimitadas, ainda não havia sido executadonenhum procedimento de recuperação. Vale ressaltar que, o sistema produtivodominante, baseado no uso de agroquímicos, também se reflete negativamentenos indicadores ambientais. Para melhorias dos indicadores que refletem adimensão ambiental (incluindo o de Ética Ambiental), seriam necessários esforçosno sentido de recomposição das matas ciliares e da reserva legal, bem como ofomento de processos produtivos baseados na proposta da Agroecologia, comoimplantação de sistemas agroflorestais, agricultura orgânica, integração produçãoanimal e vegetal, consórcio de culturas, etc.

Por outro lado, salienta-se que alguns indicadores apresentaram avaliações positivas,demonstrando Elevada Aderência à Agroecologia, tais como os de Crédito (100%),Transporte (100%), Moradia (82%), Educação (77%), Alimentação (85%), Solo(100%), Água (85%), Modo de Produção (78%) e Influências Institucionais (100%).

Page 278: retratos de assentamentos

278 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

A boa avaliação desses indicadores, em grande parte, deve-se à localizaçãodo assentamento, às qualidades edafoclimáticas da área e ao acesso às políticaspúblicas de fomento.

A localização influenciou na avaliação positiva de indicadores como os deTransporte e de Educação, enquanto os de Solo e de Água refletiram a qualidadedo local onde o assentamento foi estabelecido. Por sua vez o acesso ao PRONAFe ao fomento para a construção das residências, impactou os indicadores deCrédito e Moradia.

A partir da análise dos resultados da aplicação do SAAGRO foi possívelelaborar um quadro de recomendações de ações que visa apoiar a melhoria dosindicadores pior avaliados (quadro 4).

Quadro 4 – Recomendações para melhoria da aderência à Agroecologiado Assentamento 23 de Maio.

Fonte: dados da pesquisa.

ConclusõesOs autores consideram que a aplicação do SAAGRO no assentamento 23 de

Maio foi uma experiência exitosa, já que a metodologia cumpriu os seus objetivos.

Propostas para melhoria dos indicadores

Implementação de processos de agregação de valor aos produtos doassentamento, tais como: certificação participativa, identificação de origem,embalagem, agroindustrialização, marca, etc.

Formação de coletivos responsáveis por fomentarem atividades esportivas,culturais e de lazer em geral.

Esforço no sentido de reflorestamento das Áreas de PreservaçãoPermanente e de Reserva Legal.

Permitir, apoiar e fomentar a criação de grupos de mulheres e jovens, bemcomo a sua participação nos processos políticos e decisórios do assentamento.

Realização de atividades que fomentem práticas mais agroecológicas deprodução (cursos, áreas piloto, oficinas, hortas comunitárias orgânicas, etc).

Page 279: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 279

Em primeiro lugar, ela funcionou como um instrumento de ensino-aprendizagem, já que durante a aplicação dos questionários coletivos, muitosassuntos de interesse dos assentados foram suscitados, propiciando que osmesmos problematizassem, de forma sistematizada, a realidade vivenciada(FREIRE, 1998; 2002). Com isso, foi possível desvelar conhecimentos antesocultados e fomentar a busca de soluções para problemas identificados. Outromomento importante nesse sentido ocorreu quando foram apresentados aosassentados os resultados da aplicação do SAAGRO.

O segundo objetivo alcançado foi o de visualizar de forma organizada osprincipais pontos a serem trabalhados para a melhoria da aderência àAgroecologia pelo 23 de Maio, o que tornou possível elaborar as propostasapresentadas no quadro 4, que foram apropriadas pelos agricultores comodiretrizes a serem melhoradas dentro do assentamento.

Por outro lado, aponta-se que, para o SAAGRO poder expressar todo oseu potencial analítico, faz-se necessário sua reaplicação em intervalos de temposdefinidos (recomenda-se anualmente), para que assim possa ser possível aidentificação das dinâmicas sócio-ambientais que vem ocorrendo noassentamento.

Ademais, ressalta-se que o SAAGRO, assim como os sistemas de indicadoresem geral, possui pouca capacidade de explicação para as causas das situaçõespor ele apontadas, sendo necessário e recomendado a utilização de outrasmetodologias para uma melhor compreensão da realidade estudada.

Referências

BARCELLOS, S.B. A formação do discurso da agroecologia no MST.2010. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais em Desenvolvimento,Agricultura e Sociedade) Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Riode Janeiro, 2010.

BORGES, J.L. MST: do produtivismo a agroecologia. São Paulo;Goiânia: Terceira Margem; Editora da PUC Goiás; 2010.

BORSATTO, R.S. A Agroecologia e sua apropriação pelo Movimentodos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e assentados da reformaagrária. 2011. 298f. Tese (Doutorado em Engenharia Rural). UniversidadeEstadual de Campinas, Campinas, 2011.

Page 280: retratos de assentamentos

280 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

BORSATTO, R. S.; BERGAMASCO, S.M.P.P.; MOREIRA, S.S.; FONTE,N.N.; FIDELIS, L.M.; OTTMANN, M.M.A. Agroecologia e avalorização de novas dimensões no processo de reforma agrária: estudode caso do acampamento José Lutzenberger. Informações Econômicas,São Paulo, v. 37, n.8, p.14-23, 2007.

BUENO O.C.; BÔAS, R.L.V.; FERNANDES, D.M.; GODOY, L.J.G. Mapade fertilidade dos solos de assentamentos rurais do Estado de São Paulo:contribuição ao estudo de territórios. Botucatu: FEPAF/UNESP, 2007.

CAMARGO, E.A.O.M. Projeto participativo de recomposição de áreade preservação permanente no assentamento 23 de Maio. 2011. 46f.Trabalho de Graduação (Tecnologia em Agronegócio). Faculdade deTecnologia de Itapetininga, Ita petininga, 2011.

CAPORAL, F.R.; COSTABEBER, J.A. Análise multidimensional dasustentabilidade: uma proposta metodológica a partir da Agroecologia.Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável, Porto Alegre, v.3,n.3, p. 70-85, jul/set 2002.

COSTA NETO, C.; CANAVESI, F. Sustentabilidade em assentamentosrurais: o MST rumo à "reforma agrária agroecológica" no Brasil? In:ALIMONDA, H. Ecología política: naturaleza, sociedad y utopía. BuenosAires: Clacso, 2003.

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práticaeducativa. Ed. Paz e Terra, São Paulo – SP, 1998.

FREIRE, P. Extensão ou comunicação. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,2002.

GONÇALVES, S. Campesinato, resistência e emancipação: o modeloagroecológico adotado pelo MST no Estado do Paraná. 2008. Tese(Doutorado em Geografia) Universidade Estadual Paulista, PresidentePrudente/SP, 2008.

JANNUZZI, P. M. Indicadores sociais do Brasil. 4. ed. Campinas:

Page 281: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 281

Editora Alínea, 2009. 141p.

KARRIEM, A. The rise and transformation of the Brazilian landless movementinto a counter-hegemonic political actor: a Gramscian analysis. Geoforum, 40,p.316-325, 2009.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST.Proposta de Reforma Agrária do MST – 1995. In: STÉDILE, J.P. (Org.) Aquestão agrária no Brasil: programas de reforma agrária 1946-2003. SãoPaulo: Expressão Popular, 2005, p. 187-210.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST.Nossas bandeiras. MST, 2009a. Disponível em: <http://www.mst.org.br/taxonomy/term/329>. Acesso em 03 mar. 2011.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA – MST.A reforma agrária necessária: por um projeto popular para a agriculturabrasileira. MST, 2009b. Disponível em: < http://www.mst.org.br/node/7708>.Acesso em 03 mar. 2011.

PICOLOTTO, E.L.; PICCIN, M.B. Movimentos camponeses e questõesambientais: positivação da agricultura camponesa? Revista Extensão Rural,Santa Maria, ano XV, n. 16, p. 5-36, jul/dez 2008.

VALADÃO, A.C.; MOREIRA, S.S. Reflexões sobre a compreensão daAgroecologia pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. RevistaBrasileira de Agroecologia, Associação Brasileira de Agroecologia, v.4,n.2, p. 2842-2846, nov. 2009.

VIA CAMPESINA. ¿Quién somos?: la voz de las campesinas y campesinosdel mundo. Via Campesina, 2011. Disponível em: <http://viacampesina.org/sp/index.php?option=com_content&view=category&layout=blog&id=27&Itemid=45>.Acesso em 30 mar. 2011.

Page 282: retratos de assentamentos

282 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Page 283: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 283

PROJETOS DE DESENVOLVIMENTOSUSTENTÁVEL (PDS'S) E OSDESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DENOVAS POLÍTICAS DEASSENTAMENTO

Osvaldo Aly Junior1

1Pesquisador do NUPEDOR – Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural e do Mestradode Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente da UNIARA – Araraquara-SP, EngenheiroAgrônomo (Esalq-USP), Mestre em Ciência Ambiental pelo PROCAM-USP, ex-assessor daSuperintendência do INCRA-SP.

Resumo: O presente artigo faz uma reflexão sobre a experiência daimplantação dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS's) no estadode São Paulo. Estes assentamentos nasceram da demanda dos movimentossociais, da crítica ao modelo agrícola da revolução verde e buscou dar passosna direção de afirmar uma política de criação e desenvolvimento deassentamentos com o viés ambiental. O artigo faz uma revisão desse processorefletindo sua novidade, seus limites e desafios.

Palavras-chave: Assentamentos no Estado de São Paulo; Políticas Públicas;Desenvolvimento Sustentável; INCRA.

Abstract: This article offers some reflections on the experience ofimplementing the Sustainable Development Projects in the State of SãoPaulo. These rural settlements were established as a result of the socialmovements and in response to the criticism of the Green Revolution, anagricultural model, and there has been an attempt to develop a policy todeal with the development of rural settlements and the environmental bias.The article examines the process and concludes by offering someconsiderations with respect to its novelty, its limitations and other challenges.

Page 284: retratos de assentamentos

284 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Keywords: Rural Settlements in the State of São Paulo; Public Policies;Sustainable Development; INCRA.

IntroduçãoO presente artigo apresenta os desafios colocados na construção de novas

políticas de assentamento que viabilizem, ao mesmo tempo, o acesso à cidadaniae à criação de processos de transição da agricultura convencional (intensiva eminsumos, poupadora de mão-de-obra e impactante ao meio ambiente) para ummodelo mais sustentável (menos dependente dos agroquímicos, que absorva amão-de-obra familiar e que permita a recuperação ambiental das áreasdesapropriadas) nas áreas de reforma agrária.

A reflexão sobre o processo de desenvolvimento dos assentamentos tevegrande impulso a partir do final dos anos 1980. Vários trabalhos avaliaram oresultado do conjunto de políticas públicas deixando claro a ausência e a lacunada ação estatal. Ao mesmo tempo, mostraram e indicaram possíveis caminhosna busca do desenvolvimento sustentável dos assentamentos, de forma a garantira cidadania e a autonomia econômica e a recuperação ambiental das áreasdesapropriadas.

Existe um forte debate sobre quem é o público da reforma agrária brasileirae qual o papel que ela exerce no desenvolvimento nacional. Parte dos ataquesdesferidos busca construir a imagem que a reforma agrária é uma das causasprincipais do desmatamento no país. Assim, vale destacar que o total da áreaocupada pelos assentamentos e projetos de colonização não representava até2006 mais que 3% do território nacional (ABRA, 2007).

Esta crítica busca escamotear a questão de fundo que, o desmatamento éconseqüência do processo histórico de ocupação da terra no país; da formacomo os latifúndios com as suas monoculturas organizaram o uso e a ocupaçãodos solos, como bem demonstrou Dean (1986). Mesmo a existência de legislaçãoe órgãos ambientais pelo País afora é insuficiente para dar conta da preservaçãoambiental, dos recursos naturais e, de regular o uso e a ocupação do solo, comovêm demonstrando os debates com a finalidade de alterar a legislação ambiental.

Aceitando o desafio de inovar no campo das políticas de assentamentos quealiassem a recuperação de cidadania, a geração de renda, a reconstrução devida social e comunitária com a recuperação e preservação ambiental, o INCRA– São Paulo, a partir de negociações realizadas com assentados e suasorganizações, ainda, com núcleos de pesquisa e ensino, organizações dasociedade civil e outros órgãos públicos, buscou dar os passos na direção de

Page 285: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 285

afirmar uma política de criação e desenvolvimento de assentamentos com o viésambiental: os chamados de Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS).

Papel do Estado na Reforma AgráriaA reforma agrária no Brasil é uma política de Estado que se apresenta como

uma possibilidade de desenvolvimento justo e democrático. Ela é uma alternativaà exclusão social/econômica, à fome e ao desemprego. Em outros termos, éuma política pública que equaciona o desenvolvimento econômico e asustentabilidade ambiental, com uma estrutura social que garanta uma melhordistribuição da renda. Portanto, não se vincula somente ao desenvolvimentotécnico, econômico e ambiental, mas, sobretudo a desconcentração fundiária, adistribuição renda e a cidadania (SILVA, CYRINO, 2005).

A política de reforma agrária é regida pelo Estatuto da Terra2 lei aprovadaem 1964, que regula os direitos e obrigações referentes aos imóveis rurais, parafins de execução da Reforma Agrária e da promoção da Política Agrícola. EstaLei define que a realização da reforma agrária em todo o território nacional é decompetência exclusiva da União, bem como a desapropriação de imóveis ruraisque impliquem modificação do sistema de seu uso e posse. Ainda, é dever doEstado promover e criar condições de acesso ao trabalhador rural à propriedadeda terra economicamente útil de preferência nas regiões onde habita.

O Estatuto da Terra explicita que a propriedade rural desempenha integralmentea sua função social quando simultaneamente: a) favorece o bem estar dosproprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dosrecursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relaçõesde trabalho entre os que a possuem e a cultivam.

Entretanto, o alcance do Estatuto da Terra sofreu um revés, quando aConstituição Federal, aprovada em 1988, alterou o alcance da reforma agráriarestringindo a desapropriação para fins de reforma agrária apenas as propriedadesque não cumprem a função social (nos quesitos produtividade, trabalhista-sociale ambiental).

Sendo que, apenas o item relativo à produtividade foi definido em lei, ficandoos demais sem definição legal. Isto acabou, dentre outros, com a possibilidadede se fazer uma intervenção reformista em um determinado território ou região.

2Lei n.4.504 de novembro de 1964.

Page 286: retratos de assentamentos

286 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Também, as desapropriações ficaram restritas ao quesito improdutividade doimóvel afetado.

O Estatuto da Terra já demonstrava uma preocupação com o meio ambiente,especialmente com relação à conservação dos recursos naturais. Pode-se afirmarque, até então, nenhum outro instrumento, em toda a vida republicana brasileira,com exceção dos Códigos específicos, deu a devida ênfase à proteção ambiental.

O assentamento de reforma agrária, de acordo com o que foi apresentadoacima, é uma criação do Estado e está sujeito à sua gestão, seja de maneira maisdireta e autoritária, seja de maneira mais indireta e negociada. Se, na relaçãoque estabelece com os acampados (sem-terra), o Estado pode ignorar qualquerunidade social intermediária, no caso dos assentamentos é o inverso: para oEstado, não há assentado sem assentamento. É o assentamento que faz existir oassentado (LEITE et al., 2004).

As relações históricas do Estado brasileiro com os latifúndios produziram afalta de iniciativas para a regulação da posse e uso do solo. Isto influenciou oprocesso de dispersão espacial dos assentamentos. Mesmo nas áreas de maiorconcentração dificilmente ocorre uma continuidade espacial, que permita apotencialização das políticas e da infraestrutura necessárias ao seudesenvolvimento.

Em muitas localidades do Brasil as chamadas zonas reformadas, que seriamas áreas prioritárias de reforma agrária, foram constituídas pela ação domovimento social que atuou mais fortemente em determinadas regiões. Em SãoPaulo, os casos do Pontal do Paranapanema e da região de Andradina são doisexemplos que ilustram bem essa realidade.

Pequeno Histórico da Ação do INCRA e os Planos Nacionais de ReformaAgrária

A origem do INCRA vem da fusão do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária(IBRA) e do Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA) nos iníciodos anos 1970, que passa a ter as atribuições dos dois órgãos anteriormenteexistentes: a gestão da malha fundiária e a promoção do desenvolvimento rural.

Durante a ditadura militar, o INCRA não teve atuação no campo da reformaagrária, e quando elas ocorreram foram de cunho tópico, restrito. As intervençõesocorriam somente nas regiões onde o conflito pela posse da terra era muitogrande. Neste período, a atuação mais forte da Instituição esteve relacionadacom a colonização que ocorreu na região Centro-Oeste e Norte. Ela funcionoucomo um mecanismo para esvaziar e desorganizar a pressão do social por terra.

Page 287: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 287

A colonização também funcionou como uma válvula de escape para oprocesso de modernização e minifundização que ocorreu no país. No caso damodernização, ela implicou na eliminação de empregos e propriedades depequenos e médios produtores das regiões sul e sudeste. Estes, por sua vez,arriscavam através migração, via a colonização oficial ou aquisição de terras nafronteira agrícola, uma nova chance de inserção produtiva.

No período da chamada Nova República, na década de 80, o INCRA passoua atuar na desapropriação de terras. Neste período foi elaborado o I PNRA –Plano Nacional de Reforma Agrária, que resgatou o conceito de áreas prioritáriasde reforma agrária e de áreas ou regiões reformada. Esta década ficou marcadapelo ascenso das lutas sociais dos trabalhadores rurais sem terra e dosassalariados rurais. Também, foi neste período que surge o Movimento dosTrabalhadores Rurais Sem Terra, o MST.

Nos anos 90, a ação do Estado junto à reforma agrária sofre um revés.Primeiramente no governo Collor que chega a extinguir o INCRA. Porém, tendoque reverter a decisão. Na seqüência veio o governo Fernando Henrique Cardosocom os Massacres de Corumbiara e Eldorado do Carajás, que tiveram umagrande repercussão nacional e internacional. Esta comoção nacional deu origemà Marcha Nacional do MST, em 1977, e obrigou o governo federal avançar nadesapropriação sem, contudo, avançar nas políticas de desenvolvimento.

O governo Fernando Henrique, seguindo a orientação do Banco Mundial,do FMI e de outros organismos internacionais, introduz a concepção mercantil eneoliberal de reforma agrária no documento chamado Novo Mundo Rural (1999).Nesta concepção, são misturados os conceitos de assentado e agricultor familiarque, segundo o documento, a diferença estaria apenas no tempo dedesenvolvimento da unidade produtiva.

Ainda, este documento concebia que as ações de apoio ao desenvolvimentodos assentados dariam conta de colocá-los, em pouco tempo, na mesma condiçãode um agricultor familiar. As políticas de desenvolvimento eram as de acesso aoscréditos e recursos de instalação, infraestrutura (luz, água e estradas) e produção.As ações relacionadas com um processo de recuperação de autoestima, dedesenvolvimento e aprimoramento das habilidades e capacidades, deempoderamento etc., foram descartadas nesta proposta governamental.

Segundo as normativas do INCRA isto ocorreria em até 03 (três) anos,após a repartição dos lotes, uma vez que, era (a ainda é) dado como certo quetodos os recursos (para luz, estrada, água, habitação, estruturação produtivae o Pronaf A) destinados ao apoio à instalação e à produção seriam liberadas

Page 288: retratos de assentamentos

288 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

sem problemas dentro do prazo.É contrastante a realidade da população assentada, que passou por um amplo

processo de exclusão e de perda de cidadania, com as propostas de apoio aodesenvolvimento então apresentadas à época e que tiveram a sua continuidade(ainda que elevando valores e criando novas modalidades de crédito). Elas levarama um acúmulo de problemas, aumentando a dívida do Estado Brasileiro paracom as famílias assentadas.

Mesmo após o governo FHC, nos governos Lula e Dilma, as ações aindadeixam a desejar, pois, ainda, prevalece a visão de assentamento como um"empreendimento imobiliário", com o Estado liberando recursos para instalação,infraestrutura e produção. Para não ficar restrita a produção; o acesso à educação,saúde, lazer e cultura é um sonho para a maioria dos assentamentos.

Desde a primeira metade dos anos 80 até o final dos anos 90, as açõesgovernamentais para o desenvolvimento no campo sócio-econômico dosassentamentos, mesmo as de financiamento da produção, foram marcadamenteinstáveis e ficaram sujeitas as diferentes regulamentações, rupturas administrativo-programáticas e disponibilidade de recursos.

Recentemente, já no governo Lula, o INCRA retomou uma série de discussõessobre a reforma agrária e sobre como deveria ocorrer a intervenção estatal paraque se chegasse ao desenvolvimento dos assentamentos dentro de um processode recuperação de autoestima, de desenvolvimento e aprimoramento dashabilidades e capacidades, e empoderamento dos assentados e suas organizações.

No intuito de responder à pressão dos movimentos sociais da reforma agráriano país, no II Plano Nacional de Reforma Agrária – PNRA, cuja meta era assentar500 mil famílias em todo o País até o final de 2007, o governo se comprometeucom o desenvolvimento qualitativo dos assentamentos, pois era inaceitável manteros assentados em estado de abandono, sem a presença do Estado e seminvestimento público para o seu desenvolvimento e sem a criação de infraestruturapara a moradia e a produção.

Afirma o II PNRA que:

Trata-se de um plano que integra o Programa de Governo e um Projetopara o Brasil Rural que busca retomar a trajetória anunciada pelo I PNRA,elaborado em 1985 como uma das expressões do projeto deredemocratização do país (...) as ações serão dirigidas a impulsionar umanova estrutura produtiva, fortalecendo os assentados da Reforma Agrária,a agricultura familiar, (...). Esta profunda mudança no padrão de vida e de

Page 289: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 289

trabalho no meio rural envolve a garantia de crédito, do seguro agrícola,da assistência técnica, comercialização, agroindustrialização, recuperaçãoe preservação ambiental e de promoção da igualdade. (INCRA/MDA,2004, p.08)

Afirma o texto do II PNRA que é preciso combinar massividade, qualidadee eficiência na aplicação dos recursos públicos, dirigindo as ações de forma aassegurar a qualidade dos assentamentos por meio de investimento eminfraestrutura social e produtiva. O aumento de orçamento experimentado peloINCRA no governo Lula, com substancial redução no governo Dilma, não foisuficiente para dar as condições para o desenvolvimento qualitativo conformeapresentado no documento do II PNRA.

A modernização da agricultura: impactos sociais e ambientaisO modelo de modernização da agricultura brasileira e de expansão da fronteira

agrícola esteve intimamente relacionado com a exclusão social e a deterioraçãoambiental, especialmente dos recursos florestais.

Este processo de modernização trouxe as seguintes conseqüências: (i) a maiorparte da população migrou do campo para a cidade; (ii) houve um aumento daconcentração da pobreza nos centros urbanos, com o aumento das favelas; (iii)grande parte das florestas foi destruída, incluindo as matas ciliares e as reservasque por lei deveriam ser preservadas; (iv) os recursos hídricos foram degradadosnos aspectos qualitativos e quantitativos; (v) os solos foram degradados pelosmuitos anos de cultivos intensivos com maquinário pesado e grande carga deagroquímicos; (vi) a demanda temporária de trabalho desde o plantio à colheitapassou a ser crescentemente suprida por máquinas e mão-de-obra local emigrante. Em geral, submetidos a intensas jornadas de trabalho árduo e baixaremuneração; (vii) deslocamento de culturas alimentares e aumentando os gastosenergéticos para o deslocamento das safras. (RAMOS, SZMRECSÁNYI,PELLEGRINI, 2007).

No Brasil, a forma dominante de uso e ocupação da terra continua baseadano princípio de que a cobertura florestal nativa e sua biodiversidade constituemempecilhos ao estabelecimento de qualquer sistema de produção. Assim, elesprecisam ser removidos.

Os monocultivos extensivos carecem de diversidade suficiente para garantira estabilidade e o equilíbrio ecológicos, necessários para sua manutenção sem ouso de agroquímicos. Do ponto de vista ambiental, o quadro é mais grave ainda,

Page 290: retratos de assentamentos

290 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

ao considerarmos a poluição e contaminação das áreas de recarga dos Aqüíferosdistribuídos no território nacional.

No desenvolvimento da agricultura chamada de convencional, principalmentenas regiões tropicais do globo, onde existe uma grande biodiversidade, e onde ainteração entre plantas, insetos e microrganismos é muito complexa, o caminhotomado para o desenvolvimento da tecnologia na agricultura desconsiderou essespreceitos. Em geral, o que se observa é a utilização de conceitos equivocadosque buscam, através dos cultivos monoculturais, isolar a planta de seus organismosrelacionados, considerando-os simplesmente como inimigos e nunca comocoevoluídos, e possivelmente parceiros.

Por outro lado, a biodiversidade dos ecossistemas tropicais mostra apotencialidade que existe para a sua interação ao processo de desenvolvimentoeconômico das comunidades que vivem nessas regiões. Ao mesmo tempo, aalta diversidade desses ecossistemas tem sido apresentada como responsávelpelo seu delicad o equilíbrio ecológico.

Portanto, biodiversidade e equilíbrio parecem estar associados e secompletando nos ecossistemas ricos em espécies.

Reforma Agrária e Meio Ambiente: transição do modelo convencionalpara o alternativo

A discussão sobre a transição agroecológica está hoje bastante generalizadae diz respeito à ampliação da sustentabilidade de longo prazo dos mais distintossistemas agropecuários. Ela passa por diversas etapas, dentro e fora do sistemade produção, dependendo da distância em que o sistema produtivo estiver dasustentabilidade, sendo que a transformação das bases ecológicas da produçãotende sempre a ser gradual, e não necessariamente linear. Ramos, Szmrecsányi,Pellegrini citando Gliessman, apresentam uma proposta dos possíveis passospara a transição agroecológica, que podem ser sintetizados no seguinte esquema:

Passo 1 – Redução e racionalização do uso de insumos químicos;Passo 2 – Substituição de insumos químicos por outros de origem biológica;Passo 3 – Manejo da biodiversidade e redesenho dos sistemas produtivos.

Analisando a experiência estadunidense, Beus e Dunlap buscaram definir asbases constituintes de duas abordagens: a da agricultura convencional e a daagricultura alternativa. Os autores definiram a agricultura convencional comoaquela que faz uso intensivo de capital, apresenta unidades produtivas de largaescala, altamente mecanizada, monocultora empregando elevadas quantidades

Page 291: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 291

de fertilizantes artificiais, herbicidas, agrotóxicos, criação de animais intensiva eflorestas homogêneas (BEUS, DUNLAP, 1990).

Por sua vez, estes autores, caracterizaram a agricultura alternativa por: reduçãodrástica do uso de agroquímicos artificiais; por unidades produtivas de menorescala; pelo menor uso de energia; por produzir alimentos minimamenteprocessados; por conservar os recursos não renováveis; pela comercializaçãodireta com consumidores.

A agricultura alternativa engloba várias concepções de agricultura como:orgânica, ecoagricultura, permacultura, biodinâmica, agroecológica, natural, deuso reduzido de insumo extra-setorial, etc.

Estes autores sugerem seis elementos-chaves, à semelhança de tipos ideais eque se prestam à identificação desses tipos de agricultura. Na agriculturaconvencional os elementos chaves são: centralização, dependência, competição,dominação da natureza, especialização e exploração. Os elementos-chaves quecaracterizam a agricultura alternativa são opostos aos da convencional:descentralização, independência, comunidade, harmonia com a natureza,diversidade e conservação.

O que de fato distingue a agricultura alternativa de outras propostas emoposição ao modelo da revolução verde é uma profunda preocupação com asquestões ecológicas e que estão presentes nas três últimas dimensões (dominaçãoda natureza versus harmonia com a natureza; especialização vs diversificação;exploração vs conservação). (BEUS, DUNLAP, 1990)

Além destes passos internos ao sistema produtivo, entende-se que existe oprocesso de "transição externa", pois embora as mudanças técnicas etecnológicas sejam de grande importância, entende-se que a transiçãoagroecológica só poderá alcançar sua plenitude quando outras condições, externasà unidade de produção, forem estabelecidas.

Assim, há um conjunto de condições mais amplas a ser construído pelasociedade e pelo Estado para que a transição agroecológica possa se tornarrealidade, tais como a expansão da consciência pública, a organização dosmercados e de infraestrutura, a reforma agrária, as mudanças institucionais napesquisa, ensino e extensão, a formulação de políticas públicas com enfoqueagroecológico e as inovações referentes à legislação ambiental. Considera-se,portanto, que a transição interna aos sistemas de produção não teria sentidosem uma mudança geral nos padrões de desenvolvimento.

Queda, Kageyama e Dagoberto (2009) citam que as iniciativas promissorase de sucesso no campo de uma produção alternativa dentro dos assentamentos

Page 292: retratos de assentamentos

292 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

de reforma agrária devem ter algumas características e princípios comuns:a mobilização e organização coletiva dos agricultores (associações e

cooperativas);políticas públicas adequadas (ater, crédito, pesquisa), ressaltando que se

deve atender às demandas específicas e não simplesmente procurando adaptar;políticas públicas devem viabilizar um mercado adequado à produção da

agricultura familiar (Programa de Aquisição de Alimentos, Política de Garantiade Preços Mínimos);a participação efetiva de atores da sociedade civil, envolvidos e

comprometidos, solidarizando-se na interlocução entre produtores o estado;a formação e qualificação dos próprios agricultores para suprir suas

demandas de assistência, desenvolvimento de ações de pesquisa eexperimentação, comercialização, gerando autonomia e soberania;ações conjuntas com instituições públicas de pesquisa (universidades, etc.)

para gerar, adaptar, difundir tecnologias e processos adequados;ações conjuntas entre movimentos sociais, instituições de pesquisa e agentes

públicos.

A Origem dos Projetos de Desenvolvimento SustentávelEm 1985, a preparação do Primeiro Encontro de Seringueiros da Amazônia,

em Brasília, envolveu a mobilização de lideranças de seringueiros de diversosestados da região Amazônica. A partir das discussões então realizadas, ficarammais claras as especificidades da produção da seringueira, ou do extrativismodo látex, exigindo para tal a formulação de uma política diferenciada de acessoà terra. A criação de reservas extrativistas: a reforma agrária dos seringueiros(FRANCO, 1994).

Não prevendo lotes individuais, o que se reivindicava com as reservasextrativistas era a desapropriação de seringais e a concessão de usufruto aosseringueiros, permanecendo a propriedade da terra em mãos da União.

Depois, em 1999, o Ministério do Meio Ambiente e o MinistérioExtraordinário de Política Fundiária publicam a Portaria Interministerial de número01, visando a integração e criação de instrumentos legais e administrativos depolítica fundiária e ambiental, visando a instituição de um modelo de reformaagrária sustentável e de proteção ao meio ambiental, em especial na Amazônia(INCRA, MMA, CNS, 2000).

Esta portaria criou um grupo de trabalho, do qual participaram o ConselhoNacional dos Seringueiros, IBAMA, INCRA, dentre outras instituições, que

Page 293: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 293

elaborou a Portaria INCRA n. 477 que deu origem aos Projetos deDesenvolvimento Sustentável – PDS.

Esta Portaria n.477/1999 respondeu a reivindicação dos movimentos sociaisda região amazônica e buscou compatibilizar o desenvolvimento de atividadesprodutivas à conservação de recursos naturais, orientar a ocupação das áreasdos PDS's tendo em vista a sustentabilidade das atividades produtivas e atémesmo a recomposição do potencial dos recursos naturais originais. Osfundamentos dos PDS's são:atender as especificidades regionais: como uma forma de resgatar o valor

econômico, cultural e social da floresta, das várzeas, não se restringindo apenasao seu potencial agrícola dentro do que é o enfoque tradicional;

o interesse ecológico que, a partir da Lei 9985/00 que criou o SistemaNacional de Unidades de Conservação, faculta a criação de Unidades deConservação de Uso Sustentável;valorização da organização em seus diferentes níveis: na vida social, no

trabalho e na gestão da comunidade;a concessão do uso da terra, por determinado período, para a exploração

condominial, obedecendo a aptidão da área combinada à vocação das famíliasde produtores rurais e;o interesse ecológico na recomposição do potencial original da área

atendendo a legislação ambiental.

Do ponto de vista ambiental, o PDS é uma excelente oportunidade no campodas políticas públicas voltadas para garantir a transição para uma produçãoagropecuária sustentável. Os PDS's buscam ampliar o leque e o enfoque dodesenvolvimento produtivo dos assentamentos incluindo o componente ambientalno planejamento da geração de ocupações produtivas e da renda, incluindo osdiferentes tipos e denominações de Sistemas de Produção Sustentáveis (com ousem a criação animais).

Dessa maneira, o PDS busca incluir as áreas florestais (nativas ou mesmoexóticas) no sistema produtivo e que estas sejam preservadas e manejadas. Istopara que elas mostrem a sua importância para o microclima, a manutenção daagro-biodiversidade, a proteção do solo e dos recursos hídricos (preservando erecuperando nascentes de água). Parte-se do pressuposto que a integração entrepreservação e exploração econômica não degradadoras do meio ambientepossibilitarão construir sistemas produtivos sustentáveis e economicamenterentáveis.

Page 294: retratos de assentamentos

294 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

A Política de Instalação dos PDS's em São PauloÉ importante destacar que, no Brasil, os atuais índices de produtividade que

permitem o desencadear de um processo de desapropriação estão referenciadosem dados produtivos da década de 70. Isto significa que nos anos 70 estapropriedade já era improdutiva. Na maioria dos casos o sistema de exploraçãodas propriedades improdutivas leva a degradação dos recursos naturais: solo eágua principalmente; e a sua maioria não possui mais a área de reserva legalflorestada.

Este quadro acima confirma as afirmações de Celso Furtado sobre o modeloagroexportador do país baseado no latifúndio monocultor com um alto custoambiental. O preço de exportação das commodities embute um sistema deprodução rudimentar e tradicional alicerçado na ampla oferta de terras e deforça de trabalho a baixo custo. Este sistema responde rapidamente ao aumentoda demanda exterior de produtos agrícolas e/ou de setores não-agrícolas daeconomia nacional.

Mas, ainda segundo Furtado, a contrapartida dessa flexibilidade encontra-seem "custos invisíveis" do ponto de vista econômico, mas conspícuos em termosambientais e sociais, que "se traduzem principalmente na destruição do patrimôniode recursos naturais do País e no sacrifício das massas rurais, que continuamsubmetidas as mais duras formas de exploração" (FURTADO, 1972;SZMERCSÁNYI, 2006).

As afirmações de Furtado ilustram como se constrói uma parte da eficiênciada agricultura patronal. Diferentemente do que se costuma afirmar, não se tratade uma escolha de desapropriar ou não áreas degradadas. Uma área improdutivaem 2011, com índices dos anos 70, é uma área (não explorada) muito malexplorada, cujo proprietário não se preocupa com a degradação dos solos, dosrecursos naturais e com a preservação da vegetação original.

A discussão sobre os PDS's, neste Estado, teve início em demandaapresentada pelo MST logo no início da gestão do governo Lula, em 2003. OMovimento demandou que na criação e desenvolvimento dos assentamentosfosse trabalhada uma nova concepção, indo além da produção em lotesindividuais, que afirmasse um modelo que questionasse o modelo agrícola baseadona revolução verde baseado em monoculturas (intensivo em insumos químicos epoupador de força de trabalho) e, impactante sobre o meio ambiente e os recursosnaturais.

Essas demandas estavam plenamente de acordo com as diretrizes da gestãodo INCRA, em 2003, que colocavam como desafios para a política de

Page 295: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 295

assentamentos: i) a busca da sustentabilidade social, econômica, cultural eambiental; ii) trabalhar a partir do conceito do assentamento enquanto um processode reconstrução da cidadania, da vida comunitária das famílias envolvidas eresgate de tradições e conhecimentos nos seus mais diversos campos (produtivo,cultural, etc.) e; iii) resgatar as experiências positivas já desenvolvidas no campoda reforma agrária.

A partir da demanda do MST e buscando nas ações em curso executadaspelo INCRA, encontrou-se na normativa dos PDS's, a possibilidade deconstrução de um novo modelo de assentamento que privilegiou a organização ea experimentação de uma produção grupal e, mais ainda, que trazia na suaformação um forte debate sobre a matriz produtiva buscando afirmar um processode transição produtivo rumo à sustentabilidade ambiental.

Embora os PDS's tenham sua origem no atendimento à reivindicação doMovimento Nacional dos Seringueiros e estejam baseados em um sistema deexploração agroextrativista da floresta original, em São Paulo, a bandeira é docompromisso com a restauração ambiental das reservas legais (RL), áreas depreservação permanente (APP) e adotar sistemas produtivos não impactantesao meio ambiente.

A primeira experiência ocorreu no município de Serrana, região de RibeirãoPreto, SP, quando da criação do assentamento Sepé Tiaraju. Neste assentamento,localizado na região considerada o coração da agricultura patronal canavieira,houve todo um processo de maturação que caminhou passo a passo com aorganização dos assentados.

A região de Ribeirão Preto também se destaca pela presença de um movimentosocial ativo que questiona a forma como o setor do agronegócio usa e se apropriados recursos naturais, merecendo destaque a luta pela preservação e proteçãodas áreas de recarga do Aqüífero Guarani3. Nesta região a cobertura vegetalnativa é da ordem de 13,7 %, de acordo com o Inventário Florestal do Estado

3Trata-se de um aqüífero poroso com um volume de água utilizável de 40 km3/ano, segundodivulgou o Departamento de Águas e Energia do Estado de São Paulo (DAEE). Essevolume de água é mais que suficiente para abastecer os cerca de 15 milhões de habitantesque vivem sobre a superfície do aqüífero (Araújo et al., 1995) Daí a importância do controledo uso dessa água para a produção agrícola/pecuária e agroindustrial, Pois, a demanda deágua na do Aqüífero, que engloba Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai deverá crescermuito, o que aumenta o interesse pelos recursos hídricos (superficiais e subterrâneos)nessa região.

Page 296: retratos de assentamentos

296 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

de São Paulo, realizado pelo Instituto Florestal no ano de 2002.O INCRA e as famílias beneficiadas assinaram um compromisso junto ao

Ministério Público Estadual de recuperar a vegetação nativa, promover umaprodução diversificada baseada na agrofloresta e, em função do assentamentoestar localizado em área de recarga do Aqüífero Guarani, destinou-se 35% daárea para reserva legal.

É importante destacar, conforme depoimentos colhidos pelo autor entre 2008e 2009 nas audiências de avaliação do andamento do acordo realizado entreassentados, INCRA e Ministério Público Estadual, que, no assentamento SepéTiarajú, as áreas coletivas, criadas quando do desenho do assentamento, têmpermitido um conjunto de experiências de produção coletiva ou associadaprincipalmente nas lavouras anuais de feijão e mandioca.

Atualmente, em São Paulo, existem 18 PDS's em construção, localizados emdiferentes regiões e em diferentes ecossistemas (mata atlântica, restinga e cerrado)e que envolvem diferentes públicos. Essas experiências envolvemaproximadamente 1.384 famílias em uma área total superior a 17 mil hectares,sendo que desse total mais de 11 mil hectares estão localizados na região daMata Atlântica. Maiores detalhes conferir no quadro apresentado abaixo.

Assim, é possível mostrar que também a proposta original dos PDS's sereproduz em São Paulo. Nos assentamentos de Apiaí e de Eldorado existe umtrabalho sendo desenvolvido junto à comunidade incentivando a produçãosustentável nas áreas abertas, o enriquecimento da Mata Atlântica e odesenvolvimento do ecoturismo e de extrativismo.

No caso do PDS Caçandoca, é importante destacar que ele é produto daluta da comunidade quilombola, e que a área foi desapropriada pelo INCRA aofinal de 2006. No caso do PDS Agroambiental Alves, Pereira e Teixeira, trata-se de uma luta mais que centenar de famílias de posseiros residentes no municípiode Eldorado, Vale do Ribeira.

Page 297: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 297

Quadro 1 – Projetos de Desenvolvimento Sustentável noEstado de São Paulo.

Fonte: Incra SP, Relatório SIPRA 21/07/2009.

PDS Município Área (ha) N° de Famílias

Sepé Tiarajú Serrana 798,00 79

Agroecológico H. Mazzilli Caconde 135,53 25

Comunidade Agrária 21 de

dezembro

Descalvado 378,91 40

Horto Florestal Aurora Descalvado 533,36 80

Santa Helena São Carlos 98,83 19

Fazenda da Barra Ribeirão Preto 1.548,48 468

Comuna da Terra Milton

Santos

Americana 103,45 85

São Luiz Cajamar 123,07 37

Elizabete Teixeira Limeira 602,87 150

Comunidade de

Remanescentes de Quilombo

da Caçandoca

Ubatuba 210,00 53

Comuna da Terra Olga

Benário

Tremembé 692,13 63

Comuna da Terra Manoel

Neto

Taubaté 378,91 44

Bom Jesus Iepê 68,36 37

Boa Esperança João Ramalho 54,69 40

Agroambien tal Alves,

Pereira e Teixeira

Eldorado 3.072,68 64

Professor Luiz de David

Macedo

Apiaí 7.767,22 86

Ribeirão do Pio Miracatu 406,10 08

PDS Agroecológico Itanhaém 153,26 06

Total 17.002,77 1384

Page 298: retratos de assentamentos

298 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Estes processos são cheios de contradições, eles exigem muita paciência ematuridade dos envolvidos (assentados, técnicos e outros atores) uma vez quese está trabalhando com novas formas de organização da produção, novossistemas produtivos, baixa disponibilidade de recursos financeiros e uma novaconcepção de relação entre os seres humanos e o meio ambiente.

Dessa forma, necessitariam de todo um cuidado em termos de políticaspúblicas, a dificuldade está em criar políticas próprias para uns que outrosassentados e organizações sociais não terão acesso.

Lembrando, também, que o processo de transição para sistemas agrícolassustentáveis é um processo lento, que exige dos seus adeptos o acesso a ummaior nível de conhecimento das ciências naturais. No caso da reforma agrária,essa transição é aceita pela organização dos movimentos sociais e por boa parcelada sua base social, mas ela necessita ser acompanhada por um intenso processode capacitação e de acesso à informação, que passa, inclusive, pela elevaçãodos níveis de escolaridade.

O INCRA-SP, para dar impulso a esse processo, estabeleceu parcerias cominstitutos de pesquisa e universidades, merecendo destaque as parcerias com aEmbrapa Meio Ambiente (Jaguariúna-SP), a ESALQ-USP, o Ministério daAgricultura e o Instituto Agronômico de Campinas.

Também, da parte da Superintendência e dos movimentos sociais houve todauma demanda para a formação de assentados e seus na área da agroecologia.Através do Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária)foram formadas três turmas, em diferentes localidades do Estado, que teve 143formandos. Em outra parceria foi criado um curso de Agronomia com ênfase emagroecologia e que conta com 53 alunos.

É importante frisar que a discussão sobre os PDS's é feita desde o início,quando as pessoas ainda nem foram selecionadas. Existe todo um esforço demantê-la ao longo dos primeiros anos do assentamento que é o período em quea prioridade é a reconstrução da vida das famílias assentadas e, o fundamentalpassa a ser garantir uma moradia digna, luz, água (este o mais árduo, em funçãodas flutuações orçamentárias), dar início à produção de subsistência e obtençãode renda. Sem não for assim, não há como pensar os passos seguintes, muitomenos o desenvolvimento com a preservação e recuperação do meio ambiente.

Além do mais, este processo está sujeito há uma série de avanços eretrocessos. Do ponto de vista do INCRA-SP, as dificuldades estão no fato dedepender de transferência de recursos do INCRA-Sede. Estes muitas vezesnão chegam no momento devido, somando-se existe a restrição de iniciativas

Page 299: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 299

criativas nas políticas próprias do INCRA, pois, os normativos são extremamenteamarrados impedindo maior criatividade nas políticas de assentamento.

Projetos de Desenvolvimento Sustentável: a afirmação de um novomodelo de agricultura

Os PDS's são uma possibilidade de a política pública recuperar oconhecimento tradicional do caboclo brasileiro que se encontra disperso. Esteconhecimento nos PDS é recuperado através das roças, dos sistemasagroflorestais, dos sistemas de mosaicos, do sistema complexo, que, com oauxílio das ciências ambientais, permite explorar as interações positivas entre asdiferentes plantas que compõem o agroecossistema e valorizar a biodiversidade.

Esta é uma maneira de valorizar a biodiversidade e o conhecimento tradicional.E demonstrar para assentados, formuladores de políticas públicas e a sociedadeque estas práticas têm retorno econômico, produtivo, ambiental e cultural. Assim,desenvolvendo habilidades e recuperando a auto-estima dos assentados.

Os PDS's são um exemplo e uma experiência que demonstram a possibilidadede se compatibilizar os objetivos sociais da inclusão social, uso do solo e acessoà terra, com a preservação ambiental. Além do que já foi citado anteriormentemerecem ainda nos PDS's Sepé Tiarajú, Apiaí as seguintes situações: no PDSSepé, a Embrapa montou uma unidade demonstrativa de SAF que foi reproduzidaem vários lotes. Estes SAF's misturaram plantas nativas e exóticas, forammisturadas espécies de diferentes estratos arbóreos. Após 04 anos (em 2008)os primeiros resultados apareceram: a ampla diversidade de cultivos garante acolheita e comercialização de produtos agrícolas o ano todo.

Além do mais nos lotes com sistemas de mosaicos, SAF's, etc. o grau decobertura do solo garantiu maior reserva de água e o prolongamento do períodode colheita de hortaliças e frutas. No de 2009, o inverno foi extremamente secoe, mesmo assim, esses lotes lograram realizar suas entregas para os mercadosconsumidores e para os contratos mantidos com o Programa de Aquisição deAlimentos e Doação Simultânea do Governo Federal.

O trabalho desenvolvido pela Embrapa estimulou a criatividade produtiva noassentamento e busca pela experimentação. Também, foram notados casos deampliação da diversidade, em sistemas menos diversificados, com a introduçãode novas espécies ampliando assim a produção e os períodos de colheita ecomercialização.

Outro caso importante de ser citado é o de Apiaí, onde ocorreu o resgate daprodução de feijão consorciada com o milho, no assentamento. Atualmente, são

Page 300: retratos de assentamentos

300 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

cultivadas mais de 10 variedades de feijão, um resgate de hábitos alimentarestradicionais. Também aqui, a produção está sendo realizada sem o uso deagrotóxicos.

Logo no início, no assentamento Professor Macedo, foi introduzido o hábitodo cultivo de adubação verde para a recuperação e adubação dos solos.Recentemente, produto de uma parceria com a ESALQ-USP, está sendoorganizado um SAF com árvores nativas com potencial madereiro, juntamentecom outras frutíferas destacando-se entre elas o caqui e o limão tahiti, a mandioca,entre outros.

Valendo destacar a produção de tomate orgânico, que está sendodesenvolvida neste assentamento, cujo custo de produção é 80% mais baixoque o convencional e não faz uso de adubos e agrotóxicos (INCRA, 2012).

ConclusõesNo Brasil, a revolução verde cumpriu o papel de ser a base tecnológica do

processo de modernização conservadora. Ela garantiu o aumento da produçãoe o abastecimento urbano e industrial sem a necessidade de se promover umareforma agrária.

Além dos problemas sociais e econômicos dela advindos, a migração campo-cidade por ser poupadora de mão de obra e garantindo a economia de baixossalários, a revolução verde também foi altamente impactante ao meio ambiente,acentuou processos erosivos de solos, promoveu os monocultivos e a elevaçãoda concentração da propriedade da terra e criou uma forte dependência noconsumo de agrotóxicos.

Em São Paulo, a parceria entre os movimentos sociais, o poder público e asdiferentes áreas da ciência permitiu a experimentação na busca de se construirnovas modalidades de desenvolvimento de assentamentos. Estas experiênciasbuscaram promover a organização produtiva e social dos assentados e a construçãode novas matrizes produtivas não baseadas na tecnologia da revolução verde.

A alternativa ensaiada nos Projetos de Desenvolvimento Sustentável – PDS'sexige dos assentados, da instituição INCRA e da sociedade envolvente umanova postura ante o desenvolvimento dos assentamentos. Deve haver maiorpresença, a construção alianças estratégicas para viabilizar políticas públicascoerentes. Além disso, exige do INCRA maior criatividade com relação às normasde execução relacionadas com o desenvolvimento de assentamentos, maiordisponibilidade de recursos e uma equipe preparada, ágil e criativa para inovarnas ações de desenvolvimento.

Page 301: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 301

Além do mais, pelas contradições que do próprio processo, é necessáriomuita paciência e maturidade dos atores envolvidos: assentados, técnicos, outrosórgãos públicos, pesquisadores entre outros. Pois, se está trabalhando com umanova proposta de concepção da relação entre os seres humanos e entre estes eo meio ambiente.

Os primeiros anos do assentamento são o período em que a prioridade dosassentados se concentra na reconstrução da vida das famílias assentadas:construção de moradia digna, luz, água, início da produção e obtenção de renda.Vencida esta etapa têm-se as bases para os passos seguintes do desenvolvimentosustentável.

É importante lembrar, conforme propõe Gliessman (2000), que a transiçãoagroecológica dentro dos sistemas produtivos é um processo que envolve trêspassos: o primeiro é da redução e racionalização do uso de insumos químicos;o segundo é o da substituição de insumos e; o terceiro é o manejo dabiodiversidade e redesenho dos sistemas produtivos. Este ciclo se encerra paraalém do sistema produtivo agropecuário que envolve as condições externas àunidade de produção, ele envolve a sociedade e o Estado.

No cenário atual, em que se projeta para o País um aprofundamento domodelo agroexportador centrado em grandes monoculturas como a cana,eucalipto, algodão, soja, etc., as experiências dos PDS's, baseadas na produçãoalternativa e apoiadas por políticas públicas, que pese seu estágio inicial, mesmocom seus limites em termos de abrangência territorial e, falta de mais recursos,podem ser uma referência na busca de alternativas para garantir uma agropecuáriamais sustentável, tanto do ponto de vista ambiental e da proteção dos recursosnaturais, como resgatando, reproduzindo e valorizando o conhecimento tradicionaldo povo brasileiro e promover maior eqüidade social.

Referências

Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA Qual é a questãoagrária atual? São Paulo: ABRA, 22p., 2007

ALY JR., Osvaldo Políticas públicas e desenvolvimento de assentamentos umbalanço dos anos 2003-2005 no estado de São Paulo. II Jornada de estudosem assentamentos rurais, Unicamp. In: Anais..., Campinas, 2005.

__________Gestão ambiental e agricultura familiar: os limites impostos pela

Page 302: retratos de assentamentos

302 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

falta de políticas públicas. Congresso Latino-americano de Sociologia Rural.In: Anais..., Porto Alegre, 2002.

BARONE, Luis A.; FERRANTE, Vera L. S. Botta Para onde vão osassentamentos rurais: por um balanço das possibilidades institucionais dareforma agrária em São Paulo (Brasil). VIII Congresso Latinoamericano deSociologia Rural. In: Anais..., Porto de Galinhas, 2010.

BEUS, Curtis E.; DUNLAP, Riley E. Agricultura convencional versusalternativa: as raízes paradigmáticas do debate. 19p., 1990 (mimeo).

DEAN, Warren A Ferro e Fogo: a história e a devastação da Mata AtlânticaBrasileira, São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 484 p.

Embrapa – Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento MarcoReferencial em Agroecologia. DF:Brasília, 2006, 70p.

FRANCO, Mariana P. Seringueiros e cooperativismo o fetichismo dasmercadorias nos seringais do Alto Juruá. In: MEDEIROS, Leonilde et alliAssentamentos Rurais: uma visão multidisciplinar. São Paulo: EditoraUnesp, 1994, 329p.

FURTADO, Celso Análise do Modelo Brasileiro. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1972, 112p.

INCRA Estatuto da Terra. Lei n.5404, de 30 de novembro de 1964.Distrito Federal, Ministério do Desenvolvimento Agrário, Instituto Nacional deColonização e Reforma Agrária, s/d, 55p.

INCRA/MDA, Ministério do Meio Ambiente, Conselho Nacional dosSeringueiros – CNS Projeto de Desenvolvimento Sustentável, DistritoFederal, 2000, 50p.

___________ II Plano Nacional de Reforma Agrária, 2004, 38p.

INCRA-SR08/MDA Boletim da Reforma Agrária em São Paulo. SãoPaulo, mar/2012.

Page 303: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 303

____________ Relatório de Gestão 2003 e Proposta de Plano Regionalde Reforma Agrária para o Estado de São Paulo, São Paulo, 2004, 27p.,mimeo.

LEITE, Sérgio; HERÉDIA, Beatriz; MEDEIROS, leonilde; PALMEIRA,Moacir; CINTRÃO, Rosângela. Impacto dos Assentamentos: um estudosobre o meio rural brasileiro. São Paulo: Ed Unesp, Brasília: MDA/NEAD,2004.

QUEDA Oriovaldo; KAGEYAMA Paulo; SANTOS, João Dagoberto.Assentamentos rurais: alternativas frente ao agronegócio. Retratos deAssentamentos, Araraquara, n.12, p.47-68, 2009.

RAMOS FILHO, Luiz O; SZMRECSÁNYI, Tamás; PELLEGRINI, JoãoB.R. Biodiversidade e reforma agrária: uma experiência agroecológica naregião canavieira de Ribeirão Preto, Brasil. Congress of the Latin AmericanStudies Association, Canada, Montréal, September 5-8. In Anais...,Montreal, 2007.

SILVA, Raimundo P.; CYRINO, Guilherme Reforma Agrária: Trajetória deuma política pública em São Paulo (2003-2005), 2005, 7p. (mimeo).

SZMRECSÁNYI, Tamás. Análise da estrutura agrária na teoria dedesenvolvimento econômico de Celso Furtado. In: STOREL JR, Antonio O.(Org.) Tamás Szmerecsanyi e a análise sobre a agropecuária brasileira.São Paulo: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, 2010, 93p.

Page 304: retratos de assentamentos

304 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Page 305: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 305

ÍNDICES DE PRODUTIVIDADEAGRÍCOLA: NOTAS ESPARSAS EMBUSCA DE UM SENTIDO

Oriowaldo Queda1

1Professor Titular Aposentado ESALQ/USP e docente do Mestrado em DesenvolvimentoRegional e Meio Ambiente/UNIARA.

Resumo: Este artigo analisa o tratamento dado pelos defensores da necessidadede atualizar os índices de produtividade agrícola no Brasil, bem como o daquelesque pregam pela sua desnecessidade. Foram utilizados artigos e entrevistaspublicados em jornais paulistas de autores expressando pontos de vista própriosou os de entidades representativas dos trabalhadores ou, ainda, de entidadesoficiais, em especial, aquelas ligadas ao Ministério do Desenvolvimento Agrárioe Instituto Nacional de Reforma Agrária. Neste caso, todos defendem anecessidade de atualização desses índices como justificativa principal para facilitare apressar a execução da Reforma Agrária. Os argumentos daqueles quedefendem ser desnecessária a sua atualização foram colhidos também em artigose entrevistas publicadas em revistas e em jornais paulistas. Da mesma forma,apareceram autores que defendem pontos de vistas pessoais, como os deentidades representativas do patronato rural e de órgãos públicos, em especial,o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Tanto os defensores danecessidade quanto da desnecessidade de atualização desses índices reconhecemas mudanças tecnológicas que consolidaram uma agricultura capitalistaconvencional. Como resultado, quanto mais atualizado forem esses índices paralevar em conta o "progresso científico e tecnológico", hoje disponível, menosecológica e sustentável será a nossa agricultura.

Palavras-chave: Reforma Agrária; Assentamentos Rurais; Índices deProdutividade Agrícola; Agrobiodiversidade; Agricultura Capitalista Convencional.

Page 306: retratos de assentamentos

306 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Abstract: This article examines the issues related to the need of updatingthe indices of agricultural productivity in Brazil and evaluates the ways inwhich supporters and opponents of this issue express their concerns. Thisstudy is based on articles and interviews published in newspapers in SaoPaulo, written by authors whose views were reflected in the pages of theirproducts and the views of trade unions representing workers, or officialentities, particularly those linked to the Ministry of Agrarian Developmentand the National Agrarian Reform Institute. In this case, all involved are inagreement with the proposal for updating these indices in order to improveand hasten the implementation of the Agrarian Reform. The arguments ofthose who oppose the proposed updating process were also taken fromarticles and interviews published in magazines and newspapers in Sao Paulo.Likewise there were other authors who expressed their opinions, as themembers of the employer representative bodies and rural governmentagencies, particularly the Ministry of Agriculture, Livestock and FoodSupply. Both supporters and opponents emphasized the role of technologicalchanges in driving the consolidation of capitalist conventional agriculture.In conclusion, one can say that frequent updates of these indices, in termsof "the scientific and technological progress", which is now available, mightwell compromise agricultural sustainability.

Keywords: Agrarian Reform; Rural Settlements; Agricultural ProductivityIndexes; Capitalist Conventional Agriculture; Agrobiodiversity.

IntroduçãoA atualização dos índices de produtividade agrícola tem sido objeto de

controvérsias. Desde o governo José Sarney (1985 – 1990) até o de Luiz InácioLula da Silva (2003 – 2010), muitas promessas de atualização desses índicesforam feitas, mas em nenhum desses governos elas foram cumpridas. Até momento(2012), o mesmo tem acontecido com o governo de Dilma Rousseff, pois mesmoantes da sua posse, a promessa era mais uma vez feita, conforme relata RoldãoArruda em reportagem: "Dilma afirma que vai rever índice de produtividadeRural" (O Estado de São Paulo, 04. 11. 2010 p. 10).

Este trabalho não tem como objetivo principal relatar a história das iniciativasgovernamentais quanto às exigências e à necessidade de elaboração de índicesou indicadores de produtividade agrícola. Também não tem a pretensão deinventariar as pesquisas referentes a esse tema e, em especial, as disputas

Page 307: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 307

metodológicas proporcionadas pelos pesquisadores2.Argumenta-se neste ensaio que a atualização dos índices de produtividade

agrícola e a exigência de sua aplicação tenderiam a reforçar o padrão deagricultura convencional, hoje dominante no mundo todo. Portanto, esta ação,em nossa opinião, é contrária à construção de uma agricultura ecologicamentemais sustentável .

A Constituição Federal brasileira de 1988 manteve o caráter relativo do direitoà propriedade privada. No seu art. 5°, XXII, ela garante o direito de propriedade,para logo em seguida, no mesmo art. 5°, XXXIII, condicioná-lo ao cumprimentosocial. Particularmente no que se refere à sua dimensão produtiva ou estritamenteeconômica. As outras funções como a utilização adequada dos recursos naturaisdisponíveis e preservação ambiental (eis a questão), observância das disposiçõesque regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem estar dosproprietários e trabalhadores não têm sido cobradas com a mesma insistência.O que não significa que elas não tenham sido pesquisadas.

Para efeito de regulamentação, o Congresso Nacional aprovou, em25.02.1993, a Lei Nº 8629, conhecida como Lei Agrária. No caput do artigo6º e no artigo 11º estão as principais determinações:

Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômicae racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e deeficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão competente;Art.11º Os parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito deprodutividade serão ajustados, periodicamente, de modo a levar em contaao progresso científico e tecnológico da agricultura e o desenvolvimentoregional, pelo Ministério da Agricultura e Reforma ouvido o ConselhoNacional de Política Agrícola.

É sobre esse ajustamento periódico dos índices, parâmetros e indicadoresque se instalou a polêmica entre aqueles que defendem a atualização e aquelesque a rejeitam.

2O leitor encontrará em Ramos (2005); Teixeira (2005) material a esse respeito. Materialequivocado, diga-se de passagem, mas que tem servido para sustentar essa polêmica.3Uma análise sobre padrões de agriculturas convencional e alternativa está em Beus, Dunlap(1990) e Queda, Kageyama, Santos (2009).

Page 308: retratos de assentamentos

308 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Foram utilizadas opiniões de autores publicadas em artigos, depoimentos eentrevistas, na imprensa, notadamente a paulista, empregando argumentos dosmais variados para defender a desnecessidade de atualizar os citados índices,além de autores que estiveram preocupados em sustentar que não há oposiçãoentre o agronegócio e a agricultura familiar. Isto porque esses autores defendemuma agricultura que desrespeita o cumprimento das funções sociais da propriedaderural, citadas logo acima. Assim procedendo, rejeitam sequer discutir apossibilidade de outro padrão de agricultura.

Ao mesmo tempo, foram utilizados os pronunciamentos de autores em artigos,entrevistas e depoimentos, notadamente também na imprensa paulista, quedefendem a atualização dos índices de produtividade agrícola, como principaljustificativa para facilitar e apressar a reforma agrária.

A cobrança pela atualização dos índices de produtividade agrícola tem sido amanifestação mais constante nos pronunciamentos da Coordenação Nacionaldo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e também da ConfederaçãoNacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).

Em entrevista concedida ao jornal O Estado de S. Paulo de (30.08.2009),João Paulo Rodrigues, da Coordenação Nacional do MST, quando indagadosobre a real importância da atualização dos índices de produtividade agrícolaresponde: "a atualização dos índices vai dar mais agilidade e condições para ogoverno cumprir a lei e desapropriar as fazendas que são improdutivas, mas quese escondem atrás dos números de 1975. Mesmo assim, serão usados dadosde 1996 para a realização, ou seja, ainda de anos atrasados". (Entrevistareproduzida em <[email protected] em 02.09.09). Mais adiante, quandosolicitado a responder se concordava com as exigências dos "ruralistas" de queos mesmos índices deveriam ser aplicados nos assentamentos, ele responde:"Ótimo. É isso mesmo o que queremos: que a sociedade compare aprodutividade por hectare de um assentamento e da agricultura familiar, com asfazendas acima de 2000 ha".

Finalmente, ao responder "sobre o peso do quesito improdutividade naarrecadação de terras para a reforma agrária" o coordenador nacional do MSTresponde: "o peso é muito pequeno, porque a lei determina que o governodesaproprie todas as fazendas que não cumprem a função social. Não há funçãosocial nas fazendas que têm trabalho escravo, desrespeitam o ambiente ou sãoutilizadas pelo narcotráfico".

Guilherme Cassel, ministro do Desenvolvimento Agrário do governo passado,em entrevista dada ao jornalista João Domingues, do jornal O Estado de S.

Page 309: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 309

Paulo, diz que "os índices de produtividade agrícola (atuais) são inaceitáveispremiariam a improdutividade e impediriam o andamento mais rápido da ReformaAgrária".

Quanto à segurança que os produtores teriam de que suas terras não seriamfacilmente desapropriadas, o então ministro responde: "Todas". Nosso trabalhoé técnico, completo, dá muita segurança a quem produz. Ninguém precisa termedo. Será feito porque o índice de produtividade não é reajustado há 35 anos.E o Estado tem de fazê-lo. Mais adiante, afirma: "a intenção é proteger aprodutividade" (sic).

O jornalista Rolf Kuntz, em matéria publicada no jornal O Estado de S.Paulo (22.02.2006, p.B6), relata que "o ministro Roberto Rodrigues se opõe àfixação de novos níveis mínimos de produtividade para identificação de terraspassíveis de desapropriação para a reforma agrária." O jornalista afirma, ainda,segundo Roberto Rodrigues, que a definição de padrões mínimos deprodutividade perdeu o sentido com a abertura da economia brasileira. "Há 40anos, o mercado nacional era fechado e a eficiência era baixa. Hoje, aprodutividade é uma exigência da globalização e a agropecuária brasileira éconsiderada uma das mais competitivas do mundo". Na mesma matéria o ministrolembrou que a "produção de grãos e oleaginosas mais que dobrou desde ocomeço dos anos 90 e deve chegar neste ano [2006] a 124 milhões de toneladas"enquanto "a área plantada cresceu apenas 28,9%". Roberto Rodrigues relata aojornalista que o aumento de produtividade "permitiu derrubar os preços aoconsumidor e impulsionar as exportações".

Roberto Rodrigues, agora na condição de ex-ministro do governo Lula, fazde conta que desconhece que a terra é um bem natural, quando produz outrosargumentos contrários à atualização dos índices. Em artigo publicado no jornalFolha de S. Paulo (04.08.2007, p.B2), ele faz a pergunta:" É preciso reveríndices de produtividade?". É taxativo ao afirmar que o "agronegócio brasileirohoje é extremamente eficiente e competitivo, a produtividade aumentouespetacularmente e os índices ficaram desatualizados. Mas, então por que corrigi-los agora? Por que aumentá-los? Só para ampliar o número de hectares para areforma agrária? Por que só no campo se exige uma produtividade mínima?Essa exigência, para o ex-ministro, é injusta, pois "afinal os agricultores investiramem tecnologia, e, com isso, a produtividade cresceu. "Aumentar os índices seriaum castigo para quem investiu e melhorou as coisas para o País".

A contradição é aberrante: como entender a ênfase e a exigência dereconhecimento de que o agronegócio brasileiro é hoje extremamente, competitivo

Page 310: retratos de assentamentos

310 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

e que a produtividade agrícola aumentou espetacularmente e ao mesmo temporecusa a proposta de alterar os índices de produtividade? Índices que levaramem conta o "progresso científico e tecnológico" tão alardeado? É falso concluirque "Hoje, o produtor rural que não for produtivo também quebra".

Guilherme Cassel, então ministro do governo Lula, em resposta ao artigo deRoberto Rodrigues, é polido demais ao afirmar que "segundo a propostaelaborada em conjunto pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário e o Ministérioda Agricultura, Pecuária e Abastecimento, quem produz não é atingido" (Folhade S. Paulo, 03.09.2007, p.A3). Guilherme Cassel procurava aquietar osruralistas, ao salientar que "Os índices que estão sendo propostos são inferioresaos praticados pela grande maioria dos produtores, atingindo apenas os 10%menos produtivos do País".

A repórter Beth Melo em sua reportagem "Produtor debate nova proposta"(O Estado de S. Paulo, AGRÍCOLA, 02.08.2006, p. G3) relata:"Representantes da cadeia produtiva do agronegócio reúnem-se hoje, em Brasília(DF), para discutir a proposta do deputado Xico Graziano (PSDB/SP), quesugere nova sistemática para definir o conceito de produtividade rural." Segundoa jornalista, para o citado deputado, "A questão mais importante não ésimplesmente aumentar o índice de produtividade, que é o que o governo propõe,mas garantir, em contrapartida, a compra da safra a preços acima do custo deprodução". E acrescenta: "No caso da próxima safra de soja, por exemplo, nãoé razoável exigir que o produtor aumente a produtividade porque o preço estáruim". Generoso, o deputado sugere que o laudo de avaliação da propriedadeleve em conta a qualidade do solo, e a condição climática da região, considerandoos três últimos anos para grãos e para a pecuária e cinco anos para culturaspermanentes.

Ainda segundo a mesma reportagem, a preocupação dos produtores é "comrisco de desapropriação de muitas propriedades produtivas" (Idem). No mesmorelato da jornalista, para Anaximandro Deudement Almeida, assessor técnico daComissão Nacional de Assuntos Fundiários, da Comissão Nacional de Agriculturae Pecuária (CNA), os índices do governo não correspondem à realidade porqueleva em conta apenas o índice de produtividade física da terra em relação àcapacidade de produção, isto é, "Não considera a tecnologia, crise einvestimentos". Criticando o estudo realizado por professores da Universidadede Campinas, o assessor declara: "Foram anos sem adversidades climáticas,além de preços e taxas de câmbio favoráveis que permitiram ao produtor teralto rendimento".

Page 311: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 311

Em outra reportagem, o jornalista José Maria Tomazella (O ESTADO DESÃO PAULO, "Produzir mais, às vezes, é ter prejuízo", 30.08.2009, p. A13)ouviu de Frederico D´Avila, dono da fazenda Jequitibá do Alto, em Buriti, sudoestepaulista, o seguinte comentário: "A gente investe na alta produtividade para ganharno volume, mas produzir mais, às vezes, significa ter prejuízo".

João Paulo Rodrigues, da Coordenação Nacional do MST, avisou que"Aqueles que estiverem produzindo, nada precisam temer". Isto porque, comojá foi registrado neste trabalho, os dados utilizados para a atualização dos índicessão de 1996. O mesmo já havia sido afirmado por Guilherme Cassel emreportagem de José Maria Tomazella (O ESTADO DE SÃO PAULO, "Revisãode índices trará escalada de invasões, alertam produtores", 29.08.2009). Oministro da época declara que: "quando o proprietário, por questões econômicas,deixou de plantar, ele pode justificar. Se resolver que, naquele ano, vai fazer ummelhoramento no solo, não corre o risco de ser desapropriado".

Nesta mesma reportagem, a senadora Kátia Abreu considera os novos índices"desonestos", pois só levam em conta o tamanho da terra e a quantidade deprodução. Para a senadora, "Outros fatores importantes como o crédito, osjuros, a mão de obra, o mercado e a renda não foram considerados" (Idem).

Para a senadora a "livre iniciativa [é] consagrada pelas leis brasileiras e regidapelo mercado". Deste modo, "nenhuma atividade pode ficar impedida de recuarna produção, se as pessoas não tiverem necessidade daquilo que está sendoproduzido" (Idem). E para finalizar, os novos índices vão "forjar" latifúndiosimprodutivos, pois a "mudança ocorre num momento em que os produtoresestão sendo compelidos a transformar áreas de produção (sic) em reserva legal.É como tirar o tubo e deixar o produtor sem oxigênio" (Idem).

Pois é, a senadora Kátia Abreu ao ensinar "Um princípio do capitalismo"(FOLHA DE SÃO PAULO, 13.10.2011, p.B) escreve: "Capitalismo implicaque cidadãos e as empresas se responsabilizem por suas ações. Lucros e prejuízossão igualmente assumidos por aqueles que realizam seus empreendimentos,fazendo determinada escolhas".

A esses argumentos utilizados por aqueles que se expressam pessoalmente,ou como porta vozes de variadas associações e entidades sindicais, deve-seacrescentar o pedido de "socorro urgente para o campo – mais dinheiro, parasustentar os preços na safra, prorrogação de vencimentos, caso a caso, (sic)mais recursos para a temporada 2006-2007 e uma série de medidas para reduçãode custo, enfeixadas numa 'MP do Bem' para o setor rural", contido nareportagem de Rolf Kuntz (O ESTADO DE SÃO PAULO, "Agricultura pede

Page 312: retratos de assentamentos

312 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

uma MP do Bem", 22.02. 2006, p. B6), já citada.A polêmica sobre os índices de produtividade rural pode ganhar maior

contorno se prestarmos atenção à outra polêmica, mas ligada à ela: é a que serefere ao "agronegócio" e a agricultura familiar, dentro e fora dos assentamentosrurais.

Para aqueles contrários à atualização desses índices, tornou-se um lugarcomum afirmar que todos os produtores rurais pertencem ao chamadoagronegócio. Nem mesmo o tamanho da propriedade se configura comodiferença. E, por fim, que todos querem a mesma coisa: o Brasil como celeirodo mundo. Mas isso é falso, pois os grandes produtores rurais de commoditiesnão querem a mesma coisa que aqueles que dependem de salários para sustentarsuas famílias.

Vejamos como se expressam alguns dos donos do agronegócio, bem comode alguns daqueles que se expressem em nome dele.

Roberto Rodrigues, ex-ministro do Ministério da Agricultura, Pecuária eAbastecimento, do governo de Luis Ignácio Lula da Silva, negou existir dicotomiaentre grandes e pequenos. Entrevistado pela revista Carta Capital (01.09.2004,p. 45), ele afirma: "Há uma falsa dicotomia do processo agronegócio vis-à-vis aagricultura familiar. Agronegócio são todas as formas de agricultura. Começa naprancheta de um pesquisador e termina na gôndola do supermercado. Aeconomia globalizada exige padrões tecnológicos que garantam acompetitividade, se não, não se consegue avançar sobre os mercados,além de se transformar em importante importador de produtos agrícolasde países mais eficientes. (Grifos nossos). Os processos de modernizaçãosão irrecorríveis. Temos de fazer com que esses processos não destruam asustentabilidade no seu conceito lato, que implica tudo: garantias de preservaçãoambiental, de renda, de função social da terra etc". Porém, quando indagado se"O Brasil dá munição para os países que impõem barreiras não tarifarias?" oentão ministro responde: "Eu acho que realmente a gente, às vezes, dá um poucode munição para o adversário. Mas, enfim, isso faz parte da vida".

Para Guilherme Delgado, "O agronegócio é a associação do grande capitalcom a grande propriedade: todos ganham" (CARTA CAPITAL, 01.09.2004,p.43). De acordo com o economista os mesmos proprietários que têm fazendas-modelos na produção agrícola detêm latifúndios improdutivos, áreas vazias àespera de especulação. Ao mesmo tempo que valorizam os altos índices deprodutividade agrícola de suas fazendas-modelos, mas rejeitam a sua atualizaçãopara defender seus latifúndios.

Page 313: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 313

Sergio Abranches ("Agronegócio brasileiro: uma estratégia autodestrutiva",originalmente publicado no sítio Ecopolítica e reproduzido em EcoDebate,02.06.2010) não partilha dessa crença manifestada pelo ex-ministro e faz umalerta:"Agronegócio brasileiro adota as piores práticas sócio-ambientais. Desprezaa tendência do mercado global de adotar práticas de sustentabilidade em toda acadeia de suprimentos. Um projeto economicamente suicida. O Brasil é o maiorimportador de agrotóxicos banidos no EUA e na União Europeia, por razõessanitárias. Esses produtos, muito tóxicos, são muito nocivos à saúde humana eao ambiente". Por isso mesmo, a pergunta: "Qual o projeto do agronegóciobrasileiro? Adotar as piores práticas e enfrentar barreiras comerciais crescentes?"

Os avanços científicos e tecnológicos permitiram ao agronegócio consolidarum padrão de agricultura, onde práticas de sustentabilidade e responsabilidadesocial, não foram consideradas até o presente. Por isso, Sérgio Abranchesadverte:"O agronegócio brasileiro desmata, convive com práticas ilegais, comotrabalho escravo, trabalho degradante, não assume responsabilidade pela cadeiade suprimentos (supply chain). Ao adotar más práticas de trabalho e trabalhistas,carimba os produtos como de má qualidade".

Em suplemento Especial, o jornal O Estado de S. Paulo (27.09.2009, p.H7)entrevistou dois pesquisadores da EMBRAPA. Vale registrar o entendimentoque ambos expressaram sobre os desdobramentos das atividades desenvolvidaspor aquela empresa. Para Eliseu Alves, "a criação da Embrapa (1973) significouuma economia de recursos naturais enorme para o País. A única forma de aumentara produção sem derrubar mais florestas é aumentar a produtividade, e isto se fazcom tecnologia. O resto é conversa fiada. Comida tem prioridade sobre meioambiente. É muito fácil falar de preservação ambiental quando se tem comidasobrando. Se faltasse alimento, a conversa dos ambientalistas seria outra". Elemesmo, mais tarde, receberá elogios do presidente da Sociedade Rural Brasileira,por causa do seu inovador trabalho de "atualização" dos índices de produtividadeagrícola, realizado na EMBRAPA. Por sua vez, Plínio Souza, da EmbrapaCerrado, contrapõe de forma serena e não destemperada, como a expressa porEliseu Alves, "que a preocupação com o meio é um fenômeno recente, nãoexistia nas décadas de 70, 80, quando as fronteiras avançaram sobre o cerrado.A sociedade não cobrava o governo não cobrava, o Código Florestal era umaletra morta. Quando a preocupação chegou, boa parte do cerrado já tinha idoembora".

"Quem também discorda que "os processos de modernização sãoirrecorríveis" é Rubens Ricupero ao afirmar:" As entidades do agro protestam

Page 314: retratos de assentamentos

314 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

que suas intenções são progressistas. Contudo o comportamento de parte deconsiderável de seus representados desmente as proclamações...Semcompatibilização entre produção e ambiente , o destino da agricultura será o dosuicídio dos fazendeiros fluminenses e do Rio Doce"(FOLHA DE SÃO PAULO,"Suicídio da Agricultura", 26.06.2011, p.A16).

Guilherme Delgado ao fazer o balanço de perdas e ganhos do agronegóciobrasileiro afirma que ele é negativo à nossa sociedade, pois reforça a estruturade dominação das elites brasileiras. Nas suas palavras: "O agronegócio brasileiromistura a modernidade técnica com o atraso das relações sociais. A sociedadebrasileira está acostumada a crescer sem assimilar o pessoal de baixo". (CARTACAPITAL, 01.09.2004, p.42). Para ele "o agronegócio não é solução, é partedo problema, pois resolve a vulnerabilidade externa do País, aumentando ainterna".

Por estar muito exposto à competição internacional, o agronegócio brasileiroabre um flanco para a criação de barreiras não tarifarias, segundo Marco AntonioFigihara (Carta Capital, 01.09.2004, p.45). Sustenta também que o "agronegóciobrasileiro está dando munição ao bandido quando, por exemplo, emprega trabalhoescravo e não respeita reserva legal".

Outro que endossa as mesmas proclamações de Robert Rodrigues é oprofessor Marcos Fava Neves. Ao querer compartilhar o seu conhecimentocom o leitor da Folha de S. Paulo, escreve: "Por interesses distintos e por faltade conhecimento, insiste-se em contrapor no Brasil três coisas (sic) que não sãocontrapostas e que atrapalham nosso planejamento e nosso desenvolvimento".(FOLHA DE SÃO. PAULO, 25. 09. 2010 p. B4). Essas "coisas" seriam:"agricultura contra o ambiente"; "agricultura familiar contra agricultura empresarial"e a terceira é a "ignorância em relação ao conceito de agronegócio".

Com grande empáfia afirma ser importante que aqueles que "criticam oagronegócio entendam que esse conceito foi criado em 1957 nos Estados Unidos(apenas em 1990 no Brasil) para dar o caráter de integração à agricultura.Agricultura integrada com o comércio, com a indústria, com os serviços, com apesquisa, com os insumos e com os produtores". (Não teria sido um conselhoinútil a leitura de SZMRECSÁNYI, 1979). Não satisfeito, ele adiciona: "nadefinição, não existe qualquer palavra 'tamanho', é preciso entender queagronegócio não significa algo grande e sim integrado". Ficam explicitados quaisos "interesses distintos" em jogo, quando afirma: "Neste ano, [2010] que serádesastroso para as contas externas, o pais pode ser salvo pelo agronegócio. Acana trará US$12 bilhões, a laranja US$2 bilhões, a carne bovina US$ 5 bilhões,

Page 315: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 315

o café US$ 5 bilhões, etc. É provável que entrem mais de US$70 bilhões".Quanto à falta de conhecimento, ela deve ser debitada a todos aqueles que

discordam da opinião do professor.Antonio Márcio Buainain expressa a opinião de que "Os dólares recebidos

pelos agricultores – pequenos , médios e grandes – movem cidades. Onde háagrobusiness, há dinamização. A única salvação para a agricultura familiar étransformar-se em agronegócio". (CARTA CAPITAL. 01.09.2010, p. 43).

Roberto Rodrigues, pretendendo ser jocoso, mas sendo na verdadeirresponsável, responde a pergunta, feita por Carta Capital (01.09.2004, p.45)de se o "Brasil não dá munição para os países que impõem barreiras nãotarifárias?" Sua resposta é:"Eu acho que realmente a gente, às vezes, dá umpouco de munição para o adversário. Mas, enfim, isso faz parte da vida". Mas,como diria o cronista: vida de quem, cara pálida?

Zander Navarro, no seu "O mundo rural brasileiro" (FOLHA DE SÃOPAULO, 14.11.2009, p.A3), referindo-se ao lançamento do Censo Demográficode 2006, também defende não haver oposição entre agronegócio e agriculturafamiliar. Raivoso, ele escreve: "O outro foco repetido, incensado sob espantosaingenuidade, refere-se à agricultura familiar, agrupamento que seria oposto a umindefinido agronegócio. Resultado de uma sociologia indigente e de um primáriomarxismo caiopradista, a noção é igualmente um delírio ideológico, pois seriasegmentação que, assim se diz, estimularia a luta de classe no campo".

Depois de afirmar que há uma crescente especialização e profissionalizaçãodos produtores rurais, o que passa a vigorar agora é o "princípio férreo deprodutividade": "Goste, ou não, é a consagração definitiva de uma sociabilidadecapitalista que passou a comandar o cotidiano rural" (Idem).

Ao mesmo tempo em que não reconhece haver oposição entre o agronegócioe a agricultura familiar reafirma que "O futuro é inescapável: manteremos nocampo uma conformação heterogênea e dual, sem ser dualista, com propriedadesem grande escala convivendo com propriedades de menor porte. Houvesseracionalidade, a principal diretriz governamental deveria inspirar-se na ciência ena difusão de seus produtos tecnológicos para todos os produtores, fiscalizandoparticularmente os marcos impositivos das leis trabalhistas e ambientais" (Idem).Que produtos tecnológicos são esses, derivados da ciência e da sua difusão,que necessitam de fiscalização, em particular, "os marcos impositivos das leistrabalhistas e ambientais"? Que sociologia é esta preconizada pelo Autor?

Para Denis Lerrer Rosenfield, em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo (12. 10. 2009 p. A2), "A agricultura familiar, baseada no direito de

Page 316: retratos de assentamentos

316 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

propriedade, é a que se desenvolve, por estar integrada a uma economia demercado. Há cadeias produtivas bem-sucedidas, como as de fumo, aves, suínos,que exibem, precisamente, essa integração, fundada na defesa da propriedadeprivada, na segurança jurídica e no direito de cada um dispor do seu trabalho ede seus investimentos, sem a tutela de uma organização política".

O mesmo Autor afirma que o País não tem mais "nenhum passivo histórico",que pertence ao passado a ideia de "latifúndios improdutivos" e nem um "passivofundiário propriamente dito, mas um passivo social, que deve ser resolvido comtrabalho, renda, emprego e investimentos, tanto no campo quanto nas cidades".Mas, com um grande cinismo, alerta: "Não esqueçamos que boa parte dos 'sem-terra' é recrutada entre os desempregados e subempregados dos centros urbanos".

Chico Graziano, em artigo para o jornal o Estado de S. Paulo (20.10.2009,p. A2), sugere que a agricultura familiar se fortalece juntamente com a grandeempresa rural. Porém, assinala que "curiosamente, o discurso atrasado contra oagronegócio teima em persistir, como se mentira repetida se transformasse emverdade".

Chico Graziano repete Zander Navarro ao perguntar de onde surge tal "delírioideológico"? Ele próprio responde: "Certamente do equívoco, elementar, quedistingue 'agricultura familiar' do 'agronegócio', como se ambas as categoriasfossem opostas, e não complementares".

Para Chico Graziano, ao investir em tecnologia e ganhar produtividade, "opequeno produtor se qualifica para participar do mundo do agronegócio". Édeste modo que "Milhões de excelentes produtores de café, soja, feijão, arroz,leite, carne, mandioca, frutas, verduras dependem do agronegócio para viver".

Esperamos que com todas as citações, de diferentes autores, tenha ficadoclaro que para eles não há oposição entre agronegócio e agricultura familiar.Que o agronegócio são todas as formas de agricultura. Formas de agriculturas,que não custa repetir, marcadas pelo uso intensivo de capital, de fertilizantesartificiais, herbicidas, pesticidas, criação intensiva de aves, suínos e bovinos, delarga escala, mecanizada, etc.

Kageyama e Bergamasco (1989) realizaram um trabalho sobre a estruturade produção no campo, com ênfase na produção familiar, tentando quantificar eanalisar sua participação na agricultura, e sua heterogeneidade interna, por meiode indicadores obtidos por tabulações especiais do Censo Agropecuário de1980. As Autoras sugeriram uma tipologia de unidades de produtivas, baseadasno critério de importância do trabalho assalariado. Seriam elas: (a)unidadespuramente familiares; (b) unidades que combinam trabalho familiar com

Page 317: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 317

assalariados temporários; (c) empresas familiares e empresas capitalistas.Os estabelecimentos agropecuários foram separados em dois grandes grupos:

o conjunto de unidades familiares e o das empresas capitalistas. O critério deidentificação do conjunto familiar foi a utilização de membros não remuneradosda família entre o pessoal ocupado.

O conjunto unidade familiar era bastante heterogêneo. Assim, as unidadespuramente familiares, onde se concentravam quase 40% das pessoas ocupadasna agricultura, caracterizavam-se pela pequena área média, baixo grau de usode insumos e de mecanização, grau de autoconsumo relativamente importante(25,2% do valor da produção) e baixíssima produtividade do trabalho. A quasetotalidade dos produtores e do pessoal ocupado residia no local doestabelecimento.

As empresas familiares e as empresas capitalistas possuíam grandes áreasmédias, alto grau de tecnificação, baixo autoconsumo, e alta produtividade. Olocal de residência dos produtores capitalistas era, no geral, na zona urbana. Dopessoal ocupado nesses estabelecimentos, apenas 44,5% residiam no local.

Ainda segundo as Autoras, as unidades mistas (familiar com temporários)situavam-se em posição intermediárias quanto aos indicadores utilizados.

O que se pode afirmar é que, já na década de 1980, havia estudo que sinalizavaque as unidades produtivas familiares eram heterogêneas. E, desta forma, aoposição só não teria sentido entre empresas familiares e empresas capitalistas.Isto porque elas já se identificavam quanto ao grau de tecnificação e a altaprodutividade como quer os autores citados acima.

O estudo sugere, também, que o senhor Zander Navarro deveria tomar maiscuidado ao afirmar que agricultura familiar, agrupamento que seria oposto a umindefinido agronegócio, é resultado de uma sociologia indigente e de um primáriomarxismo caiopradista.

Deve ser ressaltado que o trabalho de Kageyama e Bergamasco (1989) nãoestava preocupado em "quantificar e analisar" os efeitos perversos sobre o meioambiente, que essa agricultura já estava a provocar. Mas, é disto que se tratahoje. Quanto aos efeitos sociais perversos, a bibliografia é numerosa aos relatá-los. Mas, Denis Lerrer Rosenfield, na citada passagem do seu artigo, já nosprestou esse serviço.

Em um evento durante a campanha eleitoral, a "Confederação Nacional dosTrabalhadores na Agricultura (Contag) entrega hoje um plano de diretrizes paraa candidata do PT à Presidência, Dilma Rousseff, cobrando, especialmente, aimplantação do índice de produtividade para a reforma agrária." O relato é de

Page 318: retratos de assentamentos

318 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Paulo de Tarso Lyra ("Contag cobra de petista índice de produtividade" (VALORECONÔMICO, 13.07.2010, p.A6). Em continuidade, o jornalista acrescentaque " O presidente da Contag, Alberto Brock, reconhece o bom diálogo com aUnião... Nosso relacionamento com o presidente Lula não foi 100%. Temospendência, como o índice de produtividade."

Um dia depois, segundo a reportagem dos jornalistas Paulo de Tarso Lyra eFernando Taquari ("Dilma esquiva-se de compromisso com índice deprodutividade", VALOR ECONÔMICO, 14.07.2010, p. A6), "A candidatado PT à Presidência, Dilma Rousseff, prometeu ontem dobrar o número deagricultores incluídos no Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf).(...) Mas calou-se diante da principal reivindicação dos trabalhadores filiados àContag: implantação do índice de produtividade." Na interpretação dos citadosjornalistas: " O silêncio da petista tem uma explicação: apesar de incentivar ospequenos agricultores e até posar para a foto com boné da Contag, ela não quercomprar uma briga desnecessária com o agronegócio – contrário ao índice – empleno processo eleitoral".

Já eleita presidente, em 2010, Dilma Rousseff afirma ao repórter RoldãoArruda (O ESTADO DE SÃO PAULO, "Dilma afirma que vai rever o índicede produtividade rural", 04.11.2010, p.A7) que "No nosso governo, opresidente Lula pediu para a EMBRAPA fazer uma avaliação e definir o que aEMBRAPA, considerava tecnicamente correto. Vou avaliar esses dados".Segundo o repórter, "a declaração de Dilma foi bem recebida pelo presidenteda Sociedade Rural Brasileira, Cesário Ramalho da Silva". Agora, nas palavrasdo presidente da SRB: "Temos acompanhado o trabalho de Eliseu Alves, daEMBRAPA, que considera as mudanças técnicas de produção, encara apropriedade rural como unidade de negócios, avalia o mercado, em vez deutilizar apenas os conceitos de terra e trabalho como vem sendo feito". Namesma reportagem, o presidente da SRB aconselha que o "melhor que Dilmapode fazer é investir nos assentamentos existentes. Se um dia ela me perguntar,vou dizer que essa é a maneira de não se perder o que o País já investiu emassentamentos, que são deficientes e improdutivos". Pelo andar da carruagem,o leitor tem condições de avaliar se a presidente está seguindo o conselho dopresidente da SRB.

Na mesma reportagem, a presidente eleita declarou: "Sempre me negueia tratar o MST como caso de polícia". Mas também afirmou: "não compactuocom ilegalidades, nem com invasão de prédios públicos nem com invasão depropriedades que estão sendo produtivamente administradas". E poderíamos

Page 319: retratos de assentamentos

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 319

acrescentar: mesmo que estejam violando outras funções sociais dapropriedade rural.

O repórter declara que consultado pelo jornal O Estado de S. Paulo, o MSTnão se manifestou. Mas, Bruno Maranhão, líder do Movimento de Libertaçãodos Sem Terra (MLST), ao prestigiar a posse do novo presidente do INCRA,Celso Lacerda, afirma estar "entusiasmado com o momento. É preciso atualizaros índices de produtividade, baratear os alimentos".

Enfim, foram trocados o presidente da república, os responsáveis pela direçãode órgãos públicos, os pesquisadores responsáveis pela elaboração dos índices,o porta voz dos trabalhadores sem terra... O Ministério do DesenvolvimentoAgrário já trocou o seu ministro. O atual, tão logo assumiu o cargo, prometeuque também iria atualizar os índices de produtividade agrícola.

Razão parece ter Vladimir Saflate ("Lula venceu", FOLHA DE SÃO PAULO,01.11.2010, especial, 4): "Lula conseguiu, de certa forma, transplantar os conflitossociais para dentro do Estado. O conflito entre o agronegócio e a reforma agráriavirou um embate entre o Ministério da Agricultura e o Ministério da ReformaAgrária".

Indagado pelo repórter João Domingos (ISTO É DINHEIRO, 29.03.2011)sobre sua posição a respeito da atualização dos índices de produtividade daspropriedades, Afonso Florense foi taxativo: "A presidente Dilma determinou quea EMBRAPA faça esse índice. E a EMBRAPA é subordinada ao Ministério daAgricultura e não ao Ministério do Desenvolvimento Agrário. Portanto não cabea mim ficar falando qual deve ser o índice. Eu sou funcionário do Governo edevo obediência ao que a presidente determinar. Cumpro o que o governodecidir". Quem viver, verá!

Referências

BEUS, C.E.; DUNLAP, R.E. Conventional versus Alternative Agriculture: theparadigmatic roots of the debate. Rural Sociology, Provo (Utah), v.25, n. 4,p.361-371, 2005.

KAGEYAMA, A.; BERGAMASCO, S.M.P.P. Novos Dados Sobre aProdução Familiar no Campo. mimeo, IE/UUNICAMP, 1989, 23p.

QUEDA, O.; KAGEYAMA, P.; SANTOS, J.D. Assentamentos Rurais:alternativas frente ao agronegócio. Retratos de Assentamentos.

Page 320: retratos de assentamentos

320 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

Araraquara-SP, n.12, p. 47-68, 2009.

RAMOS, P. A questão dos índices de rendimento da agropecuária brasileira:uma história de desrespeito à constituição. Reforma Agrária, São Paulo,v.32, n.01, p. 49-65, 2005.

TEIXEIRA, G. Os índices de Produtividade Agropecuária para aReforma Agrária.(Colaborador do mandato da Deputada Federal LuciChoinacki – PT/SC. (Em 03.04.2005)

SZMRECSÁNYI, T. O Planejamento da Agroindústria Canavieira doBrasil (1930-1975). São Paulo: HUCITEC-UNICAMP, 1979.

Page 321: retratos de assentamentos

NORMAS DE PUBLICAÇÃO

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS é uma publicação semestral doNúcleo de Pesquisa e Documentação Rural – Nupedor, com apoio da UNIARAe do CNPq.

Os trabalhos enviados deverão atender aos seguintes critérios:a) Ter até 35 páginas – preferencialmente –, incluindo figuras, tabelas, quadros,esquemas, etc.;b) Os textos deverão ser digitados em espaço 1,5 cm, fonte Times New Roman,tamanho 12, justificado;b) Título do artigo deve estar centralizado, em negrito e em caixa-alta. Pular umalinha e inserir o nome completo por extenso dos autores (um em cada linha),alinhado à direita e com nota de rodapé indicando filiação institucional, endereçoeletrônico e demais informações que considerar relevantes;c) Os resumos deverão ser redigidos em português e em inglês, em um únicoparágrafo (máximo de 15 linhas), acompanhados de até 5 palavras-chave,também redigidas em português e em inglês;d) Figuras (incluindo gráficos, esquemas, etc.) deverão utilizar o mesmo padrãode letra do texto, ser numeradas sequencialmente, em algarismos arábicos, coma respectiva legenda. Ilustrações (fotografias, gráficos, desenhos, mapas, etc.)deverão ser enviadas e em preto-e-branco, em arquivos formato jpg e/ou tif,com boa definição.e) As referências deverão ser elaboradas de acordo com as normas daAssociação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), conforme formatos descritosa seguir:

1) LIVROSOBRENOME, Nome. Título em destaque: subtítulo. Edição. Cidade:

Editora, ano. Número de volumes ou páginas. (Série).Edição do livro:- se for em português colocar: 2. ed.- se for em inglês colocar: 2nd ed.

2) CAPÍTULO DE LIVROAutor do capítulo diferente do responsável pelo livro todo:AUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In: AUTOR DO LIVRO. Título

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 321

Page 322: retratos de assentamentos

322 RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011

do livro em destaque. Edição. Cidade: Editora, ano. volume, capítulo, páginainicial-final da parte.

Único autor para o livro todoAUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In: ______. Título do livro

em destaque. Edição. Cidade: Editora, ano. volume, capítulo, página inicial-final da parte.

3) ARTIGO DE PERIÓDICOSOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em destaque,

v., n., p. inicial-final, mês abreviado no idioma de origem. ano de publicação.

4) ARTIGO DE JORNALAUTOR do artigo. Título do artigo. Título do jornal em destaque, cidade

de publicação, dia, mês abreviado. Ano. Número ou Título do Caderno, Seçãoou Suplemento, p. seguido dos números da página inicial e final, separados entresi por hífen.

5) DISSERTAÇÃO, TESE E MONOGRAFIASOBRENOME, Nome do autor. Título em destaque: subtítulo. Ano de

publicação. Número de volumes ou folhas. Categoria (Curso) - Instituição, Cidadeda defesa, ano da defesa.

6) EVENTO CINTÍFICO – CONSIDERADO NO TODOTÍTULO DO EVENTO, número., ano, cidade de realização. Título da

publicação em destaque. Cidade de publicação: Editora, data. Páginas ouvolumes.

7) EVENTO CIENTÍFICO – CONSIDERADO EM PARTE(Trabalhos apresentados e publicados)AUTOR DO TRABALHO. Título do trabalho: subtítulo. In: NOME DO

EVENTO,em número, ano, cidade de realização. Título da publicação emdestaque. Cidade de publicação. Título do documento (Anais, proceedings,etc. em destaque), local: Editora, ano. Página inicial-final do trabalho.

8) NORMA TÉCNICANOME DA ENTIDADE RESPONSÁVEL. Título da norma em destaque:

subtítulo. Cidade de publicação, ano. Número de páginas.

Page 323: retratos de assentamentos

9) DOCUMENTO ELETRÔNICOApós a indicação dos dados de cada documento, acrescentar as informações

sobre a descrição física do meio eletrônico respectivo.- SE FOR CD-ROM acrescentar o: Número de CD-ROM- SE FOR ON-LINE acrescentar: Disponível em: <endereço eletrônico>.

Acesso em: dia mês abreviado. Ano.

A correção ortográfica e gramatical é de responsabilidade dos autores. Osartigos que não estiverem de acordo com as Normas de Publicação serãodevolvidos aos autores para adequação. Os textos deverão ser enviados para oe-mail [email protected]. Informações pelo telefone: (16)3301-7126. www.uniara.com.br/nupedor

RETRATOS DE ASSENTAMENTOS, v.14, n.2, 2011 323

Page 324: retratos de assentamentos