o que é interdisciplinaridade? · * grupo de estudos e pesquisa em interdisciplinaridade da...

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  • LucioSello
  • O que interdisciplinaridade?

  • Conselho Editorial de Educao: Jos Cerchi Fusari

    Marcos Antonio Lorieri Marcos Cezar de Freitas

    Marli Andr Pedro Goergen

    Terezinha Azerdo Rios Valdemar Sguissardi Vitor Henrique Paro

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    O Que interdisciplinaridade? / Ivani Fazenda (org.). So Paulo : Cortez, 2008.

    Vrios autores. ISBN 978-85-249-1408-9

    1. Interdisciplinaridade na educao I. Fazenda, Ivani.

    08-04894 CDD-370.1

    ndice para catlogo sistemtico:

    1. Interdisciplinaridade : Filosofia da educao 370.1

  • IVANI FAZENDA (Org.) Abdelkrim Hasni Adriana Alves Anderson Arajo-Oliveira Diamantino Fernandes Trindade Dirce Encarnacion Tavares

    Fernando Csar de Souza Ivone Yared Johanne Lebrun Maria Jos Eras Guimares Mariana Aranha Moreira Jos Raquel Gianolla Miranda Ruy Cezar do Esprito Santo

    Sonia Regina Albano de Lima Yves Lenoir

    O QUE INTERDISCIPLINARIDADE?

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? Ivani Fazenda (Org.)

    Capa: aeroestdio Reviso: Maria de Lourdes de Almeida Composio: Dany Editora Ltda. Coordenao editorial: Danilo A. Q. Morales

    Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem a autorizao expressa dos autores e do editor.

    2008 by Organizadora

    Direitos para esta edio CORTEZ EDITORA Rua Monte Alegre, 1074 Perdizes 05014-001 So Paulo-SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 e-mail: [email protected] www.cortezeditora.com.br

    Impresso no Brasil agosto de 2008

    mailto:[email protected]://www.cortezeditora.com.br/
  • Sobre os autores

    IVANI CATARINA ARANTES FAZENDA Doutora em Antropologia pela USP Universidade de So Paulo; Livre docente em Didtica pela UNESP Universidade Estadual Paulista; Atualmente professora titular da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo e professora associada do CRIE (Centre de Recherche et intervention educative) da Universidade de Sherbrooke Canad; Membro fundador do Instituto Luso Brasileiro de Cincias da Educao da Universidade de vora Portugal; Em dezembro de 2007 foi convidada para ser membro do CIRET/UNESCO Frana; Coordenadora do GEPI Grupo de Estudos e Pesquisas em Interdisciplinaridade, filiado ao CNPQ e outras instituies internacionais; Pesquisadora CNPQ-Nvel IB; Tem experincia na rea de Educao, com nfase em Ensino-Aprendizagem, atuando principalmente nos seguintes temas: interdisciplinaridade, educao, pesquisa, currculo e formao.

    ABDELKRIM HASNI Doutor em Educao pela Universit de Sherbrooke, Canad. Professor adjunto do Departamento de Ensino Pr-escolar e primrio, Universit de Sherbrooke. Membro do CRIE Centre de recherche sur l'intervention educative. Membro do CRIFPE Centre de recherche interuniversitaire sur la formation et la profession enseignante. Diretor do Centre de recherche sur l'enseignement et l'apprentissage des sciences. (CREAS).

  • 6 IVANI FAZENDA

    ADRIANA ALVES Mestre em Educao: Currculo pela PUC-SP, sob orientao da Prof. Dra. Ivani Fazenda; Pesquisadora do GEPI.*

    ANDERSON ARAJO-OLIVEIRA Mestre em Cincias da Educao, Universit de Sherbrooke, Canad; Doutorando em Educao, Universit de Sherbrooke, Canad; Membro do CRIE Centre de recherche sur l'intervention ducative; Membro do CRIFPE Centre de recherche interuniversitaire sur la formation et la profession enseignante.

    DIAMANTINO FERNANDES TRINDADE Doutor em Educao: Currculo pela PUC-SP, sob a orientao da Prof. Dra. Ivani Fazenda; Professor de Histria da Cincia dos cursos de Licenciatura em Fsica e Cincias da Natureza do CEFET-SP Centro Federal de Educao Tecnolgica de So Paulo; Professor de Epistemologia da Cincia e do Ensino do curso de Ps-Graduao em Formao de Professores do Ensino Superior do CEFET-SP Centro Federal de Educao Tecnolgica de So Paulo; Pesquisador do GEPI.

    DIRCE ENCARNACION TAVARES Doutora em Educao: Currculo pela PUC-SP, sob orientao da Prof. Dra. Ivani Fazenda; Professora de Sociologia Geral e Educacional do Centro Universitrio Adventista; Pesquisadora do GEPI.

    FERNANDO CSAR DE SOUZA Formado em Administrao, Mestre em Educao pela Universidade Cidade de So Paulo, Doutorando em Educao: Currculo pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Aluno do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares da PUC-SP. Coordenador Tcnico do Programa Scio-Educativo "Jovem Aprendiz" no Senac So Paulo.

    * Grupo de Estudos e Pesquisa em Interdisciplinaridade da PUC-SP, coordenado pela Prof. Dra. Ivani Fazenda.

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 7

    IVONE YARED Doutoranda em Educao: Currculo pela PUC-SP, sob a orientao da Prof. Dra. Ivani Fazenda; Diretora do Centro Educacional Nossa Senhora Auxiliadora de Lins SP; Pesquisadora do GEPI.

    JOHANNE LEBRUN Doutora em Educao, Universit de Sherbrooke, Canad; Professora adjunta do Departamento de ensino pr-escolar e primrio, Universit de Sherbrooke, Canad; Vice-diretora do CRIE Centre de recherche sur l'intervention ductive; Membro do CRIFPE Centre de recherche interuniversitaire sur la formation et la profession enseignante.

    MARIA JOS ERAS GUIMARES Mestre em Semitica, Tecnologia da Informao e Educao; Doutoranda em Educao: Currculo pela PUC-SP, sob a orientao da Prof. Dra. Ivani Fazenda; Pesquisadora do GEPI; Professora no Ensino Fundamental e Superior, Graduao e Ps-Graduao.

    MARIANA ARANHA MOREIRA JOS Mestre em Educao: Currculo pela PUC-SP, sob orientao da Prof. Dra. Ivani Fazenda; Pesquisadora do GEPI; Administradora Escolar II do Centro Educacional SESI n 111, no bairro do Ipiranga So Paulo, desde 2003.

    RAQUEL GIANOLLA MIRANDA Doutora em Educao: Currculo pela PUC-SP, sob orientao da Prof. Dra. Ivani Fazenda. Pesquisadora do GEPI; professora de Educao na Universidade da Terceira Idade da UNISO Universidade de Sorocaba; professora do curso de Formao Pedaggica para professores de Ensino Mdio profissionalizante da UNIMEP Universidade Metodista de Piracicaba, em parceria com o SENAI.

  • 8 IVANI FAZENDA

    RUY CEZAR DO ESPRITO SANTO Doutor em Filosofia da Educao pela UNICAMP; Professor de tica e Humanismo e Filosofia da Educao da FAAP Fundao Armando lvares Penteado.

    SONIA REGINA ALBANO DE LIMA Diretora e coordenadora pedaggica dos Cursos de Graduao e Ps-Graduao lato sensu em Msica e Educao Musical da Faculdade de Msica Carlos Gomes em So Paulo. Professora colaboradora do curso de Ps-Graduao em Msica do IA-UNESP. Doutora em Comunicao e Semitica, rea de Artes PUC-SP. Ps-Doutora em Educao pelo GEPI-PUC-SP, sob a orientao da Prof. Dr. Ivani Fazenda. Ps-graduada em prticas instrumentais e msica de cmara (FMCG).

    YVES LENOIR Doutor em Sociologia; Professor Titular da Ctedra de pesquisa do Canad sobre interveno educativa; Membro do CRIE (Centro de pesquisa sobre interveno educativa); Presidente da Associao mundial das cincias da educao (AMSE); Faculdade de Educao.

  • Sumrio

    Capa Orelha - Contracapa

    A interdisciplinaridade e os saberes a ensinar: que compatibilidade existe entre esses dois atributos? A guisa de apresentao ..................................................................... 12

    Interdisciplinaridade-Transdisciplinaridade: vises culturais e epistemolgicas Ivani Fazenda ..................................................................................... 17

    Resultados de vinte anos de pesquisa: a importncia atribuda s disciplinas escolares que objetivam a construo da realidade humana, social e natural no Ensino Primrio da Provncia de Qubec Canad Yves Lenoir, Abdelkrim Hasni e Johanne Lebrun .............................. 29

    O olhar da pesquisa em educao sobre a multidimensionalidade subjacente s prticas pedaggicas Anderson Arajo-Oliveira .................................................................. 53

    Interdisciplinaridade: um novo olhar sobre as cincias Diamantino Fernandes Trindade ....................................................... 65

    Interdisciplinaridade: as disciplinas e a interdisciplinaridade brasileira Mariana Aranha Moreira Jos ........................................................... 85

  • 10 IVANI FAZENDA

    Interdisciplinaridade e matemtica Adriana Alves ..................................................................................... 97

    Da interdisciplinaridade Raquel Gianolla Miranda ................................................................... 113

    Interdisciplinaridade: conscincia do servir Maria Jos Eras Guimares ............................................................... 125

    A interdisciplinaridade na contemporaneidade qual o sentido? Dirce Encarnacion Tavares ............................................................... 135

    Autoconhecimento e conscincia Ruy Cezar do Esprito Santo .............................................................. 147

    O que interdisciplinaridade? Ivone Yared ......................................................................................... 161

    O ser interdisciplinar e a construo simblica da "cura" nos espaos educacionais Fernando Csar de Souza................................................................... 167

    Mais reflexo, menos informao! Sonia Regina Albano de Lima ............................................................ 185

  • A interdisciplinaridade e os saberes a ensinar: que compatibilidade

    existe entre esses dois atributos?

    GUISA DE APRESENTAO

  • Compartilho este discurso com Yves Lenoir, com quem divido ideias e projetos nos ltimos quinze anos. O tema deste livro surge do encontro de trs colquios por ns organizados. Imediatamente tomamos para ns essa incumbncia, sabendo de antemo que se nossa ao no fosse to completa como desejariamos, ao menos atenderia nossos desejos de prosseguir o dilogo entre os solitrios pesquisadores da Interdisciplinaridade, esparsos pelas universidades, mas, sincronicamente unidos num mesmo ideal: o trabalho por um mundo melhor.

    Todas as palavras aqui sugeridas tocam num ponto em comum: como a Interdisciplinaridade coloca-se ao enfrentar os problemas mais globais a que a sociedade nos impele e os saberes disciplinados, fragmentados, parcelados que so construdos.

    Em 1999, Morin organiza a coletnea Relier Les connaissances onde este paradoxo colocado como desafio seu trabalho convida-nos ao desapego das falsas seguranas e a um lanar-se aventura do sonho interdisciplinar onde o gosto do risco, a inquietude das novas descobertas, a renovao das fontes de inspirao, possam traduzir-se num projeto de uma humanidade mais feliz.

    Como as diferentes culturas enfrentam o dilema proposto nesse livro e que Lenoir nos diria: saber saber, saber fazer e saber ser?

    Compreendemos que o conhecimento surge no vrtice dessa trplice aliana. Como constru-lo quando nossas universidades estimulam-nos a competitividade desenfreada, onde nos cegamos pelo desejo de saber

  • 14 IVANI FAZENDA

    a qualquer custo, onde tememos por no saber e onde nos angustiamos por algum dia nada termos de novo para oferecer?

    Como exercitar a parceria, quando somos impelidos a acumular coisas, defesa de nossos particulares territrios, a um micro saber, a um micro poder, a um reinado sem sditos?

    Todos os trabalhos aqui pretendem discutir formas alternativas de eliminar o vazio em torno de ns mesmos, nossa solido.

    Todos incitam-nos ao ingresso na aventura de um saber conhecer. Alguns tocam no segredo maior do encontro de um ponto comum que

    possa resultar em ilhas de racionalidade banhadas pela Paz. Outros tratam de como passar de um saber mesquinho a um saber

    compartilhado. Todos concordam que interdisciplinaridade cabe partilhar, no replicar. Todos incitam-nos a retirar das razes da inteligncia as qualidades do

    corao, onde o entusiasmo e o maravilhamento esto ancorados. Como Paul Ricoeur recuperado no Cahiers de L'Herne por Jacques

    Derrida, Ren Remond e Julia Kristeva, os autores neste livro caminham em busca do sentido do Reconhecimento, onde a cegueira dos especialistas ser substituda pela compreenso das situaes complexas. Alguns trabalhos tratam do enfrentamento do suprfluo, ao pesquisarem sua beleza, ao afinarem o esprito, retirando do intelecto, Arte.

    Todos nossos trabalhos tem por comum o estmulo liberdade do pensamento, reafirmando que ao no pedirmos demisso da reflexo, nos aproximaremos do saber do conhecimento.

    A Interdisciplinaridade concebida neste livro pretende um dilogo entre pares, capazes de compreender a mensagem das diferentes lnguas nas suas entrelinhas.

    A Interdisciplinaridade aqui arquitetada busca a troca de ideias locais e sua universalizao, nesse sentido pretende no confundir as coisas da lgica com a lgica das coisas.

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 15

    Estaremos neste tempo a ns reservado protegidos do medo e da recusa a que a estagnao do sistema educativo nos coloca. Termos condio de compreender porque aqui nos juntamos, porque o novo que pregamos incomoda em qualquer cultura, por que desacomoda o institudo, o aceito.

    Talvez possamos ento pensar na confluncia de nossos projetos individuais, na cooperao de nossos saberes, talvez possamos traar metas comuns e articula-las.

    Acreditamos no poder de negociao a que a Interdisciplinaridade nos congrega.

    Acreditamos na potencialidade da circulao de conceitos e esquemas cognitivos, na emergncia de novos esquemas e hipteses, na constituio da organizao de novas concepes de educao.

    Acreditamos que nossa fora estar na Parceria, onde poderemos criar novos perfis de cientistas, desenvolver novas inteligncias, abrir a Razo.

    Acreditamos na fora mitolgica de um novo tempo, onde todos ns nos disporamos a um processo de realfabetizao, no apenas do substantivo, mas do verbo, no mais do predicado, mas do sujeito, no mais do modelo, mas da hiptese, no mais da resposta, mas da pergunta.

    Desejo a todos uma tima leitura e agradeo pelo incondicional apoio recebido.

    Procuramos a um s tempo decifrar a complexidade de nossos estudos disponibilizando em gotas homeopticas os saberes acumulados nos grupos de pesquisa por ns coordenados.

    H vinte anos compartilhamos achados alguns deles repartidos com nossos alunos.

    Fomos motivados a reunir textos de trs colquios por ns realizados sob o patrocnio da UNESCO ocorridos subsequentemente em Sherbrooke, Chile e Marrakesh.

  • 16 IVANI FAZENDA

    Optamos por escolher apenas mostras do que foi discutido em 2001, 2005 e 2008, nos congressos da AMSE/AMCE/WAER Association Mondiale des sciences de l'ducation.

    A inteno continuar a parceria h tantos anos consolidada nesta obra coletiva.

    Ivani Fazenda abril de 2008

  • Interdisciplinaridade-transdisciplinaridade: Vises culturais e epistemolgicas

    Ivani Catarina Arantes Fazenda

    O presente colquio objetiva discutir scio-historicamente os termos inter e transdisciplinaridade partindo da polissemia que os envolve, buscando em alguns de seus pesquisadores aspectos contidos na diversidade cultural que envolvem definies mltiplas, conceitos variados e resultados aferidos a partir das configuraes assumidas quando tratamos da questo formao de professores, seja na didtica e ou na prtica de ensino.

    Interdisciplinaridade variaes temticas

    Se definirmos interdisciplinaridade como juno de disciplinas, cabe pensar currculo apenas na formatao de sua grade. Porm se definirmos interdisciplinaridade como atitude de ousadia e busca frente ao conhecimento, cabe pensar aspectos que envolvem a cultura do lugar onde se formam professores.

    Assim, na medida em que ampliamos a anlise do campo conceitual da interdisciplinaridade, surge a possibilidade de explicitao de

  • 18 IVANI FAZENDA

    seu espectro epistemolgico e praxeolgico. Somente ento torna-se possvel falar sobre o professor e sua formao, e dessa forma no que se refere a disciplinas e currculos. Reportamo-nos questo: como a interdisciplinaridade se define quando a inteno formar professores?

    Servindo-nos, por exemplo, de uma definio clssica produzida em 1970 pelo Ceri Centro para Pesquisa e Inovao do Ensino , rgo da OCDE (Documento Ceri/HE/SP/7009), no qual interdisciplinaridade definida como interao existente entre duas ou mais disciplinas, verificamos que tal definio pode nos encaminhar da simples comunicao das ideias at a integrao mtua dos conceitos-chave da epistemologia, da terminologia, do procedimento, dos dados e da organizao da pesquisa e do ensino, relacionando-os. Tal definio, como se pode constatar, muito ampla, portanto no suficiente nem para fundamentar prticas interdisciplinares nem para pensar-se uma formao interdisciplinar de professores. Podemos nesse caso proceder a uma decodificao na forma de conceber a interdisciplinaridade. Fourez (2001) fala-nos de duas ordens distintas, porm complementares, de compreender uma formao interdisciplinar de professores, uma ordenao cientifica e uma ordenao social.

    A cientfica nos conduziria construo do que denominaramos saberes interdisciplinares. A organizao de tais saberes teria como alicerce o cerne do conhecimento cientfico do ato de formar professores, tais que a estruturao hierrquica das disciplinas, sua organizao e dinmica, a interao dos artefatos que as compem, sua mobilidade conceituai, a comunicao dos saberes nas seqncias a serem organizadas. Essa proposio conduziria busca da cientificidade disciplinar e com ela o surgimento de novas motivaes epistemolgicas, de novas fronteiras existenciais. Por isso, entendemos o seguinte: cada disciplina precisa ser analisada no apenas no lugar que ocupa ou ocuparia na grade, mas nos saberes que contemplam, nos conceitos enunciados e no movimento que esses saberes engendram, prprios de seu lcus de cientificidade. Essa cientificidade, ento originada das disciplinas, ganha status de interdisciplina no momento em que obriga o professor a rever suas prticas e a redescobrir seus talentos, no momento em que ao movimento da disciplina seu prprio movimento for incorporado.

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 19

    A segunda, ento denominada ordenao social, busca o desdobramento dos saberes cientficos interdisciplinares s exigncias sociais, polticas e econmicas. Tal concepo coloca em questo toda a separao entre a construo das cincias e a solicitao das sociedades. No limite, diramos mais, que esta ordenao tenta captar toda complexidade que constitui o real e a necessidade de levar em conta as interaes que dele so constitutivas. Estuda mtodos de anlise do mundo, em funo das finalidades sociais, enfatiza os impasses vividos pelas disciplinas cientificas em suas impossibilidades de sozinhas enfrentarem problemticas complexas.

    No referente primeira ordenao, cientfica, diramos com Lenoir (2001) o seguinte: a cientificidade aqui revelada estaria em conformidade com a forma de pensar de uma cultura eminentemente francfona na qual o saber se legitima pela beleza da capacidade de abstrao um saber/saber.

    Ainda apropriando-nos dos escritos de Lenoir (2001), diramos que a segunda classe de ordenao, social, se aproximaria mais de uma cultura de lngua inglesa na qual o sentido da prtica do para que serve impe-se como forma de insero cultural essencial e bsica saber fazer.

    Duas culturas diferentes, duas formas diferenciadas de conceber conhecimento e organizar seus currculos de formao de professores. Porm Lenoir aponta para o surgimento de uma terceira cultura legitimada como a do saber ser. Refere-se a uma forma brasileira de formar professores. Sua concluso fundamenta-se na anlise de estudos e pesquisas sobre interdisciplinaridade na formao de professores produzidos no Brasil. Sem abdicar das duas anteriores, um denominador comum: a busca de um saber ser interdisciplinar. Essa busca explicita-se na incluso da experincia docente em seu sentido, intencionalidade e funcionalidade diferenciando o contexto cientifico do profissional e do prtico (Lenoir, 2001; Fazenda, 2001).

    Abarcar a questo da experincia docente nessa trplice dimenso do sentido, da intencionalidade e da funcionalidade requer cuida dos de diferentes ordens (Fazenda, 2002), cuidados nas pressuposies

  • 20 IVANI FAZENDA

    tericas investigando os saberes que referenciaram a formao de determinado professor, cuidados ao relacionar esses saberes ao espao e tempo vivido pelo professor, cuidados no investigar os conceitos por ele apreendidos que direcionaram suas aes e, finalmente, cuidado em verificar se existe uma coerncia entre o que diz e o que faz.

    Para melhor compreendermos o significado dessa ordenao brasileira que poderamos denominar interacional, precisaramos adentrar em aspectos terico/prticos apenas emergentes nas pesquisas sobre interdisciplinaridade e em outros um pouco mais aprofundados na produo brasileira. Estamos nos referindo a questes como: esttica do ato de apreender, espao do apreender, intuio no ato de apreender, design do projetar, tempo de apreender, importncia simblica do apreender.

    Abstraindo-se implicaes de natureza mtica do conceito de interdisciplinaridade ou de outra perspectiva qualquer que apenas fixe a mesma s questes relativas unidade do saber (Fazenda, 2003; Lenoir, 1995), enfatizamos a posio de Morin (1990) ao vincular o uso da palavra interdisciplinaridade expanso da pesquisa cientfica (Fazenda, 2003),o que a institucionaliza no sculo XX, porm forjada no sculo XVII, quando a cincia adquire progressivamente formas diversas de interpretao da natureza em suas relaes socioculturais, portanto adquirindo vises e esquemas de interpretao do mundo que se diferenciam, se levarmos em conta a histria da humanidade (Fazenda, 2003).

    Assim, reafirmando o que dissemos em estudos anteriores (Fazenda, 1979), o debate inicia-se na universidade com a necessidade de incluso inexorvel do ser humano na organizao dos estudos, porem amplia-se gradativamente a um segundo patamar de preocupaes: o das diferentes esferas da sociedade necessitadas de rever as exigncias dos diversos tipos de sociedades capitalistas onde o cotidiano das atividades profissionais desloca-se para situaes complexas para as quais as disciplinas convencionais no se encontram adequadamente preparadas.

    Navegar entre dois plos da pesquisa de snteses conceituais dinmicas e audazes e a construo de formas de interveno diferenciadas constitui-se objeto de pesquisa h quase vinte anos, entre muitos pesquisadores da rea: Klein (1985), Lynton (1985), Fazenda (1990).

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 21

    A inquietao dos pesquisadores que se dedicam interdisciplinaridade converge desde o incio da dcada de 1960 e amplia-se cada vez mais na compreenso dos paradoxos advindos da necessidade da busca de sentidos existenciais e ou intelectuais (Pineau, 2007). Essa busca de sentido exige respeito a critrios de funcionalidade necessrios sem os quais quebramos os princpios bsicos de humanidade no seu mais amplo significado.

    O conceito de interdisciplinaridade, como ensaiamos em todos nossos escritos desde 1979 e agora aprofundamos, encontra-se diretamente ligado ao conceito de disciplina, onde a interpenetrao ocorre sem a destruio bsica s cincias conferidos. No se pode de forma alguma negar a evoluo do conhecimento ignorando sua histria.

    Assim, se tratamos de interdisciplinaridade na educao, no podemos permanecer apenas na prtica emprica, mas necessrio que se proceda a uma anlise detalhada dos porqus dessa prtica histrica e culturalmente contextualizada.

    Seguindo esse raciocnio, falar de interdisciplinaridade escolar, curricular, pedaggica ou didtica requer uma profunda imerso nos conceitos de escola, currculo ou didtica. A historicidade desses conceitos, entretanto, requer uma profunda pesquisa nas potencialidades e talentos dos saberes requeridos ou a requerer de quem as estiver praticando ou pesquisando (Fazenda, 2003).

    Interdisciplinaridade escolar no pode confundir-se com interdisciplinaridade cientfica (Lenoir, Sauv, 1998; Fazenda, 1992).

    Na interdisciplinaridade escolar a perspectiva educativa. Assim, os saberes escolares procedem de uma estruturao diferente dos pertencentes aos saberes constitutivos das cincias (Chervel, 1988; Sachot, 2001).

    Na interdisciplinaridade escolar, as noes, finalidades habilidades e tcnicas visam favorecer sobretudo o processo de aprendizagem, respeitando os saberes dos alunos e sua integrao.

    Cabe-nos tambm mais uma vez reafirmar a diferena existente entre integrao e interdisciplinaridade (Fazenda, 1979). Apesar de os conceitos serem indissociveis, so distintos: uma integrao requer atributos

  • 22 IVANI FAZENDA

    de ordem externa, melhor dizendo, da ordem das condies existentes e possveis, diferindo de uma integrao interna ou interao, da ordem das finalidades e sobretudo entre as pessoas. Com isso retomamos novamente a necessidade de condies humanas diferenciadas no processo de interao que faa com que saberes de professores numa harmonia desejada integrem-se aos saberes dos alunos. Isso requer um outro tipo de profissional com novas caractersticas, as quais ainda esto sendo pesquisadas. Assim como o conceito de integrao primeiro conceito por ns pesquisado , muitos outros ensaiamos estudar no nosso grupo de pesquisas.

    Em todos esses quase trinta anos dedicados ao estudo e pesquisa sobre interdisciplinaridade, o que mais nos conforta perceber que ao orientarmos nossas pesquisas para a gnese das definies mais comuns utilizadas na educao, verificamos uma gradativa mudana na compreenso dos pesquisadores por ns iniciados. Essa compreenso, que acreditamos nascer do cuidado com a potencialidade do estudo de conceitos, tem conduzido nossos pesquisadores aquisio de um olhar divergente e paradoxalmente convergente para a historia do conceito e sua representao sociocultural, aliando-se sobretudo s diferentes perspectivas de produo.

    Estamos constatando em nossas pesquisas brasileiras como o estudo de definies preliminares pode, aos poucos, adquirir tridimensionalidade ou a capacidade de conduzir o pesquisador a enxergar alm das mesmas e dos conceitos produzidos por meio delas, como dissemos em textos anteriores, admirao das possveis entrelinhas e das infinitas possibilidades latentes e ainda no ensaiadas (Fazenda, 1992 a 2007).

    A pesquisa interdisciplinar somente torna-se possvel onde vrias disciplinas se renem a partir de um mesmo objeto, porm necessrio criar-se uma situao-problema no sentido de Freire (1974), onde a ideia de projeto nasa da conscincia comum, da f dos investigadores no reconhecimento da complexidade do mesmo e na disponibilidade destes em redefinir o projeto a cada dvida ou a cada resposta encontrada. Neste caso, convergir no no sentido de uma resposta final, mas para a pesquisa do sentido da pergunta inicialmente enunciada.

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 23

    A interdisciplinaridade na formao profissional requer competncias relativas s formas de interveno solicitadas e s condies que concorrerem para o seu melhor exerccio. Neste caso, o desenvolvimento das competncias necessrias requer a conjugao de diferentes saberes disciplinares. Entenda-se por saberes disciplinares: saberes da experincia, saberes tcnicos e saberes tericos interagindo de forma dinmica sem nenhuma linearidade ou hierarquizao que subjugue os profissionais participantes (Barbier, 1996; Tardiff, 1990; Gauthier, 1996).

    A formao interdisciplinar de professores, na realidade, deveria ser vista de um ponto de vista circundisciplinar (Lenoir; Sauve, 1998), onde a cincia da educao, fundamentada num conjunto de princpios, conceitos, mtodos e fins, converge para um plano metacientfico. Tratamos, nesse caso, do que poderamos chamar interao envolvente sintetizante e dinmica, reafirmando a necessidade de uma estrutura dialtica, no linear e no hierarquizada, onde o ato profissional de diferentes saberes construdos pelos professores no se reduzem apenas a saberes disciplinares. Comeamos aqui a tratar de um assunto novo, recentemente pesquisado, denominado interveno educativa, em que mais importante que o produto o processo.

    Assim, consideramos etapas ou fases que no dizer desses autores so denominadas pr-ativa, interativa e ps-ativa. (Coutourier, 2004; Maubant, 2007). No meu caso em particular, amplio essa designao denominando-as de metforas congruentes com o tema que estiver sendo pesquisado (Fazenda, 2007).

    A circundisciplinaridade no exclui a necessidade de uma formao disciplinar, indispensvel no processo de teorizao das prticas, mas como denomina Freitag (1995), o desenvolvimento de um corpo sinttico de conhecimentos debruando-se sobre um sistema terico, visando uma sntese explicativa, preditiva e compreensiva. Trata-se, assim, o ato educativo escolar numa dimenso complexa e interligada de diferentes componentes e de diferentes regulamentaes. Sua transmisso apenas parte de um contedo disciplinar predeterminado, porm amplia-se numa dimenso planetria de mundo onde os estudos

  • 24 IVANI FAZENDA

    encontram-se sempre numa dimenso de esboos inacabados de um design de projeto que se altera em seu desenvolvimento.

    Todos os aspectos aqui considerados so objetos de estudos e pesquisas dos principais centros de referncia das questes inter e transdisciplinares.

    Transdisciplinaridade variaes temticas

    Como estudiosa das questes da interdisciplinaridade, no poderia deixar de pontuar avanos especficos, porm aqui ainda tratados de forma genrica, de questes afeitas transdisciplinaridade, os quais pretendo historiar demoradamente em outro contexto.

    Os estudos e pesquisas sobre transdisciplinaridade, como nomeiam alguns de seus pesquisadores, antecedem os da interdisciplinaridade (Japiassu, 2007, trabalha a noo de sonhos transdisciplinares) destaca como o termo foi gestado por Piaget, relembrando os anos que freqentou seu laboratrio. Ou, relembrando Joel Martins, com quem dividi parte desses sonhos, poderia ensaiar dizer que os termos da forma como aqui so tratados no se diferenciam, mas se auto-incluem e se complementam.

    Basarab Nicolescu desde 1995 debrua-se muito seriamente sobre a construo de uma fundamentao epistemolgica tendo como finalidade argumentar em favor da unidade do conhecimento por ele denominado transdisciplinar. Cria o Ciret, no qual o dilogo entre pesquisadores seniors ocorre ininterruptamente, seja distncia ou presencialmente.

    A necessidade do dilogo, a adoo de um olhar transdisciplinar, questes relativas complexidade, autoformao, ecoformao e heteroformao ganham destaque cada vez maior entre os estudiosos da transdisciplinaridade.

    Questes ambguas, como cura (Paul, 2007), amor (Barbier, 2007) espiritualidade, negociao, reconhecimento, gratido (Ricoeur, 2006)

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 25

    respeito, desapego e humildade (Maturana, 1997; Ricoeur, 2006) fazem parte de um novo pensar sobre a didtica e a prtica de ensino.

    Em vrias de minhas obras recorro a princpios que sintetizo em palavras como: espera, coerncia, humildade, respeito e desapego, sob a estreita vigilncia de um olhar multifacetado e atento, sntese essa que tomo como necessria ao pensar em inter ou transdisciplinaridade nas pesquisas que oriento e realizo.

    Alguns organismos mundiais dos quais fao parte, como Ciret Centre International de Recherche et Etudes Transdisciplinaires (http// nicol.club.fr/ciret/) em dezembro de 2007 realizou um simpsio do qual participaram vrios dos autores aqui citados, onde a discusso magnificamente colocada por Ubiratan D'Ambrsio (2003) poderia de certa forma representar do que l trataremos:

    Por que estou aqui? esta pergunta difcil! Gostaria que nos dedicssemos mais questo do por que em vez de ao

    como ? Mexer com ela e, a partir da, talvez, achar um novo comportamento que nos permitisse abrir as portas das gaiolas epistemolgicas nas quais h tanto tempo nos encerramos?

    Outros organismos nacionais como Cetrans-USP (Centro de Estudos Transdisciplinares), que em 2007 completou dez anos de estudos e pesquisas, apontam para dimenses novas no processo de uma inter ou transdisciplinaridade na educao e outras reas do conhecimento.

    Em Barcelona, num congresso ocorrido em maro de 2007, contribuies como as de Edgar Morin, Raul Motta, Gaston Pineau, Emilio Ciurana, Joan Mallart e outros, entre os quais me auto-incluo, construram um esboo de "Declogo sobre transdisciplinaridade e ecoformao". Esse esboo nos remete necessidade de pesquisa em dez campos principais de projeo transdisciplinar e ecoformadora:

    1. Pressupostos ontolgicos, epistemolgicos e metodolgicos de olhares transdisciplinares.

    2. Projees tecnocientficas no campo da religao de saberes. 3. Projeo ecossistmica na relao ecologicamente sustentvel.

  • 26 IVANI FAZENDA

    4. Projeo social, como conseqncia de uma cidadania planetria. 5. Convivncia e desenvolvimento humano sustentvel: viso axiolgica

    e de valores humanos. 6. Projeo nas polticas de trabalho e sociais, tendo em vista a

    satisfao das necessidades humanas. 7. Projeo no mbito da sade e da qualidade de vida em busca da

    felicidade. 8. Projeo nas reformas educativas onde se busca formar cidados na

    sociedade do conhecimento. 9. Projeo na educao, no sentido de dar respostas a uma formao

    integrador a, sustentvel e feliz. 10. Projeo nas organizaes e no Estado de bem-estar, onde a auto-

    organizao e a dimenso tico-social sejam atendidas.

    A partir desse evento nasce uma rede de interligao de saberes ainda em construo envolvendo at o momento mais de quinze universidades.

    Reflexes finais a serem discutidas

    Quem habita o territrio da interdisciplinaridade no pode prescindir dos estudos transdisciplinares. O cuidado construdo arduamente nos dois territrios precisa ser devidamente respeitado em suas limitaes, mas principalmente nas inmeras possibilidades que se abrem para uma educao diferenciada onde o carter humano se evidencia.

    Um grande nmero de publicaes em vrias lnguas, muitas das quais em portugus, encontra-se disponvel, seja no site do Ciret, do Crie Universidade de Sherbrooke, Canad, ou mesmo do Gepi PUC/SP, www.pucsp.br/gepi. A bibliografia aqui apresentada ainda diminuta diante das inmeras alternativas de atualizao na rea.

    http://www.pucsp.br/gepi
  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 27

    Todas as 102 pesquisas produzidas pelo Gepi PUC/SP encontram-se disponibilizadas em nosso ambiente virtual, para debate. Em todas elas um efetivo encontro com a didtica e a prtica de ensino.

    Referncias bibliogrficas

    CHERVEL, Andr. La culture scolaire: une approche historique. Paris: Belin, 1988. FAZENDA, I. C. A. Dicionrio em construo: interdisciplinaridade. So Paulo: Cortez, 2001. ____ . Integrao como proposta de uma nova ordem na Educao. In: Lin guagens, espaos e tempos. Rio de Janeiro: Agir, 2000. _____ . Interdisciplinaridade: qual o sentido? So Paulo: Paulus, 2003. _____ (Org.). Didtica e interdisciplinaridade. Campinas: Papirus, 1998. _____ . Interdisciplinaridade: histria, teoria e pesquisa. Campinas: Papirus, 1994. _____ . Interdisciplinaridade: Histria, teoria e pesquisa. 6. ed. Campinas: Papirus, 1990. _____ (Org.). Prticas interdisciplinares na escola. So Paulo: Cortez, 1991. _____ . Interdisciplinaridade: um projeto em parceria. So Paulo: Loyola, 1991. _____ . Integrao e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideo logia. So Paulo: Loyola, 1979.

    FAZENDA, Ivani. Didtica e Interdisciplinaridade. Campinas: Papirus, 1998.

    FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. FOUREZ, G. Fondements pistemologiques pour l'interdisciplinarit. In: LENOIR, Rey B. Fazenda. Les fondements de l'interdisciplinarit dans la formation l'enseignement. Canad: Editions du CRP/Unesco, 2001.

    _____ et al. Chemins de formation au fil du temps, n. 6. Les critures de soi. Universit de Nantes, 2003. JAPIASSU, Hilton. O sonho transdisciplinar e as razes da filosofia. Rio de Janeiro: Imago, 2007.

  • 28 IVANI FAZENDA

    KLEIN, Julie Thompson. Ensino interdisciplinar: didtica e teoria. In: FAZENDA, Ivani (Org.) Didtica e interdisciplinaridade. So Paulo: Papirus, 1985. LENOIR, Rey B. Fazenda. Les fondements de l'interdisciplinarit dans la formation l'enseignement. Canad: ditions du CRP/Unesco, 2001. MATURANA, Humberto. A rvore do conhecimento. So Paulo: Palas Athena, 1997. MAUBANT, Philippe. Pedagogues et Pedagogies en Formation D'adultes. Paris: PUF, 2007.

    MORIN, Edgar. Science avec Conscience. Paris: Le Seuil, 1990.

    PINEAU, G. Les histoires de vie. Paris: PUF, 2002. PINEAU, Gaston & PAUL, Patrick. Trandisciplinarit et Formation. Paris: Harmattan, 2007.

    RICOEUR, Paul. Percursos do reconhecimento. So Paulo: Loyola, 2006. TORRE, S. Transdisciplinaridad y ecoformacin: una nueva mirada sobre la educacion. Madri: Editorial Universitas, 2007.

  • Resultados de vinte anos de pesquisa sobre a importncia atribuda s disciplinas escolares que objetivam a

    construo da realidade humana, social e natural no ensino primrio da provncia de Qubec/Canad

    Yves Lenoir, Abdelkrim Hasni, Johanne Lebrun

    Este texto apresenta o estado atual da situao curricular do ensino das cincias naturais e das cincias humanas no ensino primrio quebequense desde 1981: qual o lugar hierrquico e temporal e qual funo socioeducativa os professores atribuem s outras disciplinas que constituem o currculo (Lenoir, et al., 2000)? Aps uma breve contextualizao e uma curta apresentao dos procedimentos metodolgicos utilizados em nossas diferentes pesquisas sobre esta questo, apresentaremos os resultados obtidos e alguns elementos de interpretao.

    Contexto, problemtica e quadro conceituai

    O Ministrio da Educao do Qubec promove uma perspectiva interdisciplinar no Qubec desde os anos 1970, por meio de trs currculos

  • 30 IVANI FAZENDA

    do ensino primrio que se sucederam e que tomaram a forma de programas-quadros bastante flexveis e abertos fundados em uma pedagogia ativa (durante os anos 1970) de programas por objetivos comportamentais fundados nas concepes neobehavioristas (durante os anos 1980 e 1990) e de programas que recorrem a uma abordagem por competncia e fundados em perspectiva construtivista (a partir de 2001). Entretanto, as orientaes ministeriais permanecem imprecisas, ambguas e incertas. Alm disso, elas conduziram a interpretaes bastante confusas dos professores, tanto no plano discursivo quanto no plano das suas prticas pedaggicas (Larose e Lenoir, 1995 e 1998; Lenoir 1991, 1997, 1999, 2003; Lenoir e Laforest, 2004; Lenoir e Geoffroy, 2000; Lenoir, Larose e Laforest, 2001; Lenoir et al., 2000).

    A partir de diferentes pesquisas financiadas desde 1991 pelo Ministrio da Educao do Qubec, pelo Fonds Qubcois pour la Formation des Chercheurs et l'Aide la Recherche (FCAR) e pelo Conseil de Recherches en Sciences Humaines du Canada (CRSH), pudemos caracterizar as principais tendncias que marcam as prticas interdisciplinares dos professores do primrio. Estas tendncias, ao lado de prticas realmente interdisciplinares (Lenoir, Larose e Laforest, 2001), se realizam, seja na pseudo-interdisciplinaridade (ignorncia entre as disciplinas e seus contedos), seja na hegemonia (dominao de uma disciplina escolar sobre as outras), seja ainda no ecletismo (adio heterclita de elementos provenientes de duas ou mais disciplinas escolares) e no holismo (fuso das disciplinas e de seus contedos num todo indistinto) (Figura 1).

    Estes diferentes trabalhos nos conduziram questo da hierarquizao das disciplinas escolares. A sociologia dos curricula elaborada pela Nova Sociologia da Educao na Grande Bretagne serviu ento construo dos quadros tericos (Lenoir et al, 2000). Para os pesquisadores desta corrente terica, entre eles Bernstein (1971, 1975, 1997a, 1997b), Whitty (1977), Whitty e Young (1976) e Young (1971, 1976, 1997), a estruturao dos contedos de ensino e seus modos de transmisso colocam em destaque o efeito da estratificao das disciplinas escolares sobre os

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 31

    Figura 1 Os plos da representao da prtica interdisciplinar

    processos socioeducativos: "a maneira como uma sociedade seleciona, classifica, distribue, transmite e avalia o saber escolar que direcionado ao pblico reflete ao mesmo tempo a distribuio do poder e os princpios de controle social" (Bernstein, 1971: 47). Ns postulamos, portanto, que a estruturao curricular portadora de opes socioideolgicas a servio de certa concepo das relaes de poder no seio de determinada sociedade. Postulamos igualmente que as disciplinas de ensino, longe de transmitirem um saber cientfico especfico desinteressado, refletem e mantm a distribuio do poder em uma sociedade e, em conseqncia disso, eles so socialmente determinados.

    Sinteticamente, a concepo "seriada" (aditiva, acumulativa) do currculo implica opacidade, rigidez e hierarquizao, enquanto uma

  • 32 IVANI FAZENDA

    concepo "integrada" remete interatividade permanente, a uma repartio do poder entre os professores e entre estes e os alunos, bem como a uma transparncia obrigatria. Young (1971, 1997), segundo uma abordagem semelhante a esta de Bernstein, insiste no fato que a seleo e a organizao dos contedos cognitivos e culturais de ensino traduzem os pressupostos ideolgicos e os interesses sociais dos grupos dominantes. Young retm trs critrios possveis para uma classificao dos currculos: o grau de hierarquizao, o grau de especializao e o grau de compartimentao dos saberes cuja transmisso contribuda por tais currculos. Como destaca Forquin (1989: 103-4), " a questo da estratificao (ou hierarquizao) dos contedos ensinados que aparece [...] como a mais importante, pois atravs dela que ns podemos apreender melhor as questes polticas da transmisso do saber no seio dos sistemas de ensino".

    Assim, o currculo claramente considerado sob suas questes sociopolticas, mas tambm socioculturais. A luz deste quadro conceituai, uma das questes que nos inquietou foi: Qual o lugar e quais funes os professores do primrio no Qubec atribuem s cincias (naturais e humanas) e ao ensino destas?

    Metodologia

    Para ser breve e no entrar nos detalhes quanto aos procedimentos de coleta e de tratamento dos dados, a Tabela 1 apresenta sucintamente as diferentes pesquisas aqui consideradas. Notemos que os resultados de duas dessas pesquisas (FCAR 1992-95 e CRSH 1995-98) so particularmente mais considerados. Por outro lado, dados de uma outra pesquisa esto atualmente em tratamento. O tratamento dos dados lanou mo tanto de anlises qualitativas (de contedo) quanto quantitativas (anlise lexicomtrica, tratamento estatstico de tipo descritivo, anlise em cacho [cluster analysis], anlise fatorial das correspondncias etc).

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 33

    Resultados

    Consideraremos, no quadro desta apresentao, os aspectos seguintes que emergiram dos numerosos dados coletados pelas pesquisas citadas:

    uma viso geral da hierarquizao de disciplina segundo os resultados acumulados desde 1980;

    a classificao hierrquica das disciplinas segundo os tipos de saberes; a distino estabelecida entre disciplina de base e disciplina

    secundria; o tempo semanal dedicado ao ensino das diferentes disciplinas; as disciplinas percebidas como "naturalmente" complementares.

    Viso geral da hierarquizao de disciplina segundo os resultados acumulados desde 1980

    Os resultados acumulados por cinco pesquisas realizadas aps 1980 testemunham uma grande estabilidade de ordem hierrquica que os professores atribuem s diferentes disciplinas escolares que constituem o currculo do ensino primrio (Tabela 2).

    Sublinharemos aqui, sem entrar na interpretao das variaes observadas, a posio hierrquica a quarta posio ocupada pelas cincias naturais, posio estvel h quinze anos. Mais uma vez, os professores colocam sistematicamente, em terceiro lugar desde o final dos anos 1980, as cincias humanas antes mesmo das cincias naturais.

    Classificao hierrquica das disciplinas segundo os tipos de saber

    Duas pesquisas, "FCAR 1992-95" e "CRSH 1995-98", permitiram questionar os professores do primrio acerca da hierarquizao das dis-

  • Tabela 1 Pesquisas consideradas: viso geral, amostragem e procedimentos

    Anos Ttulo da pesquisa

    Campo da pesquisa

    Mtodos N Pesquisadores

    1980-1981

    A condio das disciplinas ditas secundrias no primrio

    Atores de 30 comisses escolares + 25 grupos

    Duas enquetes Indeterminado: professores

    Conselho superior de educao

    1988-1989

    Diagnstico do ensino das cincias humanas nas classes primrias franco-catlicas do Quebec (1959-1988)

    Meio urbano e suburbano Questionrio de enquete

    107 professores Mario Laforest

    1990-1991

    Relaes entre interdisciplinaridade e integrao das aprendizagens no ensino primrio do Quebec

    Meio rural e semi-rural em todo o Qubec

    Questionrio de enquete validao post hoc: instrumento de determinao dos perfis de interveno educativa

    250 professores Yves Lenoir (identificao "Lenoir 1990-1991")

    1991-1994

    A interdisciplinaridade pedaggica no primrio: estudo da evoluo das representaes e das prticas de professores titulares do primeiro ciclo do primrio no quadro de uma pesquisa-ao-formao

    Quatro comisses escolares dos arredores da cidade de Quebec

    Entrevistas semi-dirigidas no incio e no fim do processo. Escala de identificao dos modelos de interveno educativa, locus de controle e estratificao de disciplinas (fim do processo)

    15 professores no incio, 10 no fim

    Yves Lenoir, Franois Larose, Diane Biron, Louise de Broin (identificao "MEQ 1991-1994")

  • 1992-1995

    As representaes dos professores titulares do ensino primrio qubcois sobre a interdisciplinaridade pedaggica e sua aplicao em classe

    Meio rural e suburbano do Qubec

    Questionrio de enquete (questes fechadas e abertas) Escala de identificao dos modelos de interveno educativa, locus de controle e estratificao de disciplinas (fim do processo). Entrevista semi-dirigida no final do processo (N = 13)

    200 professores Yves Lenoir, Franois Larose (identificao "Fcar 1992-1995")

    1995-1998

    Competncias didticas e formao didtica dos professores do primrio em uma perspectiva interdisciplinar

    Meio urbano e suburbano da Comisso Escolar de Sherbrooke (Qubec)

    Entrevistas semi-dirigidas Definio conceitual Questionrio de enquete

    32 professores (primrios e universitrios) 66 futuros professores 312 professores (primrios e universitrios) e futuros professores

    Yves Lenoir, Franois Larose, Cario Spallanzani e colaboradores (identificao "Crsh 1995-1998")

    1998-2001

    Utilizao do material interdisciplinar pelos professores do primrio: impacto sobre suas prticas

    Meio rural e suburbano do Quebec

    Questionrio geral Entrevistas semi-dirigidas Entrevistas a partir do planejamento

    61 professores 39 atores do mundo da educao, 41 professores 42 professores

    Yves Lenoir, Franois Larose et Grard-Raymond Roy, Cario Spallanzani (identificao Umipep 1998-2001)

  • Tabela 2

    Ordem hierrquica das disciplinas ensinadas no primrio segundo cinco enquetes: viso geral

    Ordem Pesquisa Cse (1980-1981)

    Pesquisa Laforest (1988-1989)

    Pesquisa Lenoir (1990-1991)

    Pesquisa Fcar (1992-1995)

    Pesquisa Crsh (1995-1998)

    1 Francs Francs Francs Francs Francs

    2 Matemtica Matemtica Matemtica Matemtica Matemtica

    3 Educao fsica Cincias humanas Cincias humanas Cincias humanas Cincias humanas

    4 Cincias humanas Cincias naturais Educao fsica Cincias naturais Cincias naturais

    5 Ingls Ingls Cincias naturais Ingls Ingls

    6 (Educ. a sade) Educao fsica Ingls F. pes. e social Educao fsica

    7 Educao moral Artes F. pes. e social Ensino religioso F. pes. e social

    8 Cincias naturais F. pes. e social Ensino religioso Ensino moral Artes plsticas

    9 Ensino religioso Ensino moral Artes plsticas Artes plsticas Ensino moral

    10 (Educ. sexual) Ensino religioso Msica Educao fsica Msica

    11 Artes plsticas Ensino moral Msica Arte dramtica

    12 Msica Arte dramtica Arte dramtica Dana

    13 Expr. Dramtica Dana Dana Ensino religioso

    14 Ativ. Manuais

    15 Dana

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 37

    ciplinas em funo das contribuies de cada uma delas aos tipos de saber geralmente empregados pelo vocabulrio em vigor no mundo da educao. A classificao estabelecida (Tabela 3) privilegia novamente o francs e a matemtica. As cincias humanas e as cincias naturais vm apenas em quanto e quinto lugar, respectivamente, no que concerne ao desenvolvimento do saber, mesmo que a razo de ser destas duas disciplinas seja a produo conceitual da realidade humana, social e natural.

    Tabela 3 Hierarquizao das disciplinas escolares em funo dos tipos de saber

    Tipos de saber Classificao

    Saber 1) Francs; 2) Matemtica; 3) Ingls; 4) Cincias humanas; 5) Cincias naturais

    Saber-fazer 1) Matemtica; 2) Francs; 3) Educao fsica; 4) Artes Saber-ser 1) Formao pessoal e social; 2) Ensino moral e religioso catlico; 3)

    Educao fsica

    Uma pesquisa mais recente, intitulada Utilizao do material interdisciplinar pelos professores do primrio: impacto sobre suas prticas, identificada pelo acrnimo Umipep (CRSH, 1998-2001) fornece um retrato bem semelhante da situao (Tabela 4).

    Estas escolhas colocam em evidncia a pouca preocupao com os processos de conceitualizao e com os processos experimentais que so relevantes do savoir-faire.

    Distino entre disciplina de base e disciplina secundria

    Duas pesquisas (Lenoir, 1990-91 e FCAR, 1992-95) se dedicaram distino, freqentemente feita pelos professores, entre disciplinas de

  • 38 IVANI FAZENDA

    Tabela 4 Hirarquizao das disciplinas escolares em funo dos tipos de saber

    Ordem Saberes Saber-fazer Saber-ser

    1 Francs Francs Formao pessoal e social 2 Matemtica Matemtica Ensino moral 3 Ingls Educao fsica Ensino religioso 4 Cincias humanas Ingls Educao fsica 5 Cincias naturais Artes Artes 6 Artes Formao pessoal e social Francs 7 Formao pessoal e social Cincias humanas Ingls 8 Ensino moral Cincias naturais Cincias humanas 9 Ensino religioso Ensino moral Matemtica

    10 Educao fsica Ensino religioso Cincias naturais

    base (ou principais) e disciplinas secundrias. Em sua nota datada de junho de 1982, o Conselho Superior de Educao recorreu explicitamente a estas denominaes, de uso corrente e familiar no ensino primrio, para distinguir entre as disciplinas ditas importantes e as "pequenas disciplinas" ou "disciplinas secundrias". A distribuio das disciplinas escolares do primrio em um contnuo (Tabela 5), estabelecida a partir da mdia das escolhas efetuadas pelos respondentes (o nmero 1 equivale "disciplina de base" e o nmero 2 "disciplina secundria"), no pode deixar indiferente. A Tabela 5 coloca em evidncia a predominncia do francs e da matemtica, e o quinto lugar atribudo pelos professores s cincias humanas, estando as cincias naturais situadas en nono lugar, atestando assim claramente o status secundrio atribudo a esta disciplina.

    A distribuio das matrias assim selecionadas em um contnuo (Figura 2) evidencia a existncia de uma forte discriminao em quatro conjuntos quanto distino entre disciplina de base e disciplina secundria. As de base incluem nitidamente trs disciplinas: o francs e a matemtica evidentemente, mas tambm o ingls. As secundrias

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 39

    Tabela 5

    Distino entre disciplina de base e disciplina secundria

    Disciplina Mdia do total das respostas Ordem

    Francs 1,0080321 1 Matemtica 1,0120482 2 Ingls 1,4488889 3 Educao fsica 1,6090535 4 Cincias humanas 1,6598361 5 Formao pessoal e social 1,6880342 6 Ensino religioso 1,7196653 7 Ensino moral 1,7410714 8 Cincias naturais 1,7581967 9 Msica 1,8949580 10 Artes plsticas 1,9004149 11 Arte dramtica 1,9561404 12 Dana 1,9696970 13

    Figura 2 Distribuio das disciplinas de base e das disciplinas secundrias no primrio

  • 40 IVANI FAZENDA

    agrupam as outras disciplinas em um terceiro bloco, no qual situam-se as cincias humanas e naturais com uma diferena no plano do reconhecimento finalmente pouco importante , e as quatro modalidades de artes que formam um ltimo conjunto.

    Quando da realizao da pesquisa Umipep (CRSH, 1998-2001), que ser tema na prxima seo, 61 professores do primrio foram levados a identificar as disciplinas escolares que consideravam como sendo de base. A hierarquizao das disciplinas feita por esses professores coloca em evidncia a total predominncia do francs e da matemtica, mas tambm, em certa medida, do ingls. As cincias humanas e as cincias naturais so classificadas igualmente em um segundo bloco, em quinto e em sexto lugar respectivamente, o que mostra uma estabilidade das representaes dos professores (Tabela 6).

    Tabela 6 Identificao hierrquica das disciplinas de base

    Disciplinas Porcentagem (N=61)

    Francs 100,0%

    Matemtica 100,0%

    Ingls 82,2%

    Educao fsica 58,6%

    Cincias humanas 49,2%

    Cincias naturais 40,7%

    Formao pessoal e social 29,3%

    Ensino moral 24,1%

    Msica 22,0%

    Artes plsticas 18,6%

    Ensino religioso 10,2%

    Arte dramtica 5,1%

    Dana 5,1%

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 41

    Parece-nos interessante, portanto, perguntar quais so os argumentos utilizados pelos professores para estabelecer esta distino entre disciplinas de base e secundrias. A Tabela 7 apresenta brevemente tais argumentos.

    Tabela 7 Argumentos dos professores

    Disciplinas de base Disciplinas secundrias So essenciais formao em virtude de sua dimenso utilitria.

    So complementares s disciplinas de base.

    So essenciais ao sucesso social. Constituem um enriquecimento pessoal.

    Ao lado do reconhecimento da importncia instrumental das lnguas e da matemtica enquanto disciplinas que permitem expressar a realidade, comunic-la, o peso da leitura social emerge fortemente: as outras disciplinas escolares no permitem vencer na vida ou, em todo caso, no so prioritrias para garantir o sucesso social.

    Tempo semanal dedicado ao ensino das diferentes disciplinas

    Quando nos interrogamos sobre o tempo semanal dedicado ao ensino das diferentes disciplinas pelos professores do primrio, possvel constatar, principalmente a partir das pesquisas "Lenoir 1990-91" e "FCAR 1992-95", que os professores dedicam a todas as disciplinas um tempo mdio inferior quele prescrito pelo regime pedaggico imposto pelo Ministrio da Educao do Quebec (MEQ), com exceo, evidamente, do francs e da matemtica, que ocupam sozinhas 60% do tempo mdio

  • 42 IVANI FAZENDA

    semanal ou seja, 10% a mais que o tempo previsto , com um mnimo de 30% do tempo e um mximo de 95% do tempo semanal (Tabela 8).

    Tabela 8 Tempo semanal consagrado ao ensino das diferentes matrias

    Disciplinas %do

    tempo mnimo

    %do tempo mximo

    %do tempo mdio

    Desvio padro

    %do tempo MEQ

    Francs 19,2 55,6 35,3 5,9 30,4

    Matemtica 11,4 40,0 24,6 6,2 19,6

    Ensino religioso 0,0 12,1 6,8 1,8 8,7 Cincias humanas 1,8 12,2 6,1 2,0 8,7 Educao fsica 0,0 12,1 5,3 2,0 8,7

    Cincias naturais 0,0 12,1 4,4 1,7 5,4

    Ensino moral 0,0 10,6 4,3 3,5 8,7 Artes plsticas 0,0 9,8 3,9 1,7 4,3 Ingls 0,0 12,2 1,9 3,4 4,3 Msica 0,0 9,8 2,7 2,1 4,3 Formao pess. e social 0,0 16,3 1,9 1,9 Dana 0,0 9,5 0,5 1,4 4,3

    Arte dramtica 0,0 5,0 0,4 1,1 4,3

    As cincias naturais se situam em uma variao que vai de uma ausncia total de ensino at um mximo mais raro de 12% do tempo semanal. Seria necessrio se perguntar agora qual o tipo de ensino das cincias naturais oferecido. A situao das cincias humanas parece menos dramtica, pois assegura-se sempre um mnimo do tempo de ensino semanal. Mas a questo que emerge para as duas disciplinas, bem como para todas demais chamadas "secundrias" a seguinte: Como este ensino realizado? Qual seu valor no plano das aprendizagens? Qual o respeito s caractersticas especficas dessas disciplinas? O que dizer sobre o alcance dos objetivos prescritos pelos programas de estudo?

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 43

    Quanto aos motivos utilizados para justificar a reduo do tempo dedicado a essas disciplinas escolares, os professores mencionam as justificaes apresentadas na Tabela 9.

    Tabela 9 Motivos utilizados para justificar a reduo do tempo

    dedicado ao ensino de certas matrias

    Pesquisa "Lenoir 1990-1991" Pesquisa "FCAR 1992-1995"

    A comisso escolar determina assim a repartio do tempo dedicado a cada um dos programas.

    Presses vindas da comisso escolar e dos pais dos alunos.

    Trata-se de disciplinas secundrias. Razes pessoais, principalmente a falta de interesse e a falta de formao.

    Falta de tempo para o ensino das outras disciplinas, isto , o francs e a matemtica. Falta de tempo.

    Disciplinas tidas como "naturalmente" complementares

    A partir de duas pesquisas, "FCAR 1992-95" e "CRSH 1995-98", os professores puderam identificar as disciplinas que consideravam como "naturalmente" complementares (Tabela 10).

    interessante notar que tanto as cincias humanas como as cincias naturais so sistematicamente citadas. Elas so associadas matemtica, mas tambm ao francs e mesmo entre elas. No entanto, isso no acontece porque so consideradas como "naturalmente" complementares s disciplinas "de base", mas, principalmente, como nossas pesquisas demonstraram, as cincias naturais bem como as humanas, servem freqentemente de faire-valoir, de pretexto para o ensino do francs e da matemtica (Lenoir, 1991; Lenoir, Larose e Laforest, 2001; Turcotte e Lenoir, 2001). Trata-se, pois, de uma pseudocomplementaridade na qual as cincias humanas e as cincias naturais, principalmente quando

  • 44 IVANI FAZENDA

    Tabela 10 Disciplinas "naturalmente" complementares

    Pesquisa FCAR 1992-1995 Ordem Disciplinas

    1 Matemtica Cincias naturais Cincias humanas 2 Francs Cincias humanas Cincias naturais 3 Cincias humanas Ensino religioso Artes plsticas

    4 Cincias naturais Formao pessoal e social Ensino religioso

    Pesquisa CRSH 1995-1998 Ordem Disciplinas

    1 Francs Cincias humanas Cincias naturais 2 Matemtica Cincias naturais 3 Francs Cincias humanas Cincias naturais Formao pessoal e social

    associadas ao francs, so tratadas apenas do ponto de vista comunicacional, e no a partir de um processo de conceitualizao.

    A pesquisa Umipep (CRSH, 1998-2001) chega exatamente aos mesmos resultados: os professores consideram, na ordem seguinte, o francs, a matemtica, as cincias humanas e as cincias naturais como disciplinas escolares complementares.

    Elementos de interpretao

    interessante de incio colocar em paralelo os resultados obtidos no que diz respeito hierarquizao das disciplinas em funo da importncia que lhes atribuda, da ponderao estabelecida para distinguir entre disciplinas de base e disciplinas secundrias e do tempo mdio semanal de ensino que lhes dedicado. Na Tabela 11 que segue, o espao entre as diferentes disciplinas identifica os possveis

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 45

    Tabela 11 Comparao entre a importncia das disciplinas ensinadas no primrio,

    sua classificao em disciplina de base e disciplina secundria e tempo mdio dedicado a seu ensino (Pesquisa Lenoir, 1990)

    Importncia atribuda Disciplinas de base Disciplinas secundrias

    Tempo mdio de ensino

    Francs Francs Francs Matemtica Matemtica

    Ingls

    Matemtica

    Cincias humanas Ensino religioso Cincias humanas

    Educao fsica Educao fsica Cincias naturais Educao fsica Cincias naturais

    Ingls Formao pessoal e social Cincias naturais

    Formao pessoal e social Ensino religioso Ensino moral Ensino religioso Ensino moral Artes plsticas Cincias naturais Artes plsticas

    Ingls Msica Msica

    Ensino moral Artes plsticas Msica Arte dramtica Arte dramtica

    Dana

    Dana Dana Arte dramtica

    agrupamentos estabelecidos e o trao pontilhado a mais importante distino entre esses agrupamentos.

    Levando em considerao a estruturao dos programas de estudos estabelecida por Lenoir (1990, 1991, 1992) na perspectiva de conceber uma abordagem interdisciplinar que repousa ao mesmo tempo sobre a manuteno das especificidades das disciplinas constitutivas do currculo, sobre suas complementaridades e sobre as interconexes que elas permitem no que tange seus objetos e seus processos, os professores atribuem globalmente, com exceo da educao fsica, o primeiro lugar s disciplinas que asseguram a expresso da realidade e o segundo lugar quelas que permitem a construo da realidade. As disciplinas que estabelecem uma relao com a realidade vm em terceiro lugar, e

  • 46 IVANI FAZENDA

    as artes, que asseguram ao mesmo tempo essas trs funes, mas sob um outro ngulo, em quanto e ltimo lugar (Ibid.).

    importante, entretanto, notar que esse retrato tem mesmo mudado um pouco no curso da ltima dcada, particularmente no que diz respeito ao ensino religioso, que se encontra atualmente em ltimo lugar no plano da importncia atribuda pelos professores do primrio. Este fato conseqncia da supresso da obrigatoriedade de seu ensino e da substituio das comisses escolares confessionais (catlicas e protestantes) por comisses escolares lingsticas (francfonas e anglfonas). O ensino do ingls visto hoje de maneira muito mais favorvel; a ele atribudo um lugar mais importante por parte dos professores. Quanto s artes, elas continuam margem do ensino primrio. necessrio, portanto, sublinhar que o ensino de certas disciplinas pode necessitar de especialistas. o caso, por exemplo, do ensino do ingls, das artes plsticas, da msica, da educao fsica. So as escolas quem determinam as disciplinas que sero ministradas pelos especialistas, as outras devendo, portanto, ao menos do ponto de vista terico, ser ensinadas pelos professores generalistas titulares de classe. O nmero de horas previstas pelo regime pedaggico respeitado pelas disciplinas escolares cujo ensino assumido por esses especialistas.

    Recorrendo a diferentes autores, Forquin (1989) relembra, citando Taylor e Richards, que o currculo est no centro da empresa educativa" (p. 24) e, citando Stenhouse, que "o currculo [...] constitui de fato um dos meios essenciais para os quais se encontram estabelecidos os traos dominantes do sistema cultural de uma sociedade" (p. 25). Assim como testemunham os diferentes resultados apresentados, um forte grau de estratificao das disciplinas escolares observado de forma constante nos ltimos 25 anos no currculo primrio quebequense. A concepo cumulativa do ensino permanece, pelo menos at a presente reforma do currculo, cujos impactos sobre as prticas pedaggicas so ainda desconhecidos.

    Se as cincias humanas so sem sombra de dvida mais ensinadas no primrio do que as cincias naturais, este ensino, pelo menos at o incio da atual reforma, permaneceu aleatrio, freqentemente

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 47

    confinado s ltimas aulas do dia e mesmo s sextas-feiras tarde. Tal ensino se caracteriza por uma abordagem livresca, apresentada em geral como interdisciplinar, o que conduz, como assinalamos, a reduzi-la a um pretexto ao ensino do francs, pois ela serve essencialmente contextualizao de uma abordagem comunicacional. Este ensino tambm caracterizado por recorrer de forma macia a cadernos de exerccios nos quais as habilidades tcnicas, as noes e os fatos so considerados por eles mesmos e neles mesmos, sem nenhuma preocupao com o desenvolvimento conceitual que deveria estar no centro de tal ensino. A construo da realidade humana e social a partir de uma anlise que considera os fatos humanos e sociais no tempo, no espao e na sociedade no levada em considerao.

    Se a implantao do novo currculo, que inclui no domnio do universo social a histria, a geografia e a educao cidadania, parece se preocupar com um processo de construo conceitual da realidade, difcil compreender as razes que levaram tal domnio a ser excludo do ensino de primeiro ciclo do primrio, deixando uma mensagem tanto para os professores como para os pais da no-importncia desta disciplina escolar.

    Quanto s cincias naturais, seu ensino no primrio ainda mais crtico. Com efeito, luz da grande estabilidade da hierarquizao social das disciplinas escolares que observada h vinte anos e da representao das cincias enquanto disciplina "secundria" de ensino, avanamos, entre as diversas hipteses que poderiam explicar esta situao, que este estado seria conseqncia de uma forte tenso entre a adoo da lgica instrumental norte-americana pelos sistemas escolares quebequenses que se instaura a partir da metade dos anos 1960 aqui que testemunha o Rapport Parent (Gouvernement du Qubec 1963-65) e a vontade de se distanciar para afirmar um fato francs distintivo (Lenoir, 2004). O conflito entre as perspectivas "vocacionalistas" (tomando aqui a noo americana de vocationalism, que qualifica a orientao pragmtica veiculada nos Estados Unidos a partir dos anos 1880) (Lenoir, 2002), e a tentativa do Rapport Parent de promover um humanismo contemporneo enriquecido pelas cincias e pela tecnologia conduziu a uma

  • 48 IVANI FAZENDA

    apreenso negativa da cultura cientfica e tcnica pelos professores, vetores sociais da primeira iniciativa a esta cultura (Conseil de la Science et de la Technologie, 2002). E esta atitude negativa ainda reforada por uma formao inicial de professores deficiente e pouco valorizada, tanto no plano da estratificao social dos objetos de ensino quanto no plano da formao em meio prtico durante os estgios. Diante desta anlise, no seria necessrio uma reconceitualizao do currculo do ensino primrio a fim de colocar em evidncia a contribuio essencial das cincias (naturais e humanas) produo da realidade humana, social e natural na formao escolar onde processos de conceitualizao constituiriam o piv central sem o qual os processos de expresso da realidade construda e o estabelecimento de relao como outra realidade no poderiam se concretizar?

    Finalmente, o fato de as cincias naturais ser pouco consideradas e principalmente pouco ensinadas no primrio no parece inquietar o Conselho da Cincia e da Tecnologia do Qubec. O Conselho de Pesquisa em Cincias Naturais e em Engenharia do Canad (CRSNG), extremamente preocupado com a qualidade do ensino das cincias oferecido aos jovens canadenses, acaba de anunciar um concurso visando criar cinco ou seis centros de pesquisa em todo o pas, que tero por objeto de estudo o ensino das cincias e da tecnologia no ensino primrio e secundrio. Entretanto, seria primordial que o discurso oficial, proferido pelo Ministrio da Educao, deixe de ser duplo, impondo por um lado um regime pedaggico que se traduz pela obrigao de ensinar todas as disciplinas escolares introduzidas no currculo, mas permitindo, por outro lado, um grande descaso quanto ao respeito de suas diretrizes. O discurso governamental implcito vai ao encontro do discurso operatrio, efetivo, tido no meio escolar pelos responsveis administrativos (quadros escolares, direes de escolas), que respondem s expectativas sociais que vem a pertinncia da formao de jovens somente sob a perspectiva da instrumentalizao que passa pela aprendizagem do francs e da matemtica. Deve-se, ao contrrio, afirmar claramente a importncia de um ensino de qualidade das cincias na escola primria, assim como de todas as disciplinas escolares que esto inscritas

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 49

    no regime pedaggico, obrigatrio ou terico, mas no so respeitadas na prtica.

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  • 50 IVANI FAZENDA

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  • O olhar da pesquisa em educao sobre a multidimensionalidade subjacente s prticas

    pedaggicas

    Anderson Arajo-Oliveira

    Ao propor o colquio "L'interdisciplinarit et les savoirs enseigner: quelle compatibilit? A quelles pratiques recourir?"1 , Ivani Fazenda nos convida para uma nova viso do processo educativo escolar a partir do dilogo entre as trs formas de conhecer que envolve a interdisciplinaridade: saber, saber-fazer e saber-ser. Essa proposta de reflexo que coloca na ordem do dia um repensar as prticas pedaggicas nos interpela exatamente quando ela questiona: quelles pratiques reccourrir?.2 no sentido de refletir sobre esta questo que propomos o presente texto. Este tem por objetivo discutir as prticas pedaggicas escolares a partir do ponto de vista das pesquisas cientficas, ou seja, de como elas consideram a multidimensionalidade que subjacente s prticas. As reflexes apresentadas neste texto se inscrevem numa pesquisa mais ampla desenvolvida pelo Centro de Pesquisa sobre a Interveno

    1. "A interdisciplinaridade e os saberes a ensinar: quais compatibilidades? A quais prticas recorrer?" 2. "A quais prticas recorrer?"

  • 54 IVANI FAZENDA

    Educativa (Crie), intitulada "As pesquisas sobre as prticas pedaggicas efetivas no pr-escolar e no primrio: olhar crtico de suas contribuies para a elaborao de um referencial de formao profissional". Esta pesquisa consistiu numa anlise crtica dos estudos empricos realizados sobre a prtica pedaggica e publicados na documentao cientfica francfona e anglfona. Para efeito deste texto, consideraremos somente um dos cinco eixos3 que figuraram no estudo, a saber: "dimenses da prtica pedaggica".

    A pesquisa em educao e a multidimensionalidade da prtica pedaggica

    A pesquisa em cincias da educao voltada para o estudo da prtica pedaggica comeou h mais de um sculo, mas principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial que os trabalhos ganharam fora e se multiplicaram. Nesta trajetria, vrias investigaes, diferentes olhares, numerosos objetos e metodologias tentaram e tentam dar conta deste campo s vezes pensado como uma arte, outras vezes como uma cincia, uma tcnica ou mesmo como uma interao. Apesar desta historicidade conflituosamente marcante dos estudos sobre as prticas pedaggicas, ainda dispomos de pouca informao sobre o que se passa realmente em sala de aula. mister reconhecer que os conhecimentos neste domnio so em sua maioria mais especulativos e normativos do que descritivos, explicativos e compreensivos (Bru, 1997).

    Consideramos, portanto, que a investigao interdisciplinar das prticas dos professores revela-se de uma importncia capital, independente do nvel de ensino ao qual se destina (Bru, 2001, 2002a; Bru e Talbot, 2001; Lenoir, 2003), e em suas trs finalidades dominantes: a produo de conhecimentos, a profissionalizao docente e a evoluo das prticas

    3. Os outros quatros eixos que figuraram neste estudo foram: inteno das pesquisas; importncia da observao no processo de coleta dos dados; objeto da observao e definio do conceito de prtica pedaggica.

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 55

    (Marcel et al., 2002). Um olhar interdisciplinar sobre as prticas pedaggicas recupera, segundo Fazenda (2001), "a magia das prticas, a essncia de seus movimentos" (p. 13). No entanto, antes de abrir novas perspectivas de investigao para um conhecimento mais exaustivo da essncia e dos movimentos da prtica pedaggica, necessrio precisar o que se entende por prtica pedaggica (Bru, 2002b).

    Assim, a prtica pedaggica pode ser definida, segundo os estudos de Altet (2002), como os atos singulares de um profissional da educao bem como os significados que este ltimo lhes atribui. Segundo os estudos de Bru (2002b), ela entendida como aquilo que faz o professor no seu estabelecimento de ensino em presena ou no dos alunos. Segundo Marcel (apud Bru e Talbot, 2001), a prtica pedaggica comporta vrias outras. Ela compreende, alm da prtica em classe com os alunos, os atos efetuados fora do tempo escolar freqentemente realizados na ausncia dos alunos, entre outros as aes ligadas planificao, aos encontros com os colegas de trabalho e aos encontros com os pais.

    Compreendemos, portanto, a prtica pedaggica como a prtica profissional do professor antes, durante e depois da sua ao em classe com os alunos. Ela revela as competncias, os invariantes de conduta, bem como os esforos de adaptao efetuados pelo profissional do ensino para responder aos desafios impostos pelas situaes complexas em contexto de ensino-aprendizagem.

    Esta atividade profissional sistematizada, que se materializa num dispositivo institucional (a classe, a escola, o sistema educativo) e numa relao social determinada no espao e no tempo, influenciada igualmente por uma multiplicidade de dimenses (as dimenses didtica, organizacional, psicopedaggica etc). Neste sentido, percebemos que a prtica pedaggica uma prtica multidimensional no sentido em que composta de vrias dimenses que interagem mutuamente para permitir ao professor adaptar-se situao profissional e gerir, conjuntamente com os alunos, as aprendizagens destes e a conduta da classe.

    Assim, em nossa reflexo, a prtica pedaggica: uma atividade profissional situada, orientada por fins e pelas normas

    de um grupo profissional;

  • 56 IVANI FAZENDA

    engloba ao mesmo tempo as atividades com os alunos, mas tambm o trabalho coletivo e individual fora da classe;

    multidimensional; no se limita s aes perceptveis, mas comporta tambm as escolhas,

    as tomadas de decises e os significados dados pelo professor a suas prprias aes;

    a atividade profissional do professor antes, durante e depois da sua ao em classe.

    Face a estas consideraes, importante questionar a capacidade das investigaes sobre as prticas pedaggicas de cumprir as suas funes. Em que medida as investigaes efetuadas sobre as prticas pedaggicas propem conhecimentos transferveis para um referencial profissional e para as prprias prticas? Os conhecimentos cientficos procedentes destas investigaes permitem realmente identificar e compreender de forma interdisciplinar as mltiplas dimenses que inter vm na organizao das prticas? Elas levam em considerao as causas determinantes que se situam extraclasse e aquelas que entram em jogo durante a ao em sala de aula na presena dos alunos?

    Encontrar respostas, mesmo que parciais, a estas interrogaes, requer a utilizao de um quadro de anlise que leve em conta a complexidade e a globalidade do agir docente, neste caso o conceito de interveno educativa (Lenoir et ah, 2002). Este conceito em processo de construo, verdade representa a nossos olhos uma estrutura de acolhimento para o estudo da prtica pedaggica. Sua escolha repousa, entre outras, na possibilidade de considerar as prticas sob um olhar interdisciplinar a partir da interao complexa entre suas diferentes dimenses. Alm disso, o conceito de interveno educativa permite abordar a prtica em suas diferentes fases, destacar a interao entre os alunos e o professor e sublinhar a funo mediadora central do professor que age na relao de aprendizagem que se estabelece entre os alunos e os objetos do conhecimento (Lenoir et al., 2002; Lenoir e Vanhulle, 2006). Assim, definimos a interveno educativa como o conjunto das aes sistematizadas postas por pessoas designadas, fundamentadas e

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 57

    legitimadas para alcanar, num contexto institucionalmente especfico, os objetivos educativos socialmente determinados, colocando em evidncia as condies mais adequadas possveis para favorecer a mise en uvre pelos alunos dos processos de aprendizagem adequados (Lenoir et al., 2002).

    No obstante, os autores supracitados, ao definirem o conceito de interveno educativa, apresentam as dimenses suscetveis de influenciar a prtica pedaggica em um plano nico e sem estabelecer necessariamente as relaes que unem umas s outras. Assim, esse plano no nos permite estabelecer muito menos compreender a dinmica prpria a essas dimenses. Ora, necessrio proceder a uma anlise dessas dimenses colocando em evidncia a relao internamente estabelecida entre elas e a prtica pedaggica. Para isso, procedemos a uma reorganizao dessas dimenses a partir de certos elementos decorrentes de outras leituras: primeiramente, o modelo de interveno de Sant-Arnaud (1993), em que um dos seus componentes destaca que o interveniente possui um quadro de anlise que lhe prprio e a partir do qual ele constri a sua ao; segundo, a viso ergonmica do trabalho, que concebe a atividade como a resposta do indivduo ao conjunto das condies internas e externas (Leplat, 1980, 1997). As condies externas correspondem ao conjunto das condies fsicas, organizacionais, tcnicas e socioeconmicas externas ligadas ora instituio onde a atividade se desenvolve, ora sociedade de maneira geral, enquanto as condies internas consistem no conjunto das representaes prprias ao indivduo produtor/executor da atividade.

    As dimenses subjacentes prtica pedaggica so assim analisadas e organizadas em trs perspectivas: uma perspectiva socioeducativa contextual, ligada ao contexto mais amplo e independente da vontade ou desejo do professor, mas que exerce influncia direta sobre as prticas pedaggicas (dimenso contextual); uma perspectiva socioeducativa ligada ao quadro de referncia do professor: viso da escola e de suas finalidades (dimenso curricular), viso do ensino e da aprendizagem (dimenso socioafetiva e histrica), viso do saber (dimenso epistemolgica); uma perspectiva operacional que representa a

  • 58 IVANI FAZENDA

    operacionalizao desse quadro de referncia na escola e na classe (dimenses didtica, psicopedaggica, mediadora e organizacional).

    Assim, as numerosas investigaes que so publicadas a cada ano sobre o professor e suas prticas (Tardif e Lessard, 1999) apresentam uma grande diversidade. Elas tentam explicar, refletir, demostrar ou descrever a atividade do professor sob diferentes ngulos, paradigmas e finalidades. A luz dos fundamentos tericos apresentados, nosso desafio ser o de responder seguinte questo: qual a importncia atribuda multidimensionalidade das prticas pedaggicas pelos estudos cientficos em educao?

    Assim pensando, tomaremos como referncia a pesquisa de Lebrun et al. (2005), que permite constatar o sentido e o significado atribudo pelos estudos cientficos multidemensionalidade subjacente prtica pedaggica. O corpus de textos que figurou como objeto da anlise foi constitudo a partir da interrogao de trs bancos de dados: os internacionais Eric e Francis e o canadense Repertrio de Dissertaes e Teses no perodo situado entre 1980 e 2003. Esta interrogao permitiu identificar 430 textos. Entre os textos localizados, 271 foram analisados e 115 foram retidos para o estudo. Uma primeira leitura conduziu eliminao dos textos que no correspondiam aos critrios de incluso, ou seja, apresentar resultados de investigao cientfica, ter sido desenvolvido na Amrica do Norte ou na Europa, comportar observao direta em classe e referir-se ao ciclo primrio e/ou pr-escolar. Os documentos retidos comportam 51 textos de anais de congresso ou de colquio, quarenta relatrios de pesquisa, dezenove artigos cientficos, um captulo de livro e quatro teses de doutorado. A maioria dos documentos (noventa) refere-se ao ciclo primrio, enquanto treze so consagrados ao pr-escolar. Doze outros englobam ao mesmo tempo o pr-escolar e o primrio. Por ltimo, mais da metade dos documentos apresenta investigaes efetuadas na Amrica do Norte (75%), enquanto somente 25% deles so de procedncia europeia.

    A coleta dos dados foi efetuada pela mediao de uma anlise descritiva tradicional. A grade de anlise foi testada sobre uma amostra do corpus a fim de assegurar a pertinncia das categorias analticas.

  • O QUE INTERDISCIPLINARIDADE? 59

    Os dados qualitativos obtidos pela anlise descritiva a partir das categorias definidas a priori fazem objeto de uma compilao numrica de acordo com o eixo "dimenses da prtica pedaggica" da grade de anlise.

    Os dados coletados e compilados permitem constatar que as investigaes analisadas so essencialmente de natureza unidimensionais, no sentido em que consideram apenas um aspecto da prtica pedaggica. No conjunto das pesquisas estudadas, so as dimenses psicopedaggica (51) e didtica (29) que predominam. As outras dimenses abordadas so de ordem organizacional (12), curricular (10), epistemolgica (7), mediadora (3) e socioafetiva (1). Evidenciamos, portanto, que os resultados das investigaes so obtidos e interpretados sem respeito multidimensionalidade da prtica pedaggica e, assim, sem referncia aos fundamentos suscetveis de influenciar esta prtica.

    Com o intuito de proceder a uma anlise mais fina destes dados, nos pareceu interessante saber se existe uma diferena significativa entre a porcentagem das principais dimenses da prtica pedaggica estudada (psicopedaggica, didtica e organizacional) segundo o lugar de realizao de tal estudo, ou seja, Amrica do Norte e Europa. Para realizar esta tarefa, utilizamos o teste estatstico "Qui-quadrado", o qual permite comparar, de maneira significativa, a proporo de uma varivel nominal em relao a cada valor de uma outra do mesmo tipo.

    A aplicao desse teste permitiu constatar que as dimenses da prtica pedaggica (dimenso psicopedaggica, didtica, organizacional) foram abordadas em investigaes norte-americanas e europeias, numa proporo significativamente diferente (x2 = 7,384, p = 0,025). No que se refere relao entre as dimenses da prtica pedaggica privilegiadas nas investigaes analisadas, h uma diferena significativa entre as porcentagens de cada uma das dimenses abordadas tanto na Europa como na Amrica do Norte. Levando em conta os trabalhos que foram publicados na Europa, podemos constatar que a dimenso psicopedaggica foi a mais abordada. Esta dimenso foi tambm a mais abordada nas investigaes norte-americanas. Comparando a proporo em que esta dimenso foi estudada nos dois continentes, podemos

  • 60 IVANI FAZENDA

    observar que ela foi significativamente mais considerada na Amrica do Norte (61,1%) que na Europa (50%).

    A dimenso organizacional foi a terceira mais abordada nos trabalhos cientficos da Amrica do Norte, enquanto na Europa esta dimenso ocupa o segundo lugar. Comparando os dois continentes, vemos que a dimenso organizacional foi significativamente mais tratada nas investigaes europeias (40,0%) que nas norte-americanas (9,7%). No que se refere dimenso didtica, percebemos que na Amrica do Norte as investigaes lhe atribuem maior importncia (29,2%) que na Europa (10%).

    Os resultados deste estudo revelam que a multiplicidade dimensional (contextual, epistemolgica, curricular, didtica, psicopedaggica, organizacional, socioafet