o problema mente-corpo

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Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto Departamento de Psicologia e Educação História da Psicologia II – Prof a Dr a Marina Massimi O Problema Mente-Corpo no Pensamento Ocidental Moderno Trabalho de Conclusão de Disciplina Thiago Favaretto Tazinafo – no. USP: 3461150 endereço eletrônico: [email protected]

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Page 1: O Problema Mente-Corpo

Universidade de São PauloFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

Departamento de Psicologia e Educação

História da Psicologia II – Profa Dra Marina Massimi

O Problema Mente-Corpo no Pensamento Ocidental Moderno

Trabalho de Conclusão de Disciplina

Thiago Favaretto Tazinafo – no. USP: 3461150endereço eletrônico: [email protected]

08/12/05

Page 2: O Problema Mente-Corpo

O problema mente-corpo é uma das questões mais antigas e fundamentais em filosofia e psicologia. Muitos pensadores consideram este o mais importante dos problemas filosóficos, enquanto outros, considerando a mente um domínio do conhecimento que resiste inflexivelmente a uma abordagem científica, sugerem esquecê-lo por ser um problema impossível ou mal-formulado. Grosso modo, o problema mente-corpo consiste em estabelecer o local ocupado pela mente na natureza. Para tal, existe uma classificação geral de teorias que divide a relação mente-corpo em duas categorias mais amplas: o monismo e o dualismo.

Um dualismo é uma teoria ou um sistema filosófico qualquer que postule dois gêneros ou duas substâncias distintas a uma coisa ou a um domínio. Na metafísica, por exemplo, um sistema dualista é aquele que concebe o todo como composto por duas realidades distintas. Em filosofia da mente, uma teoria dualista é aquela segundo a qual mente e corpo são substancialmente diferentes. Em oposição a esse tipo de pensamento, uma teoria ou sistema monista é aquele que estabelece uma única natureza para todo tipo de coisa. Uma teoria monista da mente, portanto, postula que mente e corpo são manifestações de uma mesma natureza.

As propostas dualistas do problema mente-corpo diferem, basicamente, quanto à natureza da mente, estando geralmente atreladas a posicionamentos teológicos. São pertinentes, nesse âmbito, as diversas concepções de mente enquanto alma, razão, espírito et coetera, de acordo com as diferentes definições atribuídas a estes ao longo da história.

Por outro lado, doutrinas monistas diferem entre si de forma mais radical. O fisicalismo, por exemplo, é a doutrina segundo a qual tudo o que existe é físico, que não só se opõe ao dualismo mente-corpo mas, também, a um monismo de tipo idealista. Um idealismo é qualquer doutrina que postule a mente como realidade fundamental.

Apesar de sua natureza filosófica, o problema mente-corpo, inevitavelmente, também é formulado nos domínios científico e teológico. Em ciência moderna, contudo, devido a seu caráter parcimonioso, predominam formulações monistas (e isso não significa que posições monistas sejam, necessariamente, parcimoniosas). No âmbito do pensamento religioso, contudo, ambos os pontos de vista têm sido defendidos por muitos pensadores ao longo de toda a história ocidental das religiões. Aqui, convém enfatizar, portanto, que os conceitos de alma e espírito não se enquadram necessariamente numa concepção teológica dualista. Sendo assim, é de se compreender como uma compreensão científica da natureza não se contrapõe, necessariamente, a convicções religiosas, como freqüentemente – e muito infelizmente – se supõe.

Devido à enorme extensão histórica do debate, no presente ensaio serão apresentadas brevemente apenas algumas idéias e, ainda assim, somente a partir da formulação moderna do problema, atribuída a René Descartes.

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O Dualismo Cartesiano

Em suas Meditações Metafísicas, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) propôs a forma de dualismo mais influente, conhecida como interacionismo.

Em suas duas primeiras meditações, Descartes usa sua dúvida metódica para fundamentar o alcance do conhecimento na razão. Primeiro, há o reconhecimento de que os sentidos enganam: podemos confiar em nossa percepção apenas na maioria das vezes e para tarefas cotidianas; entretanto, no exercício filosófico e para a produção de conhecimento científico, não podemos nos fundamentar em nossos sentidos e em nossa experiência. O mundo pode ser uma ilusão, um sonho. Portanto, podemos (e devemos) duvidar da própria existência do mundo. Entretanto, de uma forma ou outra, não podemos negar que nós existimos, visto que duvidamos. Logo, porque pensamos, existimos (cogito ergo sum). Sendo assim, o dualismo cartesiano aparece como implicação da dúvida metódica:

- Posso duvidar que meu corpo existe.- Não posso duvidar que existo.- Logo, minha mente é algo diferente de meu corpo.

Assim, mente e corpo são concebidos como que constituídos de substâncias essencialmente distintas e independentes, mas que interagem entre si.

O raciocínio em três etapas acima é uma aplicação da chamada Lei de Leibniz, que estabelece que, se A é igual a C e B é igual a C, então A e B são iguais; por outro lado, se A é igual a C, que é diferente de B, então A e B são diferentes. Entretanto, o modo como Descartes aplica tal raciocínio não procede porque a Lei de Leibniz não se aplica a julgamentos de razão. Em outras palavras, um objeto existe como tal e é independente de você duvidar dele ou mesmo ignorar sua existência. É como a enquete, um tanto quanto tola, que apareceu num noticiário esportivo há uns dois anos: “Você considera Schumacher imbatível?”. É difícil imaginar que Schumacher tenha mudado sua performance em função do resultado da pesquisa. Um exemplo retirado do livro de Cláudio Costa Filosofia da Mente ilustra melhor o problema: Maria (serviçal de Don Diego/Zorro) pode duvidar que Zorro existe; Maria não pode duvidar que Don Diego existe; logo, Don Diego não é Zorro.

No mais, Descartes não consegue explicar, afirmando que devemos aceitar como mistério, uma série de problemas de seu modelo interacionista: como explicar, por exemplo, o fato de drogas psicotrópicas afetarem o desempenho da mente? Como explicar que doenças no sistema nervoso possam comprometer a atividade mental? Como se daria a interação entre corpo e mente, afinal? Essas e outras objeções parecem deixar clara a inadequação do dualismo interacionista com nossa visão de mundo moderna.

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Pressuposto Reducionista e o Determinismo da Mente

Reducionismo científico é o pressuposto básico das ciências naturais.

Entenda-se por reducionismo, num sentido ontológico, a idéia de que tudo que existe em nosso universo físico é feito de um número limitado de entes físicos elementares que se comportam de maneira regular, dotados de propriedades intrínsecas como spin, carga e massa, de forma que todo evento natural seja emergente das interações entre estes seres elementares.

Num sentido metodológico, o reducionismo é o princípio de que toda explicação científica deve sempre ser reduzida à forma mais simples possível, descrevendo uma classe de fenômenos lançando mão de um mínimo de variáveis suficiente para descrever um fenômeno com o máximo de informação.

Essas duas acepções, ontológica e metodológica, são os elementos básicos do pensamento reducionista enquanto abordagem necessária ao estudo científico da natureza.

Refletindo sobre o problema mente-corpo do ponto de vista das ciências naturais, seguindo, portanto, o pensamento reducionista, a conclusão monista é inevitável. Mais ainda, esta implica um determinismo da natureza e, conseqüentemente, um determinismo psíquico, conforme se pretende explicar adiante. Trata-se, porém, da necessidade de um método e não, de forma alguma, de uma conclusão metafísica sobre o homem e as coisas todas. Ou seja, o reducionismo não deve nunca ser confundido com o materialismo. A metafísica foge à alçada da ciência, não por incompetência desta mas simplesmente porque pertence a outra esfera de pensamento e atende a outras necessidades.

O determinismo é implicação direta do pensamento reducionista. * Em sua formulação clássica é chamado de mecanicismo ou determinismo laplaciano, definido pelo próprio Laplace como se segue:

“Uma inteligência que, para um instante dado, conhecesse todas as forças de que está animada a natureza, e a situação respectiva dos seres que a compõem, e se além disso essa inteligência fosse ampla o suficiente para submeter esses dados à análise, ela abarcaria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do Universo e os do mais leve átomo: nada seria incerto para ela, e tanto o futuro como o passado estariam presentes aos seus olhos. O espírito humano oferece, na perfeição que foi capaz de dar à astronomia, um pequeno esboço dessa inteligência.”

Uma eventual objeção ao determinismo de Laplace seria com relação a uma suposta negação do conceito de livre-arbítrio, já que ele não admite aleatoriedade. Entretanto, não há incompatibilidade alguma entre aleatoriedade e determinismo, se considerarmos como aleatório um evento sobre o qual dispomos

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de informação incompleta. Assim, uma jogada de dados, apesar de poder ser determinada previamente pelas leis da mecânica, é considerada aleatória em situações cotidianas, nas quais não estamos realizando medições.

Ainda, o conceito de livre-arbítrio permanece intacto no determinismo laplaciano: supondo que o demônio de Laplace queira fazer predições sobre a própria conduta, seus cálculos – por maior que seja essa inteligência – depreenderiam uma certa quantidade de tempo - por mínima que fosse - durante o que seu próprio estado já teria sido alterado, e a tal “inteligência” – o chamado “demônio de Laplace” - poderia no máximo predizer o que já lhe ocorrera, instantes atrás. Se desejasse predizer seu destino num futuro distante, essas alterações que ocorrem durante o cálculo provocariam mudanças enormes na configuração do sistema do qual faz parte, e sua predição fracassaria.

À luz da física moderna, de acordo com o teorema de Bell e a série de experimentos EPR a partir da década de 70, os estudos mostram que o universo é não-local: o que ocorre numa dada região do universo afeta todo o restante, instantaneamente, independentemente da distância (comparar com a desigualdade de Heisenberg). Assim, todos os entes físicos do universo estão amarrados como um todo, a existência de cada um determinando e sendo determinada pelas demais. Segue que, pelo paradoxo EPR, tudo é pré-determinado em nosso universo (aqui, a mesma consideração sobre o livre arbítrio pode ser feita).

O determininismo psíquico do pressuposto reducionista, contudo, é mais um exercício filosófico que uma prática científica em si, haja vista a impossibilidade de qualquer identificação e controle de variáveis dos fenômenos mentais. Ironicamente, a teoria da mente que mais privilegia a abordagem determinista é a psicanálise, que não é, propriamente, uma ciência.

Abordagem que privilegia a criatividade: holismo

O termo holismo foi cunhado em 1926 por Jan Smuts, então governador britânico de uma província ao sul da Índia. Um holismo é uma doutrina ou sistema que privilegia o todo em detrimento de suas partes. O pressuposto de toda teoria holística é a emergencialidade, ou o surgimento de propriedades de um sistema integrado que não são partilhadas por seus componentes: “o todo é maior que a soma das partes”. É por isso chamado às vezes de não-reducionismo.

É interessante notar que o termo foi criado por um ocidental num país de cultura oriental. De fato, a proximidade de teorias holísticas com antigas tradições orientais reflete a tendência moderna a importar idéias de um sistema de pensamento e aplicá-lo indevidamente em uma área a que não diz respeito, tal

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qual – mas de modo inverso – fizeram os positivistas com estudos sociais e psicológicos no começo do século passado.

Os teóricos do holismo em psicologia, medicina alternativa e outras áreas advogam pela mudança do paradigma reducionista em favor do paradigma holístico. A alegação é de que o reducionismo é ultrapassado e não dá mais conta de tratar sequer da física moderna por ser esta não-linear e não-determinística.

Primeiramente, analisemos o fenômeno de emergencialidade. O fato de uma propriedade emergir em um sistema em conseqüência da interação de suas partes é conceito bem conhecido e amplamente aceito por todos os cientistas naturais. Trata-se, aqui, de atribuir aos reducionistas idéias que eles próprios nunca defenderam. Pois se, como querem, os reducionistas de fato ignorassem a emergencialidade, então o reducionismo somente poderia tratar de física das partículas elementares, se tanto. Sabemos, contudo, que não é o caso. No mais, como teriam sequer chegado ao conhecimento sobre partículas elementares, não fosse estudando as propriedades emergentes das relações entre as mesmas?

Além disso, algo ignorado pelos holistas é que a soma das partes também é maior que o todo. Óbvio o suficiente, países não apresentam spin, carga elétrica, personalidade e capacidade de auto-reprodução.

Parece que o holismo faz mais sentido enquanto crítica ao velho racionalismo cartesiano e não aos pressupostos da ciência moderna. Por outro lado, talvez a popularidade atual de que gozam os teóricos do holismo seja mais uma rejeição ao materialismo que ao método científico em si. Mais uma vez, portanto, aparece a falácia epistemológica de misturar convicções metafísicas com ciência e religião. De qualquer forma, independente de quaisquer outros usos que ademais tenha, o holismo não se sustenta enquanto paradigma científico e não deve ser considerado como tal.

As Qualia

Qualia é o nome dado a qualquer qualidade fenomênica experienciada, tais como sensações de dor, tato, impressões visuais e sonoras, enfim, experiências sensoriais em geral. Conhecer a sensação de uma experiência é conhecer suas qualia. Devido à impossibilidade de tornar as qualia cognoscíveis num âmbito inter-subjetivo, sendo, portanto, essencialmente não-objetiváveis, elas constituem a maior objeção às filosofias científicas da mente. O behaviorismo, o fisicalismo e o funcionalismo, por exemplo, não conseguem explicar as qualia.

Entretanto, talvez a existência das qualia como propriedades irredutíveis a fenômenos cerebrais seja apenas uma confusão filosófica. De fato, o modo com que cada coisa se apresenta é particular e irredutível. Porém, não quer dizer que

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dois modos de apresentação sejam correspondentes a coisas diferentes. Ao contrário, cada coisa pode se apresentar de diversas maneiras e nem por isso mudar em essência. Podemos, por exemplo, reduzir a luz a “ondas eletromagnéticas de determinado comprimento e freqüência” sem perder a possibilidade de caracterizá-la de forma menos fundamental e precisa como, por exemplo, “luminosidade que torna as coisas visíveis”. Nesse sentido, talvez o conceito de qualia seja mais um aspecto semântico de um problema mal formulado que uma objeção em si às teorias científicas da mente.

Conclusões

Pondo de maneira clara: não há conclusões.

Segundo os filósofos contemporâneos Colin McGinn e Thomas Nagel, o problema mente-corpo jamais será resolvido, pois nosso aparato cognitivo, moldado pela seleção natural e, como tal, próprio para realizar tarefas triviais de exploração para adaptação no ambiente circundante, não dispõe de recursos suficientes para lidar com tamanho problema. Cético, McGinn faz uma analogia a orangotangos tentando descobrir a teoria da relatividade para ilustrar a impossibilidade de resolvermos o problema mente-corpo. Nagel insiste na existência dos qualia como indício de que a consciência é um fenômeno irredutivelmente subjetivo. Dessa forma, o problema fundamental, de natureza metafísica, é tornar compreensível a possibilidade de existência de fenômenos subjetivamente irredutíveis em um universo totalmente físico. Desnecessário dizer que nem todos consideram o problema tão difícil assim.

Quanto ao exemplo dos orangotangos, podemos recorrer à citação de Wittgenstein de que nos propomos somente os problemas que são, a nós, passíveis de solução. Enquanto, por um lado, os orangotangos obviamente seriam incapazes de descobrir a teoria da relatividade, tampouco um deles viria a pensar sobre as conseqüências de um orangotango viajar próximo à velocidade da luz.

No mais, os filósofos John Searle e Daniel Dennett sugerem que talvez a própria consciência não seja mais que um conceito ilusório que tenda a desaparecer conforme progridem os estudos em neurosciência. Dennett lembra a doutrina do vitalismo dos séculos XVII e XVIII, segundo a qual a existência de vida orgânica era atribuída a uma energia vital específica, chamada por vezes de élan vital, enteléquia ou magnetismo animal. Com o crescimento da biologia, contudo, essa idéia de “substância da vida” foi completamente abandonada. Searle e Dennett admitem a possibilidade de vir a acontecer o mesmo com a idéia de consciência. Afinal, a neurosciência ainda está no berçário mas, talvez, conforme acumulemos conhecimento sobre o mapeamento e funções do sistema nervoso, o conceito de consciência desapareça “como as brumas da manhã”.

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Referências e Fontes:

BLACKBURN, S.: Dicionário Oxford de Filosofia (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997)

COSTA, C.: Filosofia da Mente (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor., 2005)

MASSIMI, MARINA.: “A Questão Mente-Corpo nas Doutrinas dos Primeiros Séculos da Cultura Cristã”, in História da Psicologia (São Paulo, EDUC, 1986)

* extraído de meu texto “O Determinismo na Física”