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Artigo de Revisão Bibliográfica
Mestrado Integrado em Medicina – 2013/ 2014
O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE
ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
Marilyne dos Santos Cancela
Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto
Rua de Jorge Viterbo Ferreira nº228, 4050-313 Porto, Portugal
Telefone: +351 22 206 22 00
e-mail: [email protected]
Porto, 2014
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O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE
ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
Dissertação de Candidatura ao grau de Mestre em Medicina, submetida ao Instituto de
Ciências Biomédicas de Abel Salazar da Universidade do Porto.
Autor – Marilyne dos Santos Cancela
Categoria – 6º ano Mestrado Integrado em Medicina
Afiliação – Instituto de Ciências Biomédicas de Abel
Salazar
Orientador – Professora Doutora Teresa Maria Salgado
Magalhães
Categoria – Professora Catedrática Convidada
Afiliação – Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar
da Universidade do Porto.
Coorientador – Mestre Sofia Manuela Lalanda Maia
Frazão
Categoria – Assistente Convidada
Afiliação – Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar
da Universidade do Porto.
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Agradecimentos
À minha orientadora, Professora Teresa Magalhães, pelo auxílio na escolha do
tema e a sua disponibilidade.
À minha coorientadora, Mestre Sofia Frazão, pela cooperação e apoio prestado.
A todos os que me têm acompanhado ao longo dos últimos anos e fazem parte da
minha vida.
O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
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Resumo
Introdução: A violência exercida contra as pessoas idosas tem aumentado
significativamente, pelo menos em termos de visibilidade, sendo considerada pela
Organização Mundial de Saúde um dos principais problemas de saúde pública no mundo.
O abuso do idoso é um problema multifatorial e de elevada complexidade, que requer
uma equipa multidisciplinar para a sua abordagem e intervenção.
Objetivos: Fazer um estudo de revisão desta problemática, principalmente em Portugal,
salientando o papel do médico na deteção de casos de abuso de idosos e a sua importância,
aprofundando o conhecimento sobre a dimensão e dinâmica deste grave problema de
saúde pública.
Desenvolvimento: Portugal é um dos países europeus onde parece haver mais casos de
idosos, vítimas de violência. O aumento da esperança média de vida a par da diminuição
das taxas de natalidade e, consequentemente, o decréscimo das faixas etárias mais jovens,
fragilizou os sistemas de proteção social, tornando mais vulnerável a população idosa. O
abuso exercido contra os idosos pode assumir diversas formas como físico, psicológico,
financeiro e sexual, a par com os casos de negligência, o que dificulta o seu diagnóstico.
Ao longo dos anos, têm sido desenvolvidos questionários que auxiliam o médico na
identificação destas formas de violência.
Conclusão: O papel do médico passa não só por denunciar as situações de abuso de que
tenha conhecimento mas, muito particularmente, por as detetar, incluindo as de risco
potencial, para assim prevenir atos de abuso ou negligência.
Palavras-chave: Idoso; Vítima; Maus-tratos; Abuso; Violência doméstica.
O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
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Abstract
Introduction: Violence against older people has increased significantly, at least in terms
of visibility, being considered by the World Health Organization a major public health
problem worldwide. The abuse of elderly people is a multifactorial and highly complex
problem that requires for its approach and intervention a multidisciplinary team.
Aims: Make a review study about this thematic, mostly in Portugal, highlighting the role
of the physician in detecting cases of elder abuse and its importance, deepen the
knowledge about the dimension and dynamics of this serious public health problem.
Development: Portugal is one of the European countries where there seems to be more
cases of elderly people, who are victims of violence. The increase of the average life
expectancy along with the reduction of birth rates, brought, consequently, the decrease of
younger age groups. These factors have weakened systems of social protection therefore
older people became more vulnerable. Elder abuse can take many forms such as physical,
psychological, financial and sexual along with cases of neglect, which makes the
diagnosis more difficult. Over the years, questionnaires have been developed that help
the physician to identify these forms of violence.
Conclusion: The physician's role includes not only to report the abuses of which he is
aware, but also, and most particularly, to detect these cases, including the ones of potential
risk, so as to prevent acts of abuse or neglect.
Keywords: Elder; Victim; Maltreatment; Abuse; Domestic Violence.
O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
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Índice
1. Introdução.................................................................................................................. 7
2. Conceito de abuso ..................................................................................................... 9
3. Prevalência .............................................................................................................. 11
4. Fatores de risco........................................................................................................ 12
5. O papel do médico................................................................................................... 15
5.1. Prevenção primária .......................................................................................... 16
5.2. Prevenção secundária ....................................................................................... 17
5.3. Intervenção ....................................................................................................... 19
6. Conclusão ................................................................................................................ 21
7. Referências bibliográficas ....................................................................................... 22
Anexos ............................................................................................................................ 28
Anexo 1 – Questionário para despiste de maus-tratos no idoso ................................. 28
Anexo 2 – Elder Abuse Suspicion Index (EASI)........................................................ 29
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1. Introdução
A violência contra os idosos parece constituir um fenómeno crescente em
Portugal, como em todo o mundo. Em breve, o número de pessoas idosas ultrapassará o
número de crianças e haverá cada vez mais idosos com idade mais avançada (1).
Nos últimos 20 anos, o envelhecimento da população tem sido tema preocupante
em várias conferências a nível mundial, nomeadamente a International Conference on
Population and Development, em 1994, que reconheceu a importância social e económica
desta evolução (2). Em 2013, a United Nations Commission on Social Development
(CSD) fez uma revisão do Madrid Plan of Action on Ageing, com o objetivo de promover
a integração social da população idosa, levando a uma proteção dos seus direitos para um
envelhecimento saudável (3).
A maioria dos países encontra-se com um envelhecimento acentuado da
população devido a uma diminuição da mortalidade e, principalmente, devido à
diminuição da fertilidade. Em 1990, a fração da população mundial com 60 anos ou mais
era de 9.2%, tendo aumentado para 11.7% em 2013, e prevê-se que este valor suba até
21.1% em 2050. Atualmente, há 841 milhões de pessoas idosas e a tendência será a
conversão deste número em 2 biliões em 2050 (4).
Além de a população estar a envelhecer na sua globalidade, outro problema que
se coloca é o facto de a própria população idosa estar também a envelhecer. Em 2013, a
fração de população idosa com mais de 80 anos era de 14%, estimando-se que em 2050
seja de 19% (4).
Em Portugal, esta situação não fica à margem. Segundo os resultados definitivos
dos Censos de 2011, a população idosa (considerando pessoas com 65 anos ou mais)
aumentou de 16% (em 2001) para 19%, tendo assim o índice de envelhecimento
aumentado de 102 para 128, o que significa que para 100 jovens há 128 idosos (5).
Segundo o artigo 72º da Constituição da República Portuguesa: «1. As pessoas
idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar
e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento
ou a marginalização social. 2. A política de terceira idade engloba medidas de carácter
económico, social e cultural tendentes a proporcionar às pessoas idosas oportunidades de
realização pessoal, através de uma participação ativa na vida da comunidade.»
Todavia, o aumento da longevidade que acompanha as sociedades atuais, é
acompanhado de situações de fragilidade e maior vulnerabilidade. O envelhecimento da
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população e o aumento da esperança média de vida são consequência do sucesso do
investimento na saúde pública e do desenvolvimento económico e social. Assim, este
fenómeno mundial, além de uma vitória na história da humanidade, acarreta também
novos desafios sociais. Com o aumento da população inativa há, inevitavelmente, uma
reestruturação social, sendo da responsabilidade das camadas mais jovens, a
sustentabilidade das gerações mais velhas (6).
Uma grande parte das pessoas com 65 anos, ou mais, tem pelo menos uma doença
crónica e algumas comorbilidades associadas que podem, ou não, originar incapacidade
física (6).
Além desta incapacidade física, pode ainda associar-se um problema de extrema
importância - a diminuição/perda das capacidades cognitivas (7). A diminuição das
capacidades físicas aliada a alterações psicológicas (afetivas e cognitivas) que
acompanham a idade, tornam este grupo etário mais vulnerável e dependente de terceiros.
Estas incapacidades e a dependência para as atividades de vida diária, deixa os idosos
mais expostos a situações conflituosas e de maus-tratos (aqui incluídos os abusos e a
negligência) (8).
O reconhecimento dos maus-tratos contra idosos exercidos por familiares e em
ambiente institucional, como um grave problema de saúde pública, é relativamente
recente. Foi descrito pela primeira vez no Reino Unido, nos anos 70 e, apesar de ter sido
reconhecido e mencionado na imprensa a partir de meados dessa década, é ainda o tipo
de violência humana menos estudado (9).
Apesar da denúncia de mau-trato ser obrigatória por parte dos médicos (entre
outros), a maior parte dos casos não são reportados. Devido ao aumento progressivo da
representatividade populacional deste grupo etário e do fenómeno dos maus-tratos,
importa investir em estudos sobre abuso e negligência nos idosos, para que os
profissionais de saúde atuem com mais eficiência na sua prevenção e deteção (10).
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2. Conceito de abuso
Ao longo das últimas décadas, várias foram as tentativas de definir o abuso de
idosos. A American Medical Association, em 1987, propôs a seguinte definição para
abuso: «qualquer ato ou omissão que resulte em lesão ou ameaça de lesão à saúde e bem-
estar da pessoa idosa» (11).
Em 1995, a definição avançada pela Action on Elder Abuse (12) no Reino Unido
e adotada pela International Network for the Prevention of Elder Abuse (1997) considera
que «o abuso de idosos é um ato simples ou repetido, ou ausência de ação apropriada, que
cause dano ou sofrimento a uma pessoa idosa e que ocorre num relacionamento em que
há uma expectativa de confiança» (13, 14).
Em 2002, o World Report on Violence and Health (15) reiterou esta definição,
assim como o European Report on Preventing Elder Maltreatment em 2011 (16), sendo
atualmente a definição mais consensual e usada em várias partes do mundo.
Contudo, a tendência atual é para considerar como abuso uma prática de mau-trato
por comissão, enquanto um mau-trato por omissão constituirá uma forma de negligência.
Em Portugal, considera-se uma pessoa idosa aquela que tem idade igual ou
superior a 65 anos; no entanto, diversas organizações, como a World Health Organization
consideram-nas a partir dos 60 anos.
De acordo com o artigo 152º - A do Código Penal (Maus-tratos), «quem tendo ao
seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direção ou educação, ou a
trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade,
deficiência, doença ou gravidez, e: a) lhe infligir (…) maus-tratos físicos ou psíquicos
(…) ou a tratar cruelmente; b) a empregar em atividades perigosas, desumanas ou
proibidas; ou c) a sobrecarregar com trabalhos excessivos; é punido com pena de prisão
de 1 a 5 anos (…)». Se o mau-trato contra o idoso for intrafamiliar, passa-se a tratar como
um caso de violência doméstica, segundo o artigo 152º do Código Penal.
Os maus-tratos de idosos podem assumir diversos subtipos, como físico,
emocional, financeiro ou sexual e ainda a negligência (passiva, ativa ou auto negligência)
(17, 18). O abuso pode ainda ser exercido na comunidade ou a nível institucional (18).
Os maus-tratos sobre este grupo etário podem ocorrer em casa e ser exercido pelo
cônjuge, filhos ou outros cuidadores.
O National Center of Elder Abuse, em 1998, categorizou e definiu os diferentes
tipos de abuso (19, 20, 21). Assim, entende-se como abuso físico o ato intencional com
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uso da força física que pode ou não resultar em lesões corporais e incapacidade, mas que
causa dor e sofrimento físicos. São exemplos de abuso físico, agredir (bater, empurrar,
agarrar) ou restringir o acesso a determinado espaço, amarrando a pessoa; os castigos
corporais e as alterações na medicação também estão incluídas nesta categoria (22, 23).
O abuso sexual refere-se ao contato sexual de qualquer tipo, sem consentimento da pessoa
idosa (20, 21). O abuso psicológico considera-se o ato intencional (verbal ou não verbal)
que diminui a identidade, a autoestima e a dignidade do idoso; incluem-se os insultos,
ameaças, humilhações, desprezo, ignorar a pessoa, persegui-la ou isolá-la (20, 21, 22, 23).
A apropriação ou uso ilegal de dinheiro, bens ou propriedades caraterizam o abuso
financeiro; são também exemplos a retirada de dinheiro da conta bancária, sem
consentimento e assinatura de cheques ou outros documentos financeiros (20, 21, 22, 23).
Quando há ausência intencional do fornecimento de cuidados ao idoso estamos
perante um caso de negligência ativa. Negar cuidado, principalmente àqueles que
possuem incapacidades físicas ou mentais, não o acompanhar ao médico, isolar o idoso
ou não lhe proporcionar roupas adequadas são exemplos de negligência (22, 23). Se
porventura a negligência provém de uma ineficácia não intencional da prestação de
cuidados, por falta de competências ou ignorância do cuidador, trata-se de negligência
passiva. A autonegligência também é frequente e resulta de conduta imprópria do idoso
que ameaça a sua saúde ou bem-estar. Défices cognitivos e a falta de suporte adequado
podem levar a autonegligência quando o idoso deixa de conseguir cuidar de si próprio,
deteriorando-se o seu estado físico e social. A «síndrome de Diógenes» é o extremo deste
tipo de negligência; as suas características incluem isolamento social, acumulação de lixo,
falta de vergonha e recusa de ajuda, ocorrendo geralmente com pessoas que habitam
sozinhas (18).
Os idosos que se encontram institucionalizados podem ter um risco aumentado de
serem vítimas de maus-tratos, uma vez que apresentam, usualmente, maior incapacidade
e dependência física de terceiros (22). O abuso institucional é aquele que ocorre em
centros de dia ou lares permanentes para idosos e pode ser exercido quer por visitas, por
outros residentes e pelos cuidadores responsáveis (18).
Os auxiliares costumam ter mais propensão para maltratar os idosos do que os
enfermeiros, pois são também o grupo que mais tempo com eles contacta. Os abusos mais
exercidos sobre os idosos neste contexto são as restrições excessivas, a sobre ou
submedicação, agressões verbais e também o abuso financeiro. Muitos são ainda
infantilizados, ignorados e desprovidos de privacidade (8)
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O stresse do trabalho e o burnout, aliados a fracas condições de trabalho são
apontados como os fatores principais para os auxiliares ou cuidadores exercerem os
abusos. A dificuldade de relacionamento com outros residentes, a escassa comunicação,
a agressividade ou diferenças culturais podem ser a base de abusos entre residentes (24).
3. Prevalência
Em alguns países, os dados sobre a prevalência dos maus-tratos nos idosos,
permitiu conhecer a sua magnitude, apresentando, contudo, uma grande variação nas
estimativas. Existem diversos estudos sobre esta temática, mas o facto de se utilizarem
metodologias diversas com bases de dados populacionais diferentes (regionais ou
nacionais), período de tempo considerado (últimos 3 meses ou 12 meses, por exemplo) e
grupos etários alvo (mais de 60 anos ou mais de 65 anos), torna difícil comparar dados
para chegar a um consenso acerca do tipo e prevalência desta forma de violência sobre as
pessoas.
Há ainda algum abuso que é denunciado, visível e que participa das estatísticas;
mas o mais preocupante é o número de casos não denunciados. O National Center of
Elder Abuse realizou em 1996 um estudo, mostrando que cerca de 551.000 pessoas de 60
anos ou mais vivenciaram abusos, negligência ou autonegligência em ambientes
domésticos (19). Destes casos, apenas 21% (cerca de 115.000) foram notificados (19, 20).
Estudos mais recentes sobre incidência mostraram que 7.6% a 10% dos participantes do
estudo sofreram abuso (25, 26).
O projeto ABUEL (Abuse and Health Among Elderly in Europe), um estudo
europeu sobre violência nos idosos, incluiu pessoas idosas residentes em Portugal. Foi
usada uma amostra de 656 pessoas idosas com idades compreendidas entre os 60 e os 84
anos, residentes em domicílios particulares da área urbana do Porto e que sabiam ler e
escrever. Este estudo mostrou que o tipo de violência mais prevalente foi a psicológica
(21.9%), seguida da violência financeira (7.8%) (27).
Dados estatísticos da APAV relativos ao ano de 2009, revelam que 642 idosos
foram vítimas de maus-tratos, representando 8.4% do total de 10132 casos de violência
registados (28).
Para perceber a evolução deste grave problema de saúde pública, importa
conhecer os dados mais recentes. Em 2012, esta associação registou 8945 vítimas de
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abusos, das quais 9% eram pessoas idosas, com mais de 65 anos de idade, ou seja, 809
idosos vítimas de crime denunciado (29). A faixa etária com mais vítimas idosas, em
2012, foi a faixa entre os 65 e os 70 anos de idade (32.9%). Entre os 75 e os 80 anos,
houve registos na ordem dos 27%. Os dados da APAV apontavam para 80.6% de vítimas
femininas, estando estas mais sujeitas a violência física e psicológica. Um estudo levado
a cabo no Norte de Portugal sobre ofensas sexuais contra idosos demonstrou que as
mulheres também são mais vítimas de abusos sexuais do que os homens. Mesmo assim,
este tipo de abuso não revelou ser muito comum (0.6%) (30).
A maioria das pessoas idosas vítimas de crime tinha um tipo de família nuclear
com filhos (34.4%), seguindo-se as pessoas que viviam sozinhas com uma percentagem
de 18% (29).
Em 39% das vítimas idosas reportadas à APAV, em 2012, a relação entre autor
do crime e vítima era a de pai/mãe. Em 26.9% das situações a relação entre vítima e autor
do crime era a de cônjuge. A residência comum do abusador e da vítima foi o local onde
se verificou 54.4% dos crimes (29).
Relativamente ao nível de ensino da vítima os dados da APAV revelam que a
ausência de qualquer habilitação literária (não saber ler ou escrever) gera mais vítimas de
violência (7%) do que aqueles que têm 4 anos de escolaridade ou mesmo o ensino superior
(3.5 % para cada um) (29).
O projeto Envelhecimento e Violência (2011-2014) realizado em Portugal,
estimou que o problema dos maus-tratos tenha afetado, entre outubro de 2011 a outubro
de 2012, 314291 pessoas com mais de 60 anos a residir em Portugal (31).
4. Fatores de risco
A violência não depende só de um fator, mas da combinação de vários fatores que
aumentam a probabilidade de ocorrência dessa violência, pois vulnerabilizam o idoso
(32). Por isso, a complexidade dos maus-tratos e os vários fatores associados, levou a que
os investigadores usassem o modelo ecológico para relacionar todas as componentes de
risco (33, 34, 35), o qual foi aplicado pela primeira vez ao estudo do abuso infantil e
negligência. Este modelo pressupõe uma hierarquia de 4 níveis: individual,
relacionamento, comunidade e sociedade (36).
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Relativamente aos fatores individuais da vítima, o risco de abuso parece ser maior
no sexo feminino (37, 38, 39). O estudo dos maus-tratos de idosos em 10 países revelou
que 60-75% das vítimas eram mulheres (40). Num estudo realizado no Reino Unido,
demonstrou-se que as mulheres também denunciam mais o abuso do que os homens
(3.8% para 1.1%, respetivamente) (41). As mulheres parecem estar sujeitas a violência
física e emocional mais severa (42).
Há também um risco acrescido de maus-tratos em pessoas com mais de 74 anos.
Um estudo realizado em Espanha mostrou que a prevalência dos maus-tratos em pessoas
com mais de 74 anos era de 1.1%, descendo para 0.6% em idosos entre os 65-74 anos
(43). No Reino Unido, concluiu-se que a negligência era mais acentuada em mulheres
com mais de 85 anos (41). O abuso financeiro também parece ser mais prevalente à
medida que se avança na idade (44). Na Irlanda, um estudo revelou que o abuso era duas
vezes maior na faixa etária acima dos 70 anos (50).
Uma excessiva dependência por parte do idoso, de um cuidador para realizar as
suas atividades de vida diárias por incapacidade física ou intelectual, é fator de risco para
maus-tratos (45, 46). Os idosos com défices cognitivos, doença de Alzheimer ou outro
tipo de demências têm, por isso, uma prevalência mais elevada (14%) do que a população
em geral (47). Três estudos recentes revelaram que 34-62% de idosos com algum tipo de
demência foram vítimas de abuso pelos seus cuidadores. Idosos com sintomas de
ansiedade, depressão, pensamentos suicidas, tristeza, vergonha, culpa e isolamento social,
são mais propensos a abusos, principalmente de natureza emocional (48).
Se o idoso possuir uma personalidade que seja exigente e provocadora, há maior
probabilidade da relação ser instável com o cuidador, logo maior o risco de sofrer algum
tipo de violência (49).
Para além dos fatores de risco do idoso, são também preponderantes as
caraterísticas individuais do abusador. As mulheres estão mais propensas a serem
negligentes, enquanto os homens cometem com mais frequência maus-tratos físicos,
sexuais e mesmo homicídio (50). Um estudo no Reino Unido mostrou que 80% dos
abusos eram perpetrados por homens (51).
Cuidadores com problemas de abuso de álcool ou drogas, tendem a ser mais
violentos (37, 52); 19% dos idosos na Irlanda revelaram que os abusadores eram
dependentes de álcool (50). Outros estudos demonstraram que o uso de substâncias
psicoativas, bem como de álcool, estão associados a maus-tratos físicos severos e
sustentados (53, 54). A depressão é a situação mais associada a pessoas que exercem
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violência contra idosos (47, 55, 56). Num estudo relacionado com homicídios no seio
familiar, revelou-se que 54% dos abusadores tinham algum tipo de perturbação mental,
desde depressão até distúrbios psicóticos, como esquizofrenia e perturbações da
personalidade (57). Um cuidador que já tenha antecedentes de violência e abuso tem
maior probabilidade de perpetuação desses mesmos atos (58).
Outro dos fatores de risco mais importantes é a coabitação. O facto do abusador e
vítima partilharem o mesmo espaço, aumenta a probabilidade de maus-tratos (49).
Diversos estudos mostram que se o idoso morar sozinho, o risco de ser vítima de abuso
diminui (56). Associada à coabitação, está muitas vezes a dependência financeira que o
abusador tem da vítima. Num estudo Espanhol, concluiu-se que a pensão de 47% dos
idosos era a fonte de sustentabilidade da família (40). Num outro estudo na Irlanda,
concluiu-se que 50% dos abusadores eram desempregados (50). Se além de morarem
juntos, houver falta de condições de habitabilidade e/ou falta de privacidade, o risco é
ainda maior. Há também registo de que no caso de cuidadores que foram criados em meio
familiar onde há um padrão de violência, estes comportamentos se podem manter noutras
situações (56).
A comunidade e a sociedade onde se insere o idoso são preponderantes para o seu
bem-estar. Quanto mais isolada se encontrar a pessoa idosa e menos contactos sociais
tiver, maior o risco de ver perpetuados os abusos. O risco mais grave para estas pessoas
é estarem isoladas de outros membros da família, de amigos e do serviço de saúde. No
caso das instituições, a ausência de visitas por parte de familiares leva a que haja mais
abusos (59, 60).
A sociedade atualmente rege-se por estereótipos, que acabam por descartar o papel
de alguns grupos sociais. Há estudos que demonstram que tanto os idosos como os mais
jovens têm ideias fixas e negativas acerca do envelhecimento – ageism. Uma das
principais perceções é que os idosos são pessoas frágeis, doentes, sem capacidade de
trabalho, depressivas e dependentes de outros para as atividades da vida diária. Esta ideia
pré-concebida nalguns idosos torna-os mais vulneráveis e expostos a situações de
violência (61). Além disto, há culturas em que a violência é tolerada para resolver
conflitos. Outras culturas desvalorizam o papel da mulher na sociedade, o que faz com
que as mulheres e, principalmente, as mulheres idosas, estejam mais sujeitas a violência
por parte do parceiro (62).
As políticas económicas e sociais que criam fossos e desigualdades entre grupos
levam a um aumento de risco do abuso. Muitas pessoas idosas têm falta de apoios sociais,
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a par de baixos rendimentos e pensões, o que aumenta a dependência destes. Outros
estudos revelaram que que quanto mais baixo for o nível de escolaridade, maior a
suscetibilidade ao abuso (63).
5. O papel do médico
Desde que em 1975, Baker introduziu a expressão «granny battering», que
significa, «mau-trato dos avós», os médicos ainda tiveram um longo processo para se
abrirem à questão dos maus-tratos e negligência contra idosos (64). A falta de
investigação na área permitia apenas uma consciência limitada aos profissionais de saúde
sobre esta questão. Mas as perceções mudaram, em resultado de vários estudos realizados
em diversos países do mundo.
A partir do momento em que o abuso de idosos começou a ser considerado um
problema de saúde pública, a procura de métodos para rastrear os maus-tratos aumentou
(65).
Ao longo dos últimos anos reconheceu-se a necessidade de investigação deste
problema para melhorar e desenvolver novos métodos de deteção de abuso por parte dos
médicos e de se realizarem estudos sobre práticas de denunciar o abuso e os seus efeitos
(66).
Através da melhoria na identificação da população idosa em risco de abuso ou
abusada, assegura-se que as vítimas, ou potenciais vítimas, consigam suporte social,
psicológico, médico e legal adequado às suas necessidades (67).
Embora se pense que os médicos são uma classe privilegiada para a identificação
de abusos – principalmente os médicos de família, pois conhecem bem o seu paciente e
este deposita em si toda a confiança – muitos médicos não denunciam a suspeita de abuso
ou nem a incluem na lista de diagnósticos diferenciais. Em 2000, nos EUA, os médicos
apenas reportavam 2% de todos os casos identificados de abuso de idosos, apesar da
denúncia ser obrigatória na maioria dos Estados (68).
Em Portugal, todos os médicos têm obrigação legal de denunciar situações de
maus-tratos (alínea b do artigo 242º do Código de Processo Penal 2013) - «a denúncia é
obrigatória, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos (…) para os
funcionários, na aceção do artigo 386º do código penal, quanto a crimes de que tomarem
conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas». O Código Deontológico
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Médico também ressalva no artigo 52º (menores, idosos e deficientes) - «o médico deve
usar de particular solicitude e cuidado para com o menor, o idoso ou o deficiente,
especialmente quando verificar que os seus familiares ou outros responsáveis não são
suficientemente capazes ou cuidadosos para tratar da sua saúde ou assegurar o seu bem-
estar». Já o artigo 53º (Proteção de diminuídos e incapazes) do mesmo Código salienta
que «sempre que o médico chamado a tratar uma criança, um idoso, um deficiente ou um
incapaz, verifique que estes são vítimas de sevícias, maus-tratos ou malévolas provações,
deve tomar providências adequadas para os proteger, nomeadamente alertando as
autoridades policiais ou as instâncias sociais competentes».
A questão que se vem colocando com o aumento da prevalência dos maus-tratos
é: porque não são denunciados? Um dos maiores obstáculos à prevenção, identificação e
intervenção neste problema é uma incompleta formação dos médicos nesta problemática
(69). Os médicos, para além da sua posição única para detetar o abuso e negligência de
idosos, em primeira mão, têm também uma responsabilidade especial de intervenção para
o problema. Mas muitos médicos não reportam porque: não têm prática clínica suficiente
para reconhecer os abusos; têm receio de fazer um diagnóstico errado; não conseguem
confrontar o eventual abusador; têm medo que o abusador maltrate mais a vítima;
desconhecem as vias que devem ser ativadas para reportar o abuso e ainda receiam
envolverem-se com o sistema legal e saírem prejudicados na sua carreira.
No serviço de urgência, devido à grande afluência de pessoas, normalmente não
há tempo para as necessidades especiais dos idosos e raramente abordam a saúde mental
ou os sinais de maus-tratos (70).
A maioria das vítimas ou cuidadores negam os abusos, o que dificulta ainda mais
uma identificação precisa. A não identificação dos maus-tratos por parte das vítimas pode
ocorrer por diversas razões: não consciência de que são vítimas de abusos; receio de
serem institucionalizados; receio de prejudicarem os cuidadores e, consequentemente,
serem abandonados; medo que os cuidadores os maltratem de novo por terem sido
denunciados; vergonha; incapacidade cognitiva ou dificuldade na comunicação (18).
5.1. Prevenção primária
Há consenso na literatura de que o primeiro passo para detetar casos de abusos é
a identificação de fatores de alto risco (revistos acima), pois a sua presença aumenta a
O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
17
probabilidade de maus-tratos. A dificuldade na avaliação destes fatores de risco torna o
papel do médico ainda mais preponderante na deteção destes casos, daí a importância da
preparação dos médicos para esta problemática. Estudos mostram que o conhecimento de
alguns fatores de risco a par de uma boa relação médico-paciente facilita o diagnóstico
(15). Portanto, a prevenção primária dos maus-tratos no idoso passa pela identificação de
fatores de risco e, também, pela modificação dos mesmos, promovendo os fatores
protetivos.
Nos últimos anos têm sido desenvolvidas ferramentas para auxiliar a detetar os
maus-tratos. O que se espera destes instrumentos, é que sejam válidos para avaliar e
detetar o abuso, bem como sensíveis e fiáveis para serem adotados e recomendados.
Apesar de haver muitos instrumentos, a maioria não são aceites para uma ampla aplicação
em diferentes locais e com diferentes populações. No entanto, os instrumentos adequados
para rastrear os maus-tratos em idosos são fundamentais para o acompanhamento e
investigação do idoso, de modo a assegurar o seu bem-estar (71).
A American Medical Association apela a todos os profissionais de saúde para que
sigam um protocolo de triagem rotineiramente e que se questione os pacientes sobre
possíveis maus-tratos (72). No entanto, são poucos os médicos que rastreiam pacientes
que não possuam alguma lesão evidente (71). Uma revisão publicada acerca dos
instrumentos disponíveis, concluiu que não existe nenhum suficientemente adaptado para
identificar idosos em risco, e que os instrumentos que tem vindo a ser utilizados são
inapropriados para idosos com demência (73).
5.2. Prevenção secundária
A prevenção secundária consiste na deteção precoce dos maus-tratos, através da
identificação de indicadores e sinais de alerta, e também na instituição de medidas que
evitem a sua continuação. Como abordar diretamente a questão de possível mau-trato,
ainda não foi estabelecido, mas há uma série de passos que o médico deve cumprir caso
as respostas suscitem desconfiança de abuso (74).
Aquando da consulta, o médico deve entrevistar o idoso em primeiro lugar e sem
a presença do cuidador. É importante usar uma linguagem simples durante a entrevista e
que se crie confiança, empatia e se garanta confidencialidade, de modo a facilitar a
O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
18
comunicação do idoso. Abordar diretamente a questão da violência física, psicológica ou
negligência. Se houver alguma positividade nas respostas o médico deve explorar (75).
O cuidador também deve ser entrevistado sozinho. Em caso de forte suspeita, o
confronto não deve ser usado como primeira abordagem. Deve ser questionado acerca da
situação do cuidador a nível psicológico, financeiro e eventual desemprego. Quando
idoso e cuidador estiverem ambos presentes, é importante a observação de
comportamento e a relação dos dois, e verificar se há alguma mudança na atitude do idoso
quando está na presença do seu cuidador (76, 77).
Contudo, detetar o abuso é um desafio, até porque a maior parte das vezes os
pacientes não vão admitir que estão a ser vítimas de algum tipo de mau-trato. As
perguntas sugeridas pela American Medical Association (anexo 1) e o Elder Abuse
Suspicion Index (EASI) (anexo 2) podem ser ferramentas úteis para auxiliar na entrevista
guiada por médicos. O EASI é descrito pelos médicos de família como fácil e rápido de
usar. Está disponível em várias línguas e as perguntas são adequadas e compreensíveis
para a população idosa, sendo um ótimo auxiliar na deteção do abuso (78, 79, 80).
Os maus-tratos sobre os idosos ocorrem sobre as mais variadas formas e muitas
vezes as consequências confundem-se com sinais e sintomas de doenças próprias da
idade. É de capital importância que o médico esteja alerta para achados físicos sugestivos
de abuso: (a) aparência geral precária, com má higiene oral e pessoal; (b) pressões
arteriais baixas e taquicardias que podem ser indiciadoras de desidratação, desnutrição;
(c) perda de peso; (d) fraturas, hematomas, lacerações e dores, não explicados; (e) lesões
em vários estados de cura sem explicação plausíveis e quedas frequentes; (f) idas
recorrentes ao serviço de urgência; (g) depressão, apatia ou agravamento de demência;
(h) fraca adesão à terapêutica instituída e mau controlo de doenças crónicas. O médico
deve estar particularmente atento quando o cuidador se mostra reticente em deixar o
paciente ser entrevistado sozinho e também pacientes debilitados que vão sem
acompanhante às consultas (18, 78, 81).
Além de estar atento a circunstâncias e achados físicos, o médico deve estar alerta
para a possibilidade de cometer deteções erradas de abuso – quer por identificar
incorretamente casos de abuso, quer por deixar passar à margem os abusos. Há achados
do exame físico que tanto podem ser realmente resultado de maus-tratos, como também
podem ser resultado de doenças crónicas ou da debilidade física do paciente, daí a
importância do médico em conhecer os sinais e sintomas das doenças geriátricas (82).
O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
19
5.3. Intervenção
A intervenção nesta problemática é complexa, daí a importância de haver uma
articulação entre uma equipa multidisciplinar que inclua médicos, enfermeiros, saúde
mental, assistentes sociais, polícia e sistema judicial, para uma ação holística.
Quando o médico deteta fatores de risco no idoso, deve intervir no sentido de os
tentar modificar, sempre tendo em conta o superior interesse do idoso.
Em situações em que se verifique haver um isolamento social do idoso, pode-se
sugerir a frequência de centros de dia, de cuidados de apoio domiciliários, mais apoios
sociais e integração em atividades de lazer adequadas. É importante, também, que se
avaliem as condições habitacionais existentes, de modo a que se adequem às limitações
de cada idoso (18).
A terapêutica também deve ser revista e ajustada às necessidades, tendo em conta
a via de administração, posologia e preço (81).
Frequentemente, o cuidador não tem disponibilidade total para cuidar do idoso
ou encontra-se sobrecarregado física e emocionalmente, sendo crucial identificar estes
casos para prevenir mais pressão que leve a maus-tratos contra o idoso. O médico
juntamente com assistentes sociais, deverá discutir programas que ajudem na resolução
destes problemas. Neste contexto, poderá ser aconselhada a partilha dos cuidados com
outros familiares, de modo que o cuidador tenha períodos de descanso. Deve-se entrar em
contato com as redes comunitárias – como grupos de apoio ou voluntariado – que
auxiliem, de alguma forma, nos cuidados. Se o cuidador sofrer de alguma patologia
psiquiátrica, doença incapacitante ou abuso de substâncias, o médico deve orientá-lo para
um tratamento e assegurar que o idoso fique aos cuidados de outro responsável (18, 81,
83).
Numa situação de maus-tratos identificados pelo médico, existe obrigação
deontológica e legal de denúncia, de acordo com o artigo 53º do Código Deontológico e
o artigo 242º do Código Penal, como já referido. Apesar desta obrigatoriedade, é comum
haver um conflito ético-legal com o paciente e a sua família, que alegam que o médico
não pode violar o segredo profissional (artigo 86º do Código Deontológico). Além disso,
a denúncia sem consentimento da vítima, pode pôr em risco a relação de confiança
médico-paciente que existia. Além disto, importa recordar a alínea b do artigo 88º do
Código Deontológico (Escusa do Segredo Médico) que diz que se «excluem do segredo
médico o que o que for absolutamente necessário à defesa da dignidade, da honra e dos
O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
20
legítimos interesses do médico ou do doente (…)». Sendo assim, há obrigatoriedade e
dever de denunciar desde que o médico tome conhecimento dos maus-tratos no exercício
da sua atividade profissional.
O médico deverá, em primeiro lugar, falar com o idoso para que o mesmo
apresente queixa, caso seja mentalmente capaz de tomar decisões. O médico deve
explicar-lhe o risco que corre se não fizer a denúncia, alertá-lo para a possível repetição
e perpetuação dos maus-tratos e mostrar-lhe que será apoiado e protegido. Se não for
apresentada queixa pelo próprio, o médico deve denunciar a situação ao Ministério
Público (diretamente ou através da polícia ou do Instituto Nacional de Medicina Legal e
Ciências Forenses) (81).
Depois de se avaliar o risco e a urgência da situação, o médico deverá contatar
com a assistente social do Centro de Saúde ou Hospital, de forma que haja uma
articulação com os serviços sociais e, se necessário, os serviços especializados, como
polícia e APAV (81).
O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
21
6. Conclusão
A prevalência do abuso no idoso apresenta cada vez mais dimensões
preocupantes, quer a nível internacional, quer nacional, daí a importância da sociedade
estar preparada para responder a esta problemática social.
A valorização da violência sobre os idosos como um problema de saúde é
relativamente recente. O médico, por incumbência da sua profissão, é um membro da
sociedade, privilegiado para não só identificar precocemente e abordar eficazmente os
maus-tratos, mas também detetar situações de risco, que potencialmente possam evoluir
para abuso. O objetivo principal do profissional de saúde será sempre prevenir situações
de maus-tratos, atuando na modificação de fatores que possam colocar o indivíduo em
perigo. Se os esforços preventivos não forem bem sucedidos, o foco do médico deverá
ser terminar com a situação de abuso. A intervenção nesta problemática é complexa e não
deve depender só do médico. Importa, por isso, implementar medidas de prevenção e
intervenção no abuso, multidisciplinares, para promover o bem-estar da pessoa idosa. É
fundamental que os médicos sejam desde cedo consciencializados para este problema e
formados num sentido de prevenção e intervenção.
É importante que a sociedade portuguesa esteja alerta para este problema social e
que atue unanimemente na persecução da qualidade de vida e dignidade do idoso.
O PAPEL DO MÉDICO NA DETEÇÃO DE CASOS DE ABUSO DE PESSOAS IDOSAS
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Anexos
Anexo 1 – Questionário para despiste de maus-tratos no idoso
1. Já alguma vez foi magoado pelas pessoas com quem vive?
2. Já alguma vez foi «tocado» sem o seu consentimento?
3. Já alguma vez foi obrigado a agir contra a sua vontade?
4. Já lhe retiraram algo que lhe pertencesse sem a sua autorização?
5. Já foi ameaçado por alguém?
6. Já foi obrigado a assinar algum documento que não compreendesse?
7. Sente medo de alguma das pessoas com quem vive?
8. Passa muito tempo sozinho?
9. Já alguém deixou de tomar conta de si, quando necessitou de ajuda?
Diagnostic and treatment guidelines on elder abuse and neglect (AMA 1992)
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Anexo 2 – Elder Abuse Suspicion Index (EASI)
EASI (Journal of Elder Abuse and Neglect 2008; 20(3)
1. Já confiou em pessoas para o seguinte: tomar
banho, vestir, fazer compras, ir ao banco ou
efetuar refeições
SIM NÃO Não responde
2. Já alguém o impediu de obter comida, roupa,
medicação, óculos, ajuda médica ou o impediu de
estar com pessoas com quem queria estar
SIM NÃO Não responde
3. Já ficou chateado porque alguém falou consigo de
forma ameaçadora ou humilhante
SIM NÃO Não responde
4. Já o obrigaram a assinar papéis, ou usar o seu
dinheiro, sem o seu consentimento
SIM NÃO Não responde
5. Já alguém o ameaçou, tocou-o sem o seu
consentimento ou magoou-o
SIM NÃO Não responde
Médico
6. O abuso do idoso pode estar associado aos
seguintes achados: mau contacto ocular,
isolamento, desnutrição, má higiene, feridas,
equimoses, uso inapropriado de roupa ou queixas
com a medicação. Já reparou em algum dos
anteriores nos últimos 12 meses.
SIM NÃO Não responde