artigo assentamentos historia

10
NÓMADAS 210 * Professora do Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Tecnológicas (CNPq). E-mail: [email protected] El artículo busca describir la diversidad de protagonis- tas de la lucha por la tierra en Brasil y las nuevas preguntas que los resultados de sus reivindicaciones han producido en la problematización de los parámetros clasificatorios por medio de los cuales se ha tratado de definir lo rural y lo urbano, el campo y la ciudad. A lo largo del texto, se muestran las transformaciones de los grupos humanos que demandan tierra, los efectos de esa demanda sobre las po- líticas públicas y la dinámica de reivindicaciones que desencadenan. This article intends to characterize the diversity of actors fighting for land in Brazil and the new questions that the results of their claims have brought to the problematization of the classificatory parameters that are used to define the limits between the rural and the urban, the country and the city. In the text, the transformations in the public demanding land, the effects of these claims on public poli- cies and the sequence of vindications generated by them are pointed. Palavras chave: questão agrária, luta por terra, trabalhadores sem terra, assentamentos rurais, Brasil. AS NOVAS FACES DO RURAL E A LUTA POR TERRA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Leonilde Servolo de Medeiros *

Upload: wheriston-silva-neris

Post on 16-Nov-2015

38 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Assentamentos

TRANSCRIPT

  • NMADAS210

    * Professora do Curso de Ps-graduao em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedadeda Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Pesquisadora doConselho Nacional de Pesquisas Cientficas e Tecnolgicas (CNPq). E-mail:[email protected]

    El artculo busca describir la diversidad de protagonis-tas de la lucha por la tierra en Brasil y las nuevas preguntasque los resultados de sus reivindicaciones han producido enla problematizacin de los parmetros clasificatorios pormedio de los cuales se ha tratado de definir lo rural y lourbano, el campo y la ciudad. A lo largo del texto, semuestran las transformaciones de los grupos humanos quedemandan tierra, los efectos de esa demanda sobre las po-lticas pblicas y la dinmica de reivindicaciones quedesencadenan.

    This article intends to characterize the diversity of actorsfighting for land in Brazil and the new questions that theresults of their claims have brought to the problematizationof the classificatory parameters that are used to define thelimits between the rural and the urban, the country andthe city. In the text, the transformations in the publicdemanding land, the effects of these claims on public poli-cies and the sequence of vindications generated by themare pointed.

    Palavras chave: questo agrria, luta por terra,trabalhadores sem terra, assentamentos rurais, Brasil.

    AS NOVAS FACES DORURAL E A LUTA POR

    TERRA NO BRASILCONTEMPORNEO

    Leonilde Servolo de Medeiros*

  • 211NMADAS

    Nas ltimas dcadas, o perfildo que se poderia chamar a face ru-ral do Brasil sofreu significativas mu-danas, expressas no s no aumentoda velocidade da expropriao dostrabalhadores do campo, estimuladapelo ritmo de modernizao das ati-vidades agrcolas e agroindustriais,mas tambm pelo aparecimento denovas formas de organizao, identi-dades polticas, demandas e repert-rios de ao por parte do contingenteatingido por esse processo.

    Ao longo das mudan-as em curso, chama aateno o fato de quetem se mantido vigorosaa demanda por reformaagrria, como demons-tram o crescimento dosacampamentos e ocupa-es, a ampliao dombito de atuao e aprojeo nacional e inter-nacional que o Movi-mento dos TrabalhadoresRurais sem Terra (MST)adquiriu nos ltimos vin-te anos. Essa persistncia,no bojo de intensas trans-formaes no processoprodutivo e da crescenteimportncia do agrone-gcio na economia dopas, atualiza o debate so-bre o seu significado, pro-tagonistas e questes quecoloca para a reflexo so-bre o meio rural.

    Ao longo da histriabrasileira, a reivindicao por terraapareceu sob diversas roupagensmas, em qualquer de suas formas, ofiz denunciando uma das facetas daconcentrao de riqueza da socie-dade brasileira: a fundiria. A in-

    tensa modernizao tecnolgica daagricultura, verificada a partir demeados dos anos 60, aprofundou asdesigualdades j existentes e tradu-ziu-se numa crescente dificuldadede acesso dos trabalhadores terra,agravando o que vem sendo chama-do de pobreza no meio rural. Essetermo, de circulao cada vez maisintensa nas instituies nacionais einternacionais geradoras de polti-cas pblicas, ao mesmo tempo em

    que enfatiza as carncias bsicas dedeterminados segmentos da popula-o, dilui suas particularidades, ato-res envolvidos e os temas em disputa.Nos termos em que se coloca a pro-posta do presente artigo, a expres-

    so reforma agrria, que tem sin-tetizado um conjunto de reivindi-caes dos trabalhadores ruraispauperizados, envolve a nomeaoe localizao dos personagens, aconstituio de identidades polti-cas e uma histria de lutas sociais:de um lado, os que se apresentamno espao pblico como deman-dantes de terra para trabalhar e sereproduzir socialmente1 ; de outro, osque se identificam como empresri-

    os ou produtores rurais,mas que so, no processode disputa poltica, iden-tificados como latifun-dirios2 . Ao mesmo tempo,a expresso aponta umasada historicamenteconstituda e incorpora-da s instituies estatais:a redistribuio de ativosfundirios, atravs da de-sapropriao de imveisimprodutivos3 .

    Neste artigo, preten-de-se caracterizar adiversidade dos protago-nistas dessa luta e osnovos desafios que a re-flexo sobre o tema tmtrazido para a proble-matizao dos parme-tros classificatrios pormeio dos quais os cien-tistas sociais tm procu-rado definir os limitesentre rural e urbano,campo e cidade. A in-teno trazer algumascontribuies para supe-rar o que Melucci (2001)

    chama de miopia do visvel, ouseja, ateno sobre os aspectosmensurveis da ao coletiva, isto, a relao com sistemas polticos eos efeitos sobre as polticas, ignoran-do a importncia da produo de

    Alicia Viteri, (Colombia, 1946), Madre e hija, 78 x 60 cm, leo/tela,1984

  • NMADAS212

    cdigos culturais que constitui aprincipal atividade das redes sub-mersas dos movimentos sociais.

    Os protagonistas daluta por terra

    Os protagonistas da luta por ter-ra tm mudado bastante nas ltimasdcadas, incorporando novos seg-mentos e formas de ao, indicandoa necessidade de uma perspectivahistrica que permita entender a tra-jetria dessa luta e as concepes eexpectativas em jogo.

    Um rpido percurso na histriamais recente do pas mostra que,nos anos 50/60/70 do sculo XX,momento em que a reforma agrriase afirma no cenrio poltico comoprincipal bandeira dos trabalhado-res do campo, os principais prota-gonistas da luta eram segmentosque j estavam de h muito na ter-ra, por vezes h geraes, e que

    passaram a ser pressionados paradela sair pelos que apareciam comttulos de propriedade (muitas ve-zes falsos) e que tinham interesseem investir em atividades produti-vas, ou, o que era bastante comum,apenas usar o imvel como reservade valor. Duas situaes eram bas-tante recorrentes: a dos posseiros(lavradores que no tinham qual-quer documento formal que com-provasse a propriedade da terraonde viviam) e a dos que tinhamacesso a um lote por meio de algumtipo de contrato de arrendamento,parceria ou como moradores ou co-lonos4 . A figura do posseiro predo-minava nas regies por onde entose expandia a fronteira agrcola (nosanos 50, estado de Gois, sudoestedo Paran, Maranho; nos anos 70,Par), mas tambm em outras reas,de ocupao antiga, mas abandona-das pelos antigos proprietrios emrazo da falncia de atividades eco-nmicas e que foram pouco a poucoapropriadas por pequenos agriculto-

    res. Era o caso da Baixada Flumi-nense, no entorno da ento capitalfederal, no estado do Rio de Janei-ro. Rendeiros, foreiros (denominaeslocais para lavradores que tinhamcontratos assemelhados com arren-damento e parceria), por sua vezconstituiram-se na principal base daslutas por terra na regio nordeste doBrasil, celebrizadas por meio das Li-gas Camponesas. Nesse caso, trata-va-se de resistncia a um processode expropriao em curso, ligada stransformaes de cultivo. Em ou-tras reas do pas, como o caso doestado de So Paulo, arrendatriosdiscutiam as prprias regras dos con-tratos de arrendamento ou ento ascondies de trabalho nas lavourasde caf e algodo. As lutas desses seg-mentos marcaram os anos 50 e o in-cio da dcada de 60 e foram a basepara a constituio de uma identi-dade poltica campons e de umabandeira de luta que passou a tradu-zir um conjunto diversificado de de-mandas reforma agrria.

    Alicia Viteri, boceto, leo/papel, 1984

  • 213NMADAS

    Apesar da represso s organi-zaes de trabalhadores que seguiuao golpe militar de 1964, os confli-tos por terra prosseguiram, emborade forma atomizada e desarticula-da, e se estenderam por novas regi-es (em especial na Amaznia). Emgrande parte dos casos, mobiliza-vam o mesmo tipo de populao:trabalhadores que j estavam naterra e passavam a ser ameaadospelos novos interesses ligados propriedade fundiria, agora con-figurados nos conglomerados finan-ceiros e industriais que passaram areceber incentivos estatais para in-vestir na modernizao agrcola.

    Parte importante desses confli-tos ainda persistiam no final dosanos 70 e incio dos anos 80 mo-mento em que se iniciou um amplomovimento por redemocratizaodo pas, culminando no fim do re-gime militar e vinham tonaprincipalmente mediante as de-nncias da Igreja Catlica. Desdeento, uma descontnua polticade assentamentos atendeu partedas demandas, garantindo a perma-nncia na terra dos que nela vivi-am e suas formas tradicionais deuso, reavivando um ideal campo-ns que muitos consideravamcondenado pela modernizaoagrcola.

    No entanto, no foi essa a facemais visvel e inovadora da luta porterra na dcada de 80. A moderni-zao da agricultura levada a cabodurante o regime militar tambmcriou novos personagens: entre ou-tros, trabalhadores obrigados a sedeslocar em funo da construode grandes projetos hidreltricos(atingidos por barragens); seringueiros,que se projetaram mundialmente emfuno da capacidade de suas lide-

    ranas de juntar a luta por terra preservao ambiental; os sem terra,produto do rpido processo depauperizao e expropriao, em es-pecial no sul do pas, de pequenosproprietrios, muitos dos quais noconseguiram se integrar de formaexitosa ao novo modelo de agricul-tura, altamente tecnificado. Dvidas,rpida elevao do preo da terra,opo por monocultura, num con-texto de crescente aumento deprodutividade beneficiando princi-palmente os grandes produtores, fo-ram alguns dos fatores que fizeramcom que parte dos pequenos agri-cultores perdessem ou vendessem aterra e buscassem outras alternati-vas de sobrevivncia, quer na pr-pria agricultura, migrando pararegies de fronteira em busca de pro-jetos de colonizao, quer passandoa tentar sobreviver como arrendat-rios ou ainda buscando alternativasurbanas de insero. Nem sempreessas alternativas foram bem suce-didas e, no por acaso, no final dosanos 70 e incio dos anos 80, nasreas mais modernizadas da agri-cultura brasileira que a disputafundiria ganha fora, envolvendono os que resistiam na terra ondeh muito viviam, mas os que j ahaviam perdido. Esse contingentede expropriados, marcados pelo tra-balho capilar de organizao de se-tores da Igreja Catlica ligados Teologia da Libertao e com umperfil cultural bastante distinto deposseiros e foreiros, se constituiu,nesse momento, na principal base doMST.

    Nos anos 90, esse contingentepassou a ser engrossado por novaslevas de demandantes de terra. Umprimeiro grupo o dos trabalhado-res j expropriados que viviam nasperiferias das pequenas cidades

    interioranas e sobreviviam atravsdo trabalho temporrio nas grandeslavouras que, por razes relaciona-das como a macropoltica econ-mica, entraram em crise. o casodas usinas de acar (em especial,mas no s, nas reas de menorcompetitividade, como o caso departe importante da zona canavieiranordestina) e das reas cacaueirasda Bahia. Outro contingente o dostrabalhadores que no se reproduzi-am socialmente mais pelo trabalhoagrcola, mas principalmente pormeio de atividades urbanas, marca-das por uma enorme precariedade(construo civil, vendedor ambu-lante etc) e sem vnculo formal deemprego. Para estes, o ingresso naluta por terra aparecia como umaforma, entre outras possveis, de en-frentar as dificuldades de trabalhoem carter mais permanente, querno campo, quer na cidade5.

    Pesquisas recentes tm mostradoque o fantasma do desemprego, omedo da desestruturao de relaesfamiliares, em especial nas periferiasdas grandes cidades, expresso nasconstantes menes a riscos davitimizao pela violncia urbana oudo recrutamento dos filhos pelo tr-fico de drogas, tm sido elementosimportantes na construo de novasopes. Trata-se de uma populaocom dificuldades de se inserir nummercado de trabalho altamentecompetitivo que, cada vez mais,demanda conhecimentos especiali-zados, alijando aqueles com baixaescolaridade e pouca profissiona-lizao. Mas, a alternativa de seenvolver em acampamentos e ocu-paes foi tambm, em grande me-dida, produto da consolidao evisibilidade do MST, que, de algumaforma, atualizou a possibilidade doacesso terra num momento em que

  • NMADAS214

    ela j no se inscrevia nos horizon-tes, tornando-a uma alternativapossvel de sobrevivncia e de recon-hecimento social 6 .

    Novos formatos de aoe organizao

    Se nos anos 70 o sindicalismorural foi o principal porta-voz daslutas por terra, nos anos 80, oMST que a polariza. Inovando emtermos de repertrio de aes,atravs da utilizao de eventos degrande repercusso nos meios decomunicao (acampamentos eocupaes de fazendas por umgrande nmero de trabalhadores;caminhadas, com durao de me-ses; ocupaes de prdios pbli-cos), criou fatos polticos queatraram a ateno da opinio p-blica, buscando reconhecimento egerando a explicitao de oposi-es e alianas. Iniciado no RioGrande do Sul, ainda no final dosanos 70, essa organizao rapida-mente se estendeu a outros esta-dos, tornando-se ponto central naconstituio de uma nova identi-dade poltica: a de sem terra (Nava-rro, 2002; Fernandes, 2000; Caldart,2000). Os acampamentos e ocupa-es tornaram-se uma espcie demarca registrada de sua prtica,criando toda uma simbologia que,em pouco tempo, passou a ser ado-tada tambm pelo sindicalismo ru-ral, que disputava a hegemonia naconduo da bandeira da reformaagrria7 . Trata-se de uma formainovadora de luta pela terra quepubliciza a demanda, cria fatos po-lticos, impe negociaes, polari-za atores e traz o Estado para ocentro do debate, obrigando-o atomar posies, constituir polticasetc.

    Formularam-se ainda princpiosorganizativos prprios, bastante dis-tintos dos que tradicionalmente re-geram as organizaes sindicais:arregimentao de famlias inteiras(e no apenas de indivduos), semum processo de filiao ou associa-o formal, mas apenas com basena participao, que pode comearem qualquer tempo e lugar e en-volver pessoas das mais diferentestrajetrias, inclusive aquelas semorigem rural (Caldart, 2000). Poroutro lado, tambm diferentemen-te da tradio sindical, abriu-seespao para colegiados de coorde-nao, implicando uma estruturamenos rgida, ao mesmo tempo,mais gil, mas nem por isso menoscentralizada (Navarro, 2002).

    As inovaes trazidas peloMST em relao prtica sindicalvo tambm na direo de buscarformas organizativas relacionadas produo dos assentados, buscan-do sua insero no mercado atra-vs de cooperativas e associaese de um esforo inicial de criaode formas coletivas de produo.Verifica-se ainda uma forte preocu-pao com a reproduo de qua-dros, por meio de um processointensivo de formao, com nfasena escolarizao formal e na forma-o poltica. Se, num primeiro mo-mento, esses quadros surgiramdentro dos prprios assentamentos,projetando lideranas, hoje o esfor-o se estende tambm para jovensestudantes universitrios, mobi-lizados para realizar cursos deformao, estgios de vivncia emassentamentos, trazendo para o seioda organizao no s trabalhado-res (rurais e/ou urbanos) que de-mandam terra para trabalho, mastambm um pblico que passa aparticipar da organizao no por

    desejar terra, mas por compartilharde seu iderio e se dispor a difundi-lo e apoi-lo a partir das mais dife-rentes frentes de ao.

    Um outro trao do MST a nolimitao de suas aes ao ruraltal como convencionalmente defi-nido. Partindo do pressuposto quea viabilizao da reforma agrria edos assentados relaciona-se com aprpria lgica do modelo de desen-volvimento e de que se trata deuma questo que no local nemnacional, mas global, o MST temparticipado de campanhas contra ostransgnicos, contra a Alca etc., ese integrado a redes globais de mo-vimentos, como a Via Campesina.

    Os assentamentoscomo espao de vida etrabalho

    Os assentamentos rurais, formasatravs das quais vem se concreti-zando o acesso terra por parte dostrabalhadores que a demandam, soproduto de uma luta silenciosa econtnua, que ocorre em diversospontos do pas e potencializadapelas iniciativas de suas organizaesde representao (MST, sindica-lismo rural e/ou diversos movimen-tos de atuao mais regional) ou deentidades de apoio (Comisso Pas-toral da Terra, por exemplo). Soainda produto da forma como asinstituies estatais equacionam osconflitos e agem sobre eles.

    Ao longo dos anos 80 e 90, oEstado passou a reconhecer osconflitos que eclodiam e a ten-tar redirecionar suas demandas,ressemantizando-as e gerandomecanismos institucionais paraseu enquadramento (Offe, 1984;

  • 215NMADAS

    Tarrow, 1994). Tornou-se, assim,um dos atores cruciais de um com-plexo jogo poltico onde so dis-putados significados e contedosdas polticas pblicas, em especi-al da reforma agrria.

    Os assentamentos tm sido cri-ados, desde os anos 80, a partir deuma lgica de interveno gover-namental que tem privilegiado aao pontual sobre situaes deconflito, segundo sua gravidade e/ou a visibilidade dos diferentes in-teresses envolvidos. Isso lhes deucaractersticas peculiares: so espa-cialmente dispersos, muitas vezescom pouca infra-estrutura viria(dificultando ou mesmo inviabili-zando o acesso a mercados para osprodutos gerados) e deficincias noque tange a assistncia tcnica,apoio financeiro, sanitrio e educa-

    cional. Nas regies onde se verificauma maior concentrao de proje-tos, ela se deve muito mais prpriaforma que as lutas por terra assumi-ram do que a uma opo prvia deinterveno coordenada. Comoapontam Heredia et allii (2002:77),as medidas que resultaram na cria-o dos assentamentos do perododemocrtico, sem estarem orienta-das para a realizao de uma refor-ma agrria massiva, como exigiamos movimentos de trabalhadores,mas adotadas sob presso destes, fo-ram potencializadas por uma certasimultaneidade (pacotes de desa-propriaes) e por sua concentraonas regies em que os movimentosatuavam, mesmo no atingindo ne-cessariamente reas contguas. Apercepo do sucesso do caminhoadotado estimulou trabalhadoresdas cercanias a seguirem na mesma

    linha, sendo feitas novas desapropri-aes, adensando-se os assentamen-tos em determinadas reas e levandoos movimentos a tentarem repetir aexperincia em outras tantas. Assimforam surgindo reas reformadas aposteriori.

    No entanto, os assentamentosvm alimentando tambm outrasdemandas, abrindo um ciclo de rei-vindicaes e mobilizaes, dasquais o acesso terra apenas omomento fundante. Com efeito, aspesquisas tm mostrado que a cria-o do assentamento e a obtenodo status de produtor rural assenta-do geraram reivindicaes quepermitiram o acesso, ainda que li-mitado e pontuado de dificuldades,desse segmento a bens dos quaisanteriormente estavam excludos. o caso, por exemplo, do crdito ru-

    Alicia Viteri, boceto, leo/tela, 1984

  • NMADAS216

    ral, melhorias no sistema virio,energia eltrica, sade, escola, in-serindo os assentados num universode negociaes, de reconhecimen-to social e de descoberta e/ou cria-o de direitos antes distante do seucotidiano.

    Fazem parte da construo des-se reconhecimento diversas cir-cunstncias. Os assentamentostendem a fortalecer os movimen-tos de luta pela terra, uma vez quese constituem em prova da eficciadas presses intensas, em especialquando a referncia so as ocupa-es de terra e acampamentos; pro-vocam rearranjos institucionais,rebatendo na necessidade de umaparelhamento do Estado para li-dar com essa nova realidade (nos no que diz respeito criao denovos organismos ou reformulao

    dos existentes nos governos fede-ral, estaduais e municipais mastambm de novas leis e regulamen-taes); possibilitam a gerao deempregos e, de alguma maneira, oaumento do nvel de renda de boaparte das famlias assentadas (comreflexos nas economias municipaise regionais); tm potencial para al-terar, em maior ou menor medida,as relaes de poder local, no ne-cessariamente deslocando-as paraum outro, mas passando a ter pesonas decises locais ou, de algumaforma, influenciando-o, por meiode criao de associaes, partici-pao na vida poltico-partidrialocal etc.

    Nas demandas est presente,explcitamente ou no, a procura,a partir de uma nova participaosocial, de formas de viabilizao

    de uma insero mais vantajosano mercado de trabalho (a nfasena importncia da escola, tidacomo chave de abrir portas para aascenso social um exemplo dis-so), em muitos casos por meio deuma complexa combinao de es-tratgias familiares, envolvendoatividades agrcolas e no agrco-las, dentro e fora dos assentamen-tos, no meio rural ou nas cidades.Nas suas particularidades, essesarranjos expressam vises de mun-do e estratgias que revelam as-piraes que no sempre estoadequadamente traduzidas pelasorganizaes de representao,nem muito menos correspondem sinterpretaes que as instituiesestatais fazem delas quando nor-matizam o processo de alocaode trabalhadores. Eles tm sidouma forma importante de expres-

    Alicia Viteri, boceto-mural, leo/papel, 1984

  • 217NMADAS

    so e cristalizao das experin-cias anteriores vivenciadas pordiferentes segmentos de trabalha-dores envolvidos nos conflitosfundirios e tm alimentado con-flitos cotidianos, com o Estado ecom as organizaes de represen-tao, perceptveis na dinmicados assentamentos8 .

    Consideraes finais

    Os processos em que os assen-tamentos esto imersos indicaminseres sociais, experincias acu-muladas, projetos de vida, concep-es de legitimidade, valores quepassam a ser difundidos atravs doprprio processo de constituio elegitimao dos grupos. No se trataexatamente de projetos, no senti-do de propostas claramente deli-neadas, com estratgias definidas.Na expresso de Melucci (2001), soantes sinais, mensagens de algo queest nascendo; que indicam trans-formaes, mas no explicitam suadireo9 .

    Em muitos casos (e toda a ten-tativa de generalizao sempreperigosa) nos assentamentos (e nos neles, mas tambm em diferen-tes formas do que vem sido chama-do de agricultura familiar), o que severifica a constituio de umanova relao dos trabalhadorescom as atividades agrcolas, queimpe questionar as concepesque defendem a existncia de al-guns segmentos vocacionadospara a agricultura e outros no. Essetema bastante comum no debatepoltico em torno da pertinncia ouno de uma poltica de reformaagrria no Brasil e tem sido bastan-te utilizado pelos que se opem ampliao da poltica de assenta-

    mentos, assumindo frequentemen-te um carter acusatrio.

    Essa simplificao dos processosem curso dificulta a percepo deque h um reordenamento do lu-gar do rural, que tem levado os pes-quisadores a discutir o prpriosignificado da ruralidade. Sob essaperspectiva, os assentamentos soespaos de produo agropecuriamas tambm de outras atividades,no s econmicas mas polticas eculturais, correspondendo a umatendncia geral das reas rurais, emespecial daquelas prximas a cen-tros urbanos ou de fcil acesso.

    Nas demandas dos assentadosh um sonho, tambm presente naslutas de outros segmentos: o de su-perar o rural como espao da pre-cariedade e de reconstru-lo comoum modo de vida particular ondeest presente muito do que se con-vencionou ser caracterstica do ur-bano: a insero na poltica, boaeducao, possibilidade de produode bens culturais, bom atendimento sade, acesso a eletrodomsticos,moradias confortveis, espaos delazer, de prtica de esportes etc.

    Citas

    1 Entre eles, sem terra, atingidos por barra-gens, posseiros, seringueiros, ribeirinhos,posseiros etc.

    2 No Brasil, o termo latifundirio evocarelaes de dominao, explorao,violncia, mais do que somente uma for-ma de propriedade. Trata-se de um termocom fortes conotaes polticas. Da oempenho dos grandes proprietrios emcunhar no espao pblico uma identidadefundada na produo e na modernidadeprodutiva.

    3 A Constituio brasileira prev a desa-propriao para fins de reforma agrria deimveis rurais que no cumpram sua

    funo social, constitucionalmente defi-nida em termos de produtividade mdiasemelhante regio onde est o imvel,cumprimento da legislao trabalhista erespeito ao meio ambiente. As desapro-priaes implicam indenizao em din-heiro e vista das benfeitorias existentese pagamento da terra em ttulos da dvidaagrria. Na prtica, acabam sendo pa-ssveis de desapropriao apenas aspropriedades consideradas improdutivas.Para maiores detalhes, ver Constituiobrasileira de 1988 e Lei Agrria de 1993.

    4 Morador o nome que se dava, no Nor-deste brasileiro, ao trabalhador que vivianuma grande propriedade, prestavaservios na lavoura principal (geralmenteuma monocultura de exportao) e tinhaacesso a um pequeno lote para construode moradia, plantio de alimentos bsicose criao de pequenos animais. Naslavouras cafeeiras do Centro Sul, essemesmo tipo de trabalhador era chamadode colono. Para maiores informaes, verPalmeira (1977) e Stockler (1986).

    5 A distino entre os dois contingentesest sendo feita apenas para facilitar aexposio. Na prtica, por vezes, eles sesuperpem.

    6 Embora o MST tenha um papel centralna publicizao da luta por terra, no anica organizao que se envolve nela.Desde o incio dos anos 90, o sindicalis-mo rural passou a tambm atuar mais in-cisivamente nessa direo, reproduzindoacampamentos e ocupaes. Localmentetambm surgiram vrias organizaes,muitas delas dissidentes do MST, que seutilizavam do mesmo repertrio de aes.

    7 Uma interessante discusso sobre osacampamentos como forma especfica deluta, bem como a disputa entre organi-zaes pela sua conduo, pode ser en-contrada na exposio virtual sobre otema organizada por Lygia Sigaud:www.lonasebandeiras.com.br. Ver tam-bm Sigaud, 2000.

    8 A literatura sobre assentamentos men-ciona fartamente esses conflitos. Umadiscusso recente sobre o tema pode serencontrada em Martins, coord. (2003).

    9 De acordo com Melucci, os movimentoscontemporneos so profetas do presen-te. No tm a fora dos aparatos, mas afora da palavra. Anunciam a mudanapossvel, no para um futuro distante,mas para o presente da nossa vida.Obrigam o poder a tornar-se visvel e lhedo, assim, forma e rosto. Falam umalngua que parece unicamente deles, masdizem alguma coisa que os transcende e,

  • NMADAS218

    deste modo, falam para todos (Melucci,2001: 21).

    Bibliografia

    CALDART, Roseli, Pedagogia do Movimentossem Terra, Petrpolis, Vozes, 2000.

    FERNANDES, Bernardo Manano, Aformao do MST no Brasil, Petrpolis,Vozes, 2000.

    HEREDIA, Beatriz; Medeiros, Leonilde;Palmeira, Moacir; Cintro, Rosngela eLeite, Srgio, Anlise dos impactos dareforma agrria no Brasil, in: EstudosSociedade e Agricultura, No. 18, 2002.

    MARTINS, Jos de Sousa (coord.), Trave-ssias. A vivncia da reforma agrria nosassentamentos, Porto Alegre, Editora daUniversidade Federal do Rio Grande doSul, 2003.

    MELUCCI, Alberto, A inveno do presente.Movimentos sociais nas sociedadescomplexas, Petrpolis, Vozes, 2001.

    NAVARRO, Zander, Mobilizao sememancipao as lutas sociais dos semterra no Brasil, in: Boaventura de SousaSantos (org.) Produzir para viver: oscaminhos da produo no capitalista. Riode Janeiro, Editora Civilizao Brasileira,2002.

    OFFE, Claus, Problemas estruturais do Estadocapitalista, Rio de Janeiro, Tempo Brasi-leiro, 1984.

    PALMEIRA, Moacir, Casa e Trabalho: no-tas sobre as relaes sociais na plantationtradicional, Contraponto, ano II, No. 2,1977.

    SIGAUD, Lygia, A forma acampamento:notas a partir da verso pernambucana,in: Novos Estudos Cebrap, No. 58, 2000.

    STOLCKE, Verena, Cafeicultura. Homens,mulheres e capital (1850-1980), SoPaulo, Brasiliense, 1986.

    TARROW, Sidney, Power in movement. So-cial movements, collective action andpolitics, Cambridge University Press,1994

  • 219NMADAS

    VI

    sc

    ar J

    aram

    illo,

    s.t

    ., d

    etal

    le,

    lpi

    z-tr

    emen

    tina

    /pap

    el, 1

    991