ivani l lichdireitoaodesempregocriador

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Ivan iLLich O DIREITO AO DESEMPREGO CRIADOR A DECADENCIA DA IDADE PROFISSIONAL Editorial Alhambra Título do o ri ginal inglês: The Right To Useful Unemployment and its professional enemies Título do ori ginal espanhol: La decadencia de la edad profesional Tradução de Joaquim Campelo Marques © Ivan Illich, 1978 Ficam reservados todos os direitos. É vedada a publicação deste texto, integral ou parcial, por quaisquer meios de comunicação eletrônicos, mecânicos, reprodução xerográfica, gravação, ou similares, exceto para fim de citação critica, sem o consentimento prévio e por escrito do editor e do Autor (detentor do copirraite).

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Page 1: Ivani l lichdireitoaodesempregocriador

Iva n iLLich

O DIREITO AODESEMPREGO

CRIADORA DECADENCIA DA IDADE PROFISSIONAL

Editorial AlhambraTítulo do o riginal inglês:

The Right To Useful Unemploymentand its professional enemies

Título do ori ginal espanhol:La decadencia de la edad profesional

T r a d u ç ã o d eJoaquim Campelo Marques

© Iva n I l l i c h , 1978Ficam reservados todos os direitos.

É vedada a publicação deste texto, integral ou parcial,por quaisquer meios de comunicação eletrônicos, mecânicos,reprodução xerográfica, gravação, ou similares, exceto parafim de citação critica, sem o consentimento prévio e porescrito do editor e do Autor (detentor do copirraite).

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ÍNDICEINTRODUÇÃO ..............................................................................................3

1 A INTENSIDADE INABILITANTE DO MERCADO............................................4a) Uma opção mundial ..............................................................................5b) Para uma cultura de produtos estandardizados .......................................6c) A pobreza modernizada ....................................................................... 11d) A metamorfose das necessidades......................................................... 15

2 OS SERVICOS PROFISSIONAIS INABILITANTES ........................................ 19a) Rumo ao fim de uma época ................................................................. 24b) As profissões dominantes .................................................................... 26c) As profissões tirânicas ......................................................................... 29d) As profissões estabelecidas.................................................................. 32e) A hegemonia das necessidades imputadas............................................34

3 COMO PASSAR UMA RASTEIRA NAS NECESSIDADES ................................. 41a) Confusão entre congestão e paralisia ................................................... 43b) Cegueira ante as ferramentas convivenciais .......................................... 47c) A confusão entre liberdades e direitos .................................................. 50d) A eqüidade no desemprego criador ...................................................... 53

4 FLANQUEANDO O NOVO PROFISSIONAL .................................................. 57a) O traficante ........................................................................................ 57b) A aliança dos benfeitores públicos........................................................ 59c) A profissionalização do cliente .............................................................. 61

5 O ETHOS POS-PROFISSIONAL.................................................................. 63

APÊNDICE.................................................................................................. 65

Page 3: Ivani l lichdireitoaodesempregocriador

INTRODUÇÃO

Há cinqüenta anos, nove de cada dez palavras que um homem

civilizado ouvia eram-lhe transmitidas como a um indiv íduo. Somente uma

em dez lhe chegava como elemento indiferenciado de uma multidão — na

sala de aula, na igreja, em reuniões ou espetáculos. As palavras eram

então como cartas seladas, escritas a mão, bem diferentes da escória

que hoje contamina nosso correio. Atualmente são poucas as palavras

que tentam chamar a atenção de uma pessoa. Com regularidade de

relógio, assaltam nossa sensibilidade as imagens, idéias, sentimentos e

opiniões empacotadas e entregues através dos meios de comunicação,

como artigos padronizados. Duas coisas se tornaram evidentes: 1) O que

acontece com o idioma se tornou paradigmático para uma ampla gama

de relações entre necessidade e satisfação; 2) Estes são, já, fenômenos

universa is, e nivelam o professor de Nova Iorque, o membro da

comuna chinesa, o estudante de banto e o sargento brasileiro. Neste apêndice

a meu ensaio sobre a convivencialidade, pretendo fazer três coisas: a)

Descrever o caráter de uma sociedade de mercado-de-bens intensivo, na

qual a multiplicidade, especialização e volume das mercadorias destróem o

ambiente propício à criação de valores de uso; b) Insistir no papel oculto que

as profissões numa sociedade desse tipo desempenham ao modelar suas

necessidades; c) Propor algumas estratég ias para romper o poder

profissional que perpetua esta dependência do mercado.

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1A INTENSIDADE INABILITANTE DO MERCADO

Atualmente, chama-se crise àquele instante em que médicos,

diplomatas, banqueiros e todo tipo de engenheiros sociais assume os

controles e se suspendem as liberdades. Tal como os pacientes, as

nações se catalogam conforme o estado crítico. E isto porque a crise, depois

de ter sido uma possibilidade de ligar rumos, hoje somente significa o ir -e-

vir de um para outro lado. Remete, na atualidade, a uma ameaça

ominosa, mas controlável, contra a qual podem unir -se o dinheiro, a

força de trabalho e a administração. Um exemplo típico deste tipo de

resposta poderia ser o de uma cidade de 13 milhões de habitantes, a 2.500

metros acima do nível do mar, na qual, diante das cifras alarmantes de

escassez e das dificuldades no abastecimento de água para a maioria de seus

habitantes, que somente têm acesso a menos de cinco litros, declara-se uma

crise que dará mais trabalho aos engenheiros, em vez de racionar o

consumo de 5% das pessoas que utilizam a metade da água em suas tinas e

tanques. Entendida desta maneira, a crise acaba sendo sempre conveniente

para os executivos e comissionados, especialmente para os urubus que vivem

dos efeitos secundários, não desejados, do crescimento anterior: os

educadores que vivem da alienação da sociedade, os médicos que prosperam

à base do trabalho e do ócio que destruíram a saúde, os políticos que

triunfam graças à distribuição de um bem-estar que, em primeira instância,

foi tirado aos mesmos que recebem a assistência.

O termo crise, entretanto, não deve significar necessariamente isto. Nem

deveria implicar uma corrida desatinada numa escalada pela

administração. Pode significar o instante de escolha, esse momento

maravilhoso em que a gente se torna consciente da própria prisão auto-imposta

e da possibilidade de uma vida diferente. Esta é a crise que hoje,

simultaneamente, os Estados Unidos e o mundo enfrentam.

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a) Uma opção mundial

O mundo se uniformizou numas quantas décadas. As respostas humanas

aos acontecimentos de todos os dias se tornaram standard. Embora os idiomas

e os deuses ainda pareçam diferentes, a gente se une todos os dias à

admirável maioria que marcha ao compasso do mesmo tambor. O

interruptor de luz, junto à porta, substituiu as múltiplas formas como

antigamente se acendiam os fogos, as velas, os candeeiros. O número de

pessoas que ligam interruptores de luz triplicou no mundo em dez anos; o

fluxo de água e o papel se converteram em condições essenciais para

aliviar os intestinos. A luz que não provém das redes de alta voltagem e a

higiene que exclui o papel higiênico vêm funcionando como medidores da

pobreza de milhões de pessoas. A intromissão, sopotorífera às vezes, opaca

outras, dos meios massivos de comunicação, penetra muito profundamente

no bairro, no povoado, na sociedade, na escola. Os ruídos emitidos pelo locutor

e os anunciadores de textos programados pervertem diariamente as

palavras de uma linguagem falada, transformando-as em tijolos de

mensagens em pacotes. Para que os no ssos filhos hoje tenham a

possibilidade de brincar num ambiente em que uma de cada dez palavras

que ouvem lhes seja dirigida pessoalmente, eles devem estar isolados ou

afastados no tempo, ou melhor, devem converter-se em marginais opulentos

aos quais se proporciona cuidadosa proteção. Em qualquer parte do

mundo pode-se notar um rápido enquistamento da aceitação disciplinada que

caracteriza o auditório, o cliente, o comprador. A padronização da ação humana

vai-se estendendo.

Torna-se evidente agora que o problema crítico que a maior parte das

nações enfrenta é exatamente o mesmo: ou bem as pessoas se converterão

em cifras de uma multidão condicionada que avança para uma dependência

cada vez maior — e enfrentarão, portanto, batalhas selvagens para obter

um mín imo das drogas que alimentam os seus hábitos — ou bem

encontrarão o valor que é a única coisa que pode salvar no pânico; ou

seja, manter-se sereno e buscar em torno outra saída que não seja o óbvio já

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marcado como saída. Entretanto, muitas pessoas às quais se diz que os

bolivianos, os canadenses, os húngaros enfrentam todos a mesma opção

fundamental, não só se sentem atingidas como também se ofendem

profundamente. A idéia lhes parece não apenas louca, mas chocante. Não

alcançam detectar a analogia nesta nova degradação amarga que vai

permeando a fome do índio do Altiplano, a neurose do trabalhador de

Amsterdã e a cínica corrupção do burocrata de Var sóvia.

b) Para uma cultura de produtos estandardizados

O desenvolvimento teve os mesmos efeitos em todas as sociedades:

viram-se apanhadas numa nova trama de dependência de mercadorias que

fluem do mesmo tipo de máquinas, fábricas, clínicas, estúdios de TV, «Think

tanks». Para satisfazer esta dependência, tem-se de continuar produzindo,

sempre mais, a mesma coisa: bens e serviços padronizados por engenheiros e

destinados aos consumidores que, por sua vez, são padronizados pelos

educadores e promotores comerciais para que acreditem necessitar do que

se lhes oferece.

Sejam eles tangíveis ou intangíveis, são estes os produtos estandardizados

do mundo industrial; assumem valor monetário como mercadores e se

estabelecem tanto pela ação do Estado como pelo mercado, embora o nível de

participação de um e outros varie nos diferentes regimes. As distintas

culturas chegam a ser assim resíduos insípidos de um estilo de ação

tradicional, perdidas numa paragem mundial; um terreno árido, desbastado

pela maquinaria necessária para produzir e consumir. Nas margens do

Sena e nas do Niger, as pessoas se esqueceram de como ordenhar,

porque o líquido branco lhes chega engarrafado. Graças à maior proteção do

consumidor, na França o leite é menos tóxico do que em Máli . É verdade

que agora existe um número maior de criaturas que bebem leite de

vaca, mas os seios das mulheres, ricas e pobres, secam igualmente. A

dependência nasce com o primeiro vagido do bebê que tem fome, quando seu

organismo apreende o leite artificial, abandonando o seio materno que, desse

modo, se atrofia. Todas aquelas ações humanas, autônomas e criativas,

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necessárias para o florescimento do universo do homem, acabam por se

atrofiarem. Os tetos de barro ou de palha, de junco ou de telha, foram sendo

substituídos por tetos de concreto para uns poucos e de plástico para a

maior parte. Nem os obstáculos da selva, nem os matizes ideológicos

libertaram os pobres e os socialistas de se apressarem a construir auto-

estradas para os ricos, essas vias que os conduzem ao mundo onde os

economistas tomaram o lugar dos sacerdotes. A cunhagem das moedas

traga todos os tesouros locais e os ídolos. O dinheiro desvaloriza o que não

pode medir. A crise, pois, é a mesma para todos: a opção entre uma

maior ou uma menor dependência de bens de consumo industriais. Uma

dependência maior significaria a destruição rápida e total das culturas como

programas de atividades de subsistência que produzam satisfação; uma

dependência menor significa o florescimento variado de valores de uso em

culturas de intensa atividade. A opção é essencialmente a mesma para ricos

e pobres, ainda que, mesmo imaginá -lo, fosse extremamente difícil para

quantos já estão acostumados a viver em um supermercado, diferente, mas

somente no nome, das instituições para idiotas.

Nas sociedades de industrialismo tardio, toda a vida se organiza em

função das mercadorias. Nossas sociedades de mercado intensivo medem seu

progresso material de acordo com o aumento no volume e na variedade das

mercadorias produzidas; e, segundo esta mesma linha, medimos o

progresso social de acordo com a distribuição do acesso a esses bens e

serviços. A economia política converteu-se na grande propagandista a serviço

da dominação dos que produzem em grande escala. O socialismo se degradou

ao transformar-se numa luta contra a distribuição não igualitária e a

economia de bem-estar identificou o bem público com a distribuição da

opulência e, num sentido mais estrito, com a humilhante opulência do pobre:

um dia de degradação organizada num hospital público, cárcere ou laboratório

educacional, nos Estados Unidos, alimentaria durante um mês uma família da

Índia.

Ao depreciar todos aqueles custos aos quais a Economia clássica não

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fixou preços, a sociedade industria l criou um ambiente no qual a gente

não pode viver sem devorar cada dia o equivalente ao próprio peso em

metais, combustíveis e materiais de construção. Criou um mundo no qual a

constante necessidade de proteger-se contra os resultados negativos do

crescimento cavou novos abismos de discriminação, de impotência e de

frustração. Nunca esquecerei a afirmação do ianque diante de um chileno:

Seremos sempre nós os que, num mundo envenenado, vamos ter os filtros

de ar de maior potência. Até agora os movimentos ecológicos a serviço do

poder só têm servido para dar maior consistência a esta orientação, ao

concentrar a atenção pública na irresponsabilidade técnica de quantos irrigam

zonas habicionais com subprodutos venenosos e mutágenos e, no melhor

dos casos, têm desmascarado os interesses privados que aumentam, para o

indivíduo, a dependência de necessidades cr iadas. Mas, ainda agora,

depois que se fixaram preços e custos para refletir o impacto sobre o meio

ambiente (a desvalorização devida aos prejuízos ou o custo da polarização),

não temos sido capazes de perceber com clareza que este processo substituiu,

por artigos embalados e produzidos em série, tudo aquilo que as pessoas

faziam ou criavam por si mesmas.

Faz alguns anos, cada semana morre uma ou outra forma de

expressão. As que permanecem se uniformizam cada vez mais. Entretanto,

mesmo aqueles que se preocupam com a perda de variedades genéticas

ou com a multiplicação de isótopos radiativos, não se advertem do

esgotamento irreversível das habilidades artesanais, das histórias e dos

sentidos da forma. Esta substituição gradual de valores úteis, mas não

mercantilizáveis, por bens industriais e por serviços tem sido a meta

compartida por facções políticas e regimes que, de outro modo, se

oporiam uns aos outros violentamente.

Por, este caminho, pedaços cada vez mais longos de nossas vidas se

transformam de tal maneira que a vida passa a depender quase exclusivamente

do consumo de mercadorias. Isto é o que deveríamos chamar crescimento

da intensidade de mercado nas culturas modernas. Naturalmente, os

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diferentes regimes aplicam recursos de maneira distinta: aqui decide a

«sabedoria da mão oculta» do mercado, ali a do ideólogo e o

planif icador. Mas a oposição política entre estes proponentes de métodos

alternativos para a aplicação dos recursos, disfarça somente o próprio

desprezo grosseiro que todas as facções e partidos nutrem pela liberdade

e a dignidade pessoal. A política sobre energia em diferentes países nos dá um

bom exemplo para estudarmos a profunda identidade que existe entre os

diferentes promotores do sistema industrial, chamem-se eles socialistas ou

liberais. Se excluímos lugares como a Nova Camboja, sobre a qual me falta

informação, não existe elite no governo nem oposição organizada que

conceba um futuro desejável fundado em um instrumental social cujo

consumo de energia per cápita fosse inferior em várias ordens de

magnitude aos níveis que prevalecem hoje na Europa. Todas, as

correntes políticas insistem num pretenso imperativa técnico que torna

inevitável que o modo de produção moderno seja intensivo também no

uso de energia. Até agora não existe nenhum partido que reconheça que

um modo de produção desta espécie castra inevitavelmente a capacidade

criadora dos indivíduos e grupos primá rios. Todos os partidos insistem na

manutenção de níveis de emprego elevados na força de produção e parecem

ser incapazes de reconhecer que os empre gos tendem a destruir o valor de

uso do tempo livre. Insistem em que as necessidades dos indivíduos se

definam, na forma mais objetiva e total, por especialistas diplomados

publicamente para tal competição, e parecem insensíveis à conseqüente

expropriação da própria vida.

Nos fins da Idade Média, usou-se a assombrosa simplicidade do modelo

heliocêntrico como argumento para desacreditar a nova Astronomia. Sua

elegância foi interpretada como ingenuidade. Em nossos dias, não são

poucas as teorias centradas no valor de uso, capazes de analisar o custo

social gerado pela economia estabelecida. Estas teorias foram propostas por

muitos outsiders da economia que situam suas perspectivas numa nova escala

de valores: a beleza, a simplicidade, a ecologia, a vida em comunidade .

Como uma forma recorrente de solapar estas teorias, a economia moderna

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e seus praticantes têm-se dedicado a falsear e ressa ltar os fracassos

que, com freqüência, estes outsiders sofreram ao experimentá-las em

novos estilos de vida pessoal e se recusam a olhá-las sequer — do mesmo

modo que o inquisidor legendário se recusou a olhar através do telescópio de

Galileu — sendo que sua análise poderia conduzir ao deslocamento do centro

convencional do sistema econômico vigente. Estes instrumentos analíticos

dist intos poderiam levá-los a pôr os valores de uso não mercantilizáveis no

centro de uma cultura desejável na qual somente se atribui um valor

àqueles bens mercantis que fomentem uma extensão mais ampla desses

mesmos valores de uso. Porém o que continua valendo não é o que a gente

faz ou cria, mas sim o produto das corporações públicas ou privadas. Todos

colaboram por igual no esforço de transformar nossas futuras sociedades numa

grande brincadeira inconseqüente, na qual cada lucro e cada satisfação de uma

pessoa se transforma inevitavelmente em perda para as outras.

Nesta estrada, ficaram destroçados inumeráveis conjuntos de infra-

estruturas nas quais a pessoa enfrentava a vida, nas quais brincava, comia,

estreitava laços de amizade e até de amor. Umas quantas das chamadas

«décadas de desenvolvimento» foram suficientes para desmantelar mais de

dois terços dos moldes culturais do mundo. Antes dessas décadas,

aqueles moldes permitiam às pessoas satisfazerem a maior parte de suas

necessidades segundo um modelo de subsistência. Depois delas, o plástico

substituiu a cerâmica, as bebidas gasosas substituíram a limonada, o Valium

tomou o lugar do chá de camomila, e os discos o do violão. Ao longo de

toda a História, a melhor medida dos tempos maus foi o percentual de

alimentos que se devia comprar. Nos bons tempos, a maior parte das famílias

conseguiam quase todos os seus alimentos através do que cultivavam ou

adquiriam num quadro de relações gratuitas.

Até fins do século XVIII, o alimento que se produzia além do

horizonte abarcável pela vista do consumidor que olhasse de um campanário

ou minarete era menos de 1% em todo o mundo. As leis encaminhadas para

controlar o número de galináceos e de porcos no âmbito dos muros da

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cidade sugerem que, exceção de umas quantas zonas urbanas mais extensas, '

quase a metade dos alimentos também se cultivava igualmente dentro da vila.

Antes da segunda guerra mundial, os alimentos trazidos de fora para uma

região determinada constituíam menos de 4% do total que se consumia; além

disso, estas importações estavam destinadas, em grande parte, às 11

cidades que tinham mais de dois milhões de. habitantes. Atualmente, 40% das

pessoas sobrevivem graças ao acesso que têm aos mercados interregionais.

Conceber hoje em dia um mundo em que se reduzisse radicalmente o

mercado mundial de capitais e bens representa um tabu pelo menos tão

absoluto como conceber um mundo no qual pessoas autônomas utilizassem

ferramentas convivenciais para libertarem -se da necessidade de consumir

e para criar valores de uso em abundância. Neste tabu se reflete a crença

de que as ativ idades úteis por meio das quais as pessoas se expressam e

satisfazem as suas necessidades podem ser substituídas indefinidamente

por bens e por serviços.

c) A pobreza modernizada

Passado certo umbral, a multiplicação de mercadorias induz à impotência, à

incapacidade de cultivar alimentos, de cantar ou de construir. O afã e o

prazer, condições humanas, chegam a converter -se em privilégio de

alguns ricos caprichosos. Em Acat zingo, como na maioria dos povoadozinhos

mexicanos de seu tamanho, existiam, quando Kennedy lançou a Aliança

para o Progresso, quatro bandas de música que tocavam em troca de um

trago e serviam a uma população de 800 pessoas. Atualmente, os discos

e as rádios ligadas a alto -falantes afogam todo o talento local. Só

ocasionalmente, num ato de nostalgia, se faz uma coleta para trazer um

conjunto formado com rapazes que abandonaram a Universidade, para

cantar velhas canções em alguma festa especial. No dia em que a

legislação venezuelana determinou para cada cidadão um direito

«habitacional» concebido como mercadoria, três quartas partes das famílias

acharam que as casinhas levantadas com suas próprias mãos ficavam

rebaixadas ao nível de telheiros. Além disso, e isto era o mais importante,

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existia já um prec onceito contra a autoconstrução. Não se podia iniciar

legalmente a construção de uma casa sem antes apresentar o plano desenhado

por um arquiteto diplomado. Os dejectos e sobras da cidade de Caracas,

úteis até então como excelentes materiais de construção, criavam agora o

problema que era livrar-se de refugos sólidos. O homem que tentava levantar

a própria «morada» era olhado como um transviado que recusava cooperar

com os grupos de pressão local para a entrega de unidades habitacionais

fabricadas em série. Além do mais, promulgaram-se inumeráveis regulamentos

que acoimaram sua ingenuidade de ilegal e até de delituosa. Este exemplo

ilust ra o fato de que são os pobres os primeiros a sofrer quando uma

nova mercadoria castra um dos tradicionais ofícios de subsistência. O

desemprego útil dos inativos se sacrif ica à expansão do mercado de

trabalho. A construção da casa, como atividade escolhida por alguém,

converte -se no privilégio de alguns ricos, ociosos e extravagantes.

Uma vez se tenha incrustado numa cultura, a dependência à opulência

paralisante gera «pobreza modernizada». Esta é uma forma de desvalor que se

associa necessariamente à multiplicação de produtos industrais; escapou à

atenção dos economistas porque não se pode apreender com suas medições, e

à dos serviços sociais porque seus métodos não são operativos para estes

casos. Os economistas não dispõem de meios efetivos para incluir em seus

cálculos o que a sociedade perde quanto a uma certa satisfação que não tem

seu equivalente no mercado. Assim, podía mos atualmente definir os

economistas como membros de uma confraria que somente aceita aquelas

pessoas que, no exercício de seu labor profissional, sabem praticar uma

cegueira adestrada até a conseqüência social mais fundamental do crescimento

econômico: além de certo umbral, cada grau que se acrescenta quanto à

opulência em mercadorias traz como conseqüência uma queda na habilidade

pessoal para fazer e criar.

Enquanto a pobreza modernizada afetou somente aos pobres, sua

existência e sua natureza permaneceram ocultas mesmo nas conversações mais

correntes. Na medida que o desenvolvimento, ou a moderniza ção, chegou

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aos pobres que até então tinham conseguido sobreviver, apesar de sua

exclusão de muitos setores da economia de mercado, estes foram vendo-se

implacavelmente constrangidos a sobreviver adquirindo mercadorias num

sistema de compras, o que para eles significa sempre e necessariamente

obter as escórias do mercado. Os índios de Oaxaca, que anteriormente não

tinham acesso às escolas, são agora recrutados pelo sistema educacional

para que «ganhem» uns certificados que medem precisamente sua

inferioridade em relação à população urbana.

Além disso, e eis aqui a ironia, sem esse pedaço de papel, não podem

sequer trabalhar numa construção.

Esse processo — a modernização de renovados aspectos da pobreza

dos pobres — continua ocultando-se, culpando as vítimas por sua apreciação

indiferente diante do acesso aos privilégios do progresso. En quanto isso, a

aliança non-sancta entre os produtores de mercadorias e seus assistentes

profissionais continua unindo-se coesamente sem questionamento.

Um resultado de forte significação social do que dizemos é que agora a

pobreza modernizada se transforma na exper iência comum de todos, à

exceção daqueles que não são tão ricos que podem retirar-se para sua

Arcádia. A medida que as facetas da vida, umas depois das outras, se fazem

dependentes das mercadorias padronizadas, muitos poucos nos livra mos

dessa experiência recorrente da pobreza modernizada. Nos Estados Unidos, o

consumidor médio ouve por dia quase cem anúncios publicitários, mas só

uma dúzia deles o fazem reagir e, na maioria dos ca sos, de forma negativa.

Até os compradores bem providos de dinheiro adquirem, junto com a

mercadoria novidadeira, uma nova experiência de desutilidade. Sentem que

adquiriram algo de valor duvidoso, talvez inútil a curto prazo, ou mesmo

daninho, algo que exige também complementos ainda mais custosos. As

vezes, as atividades dos organismos de proteção ao consumidor tornam

consciente este processo porque, se bem começam por exigir controles de

qualidade, podem levar a uma resistência radical por parte do consumidor. Há

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muitos que se acham quase dispostos a reconhecer abertamente a

existência de uma nova forma de riqueza: a riqueza frustradora,

produzida pela expansão cada vez maior de uma cultura de mercado

intensivo. Além disso, os opulentos chegam a pressentir o reflexo de sua

própria condição no espelho dos pobres. Entretanto, esta intuição

geralmente não se desenvolve além de uma espécie de romanticismo.

A ideologia que identifica o progresso com a opulência não se restringe,

naturalmente, aos países ri cos. Essa mesma ideologia degrada as atividades

não mercantil izáveis ainda em zonas onde, até pouco, quase todas as

necessidades se satisfaziam através de um modo de vida de subsistência. Os

chineses, por exemplo, inspirando-se em sua própria tradição, pareciam estar

dispostos a ser capazes de redefinir o progresso técnico. Viam-se prontos a

optar por uma bicicleta em lugar do jato. Parecia que davam importância a

seu próprio poder de decisão local como uma meta de um povo inventivo

mais do que como um meio para a defesa nacional. Mas, em 1977, sua

propaganda glorifica a capacidade industrial chinesa de dar, a baixo custo,

maior assistência técnica, educa ção, habitação e bem-estar geral. Atribuem-

se provisoriamente funções meramente táticas às ervas que se encontram nas

bolsas dos médicos descalços ou aos métodos de trabalho intensivo na

produção. Neste caso, como em outros, a produção heterônoma de bens

— quer dizer, dirigida por outros — padronizada para distintas categorias de

consumidores anônimos, fomenta as expectativas irreais e, em último termo,

frustradoras. E além disso este processo corrompe inevitavelmente a confiança

da gente nessa sempre surpreendente competição autônoma que existe

dentro de si mesmo e em seu vizinho. A China representa simplesmente o

último exemplo da particular versão ocidental da modernização por meio

da dependência de um mercado intensivo, que se apodera de uma

sociedade tradicional, da mesma forma como alguns cultos irracionais surgiram

em comunidades isoladas como resultado da invasão desses estranhos seres

que se matavam na segunda guerra mundial.

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d) A metamorfose das necessidades

Entretanto, tanto nas sociedades tradicionais como nas modernas

ocorreu uma alteração importante em um período muito curto: modificaram-se

radicalmente os meios socialmente desejáveis para satisfazer as necessidades.

O motor atrofiou o músculo, a instrumentação escolar tolheu a curiosidade,

o méd ico se fez necessário para todo homem em pleno vigor. Como

conseqüência disso, as necessidades e os desejos adquiriram um caráter que

não tem precedentes históricos. Pela primeira vez, as necessidades se

tornaram quase exclusivamente co-limitantes como as mercadorias. A liberdade

de mover-se se degradou no esforço feito para produzir, distribuir e

consumir o direito a transporte. A busca insistente de criar um âmbito de

liberdade se eclipsou ante o direito de consumir. Enquanto as pessoas

chegavam onde podiam chegar por meio dos próprios pés, não precisavam

para sua mobilidade senão da liberdade de movimento. Porém agora que

os homens compreendem que são entes que devem transportar -se,

distinguem-se uns dos outros pela amplidão e qualidade de seus direitos

ao uso de quilômetro-passageiro. O mundo já não é tão grande e distante, mas

sim uma sucessão de lugares de estacionamentos. Para a maioria das

pessoas, os desejos de adquirir acompanham as novas necessidades, e elas

não podem imaginar sequer que um homem moderno possa aspirar a

libertar -se de viver nesta dependência de ser transportado. Esta situação,

que se apresenta hoje como uma inter dependência rígida entre

necessidades e mercado, legitima-se por meio de um chamado à perícia de

uma elite cujo conhecimento, devido a sua própria natureza, não pode ser

compartido. Os economistas de todo tipo informam ao político que o número de

empregos depende dos watts em circulação. Os educadores convencem o

público de que a produtividade depende do nível de instrução. Os ginecólogos

insistem em que a qualidade da vida infantil e materna depende de sua

intromissão nela. Portanto, não podemos questionar efetivamente a extensão

quase universal das culturas de mercado intensivo de mercadorias

enquanto não se tenha destruído a impunidade das elites que legitimam o

vínculo entre mercadoria e necessidade. Este ponto fica muito bem ilustrado

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com o relato de uma mulher sobre o parto. Encontrava-se num hospital e

sentiu que o filho ia nascer. Chamou a enfermeira, a qual, em vez de

ajudá-la, correu em busca de uma toalha esterilizada para empurrar a

cabeça da criança para dentro, de volta ao útero. Então ordenou à mãe que

deixasse de fazer força porque «o doutor Levi ainda não chegou».

Chegou o momento de tomar uma decisão públi ca. As sociedades

modernas, sejam ricas, sejam pobres, podem tomar duas direções

opostas. Podem produzir uma nova lista de bens — mais seguros, com menos

desperdícios e mais fáceis de compartilhar — e, por fim, intensificar ainda

mais a dependência de produtos padronizados. Ou podem abordar o

problema da relação entre necessidades e satisfação de uma forma

inteiramente nova. Em outras palavras: as sociedades podem manter suas

economias de mercado intensivo trocando somente o desenho do produto; ou

podem reduzir sua dependência da mercadoria. Esta última solução encerra a

aventura de imaginar e construir novas infra-estruturas nas quais os indivíduos

e grupos primários possa desenvolver um conjunto de ferramentas

convivenciais. Estariam organizadas de maneira que permitissem às pessoas

formarem e satisfazerem, direta e pessoalmente, uma crescente proporção de

suas necessidades.

A primeira opção mencionada representa uma contínua identificação do

progresso técnico com a multiplicação de mercadorias. Os administradores

burocráticos do etos igualitário e os tecnocratas do bem-estar

coincidiram num chamado à austeridade: substituir os bens que — como os

jatos — não podem obviamente ser compartidos, por um equipamento

chamado «social» — como os ônibus; distribuir mais eqüitativamente as

decrescentes horas de emprego de que se dispõe e limitar a tradicional

semana de traba lho a 20 horas; desenhar o novo tempo de vida de ócio

para ocupá-lo em reaprendizagens ou serviços voluntários, à maneira de Mao,

Castro ou Kennedy. Este novo estágio da sociedade industrial — se bem

socialista, efetiva e racional — nos introduziria simplesmente num novo estado

da cultura que degrada a satisfação dos desejos ao convertê-los num alívio

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repetitivo de necessidades imputadas por meio de art igos padronizados. No

melhor dos casos, esta alternativa produziria bens e serviços de tal forma que

sua distribuição fosse mais eqüitativa. A participação simbólica do indivíduo

nas decisões sobre o que se deveria fazer poderia transferir-se da

vociferação no mercado ao voto na assembléia política. Poder-se-ia suavizar o

impacto ambiental da produção. Entre as mercadorias, cresceriam certamente

muito mais rapidamente os serviços do que a manufatura de bens. Enormes

somas de dinheiro se inverteriam na indústria oracular, a fim de que os

profetas da administração pudessem fabricar cenários «alternativos»

desenhados para escorar esta primeira opção. E interessante notar que

estes oráculos convergem para um mesmo ponto: em que seria

insuportável o custo social necessário para produzir desde cima a

austeridade indispensável numa sociedade ecologicamente factível, mas que

ainda continua centrada na indús tria.

A segunda opção faria cair o pano sobre a dominação absoluta do

mercado e fomentaria um etos de austeridade em benef ício de uma

var iedade de ações satisfatórias. Se bem que na primeira alternativa

austeridade queira dizer aceitação dos ucasses administrativos em benefício da

crescente produtividade institucional, na segunda, austeridade quer significar

essa virtu de socia l pela qual a gente reconhece e decide os limites

máximos de poder articulado que qualquer pessoa possa exigir, a fim de

conseguir sua própria satisfação e sempre a serviço dos demais. A «austeridade

convivencial» inspira uma sociedade a proteger valores de uso pessoais diante

do enriquecimento inabilitante. Se num lugar as bicicletas pertencem à comuna

e em outra aos ciclistas, a natureza convivencial da bicicleta como ferramenta

não muda em nada. Tais mercadorias continuariam sendo produzidas em

grande escala com métodos industriais, mas seriam vistas e avaliadas de

forma distinta. Atualmente, as mercadorias são consideradas somente

como bens de consumo que alimentam as necessidades criadas por seus

inventores. Dentro desta segun da opção, as mercadorias se valorizariam

por ser matér ias básicas ou ferramentas que permitem às pessoas

gerarem valores de uso para manter a subsistência de suas comunidades

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respectivas. Mas esta opção depende, certamente, de uma revolução

copernicana em nossa percepção de valores. Hoje, os bens de consumo e os

serviços profissionais constituem o centro de nosso sistema econômico e os

especialistas relacionam nossas necessidades exclusivamente com esse centro.

A inversão social que consideramos aqui colocaria no centro de nosso sistema

econômico os valores de uso criados pelo próprio indivíduo. E certo que a

discriminação mundial contra os autodidatas viciou a confiança de muitas

pessoas na definição de suas próprias metas e necessidades. Mas essa própria

discriminação deu or igem a uma minoria crescente que está enfurecida por

esse despojamento insidioso.

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2OS SERVICOS PROFISSIONAIS INABILITANTES

Estas minorias vêem já a ameaça que encerra para elas — e para toda

a vida cultural autóctone — os mega-instrumentos que expropr iam

sistematicamente as condições ambientais. Elas estão prontas para pôr

fim a uma Idade. Estão resolvidas a recuperar sua autonomia para fixar suas

próprias metas, decididas a proteger o domínio sobre o próprio corpo, a

memória e suas habil idades, determinadas a lutar contra a expropriação

sistemática do ambiente vital perpetrada pelo sistema industrial em expansão.

Embora seja uma maioria que se encontra frustrada pelo transporte, poucos

são os que estão decididos a opor-se a uma invasão ulterior de mais redes

de estradas; se bem seja uma maioria que vê seus sonhos e sua capacidade

de sonhar destruídos pelo estrangulamento de seus ritmos vitais, são

somente uns poucos aqueles que estão dispostos a pagar o preço necessário

para rechaçar tal situação. Ainda que estejam em maioria o número de

mulheres que vêem seu equilíbrio hormonal destruído pela pílula

anticoncepcional e uma maioria de empregados, os espaços de silêncio

interior contaminados pela música ambiental, são somente uns poucos os

que se organizam ativamente. Mas cada uma destas minorias representa

uma categoria de pobreza modernizada que potencialmente se pode

reconhecer como sendo a maioria. O industrialismo tardio justif icou a

organização da sociedade como um conglomerado de múltiplas maiorias,

todas estigmatizadas pelas burocracias provedores de serviços; não obstante,

no interior de cada uma destas maiorias se desenvolvem e crescem

minorias ativas, que se combinam entre si numa nova forma de

dissidência.

Mas, para poder liquidar com uma Idade, ela deve ter um nome que

pegue. Proponho que se dê o nome de Idade das Profissões inabilitantes

porque ela compromete a quantos a utilizam. Revela as funções anti-sociais

exercidas pelos fornecedores menos desafiados — pelos educadores, pelos

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médicos, os assistentes sociais, os cientistas e outras belas pessoas.

Simultaneamente instaura um processo contra a complacência dos cidadãos

que se submeteram, como clientes, a esta servidão multifacetada. Falar

do poder das profissões inabilitantes envergonha as vítimas e as leva á

reconhecer a conspiração do eterno estu dante, do caso ginecológico ou do

consumidor, com seus respectivos administradores. Ao descrever o

decênio dos anos sessenta como o apogeu dos solucionadores de problemas,

evidencia-se de imediato não só o orgulho de nossas elites acadêmicas como

também a credulidade gulosa de suas vítimas.

Mas este enfoque nos fabricantes da imaginação socia l e nos valores

culturais pretende, mais que expor e denunciar: ao designar os últimos

25 anos como a Idade das Pro fissões tirânicas, também estamos propondo

uma estratégia. Indica-se a necessidade de ir mais além na redistribuição

planejada de mercadorias de refugo, irracionais e paralisantes, que são a marca

do Profissionalismo radical. O que proponho vai obviamente muito mais além da

critica da própria profissão, que veio ganhando forma, nos últimos anos,

tanto na América do Norte e na Europa quanto em certos países pobres, entre

médicos, advogados ou professores, que se autodefinem freqüentemente

como profissionais radicais. Esta estratégia exige nada menos que o

desmascaramento do etos profissional. A fé e a confiança no técnico

profissional, seja ele cientista, seja terapeuta ou executivo, constitui o

calcanhar-de-aquiles do sistema industrial. Portanto, somente as iniciativas dos

cidadãos e as tecnologias radicais que desafiem diretamente a dominação

enervante das profissões inabilitantes poderão abrir o caminho para a

conquista da liberdade medi ante uma competição não hierárquica, baseada

na comunidade. Invalidar o etos profissional tal como existe atualmente é

condição necessária para o surgimento de uma nova relação entre

necessidades, ferramentas contemporâneas e satisfação pessoal. O

primeiro passo para alcançar essa invalidação libertadora é que o cidadão

adote um postura céptica e condescendente diante do técnico profissional. A

reconstrução social começa pela dúvida.

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Cada vez que proponho a análise do poder profissional, como a chave para

a reconstrução da sociedade, pergunto se não é um erro perigoso escolhe r

este fenômeno como eixo da recuperação do sistema industrial. Por acaso as

formas organizativas dos estabelecimentos educacionais, médicos e de

planificação são outra coisa que o reflexo da distribuição do poder e do

privilégio de uma elite capitalista? Não será irresponsável minar a confiança

que o homem da rua depositou em seu protetor preparado cientifica mente,

em seu médico ou em seu economista, precisamente nos momentos em que

os pobres precisam de protetores, precisam do acesso à escola, às clíni cas

e aos técnicos? Não deveria processar o sistema industrial, denunciando com

maior força os Rockefellers e os Stalins? Por acaso não será uma

perversi dade denegrir aquele que adquiriu com tanto esforço o

conhecimento necessário para reconhecer e servir nossas necessidades de

bem-estar, particularmente, se os denunciados provêm da mesma

classe que protegem? De fato, não se devia assinalar e escolher estes

indivíduos como os líderes mais aptos a cumprir as tarefas sociais — já em

marcha — e para identificar as necessidades das pessoas?

As argumentações contidas nestas perguntas só apresentam uma defesa

frenética dos privilégios por parte daquelas elites que, inclusive podendo

perder em dividendos, na verdade conseguiriam certamente maior status e

poder se se tornasse mais eqüitativo o acesso a seus serviços nesta nova

forma de economia de mercado intensivo. Uma segunda série de obje ções

que se suscitam diante da possibilidade de uma sociedade moderna centrada

nos valores de uso é ainda mais sér ia: surge da cons ciência do papel

central que a segurança nacional adquiriu. Esta objeção particulariza, como

ponto central da análise, os conglomerados da defesa, que aparentemente se

encontram no centro de toda sociedade burocrático-industrial. O argumento

exposto postula que as forças de segurança são o motor que está por trás da

regulamentação contemporânea universal no que diz respei to à disciplina

que depende do mercado. Identifica como principais fabricantes de

necessidades as burocracias armadas que nasceram quando, sob Luís XIV,

Richelieu estabeleceu a primeira polícia profissional, ou seja, agências

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profissionais que estão atualmente encarregadas de armamentos, da

inteligência e da propaganda. Desde Hiroxima, estes chamados

«serviços» têm sido, parece, os que deter minam a pesquisa, o

planejamento da produção e do emprego. Estes serviços repousam sobre bases

civis: como a escolaridade para a disciplina, o treinamento do consumidor para

o desfrute do inútil, o hábito às velocidades violentas, a engenharia médica

para a vida num refúgio que abarca a terra e a dependência padronizada dos

temas da atualidade que dispensam policiais benévolos da cultura. Esta linha de

pensamento vê na segurança do estado o gerador dos padrões de produção

da sociedade e pensa que a economia civil é, em grande parte, um resultado

ou um pré-requisito do militar.

Se fosse válida uma argumentação construída em torno desta noção, teria

uma sociedade deste tipo a possibilidade de renunciar ao poder atômico,

mesmo sabendo quão venenoso, tirânico ou contraprodutivo pode resultar o

excesso de energia ulterior? Como esperar que um estado conduzido

pela sua defesa tolerasse a organização de grupos de cidadãos descontentes

que desconectam suas vizinhanças do consumo para proclamar a liberdade de

produzir — em pequena e intensiva escala — valores de uso, liberdade dada

numa atmosfera de austeridade prazenteira e satisfatória? Não teria uma

sociedade militarizada que mover-se de pronto contra os desertores de

necessidades, qualificá-los de traidores e, se fosse possível, expô-los não só ao

desprezo mas também ao ridículo? Não teria uma sociedade conduzida pela

defesa que suprimir aqueles exemplos que levariam a uma modernidade não

violenta, nestes instantes em que a política pública exige uma descentralização

da produção de mercadorias (que lembra Mao) e um consumo mais racional,

eqüitativo e supervisionado profissionalmente?

Esta argumentação confere um crédito indevido ao militar como fonte da

violência num estado industrial. Devemos denunciar como uma ilusão a

presunção de que as exigências militares são culpadas da agressividade e

destrutividade da sociedade industrial avançada. Sem dúvida, se fosse

verdade que os militares usurparam de algum modo o sistema industrial,

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que de algum modo se desviaram do controle civil, as numerosas esferas de

esforço e ação social, então o presente estado da política militarizada teria

alcançado um nível irreversível; pelo menos impossível para uma reforma

civil. Esta é, de fato, a argumentação que os líderes militares do Brasil

esgrimem, os quais vêem nas forças armadas os únicos tutores legítimos da

busca pacífica da industrialização durante o resto deste século.

Mas isto simplesmente não é assim. O estado industria l tardio não é um

produto do exército. O exército constitui mais um dos sintomas de sua

orientação firme e totalizadora. É certo que o presente modo de

organização industrial pode ter seus antecedentes militares mais remotos em

tempos napoleônicos. É certo que a educação obrigatória dos meninos

camponeses, em 1830, a atenção universal da saúde para o proletariado

industrial, em 1850, as crescentes redes de comunicação, tal como a maior

parte das formas de padronização industrial, foram estratégias introduzidas na

sociedade, em primeiro lugar, como exigências militares, e só mais tarde se

entenderam como formas dignas de progresso pacífico, civil. Mas o fato de os

sistemas de saúde, de educação e de bem-estar necessitarem de uma lógica

militar para ser promulgados como leis, não significa que não tivessem

consistência com o impulso industria l básico que, de fato, nunca foi

não-vio lento, pacíf ico ou respeitador das pessoas.

Hoje em dia é mais fácil ter esta visão. Primeiro, porque desde o Poláris,

já não é possível distinguir entre exércitos de tempos de paz e de

guer ra, e, segundo, porque desde a guerra contra a pobreza, a paz está

em pé de guerra. Atualmente, as sociedades industriais estão constante e

totalmente mobilizadas; estão organizadas para constantes emergências

públicas; são bombardeadas com estratégias variadas em todos os setores;

os campos de batalha da saúde, da educação, do bem-estar e da igualdade

positiva estão semeados de vítimas e cobertos de ruínas; as liberdades dos

cidadãos se suspendem continuamente para lançar campanhas contra

males sempre redescobertos; cada ano descobrem-se novos habitantes

fronteiriços que devem ser protegidos ou recuperados de alguns novos

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mal-estares, de alguma ignorância previamente desconhecida. As necessidades

básicas formuladas e imputadas por todas as agências profissionais são

necessidades para a defesa contra males.

Os professores e cientistas sociais que hoje procuram culpar os militares

pela destrutividade das sociedades mercantilizadas intensamente são gente

que tenta deter, de forma bastante torpe, a erosão de sua própria

legit imidade. Alegam que os militares levam o sistema industrial a este

estado frustrador e destrutivo, e distraem, desta maneira, a atenção da

natureza profundamente destruidora de uma sociedade de mercado

intensivo que leva seus cidadãos às guerras de hoje. A quantos procuram

proteger a autonomia profissional como uma vítima do estado militarizado, se

responderá com uma simples alternativa: a direção que os cidadãos livres

devem seguir a fim de superar a crise mundial.

a) Rumo ao fim de uma época

Para o senso comum, são cada vez mais evidentes as ilusões que

levaram a instituir as próprias prof issões como árbitro das necessidades

cada vez mais evidentes. Freqüentemente, a gente vê já o que realmente são

os procedimentos no setor de serviços — por exemplo, os das companhias de

seguros, ou os rituais que ocultam aos olhos do emaranhado formado pelo

provedor-consumidor a posição existente entre o ideal em honra do qual se

rende o serviço e a realidade engendrada por este serviço. As escolas

que prometem a mesma ilustração para todos geram uma meritocracia

degradante e uma dependência permanente de uma tutoria cada vez maior.

Os veículos compelem todos a irem cada vez mais longe e a correrem mais.

Mas o público ainda não tem claras as possibilidades de escolha. Os projetos

patrocinados pelos líderes profissionais poderiam desembocar no surgimento

de credos políticos compulsivos (com suas versões que acompanham um novo

tipo de fascismo), ou então as experiências que os cidadãos

empreendessem poderiam desfazer nossa hybris como se fosse outra coleção

histórica de loucuras, se bem neoprometeicas, embora essencialmente

efêmeras. Uma opção informada requer que examinemos o rol específico

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das profissões para determinar quem nesta Idade obtém que coisa e por quê.

Para ver o presente com clareza, imaginemos as crianças que logo

brincarão entre as ruínas das escolas secundárias, dos Hiltons e dos hospitais.

Nestes castelos profissionais convertidos em catedrais, construídos para

proteger-nos da ignorância, contra o desconforto, a dor e a morte, os meninos

de amanhã representarão de novo nas suas brincadeiras as desilu sões de

nossa Idade das Profissões, tal como nós reconstituímos as cruzadas dos

cavaleiros contra o pecado e os turcos, na Idade da Fé, em antigos

castelos e catedrais. Em seus brinquedos, as crianças asso-ciarão o grasnido

universal que contamina hoje nossa linguagem com os arcaísmos herdados dos

grandes gângsters e dos caubóis. Imagino-os chamando-se uns aos outros de

«Senhor Presidente da Assembléia» ou «Senhor Secretário», em vez de

«Chefe» ou «Xerife».

Recordaremos a Idade das Profissões como aque le tempo em que a

política entrava em decomposição quando os cidadãos, guiados por

professores, confiavam a tecnocratas o poder de legislar sobre suas

necessidades, a autoridade de decidir sobre quem necessitava de tal coisa e o

monopólio dos meios que satisfaziam estas necessidades. Lembraremos como a

Idade da Escolarização os tempos em que se treina vam as pessoas durante

um terço da vida para que acumulassem necessidades prescritas, para durante

os dois terços restantes passarem a ser clientes de prestigiosos traficantes que

dirigiam seus hábitos. Recordaremos a Idade das Profissões como aquela na

qual as viagens de recreio signif icavam o olhar fixo e formal para os

estranhos e na qual a intimidade era um requentado programa de

televisão da noite anterior, e votar era dar sua aprovação a um vendedor

só para alcançar mais dele.

Os estudantes do futuro se sentirão tão confundidos pelas supostas

diferenças entre as instituições profissionais capitalistas e as socialistas, como

se sentem os estudantes de hoje com as pretendidas diferenças entre as

últimas seitas cristãs reformadas. Descobrirão também que os bibliotecários

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profissionais, os cirurgiões, os desenhistas de supermercados nos países

pobres ou nos países socialistas, em fins de cada decênio, terminam com os

mesmos registros, utilizando os mesmos instrumentos e construindo os

mesmos espaços que seus colegas dos países ricos tinham introduzido nos

inícios da década. Os arqueólogos não fixarão os per íodos de nossa Idade

de acordo com os restos de cerâmica encontrados nas escavações, e sim com

as modas profissionais reflet idas nas tendências das publicações das

Nações Unidas.

Seria pretensioso predizer se esta Idade, na qual as necessidades se

projetam profissionalmente e de antemão, será lembrada com um sorriso ou

uma maldição. Naturalmente, espero que se lembrará da noite em que o pai

saiu para a pândega, malbaratou a fortuna da família e obrigou os fi lhos a

começarem do nada. Desgraçadamente, é muito mais provável que esta

Idade seja lembrada como os tempos em que toda uma geração se lançou

numa busca frenética de riqueza empobrecedora, permitindo a alienação

de todas as liberdades, e que depois de ter posto a política à mercê das

garras organizadoras dos receptadores de bem-estar, deixou que se extinguisse

num totalitarismo técnico.

b) As profissões dominantes

Enfrentemos primeiro o fato de que as associações de especialistas que

atualmente dominam a fabricação, a adjudicação e a satisfação de

necessidades formam um novo tipo de cartel . E importante também saber

reconhecer as novas características essenciais do profissional no industrialismo

tardio. Se não se reconhecerem, ocorrerá inevitavelmente, no momento da

discussão, o novo biocrata se ocultará por trás da máscara benévola do

médico da família de antanho; o novo pedocrata, em seus esforços para

«modificar comportamentos», tomará a forma do inocente mestre de

Kindergarten, que faz umas experi ências interessantes, e a luta que

travemos contra o novo selecionador de pessoal, armado de todo um

arsenal psicológico para a degradação, será levada a cabo ineludivelmente

com as antigas táticas desenvolvidas para defender-se contra o capataz da

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fábrica. Se devêssemos batizar a estes novos profissionais, eles

mereceriam ser chamados de algum termo dife rente, que ainda não temos.

As novas profissões se encontram entrincheiradas muito mais profundamente

que uma burocracia bizantina. São mais internacio nais que uma igreja

universal, mais estáveis que um sindicato, dotadas de maiores capacidades

que qualquer xamã e exercem um domínio mais forte que o de qualquer máfia

sobre aqueles que desejam controlar.

Entretanto, devemos distinguir cuidadosamente entre os novos especialistas

organizados e os chantagistas mafiosos. Por exemplo: os educadores podem

atualmente dizer à sociedade o que deve aprender e podem desqualificar

tudo que for aprendido fora da escola. De acordo com este tipo de

monopólio, que lhes permite impedir que você faça suas compras em qualquer

outro lugar ou que você fabrique seu próprio licor, parecer ia à primeira vista

que lhes quadra a definição que o dicionário dá à palavra gângster. Mas os

gângsters acuam uma necessidade básica, ao controlar os acontecimentos

em proveito próprio. Atualmente os médicos e os assistentes sociais —

como antes os sacerdotes e advogados — ganham um poder legal de criar

necessidades que, de acordo com a lei, somente eles podem satisfazer.

Convertem o estado moderno numa corporação que abarca outras

empresas, as quais, por sua vez, facil itam o exercício de suas capacidades,

garantidas pelas mesmas empresas.

O controle legalizado sobre o trabalho tomou muitas formas distintas:

os soldados ocasionais recusavam lutar enquanto não tivessem licença para

saquear. Lisístrata organizou as mulheres submetidas para, pelo

refreamento do sexo, obrigar os seus homens à paz. Os doutores de

Cos se juramentaram para divulgar somente aos filhos os segredos do

oficio. Foram as corporações que estabeleceram os currículos, as orações, os

exames, as peregrinações e as provas por que teve de passar Hans Sachs

antes que lhe permitissem calçar seus vizinhos do burgo. Nos países

capitalistas, os sindicatos procuram controlar quem há de trabalhar,

durante quantas horas e qual o salário a perceber. Todas estas associações

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representam os esforços que os especialistas fazem para determinar

como e por quem deverá ser feito certo tipo de trabalho. Mas nenhum

destes grupos constitui uma profissão em sentido estrito. As profissões

tirânicas de hoje, das quais constituem um bom exemplo os médicos — o

exemplo, literalmente, mais doloroso — vão muito mais longe: eles decidem

sobre o que é que se deve fabricar , por quem e como se deve

administrar. Elas proclamam um conhecimento especial, incomunicável, não

somente sobre o que as coisas são e como devem ser feitas como

também sobre a razão por que se deve necessit ar de seus serviços. Os

comerciantes vendem os artigos que armazenam. Os homens do grêmio

garantem a qualidade. Alguns artesãos confeccionam o artigo de acordo com

as medidas e os desejos do cliente. Os profissionais dizem a você o que é

que você precisa. Reclamam para si o poder de receitar. Não só

recomendam o que é bom, como também decretam o que é correto. A

característica do profissional não é nem o lucro, nem uma longa preparação,

nem as tarefas delicadas, nem a condição social. Seus rendimentos podem ser

baixos ou consumidos pelos impostos, sua preparação pode demorar

semanas em vez de anos. Seu status pode ser comparado ao da profissão

mais antiga da História. Melhor: é a autoridade que o profissional tem para

tomar a iniciativa de definir uma pessoa como cliente, para determinar as

necessidades dessa pessoa e para entregar a essa pessoa uma receita

que a defina neste novo rol social. Ao contrário das prostitutas de antanho, o

profissional moderno não é aquele que vende o que os outros dão grátis, é

principalmente aquele que dec ide o que se deve vender e não se deve

entregar gratuitamente.

Existe outra diferença entre o poder profissional e o de outras

ocupações. Este poder provém de fontes distintas. Uma corporação,

um sindicato ou uma máfia obrigam a respeitar seus interesses e direitos

por meio das greves, do suborno ou da violência aberta. Uma profissão, tal

como um clero, exerce o poder cedido pela elite, cujos interesses apóia.

Tal como um clero oferece o caminho da salvação seguindo os passos de um

soberano ungido, uma profissão interpreta, protege e administra um interesse

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especial e deste mundo aos súditos de uma sociedade moderna. O poder

profissional é uma forma especial que o privilégio assume para receitar o que

é correto para os demais e que, portanto, prec isam disso. Este poder é

a fonte de status e de mando na Idade industrial tardia. Este tipo de poder

profissional só pode existir nas sociedades em que pertencer à el ite se

consegue e legitima por meio do status profissional. Isso cai

perfeitamente bem à Idade em que, até o acesso ao Parlamento, ou

seja, à Câmara dos Comuns, se encontra, de fato, rest rito a quantos

obtiveram o título de mestre que abona seu patrimônio de conhecimentos

armazenados, ministrados na universidade. A autonomia e a licença profissíonal

para definir as necessidades da sociedade são a forma lógica que a

oligarquia adota numa cultura política que substitui as antigas formas de

credibilidade por certificados de stocks de conhecimentos entregues pelas

universidades. O poder que as profissões têm sobre o trabalho que seus

membros realizam é diferente, portanto, não somente quanto a sua

extensão como também quanto a sua origem.

c) As profissões tirânicas

O médico ambulante se converteu em doutor em medicina quando deixou o

comércio dos medicamentos aos farmacêuticos e reservou para si a

faculdade de receitar. Nesse momento, ganhou uma nova forma de

autoridade, juntando três papéis num só personagem. A autenticidade

sapiente para aconselhar, ins truir e dirigir; a autoridade moral que faz sua

aceitação não só útil mas obrigatória; e a autoridade carismática que permite

ao médico apelar a certo interesse supremo de seus clientes, que não só

está por cima de sua consciência, como, às vezes, até por cima da razão

de estado. Naturalmente, este tipo de doutor ainda existe, mas dentro do

sistema médico moderno é uma figura do passado. Atualmente é bastante

mais comum um novo tipo de cientista da saúde aplicada. Cada vez mais se

ocupa de casos e não de pessoas; ocupa-se dos desvios que detecta no

caso, mais do que da dor que aflige o indivíduo; protege o interesse da

sociedade mais do que o inter esse da pessoa. Os tipos de autoridade que se

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acumularam na imagem do doutor dos velhos tempos, durante os anos de

liberalismo, e que colaboravam com o facultativo individu al no tratamento do

paciente, são desempenhados atualmente pela corporação profissional a serviço

do Estado. E a esta instituição que se atribui hoje uma missão social.

Nos últimos vinte e cinco anos, a medicina se converteu, de uma profissão

liberal, numa profissão dominante ao adquirir o poder de indicar o que

constitui uma necessidade de saúde para o povo em geral. Os

especialistas da saúde, enquanto corpora ção, adquiriram a autoridade para

determinar que tipo de atenção médica se deve ministrar à sociedade em

geral. Já não é um indivíduo profissional o que atribui uma «necessidade» a

outro indivíduo como cliente, e sim uma agência corporativa que atribui uma

necessidade a camadas inteiras da população e que, depois, se arroga o

mandato de submeter à prova a popula ção inteira a fim de identificar

aqueles que pertencem ao grupo dos clientes potenciais. E o que acontece na

esfera do atendimento médico é totalmente coerente com o que acontece

em outros domínios. Cada dia, uma nova seita se atribui uma nova missão

terapêutica e esta missão ganha legitimidade pública. Obviamente, os

educadores conquistaram o poder de diagnosticar e ministrar terapias do

comportamento, co mo também os trabalhadores sociais, os policiais e os

arquitetos, tal como os médicos, que gozam de ampla autoridade para criar

instrumentos de diagnóstico que util izam para caçar o cliente,

instrumentos que o público já não ousa checar. Dezenas de fabricantes

de outras necessidades procuram imitá -los. Os banqueiros internacionais

se atribuem o poder de diag nosticar as necessidades chilenas, sob

Allende ou baixo Pinochet, e de de fin ir as condições sem as quais não

ministrarão as terapias. Os especialistas da segurança avaliam o risco que

vários tipos de cida dãos representam e se atr ibuem a competência de

invadir o seu ambiente pr ivado. Já não há jeito de parar a escalada de

necess idades se não se expõem de forma política aquelas ilusões que

legit imam a tirania profissional. Muitas profissões se encontram tão

firmemente estabelecidas que não só exercem tutoria sobre o cidadão-

feito-cliente como também dão forma a seu mundo-convertido-em-custo/dia.

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A linguagem em que se percebe a si mesmo, sua per cepção dos direitos

e liberdades, e sua consciência das necessidades, derivam da hegemonia

profissional. A diferença existente entre o artesão, o profissional liberal e o

novo tecnocrata pode tornar-se clara se enfatizamos suas típicas reações ante a

gente que desprezava seus respectivos conselhos. Se alguém desprezava o

conselho do artesão, era um louco. Se alguém desprezava o conselho liberal,

era condenado pela sociedade. Se alguém escapa a tualmente da atenção

que o cirurgião ou o psiquiatra decidiram aplicar-lhe, o governo ou a

profissão mesmo podem ser inculpadas.

De artesão-mercador ou conselheiro culto, o profissional se transformou

num cruzado filantropo que sabe como se deve alimentar as crianças, que

alunos devem continuar os estudos mais avançados e que remédios a pessoa

não deve tomar. De tutor que observava enquanto alguém decorava a

lição, o mestre-escola se transformou num educador cuja cruzada

moralizadora lhe confere títu lo para intrometer-se entre alguém e

qualquer coisa que deseje aprender. Até os empregados do canil de Chicago

se transformaram em técnicos de controle canino. Como resul tado dessa

mudança, o custo para el iminar um ca chorro se elevou em vinte anos de

$7.50 para $320.00 dólares. Entretanto, 5.4% de todas as lesões tratadas

no hospital Cook County — o maior do mundo — são mordidas do melhor

amigo do homem.

Os profissionais exigem um monopólio sobre a definição de desvio de

conduta e sobre suas soluções. Por exemplo: os advogados afirmam que

somente eles têm competência e direito legal para dar assistência num

divórcio. Se alguém descobre um método para um divórcio «faça você

mesmo», vai se meter numa dupla complicação: se não for advogado,

expõe-se à acusação de prat icar sem licença; se é membro de um

escritório de advocacia , pode ser expulso por falta de ética profissional.

Os profissionais proclamam também um saber oculto sobre a natureza

humana e suas fraquezas, saber que só eles podem aplicar com

vantagem. Os cove iros, por exemplo, não se transformaram em

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membros de uma profissão por passarem a chamar-se empresários de

pompas fúnebres, nem por obter diplomas escolares, nem por aumentarem

os lucros, ou por se libertarem do odor que acompanha seu negócio quando

um deles se elege presidente do Lions Club. Mas os empregados de pompas

fúnebres formam uma profissão, dominante e inabilitante, a partir do

momento em que têm força para conseguir que a polícia impeça o teuenterro

se não tiveres sido embalsamado e encaixota-'do por eles. Em qualquer

campo em que se possa imaginar uma necessidade humana, estes novos

profissionais inabilitantes proclamam ser os especialistas exclusivos do bem

público.

d) As profissões estabelecidas

A transformação de uma profissão liberal em dominante é equivalente ao

estabelecimento legal de uma igreja de estado. Os médicos transformados em

biocratas, os professores em gnoseocratas, os agentes funerários em

tanatocratas é algo que está muito mais próximo das «clerezias» subsidiadas

pelo Estado do que as associacões comerciais. O profissional, como mestre da

linha de moda da ortodoxia, atua como teólogo. Como empresário moral,

atua no papel do sacerdote: com sua atuação, cria a necessidade para sua

mediação. Como cruzado benefactor, atua no papel de missionário à

caça de ovelhas transviadas. Como inquisidor, põe fora da lei o não -

ortodoxo: impõe suas soluções ao recalcitrante que recusa reconhecer-se como

problema. Esta investidura multifacetada, combinada com a tarefa de aliviar os

inconvenientes específicos da condição humana, faz que cada profissão seja

análoga a um culto estabelecido. A aceitação pública das profissões

tirânicas é essencialmente um fato político. Toda afirmação nova de

legitimidade profissional significa que as tarefas políticas de legislar, a revisão

judicial de casos e o poder executivo perdem algo de sua independência e de

suas caracteristicas próprias. Os assuntos públicos passam das mãos de

leigos escolhidos por seus semelhantes às de uma elite que se outorga seus

próprios créditos.

Quando a medic ina sobrepujou recentemente suas limitações liberais,

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invadiu o campo legislativo e estabeleceu normas públicas. Os médicos sempre

tinham determinado em que as enfermidades consistiam; atualmente a

medicina determina quais são as enfermidades que a sociedade não tolerará. A

medicina invadiu as cortes de justiça. Os médicos sempre ti nham

diagnosticado quem era o enfermo; atualmente porém a medicina resolve sobre

os que merecem tratamento. Os médicos liberais prescreviam um

tratamento: a medicina dominante tem poderes públicos de ret if icação;

ela decide o que teremos de fazer com o doente.

Numa democracia, o poder de legislar, de aplicar as leis e de fazer justiça

deve derivar dos próprios cidadãos. Este controle do cidadão sobre os

pode res chaves foi restringido, enfraquecido e até abolido pela ascensão de

profissões «clericais». Um governo que dita suas leis de acordo com as

opiniões técnicas de tais profissões pode ser um governo para o indivíduo

mas nunca do indivíduo. Este não é o momento de pesquisar quais foram as

intenções para enfraquecer assim o poder politico, se a tirania profissional

legitimou a sua invasão do poder legislativo por estar a serviço da classe

média, de quantos ganharam o poder com o suor do rosto, da

multinacional ou da tentativa de estabelecer o socialismo, ou se

respondendo à indagação de «a cada um segundo seu traba lho» ou «a

cada qual segundo suas necessidades». Como condição necessária para tal

subversão, basta indicar a desqual if icação da opinião do vulgo p or parte

dos profissionais.

As liberdades civ is se fundam na norma que exclui todo testemunho

de ouvido das declarações em que se baseiam as decisões públicas. O que a

pessoa pode ver por si mesma e interpretar dever ia ser a base comum

para estabelecer normas obrigatórias. As opiniões, as crenças, as deduções ou

persuasões não deveriam ser levadas em conta quando entram em conflito com

testemunhos oculares: invertendo esta norma, as elites de técnicos

poderiam converter -se em profissões dominantes. Nos aparelhos legislativos

e nas cortes de just iça, descartou -se, de fato, o regulamento contra a

evidência que antes proporcionava testemunhos orais e oculares e se

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substituiu pelas opiniões proferidas pelos membros destas elites que se

auto-abonam.

Mas seria arriscado confundir o uso público de conhecimentos técnicos

com o juízo normativo entregue ao exercício corporativo de uma profissão.

Quando a corte de justiça citava um perito artesanal — por exemplo, um

fabricante de armas — para que revelasse ao júri os segredos de seu

ofício, nesse mesmo lugar ele poderia inst ruir o jurado sobre sua arte.

Apontava, numa demonstração prática, a parte do carregador do revólver de

onde a bala tinha parti do. Hoje, a maioria dos técnicos desempenha papel

diferente. O profissional dominante leva ao júri ou aos legisladores a

opinião dos colegas, todos iniciados na matéria, em vez de apresentar

evidência baseada em fatos e em alguma destreza. Atua como teólogo a

serviço da corte. Exige que se suspenda o regulamento dos testemunhos

de ouvido, e solapa inevitavelmente o poder da lei. Deste modo, o poder

democrático se enfraquece cada vez mais.

e) A hegemonia das necessidades imputadas

Se não fosse por estar o indivíduo pronto a considerar como carência o

que os técnicos lançam em sua conta como necessidade, as profissões não

teriam podido chegar a tornar-se dominantes e inabilitantes.

A dependência entre uns e outros (como tutores e alunos) se tornou

resistente à análise porque se acha obscurecida por uma linguagem

degenerada. As boas palavras de antigamente se transformaram em ferros

em brasa que reclamam o controle dos técnicos sobre o lar, a loja, o

comércio e o espaço e sobre tudo o que ocorre nesse meio. A linguagem,

o bem comum mais fundamental, se acha contaminada assim por esses

fiapos de gíria retorcidos, pegajosos, cada um sujeito ao controle de uma

profissão. O empobrecimento das palavras, o esgotamento da

linguagem cotidiana e sua degeneração em terminologia burocrática

equivalem, de maneira mais intimamente degradante, à de gradação

ambiental tão discutida. Não se pode propor mudanças possíveis nos

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planos, nas atitudes e nas leis se não nos fazemos mais sensíveis ao

repúdio destes nomes errôneos que só ocultam a dominação. Quando

aprendi a falar, falava- se de problemas somente nas matemáticas ou no

xadrez, de soluções só quando eram salinas ou juríd icas, e necessitar

se conjugava, mas quase não se usava como substantivo. As expressões

«tenho um problema» ou «tenho uma necessidade» soavam loucas.

Quando cheguei à adolescência, e Hit ler buscava soluções, também se

estendeu «o problema social». Descobriram-se «meninos problemas» com

matizes sempre novos, entre os pobres, à medida que os trabalhadores sociais

aprendiam a catalogar suas vítimas e a padronizar suas «necessidades». A

necessidade, usada como substantivo, chegou a ser a forragem que

engordou as profissões até a tirania. Assim se modernizou a pobreza. Os

novos termos transformaram uma experiência pessoal e comunitária em

assunto de técnicas: os pobres se fizeram necessitados.

Durante a segunda metade de minha vida «ser necessitado» chegou a

constituir algo respeitável. As necessidades, computáveis e imputáveis,

promoviam na escala social. Ter necessidades deixou de ser um sinal de

pobreza. O rendimento econômico abríu novos registros de necessidades.

Spok, Comfort e os divulgadores de Nader treinaram os leigos na compra de

soluções dos problemas que tinham aprendido a cozinhar de acordo com

receitas profissionais. A educação qualif icou os diplomados para subirem

a alturas cada vez mais raras e plantar e cultivar ali cepas sempre novas

de necessidades híbridas.

Cada vez mais, um número crescente de medicamentos teve que ser

adquirido com receita autorizada. Aumentou a prescrição e diminuiu a

competição. Por exemplo, na medicina, receítaram -se cada vez mais

remédios farmacologicamente ativos e as pessoas perderam a vontade e a

habilidade de enfrentar uma indisposição ou um mal-estar. Cerca de mil e

quinhentos produtos novos aparecem cada ano nas prateleiras dos

supermercados norte-americanos: depois de um ano só 20%

sobrevivem. O resto se retirou após algum tempo, tendo servido aos

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vendedores como gancho, seja para experíências, ou por terem sido moda

efêmera, ou por se terem revelado perigosos para o consumidor,

antieconômicos para o produtor ou por não terem resistido à competição.

Cada vez mais, os consumidores se vêem forçados a procurar ajuda dos

protetores profissionais do consumidor.

Além do mais, a substituição constante dos produtos faz que os desejos

se tornem superfíc i aís e plásticos. Embora soe paradoxal, o resultado é que

o consumo elevado segue a par de uma nova forma de indiferença de parte do

consumidor: quanto maior for o número, o volume e a especificidade das

necessidades que se lhes atribui profissionalmente, maior se torna a

indiferença para satisfazer seus próprios desejos, que já não sabe especificar.

Cada vez mais, as necessidades se criam por slogans comerciais, as compras

se fazem por ordens do decano universitá rio, ou das especialistas em

beleza, ou do ginecólogo, do dietista e de dezenas de outros

diagnosticadores com poder de receitar. O resultado lógico é que os

quiromantes e os astrólogos nunca tenham experi mentado tanta

prosperidade quanto hoje. Uma atri buição desse tipo parece quase razoável

numa cultura em que a ação própria não é o resultado de uma

experiência pessoal em busca de uma satisfação, e em que o consumidor

conseqüentemente adaptado substitui as necessidades sentidas pelas

aprendidas. A medida que a pessoa se torna técnica na arte de

aprender a necess itar, chega a ser cada vez mais remota a capacidade

de aprender a moldar os desejos de acordo com a experiência. A

medida que as necessidades se partem em pedacinhos cada vez mais

pequenos, cada um ministrado pelo especialista apropriado, o consumidor

sente dificuldade de integrar num todo significante — que se pudesse

desejar com empenho e possuir com gosto — as ofertas que em separado lhe

fazem seus distintos tutores. Os administradores de empresa, os conselheiros

do estilo de vida, os assesso res acadêmicos, os especialistas em dieta de

moda, os desenvolvedores da sensibilidade e outros semelhados, percebem

claramente as novas possibilidades de controle e se mobilizam para

equiparar os bens enlatados com estas necessidades interesseiras.

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«Necessidade», empregado como substantivo, é a reprodução individual de

um modelo profissional; é a réplica em isopor do molde no qual os profissionais

marcam seus artigos; é o molde publicitário do favo de mel do qual se

fabricam os consumidores. Ser ignorante ou não estar convencido das

próprias necessidades chegou a ser o ato de dissolução social imperdoável. O

bom cidadão é aquele que se atribui necessidades grampeadas umas às

outras com tal convicção que afoga qualquer desejo de procurar alternativas

ou de renunciar a estas necessidades.

Quando nasci, antes que Stalin, Hitler ou Roosevelt fossem conhecidos,

só os ricos, hipocondríacos e membros dos sindicatos poderosos falavam de

necessidades de cuidados médicos quando lhes subia a temperatura. Era uma

necess idade questionável, porque os doutores não podiam fazer muito mais

do que a avó tinha feito. Na medicina, a primeira mutação das

necessidades chegou com a sulfa e os antibióti cos. Quando o controle

das infecções chegou a ser uma rotina simples e efetiva, cada vez mais

remédios passaram para a lista das receitas. A anotação da papeleta

médica do enfermo passou a ser um mono pólio do médico. A pessoa que

se sentia mal tinha que ir a uma clínica para ser etiquetada com o nome

de uma enfermidade e poder assim ser declarada legitimamente membro da

minoria dos chamados doen tes; ou seja: pessoas dispensadas do trabalho,

necessitando de ajuda, colocadas sob ordens médicas e obrigadas a ser

curadas, a fim de voltarem a ser novamente úteis. Em outras palavras:

quando a técnica farmacológica — teste e medicamentos — chegou a ser tão

barata e predizível que a gente poderia ter prescindido do médico, o

sacerdócio médico chamou em seu auxílio o braço secular.

A segunda mutação que as necessidades médicas experimentaram ocorreu

quando o doente deixou de ser minoria. Atualmente, muito poucas pessoas

se livram de estar sob ordens médicas durante algum lapso de tempo.

Tanto na Itália, como nos Estados Unidos, na França ou na Bélgica, um de

cada dois cidadãos está sendo acompanhado simultaneamente por mais de

três profissionais da saúde, que o tratam, aconselham-no ou simplesmente o

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observam. O objeto desta atenção especializada é, na maior parte dos

casos, a condição dos dentes, do útero, das emoções, da pressão sanguínea

ou dos níveis hormonais, que o próprio paciente não está percebendo. Os

pacientes já não são minoria. Os que são minoria atualmente são os vários

tipos de transviados que escapam de um modo ou de outro das

diferentes listas de pacientes. Esta minoria está constituída pelos pobres, os

camponeses, imigrantes recentes e vários outros que, às vezes por

vontade própria, se converteram em desertores do sistema médico. Há

somente vinte anos, constituía indício de saúde normal, que se presumia

bom, poder passar sem médico . A mesma condição de não-paciente se

vê hoje como indicadora de desamparo ou de dissidência. Até mesmo a

condição de hipocondríaco mudou. Para um profissional liberal, esta era a

etiqueta aplicável e alguém que chegava batendo com a porta, ou seja,

designação reservada ao doente imaginário. Agora, os médicos a utilizam

para referir-se à minoria que lhes escapa: hipocondríacos são os sãos

imaginários. Ser parte do sistema profissional, como cliente toda a vida, já

não é um estigma que separa o incapacitado do cidadão comum.

Vivemos hoje numa sociedade organizada para as maiorias transviadas e

para seus guardiões. Ser cliente ativo de muitos profissionais não permite

ter um lugar bem definido no reino dos consumidores para os quais esta

sociedade funciona. Deste modo, a transformação da medicina, de profissão

liberal de consulta, em profissão dominante e inabilitante, aumentou

incomensuravelmente o número de necessitados.

Neste momento crítico, as necessidades imputadas experimentam sua

terceira mutação. Estão-se fundindo no que os técnicos chamam problema

multi-disciplinar e que, portanto, requer uma solução multi-profissional. Em

primeiro lugar, a multiplicação das mercadorias, procurando cada uma delas

converter-se numa exigência para o homem moderno, conseguiu um

treinamento eficaz do consumidor para necessitar quando lhe fosse ordenado

que necessitasse. Depois, a fragmentação progressiva das necessidades em

partes cada vez menores e mais desconectadas conseguiu que o cliente

dependesse do juízo profissional para poder combinar suas necessidades

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num todo que tivesse sentido. Um bom exemplo nos dá a indústria automotriz.

Em fins dos anos sessenta, o equipamento opcional que se necessitava

para fazer desejável um Ford comum havia aumentado enormemente. A

maior parte desse equipamento era instalada na própria cidade de Detroit,

e o comprador que vivia em Plains ou em qualquer outra cidade somente

tinha a possibilidade de escolher entre o conversível que desejava, mas com

os assentos verdes que ele detes tava, e o com assentos de pele de leopardo

que ia alegrar a namorada, mas com teto comum. O consumidor, que já havia

aprendido a depender da merca doria , agora tem que aprender a

resignar- se que outros escolham por ele.

Por fim, o cliente treina para que necessite de uma ajuda-de-equipe ao

receber o que seus guardiães consideram um «tratamento satisfatório». Os

serviços pessoais que fazem o consumidor sentir-se melhor ilustram este

ponto. A abundância terapêutica esgo tou o tempo de vida disponível de

muitas pessoas sobre as que os serviços profissionais diagnosticaram

«necessitar ainda mais». A intensidade da economia de serviços tornou

cada vez mais insufic iente o tempo, de que se necessita para o consumo de

tratamentos pedagógicos, médicos ou sociais. A escassez de tempo pode

converter -se muito cedo no maior obstáculo para o consumo de

serviços receitados, amiúde financiados por organismos públicos.

Sintomas desta escassez vão-se tornando evidentes desde os primeiros

anos de qualquer pessoa. Desde o jardim da infância, a criança está sujeita ao

controle de uma equipe constituída de especialistas, como o alergista, o

patologista da linguagem, o pediatra, o psicólogo infantil, o trabalhador social,

o instrutor de educação física e o professor. Ao formar uma equipe

pedocrática (de poder sobre a criança) de tal tipo, muitos profissionais

tentam compartir o tempo que se converteu no fator mais limitante da

aplicação de novas necessidades. Para o adulto, não é no colégio, mas no local

de trabalho que se concentram os pacotes de serviços. O chefe de pessoal,

o técnico em formação profissional, o instrutor de plantão, o planificador de

seguros, o animador de responsabilidades, conside ram proveitoso

compartilhar o tempo do operário que competir por ele. Um cidadão sem

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necessidades seria suspeitoso. Diz-se às pessoas que se precisa de seu

trabalho não tanto pelo dinheiro que ganham como pela prestação de

serviços que obtêm. As coisas comuns se extinguiram e foram substituídas

por uma nova matriz, feita de condutos que fornecem serviços profissionais. A

vida se acha paralisada num permanente cuidado intensivo.

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3COMO PASSAR UMA RASTEIRA NAS NECESSIDADES

A inabilitação de cidadãos mediante a cominação profissional se completa

por meio do poder da ilusão. A religião é deslocada, em última instância, não

pelo Estado, mas pelas esperanças postas nos profissio nais. Eles

proclamam um conhecimento especial para definir os assuntos públicos em

termos de problemas. A aceitação desse clamor legitima o reconhecimento

dócil por parte do leigo das carências impostas, seu mundo se transforma em

uma caixa de ressonância de necessidades. Esta. dominação se reflete no perfil

da cidade. Os edificios profissionais olham para as multidões que formigam

entre eles, em peregrinação contínua, rumo às novas catedrais da saúde, da

educação e do bem-estar. Os lugares sãos se transformam em departamentos

higiênicos onde ninguém pode nascer, adoecer ou morrer decentemente. Não

só os vizinhos serviçais, mas também os médicos liberais, que visitavam as

casas, são espécies em extinção. Os locais de trabalho adequados para a

aprendizagem se convertem agora em opacos labirintos de corredores que

permitem o acesso somente a funcionários equipados com «cartões de

identificação». Os ambientes profissionais são o último refúgio dos dependentes

de medicamentos.

A adição prevalecente às necessidades imputá veis por parte dos ricos e

a fascinação paralisadora frente às necessidades por parte do pobre seriam

completamente irreversíveis se as pessoas e o cálculo de necessidades

fossem equiparáveis. Mas não é assim. Além de certo nível, a medicina

engendra desamparo e enfermidade; a educação se converte no maior

gerador de uma divisão inabilitante do traba lho; os sistemas de transporte

veloz transformam as pessoas em passageiros dur ante 17% de suas horas

úteis e, por uma quantidade igual de tempo, em membros das

quadrilhas de trabalhadores de estradas que trabalham para pagar o Ford, a

Esso e o Departamento de Estradas. O nível no qual a medic ina, a

educação ou o transporte se conver tem em instrumentos

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contraprodutivos foi alcançado em todos os países do mundo que têm

uma renda per cap ita comparável, pelo menos, à de Cuba. Em todos os

países examinados, e contrariamente às ilusões propagadas pelas ortodoxias do

Leste ou do Ocidente, esta contraprodutividade específica não tem relação

com o tipo de escola, de transporte ou de organização da saúde que se

esteja util izando. Produz -se quando a intensidade de capital no processo de

produção ultrapassa um umbral crítico.

Nossas instituições mais importantes adquiriram o poder misterioso de

subverter e inverter os próprios propósitos para os quais foram

originalmente cons truídas e financiadas. Sob o controle de nossos

profissionais mais prestigiados, nossas ferramentas institucionais têm como

produto principal a contraprodutividade paradoxal — a inabilitação sistemática

da cidadania. Uma cidade construída em função das rodas torna-se

inapropriada para os pés, e nenhum aumento do número de rodas pode

superar a imobilidade fabricada desses aleijados. A ação autônoma se

paralisa pelo excesso de mercadorias e tratamentos. Mas isto não representa

simplesmente uma perda líquida de satisfações, coisa que não se enquadra

com a Idade Industrial; a impotência de produzir valores de uso torna, em

última an álise, contrapropositiva as próprias mercadorias criadas para

substituí-las. O uso do automóvel, do médico, da escola ou do administrador é

mercadoria que produz incomodidades inevitáveis a seu consumidor, e que

retém seu valor líquido só para o prestador de serviços.

Por que ninguém se rebela contra esta tendência e sistema de

distribuição de serviços, tão inabilitante? A explicação chave deve ser

buscada no poder de gerar ilusões que estes mesmos sistemas possuem. O

profissionalismo, além de operar coisas técnicas no corpo e na mente, é

um ritual poderoso e gera confiança nas coisas que faz. Além de ensinar

a ler, as escolas ensinam que é melhor aprender dos professores. Além de

prover locomoção, prestígio, licença sexual e sentido de poder, tudo isto

junto, o automóvel deixa sem chão o caminhante. Além de proporcionar ajuda

para evitar impostos, os advogados também comunicam a noção de que as

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leis resolvem o problema. Uma parte cada vez maior de nossas principais

instituições funciona no cultivo e manutenção de quatro conjuntos de ilusões

que convertem o cidadão num cliente que deve ser salvo pelos técnicos.

a) Confusão entre congestão e paralisia

A primeira ilusão escravizante é a idéia de que o indivíduo nasceu para ser

consumidor e que pode conseguir qualquer meta comprando bens e serviços.

Esta ilusão se deve a que nos educaram numa ceguei ra face à importância

dos valores de uso na economia total. Em nenhum dos modelos econômicos

que servem de guias nacionais existe uma variável que dê conta dos

valores de uso não mercantil izáveis, do mesmo modo que não há

variável para a perene contribuição da natureza. Entretanto, não existe

economia que não sucumbisse imediatamente se a produção de valores e

uso se contraísse além de certo ponto, como poderia ser, por exemplo,

fazer o trabalho de casa por um salário, ou ter relações sexuais somente

por um preço. O que a gente faz ou cria, mas que não quer ou não pode

colocar à venda, é tão incomensurável e inavaliável para a economia como o é

o oxigênio que respiramos.

A ilusão de que os modelos econômicos podem ignorar os valores de uso

surge da presunção de que essas atividades que designamos por meio de

verbos intransitivos podem ser substituídas indefinidamente por artigos de

consumo, definidos institucionalmente e aos quais nos referimos por meio

de substantivos. A educação substitui o «eu aprendo»; a saúde o «eu me

curo»; o transporte o «eu me movo»; a TV o «eu me divirto».

A confusão entre os valores pessoais e os valores padronizados estendeu -

se ao longo da maioria dos campos. Sob a liderança profissional, dissolvem-

se os valores de uso, fazem-se antiquados e finalmente são privados de sua

natureza distinta. Dez anos de manejo de uma propriedade rural podem ser

lançados num liquidif icador pedagógico e equivaler a um alto grau de

escolaridade. As coisas recolh idas ao acaso e incubadas na liberdade da

rua se incorporam como «experiência educacional» às coisas injetadas na

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cabeça dos alunos. Os contabilistas do conhecimento não parecem

preocupados com o fato de que est as duas atividades só se misturem —

tal como o azeite e a água — na med ida em que são «ilhadas» pela

pesquisa educacional. Os bandos de cruzados, caçadores-de-necessidades, não

poderiam continuar oprimindo-nos, nem poderiam gastar mais impostos em

seus levantamentos, gráficos e outras panacéias se não fosse por

estarmos e permanecermos paralisados por nossas crendices glutonas.

A utilidade dos artigos de consumo ou das mercadorias empacotadas se

encontra bloqueada intrinsecamente por dois limites que não devemos

confundir. Primeiro, as filas de espera que cedo ou tarde a operação de

qualquer sistema que produza necessidade com maior rapidez que sua

mercadoria correspondente; e, segundo, a dependência dos artigos que

cedo ou tarde determinará de tal forma, as necessidades, que a produção

autônoma de seu funcionamento análogo será paralisada.. Congestão e

paralisação são ambas resultados da escalada mercantil em qualquer setor

da produção, embora seus resultados sejam bem diferentes. A congestão,

que é uma medida do grau em que as mercadorias se emperram

mutuamente, explica a razão por que o transporte de massa por meio de

automóveis particulares seria inútil em Manhattan, mas não explica por que a

gente trabalha duro para comprar e assegurar automóveis que lá n ão

podem ter um uso aproveitável. A congestão não pode explicar ainda

menos por si só por que as pessoas se fazem tão dependentes de veículos

que se acham paralisados e simplesmente não voltam a utilizar os próprios

pés.

As pessoas se fazem prisioneiras da aceleração consumidora de tempo, da

educação estupefaciente, da medicina iatrógena, porque além de certo

umbral de intensidade a dependência de um conjunto de bens industriais ou

profissionais destrói o potencial humano, agindo por setores e de maneira

específica. As mercadorias podem substituir só até certo ponto o que a

pessoa faz ou cria por si mesma. Os valores de troca podem substituir

satisfatoriamente, só dentro de certos limites, os valores de uso. Passado

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este ponto, uma maior produção somente serve aos interesses do produtor

profissional — que impõe a necessidade ao consumidor e o deixa ofuscado e

aturdido embora mais rico. Para que uma necessidade se satisfaça e não

meramente se preencha, ela tem que ser determinada, em boa medida, pela

lembrança do prazer derivado da atividade que satisfez previamente. Há

umbrais além dos quais as mercadorias não se podem multiplicar sem inabilitar

seus consumidores para a auto-afirmação da ação.

Os bens empacotados frustram o consumidor, inevitavelmente, porque o

paralisa no momento de consumi-los. Deste modo, a medida do bem-estar

de uma sociedade não se encerra nunca como uma equação em que se

pudessem somar as duas maneiras de produção; é sempre como um

equilíbr io que se produz quando os valores de uso e as mercadorias se

combinam numa sinergia proveitosa. A produção heterônoma de um artigo de

consumo pode apoiar e complementar, mas só até certo ponto, uma ação

homóloga que seja autônoma e pessoal. Mas até este ponto, a sinergia entre

dois modos de produção, o dos valores de uso e o dos art igos de

consumo, se realiza paradoxalmente contrária ao propósito que ambos

tinham. Muitas vezes não se vê com clareza este ponto, porque a atual

recuperação da ecologia pelo sistema industrial tende a obscurecê-lo. Os

reatores de energia atômica, por exemplo, foram amplamente criticados porque

sua radiação constitui uma ameaça ou porque favorecem o controle

tecnocrático. Até aqui, somente uns poucos se atrevem a criticá-los porque

acumulam ainda mais o excesso de energia. Ainda não se aceitou como

argumento para reduzir a demanda de energia a paralisação sobre a ação

humana produzida por «quanta» de energia socialmente hipercríticos.

Igualmente não se levam em consideração os limites inexoráveis do

crescimento, integrados na estrutura de qualquer instituição de serviços. E,

entretanto, deveria ser evidente que a medicalização do cuidado da saúde

tende a converter as pessoas em marionetas ou que a educação pela vida

fomenta uma cultura para gente programada. A ecologia provocará linhas-guias

para um estilo de modernidade viável somente quando se reconheça que o

meio ambiente desenhado para as mercadorias reduz a vitalidade

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pessoal a tal ponto que as próprias mercadorias perdem seu valor

como meios de satisfação pessoal. Sem levar em conta este último

critério, a ecologia poderia levar à criação de uma tecnologia industrial

mais limpa e simultaneamente mais eficaz para aumentar o enriquecimento

inabilitante.

A razão fundamental por que a intensidade de mercado conduz à

contraprodutividade deve ser buscada na relação entre o monopólio das

mercadorias e as necessidades humanas. Este monopólio se estende muito

mais longe do que seu próprio nome reconhece. Um monopólio comercial

condiciona o mercado somente no que se refere a uma marca de uísque ou

de automóvel. Um cartel industrial total pode restringir a liberdade ainda

mais: pode encurralar todos os transportes de massa em benefício dos

automóveis particulares, como fez a General Motors ao comprar e arruinar

todos os troleibus de São Francisco. Podemos escapar do primeiro

monopólio aficionando-nos ao rum, e do segundo, comprando uma

bicicleeta. Uso agora o termo «monopólio radical» para designar a

substituição das atividades úteis em que a gente se comprometeria ou

gostaria de fazê-lo, por um produto industrial ou um serviço profissional. Um

monopólio radical paralisa a ação autônoma e favorece a distribuição

profissional. Enquanto os veículos deslocam cada vez mais pessoas, mais

administradores de trânsito serão necessários cada vez mais e as pessoas

serão cada vez mais impotentes para caminhar até sua casa. Este

monopólio radical se daria junto com o tráfego de alta velocidade mesmo que

os motores estivessem movidos por força solar e os veículos fossem feitos

de ar. Quanto mais tempo está alguém sujeito à educação, menos tempo terá

para bisbilhotar e surpreender-se. Em qualquer domínio, existe um ponto

em que a quantidade de bens entregues degradam de tal forma o

ambiente propício para a ação pessoal, que a sinergia possível entre valores

de uso e mercadorias se torna negativa. Então se produz, paradoxalmente, a

contraprodutividade específica. Usarei este termo sempre que a impotência

resultante da sustentação de um valor de uso por uma mercadoria prive a

própria mercadoria de seu valor.

Page 47: Ivani l lichdireitoaodesempregocriador

b) Cegueira ante as ferramentas convivenciais

O homem deixa de ser reconhecível como tal quando já não pode dar

forma a suas próprias necessidades usando as ferramentas, mais ou menos

competentes, que sua cultura lhe proporciona. Ao longo da História, a maior

parte dos utensílios eram meios intensivos de trabalho que satisfaziam a

quem os usava, sobretudo na produção doméstica. Só ocasionalmente se

utilizavam para produzir pirâmides para o faraó, excedentes para o

intercâmbio de presentes e ainda mais escassamente para a compra e a

venda. As oportunidades para extrair o sobreproduto eram limitadas. A maior

parte do esforço se realizava para criar as próprias condições de subsistência do

homem trabalhador. Mas o progresso tecnológico se aplicou sistematicamente

no desenvolvimento de um tipo diferente de ferramentas: impulsionando, em

primeiro lugar, a fabricação de ferramentas somente para a produção de

artigos mercantilizáveis. A ferramenta dos inícios da revolução industrial

unicamente reduziu o trabalhador ao papel que Charlie Chaplin desempenhou

em Tempos Modernos. Ao sair , miserável, da fábrica, ainda encontrava

avenidas por onde caminhar. Hoje, se não tem licença de motorista, ou pelo

menos dinheiro para pagar um carro, não pode voltar para casa.

As mulheres e os homens que chegaram a depender quase

exclusivamente da distribuição dos fragmentos padronizados, produzidos

por ferramentas operadas por outros seres anônimos, deixam de encontrar a

mesma satisfação direta no uso das ferramentas que, uma vez, estimularam

a evolução do homem e de suas culturas. Mesmo quando suas

necessidades e seu consumo se mult ip licam através de múltiplos pedidos

de encomenda, a satisfação produzida pelo manejo das ferramentas se faz

escassa e deixam de viver uma vida para a qual seu organismo se foi

formando. No melhor dos casos, sobrevivem apenas, embora o façam rodeados

de desperdícios. Suas vidas chegam a ser uma cadeia de necessidades que se

foram encontrando em vista de um esforço de satisfação ulterior. O

homem-consumidor-passivo perde, em última instância, a habil idade para

discriminar entre a vida e a sobrevivência. O jogo dos seguros e a

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espectação regozijada das rações e terapias tomam o lugar da alegria. Ao

atender cada vez mais necessidades, afogam a satisfação e o gozo. Esquecem-

se, convertidos em receptores, que o homem, cada vez mais

acorrentado, se apaga como criador. A rede metálica que esta

sociedade que pretende saciá -lo tece em seu redor só lhe serve de

proteção até certo grau, só até certo grau pode aumentar seu poder.

Fica fácil esquecer que a satisfação e o gozo podem ocorrer somente na

medida em que vitalidade pessoal e provisões mecanizadas se mantenham

em equilíbrio na busca de uma meta.

A ilusão de que as ferramentas a serviço de instituições orientadas

para o mercado podem destruir impunemente as condições convivenciais e

que devem administrar-se por e para as pessoas permite a extinção da

«vitalidade», porque conceitualiza o progresso tecnológico como uma espécie

de produto de engenharia que permite uma dominação profissional maior. Esta

ilusão nos diz que, com a finalidade de que as ferramentas sejam mais

eficientes na busca de um propósito específico, temos de fazê-las cada vez

mais complexas e inescrutáveis. Exigem necessariamente, portanto, operadores

especiais, altamente treinados e que são os únicos em quem se pode

confiar. Na realidade, parece mais razoável o oposto. A medida que as

técnicas se mult iplicam e se fazem mais específicas, seu uso requer um

julgamento me nos complexo. Já não é necessária esta confiança por parte do

cliente na qual se fundamentava a autonomia do profissional liberal e até

mesmo a do artesão. A invenção do fósforo acabou com o sacerdócio

encarregado de conservar a chama. Com cada nova forma de fósforo,

extingue-se um tipo de sacerdócio. De um ponto de vista social, deveríamos

reservar a designa-cão de «progresso técnico» à medida que novas

ferramentas expandem a capacidade e ef icácia de um número mais

amplo de pessoas; especialmente quando as novas ferramentas permitem

uma produção mais autônoma de valores de uso.

Não há nada inevitável quanto ao monopólio profissional que se expande

sobre a nova tecnologia. As grandes invenções dos últ imos séculos, como os

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novos metais, os rolamentos de esferas, alguns materi ais de construção,

os circuitos integrados, alguns testes e medicamentos podem aumentar o

poder não somente da maneira heterônoma de produzir, como também da

autônoma. Simplesmente não existe o chamado «imperativo tecnológico».

E uma farsa pretender que, uma vez inventados, tenham os rolamentos de

esfera que ser necessariamente utilizados em veículos motorizados mais do

que em bicicletas, ou que os circuitos integrados tenham que ser

introduzidos inevitavelmente no cérebro. As instituições que moldam

socialmente o tráfego acelerado e a gestão da saúde mental não são, de

maneira alguma, resultados necessários de sua existência. Suas funções estão

determinadas pelas necessidades que pretendem satisfazer a quantos

manejam estas instituições. Não exis te nenhuma necessidade que não tenha

sido criada socialmente, para que existam pilotos e psiquiatras num mundo

posterior aos irmãos Wright ou a Freud. Este é um ponto crucial que as

minorias encobrem dentro de cada uma das grandes profissões, ao

oferecer generosamente seus serviços para conseguir que o transporte seja

mais eqüitativo ou que o enfermo, a quem se oferece um eletrochoque, tenham

uma participação maior. Entretanto, a maior parte da nova tecnologia não foi,

de fato, incorporada à equipe convivencial, mas sim aos pacotes e aos

complexos institucionais. Os profissionais usam consistentemente a produção

industrial para estabelecer um monopólio radical por meio da comprovada

efetividade da tecnologia. Devido à paralisação da produção de valores de uso,

a contraprodutividade é emu lada por esta noção de progresso tecnológico.

A própria idéia de progresso conceitualiza o trato engenheiral como uma

contribuição à eficiência institucional. Financia-se substancialmente a pesquisa

científica, mas só se pode aplicá-la ao ramo militar ou a um domínio

profissional futuro. As ligas que produ zem bicicletas mais fortes e leves são

subprodutos da pesquisa realizada para conseguir jatos mais rápidos e armas

mais mortíferas. Os resultados da maioria das pesquisas servem somente para

a produção de ferramentas industriais, tornando desta maneira cada vez

mais complexas e inexcrutáveis as já descomunais maquinarias. Devido a este

rasgo de visão de cientis tas e engenheiros, reforça-se uma tendência

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predominante: excluem-se as necessidades baseadas numa ação

autônoma e se mult iplicam as que tendem à aquisição de mercadorias.

As ferramentas convivenciais que facil itam o desfruto dos valores de uso

da pessoa — sem supervisão ou com uma supervisão mín ima de

polic iais, médicos e inspetores — se concentram em dois extremos: os

operários asiáticos pobres e os estudantes e professores ricos são os dois tipos

de pessoas que andam de bicicleta. Talvez, sem ser conscientes de sua boa

sorte, ambos gozam do estar livres desta segunda ilusão.

Alguns grupos de profissionais, de entidades governamentais e de

organizações internacionais começaram recentemente a fazer aflorar, a

desenvolver e a recomendar uma tecnologia intermédia, de meia escala.

Poder-se-ia interpretar estes esforços como uma tentativa de evitar as

vulgaridades mais óbvias de um imperativo tecnológico. Mas uma grande parte

da tecnologia desenhada para uma auto-ajuda no cuidado da saúde, na

educação ou na construção do lar é só um modo alternativo de forte

dependência das mercadorias. Por exemplo, pede-se aos técnicos que

desenhem novos armários de remédios que permitam às pessoas se

medicarem por telefone. Ensina-se às mulheres que examinem os seios para

ter que pagar logo ao cirurgião. Dá-se aos cubanos dias livres pagos para

que trabalhem na montagem de suas casas pré-fabricadas. O prestígio

estimulante dos produtos profissionais, ao fazerem -se mais baratos, acaba

por tornar os pobres e os ricos mais parecidos uns com os outros. Tanto

os bolivianos como os suecos se sentem igualmente desprezados,

desamparados, explorados, até o ponto em que aprendem sem a

supervisão de professores diplomados, mantêm -se sãos sem o controle

de um médico e se movem sem muletas motorizadas. Uma ilusão não é

menos ilusão pelo fato de vir envolvida numa solução científica e não em

dogmas religiosos.

c) A confusão entre liberdades e direitos

A terceira ilusão inabil itante diz respeito aos técnicos em controle de

natalidade. A populações inteiras que foram socializadas para que necessitem

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do que lhes disseram que devem necess itar, se dirá agora o que não

necessitam. Os mesmos agentes multinacionais que impuseram, ao longo de

uma geração, uma medida internacional de contabilidade, desodorantes, e

consumo de energia, a pobres e a ricos por igual, patrocinam agora o

Clube de Roma. A Unesco se coloca obedientemente em movimento e

treina técnicos para regionalizar as necessidades imputadas. Por seu próprio

bem, também imputado, programam-se deste modo os ricos, para que

paguem um domínio profissional mais custoso para si e para que

proporcionem aos pobres necessidades arroladas num nível mais barato e

mais limitado. Os profissionais mais brilhantes vêem já claramente que a

escassez crescente eleva o controle das necessidades cada vez mais alto. A

planificação central de outputs ótimos de descentralização converteu -se

no trabalho mais prestigiado de 1977. Mas o que ainda não se reconhece é

que esta mais nova salvação ilusória, por meio de limites decretados

profissionalmente, confunde liberdades e direitos.

Em cada uma das sete reg iões def in idas pela ONU, treina-se um novo

clero de educadores para que predique o estilo apropriado de austeridade

esboçado pelos novos desenhadores de necessidades. Os conscientizadores

vagam pelas comunidades locais incitando as pessoas a encontrarem as

metas de produção descentralizadas que lhes foram reservadas. Or denhar

a cabra familiar foi uma liberdade, até que planejamentos mais estritos

converteram isso num dever, para contribuir para o crescimento do PNB.

A sinergia entre a produção autônoma e a heterônoma reflete-se no

equilíbrio entre liberdades e direi tos de uma sociedade determinada. As

liberdades protegem os valores de uso do mesmo modo que os direitos

protegem o acesso às mercadorias. Assim como as mercadorias podem

distinguir a possibilidade de produzir valores de uso, e produzir uma riqueza

empobrecedora, a definição profissional dos direitos pode extinguir as

liberdades e estabelecer uma tirania que enfoque a pessoa sob seus direitos.

Esta confusão revela -se com especial clareza quando observamos os

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técnicos da saúde. A saúde abarca dois aspectos: liberdades e direitos. Designa

o setor da economia no qual cada pessoa exerce controle sobre seus estados

biológicos, e sobre as condições de seu meio ambiente imediato. Definida

simplesmen te, a saúde é idêntica ao grau de liberdade vivida. Portanto,

aqueles que têm que ver com o bem público deveriam esforçar-se por garantir

a distribuição eqüitativa da saúde e da liberdade, que dependem, por sua vez,

das condições ambientais que só os esforços políticos organizados podem

alcançar. Além de um certo nível de intensidade, a atenção profissional à

saúde, mesmo quando se acha distribuída eqüitativamente, sufocará a saúde-

como-liberdade. Neste sentido fundamental, o cuidado da saúde é um assunto

de liberdade bem protegida. Como é evidente, uma no ção de saúde deste

tipo implica uma posição de princípios sobre liberdades inalienáveis. Para

entender isto, deve-se distinguir claramente entre liberdade civil e direitos

civis. A liberdade de que o governo dispõe paca atuar sem restrições tem um

campo mais amplo que o dos direitos civis que esse mesmo estado possa

decretar para garantir que as pessoas tenham igual possibilidade de obter

certos bens e serviços.

As liberdades civis, de ordinário, não obrigam a que outros atuem de

acordo com meus desejos. Tenho liberdade de escrever e publicar minha

opinião, mas nenhum jornal em particular está obrigado a imprimi-la, nem se

obriga os outros cidadãos a lê-la. Sou livre de pintar a beleza tal qual a vejo,

mas nenhum museu está obrigado a comprar meus quadros. Ao mesmo

tempo, porém, como garante a liberdade, o Estado pode promulgar, e o faz,

leis que protegem direitos igualitários sem os quais seus membros não

poderiam gozar das liberdades. Tais direitos dão sentido e realidade à

igualdade, enquanto as liberdades dão possibilidades e forma à atuação

dos indiví duos. Durante o século XIX e o princípio do nosso, a doutrina jurídica

do equilíbrio entre liberdades e direitos se desenvolveu principalmente, se não

exclusivamente, no setor dos direitos civis. A proteção das liberdades de

estudar, de mover -se pelos próprios pés, de mobiliar a própria casa, não

parecia ameaçada senão pela falta de sapatos ou mobília; chegou o

momento, agora, de insistir nas liberdades produti vas, que são anál ogas

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em tudo às civis. Um modo seguro de acabar com a liberdade de palavra, de

aprendizagem, ou de cura, é converter os direitos civ is em deveres

cív icos. O caráter prec iso desta terceira ilusão é crer que a conquista dos

direitos, patrocinada publicamente, conduz inevitavelmente à proteção das

liberdades. Na verdade, à medida que a sociedade outorga legitimidade aos

profissionais para que definam os direitos, vão-se evaporando as liberdades

do cidadão.

d) A eqüidade no desemprego criador

Qualquer necessidade nova que se diploma profissionalmente na

atualidade, traduz -se, cedo ou tarde, num direito. A pressão política para

conseguir a promulgação de todos direito em lei gera novos empregos e

mercadorias. Cada mercadoria nova degrada uma atividade que, até então,

permitia à pessoa cuidar de si pelos seus próprios meios; cada novo emprego

subtrai legitimidade ao trabalho feito até aqui pelo desempregado. O poder

que as profissões têm para fixar as medidas do que há de ser bom,

correto e realizado destorce o desejo, a vontade e a habilidade do homem

«comum» para viver dentro de sua própria medida.

Logo que se diplomam os estudantes de direito inscritos atualmente nas

escolas norte-americanas, o número de advogados aumentará ali em 50%. 0

atendimento judicial completará o atendimento médico, na medida que o

seguro legal vá se convertendo no mesmo tipo de necessidade que hoje

em dia é o seguro médico. Quando já se tiver estabelec ido o direito do

cidadão a ter um advogado, será considera do pouco culto ou mesmo anti-

social o fim das brigas na taverna, da mesma maneira como se consideram

hoje os partos em casa. Já acontece assim com o direito que todo

cidadão de Detroit tem de viver numa casa cuja instalação elétrica foi feita

por um profissional, que converteu num transgressor da lei o eletricista caseiro

que instala suas próprias tomadas e conexões elétricas. A perda, uma

depois da outra, das liberdades de ser útil fora do emprego e do

controle profissional é a experiência não mencionada, mas também a que mais

se ressente, de todas as que surgem com a pobreza modernizada. A estas

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alturas, o privilégio mais significativo de uma condição social elevada pode ser

talvez um resto de liberdade para o desemprego criador, coisa cada vez

mais negada à grande maioria. A insistência no direito a ser tratado e

abastecido se converteu quase no direito das indústrias e profissões para

conquistar clientes, para provê-los com seus produtos e para apagar,

com suas entregas, as condições de um ambiente que torna úteis as atividades

realizadas no ócio. Desta maneira, paralisou-se de forma efetiva, por ora, a luta

por uma distribuição eqüitat iva do tempo e do poder para ser útil a si

mesmo e aos outros, fora do emprego ou da conscrição. Menospreza -se o

trabalho realizado fora de empregos remunerados, se é que não se ignora de

todo. A atividade autônoma é uma ameaça para os níveis de emprego,

gera desvios e diminui o PNB. Portanto, é impróprio chamá-la «trabalho». O

traba lho já não significa esforço, labor, mas esse misterioso complemento

das inversões produtivas que constituem o cap ital. O trabalho não

significa mais a criação de um valor recebido pelo trabalhador, mas

meramente um emprego que é só uma relação social. O ócio significa hoje

mais uma vagabundagem penosa que estar livre para fazer coisas úteis para

si mesmo e para o vizinho. Uma mulher ativa que mantém uma casa, educa

crianças e cuida das crianças de outras mulheres é bem diferente de uma

mulher que traba lha, não importa quão inútil ou daninho possa ser o produto

desse trabalho. A atividade, o esforço, a realização, o serviço feito fora de

uma relação hierárquica, não avaliável pelos padrões profissionais, são uma

ameaça para qualquer sociedade de mercado intensivo. A geração de

valores de uso que escapam à medição efetiva limita não somente a

necessidade de mais mercadorias como também os empregos que as criam e

os envelopes de pagamento necessários para comprá-las.

O que conta numa sociedade de mercado intensivo não é o esforço por

agradar ou o prazer que brota desse esforço, mas o acoplamento da força

de trabalho com o capital. O que conta não é conseguir a satisfação que

brota da ação mas o status da relação social que a produção exige, isto é: o

emprego, a situação, o posto ou a designação. Na Idade Média não havia

salvação fora da Igreja e aos teólogos se tornava difícil explicar o que

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Deus fazia com os pagãos que tivessem sido provadamente virtuosos ou

santos. Na sociedade contemporânea, similarmente, o esforço não é

produtivo a menos que seja realizado sob o comando de um chefe, e aos

economistas custa explicar a utilidade óbvia da atividade da gente quando se

acha fora do controle institucional de uma corporação, de uma agência para

voluntários ou de um campo de trabalho. O trabalho é produtivo,

respeitável, digno de um cidadão somente quando está planificado, dirigido e

controlado por um agente profissional que assegure que esse trabalho

responde a uma necessidade diplomada em forma padronizada. Numa

sociedade industrial avançada torna-se quase impossível procurar ou

imaginar o ócio como condição para um trabalho útil , autônomo. A infra -

estrutura da sociedade está acomodada de tal forma que só os

empregos proporcionam acesso às ferramentas de produção e, à medida

que o estado vai tomando conta do processo, este monopólio da produção

de mercadorias sobre a geração de valores de uso vai-se tornando cada

vez mais rigoroso. Alguém pode ensinar as crianças se tem licença para

isso, só se pode encanar um osso indo a uma clínica. O trabalho em

casa, a atividade artesanal, a agricultura de subsis tência, a tecnologia

radical, o intercâmbio de conhecimentos e seus similares, degradam-se ao ser

atividades para o folgazão, para o improdutivo, que é muito pobre ou muito

rico. Uma sociedade que fomenta uma grande dependência das

mercadorias converte assim seus desempregados em pobres ou

dependentes. Em 1945, nos Estados Unidos ainda havia, por beneficiário do

seguro social, 35 trabalhadores empregados. Em 1977, 3.2 trabalhadores que

percebem um salário têm que manter um aposentado que depende, por sua

vez, de uma quantidade de serviços muito maior do que a que o seu avô

aposentado poderia ter imaginado.

Conseqüentemente, a qualidade de uma sociedade e de sua cultura

dependerão da condição de seus desempregados: serão eles os cidadãos

produtivos mais representativos, ou serão dependentes? A opção ou crise

parece novamente evidente: a sociedade industrial avançada pode degenerar

numa guerra de trincheiras para restaurar o sonho dos anos sessenta; num

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sistema bem planejado que distribua gota a gota as mercadorias e

empregos decrescentes, e que capacite os seus cidadãos para um consumo

mais padronizado e um trabalho mais impotente. Esta é a orientação

refletida nas políticas propostas pela maioria dos governos atuais, desde a

Alemanha até a China, apesar de uma diferença fundamental de graus:

quanto mais rico é o país, mais urgente parece a tarefa de racionalizar o

acesso aos empregos e de obstaculizar o ócio útil que ameaçaria o volume do

mercado de trabalho. Claro que também é possível o oposto: numa

sociedade em que os trabalhadores frustrados se organizem para proteger

a liberdade e autonomia da pessoa para ser útil à margem das atividades

encaminhadas à produção de mercadorias. Porém aqui, novamente, esta

alternativa social depende de um novo tipo de competição, racional e

cín ica, que o homem comum tem de confrontar com as necessidades que

profissionais lhe imputam.

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4FLANQUEANDO O NOVO PROFISSIONAL

O poder profissional se acha hoje claramente ameaçado pela evidência

crescente da contraprodutividade dos bens e serviços por ele produzidos.

As pessoas começam a ver que uma hegemonia deste tipo as priva de seu

direito à participação política. O poder simbólico dos técnicos que, ao definir as

necessidades, arrebatam a competição da pessoa, vê -se agora mais

perigoso que sua capacitação técnica, confinada a servir as necessidades

que eles mesmos criaram. Ao mesmo tempo, ouve -se um contínuo

clamor para a promulgação de uma legislação que possa levar-nos além

desta Era dominada pelo etos profissional: o clamor para que se substitua o

diploma profissional e burocrático pela investidura de cida dãos eleitos, em

vez de que seja alterada simplesmente pela inclusão de uma representação

dos consumidores nos órgãos que concedem as licenças; a exigência para

que se af rouxe o sistema de prescrição que rege as farmácias, nos currículos

e em outro tipo de supermercados pretensiosos; a demanda por um direito a

exercer a profissão sem diploma; a demanda por liberdades produtivas e não

meramente civis que facilitem ao cliente a avaliação de todos os

praticantes que trabalham por dinheiro.

Em resposta a estas ameaças os estabelecimen tos profissionais mais

importantes lançam mão, cada um a sua maneira, de três estratégias

fundamentais para assinalar a erosão de sua legimitidade e poder.

a) O traficante

A primeira dessas estratégias autodefensivas do profissionalismo está

representada pelo Clube de Roma. Com o fim de reforçar o sistema

industria l, a Fiat, a Volkswagen e a Ford pagam economistas, ecólogos e

técnicos em controle social para identificar os produtos que as indústrias já

não deveriam produzir. Também os doutores do Clube de Cos recomen dam

agora que se abandone a cirurgia, a radiação e a quimioterapia no tratamento

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da maioria dos cânceres, visto que estes tratamentos tã o-só prolongam, se

é que não intensificam, o sofrimento sem prolongar a vida da pessoa

tratada. Os advogados e os dentistas prometem controlar, como nunca

antes, a competição, a decência e as tabelas de seus colegas profissionais.

Uma variante desta estratégia pode ser vista em alguns indivíduos e em

suas organizações. São os chamados profissionais radicais que lutam para que

todos os membros da profissão sejam assalariados e se proíba a prática

privada, perseguindo o mercado negro no serviço médico; fazem-se

defensores e líderes dos pac ientes que procuram obter mais tipos

diferentes de serviços da clínica ou do seguro, e chegam tão longe

que denunciam publicamente a inutilidade de uma grande parte dos

serviços oferecidos e insistem em que. eliminando estes, os médicos poderiam

satisfazer as necessidades básicas com maior eficácia. Por exemplo: um

grupo de doutores de uma província do Canadá ocidental preparou um

informe sobre umas duas dezenas de tratamentos médicos para os quais

o legislativo estava considerando um aumento de orçamento. Estes médicos

comprovaram que todos estes procedimentos eram dolorosos e perigosos, e de

nenhum deles existiam provas científicas de que fossem eficazes. Apesar desta

evidência, os legisladores, em busca de votos por meio de sua prodigalidade,

aprovaram os aumentos. Sem dúvida, a recusa dos legisladores em atuar

apoiando-se sobre este conselho médico aumentou para uma minoria o

prestígio das profissões ao ser comparada com o dos políticos. Mas a

abertura de avaliações deste tipo ao público, embora resultem

prejudiciais para o indivíduo que receita, tendem a reforçar a crença na

necessidade do juízo profissional. Pelo menos do médico que nos protege de

seus colegas.

O controle autocrítico de políticos profissionais é útil principalmente para

descobrir o incompetente grosseiro — o açougueiro — ou o charlatão completo.

Porém, como se viu uma ou outra vez, só protege o inepto e afirma a

dependência do público aos seus serviços. O médico «crít ico», o

advogado «radical» ou o arquiteto «dedicado» só tiram clientes dos seus

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colegas menos atentos que eles às excentricidades da moda e às prioridades da

política dos políticos. No primeiro instante, as profissões liberais venderam ao

público a necessidade de um serviço desta espécie ao prometer velar pelo leigo

que tem uma certa escolaridade, uma ética ou uma preparação mais

pobre dentro desse campo, muito mais pobre. Num segundo instante, as

profissões já tirânicas insistem em seu dever legal de guiar e paralisar

cada vez mais o público e se organizam em clubes que fazem alarde

de um alto grau de consciência e impõem restrições ecológicas,

econômicas e sociais. Esta ação enfraque ce a expansão posterior do

setor profissional, mas fortalece a dependência do público dentro

desse se tor. A idéia de que as prof issões têm o direito de servir ao

público é, ass im, de origem muito recente. A luta para estabelecer e

legitimar este direito chegou a ser uma das ameaças sociais mais opressivas.

b) A aliança dos benfeitores públicos

A segunda estratégia procura organizar e coordenar a resposta

profissional de uma maneira que seja mais primordialmente adequada ao

caráter mult iface tário dos assim chamados problemas humanos. Esta

resposta procura também util izar idéias tomadas das análises de

sistemas e das invest igações operacionais, com o objetivo de dar

soluções de um caráter mais nacional e mais universa l. Um exemplo

do que isto significa na prática pode ser tomado ao Canadá. Há quatro anos,

o Ministér io da Saúde lançou uma campanha para convencer o públi co

de que gastar mais dinheiro com médicos não mudaria os padrões

da enfermidade e da morte. Assinalava que a perda prematura da

vida se dev ia de forma esmagadora a três fatores: acidentes,

sobretudo em veículos motorizados, doenças do coração e câncer do

pulmão, fatores sobre os quais os médicos eram impotentes;

também suic íd ios e assassinatos, fenômenos fora do controle médico. O

Ministério pediu novas formas de abordagem da saúde e de lim itação da

medic ina. A tarefa de proteger, restaurar ou consolar os queadoeceram por

um tipo de vida destrut ivo e pelo meio ambiente do Canadá atual,

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foi assumida por uma grande variedade de profissões novas e

antigas. Os arquitetos descobriram que tinham a missão de melhorar

a saúde dos canadenses; descobriu-se que o controle dos cães vadios

era um problema interdepartamental que exigia novos especialistas; que era

necessár io submeter todas as crianças canadenses a uma sér ie de

exames preventivos, realizados por mais de uma dezena de especialistas.

Uma nova biocracia corporativa intensi ficou o controle para organizar os

canadenses com uma dedicação que a ant iga iatrocracia dificilmente

poderia ter imaginado. O refrão «É melhor gastar dinheiro para continuar

são, do que em médicos quando ficar doente» pode ser apontado hoje

como a caçada de novos trapaceiros que quer iam que se gastasse o

dinheiro com eles.

A prát ica da medic ina nos Estados Unidos mostra um dinâmica

similar. Ali, uma forma coordenada de aproximar-se do problema da

saúde dos norte-amer icanos resu ltou tremendamente custosa sem ter

sido especialmente efetiva. Em 1950, o assalariado típico entregava

menos de duas semanas de seu salário anual aos cuidados dos

profissionais da saúde. Em 1976, a proporção do salár io gasto com

saúde elevou-se até cinco a sete semanas por ano. Ao comprar um Ford

novo, está-se pagando mais pela higiene do operário do que pelo

metal que o carro contém. Entretanto, apesar de todos estes gastos

e esforços, a expectativa de vida da população masculina adulta nãomudou

sensivelmente nos últ imos cem anos. É mais baixa do que a ex istente

em muitos países pobres, e vem declinando, lentamente, mas com

firmeza, nos últimos vinte anos.

Nos lugares em que os padrões de enfermidademudaram para melhorar,

este fato se deve principalmente aos estilos de vida mais saudável,

especialmente no que se refere a dietas. As inoculações e a administração

rotineira de receitas tão simples como antibióticos, contraceptivos ou as

seringas de sucção de Carman para os abortos, contribuem para a

diminuição de certas enfermidades. Mas estes tratamentos não exigem

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serviços profissionais. As pessoas não vão ficar mais sadias por se

sentirem mais solidamente casadas com a profissão médica. Entretanto,

muitos médicos «radicais» exigem uma biocracia desse tipo, mais

abrangedora. Parece não terem consciência de que um enfoque mais racional,

«solucionador de problemas», é simplesmente outra versão, talvez mais

refinada, da promoção do pobre.

c) A profissionalização do cliente

A terceira estratégia para conseguir a sobrevivência das profissões

dominantes converteu-se na moda radical deste ano. Assim como os profetas

dos anos sessenta babavam sobre o desenvolvimento, na ante-sala das

portas da abundância, os atuais fabricantes de mitos fazem barulho sobre a

auto-ajuda de clientes profissionalizados.

Vi anúncios de armários de banheiro, para remédios, que só abrem suas

portas para indivíduos que se automedicam devidamente autorizados. Apenas

nos Estados Unidos apareceram 2 700 livros, desde 1965, que nos ensinam a

ser nossos próprios pacientes, de maneira que somente necessitamos ver

o médico quando a ele valha a pena. Alguns livros recomendam que só se

permita aos diplomados de um treinamento apropriado, e depois de ter

passado em exame, comprarem e darem aspirina aos filhos. Outros suge rem

que os pacientes profissionalizados gozem de tarifas preferenciais nos hospitais

e desfrutem dos benefícios dos prêmios de seguro mais baixos. Somente as

mulheres que tenham licença para praticar o próprio parto em casa

poderiam ter os filhos fora de um hospital , já que outras mães

profissionalizadas, se é necessário, podem ser processadas pelo mal

exercício praticado em si mesmas.

Vi uma proposta pseudo -radical que indica que esta licença se obtenha

sob os auspícios feministas e não médicos.

O sonho profissional de dar a cada hierarquia de necessidades uma raiz

popular escuda-se atrás dos estandartes da auto-ajuda. Presentemente, quem

o promove é uma nova tribo de técnicos da auto-ajuda, que substituiu os

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técnicos do desenvolvimento dos anos sessenta. Sua meta é a

profissionalização universal dos clientes.

Servem de exemplo desta nova cruzada os técnicos norte-americanos em

construção que invadiram o México na última temporada. Faz alguns anos, um

professor de arquitetura de Boston veio ao México em férias. Um mexicano

amigo meu o levou atrás do aeroporto, onde, ao longo de doze anos, cresceu

uma nova cidade. De umas poucas cabanas passou a ser uma metrópole.

Meu amigo, também arquiteto, queria mostrar-lhe os múltiplos exemplos do

engenho camponês no uso de padrões, estruturas e refugos que não

estavam nos livros de texto e que, portanto, não provinham deles. Não tinha

por que ficar surpreendido ao ver o colega bater centenas de rolos de

fotografias destas brilhantes invenções de amateur que faziam funcionar

estes bairros de dois milhões de habi tantes. Analisaram-se as fotos em

Cambridge e em fins deste ano especialistas norte-americanos de nova fornada

em arquitetura de comunidades se encontravam muito ocupados ensinando

à gente da Cidade Netzahualcóyotl quais eram seus problemas, necessidades e

soluções.

Page 63: Ivani l lichdireitoaodesempregocriador

5O ETHOS POS-PROFISSIONAL

A subsistência moderna é o inverso da necessidade e pobreza

profissionalmente atestadas. A expressão «economia de subsistência» se aplica,

em etnologia, à forma de sobrevivência de um grupo, marginalizado em si da

dependência diante do mercado, e no qual a pessoa fabrica o que utiliza por

meio de ferramentas tradicionais, no seio de uma organização social amiúde

herdada tal qual está. Entretanto, na linguagem corrente, a «economia de

subsistência» evoca uma cultura que organiza a impotência, engendra ilusões e

favorece a elite. Sahlins (Marshal SAHLINS, Stone Age Economics. New York,

Aldine-Atherton, 1972) demonstrou muito bem que a única sociedade em que o

espaço, o tempo e a autonomia se esgotam na luta pela sobrevivência é a

sociedade industrial. Não obstante, eu proponho, não sem vacilações, utilizar o

termo para falar agora de «subsistência moderna». Chamemos subsistência

moderna ao estilo de vida prevalecente numa economia pós-industrial na qual o

indivíduo conseguiu reduzir sua dependência do mercado e o fez

protegendo — mediante a util ização de meios políticos — uma infra-

estrutura social na qual se usam técnicas e ferramentas principalmente

para gerar valores de uso que não são medidos nem medíveis pelos

fabricantes profissionais de necessidades. Em outro lugar desenvolvi uma

teoria sobre tais ferra mentas (La convivencialidad, Barral Editores,

Barcelona, 1975; Ed. Posada, México, 1978) e propus a expressão técnica

«ferramenta convivencial» para todo artefato fabricado engenheiralmente,

que estivesse orientado para a criação de valores de uso. Demonstrei que o

inverso da progressiva pobreza moderniza da é a austeridade convivencial

que, gerada politicamente, protege o âmbito igualitário para a liberdade no

uso de tais ferramentas.

Uma reinstrumentação da sociedade contemporânea com o uso de

ferramentas convivenciais melhor que industriais, implica, entretanto, uma

mudança no enfoque de nossa luta pela justiça social; implica um novo tipo de

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subordinação da justiça distributiva à justiça de participação. Na sociedade

industrial treinam-se os indivíduos em especializações extremas. Tornamo-los

impotentes para moldar ou satisfazer suas próprias necessidades.

Dependem das mercadorias para eles indicadas pelo administrador. O direito

de diagnosticar uma necessidade, a receita de um remédio e, em geral, a

distribuição dos bens são a ocupação predominante da ética, da política e da

lei. Esta ênfase nos direitos a necessidades imputadas converte as

liberdades para aprender, curar ou mover-se por si mesmo em luxos

frágeis. Entretanto, numa sociedade convivencial o oposto seria o verdadeiro.

A proteção da eqüidade no exercício das liberdades pessoais é a preocupação

dominante de uma sociedade que está baseada numa tecnologia radical:

da ciência e da técnica a serviço de uma geração de valores de uso mais

efetiva. Obviamente, uma liberdade distribuída tão eqüitativamente não teria

significação se não estivesse fundada no direito ao acesso igua l às

matér ias de base, ferramentas e bens. A comida, o combustível, o ar

puro ou o espaço vital não podem distribuir-se melhor que os alicates ou os

empregos, a menos que não se racionem sem importar as necessidades

imputadas, isto é, em máximas quantidades iguais para o jovem e o velho,

para o inválido e o Presidente. Uma sociedade baseada no uso moderno e

efetivo das liberdades produtivas não pode chegar a existir a menos que o

exercício desta liberdade não esteja limitado para todos de forma igual.

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APÊNDICE

Conferência pronunciada no Colégio aoMéxico em 26 de junho de 1978,

a convite do Instituto Goethe.

A presença de Freimut Duve no México me oferece a oportunidade,

como historiador e filósofo, de acrescentar algo a um tema tabu: «o direito

igual de todos à atividade útil, principalmente no caso em que não se tenha

emprego». É importante falar disto no México, onde já de forma sistemática se

enfoca o tema do desemprego através de políticas que tentam aumentar o

volume de empregos sem levar em conta que isto, paradoxalmente, tem o

efeito de ameaçar precisamente o direito ao desemprego útil. Por exem plo, o

esforço em aumentar o volume habitacional por meio da construção

institucional mina a extraordinária habilidade edílica para a autoconstrução que

ainda existe no México.1 A medicalização da saúde impede a modernização

científica da higiene popu lar.2 O diploma escolar e, ainda mais, o

profissional e a contínua degradam cada ano mais a situação do autodidata 3.

Em termos mais gerais, a expansão do emprego formal vai acompanhada de

uma desvalori zação de múltiplas atividades que se exercem fora de toda a

função assalariada.4

Esta contraprodutividade paradoxal é um tema importante no

desenvolvimento da força de trabalho, que emergiu na literatura mundial dos

últimos cinco anos: na Alemanha, Weizsaecker fala do direito ao Eigenarbeit 5

e convocou para fins de 1978 na cidade de Kassel um congresso sobre o

mesmo assunto. Também na França alguns ideólogos socialistas começam a

preocupar-se com o direito «au chômage créateur».6 Como resposta ao

recente referendo que se realizou no Estado da Califórnia, no qual se votou

2 a 1 a favor de uma redução dos impostos para o financiamento do setor de

serviços, publicou-se, sob os auspícios do governo de Jerry Brown, um relatório

Page 66: Ivani l lichdireitoaodesempregocriador

intitulado «Trabalho e tecnologia apropriada: um modo de vida adequado»

(Right Livelyhood, Work and Appropriate Technology 7). Por outro lado, na

India se reconheceu publicamente, talvez com maior radicalismo, a necessidade

de inverter as políticas para o desenvolvimento da força de trabalho.8 Faz

três anos que o Indian Social Science Council estabeleceu um programa

interdisciplinar para explorar a modernização da produção social,

precisamente enquanto ela se distingue da produtividade econômica.

Em países como o México, onde a força de trabalho está sendo

encaminhada predominantemente para a criação de novos empregos, existe um

silêncio sobre o direito a um «des-emprego criador» pleno de atividades úteis e

eficazes, que poderia apresentar outra alternat iva para a solução desse

problema. Há uma série de obstáculos específicos que impedem sua

discussão e aos quais vou me referir no final desta palestra. Como

introdução contarei a forma como Freimut Duve e eu nos vimos

embrulhados neste tema.

Conheci Duve em 1972, como editor da coleção RoRoRo Aktuell. Esta série

é lançada a um ritmo de dois livros por mês; é uma ed ição barata que

se vende em livrarias e bancas de jornais com uma tiragem que oscila

entre 10 000 e 15 000 exemplares. E uma coleção composta por ensaios,

documentos, reportagens e estudos políticos de orientação esquerdista que

atualmente constitui uma enciclopédia de 180 volumes nos quais se reflete a

vida pública alemã desta década. Naquele tempo, RoRoRo Aktuell publicou

meu ensaio Energia e Eqüidade9, originalmente escrito em francês para

Le Monde, e Duve me ajudou a adaptá-lo à mentalidade alemã. Neste

ensaio, tomando exemplos do setor de transportes, desenvolvi uma tese

baseada em algumas observações feitas por André Gorz.10

Segundo Gorz, o desenvolvimento meramente técnico de alguns processos

de produção geram tal especialização de funções dentro da sociedade, que

os inconvenientes derivados desta especialização da força de trabalho

superam qualquer benefício que o processo de produção possa exigir. Em meu

Page 67: Ivani l lichdireitoaodesempregocriador

ensaio procurei especificar dois destes inconvenientes que aparecem em toda

sociedade na qual um número dinamicamente crescente das necessidades

básicas, seja de bens ou de serviços, se definem em termos de produtos

gerados industrialmente; procurei estabelecer que qualquer sistema de

transporte que concentre mais de uma quantidade crítica de energia num

passageiro provoca inevitavelmente não só novos tipos de estratificação social

vinculados a um tipo de consumo hierárquico, como também novas formas de

importância radical de mover-se a pé.

Concretamente, demonstro empiricamente como em certos grandes

técnicos existem rectores de concentração de energia sobre uma unidade de

produto, nos quais aparecem umbrais críticos. Quando se concentra mais de

uma quantidade crítica de energia na produção de uma unidade do produto,

a util ização desta tecnologia funciona inevitavelmente como um meio de

concentrar privilégios numa minoria, negan do e paralisando ao mesmo

tempo a capacidade das maiorias de criar valores de uso homólogos a ditos

privilégios.11 Por exemplo: as pessoas da cidade Netzahualcóyotl, com os

impostos que pagam, não só contribuem para financiar nossas viagens

desde o aeroporto como, além do mais, elas mesmas têm que dar uma

volta diária a este aeroporto para a qual os pés já não lhes servem. Um

ambiente criado para conveniência dos motorizados destrói precisamente

aquelas condições ambientais nas quais se funda o valor de uso dos pés.

Foi pois a partir desta discussão que Duve e eu nos tornamos amigos.

Posteriormente, em 1974, e sob a direção de Duve, fundamos uma nova

revista, cujo conselho editorial integramos, entre outros: André Gorz, Joachim

Israel, Joachim Steffer 12. Nós a chamamos Tecnologia e Política 13,

aparece trimestral mente e neste momento se está preparando o 12º volume.

A revista em si está balizada por dois marcos, um empírico e o outro ético.

O primeiro marco, o empírico, fundamenta-se em que as opções técnicas

dentro do sistema industrial implicam sempre um compromisso político. Fato

demonstrado tanto na medicina 14 como na educação, na construção como no

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transporte. Exemplo: a opção de tornar obrigatória até os 15 anos a

assistência ao sistema escolar não só aumenta a percentagem de mexicanos

que se sentem culpados de não ter cumprido esta obrigação como também

aumenta os tipos de emprego nos quais se discrimina as pessoas que

carecem de um depósito suficiente de capital educacional. Exemplo: cada novo

remédio que se permite ser comercializado com uma etiqueta que diz

«tomar somente sob prescrição médica» não apenas cria um novo elo de

dependência com o médico, como tam bém é um medicamento que se

vende sem que seu modo de usar e seus riscos estejam escritos de forma

acessível ao leigo, ou seja, traduzido para o mexicano por alguém como Rius.15

Os editores da nova revista estão convencidos que, pelos efeitos

políticos que as decisões técnicas têm, para participar na política se exige do

cidadão atual um esforço contínuo para compreender, discutir e submeter a

juízo as implicações políticas derivadas das opções técnicas — se se trata

de opções que o governo mesmo decida tomar ou tolere que se tomem

dentro do setor privado, se este existe. Nossa revista quer instrumentar

este tipo de análise cuja aplicação na política constitui um novo tipo de

atividade cívica.

O segundo marco para a seleção de contribuição a nosso Magazin é Uma

postura de ordem ético-política: tomamos francamente uma posição

valorativa. Segundo nosso parecer, uma nova técnica representa progresso

quando e só quando através dela é possível estabelecer um maior equilíbrio

entre dois tipos de justiça que se complementam: por um lado, a igualdade

no acesso aos produtos e aos recursos da sociedade (just iça distributiva

nos bens escassos); e por outro, exatamente com a mesma hierarquia,

um âmbito de autonomia igual para todos na criação de valores de uso

(justiça participativa). Consideremos os avanços técnicos como uma ameaça

de regressão política quando estes impõem a concentração do poder

numa das duas dimensões que a justiça protege, quer dizer, quando as

exigências de uma técnica tornam impossível ou a igual distribuição da

riqueza ou a igualdade no exercício das liberdades. A liberdade para criar

Page 69: Ivani l lichdireitoaodesempregocriador

seus valores de uso daqueles que têm menos riqueza sempre tem —

segundo pensamos — prioridade sobre a criação e a distribuição de novos

níveis de riqueza.16

Tendo fixado este marco, estabelecemos algo que se tornou imprescindível

na década dos setenta: um foro para a avaliação polít ica de um número

de correntes analíticas convergentes. Refiro-me a quantos enfocam o

impacto que a técnica desempenha sobre o meio ambiente e que se

esgarçam num espectro que vai desde o romanticismo verde até o

ecofascismo.17 Refiro-me e quantos enfocam principalmente por cima dos

quais a dimensão institucional geral desutilidades marginalmente conscientes

e, como conseqüência, efeitos simbólicos mais que técnicos.18 Dentro deste

contexto, refiro-me às correntes que analisam diretamente a diferença entre

dois tipos de progresso técnico: aquele que permite maior eficiência na

produção de riquezas quanto a bens de serviços, e aquele outro

progresso técnico orientado essencialmente para uma maior eficácia na criação

de valores de uso não destinados a intercâmbio. Refiro-me com tudo isto à

modern ização da subsistência .1 9

Estes dois marcos permitem a politização destas correntes, às quais as

ideologias tradicionais tendem a negar legitimidade política, e os economistas

operacionalidade técnica. Mas ao falar da modernização da subsistência, ou

seja, da desescolarização da competição, da desprofissionalização da medicina,

da descentralização da produção, da redução radical do uso da energia, da

modernização da autoconstrução, tropeçamos inevitavelmente numa série de

objeções. Dentro destas objeções existe uma que põe fim a toda discussão: a

acusação de que qualquer destas políticas fomentaria a desocupação. Meu

objetivo é explicar porque tal conseqüência não dever ia espantar -nos

sempre e quando este desemprego pudesse distribuir -se com igualdade

dentro de uma sociedade que reconhecesse o igual direito de todos à

ocupação eficaz do desempregado.

Tanto o professor Reyna, do Colégio do México, como o Dr. Turtur da

Page 70: Ivani l lichdireitoaodesempregocriador

Goethe Gesellschaft, ao convidar-me, me aconselharam a mudar o título desta

conferência. Porque quem toca neste tabu provoca sobretudo que todos os

profissionais e os sindicalistas que vivem desta identif icação a defendam.

A sombra deste tabu mantém-se isenta de controvérsias a identificação do

trabalho com o emprego assalariado, o que envilece a mais pessoas do que

enobrece. Assim como a expansão da escolaridade degrada o autodidata,

assim como circuitos interiores marginalizam da urbe o peão, assim o

favorit ismo do bico, o qual passou já um nível crítica, degrada a um sem-

número de ocupações das quais no México ainda vive uma grande

maioria. Esta forma de valorizar uma ocupa ção pelo salário que ela retribui

deprecia todas aquelas atividades que Sahlins20 chamaria parte da

economia doméstica, que a escola de Chayanov21 chamaria economia

camponesa, que Polaniy22 chamaria intercâmbio não-mercantil, que Penty 23

chamaria o estilo da produção pós-industrial, termo com um sentido

oposto ao que empregou Daniel Bell, que Boeke teria chamado necessidades

sociais opondo-as às necessidades econômicas24 . O tabu encobre que o

desemprego serve para monopolizar a proteção das leis, a respeitabilidade

política e o financiamento público, a favor das infra-estruturas que servem

somente aos tipos de trabalho feito por assalariados. Este tabu garante

que somente aquelas atividades que se deixem administrar sejam

dignificadas como trabalho.

A enfermeira que dá ao bebê uma mamadeira Nestlé, trabalha; a mãe que

dá à luz e amamenta o filho, não. E tão profundo o prejuízo em favor do

valor econômico do emprego, que se torna difíc il promover um tipo de

desenvolv imento no qual o emprego diminua, e no qual o progresso técnico

sirva até onde for possível, para aumentar a eficácia das atividades que não se

desejam contabilizar. Há muito pouco tempo era difícil ser ouvido ao defender

esta alternativa de desenvolvimento. Imediatamente replicava-se que não há

forma de inverter um processo evolutivo sem cair no Luddismo, ou no

romanticismo, ou na expansão da empresa privada, ou suspeitavam que se

pudesse estar a favor das idéias de Milton Friedman25 ou de algum de seus

alunos como Gary Becker26, ou de seus propagandistas vulgares como Le

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Page27 Ideólogos e economistas de direita e de esquerda estavam

absolutamente de acordo em que o nexo indissolúvel entre o progresso

cient íf ico e a expansão de produtos mensuráveis em termos econômicos,

como também sobre a necessidade de que exista um crescimento

indef inido na produção de bens e serviços como condição indispensável para

a realização da justiça. Ambos concordaram ingenuamente que a justiça se

derivaria do crescimento econômico futuro. Este antigo paradigma está -se

quebrando, embora isto não se reconheça publicamente devido ao medo de se

enfrentar uma das conseqüências mais óbvias: a frustração inevitável das

políticas que implementam o direito ao trabalho, é claro, como emprego.

A mim me parece que o tabu que envolve toda a discussão sobre o

desemprego é o resultado de um nó de ambigüidades. Talvez possamos dissipar

esse tabu identificando quatro delas:

1. A primeira ambigüidade deriva do fato de que «desocupação» designa

tanto uma situação que a sociedade imputa a alguns de seus membros como

uma experiência muito pessoal. A mesma etiqueta de «desocupado» poderia

ser aplicada amanhã a um executivo assim como a um pedreiro, ainda que a

conotação emocional que tem, segundo o curriculum vitae que estigmatizou a

personalidade do desocupado, seja muito diferente. Para o executivo a

dispensa significa a oportunidade de decidir-se finalmente a terminar seu

grande livro, e possivelmente conseguir algumas consultorias bem

remuneradas. Para o pedreiro, a perda de trabalho não somente o priva

de seus ga nhos mas também dos prazos mensais para pagar a casa, com os

quais já se comprometeu. Mas existe uma terceira forma que afeta o

desocupado possuidor dos diplomas menos apreciados: não somente o priva de

recursos e contatos, como também o priva de uma parte muito importante de

sua dignidade. Segundo os estudos que temos, informa-se que muitos dos

desocupados com título acadêmico conseguem esconder sua situação

inclusive frente à mulher e os filhos. O direito do desempregado em obter uma

compensação estabelece uma realidade financeira, política e técnica que é de

uma ordem distinta ao sentido de frustração e de vergonha que faz o

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desocupado levá-lo à simulação.

Atrevo-me, não sem pouca vacilação, a falar da desocupação, pois me sinto

imune à vergonha do despedido. Uma vez que se alcançou um título

suficientemente elevado na ciência, no sindicato, no parti do ou na

administração, sem dúvida se pode perder os lucros, mas nun ca se

sentirá a impotência e a degradação de quantos começaram contigo a

sua carreira e tiveram de abandoná -la. O que significa para eles a perda

da «sorte» será para ti sempre uma experiência que poderá ser substituída. Eis

aqui uma fonte importante de ambigüidade, já que toda a literatura sobre a

desocupação está escrita por gente que conta como nós com uma grande

inversão de educação em si mesmos. Até nas pesquisas com que se

mede a desocupação se incorporam as experiências especializadas e muitas

vezes alienantes de uma elite de capitalistas do saber.

2. Uma segunda ambigüidade sobre a desocupação deriva da novidade

do termo e do conceito, unemployed, no sentido de «sem emprego». O Oxford

English Dictionary diz que a expressão foi utilizada pela primeira vez por

Ruskin, em seu livro Unto his Last, publicado em 1860. Raymond Williams28

menciona este assunto em seu brilhante livrinho, sobre as palavras-chaves.

Nele cita um conhecedor supremo dos arquivos vitorianos, G. M. Young 29,

o qual nos diz: «o desemprego ia além de qualquer conceito de que os

primeiros reformadores da era vitoriana dispunham devido em grande parte a

que não tinham nenhuma palavra para ele». Alguns radicais sem dúvida a

usaram em torno de 1830, mas segundo o OED, «unemployment» não foi

usado comumente antes de 1895. A palavra ganhou importância mais tarde

quando Beveridge, em 1909, a pôs no título de seu primeiro livro. 30 Sobre o

termo castelhano, Rosenblat diz: «os idiomas indo-europeus ou o latim não

nos deram nenhuma expressão para designar ao sem-trabalho». Havia pois

que criá-la. Na Espanha predominou a idéia do aposentado e do chamado

parado. Mas na América parado é aquele que está sem andar. Houve que

recorrer a outra imagem, e se diz desocupado, que não soa muito bem

em espanhol, porque é associada a outras de seu gênero.» No Estado de

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Morelos (México), desocupado designa principalmente a uma pessoa que não

faz nada, enquanto que o desempregado é aquele que não tem um bico.31 Nem

Francisco Santamarla, nem Martín Alonso o mencio nam. Suponho que

desemprego seja um anglicismo útil e imprescindível numa sociedade,

onde muit íssimos empregados não estão ocupados, e onde a grande parte

do trabalho é realizado por gente sem emprego. Este termo tão recente

nos obriga a refletir. Até poucos anos antes da primeira guerra mundial, a

desocupação significou, nos idiomas europeus, uma condição, uma atitude

pessoal: o ócio, o descanso, a preguiça. Só quando ela se concretizou como

a realidade de um grupo de pessoas, este termo veio a designar uma

situação social: isto é, tanto a categoria econômica dos não assalariados que

procuram emprego como também os da categoria aos quais se atribuem

empregos, segundo uma nova moral, o dever de procurá-lo.

Para evitar confusões, suponho que seria impor tante distinguir três

grandes passos pelos quais as atividades assalariadas adquiriram aquele

significado com o qual hoje se define o desempregado dentro de uma

categoria social. Primeiramente, alguns dos grandes human istas dos fins do

Renascimento, como Giordano Bruno e Campanella, afirmaram claramente

a superioridade da vida ativa em oposição ao contem plar passivo. O passo

seguinte 32 ocorreu, segundo Hanna Arendt, quando «o trabalho se

transformou, da atividade mais humilde à atividade mais apreciada, no

momento em que Locke afirmou que o trabalho é a fonte de toda riqueza».

Não se deve esquecer que mesmo para Adam Smith a terra e o capital também

contaram como fonte de valor. Somente com Ricardo o trabalho

institucionalizado se converteu na fonte determinante de todo valor. Daí

chegamos a Marx, o qual define o homem como animal laborans.

Scheler33 descreveu por sua vez como a passagem do trabalho de

«sofrimento» para «direito» do homem ao trabalho reflete uma

transformação sem precedentes na visão social do que o homem é. Daí

em diante, faltará ao homem a possib il idade de realizar sua

humanidade se não tem a possibilidade de produzir bens ou serviços.

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Agora o homem está feito para o emprego. Aquele que não tem emprego

carece da condição básica para ser fonte de valor. Pela primeira vez na

história, o trabalho é digno e confere dignidade. O desemprego converteu-se

num mal, no Ocidente é causa de um desajuste da sociedade e é uma forma

de exploração ao serviço da estabil idade dos preços, nos países

socialistas é uma falta moral ou psicológica do indivíduo. A transformação de

uma forma de «sofrimento» com a qual o homem tem que se envolver em

atividade de suprema e fundamental dignidade, numa atividade

assalariada, é fonte de uma contínua ambigüidade quando se discute o

desemprego. A história das lutas ideológicas e esforços literários no sentido de

realizar esta transformação de valores constitui um campo de estudos

importante.34

3. Uma terceira fonte de ambigüidade é a forma oposta na qual no México a

desocupação afeta a dois setores da maioria: por um lado aqueles que foram

ou poderiam ser despedidos, e por outro aqueles que nunca foram

contratados de forma mais ou menos regular. Aos primeiros, a dispensa

os ameaça nos seus ganhos e em sua dignidade, como já vimos; aos últimos

também, mas por motivos muito distintos dos que afetam os «diplomados

pela vida», os quais têm uma espécie de imunidade. Quem sempre viveu

à margem do salário mínimo e marginado do mercado, sobrevive por que sabe

arranjar as coisas. Para ele, a desocupação não é nem o cavaleiro apocalíptico

que espanta o recém-saído da escola, nem tampouco a enfermidade endêmica

e cíclica que o economista diagnostica e submete a suas terapias.

Paradoxalmente, cada programa orientado para a criação de empregos

numa si tuação como a nossa, tem como efeito não-intencional piorar o

modo de viver daqueles para os quais não alcança o volume das praças

criadas. Até agora, a construção de novas unidades habitacionais populares

criou inevitavelmente novos impedimentos para a autoconstrução. Uma grande

parte das pessoas continua vivendo em casas autoconstruídas pela mão-de-

obra disponível na famí lia ou no bairro. Mas a expansão da construção

institucional muda o status da autoconstrução, ou seja, transforma a casa

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em choça insalubre. Os regulamentos exigem agora que um arquiteto

aprove o plano, exigência absurda para quem a única forma de construir é a

autoconstrução. Os regulamentos de construção que são garantia para

que exista um mínimo de qualidade nas casas feitas pelo INFONAVIT não

deveriam ser aplicadas às casas autocons truídas. Cada dia que passa, a

luta contra a desocupação e a favor dos salários condena os não

assalariados a novas frustrações.35 Degrada seus esforços, precisamente

quando o valor de uso em que acreditam está competindo com um bem

que a nação decidiu que todo cidadão deveria possuir. Esta paralisia da

produtividade social, substancial e autônoma deriva do impacto que o

monopólio dos produtos tem sobre a definição das necessidades, assim

como o impacto que o emprego tem sobre a definição do trabalho.

4. A quarta fonte de ambigüidade sobre o futuro do desemprego der iva

das visões opostas sobre o vetor no qual se desenvolve a composição da

força de trabalho. Segundo uma destas visões, não há nem processo

econômico nem progresso político, sem a redução deste vetor terciário. A

irreversibilidade da direção deste vetor era um dogma que nos anos

sessenta unia os economistas capitalistas e socialistas aos

representantes dos povos ricos e pobres, aos sociólogos e aos

politólogos. Os protagonistas deste dogma são hoje em dia os decanos de

nossas faculdades. A unanimidade ideológica que compartilharam nos anos

sessenta, leva-os hoje em dia a unir-se numa frente comum e os converte

em inimigos de uma visão alternativa segundo a qual este vetor está em

processo de inversão — o setor de serviços já ultrapassou sua assíndota.36 A

nova visão da evolução da forma de trabalho se impõe rapidamente como

resultante de uma meia dúzia de «descobertas» recentes. Todas são

descobertas do óbvio e todas são argumentos para prever a inversão na

dinâmica da força trabalhadora37: a escassez dos recursos naturais, a

limitada tolerância da biosfera38, as deseconomias implícitas em muitos tipos

de crescimento institucio nal39, a contraprodutividade provocada pela própria

finalidade deste crescimento. 40 Prever alternativas para a educação41, a

medicina42 e em nível de expansão crítica dos setores de serviço social43, a

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inversão na evolução da especialização do trabalho 44 e a contratação do

setor terciário já são idéias unicamente de românticos chinófilos Marco Pólo da

Califórnia, sem a expectação racional comum de correntes de análises

convergentes.

Desse modo, a contração do setor terciário e a maior intensidade

laboral na agricultura e na manufatura podem ter para mim, como filósofo, dois

significados opostos, dependendo de qual seja a idéia fundamental que

fazemos da economia. Se por economia entendemos a ciência que se

especializa em medir e ordenar a produção da riqueza e se reduzimos as

necessidades básicas a carências que se podem eliminar por meio do

fornecimento de bens e serviços, então sim, continuaremos considerando

trabalho somente as atividades padronizadas e administráveis que podem

produzir resultados operacionalmente verificáveis. Neste sentido, a involução da

estrutura do emprego poderia levar o conceito de trabalho a uma evolução

ulterior na linha traçada desde Ricado até Daniel Bell. Esta evolução

consistiria numa expansão do controle social além do emprego formal,

assim como sua extensão sobre as atividades pessoais realizadas quando a

pessoa não se encontra dentro de uma função assalariada, como

caminhar para o trabalho, fazer exercício para evitar transformar-se numa

carga social, tomar um remédio sem necessidade de consulta, ler para

aumentar a própria produtividade. Seriam todas as atividades que, nesta

hipótese, se transformariam em contribuições medíveis do produto

centralmente governado. Pela expansão da ética do trabalho às atividades de

consumo, o valor e a dignidade até agora reservados ao trabalhador podem

ser conferidos ao consumidor. O consumo disciplinado por prescrição seria

assim a nova e suprema forma de ser úteis à sociedade. O estudante, o

paciente ou o comprador em qualquer supermercado se veriam en tão a si

mesmos, precisamente em suas atividades de consumo, como contribuintes do

volume total de bens e serviços que a sociedade produz e administ ra.

Através desta expansão da economia política à totalidade da vida, não

somente todo ato de produção como também todo ato de consumo ou uso

seriam desempenhados como se fossem parte do emprego. Não há que

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esquecer que essa identificação de toda ação humana como contribuição à

economia pode ser prescrita através de dois caminhos escandalosamente

distintos: o chinezinho agachado pelo dogma maoísta que procria segundo as

necessidades da economia revolucionária dando legitimidade a sua

atividade sexual e transformando-a em «trabalho», com a mesma lógica

que permite a Gary Becker 45 e a outros «Chicago boys» formalizar o

mercado sexual.

Em oposição a esta rad icalização do an imal laborans, na qual até a

obtenção do orgasmo é uma forma de trabalho sacralizado por meio da

contabilidade econômica, existe uma visão alternativa. Segundo esta, o

campo da economia abarca o ordenamento das circunstâncias nas quais,

com a maior eqüidade, cada um — mas antes de tudo os mais fracos e

indigentes — podem satisfazer com sua própria atividade e colaboração

primária suas necessidades que dentro deste processo satisfatório tomam

forma concreta. Nesta visão alternativa, a le i protege e assegura, antes

de tudo, as condições que elevam o nível de subsistência que se encontram

articuladas à margem da contabilidade. Deve ser uma tarefa da luta política

impulsionar o desenvolvimento daquelas tecnologias que permitam uma

devolução progressiva do emprego ao campo da atividade pessoal. Nesta

visão da realidade, tanto a justa distribuição de bens como a igual distribuição

das condições para tais atividades autônomas depende do decresc imento da

produção de bens e serviços e da limitação deles — sempre e quando

for possível — a aqueles produtos que não só se podem produzir para todos

como também fomentam o desemprego criativo. Lançando mão de uma

idéia de Habermas46: se não queremos negar valor a toda atividade que não

seja trabalho do empregado, estamos obrigados a desenvolver uma teoria

filosófica da ação social humana, e dentro deste marco encontraremos um

rincão para uma nova teoria do trabalho.

Para terminar, a desvinculação das atividades produtivas da área do

emprego ameaça a todos os feudos fechados cuja existência está

fundamentada na percepção da mais-valia. Quero dizer a todo mundo

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que controle os meios de produção, em nosso nível de desenvolv imento,

antes de mais nada, a todos os «capitalistas do saber», ou seja, aos que

pertencem aos feudos profissionais. Me parece que é por esta razão que

qualquer discussão sobre este tema é sumamente difícil em países como o

México, onde o nível e o tipo de desenvolvimento ignoram por um lado a

existência de enormes grupos excluídos do «mercado do emprego», enquanto

que por outro lado induzem a um otimismo ingênuo que nos países ricos já é

coisa do passado.

Para romper este isolamento dos países que não são nem pobres nem ricos

de uma importante discussão mundial, para dar finalmente dignidade de

disciplina coerente ao estudo de um novo paradigma no uso do progresso

técnico, tem-se de fazer o esforço de familiarizar-se com um novo tipo de

literatura ausente de nossas bibliotecas. É uma literatura muito recente —

nem eu mesm o me havia dado conta da ordem de magnitude e de

seriedade crít ica que já existe neste campo emergente. Minha atitude

mudou somente quando há algumas semanas Valentina Borremans me

entregou o manuscrito de um livro que está preparando: um guia

destinado a bibliotecários, uma lista de bibliografias, revistas, e manuais para

o estudo de técnicas modernas criadas para aumentar a capacidade pessoal

na criação de valores de uso. Abrange mais de 800 títulos em quase sua

totalidade ausentes de qualquer biblioteca mexicana47. Recomendo-lhes o

estudo deste novo campo se não por convicção pelo menos por

oportunismo — porque para lá caminha o futuro.

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NOTAS

Durante a discussão provocada por minha conferência no Colégio doMéxico, foi-me pedido, em três ocasiões diferentes, um guia da literaturana qual se apóiam meus argumentos. Prometi aos participantes queacrescentaria a meu texto as leituras que teria recomendado numseminário, cujo programa tivesse sido traçado por minha conferência.

1. O México, tal como Cuba ou o Brasil, optou pela habitaçãoconstruída «para o indivíduo» que tem emprego, embora seussistemas políticos sejam tão diferentes. A alternativa de modernizara construção habitacianal «pelo próprio indivíduo», privilegiando aautoconstrução, foi descartada. Nos países acima mencionados, aautoconstrução tem sido considerada sempre não somente umobstáculo público e antieconômico como também um conflito com aspolíticas do governo. LESUR, Luis, y GONZALEZ de LEON, Teodoro.Investigación de la vivienda en 11 ciudades del país. México: InstitutoMexicano del Seguro Social, 1967 e ss., é um guia enciclopédico,principalmente quantitativo que arrola os níveis de autoconstruçãourbana há 25 anos em 11 cidades do México. TURNER, John F. C.Housing by People: Towards Autonomy in Building Environments.Preface by Colyn Ward. London: Marion Boyars, 1976; New York:Pantheon, 1977. Trad. francesa, Paris: Le Seuil, 1978, analisaclaramente a distinção entre construção «para» e construção «pelo»habitante. Lewis Mumford e Jane Jacobs evidentemente contribuírampara a perspectiva pela qual Turner analisa o processo de construçãoda casa em vários países. RUDOFSKY, Bernard. ArchitectureWithout Architects: A Short Introduction to Non -PedigreeArchitecture. New York: Doubleday, 1964. Paperback. O fato decontemplar as fotografias deste volume contribuiu para muitaspessoas superarem o preconceito de que o desenvolvimento técnicotenha que depender necessariamente da habitação criada porprofissionais. Para um intercâmbio de informações úteis para adefesa e expansão do direito à autoconstrução, 3 são as redes deinformação internacional: a) A Housing Network Exchange in London(NEL) c/o J. F. C. Turner, Development Planning Unit, 9 -11Endsleigh Gardens, London, WC IH OED. Inglaterra. b) TRANET,Transnational Network for Appropriate/Alternative Technology, c/oWilliam Ellis, P.O. Box 567, Rangeley, Maine 04980. USA. c) ThePlanners Network, c/o Chester Hartman, 360 Elisabeth Street, SanFrancisco, CA 94114. USA.

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2. Esta idéia marcou fundamentalmente as políticas da OrganizaçãoMundial da Saúde desde que Halfdan MALHER a dirige, há trêsanos. NEWELL, Kenneth W., ed. Hea lth by the People, Genebra,OMS, 1975, ilustra o tema. Este argumento se desenvolveu nosimpósio da Dag Hammarskjöld Foundation de Uppsala, na Suécia, efoi publicado em 1978 sob o título «Another Development inHealth». Recomendo particularmente as contribuições de D.BANERJI e «The Inverse of Managed Health» por ValentinaBORREMANS em Development Dialogue, n° I, 1978.

3. Durante o período de maior intensidade no crescimento dossistemas sociais, faz já mais de meia geração, uns quantos autoresconcentraram sua atenção principalmente na degradação dasoportunidades que para obter trabalho uma maioria dos cidadãossofria, a qual erá resultado direto da expansão da assistência escolarobrigatória e gratuita, e. g.: GOODMAN, Paul. CompulsoryMiseducation and the Community of Scholars. New York: HorizonPress, 1964; YOUNG, Michael. The Rise of the Meritocracy. London:Thames and Hudson, 1958; BOURDIEU, Pierre, et PASSERON, JeanClaude. Les héritiers: les etudes et la culture. Paris: Les editions deMinuit, 1964. Ao analisar os efeitos secundários que a escolaridadeproduz no autodidata, verificou-se que esfa o exclui não só domercado de trabalho como também tende a tirar-lhe o direito à açãoautônoma tradicional. Hoje este tema faz parte já da sociologiaeducacional. Para um resumo da bibliografia, ver SACHS, Wolfgang.Schulzwang and Soziale Kontrolle: Argumente fuer eineEntschulung des Lernens. Frankfurt am Main: Verlag MoritzDiesterweg, 1976. Na atividade já é necessário também reconheceros efeitos análogos que resultam de algumas novas formas deeducação, tal como a educação permanente, e a educação deadultos. Contribuições sobre o tema em: DAUBER, Heinrich, etVERNE, Etienne. L'école a perpétuité. Paris: Seuil, 1977. Para manter-se em dia sobre as publicações, litígios e reivindicações cujo principalobjeto seja a defesa do adulto contra a degradação implícita de suacompetição pela preferência em competidores que consumirameducação de adultos, ver: Second Thoughts, Basic Choices Inc., 1121University Avenue, Madison WI 53715, USA.

4. TERRAZAS, Eduardo. Códice solidaridad para la paz y eldesarrollo. Publicação realizada para a Reunião Especial do Clube deRoma celebrada em Guanajuato, México, em julho de 1975. Ver aslâminas «Consecuencias del modo industrial de producción» e«Características de Ias herramientas de producción para laparticipación de las mayorías». Nuevas Alternativas, Córdoba 23A,México, 7, D.F.

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5. BIERTER, Willy, and WEIZSAECKER, Ernst v. «Strategien zurUeberwindung der Arbeitslosigkeit der Gesellschaft stehentiefgreifende Wandlungen bevor». Technologie and Politik, Vol. 8,agosto 1977, pp. 57-74.

6. Ver a introdução a uma seção especial de Pierre ROSANVALLON emLe Nouvel Observateur, nº 670, 12/18 setembro 1977.

7. YUDELSON, Jerry, and NELSON, Lynn. Right Livelyhood, Work, andAppropriate Technology. Report to the California Office ofAppropriate Technology, 1978, constitui, por suas 150 citações deestudos recentes, um importante repertório sobre a eficácia daintensidade de trabalho na produção.

8. INDIAN SOCIAL SCIENCE RESEARCH COUNCIL. «Commissionon Alternative Development». Para informação. escrever a J. P.NAIK, 1. I. P. A. Hostel Building, Indraprastha Estate, Ring Road,New Delhi I. Índia.

9. Estes ensaios estão por aparecer no México: ILLICH, Ivan. Eldesempleo criador e Energia y equidad. México: Editorial Posada,1978.

10. GORZ. André. «Technique, techniciens et lutte de classes». InCritique de la division du travail. Ed. by A. Gorz. Paris: Editions duSeuil, 1973.

11. DUPUY, J. P. e ROBERT, J., elaboraram La trahison de l'opulence,Paris: PUF, 1976, utilizando sempre o transporte como exemploilustrativo. Jean ROBERT (Apartado 698, Cuernavaca) estáatualmente preparando um volume com observações posterioresassim como uma biblioteca mundial sobre o tema, volume queaparecerá sob o título Les chronophages em 1979, nas Editions duSeuil, Paris.

12. É um intelectual importante e um jornalista socialistacontemporâneo alemão, desconhecido na América. Ver por exemploseu artigo sobre pleno emprego e liberdade em: Technologie andPolitik, nº 8, sept. 1977. pp. 9-15.

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13. Technologie and Polit ik: Das Magazin zur Wachstumskrise,publicado por Freimut DUVE. Rowohlt Verlag, D-2057 REINBEK,Hamburger Strasse 17, Rep. Federal da Alemanha.

14. Para entender o processo histórico por meio do qual a profissãomédica estabeleceu seu domínio sobre as funções orgânicas, ver v.g.: FREIDSON, Eliot. Profession of Medicine: A Study of theSociology of Applied Knowledge. New York: Dodd and Mead, 1971;BLEDSTAIN, Burton. The Culture of Professionalism: The MiddleClass and the Development of Higher Education in Amer ica. NewYork: Norton, 1976. Para a história cultural da medicalização dosórgãos de reprodução feminino, ver: BARKER-BENFIELD, G. J. TheHorrors of the Half-Known Life. New York: Harper Colophone, 1977.Para conhecer os movimentos sobre a desmedicalização, ver:GARTNER, Alan, and RIESSMAN, Frank, eds. Self-Help and Health. AReport. New York: New Human Services Institute, Queens College,CUNY, set. 1976. LEVIN, Lowell; KATZ, Alfred H.; and HOLST. Self-Care; Law Initiatives in Health. New York: Prodist (156 Fifth Ave.,New York 10010); 1976. Também: Belita COWAN. Woman's HealthCare: Resources, Writings, Bibliographies. Ann Arbor: Publishing,1977. (556 Second Street, Ann Arbor, MI 48103).

15. Como por exemplos La panza es primero! e sua continuação ¡Nonconsulte a su médico!. México: Editorial Posada, 1973 e 1976.

16. BOSQUET, Michel (André Gorz). Ecologic et liberté. Paris: EditionsGalilée, 1977, defende a tese de que a política ecológica encarna areconstrução da sociedade civil contra as tendências «pan-estadistas» em favor das quais as próprias evidências sobre oslimites da industrialização se utilizam tanto pela direita como pelaesquerda.

17. Entre as revistas importantes que tratam com um realismoequilibrado a problemática ecológica em termos políticosencontram-se: Ecologist e New Ecologist, 73 Molesworth St.,Wadebridge, Cornwall; U. K.; Environment, 4000 Albemarle St., N. W.,Washington, DC 20016; Co-Evolution Quarterly, Box 428, Sausalito,CA 94965. USA.; Ecodevelopment News, CIRED, 54 Bvd. Raspail,Paris 6. França.

18. Para uma introdução ao estudo deste tema, podia-se recomendarum curso composto das leituras seguintes: EWEN, Stuart. Captains

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of Consciousness: Advertising and the Social Roots of the ConsumerCulture, New York: MacGraw, 1976, contém uma análise explicitados métodos conscientemente aplicados desde 1920 para substituirmercadorias que re-substItuem competições pessoais; SCITOVSKY,Tibor. The Joyless Economy. New York: Oxford University Press,1976, contribui para a análise das razões pelas quais estasubstituição se baseia numa preferência marginal, embora, comoresultado desta preferência, diminua o sentido da satisfação. É umfenômeno que não se explica dentro do paradigma económicoprevalecente; BAUDRILLARD, Jean. Pour une critique de l'économiepolitique du signe. Paris: Gallimard, 1972, introduz a distinção entrea produção de utilidades e a produção de meros signos ousímbolos; HIRSCH, Fred. Social Limits to Growth. Cambridge: HarvardUniversity Press, 1976, examina os custos sociais para a crescentecompetição destes produtos simbólicos, que ele chama «bensposicionais»; DUPUY, Jean Pierre, e KARSENTY, Serge. L'invasionpharmaceutique. Paris: Seuil, 1975, ilustram por meio de uma análiseeconômica do uso de medicamentos na França a predominância dasfunções simbólicas sobre as técnicas; LEISS, William. The Limits toSatisfact ion: An Essay on the Problem of Needs and Commodities.London: Marion Boyars, 1978, explica a demanda crescente para oconsumo simbólico como conseqüência psicológica de umaorientação da sociedade que tem como fim o domínio da natureza.

19. HARPER, Peter, e a revista Undercurrents (275 Finchley Rd.,London, NW3. U.K.) criaram o termo «Tecnologia Radical» paradesignar a luta política contra as técnicas que inevitavelmenteimpõem características de exploração social onde quer que se aplicam,e da luta em favor daquelas outras técnicas modernas que permitemaltos níveis de eqüidade. Um excelente guia para o estudo do tema é:HARPER, Peter. «Directory-Bibliography» in Radical Technology, ed. byGodfrey, BOYLE, and Peter, HARPER. New York: Pantheon, 1977.pp. 267-286. Sobre fontes descentralizadas de energia e seu usoautônomo, ver os excelentes artigos técnicos em Alternative Sourcesof Energy, revista mensal: Route 2, Box 90A, Milaca, MN, 56353. USA;sobre novas formas de independência para habitantes urbanos atravésde tecnologias alternativas, ver Self-Reliance, revista bimensal,publicada pelo Institute for Local Self-Reliance, 1717 - 18th Street,N. W., Washington, DC 20009. USA; para resumos bimestrais daliteratura sobre técnicas que modernizam a auto-suficiência degrupos primários, ver Workbook, Southest Research and InformationCenter, P.C. Box 4524, Albuquerque, NM 87106. USA; para análise dainversão no processo de desenvolvimento em países pobres atravésda descentralização técnica, ver Resurgence, revista mensal, PentreIfan, Celindra, Crymych, Dyfed, Wales, U.K. Provavelmente a forma maissimples de estar em dia com as publicações em todo o campo é ler arevista mensal bibliográfica Rain, 2270 N.W. Irving, Portland, OR

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97210. USA. Uma seleção de suas informações bibliográficas maisimportante dos primeiros anos de sua existência se encontra nabibliografia retrospectiva: deMOLL, Dane; BENDER, Tom;JOHNSON, Steve; et al., eds. Rainbook: Resources for AppropriateTechnology. New York: Schocken Books, 1977. 251 p.

20. SAHLINS, Marshall. Stone Age Economics. Chicago: Aldine, 1972,explica o termo. Em Culture and Practical Reason. Chicago: Univ. ofChicago Press, 1976, trata da criação simbólica da utilidade, elaborando ecriticando o conceito de fetichismo da mercadoria de Marx e argumenta queo modo de produção determina tanto as utilidades como as necessidades.

21. Para quem não lê russo deve consultar CHAYANOV, AlexandrVasiljevich (1888-1930) The Theory of Peasant Economy. Edited byDaniel THORNER, B. KERBLAY and REF SMITH. Homehood: IL.,1966. Para localizar A. V. Chayanov dentro de toda uma tradição,ver: Theodor SHANIN. «The Nature and Logic of the Peasant Economy».The Journal of Peasant Studies, Vol. I, números 1 e 2. pp. 63-80 e pp. 186-206. E também: HARRISON, Mark. «Chayanov and the Economics of theRussian Peasantry». Journal of Peasant Studies, Vol. 2, nº 4, julho 1975. pp.389-417.

22. POLANYI define a economia como «o processo institucionalizado deinteração entre o indivíduo e seu ambiente que leva à oferta contínuados meios materiais para a satisfação de necessidades». Para orientar-sesobre o lucro nas idéias de POLANYI em França, ver uma meia dúzia decontribuições distintas no vol. 29, re 6 de Annales; Economies, Sociétés,Civilisations, Paris: Librairie Armand Colin, nov./dez. 1974. Para umarápida orientação sobre seu pensamento, ver: Karl POLANYI. TheGreat Transformation. New York: Octagon Books, 1975.Especialmente o sexto capítulo: «The Self -Regulating Market and theFictitious Commodities: Labor, Land and Money».

23. PENTY, Arthur. Old World for New: A Study of the Post -IndustrialState. London: G. Allen and Unwin, 1917. Sem dúvida influenciado porHilair BELLOC e G. K. CHESTER-TON, pode-se buscar neste autor, quaseesquecido, uma fonte de George ORWELL em sua critica do sistemaindustrial.

24. BOEKE, Julius H. Economics and Economic Policy of Dual Societiesas examplified by Indonesia. New York: Institute of PacificRelations, 1953, introduz a distinção desde 1910 em sua tese

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doutoral. GEERTZ, Clifford. Agricultural Involution: The Process ofEcological Change in Indonesia. Association of Asian Studies, Monographsand Papers n? II, Berkeley: Univ. of California Press, 1963, baseia-se emgrande parte em BOECKE. Para uma avaliação dos dois, ver:WERTHEIM, W. F. East-West Paralells: Sociological Approaches toModern Asia. Chicago: Quadrangle Books, 1964. A destruição, paranosso tipo de sociedade, pode ser analisada lingüisticamente emBRAYBROKE, David. «Let Needs Diminish that Preferences MayProsper». In Studies in Moral Philosophy, by RESCHER, N. Oxford:Basil Blackwell, 1968. pp. 86-107.

25. Nada ilustra melhor a diferença entre uma reavaliação técnica daatividade individual orientada diretamente para a criação de valoresde uso da qual aqui tratamos, e a remonetarização de Friedman, doque a carta escrita por economistas mexicanos por ocasião doPrêmio Nobel de Friedman, publicada no vol. 8 do Magazin:Technologie and Politik.

26. BECKER, Gary. The Economic Approach to Human Behaviour.Chicago: University of Chicago Press, 1976.

27. LE PAGE, Henri. Antogestion et capitalisme: réponses a l'anti-économie. Paris: Masson, 1978. Vulgarizador oportunista eincompetente de Milton Friedman na Europa, a serviço das relaçõespúblicas de uma associação de empresários. Em contraste, umacontribuição interessante sobre o futuro dos valores de uso foi feitapor um economista tcheco-eslovaco: KOTIK, Jan. Konsum oderVerbrauch: Gesellschaftlicher Reichtum, Gebrauchswert,Nutzungsprozess, Beduerfnisse. Hamburg: Hoffman and CampeVerlag, 1974.

28. WILLIAMS, Raymond. Keywords: A Vocabulary of Culture andSociety. New York: Oxford University Press, 1976.

29. YOUNG, G. M. Victorian England. cit. por R. Williams.

30. BEVERIDGE, William H. Unemployment: A Problem of Industry.London: Longmans, 1909. 35 anos mais tarde, publicou FullEmployment in a Free Society, New York: Norton, 1944, que influiuna declaração da Carta das Nações Unidas, ao dizer que seusestados-membros promoveriam o direito ao trabalho (full

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employment) — que numa sociedade justa deve ter mais praças quedesocupados.

31. ROSENBLAT, Angel. La lengua y la cultura en hispanoamérica. Jena eLeipzig, 1933, cit. em Santamaría, Diccionario de Mexicanismos.

32. ARENDT, H. The Human Condition. Chicago: University of ChicagoPress, 1958, p. 75.

33. SCHELER, Max. «Die Wissensformen and die Gesellschaft.» InGesammelte Werke. by SCHELER, Max. Vol. 82nd ed. Berna, 1960.p. 448 segs.

34. A pesquisa semântica e semiológica relacionada com a atividadeprodutora me parece ser uma contribuição que a polí tica deveexigir da ciência. Existem duas contribuições, ambas no vol. II deEuropaeische Schluesselwoerter. Miinchen: Max Huebern Verlag,1964; KRUPP, Meta. Wortfeld ,Arbeit (Ursprung and Entwicklungdeutscher, franzoesischer and englischer Arbeits-Woerter). pp. 258-286; e GRAACH, Hartmut. Labour and Work. pp. 289-316. Comduas dúzias de contribuições, o informe do DeutscherVolkskundekongress 1964; Arbeit and Volksleben. editado por G.HEILFURTH, Goettingen: Verlag Otto Schartz, 1967, é um excelentepanorama do desenvolvimento da antropologia do trabalho. Hásomente uns primeiros esboços que podem servir de guia para oestudo da história da desocupação. Em alemão existem quatro tesesdoutorais que tratam do tema, ver: SCHMITT, Franz Anselm. Sotffand Motivgeschichte der deutschen Literatur. D. Gruyter, 1965, p.15, n° 46. LECLERC, Jacques. «Vocabulaire social et repressionpolitique: un example indonésien.» Annales, 28, nº 3, mars/avr.1973, pp. 407-428, trata dos campos semânticos dos termos quese referem ao conceito de «trabalho» e analisa a manipulaçãoconsciente destes campos na política da Indonesia. Através deestudos análogos em outros idiomas se poderia chegar a escreverum capítulo importante da história do imperialismo lingüístico.

35. TERRAZAS, E. «La industria de la desocupación.» Conferênciapreparada para a reunião das Nações Unidas sobre os Humanos.Vancouver, Canadá, 1976.

36. MARIEN, Michael. «The New Path of Progress and the Devolution of

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Services: Viewing the Present and Future Without Industrial EraBias.» Prepared for the International Conference on the ServiceSector of the Economy. San Juan, Puerto Rico, June 25-July 1st.,1978. Graduate School of Business. Univ. of Puerto Rico.

37. MERRIL, Richard. Radical Agriculture. New York: Harper Colophon,1976. É uma enciclopédia dos argumentos ecológicos, econômicos epolíticos a favor de novas formas de autonomia regional para aprodução de alimentos, baseada em novas formas de agriculturapor meio de trabalho intensivo.

38. GEORGESCU-ROEGEN, Nicolas. Agrarian Economics: Production andInstitutions. Montclair, New York: Allenheld, Osmun, 1978, aplica aocampo da agricultura sua teoria geral proposta em: The EntropyLaw and the Economic Process. Cambridge, MA: Harvard Univ. Press,1971, p. 19: «Os economistas não parecem entender que, como oproduto do processo econômico é o desperdício, o desperdício é emsi o resultado inevitável deste processo.»

39. ROBERTSON, James. The Sane Alternative: Signposts to a Self-Fulfilling Future. J. H. Robertson, 7 St., Ann's Villas, London, 1978.STEIN, Barry A. Size. Efficiency. and Community Enterprise.Cambridge: Center for Community Economic Development, 1974. Bibliogr.pp. 117-129.

40. KOHR, Leopold. The Overdeveloped Nations: Diseconomies of Scale.New York: Schocken Books, 1978. HENDERSON, Hazel. CreatingAlternative Futures: The End of Economics. New York: BerkeleyWindhover Books, 1978.

41. SCHWARTZ, Eugene S. Overskill: The Decline of Technology in ModernCivilization. Chicago: Quadrangle Books, 1971. Seu argumento éque a divisão do trabalho além de certos umbrais crianecessidades intoleráveis de controle social e educacionais.

42. ILLICH, Ivan. Némesis médica: la expropriación de la salud. México:Moritz, 1978. No centro do argumento (capítulo 6) está a descriçãoda contraprodutividade paradoxal (das internalidades negativas oudesutilidades diretas inexportáveis) de nossos sistemas de produção. Adinâmica na medicina contemporânea serve neste livro para ilustraresta tese sócio-econômica. (Este livro foi lançado no Brasil com o

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título A Expropriação da Saúde. Nêmesis da Medicina. Editora NovaFronteira, Rio, 1976.)

43. McKNIGHT, John. «Professionalized Service and Disabling Help.» InDisabling Professions. London: Marion Boyars, 1977. Comocomplemento, ver: GAYLIN, W7, et al. Doing Good: The Limits ofBenevolence. New York: Pantheon, 1978. Para informação periódica,ver, e. g.: The National Center for Action on Institutions and Alternatives,R. 1024, Dupont Ciecle Building, 1346, Connecticut Ave. NW., Washington,DC 20036. USA.

44. SCOTT, Denny. The Energy Dilemma: What It Means to Jobs.International Woodworkers of America, 1622 N Lombard, Portland, OR97217. USA, insiste junto com os membros de seu sindicato para anecessidade de que sejam os sindicalistas os primeiros areconhecer o erro de estabelecer uma relação entre o volume deempregos ou de salários e a quantidade de energia produzida.HANNON, Bruce. Energy and Labor Demand in the ConserverSociety. Center for Advanced Computation. University of Illinois, Urbana-Champaign, IL: 61801, procura quantificar a expansão do mercado detrabalho na qual está implicada uma redução de energiacirculante; prova que, para cada «quad» de elet rif icação futura,nos Estados Unidos, destroem-se 75 mil empregos adicionais.LAITNER, Skip, ed. Decentralized Energy Systems. Based on researchand work completed by Fredrick M. VARNEY. Washington, DC., CriticalMass., September, 1975. LAITNER, Skip. «The Impact of Solar andConservation Technologies Upon Labor Demand.» Paper presented to theConference on Energy Efficiency, Washington, DC., May 20-21. 1976.

45. BECKER, Gary S. «A Theory of Marriage.» Journal of Political. 81 e82, 1973. SKOLKA, Jiri. «The Substitution of Self-Service Activities forMarketed Services.» Review of Income and Wealth, Ser. 22, n° 4, Dic.,1976. J. P. DUPUY está preparando uma antologia de críticas que seocupam especificamente da refutação de certos conceitosfundamentais nas formulações de Becker.

46. HABERMAS, Jurgen. Technik and Wissenschaft als «Ideologie».Frankfurt am Main: Surkamp Verlag, 1970.

47. BORREMANS, Valentina. Guide to Use-Value Oriented Convivia!Tools, and their Enemies. Draft as of June 1st, 1978. contém cercade 800 referências anotadas, 300 publicações periódicas e 300

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endereços de fontes de informações não usuais. Será publicado em«Tecno-Política» (Aptdo. 479, Guernavaca, México) em novembro de1978 antes da edição comercial. MUMFORD, Lewis. «Authoritarianand Democratic Techniques.» Technology and Culture, 5, n° I, Winter1964. pp. 1-6, em poucas páginas esboçou há IS anos esta distinçãoentre dois tipos de progresso técnico. O livro que mais difundiu adist inção é SCHUMACHER, E. F. Small is Beautiful: Economics as ifPeople Mattered. New York: Harper Torchbooks, 1973.

Este livro foi impresso em off- set na CIA.EDITORA FON -FON E SELETA

Rua Pedro Alves, 60 — CentroRIO DE JANEIRO — RJ

Tipo Editor Ltda.Editorial Alhambra

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Rio de Janeiro — RJ1979