o narrador iludido machado de assis

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  • 7/25/2019 o Narrador Iludido Machado de Assis

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    ATILIO BERGAMINI JUNIOR

    O NARRADOR ILUDIDO:uma leitura dasMemrias pstumas de Brs Cubas

    PORTO ALEGRE2008-2009

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SULINSTITUTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRASREA: ESTUDOS DE LITERATURA

    ESPECIALIDADE: LITERATURA BRASILEIRALINHA DE PESQUISA: LITERATURA, IMAGINRIO E HISTRIA

    O NARRADOR ILUDIDO:uma leitura dasMemrias pstumas de Brs Cubas

    ATILIO BERGAMINI JUNIOR

    ORIENTADOR: PROF. DR. ANTNIO MARCOS VIEIRASANSEVERINO

    Dissertao de Mestrado em LiteraturaBrasileira, apresentada como requisito parcialpara a obteno do ttulo de Mestre peloPrograma de Ps-Graduao em Letras daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul.

    PORTO ALEGRE

    2008-2009

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    Este trabalho dedicado Ana, que com sua inteligncia e generosidade, torna possvel queeu ame e admire.

    Ao Atilio e Elena, meus pais. Cada um com seu jeito, eles vivem vidas em que conheceralgum ou alguma coisa uma atitude amorosa e concreta. Creio que dessa vez eles vo se

    orgulhar de ter um filho desempregado.

    Ao Ale e Gio, irmos valentes.E pra Luci, minha companheirinha.

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    AGRADECIMENTOS

    A autoria desta dissertao e o ttulo de mestre que ela pressupe no devem esconder

    o trabalho, a cooperao e as idias de diversas pessoas e instituies.

    Assim, a parte de agradecimentos longa, porque significa algo mais do que

    agradecer. Comea pela disciplina ministrada pelo professor Lus Augusto Fischer, h um anoe meio atrs. O professor leu um trabalho que escrevi e sugeriu que ali estava o inicinho de

    uma dissertao. Caso o professor no tivesse este desprendimento, ateno e gentileza, o

    assunto aqui seria os contos de Sergio Faraco e o cercamento dos pampas ou algo nessa

    direo. O caminho apontado pelo professor, do qual eu nem sequer suspeitaria, me

    possibilitou uma srie de aprendizados, aos quais, de outra maneira, eu no teria acesso.

    Os professores Ana Maria Lisboa de Mello, Ana Lcia Tettamanzy, Gnia Maria

    Gomes, Homero Viseu Arajo, Mrcia Ivana de Lima e Silva e Regina Zilberman foram

    fundamentais para diversos aprendizados. Eles leram e comentaram artigos que escrevi,sugeriram caminhos, ofereceram amizade e cooperao em diversos momentos, muito alm

    de suas funes institucionais. A professora Ana Mello ministrou disciplina enfocando

    Machado de Assis e marcou o presente trabalho no que ele, por ventura, possa ter de melhor.

    Ana Tettamanzy escreveu uma tese de doutorado sobre Machado de Assis que, no incio das

    minhas pesquisas, apontou caminhos de investigao e modos de olhar. Gnia me incentivou,

    sendo para mim o que para diversas pessoas, uma espcie de motorzinho de impulso, que

    nos ajuda a seguir em frente. Homero foi um interlocutor crtico e atento, e gentilmente me

    recebeu como ouvinte em parte de sua disciplina Estudo de Autor: Machado de Assis, Cyro

    dos Anjos e Carlos Drummond de Andrade. A professora Mrcia Ivana, desde a graduao,

    me ajudou de diversas maneiras, com sua alegria solcita e o empenho muito nobre de fazer

    do conhecimento um modo de aproximao entre as pessoas. Regina Zilberman, da mesma

    forma, me acolheu numa disciplina qual devo muito: Cafres, mouros e judeus na

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    literatura. Zilberman tambm sugeriu caminhos e com o exemplo de seu trabalho deixou no

    meu horizonte pistas do que preciso fazer para seguir em frente com dignidade.

    Na ps-graduao em economia da UFRGS, agradeo ao professor Pedro Czar Dutra

    da Fonseca, que gentilmente me aceitou como ouvinte em duas disciplinas, Economia

    brasileira e Intrpretes do Brasil, ambas fundamentais para as discusses que seguem.

    Agradeo a gentileza do professor em responder minhas questes durante os intervalos e logo

    aps as aulas, mesmo vivendo, na poca, um perodo atarefado em sua funo como vice-

    reitor.

    Tive a felicidade de participar de um grupo de estudos em que lemos, em conjunto,

    textos de Theodor W. Adorno e Roberto Schwarz. As discusses nesse grupo me permitiram

    formular uma questo a respeito da obra de Machado e, semana aps semana, ajudaram na

    construo e clarificao das minhas posies. Agradeo aos colegas Fabrcio da Costa,

    Milton Colonetti e William Boenavides pelas discusses, perguntas e pela intelignciagenerosa de todos eles. Ao Fabrcio, especialmente, devo o favor de me ouvir repetir e repetir

    o mesmo argumento a respeito da escravido, em conversas e discusses que se iniciavam no

    incio da tarde e avanavam noite adentro.

    Fora do grupo de estudos, um sem nmero de colegas de disciplina me ajudou com

    perguntas, explicaes, livros emprestados e comentrios e crticas ao longo das aulas. Devo

    um agradecimento especial Eliete Tiburski, da ps-graduao da Histria, que me colocou

    em contato com Sidney Chalhoub e possibilitou que, com ela e mais um colega, eu fizesse

    parte de uma, para mim fundamental, entrevista com o historiador.

    A psicanalista Lucia Serrano Pereira me recebeu em seu gabinete para conversar sobre

    um artigo em que eu construa uma relao entre Machado e Freud. Pelos seus inteligentes

    estudos a respeito de Machado, pela ateno e pela serenidade generosa em responder as

    perguntas de um amador, agradeo a ela.

    O professor Antonio Sanseverino deve vir em um pargrafo separado, no apenas

    porque foi orientador da dissertao o que eu confesso ser trabalhoso, dadas as idas e vindas

    do meu esforo , mas porque esteve sempre atento e cooperativo para as diversas tarefas quetive que cumprir ao longo da escrita da dissertao e do cumprimento do mestrado. Sua tese

    sobre realismo e alegoria em Machado de Assis me ajudou na leitura do escritor como um

    todo e abriu os olhos a respeito de como fundamental reconstruir no nosso prprio

    pensamento, do modo mais complexo possvel, os pensamentos que nos parecem estranhos,

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    falsos ou contraditrios. Sanseverino tem uma capacidade de leitura atenta e crtica, trouxe

    idias e discutiu os pontos mais melindrosos da dissertao com respeito ao meu trabalho e

    alta exigncia, expondo gentilmente suas discordncias e procurando entender meu ponto de

    vista. No seria, de modo algum, exagero a gente assinar este trabalho em co-autoria ele nas

    partes mais ditosas e eu, naturalmente, nos pontos de teimosia e dureza. Tudo isso, o professor

    estabeleceu sem criar uma atmosfera de filiao a suas idias, procurando que eu

    desenvolvesse o que ele mesmo no cansava de denominar autonomia. Aprendi muito com

    essa atitude e espero que quando chegar minha hora de orientar algum, quem sabe um dia, eu

    possa ter gestos parecidos. Bem antes disso, foi ele quem, no ano final da graduao, quando

    eu no estava conseguindo imaginar o que fazer da vida alm de ficar desempregado ou sub-

    pago, sugeriu que eu tinha condies de disputar uma vaga no mestrado conselho que

    seguramente mudou minha vida.

    Agradeo aos estudantes do Curso Pr-Vestibular Comunitrio Rubem Berta, para

    quem dei aulas, ao todo, por quase trs anos. Alguns deles esto na universidade e, em breve,

    estaro escrevendo suas dissertaes e teses, o que me enche de alegria e mesmo de orgulho.

    As aulas no pr-vestibular me ajudaram a conhecer de modo mais crtico e realista a cidade

    onde vivo e aplicar meus conhecimentos pagos pelo dinheiro pblico em benefcio de quem

    mais demanda ser atendido por esses conhecimentos, o que no deixa de ser um privilgio.

    No posso esquecer o pessoal das bibliotecas das cincias humanas, da economia, da

    psicologia e da educao, aqui da UFRGS, e tambm da FAPA e da PUCRS, pois sempre me

    atenderam prontamente, respondendo dvidas, procurando livros, trazendo ensaios peloCOMUT e assim por diante.

    Por fim, agradeo CAPES e aos cidados brasileiros, pela bolsa fundamental para a

    compra de insulina, quando o mesmo governo federal que me pagava a bolsa decidia que os

    diabticos no precisavam do medicamento naquele ms. E agradeo tambm ao Cansio,

    sempre solcito na secretaria da ps.

    Tive acesso a um dos bens pblicos mais escassos e mal distribudos do pas. Levarei

    isso sempre em conta, na tentativa de torn-lo menos escasso e mais bem distribudo.Embora seja evidente, no custa salientar que os professores citados possuem variadas

    direes de pensamento e de modo algum este agradecimento pretende criar filiao ao que

    um ou outro pensa. Tenho bem presente que muito do que vai aqui escrito no concorda com

    pontos de vista de alguns deles; no obstante, algo desses pontos de vista constitui o cerne do

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    meu trabalho. Ficarei satisfeito se puder pensar, daqui por diante, que meus limites no foram

    maiores do que o trabalho, os ensinamentos e a generosidade de todos os citados.

    Agradeo imensamente ao Alexandre Bergamini e Giovana Bergamini, meus irmos,

    e aos meus pais, Atilio Bergamini Neto e Elena Bergamini por coisas que no possvel

    explicitar.

    Alm de agradecer, dedico este trabalho a Ana Flvia Souto de Oliveira, que entendeu

    quando eu precisava, alucinadamente, ler cem pginas por dia! Esse meu trabalho, eu

    recebo pra isso!. E me acolheu com seu lindo sorriso quando, a cada coisa que eu via,

    lembrava de um causo da escravido ou imitava o Brs Cubas. Mesmo que no houvesse todo

    o aprendizado que tive, aqueles sorrisos teriam feito a dissertao valer a pena.

    Pronto, Ana, agora no vou mais ficar dizendo: tenho que ler cem pginas por dia!...

    com o treino que peguei, acho que posso exigir 120... mas, antes, aceita um cineminha e uma

    cerveja?

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    RESUMO

    Este trabalho procura desenvolver a tese de Roberto Schwarz em Ao vencedor asbatatas (1977)e Um mestre na periferia do capitalismo (1990) e tem o intuito de ser umainterpretao do romanceMemrias pstumas de Brs Cubas, escrito por Machado de Assis epublicado em livro em 1881. Para Schwarz, a elite brasileira do sculo XIX era volvel emseu tratamento com a poltica, com as idias e com a alteridade escravos e dependentes. Talvolubilidade teria sido imitada no romance, por meio de uma narrativa volvel, no apenas nocontedo, mas sobretudo na forma. A dissertao se ocupa de buscar uma gnese para asidias de Schwarz e entender alguns de seus pressupostos, para ento ler o romance a partir deuma conscientizao desses pressupostos. Ficou evidenciada a necessidade de uma plataformade leitura que incorpore o reconhecimento da alteridade social em relao lgicaapresentada no romance, que , segundo Schwarz postula, o modo de ser da elite. Postula-seque o narrador das Memrias um narrador iludido a respeito do prprio poder e que oromance ficcionaliza a decadncia das relaes de produo escravistas e no a hegemonia doescravismo, como a fortuna crtica tem consagrado. Uma vez estabelecida a ficcionalizao daderrocada da classe hegemnica no escravismo, a dissertao reconsidera a identidade entre avolubilidade do narrador e a volubilidade da elite da poca, evidenciando que o romance podeser lido com uma lgica diversa da volvel, embora, em termos formais, a volubilidadecontinue sendo excelente explicao do movimento narrativo. Com isso, reconhece-se que oromance trabalha a estrutura de classes de sua poca, mas salienta-se que o faz para expor e

    ridicularizar um poder que ilude a si mesmo a respeito de suas possibilidades de ao einfluncia. Neste sentido, ao criticar o aparente silenciamento absoluto da alteridade, de queresulta o poder imaginrio do narrador, constri-se uma funo mediadora para ler o romancepor uma visada que possa ajudar na compreenso atual de aspectos da organizao social ealguns de seus preconceitos.

    Palavras-chave: Machado de Assis; escravismo; forma literria

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    ABSTRACT

    This thesis aims at discussing Roberto Schwarzs ideas presented in Ao vencedor as batatas(1977) and Um mestre na periferia do capitalismo (1990). It also intends to be aninterpretation of the novelMemrias pstumas de Brs Cubas, written by Machado de Assisand published in 1881. Schwarz claims that the Brazilian upper-classes of the XIX centuryhad a fickle character that was reflected in the way they dealt with politics, ideas and alterity.According to Schwarz, this fickleness was mapped onto the novel content and form,represented by the way the first person narrator behaves. The thesis is concerned in finding

    the presuppositions of Roberto Schwarzs ideas, in order to evaluate the novel with anawareness of these presuppositions. It turned out to be necessary to apply a differenttheoretical background that could provide a recognition of the social alterity. Then, theobjective is to provide an account to make it possible to map the boundaries of the narratorspoint of view. We claim that the novels narrator is deceived about his own power and that thenovel fictionalizes the decay of the slavish relation of production, instead of the slaverysystem hegemony, as most of the scholars say. Then, this study reformulates the parallelbetween the narrators fickleness and the upper-classes fickleness, lightening that the novelcould be interpreted in a different way, even that in formal aspects the fickleness is able toexplain the novel accurately. Concluding, the novel fictionalizes the hierarchy of classes thatwas present in the XIX century, but at the same time it mocks a decadent power that deceivesitself in relation to its action and influence possibilities. In this sense, the apparent silencing ofthe alterity, from which the narrators imaginary power arises, has a mediator functionessential to a critical understanding of the novel in a democratic and multidimensionalfashion, which can help to comprehend the current social organization and prejudices.

    Keywords: Machado de Assis; slavery; literary form

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    SUMRIO

    INTRODUO........................................................................................................................11

    PARTE I

    1 Ideologia patriarcal e anlise literria...............................................................................21

    2 O imaginrio patriarcal e suas formas: breve anlise dos clssicos...............................35

    3 Estudos recentes sobre o sculo XIX: a matriz prtica...................................................48

    As elites...................................................................................................................................48

    Os escravos e os dependentes.................................................................................................56

    As elites e o escravismo..........................................................................................................68

    PARTE II

    4 O narrador emMemrias pstumas de Brs Cubas iluso e volubilidade.................75

    A iluso de Brs Cubas...........................................................................................................80

    A segmentao do livro...........................................................................................................92

    A escravido silenciada.........................................................................................................100

    O fechamento subjetivo.........................................................................................................111

    CONSIDERAES FINAIS................................................................................................126

    REFERNCIAS....................................................................................................................132

    ANEXO 1..............................................................................................................................139

    ANEXO 2..............................................................................................................................140

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    INTRODUO

    Bons dias.

    Este trabalho seria o desenvolvimento de um ensaio em que eu procurava investigar,

    nasMemrias pstumas de Brs Cubas,o entrelaamento entre discursos polticos, discursos

    literrios e certo modo de ser dos homens da elite no sculo XIX. O professor Lus AugustoFischer sugeriu que eu poderia levar adiante a proposta e transform-la numa dissertao. Na

    opinio do professor havia material suficiente e um plano de estudos.

    Quando comecei as pesquisas, a partir de uma proposta do orientador deste trabalho, o

    professor Antnio Marcos Vieira Sanseverino, procurei estudar a escravido no sculo XIX.

    Passei o vero de 2008 fazendo isso. A proposta inicial era entender as Memrias pstumas

    de Brs Cubas como um estudo literrio que ficcionalizava as ligaes entre a histria e a

    psicologia das personagens isto , criava uma mediao ficcional entre certas estruturas

    sociais e certas subjetividades, ambas, por sua vez, mediadas por uma srie de discursos eformas.

    Preferi me ater, por limitao temporal e por planejamento, s questes histricas e,

    em outra oportunidade, se possvel, eu me dedicaria a dar o outro passo do meu projeto de

    estudos, qual seja, o que levaria em conta as subjetividades ou, melhor dizendo, a construo

    ficcional delas nos romances de Machado.

    No errar o leitor que disser que em muitos aspectos Roberto Schwarz fez

    exatamente o que estou dizendo. E estar mais certo se perguntar: para que fazer algo que jfoi feito?

    Tentarei responder a isso ao longo da dissertao. guisa de introduo convm

    iniciar a resposta com algumas perguntas, mais abrangentes do que a anterior, mas correlatas:

    por que Machado de Assis? Por que as Memrias pstumas? J no se falou o suficiente dos

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    dois? O que um mestrando teria de relevante a dizer a esse respeito que no repetisse o que j

    foi dito e com o defeito de tirar do contexto a complexidade do j-dito?

    Essas perguntas antecedem o trabalho no apenas de estudantes e aprendizes na rea

    da pesquisa literria, como o meu caso. Alfredo Bosi, por exemplo, as formula no incio de

    seu O enigma do olhar.

    A meu ver, essas perguntas encobrem um imediatismo e um individualismo que no

    do conta do trabalho de pesquisa literria e no estou falando de Bosi, evidentemente, que,

    afinal, escreveu mais um livro sobre Machado, trazendo implcita uma crtica de tais questes.

    Quando observamos as pesquisas de Roberto Schwarz, por exemplo, aprendemos que

    persistir em um caminho por anos, aprofundando contradies e problemas, pode contribuir

    nas pesquisas sobre determinada rea. Assim, um mestrando sobre Machado de Assis no

    pode querer ser mais do que um mestrando sobre Machado de Assis, mas bem possvel que,

    se ele persistir no caminho, v trazer um par de questionamentos l adiante.

    No posso imaginar uma contribuio minha que no seja no sentido de permanecer,

    durante um bom tempo, em torno de um leque mais ou menos restrito de contradies e

    problemas, procurando ser um vetor de aprofundamento dessas contradies e problemas

    que, insisto, nem comeam nem terminam comigo.

    Seguindo: depois de passar alguns meses entre livros a respeito da escravido, pensei

    ver em Um mestre na periferia do capitalismo, publicado por Roberto Schwarz em 1990, uma

    consistncia maior do que vi nos argumentos histricos que encontrei em Ao vencedor asbatatas, de 1977, cujos pressupostos me pareciam problemticos. Diversos pesquisadores que

    respeito, como John Gledson1 e Lus Augusto Fischer2, por exemplo, apresentaram

    argumentos contrrios, ou seja, acreditam que h uma continuidade entre o jovem Schwarz

    e o Schwarz maduro. Embora os argumentos apresentados pelos dois sejam bons o suficiente

    para eu voltar atrs, penso que a permanncia de Schwarz em um ncleo de problemas, desde

    os anos 1960 at os anos 1990, no invalida o que estou dizendo. Em outras palavras, h a

    continuidade apontada por Gledson e Fischer, mas tambm h, como espero demonstrar, uma

    espcie de superao em relao a alguns pontos importantes das idias do crtico. Aindaassim, em alguns aspectos,Ao vencedor as batatase Um mestre na periferia do capitalismo

    1Cf. o ensaio Roberto Schwarz: Um mestre na periferia do capitalismo um guia para leitores anglfonos(GLEDSON, 2006, p. 236-278).2Cf. o ensaio Em busca do narrador: traos do pensamento do jovem Schwarz (CEVASCO e OHATA, 2007,p. 78-94).

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    se estou correto apresentam correlao entre a totalidade crtica apresentada para estudar a

    literatura e o ponto de vista das elites do sculo XIX.

    No livro de 1977, o captulo As idias fora do lugar apresenta a meu ver

    abstraes e generalizaes que no explicam adequadamente a sociedade do sculo XIX. O

    primeiro problema est na diviso de classes, que procura entender uma sociedade dividida

    em trs nveis: os latifundirios, os escravos e os dependentes (SCHWARZ, 1988, p. 15-16).

    Para Schwarz, a relao entre os dois primeiros clara, baseada no uso da fora; o que nos

    interessa prope o crtico a relao entre os latifundirios e dependentes, classes entre as

    quais se passaria a vida ideolgica, o favor, mediao quase universal da sociedade

    oitocentista (idem, p. 16).

    Essas asseveraes no eram confirmadas pelas leituras que eu acabara de fazer em

    pesquisadores como Hebe Maria Mattos de Castro (1995), Jos Murilo de Carvalho (2006 e

    1993), Joo Lus Fragoso (1998), Keyla Gringberg (1994), Luiz Felipe de Alencastro (2000),Manolo Florentino (1997), Sidney Chalhoub (2003, 1996, 1990) e Silvia Lara (1988). Do

    mesmo modo, a diviso de classes no servia para ler asMemrias, romance em que todas as

    personagens relevantes, exceo significativa de Dona Plcida, so proprietrios de

    escravos.

    Nesse ponto da pesquisa reparei que a problematizao de Schwarz em Ao vencedor

    as batatas exigia ponderaes e que isso levaria a uma problematizao a respeito do estatuto

    da volubilidade nas Memrias pstumas. Igualmente, a partir do que eu estava aprendendo,

    parecia-me que os pressupostos histricos e sociolgicos da minha prpria pesquisa

    demandavam reformulaes porque em parte eles aceitavam aqueles alcanados por

    Schwarz. A estrutura de classes como apresentada pelo crtico e o favor como centro da vida

    ideolgica j que no resta dvidas que esse centro a escravido e o escravismo so

    argumentos que me parecem insustentveis luz do que sabemos hoje, embora sejam

    plenamente compreensveis e agudos quando compreendidos pela poca de sua criao e

    pelo campo de seus debates. Por essa razo, o contra-argumento no deve ser to ligeiro. Isto

    , no se pode deixar de lado to rapidamente um texto que pautou discusses durante anos.

    Os problemas ali destacados so uma complexa sntese dos trabalhos de Fernando Henrique

    Cardoso, Octvio Ianni, Florestan Fernandes3 e uma srie de outros pesquisadores, como

    3Florestan Fernandes orientou diversos dos pesquisadores que formariam o que chamado de Escola Paulista,na qual pesquisadores desenvolveram a concepo de escravo-coisa, como modo de responder hegemonia dasidias freyreanas. De Fernando Henrique Cardoso, refiro-me sempre ao seu Capitalismo e escravido no Brasilmeridional. De Octavio Ianni, aoAs metamorfoses do escravo. Florestan Fernandes escreveu um sem nmero de

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    Francisco de Oliveira e Celso Furtado. De alguma maneira, rediscutem teorizaes de Caio

    Prado Jr. e Gilberto Freyre. No esqueo de Maria Sylvia de Carvalho Franco, que, segundo

    Schwarz, o levou a desviar o foco de ateno da escravido para o favor. Ou seja, um

    cuidadoso e profundo trabalho de pesquisa, que, ao recolher o que de melhor se produziu em

    cincias humanas na sua poca cria um texto rico para que entendamos e discutamos alguns

    pressupostos.

    Quando passamos para Um mestre na periferia do capitalismoo problema se torna um

    pouco diferente. O captulo trs, intitulado A matriz prtica, no fala sequer uma vez em

    favor. Procura explicar a volubilidade narrativa como reduo estrutural de uma volubilidade

    da elite nacional. Por essa razo, a volubilidade passa a, por assim dizer, organizar a

    constelao de conceitos. A explanao histrica mais sucinta, mas tambm mais concreta e,

    pelas notas de rodap, apreendemos que, entre os dois livros, Schwarz deu continuidade aos

    debates que procuravam entender a situao do Brasil. Se no me engano, portanto, houve um

    duplo movimento: aprofundamento no estudo de autores e problemas contemporneos, de

    Francisco de Oliveira e Florestan Fernandes a Luiz Felipe de Alencastro, e estudo de autores,

    por assim dizer, clssicos, de Joaquim Nabuco a Gilberto Freyre. Com isso, surge uma

    explicao para a relativa ausncia do favor nos desenvolvimentos desse livro. Um mestretem

    o objetivo de estudar um romance e a categoria a ser mobilizada deve dizer respeito ao modo

    como ele, o romance, tornou interno e particular um funcionamento externo e geral. Nesse

    caso, a categoria deveria ser algo semelhante ao torcicolo cultural de forma e contedo, que

    Schwarz havia estudado em Ao vencedor. Fica, ento, plenamente legitimada a ausncia dofavor: ele vem tona como volubilidade. Ainda assim, era de se esperar que na matriz

    prtica do romance o favor constasse. Constru a hiptese de que as descobertas da

    historiografia a respeito da escravido feitas ao longo da dcada de 1980 teriam permitido que

    Schwarz tornasse mais complexa a concepo de histria que dirigia seu argumento, o que

    teria possibilitado, objetivamente, a construo de um livro to denso e provocador quanto

    Um mestre na periferia do capitalismo,mesmo que ele nem sempre tenha podido como

    demonstrarei, menos por questo pessoal do que social se lanar para alm daquilo que o

    narrador constri. Para mim, o problema est justamente em entender que uma questocomplexa como a relao escravista ficar resolvida pela fora da elite, sem levar em conta as

    aes dos escravos e subalternos para alcanar interesses prprios. Ou seja, no se pode dizer

    obras e artigos a respeito dos escravos e da incorporao dos negros no mundo dos brancos e o fez em diversosmomentos de suas pesquisas. Seu livro mais conhecido sobre o assunto A integrao do negro no mundo dosbrancos.

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    que a relao clara, quando exatamente a pressuposio dessa clareza seja um dos principais

    limites do narrador dasMemrias.4

    possvel que no seja bem assim, mas, para meus propsitos, imaginei que estava

    diante de um programa de estudos. Isto : eu poderia me preocupar em estudar os chamados

    intrpretes do Brasil ao lado de autores contemporneos, nas mais diversas reas do

    mesmo modo que fez (e faz) Schwarz. Deveria fazer isso sempre tendo em mente meus

    problemas e questes restritos, em torno de Machado de Assis e do escravismo no sculo

    XIX, porque isso me permitiria dar continuidade ao trabalho iniciado por Schwarz,

    incorporando seus ganhos e reconstruindo o que me parecia problemtico nos seus postulados.

    Em uma palavra, havia um trabalho de pesquisa que poderia ser continuado desde que se

    pudesse puxar seus conceitos para as descobertas da historiografia mais recente. Estava

    tracejado, assim, o plano de estudos para o mestrado e uma hiptese de trabalho. Repito: uma

    hiptese.

    Espero que as perguntas feitas l acima tenham sido reveladas como perguntas feitas a

    partir de um ponto de vista que apresenta um qu de incompreenso a respeito de como pode

    ocorrer o trabalho na pesquisa em literatura. Elas supem um pesquisador solitrio que tem ou

    no tem algo de novo a dizer um pesquisador um tanto quanto impressionista e imediato,

    nascido pronto (com a pesquisa no sangue). Minha proposta procura criticar esse ponto de

    vista, tentando partir de problemas e questes bastante antigos, tanto quanto a histria da

    universidade no Brasil e, certamente, anteriores a ela prpria, como atesta, alis, o prprio

    As idias fora do lugar. Continuidade, contudo, no significa adeso ou repetio.

    Quando Schwarz se dedica a estudar o favor, por exemplo, ele deixa de lado um

    campo de pesquisas fundamental para se entender o sculo XIX e sua literatura, justo a

    relao escravista. Isso no desmerece seu trabalho, nem mesmo um problema (afinal,

    Schwarz tentava justamente se aprofundar em algumas questes etc.), pelo contrrio, mostra o

    4O professor Luis Augusto Fischer ponderou, por ocasio da banca de defesa da dissertao, que h um exagero

    em afirmar que a questo fica resolvida pelo adjetivo clara. Concordo com o professor. Para no haverconfuso, quero deixar claro que a meu ver, na argumentao apresentada em Ao vencedor as batatas, o adjetivorealmente parece ser suficiente para resolver o problema. Ao longo da dissertao, lembrarei mais de uma vezque a escravido tratada por Schwarz como determinante no entendimento do Brasil do sculo XIX. Meuproblema ser explorar um pouco da problemtica pressuposta pela formulao de que a sociedade escravista,o escravismo determinante, mas o nexo ideolgico a ser trocado em midos o favor. Quando observamos aobra de Schwarz como um todo, contudo, deve ficar claro, outras formulaes e consideraes a respeito daescravido aparecem. E, quero deixar muito evidente, embora possa soar repetitivo: no entendo que seja umproblema do crtico, entendo que seja um problema da estrutura social internalizado na forma crtica, logo, atonde vejo, a minha pesquisa procura conhecer mecanismos sociais que determinam a ela mesma.

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    quanto ele cria espaos de interveno para quem pretenda pesquisar e quanto marca meu

    espao de pesquisa.

    Em uma entrevista, Schwarz disse que estava com a escravido na cabea at ter

    acesso ao livro de Maria Sylvia de Carvalho Franco,Homens livres na ordem escravocrata. A

    questo aqui insistir nesse caminho que poderia ter sido, mas no foi, mostrar que

    importante continuarmos nele. Alm disso, procuro formular algumas perguntas a respeito de

    por que Schwarz percebe a volubilidade da elite do pas como a totalidade crtica social. No

    seria algo a ser discutido?

    Para isso, este trabalho est dividido em duas partes. A primeira estuda a forma com

    que alguns dos chamados intrpretes do Brasil comentam a escravido e os escravos e o modo

    como isso est composto na crtica literria de Roberto Schwarz. Como corria o risco de me

    restringir a uma crtica estruturalista ou formalista, procurei coordenar nessa leitura

    movimentos formais e histricos. Os dois movimentos nem sempre tem presena expressa,mas eles orientaram minhas pesquisas. Essa primeira parte do trabalho tem o objetivo de

    evidenciar pressupostos que, caso eu no tivesse seguido este caminho de estudos, estariam

    dados no meu trabalho, como evidncias inquestionveis, dados imediatos. Por exemplo: a

    completa dependncia do dependente em relao ao arbtrio e capricho do senhor, a

    submisso total do escravo aos desmandos do senhor, o domnio irresoluto da vontade do

    senhor como expressada, por exemplo, nas formulaes de um Sergio Buarque de Holanda

    , a simplificao da vida econmica como um grande latifndio no qual escravos plantam

    monocultura para exportao. Uma vez que essas idias sejam rearranjadas ao longo daprimeira parte, cheguei segunda parte com uma srie de, para mim novos, pressupostos.

    Nada garante que eles no vo ser explicitados como equvocos em pesquisas ali adiante, mas,

    por enquanto, faz parte do que dispomos para discutir a formao de nosso pas e nossa

    literatura e para incorporar continuidade e no apenas repetio ao trabalho j feito por

    pesquisadores anteriores, ao mesmo tempo tentando fazer parte da insero da literatura

    como campo nos debates contemporneos.

    De nenhuma maneira tive o intuito de problematizar as principais hipteses dos

    intrpretes, nem fazer um apanhado completo ou mesmo ligeiro de suas teorias. Meu

    propsito foi resgat-los a partir de um feixe de concepes e o que aparece nessa dissertao

    a parte da pesquisa que mais se adecua ao modo como achei por bem expor esse feixe.

    Tenho conscincia de que tudo o que discuto provisrio, grande parte meramente hipottico

    e muito demanda correes e discusses. Ainda assim, procurei expor minhas idias centrais

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    do modo mais direto e evidente possvel, para que as correes e discusses se eu tiver a

    sorte de contar com elas possam ser produtivas e se referir ao principal do meu trabalho e

    no a aspectos secundrios que paream dizer o que de fato no estou dizendo. Mesmo

    porque, ao procurar discutir pressupostos, penso correr riscos bastante grandes de estar

    completamente enganado.

    A segunda parte apresenta uma interpretao e uma anlise dasMemrias pstumas de

    Brs Cubas calcadas na idia de que o escravismo a estrutura fundamental da sociedade

    colonial e brasileira e nela que esto as molas propulsoras de ideologia. Tentei estudar essa

    estrutura, com os limites que me so prprios, tal como se concretizam na ficcionalizao

    machadiana do modo como o narrador percebe o mundo. Nas Memrias, aquilo que parece

    um pano de fundo inexpressivo para o narrador, se revela, numa astcia literria de Machado,

    um funcionamento que resiste ao narrador e que ele no consegue compreender. Quer dizer,

    se pensarmos o escravismo como centro ideolgico da sociedade escravista como parece

    bvio , de que modo poderemos entender a literatura das Memrias como uma literatura

    produzida no escravismo? De que modo compreender adequadamente o escravismo nos

    ajudaria a compreender um pouco melhor o romance? Minha tentativa de resposta que as

    Memrias contam a histria de um homem iludido a respeito do prprio poder, enganado e

    manipulado por homens e mulheres de todas as classes sociais, desde seu escravo at seu pai.

    Na minha opinio, ver o narrador e a personagem que lhe correlata como poderosos capazes

    de fazer e desfazer de escravos e dependentes imita o engano que tnhamos em relao ao

    Bento Santiago, mas em direo diversa e algo enigmtica. Para tanto, tentarei demonstrarque o romance no trata da hegemonia do poder patriarcal, antes o contrrio, procura

    ficcionalizar uma espcie de eroso desse poder o que no equivale a dizer, obviamente, que

    o mesmo ocorre na sociedade.

    Procurei incorporar algumas crticas e sugestes que a banca exps por ocasio da

    defesa desta dissertao. As problematizaes expostas pela leitura da psicanalista Lucia

    Serrano Pereira sero extremamente teis em trabalhos vindouros, especialmente no que

    concerne a superar certa dialtica de dualismos e procurar uma escrita mais constelatria.

    O professor Luis Augusto Fischer considerou, em sua argio, a primeira parte deste

    trabalho como absolutamente equivocada. Sugeriu que ela deve ser completamente reescrita

    ou suprimida. Para mim, ela tem importncia fundamental e no haveria como desenvolver a

    segunda parte sem ter escrito a primeira. Logo, ela aparece aqui tal como apresentada para a

    banca, salvo revises ortogrficas, cortes de repeties e clarificao de frases que me

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    pareceram mal escritas. O professor Fischer tambm apontou que haveria anacronismo no

    meu argumento a respeito das posies de Schwarz. Deixo aos leitores se existirem a

    tarefa de aprofundar o debate e considerar at onde h razo nas crticas do professor, as quais

    respeito, e at onde possa eu tambm ter alguma razo em deixar por aqui a primeira parte.

    A professora Regina Zilberman trouxe igualmente diversas colaboraes muito bem

    vindas. Entre suas perguntas, destaco a que ponderava a respeito de qual o objeto deste

    trabalho, a crtica de Roberto Schwarz ou as Memrias pstumas? Este trabalho trata do

    romance. Meu intuito est em partir do objeto, sem, contudo, pensar o objeto como um dado

    pronto. A primeira parte desta dissertao procura estudar uma das possibilidades de leitura

    dasMemriase quais so alguns dos pressupostos dessa possibilidade, a segunda parte chega

    propriamente ao objeto.

    Por tudo isso, quem ler esta dissertao poder ficar vontade para saltar toda a

    primeira parte do mesmo modo que o leitor das Memrias pode saltar alguns captulos ,

    caso prefira no entrar em discusses de pressupostos. Por fim, uma possvel resposta para a

    questo de Zilberman pode remeter ao modo como Roberto Schwarz leu Antonio Candido e

    lembro aqui de dois ensaios, Pressupostos salvo engano da Dialtica da malandragem e A

    originalidade crtica de Antonio Candido.5Schwarz pretendeu explicitar que a sondagem de

    correspondncias estruturais entre literatura e vida social tem de se haver com obstculos bem

    mais reais que os de mtodo, to lembrados: ela exige conhecimentos e estudos desenvolvidos

    em reas distantes umas das outras, alm da intuio da totalidade em curso, a contracorrente

    da especializao universitria comum. Alm disso, lembra Schwarz, do ponto de vista da

    interpretao literria, o que est em jogo o horizonte a que se refere a forma. Como se v,

    os trechos se referem ao trabalho de Antonio Candido e acrescento por minha conta do

    prprio Schwarz. As idias que aparecem nesse pequeno trecho, me parece, traam um

    enorme caminho a ser trabalhosamente constitudo. Fica ao leitor a possibilidade de discutir

    at que ponto este trabalho, e outros no seu estilo, colabora na construo desse tipo de

    caminho de pesquisa.

    Marx disse que a histria se repete e, quando se repete, aparece uma vez como

    tragdia e uma vez como farsa. Este trabalho tenta ser uma leitura atenta, linha por linha,daquilo que Schwarz props e daquilo que ele no pde encontrar em Machado, para chegar a

    uma leitura do romance mais ou menos problematizadora. O objetivo era, a partir da, evitar

    escrever uma farsa e escrever algo que, apesar de seus limites, tivesse fora prpria porque

    5Publicados em livro respectivamente em Que horas so? e Sequncias brasileiras.

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    tambm Freud ponderou em Alm do princpio do prazerque o objetivo da psicanlise era

    levar o paciente a reconhecer que aquilo que parece ser realidade , na verdade, apenas

    reflexo de um passado esquecido. O esforo dessa dissertao foi no sentido de compreender

    a literatura como um meio de conhecer o passado, evitando tanto quanto possvel, repetir

    numa farsa os silncios e esquecimentos trazidos at o presente desde o passado escravista.6

    6Cabe uma referncia a respeito do ttulo desta dissertao: relendo Machado de Assis: impostura e realismo, deJohn Gledson, encontrei a seguinte passagem: OndeBrs Cubasdesafia o leitor, propondo problemas querequerem solues, e sugere claramente que o narrador iludido a ponto de estar louco (...) (p. 23). Embora eutivesse lido antes, no me lembrava da passagem e no foi meu propsito citar Gledson, embora eu goste depensar em uma espcie de homenagem inconsciente.

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    PARTE I

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    1 Ideologia patriarcal e anlise literria

    Para Roberto Schwarz, o dispositivo literrio das Memrias a volubilidade do

    narrador ele tambm utiliza o termo volubilidade narrativa , espcie de imitao literria

    do comportamento volvel da elite brasileira do sculo XIX. Para abonar sua tese, Schwarz

    procura argumentar que a base ideolgica do Brasil no sculo XIX era o favor relao social

    que podia reter o pas como um todo e que determinava ou facultava elite o

    comportamento volvel frente a tudo e todos.

    Para chegar a essa concluso preciso ler seus livros Ao vencedor as batatas e Um

    mestre na periferia do capitalismo, de 1977 e 1990, respectivamente, como se fossem um

    livro s, em dois volumes. Segundo entendo, a concepo de histria em Ao vencedor as

    batatas bastante mais restrita e abstrata do que aquela presente em Um mestre na periferia

    do capitalismo.Nesse ltimo, a categoria favor praticamente no aparece e de tal maneira

    que, no terceiro captulo do livro, A matriz prtica, no citado (e a dominao pessoaldireta lembrada apenas a respeito da escravido). Dessa forma, tomei para mim mesmo que

    se eu quisesse acompanhar aquilo que via como uma evoluo na concepo histrica de

    Schwarz, eu deveria acompanhar os movimentos que o levaram a dar esse passo. Tentei

    procurar esses movimentos nas notas de rodap de seus livros e penso que as discusses das

    quais Schwarz participou na Unicamp, em torno das pesquisas de historiadores como Luiz

    Felipe de Alencastro, aprimoraram seu trabalho, conferindo-lhe maior complexidade

    histrica.

    Contudo, se lemos os dois livros como continuidade, veremos que, para Schwarz, algo

    se faz presente como totalidade nos dispositivos culturais do sculo XIX. Da arquitetura at a

    literatura, afirma ele, a cultura estava constituda por um torcicolo cultural, por idias fora

    do lugar, em que o encontro de formas europias e matrias americanas abria cicatrizes

    estticas nas faturas das obras singulares. Pelas cicatrizes se poderia perceber um problema

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    social mais amplo, qual fosse, o da ideologia do favor que incorporava ao ambiente

    brasileiro as idias do iluminismo sem incorporar seu processo.

    O favor, para Schwarz, constitui o nexo efetivo da vida ideolgica dos oitocentos.

    Alm disso, o nico meio objetivo de o dependente acessar os bens e servios mais

    adiantados de sua poca sendo, portanto, o meio objetivo de reproduo de uma classe

    inteira. Por esse vis, erra quem entende o favor como um dado ou uma espcie de poltica ou

    ao. Para Schwarz, o favor expressa um tipo de relao, desigual, de cima para baixo, em

    que se reproduz a vida de alguns dependentes e se estrepa a vida de outro sem nmero deles.

    Seria, sob esse ponto de vista, a mediao quaseuniversal ao longo do sculo XIX.

    Parece bvio entender o favor como relao, mas h problemas em faz-lo. Porque

    relao implica tenso entre foras e interesses, posto que desiguais. Sidney Chalhoub procura

    lidar com o problema a partir de uma diviso: o trabalho escravo produz a materialidade de

    toda a vida social, ele parece sugerir da que, no seu estudo, h grande espao para o estudodas polticas escravistas e o modo como os escravos lidavam com isso. Caso seguirmo essa

    idia, o favor depende da produo escravista, est estruturado por ela. De outro lado, certa

    fantasia histrica do paternalismo garantiria a imediaticidade da totalidade social. Em

    outras palavras, garantiria, para os proprietrios, que seu ponto de vista, seus interesses e

    desejos explicassem o sentido de tudo. Logo, a fantasia histrica da qual fala Chalhoub supe

    que toda a sociedade depende do proprietrio e de seu bem estar financeiro, quando, de fato,

    quem reproduz toda a vida material o trabalho escravo.

    Por isso cumpre perguntar: o que significa ou pode ser um nexo efetivo da vida

    ideolgica de uma sociedade? O que Schwarz nos diz a respeito? Se a escravido no esse

    nexo, ento as vidas dos escravos existiram sem repercutir social e ideologicamente. Sem

    efeitos sociais imediatos, elas precisam de mediaes tericas para ser notadas por aqueles

    que no sofrem nelas. Nesses termos, o nico espao social de onde se produziria ideologia

    seria o espao do senhor hiptese que levaria a considerar um subtexto de impossibilidade

    de existncia de um sujeito escravo na tese de Schwarz, o mesmo subtexto, alis, que ele

    critica com grande xito.

    Mary Karasch (2000) demonstra, e a historiografia literria parece confirmar, a

    existncia de um silncio protocolar a respeito da escravido e suas instituies no Rio de

    Janeiro, ao menos na primeira metade do sculo XIX. Isso significa, salvo melhor leitura, que

    Schwarz acerta ao entender uma simpatia, dos escritores, pelo nexo do favor, mas no vai to

    bem ao vincular o nexo do favor como centro ideolgico da sociedade, dado que ele era uma

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    refrao, um desvio, uma insistncia em evitar as condies objetivas da sociedade escravista,

    que, para alm de visar a produtividade capitalista, visava reproduzir a sua hierarquia.7

    Utilizei termos um tanto quanto lukcsianos como imediaticidade e totalidade de

    propsito, mas possvel argumentar mais concretamente: o imediato seria a superioridade do

    senhor, sua sobranceria para usar o bom termo de Sergio Buarque de Holanda (2002, p. 32)

    , enquanto a totalidade seria, para Chalhoub, a escravido, para Schwarz, a volubilidade

    derivada das relaes de favor e entranhada em cada detalhe da vida da elite e,

    consequentemente, dos dependentes e escravos (que, vendo por esse ngulo, acabavam

    irremediavelmente submetidos ao capricho).

    Aqui est o problema. Tentarei formul-lo como pergunta: no seria o favor

    justamente o imediato social, aquilo que os sujeitos da poca ou mais especificadamente,

    uma classe social da poca representavam entre eles mesmos, sem expressar e

    problematizar, pois no era o objetivo, a estrutura do problema, justo a estrutura escravista?

    como se a argumentao de Schwarz vacilasse: ora o favor representao, ora

    conceito; reflete a imediaticidade, mas tambm reivindica totalidade; significa um momento

    da reproduo material e tambm um momento da reproduo simblica e assim por diante.

    O vacilo no significa necessariamente defeito ou contradio ou ainda um problema

    interpretativo basta lembrar que ambivalente, para Chalhoub, o ponto de vista de Helena,

    no o de Estcio ou, para ir alm, o de Brs Cubas, o que leva a uma percepo mais ntida da

    acuidade crtica de Schwarz e do passo dialtico que consiste em variar o ponto de vista, davolubilidade para a ambivalncia e vice-versa. Portanto, no no sentido de defeito terico

    que leio as ambivalncias dos procedimentos tericos de Schwarz. Dado a complexidade do

    pensamento, no gasta prudncia quem duvida que o problema esteja no pesquisador, e busca

    7Entre os historiadores o debate complexo e ainda no foi esgotado. Roberto Schwarz optou por entender aescravido e o favor como aspectos da sociedade capitalista. H diversos estudos que apontam, a partir deuma dialtica marxista, para um modo de produo escravista. Esse ponto de vista, por sua vez, sustentado pordiferentes correntes, algumas divergentes entre si. No Brasil, Jacob Goerender defendeu o escravismo comomodo de produo. Joo Luis Fragoso e Manolo Florentino procuraram mostrar de que modo o trfico e

    movimentos internos da economia produziam sistemas econmicos relativamente independentes dos sistemascentrais. Um estudo que chamou especialmente minha ateno a esse respeito se chama A escravido africana,de Paul E. Lovejoy (2002), em que o autor diferencia a escravido como prtica residual em uma sociedade, aescravido como instituio (a partir das prticas islmicas e dasjihads na frica) e a escravido como modo deproduo (consolidada apenas no sculo XIX). Sendo um livro anterior aos estudos de Fragoso e Florentino, foimuitas vezes citado por eles e marca uma posio desses historiadores, qual seja, a de que o Brasil era umasociedade escravista, isto , uma sociedade em que o principal era reproduzir a hierarquia escravocrata. Tentei,ao longo do presente trabalho, usar o termo escravismo para denominar o sistema de reproduo de escravos e otermo escravido para designar a condio do homem escravo. Obviamente as duas coisas se confundem e nemsempre eu consegui diferenci-las metodicamente.

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    outras formas de investigar e propor a questo, ao invs de dizer o que o pesquisador deveria

    ter dito nesse caso, ainda pior, porque seria ensinar o padre a rezar a missa.

    Resumo assim a proposio de Schwarz (certamente existem outros meios de

    reconstruir o argumento, por isso preciso ateno para no tomar o que se segue como uma

    retomada suficiente do trabalho de Schwarz): a estrutura social dos oitocentos brasileiros

    determinava o uso do favor como meio de sobrevivncia de uma classe inteira, a dos

    dependentes. Os proprietrios que concediam favores agiam de modo volvel em relao

    aos agregados e dependentes. Seu poder abrangia a possibilidade de todo o tipo de violncia,

    fsica ou simblica, e gerava certa inconstncia ou volubilidade no comportamento e nas

    idias das elites. Tal volubilidade, Machado de Assis a imitou na forma literria das

    Memrias.O romance empreenderia uma reduo estrutural entre a visada volvel das elites e

    o dispositivo literrio volvel, reduo essa, mediada por um sem nmero de procedimentos,

    desde o estilo de Sterne, Garret e Xavier de Maistre, passando tambm pelo traquejo formal

    construdo ao longo de dcadas nas crnicas jornalsticas, pelo contato direto com os

    leitores, pela viravolta ideolgica no ponto de vista do prprio escritor e assim por diante.

    Veja-se se no um belo trabalho, que ajuda a pensar a literatura e a sociedade a

    literatura nessa sociedade com denodo crtico?

    Penso que aquele vacilar da argumentao do crtico se inscreve segundo tentarei

    demonstrar em algo mais amplo do que os trabalhos de Schwarz. Aponta para um recorrente

    problema o que no critrio valorativo na abordagem metdica das literaturas e das

    culturas no Brasil. A ambivalncia inscrita em entender o favor como totalidade de uma

    sociedade escravistatem significao profunda trata-se de um persistente modo de entender

    o Brasil, um modo de representar a realidade que em muitos aspectos, coincide com a

    realidade, tem efeito de real.

    1

    Partir de uma leitura adorniana dos estudos de Roberto Schwarz, em que as fissuras da

    escrita servem para compreender fissuras sociais, ajuda a compreender algumas linhas gerais

    do que estou dizendo. Comea-se pela passagem em que o crtico afirma que a colnia nos

    legou trs classes, os latifundirios, os escravos e os dependentes. A relao entre os dois

    primeiros, diz Schwarz, clara, interessa-nos conforme suas palavras a relao entre os

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    latifundirios e os dependentes, isto , a relao do favor, nexo efetivo da vida ideolgica e

    mediao quase universal daqueles tempos.

    esse momento deAo vencedor as batatasque considero especialmente abstrato, no

    sentido que seus conceitos no problematizam a contento o que a histria nos ensina a

    respeito do sculo XIX. Por que entender a vida ideolgica como aquela que se passa entre o

    senhor e o dependente e no levar em conta, teoricamente, as relaes em que escravos

    participam? claro que, quando entendido no horizonte de sua publicao, sabemos que o

    estudo incorpora a problemtica do escravo-coisa. O problema que ainda hoje, de muitas

    maneiras, o nexo do favor tem servido para explicar as relaes sociais do sculo XIX e j

    passou o momento de questionar tal postura. Expondo de maneira rude: no h como dizer

    que 350 anos de relaes as mais variadas, entre escravos urbanos e senhores urbanos,

    escravos rurais e senhores de engenho, escravos domsticos e sinhs, escravos domsticos e

    escravos da lida, ladinos e boais etc. ficam sintetizados criticamente num adjetivo, ainda

    mais este adjetivo: clara. A relao escravista estruturava influenciando todas as posies

    sociais, do traficante de escravos ao cativo desembarcado no Valongo; do agregado ao

    Imperador. 8Por que no nos interessaria justo essa relao, a mais fundamental da poca?

    Uma das respostas de Schwarz leva em conta que a prpria literatura deixava o escravismo de

    lado, enfatizando o favor, nexo mais simptico. Mas ela insuficiente vista pela luz do

    que conhecemos hoje justamente porque, como eu j disse, leva a uma coincidncia, ainda

    que no uma coincidncia fixa e totalizante, entre aquilo que as elites viam como realidade e

    aquilo que a crtica literria passa a entender como realidade. Se o favor valoriza a posio deuma classe particular, por qual razo justo ele deveria ser uma categoria crtica fundamental

    para compreender o sculo XIX?

    Em Mestre na periferia, Schwarz argumenta que nas Memrias, o escravismo

    determinante, mas os escravos so raros. A frase no recebe comentrios demorados, mas

    importante ver que, para o crtico, estamos diante de um romance cuja representao do

    escravismo no tem escravos. Esse modo de construir argumentos a respeito da escravido

    tem longa tradio no Brasil.

    8Como j foi apontado, nesse ponto parto de uma plataforma diversa daquela utilizada por Schwarz e nadagarante, em absoluto, que seja uma plataforma mais correta. No meu caso, me utilizo de Lovejoy, Fragoso,Florentino, Chalhoub e outros para compreender a sociedade do sculo XIX no Brasil como uma sociedadeescravista; sob esse ponto de vista, o escravismo se reproduzia por meio de reprodues sociais amplas,diferentes da lgica capitalista. Com isso, quer me parecer que a proposta de Schwarz ganha um flego aindamaior, pois, a partir de uma premissa histrica problemtica, chega a uma concepo de ciso entre dois tipos devalores (os escravistas e os europeus) que muito melhor explicada pela proposta histrica que ele no tinhadisponvel.

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    Por exemplo: no se entende bem o que significa este raros, porque, de fato, ao

    menos na primeira parte do romance, os escravos aparecem o tempo todo ainda que, fora

    Prudncio sejam todos pano de fundo. Depois, sim, mais ou menos a partir do captulo do

    vergalho, eles se tornam, digamos, raros (o que significativo) e, recorrentemente, a palavra

    escravo passa a ser substituda pela palavra criado. Mais uma vez, um adjetivo aparece no

    lugar de uma necessria e fundamental elaborao.

    Sabemos, hoje, que as relaes escravistas tinham matizes complexos, de modo que a

    ideologia de produo da desigualdade entre senhores e escravos, brancos e negros, no fica

    jamais resumida possibilidade certamente no pequena de domnio fsico.9

    Por que escritores necessariamente falariam a respeito do nexo mais simptico para

    a elite? Por que quase todos fariam (e fizeram) isso? Por que os que no fizeram, como Luiz

    Gama que discutiu a igualdade entre negros e brancos , praticamente desapareceram? Se o

    favor mais simptico para a elite leitora e escritora, o que justificaria que logo esse nexofosse articulado como o nexo crtico no ocorreria a uma espcie de coincidncia entre a

    crtica que Schwarz produz e o objeto que ele constri para criticar? Em que medida, o

    problema crtico reflete, assim, as contradies sociais, incorporando-as forma da escrita

    crtica?

    Sob esse ponto de vista restrito, o favor tal como articulado por Schwarz coincide, em

    partes, com o ponto de vista patriarcal, apagando a contrariedade, as contradies e os

    antagonismos que lhe constituem e so constitudos na e para a totalidade. Isso leva a

    interpretar o narrador e a personagem Brs Cubas como representaes do poder da elite

    quando a proposta literria, como se ver na segunda parte, constri a temtica menos em

    torno do poder do que da iluso de poder dessa personagem.10Assim, preciso cuidar quando

    tomamos o favor ou a volubilidade como o todo ou, de outro modo, a totalidade da sociedade

    9Diversos livros podem sustentar essa argumentao. Remeto especialmente aA paz das senzalas: famliasescravas e trfico atlntico, Rio de Janeiro, c.1790-c.1850, de Manolo Florentino e Jos Roberto Ges, porque um livro relativamente recente (1997) e que incorpora as discusses da lista que segue. Vises da liberdade, de

    Sidney Chalhoub,Liberata: a lei da ambigidade, de Keyla Grinberg,Na senzala, uma flor, de Robert Slenes,Ascores do silncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, de Hebe Maria Mattos de Castro, e Omundo dos fugitivos, de Mrcia S. Amantino eRebelio escrava no Brasil, de Joo Jos Reis. Para um painelespecfico a respeito da vida escrava urbana, no Rio de Janeiro, ver Mary Karasch, A vida do escravo no Rio de

    Janeiro.10O professor Luis Augusto Fischer chamou ateno, na banca de defesa, para o fato de que o favor enriquece aleitura dos primeiros romances de Machado e tambmDom Casmurro. Penso que nunca discordei desse tipo deargumento, mas caso a impresso passada seja essa, fica a ressalva: as dvidas de Bento Santiago constituemuma proposta diversa da iluso de Brs Cubas. Meu argumento aqui diz respeito somente a uma proposta deleitura dasMemrias.

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    do sculo XIX, porque, nesse caso, estaramos aceitando que a conscincia da elite capaz de

    reter de modo adequado as contradies sociais.

    Via Trotski e, talvez, por meio do Marx dos Grundrisse, Schwarz aponta as contra-

    temporalidades e no-linearidades entre as formas culturais e as matrias cotidianas. Indica

    com isso um dos caminhos tericos para entendermos o que se passava com nossa literatura.

    Contudo, ao deixar a escravido de lado utilizando de maneira ostensiva dois adjetivos com

    carga semntica conclusiva , sugere, a meu ver, um campo de pesquisa em que fica esboada

    a contradio fundamental de uma sociedade que, literalmente, produzia uma coisa, um

    animal, a partir do corpo de um ser humano.11

    2

    A totalidade, conforme Georg Lukcs e Karol Kosik, seria uma teoria da realidade e

    do conhecimento dessa realidade pelos homens que o realizam (cf. KOSIK, 1976, p. 36).

    Nesse sentido, o conceito que busca se estruturar como totalidade no deveria repercutir

    mesmo que apenas em alguns aspectos , sem maiores desenvolvimentos e mediaes, o

    ponto de vista da elite proprietria de determinada estrutura social.

    Vejamos como procedeu Fernando Henrique Cardoso, em um estudo contemporneo

    ao de Schwarz. Na Introduo de seu Capitalismo e escravido no Brasil meridional, ele

    procura compreender a totalidade como o proceder do mtodo dialtico. Cardoso remete ao

    Marx da Contribuio crtica da economia polticae refora que o mtodo dialtico no va totalidade como reproduo de condies, fatores, mecanismos e efeitos sociais que

    interferem na produo de um fenmeno, processo ou situao social (1962, p. 10-11). No

    se trata para o socilogo de encontrar padres de invarincia ou certa identidade, mas as

    diferenas na unidade(o grifo meu). A perspectiva da totalidade visa se transformar numa

    perspectiva de interpretao, no que a anlise dialtica na sociologia assume uma

    perspectiva totalizadora, ou, em outros termos, que ela procura descobrir as determinaes

    essenciais capazes de explicar tanto a formao dos padres que regem as formas de

    interao social quanto as condies e os efeitos de sua manifestao (Idem, p. 11).

    11Conforme Florentino e Ges, ambos se opondo s concepes da Escola Paulista, o escravismo noanimalizava totalmente o escravo nem mesmo sob a tica do senhor porque dependia de sua (do escravo)humanidade para concretizar a hierarquia social (ver, na concluso do livro, as p.172-173 e 178). Sobre ahierarquia da sociedade escravista, ver tambmHomens de grossa aventura, de Joo Luis Fragoso, e Em costasnegras, de Manolo Florentino.

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    Depois de analisar distintos pontos de vista a respeito da totalidade, como por

    exemplo, o ponto de vista funcionalista, Cardoso argumenta que, para que a construo

    dialtica da totalidade assuma sentido heurstico ela no deve reter as relaes a serem

    determinadas pelo conceito totalizador como reproduo no pensamento de relaes

    empricas, nem basta que a teoria seja capaz de reter os padres que regem as conexes entre

    essas relaes (Idem, p. 14). Para Cardoso, preciso que as categorias totalizadoras sejam

    capazes de reter as contradies do real em termos dos fatores histrico-sociais efetivos de

    sua produo (e, neste sentido, categorias saturadas historicamente, empricas) e de

    categorias no definidas empiricamente, capazes de desvendar as relaes essenciais que

    aparecem de imediato, como afirmava Marx, mistificadas (Idem, p. 14).

    Temos, nitidamente, alguns argumentos que estabelecem a necessidade de perscrutar

    as diferenas na unidade, sem o que impossvel reter a totalidade, tal como Marx a entendia

    o que no significa, obviamente, que no se possa fazer de outras maneiras. No se trata,

    com isso, de a escravido ser, em termos lgicos, causa do favor seria um modo

    improdutivo de estabelecer a questo. Pelo contrrio: se trata de que ao entendermos o favor

    como relao entre desiguais, supomos a dialtica dessa relao, na luta social da poca, isto

    , aquilo que reproduz a desigualdade para os desiguais. O favor se realiza como relao entre

    homens, em determinada sociedade, logo, ele precisa ser entendido em contraparte: a vontade

    do senhor e o restrito, sempre cruel, espao de negociao aberto pelos agregados ou

    escravos.

    Kosik chamaria de pseudoconcreticidade a totalidade imediata, dado que h homensnessa descrio que entram como objetos inescapveis de outros homens ao menos na

    fantasia desses outros homens, como, a respeito de outra coisa e em outro sentido, aponta

    Chalhoub. E o caso que, nem querendo, uma classe social conseguiria, por trezentos e tantos

    anos, debaixo de chicote, trabalho forado e humilhao, ser apenas objeto da histria de

    outros homens.

    Para deixar mais clara minha posio, lembro que no Lukcs deHistria e conscincia

    de classea totalidade constitui a formado mtodo marxista. Lukcs procura apontar para as

    contradies sociais, mas tambm para a contradio que haveria entre o procedimento

    marxista de totalizao e a individualizao e racionalizao crescente da sociedade. Nesses

    termos, a totalidade no representa como aponta Jameson (p. 49) o social como um todo,

    pelo contrrio, ela retm uma relao no momento de sua invisibilidade. O pressuposto dos

    procedimentos de mediao para a totalidade reside em uma histria de individualizao e

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    reificao problemas que j estavam, de outra maneira, no Teoria do romance. A totalidade

    do ser social pressupe o resgate de uma forma de relao que a reificao e os

    antagonismos burgueses impedem de estabelecer, a no ser que, para Lukcs, a conscincia

    seja construda na subjetividade possibilitada objetivamente pela tenso unitria entre o objeto

    e o sujeito da histria, propriamente, o proletrio.

    Voltando discusso, o menor problema que digamos que a totalidade o favor ou a

    escravido ou uma combinao das duas relaes. O problema colocarmos estes conceitos

    em movimento, ou melhor, em movimento que retenha os movimentos sociais em sua

    concreticidade, para entend-los nas relaes sociais em que eram produzidos e em que so

    produzidos como conceitos. ento que se pode vislumbrar o funcionamento interno do

    romance: na concreticidade em que os homens so sujeitos-em-si ainda que sejam objetos

    da histria construda pelo ponto de vista dos vencedores. O que temos aqui uma

    organizao social que entende que os escravos no sejam sujeitos ou, em outros termos, uma

    organizao social que no individualiza uma parcela considervel da populao e por isso,

    o ponto de vista que v o escravo como no sujeito impossibilita francamente qualquer

    totalidade conceitual.

    A totalidade a ser construda se quisermos descrever e analisar o romance de Machado

    de Assis deve levar em conta uma organizao social que pedia o impossvel, isto , que seres

    humanos no pensassem, nem sentissem, no se expressassem, nem desejassem ou o

    fizessem apenas como vetores de vontades dos seus proprietrios. Nesse caso, faz parte do

    processo de totalizao que ele negue a si mesmo, incluindo na sua prpria fatura o problemade sujeitos que no so percebidos como sujeitos ou, na frmula adorniana, construindo

    conhecimento a partir de uma primazia do objeto, nesse caso, a alteridade social, isto , os

    escravos. A categoria do favor tem o defeito de representar as relaes sociais sem pressupor

    foras de contrariedade, tomando como princpio que se as estruturas sociais dominantes ou

    hegemnicas reproduzem uma classe social como no-sujeito, ento, necessariamente, essa

    classe ser de no-sujeitos. Ao derivar da relao do favor o conceito de volubilidade como

    totalidade social, Schwarz cria duas frentes: uma crtica, que apreende e expe relaes

    sociais desiguais; outra, digamos assim e que nos entendam bem , conservadora, que no

    contradiz dialeticamente na estrutura do prprio conceito o procedimento que critica.

    Proponho que a contraditoriedade entre escravido como centro explicativo e do nexo

    do favor que gera volubilidade apreensvel como totalidade deve ser incorporada anlise,

    como problema interno da prpria anlise, dado que um problema objetivo da sociedade

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    internalizado pela forma da escrita crtica como se ver adiante pela forma da pesquisa nas

    reas das humanas. Isto , se a relao escravista invisvel na literatura, sua invisibilidade

    pode ser criticamente elaborada, fazendo emergir da reificao do escravo a possibilidade de

    uma alteridade crtica. Assim, a totalidade no estabelece uma verdade a ser restaurada no

    objeto, mas busca reconhecer a desigualdade dos pontos de vista apagados e silenciados e do

    ponto de vista que se afirma para que o objeto em questo seja reconhecido e legitimado de

    certa maneira e no de outra nos horizontes de pesquisa. Em outras palavras, se torna

    fundamental aprender como os conceitos hegemnicos so produzidos para entender maneiras

    de se desvencilhar de Brs Cubas e de tudo o que ele significa. Aquilo que o conceito de favor

    subsume, na concepo de Adorno, o particular, aquilo que ficou, como veremos em

    seguida, historicamente subsumido.

    Chalhoub, ao considerar a possibilidade de uma metodologia de dependentes12, ou

    Eduardo de Assis Duarte (2007), ao considerar uma poro afro-descendente na escrita

    machadiana, apontam possibilidades de pesquisa nos estreitos desvos de um persistente

    ponto de vista centrado na casa-grande (ver captulo 2). Apreende-se a partir das

    consideraes dos dois pesquisadores, que o poder, ao ser criticado, no deve ser idealizado

    em segunda potncia, pois, sob opresso de trezentos e tantos anos, os escravos construram

    conscincia para Lukcs, alis, a luta pela conscincia o que deve ficar retido na totalidade

    dialtica.

    No se trata, portanto, de dizer, como Jacob Goerender, que a escravido fica vista,

    dessa forma, como um campo aberto, benigno, cheio de oportunidades para quem tivesseautonomia e empenho. Ao contrrio, se trata de ver qual tipo de conscincias foi possvel

    constituir no n grdio da explorao na diviso internacional do trabalho. Isso leva em conta

    que, mesmo no maior sofrimento, os seres humanos, sejam quais forem, sentem e expressam

    algo, nem que seja, o sofrimento. E, sofrimento que seja, por dcadas tm sido desconsiderado

    como inexistente ou desnecessrio para o entendimento do pas.

    Assim, entre a volubilidade do narrador e a metodologia de dependente, duas

    magnficas descobertas, h a possibilidade de construir teoricamente a totalidade que cria duas

    12Cf. a esse respeito p. 24 (sobre ambivalncia da personagem Helena); p. 61 (sobre o domnio inconteste dossenhores como um mundo idealizado pelos senhores); p. 64 (sobre o modo como Machado de Assis teriaincorporado a suas obras o ponto de vista do dominado); p. 73 e 80 (sobre a utilizao dessa idia na leituradasMemrias) ; p. 91 (sobre a percepo de que o subalterno, quando sujeito da histria, se torna criminoso como Capitu se tornou uma traidora); p. 93 (em que aparece o termo metodologia dos dependentes que seriaum dos princpios da arte literria de Machado de Assis) e p. 134-135 (sobre a noo de liberdade numasituao de dependncia).

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    conscincias de tal modo opostas, uma volvel, a outra que procura conhecer seu outro para

    tirar vantagens disso ambivalente. Ser preciso cuidar do andamento do romance, afinal,

    nele as duas formas de conscincia aparecem como verso em primeira pessoa de uma

    delas.

    Caso no sejam consideradas como parte do conceito, o do favor, no caso, e, por

    conseguinte, o da volubilidade, tais contrariedades ficam subsumidas, digamos assim, e a

    lgica da crtica acaba por, mesmo que de modo rebatido, correspondendo a elementos do

    engano irradiado pelo objeto a imaginosa volubilidade sem peias produzida por um poder

    sem medida , nem por isso perdendo o tnus crtico.

    O que Schwarz ensina como totalidade, prefiro reter como aspecto ou momento

    aparente da relao mais concreta e fundamental, e, por isso mesmo, tremendamente abstrada

    a ponto de ser invisvel em sua onipresena , a escravista. A partir da, podemos considerar

    as contradies imanentes da totalidade que temos tentado exprimir, uma delas, a de ser umasociedade cuja cultura, cincia etc., silenciam e eufemizam a escravido e o escravo, supondo

    numa fantasia notvel que boa parcela da populao, justo a responsvel efetiva pela

    produo, no tinha conscincia de si e estava impossibilitada de agir em interesse prprio.

    Tudo isso nos leva ao problema tambm fundamental da diviso das classes. Schwarz,

    como se viu, prope emAo vencedor as batatas, trs classes, em que apenas duas produzem

    efetivamente ideologia (a outra, lhe basta a porrada). Contudo, tal diviso, se a tomarmos

    como momento abstrato da anlise, no bate com o concreto da vida social que a Histria tem

    nos ensinado, nem bate com a estrutura de classes construda no romance (Prudncio no

    latifundirio, mas, l pelas tantas, senhor de escravos e ao mesmo tempo ainda escravo;

    tambm so senhores Dona Eullia, me de Eugnia portanto, esta seria dependente e

    senhora, ao mesmo tempo e Marcela, por exemplo). Evidentemente, a abstrao lida com

    graus de perda das singularidades, mas pode chegar a um ganho qualitativo na ao dos

    sujeitos no seu mundo singular. Contudo, no h como equiparar, por assim dizer, os senhores

    posio de latifundirios. Na fico e na realidade, havia certa diversidade de senhores, nos

    engenhos, nas charqueadas, nas minas, nas cidades (cf. FRAGOSO, 1998, cap. II e

    GOERENDER, 1988, Quinta parte). Alm disso, havia senhores mercantis e senhores

    agricultores. Havia as sinhs, parte das quais era responsabilizada pelo trato com a escravaria

    domstica (porque a escravido, at meados do sculo XIX era considerada problema privado,

    logo, da alada das esposas). Havia senhores que eram escravos. E senhores pobres, muito

    pobres, que procuravam se diferenciar na sociedade, no trabalhando e possuindo escravos de

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    ganho. Entre os dependentes, igualmente, havia grande diversidade: homens livres,

    funcionrios pblicos, advogados, mdicos. Schwarz afirma que todos dependiam, pouco ou

    bastante, da vontade dos proprietrios, mas no consegui confirmar tal assero em qualquer

    das bases histricas onde procurei busc-la. Ao que parece, pelo contrrio, muitas vezes

    tambm os senhores precisavam, no s dos servios, mas tambm dos conhecimentos, de

    homens livres e de escravos. H um nmero, pequeno embora, de senhores urbanos que

    literalmente dependeram diretamente do pagamento das jornadas dos escravos de ganho, e

    expressavam a prpria instabilidade financeira por meio de alforrias estratgicas e

    autorizaes de casamento das escravas. Ou seja: havia alguns senhores que viviam do

    dinheiro que lhes ganhavam os escravos.13

    O modo como Schwarz escreveu sobre as classes faz supor que havia apenas dois

    tipos de relao: do senhor com o dependente (o favor) e do senhor com o escravo (a

    escravido). Sempre o senhor como centro do processo. Onde ficam nisso tudo as relaes

    entre escravos e eles mesmos, entre escravos e dependentes, entre os dependentes e outros

    dependentes e assim por diante?

    E por fim: por que diabos apenas a relao entre o senhor e o dependente produz

    ideologia o favor? A relao entre senhor e escravo seria to clara que sequer ideologia

    produz? No seria isso tambm ideologia? Como argumentar em defesa da hiptese de que a

    vida ideolgica se dava entre senhores e dependentes e no entre senhores e escravos? H

    inmeras possibilidades para demonstrar que todo tipo de diferenciao social se baseava no

    nexo escravista14, bem como se pode notar uma srie de comportamentos da sociedade brancacomo conseqncia das revoltas e rebelies dos escravos. Clia Maria de Azevedo Marinho,

    por exemplo, explicita o medo dos senhores de escravos paulistas de um novo Haiti ou de

    uma nova revolta como a dos mals, na Bahia. Como dizer que isso no faz parte do grosso da

    vida ideolgica?

    13Uma demonstrao so as diversas cartas de alforria que designam os motivos pelos quais os senhoresassinavam a manumisso de determinado escravo: Os bons servios que me fez assistindo sempre comigo e meter dado em dinheiro por vezes 50.000 ris para meu sustento (REIS, 1988, p.79).14Lembro da famosa gravura de Debret, em que um senhor sai de casa, acompanhado dos filhos, da esposa, e,em seguida de uma srie de escravos, ordenados em fila, conforme o grau de importncia na hierarquia da casa-grande. Tambm, a esse respeito, ver a anlise que Luiz Felipe de Alencastro faz de uma fotografia em que umsenhor posa ao lado de diversos escravos, alguns com os cabelos repartidos e roupas semelhantes ao senhor,outros mal vestidos e assustados.

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    Mary Karasch (2000) e David Brookshaw (1986), cada qual em um estudo, salientam

    que antes dos anos 1850, a literatura praticamente ignorou os escravos.15 Enquanto isso,

    afirma Karasch, os viajantes estrangeiros no tinham outro assunto nos seus livros. Essa

    diferena, a historiadora acredita se dever a um receio dos escritores e jornalistas em

    considerar a escravido um tema da escrita. Brookshaw considera que o problema era tambm

    que os escravos no eram vistos como seres humanos, logo, no havia razo para escrever

    sobre seus dramas e vidas. Supostamente, no havia dramas, nem vidas. Depois dos anos

    1850, Brookshaw sustenta que pouco a pouco comearam a aparecer na poesia, no teatro e no

    romance, bem como no jornalismo, o escravo, a escravido e os temas abolicionistas e

    emancipacionistas.

    Houve portanto um duradouro e eficaz pacto de silncio a respeito da escravido e dos

    escravos algo que talvez seja um exemplo de como funciona a ideologia. Isso explica um

    pouco do que significa o favor como nexo mais simptico do que a escravido, mas deixa

    como resto, para que reflitamos, a pergunta: aquele apagamento ou desconsiderao a respeito

    do nexo escravista e do escravo, de algum modo, est tambm na percepo do favor como

    nexo efetivo da vida ideolgica de uma sociedade escravista?

    O argumento de Schwarz est montado sobre uma ambivalncia conceitual, que,

    segundo j afirmei sem ainda demonstrar, mais questo do horizonte social do que da

    pesquisa em si, e de alguns problemas de interpretao histrica, em grande parte semelhantes

    ao imaginrio patriarcal que nos rege o senso o meu, certamente a partir dos cnones de

    Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e outros.H mesmo uma srie de coincidncias formais entre o modo como Schwarz utiliza as

    expresses clara, raros e mais simpticos e o modo como, por exemplo, Caio Prado Jr.

    entende como se ver que o problema do negro mais simples quando comparado ao

    do ndio e do portugus. Por esse motivo, argumentei acima que a ambivalncia aponta para

    problemas sociais, internalizados pela forma da escrita crtica.

    A questo, porm, que Schwarz de modo algum um mau crtico literrio, pelo

    contrrio, est entre os melhores, nem seu pensamento pode ser resumido aos problemas

    acima expostos, ou s escorregadelas formais e histricas que contm e que, afinal de

    contas, todo trabalho acaba por conter. Contudo, o fato de seu equvoco histrico funcionar

    para a leitura de Brs Cubas, e ter muita vez um efeito de ltima anlise, de verdade,

    15A esse respeito eu falava, quando da discusso do conceito de totalidade, da invisibilidade da escravido nasociedade do sculo XIX e na nossa.

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    pode sugerir que o problema enfrentado por Schwarz , ao menos em certos aspectos, que

    caber trocar em midos, o mesmo problema exposto nos limites do ponto de vista de Brs

    Cubas, conforme poderamos dizer se forssemos, mas no muito, a opinio de Sidney

    Chalhoub.

    Ser esse meu argumento: as Memrias tratam de uma personagem iludida sobre o

    prprio poder, mas no o fazem de modo abrupto, seno como um processo, que vai de um

    poder infantil ilimitado e grandioso (a escolha da profisso, o trato com os escravos) at um

    exerccio sem instrumentos e iludido do poder (proposta da barretina, uso escroto da cincia

    para legitimar superioridade, delrios de grandeza a partir de um emplasto sem p nem

    cabea). O processo corresponde, em termos sociais, decadncia do poder escravista,

    prpria derrocada da escravido como tal. Para Chalhoub ocorre no romance uma passagem

    das vias de fato expresso de uma pretensa superioridade simblica, cultural, racial,

    biolgica ideologia pura, mas nem por ser imaginao, menos contundente nas suas

    conseqncias prticas, ainda nos dias de hoje e, temo, ainda por algum tempo. Enfim,

    haveria uma continuidade do poder de coero fsica contra o escravo para o poder de se

    definir como superior biologicamente, no campo da cincia. Como se o monoplio da

    violncia, migrando, pouco a pouco para o Estado, gerasse uma crise nas elites escravistas que

    pode ser lida como um dos temas do romance. O Leviat coincidia com os poderes de certa

    classe, que, baseando seu poder na violncia explcita no pde constituir conscincia

    adequada do funcionamento social que era muito mais complexo e matizado do que a

    violncia pura e simples (utilizava, ao contrrio, diversos procedimentos de hierarquizao edistino). Diferentemente de Chalhoub e Schwarz, portanto, para mim, o romance no trata

    de um tempo de inviolabilidade absoluta da vontade senhorial ou de dominao assentada

    (cf. CHALHOUB, 2003, p. 73), ao menos no do comeo ao fim. Pelo contrrio, um dos

    temas dasMemriasseria, a meu ver, uma espcie de desiluso de classe, mais ou menos nas

    formas que John Gledson expressou para oDom Casmurro, no qual, segundo Gledson (2005),

    o ressentimento da classe destituda de suas prerrogativas ajuda a construir e dar densidade

    literria ao cime.

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    2 O imaginrio patriarcal e suas formas: breve anlise dos clssicos

    Nos prximos pargrafos, procurarei demonstrar que nas obras de Caio Prado Jr.,

    Gilberto Freyre e Florestan Fernandes16recorre, s vezes de modo ostensivo, algo que optei

    por chamar de ambivalnciaa respeito da escravido negra. O mesmo problema aparece em

    Razes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, e Capitalismo e escravido no Brasil

    meridional, de Fernando Henrique Cardoso, que no sero analisados porque o estudo desses

    autores no o foco desta dissertao, bastando para a argumentao desenvolvida o que ser

    demonstrado em algumas das obras dos trs primeiros.17

    Ambivalncia18 talvez no seja o melhor termo, principalmente porque foi utilizado

    por Sidney Chalhoub para descrever o ponto de vista do dependente nos romances de

    Machado de Assis, Helena, em especial. Trata-se de afirmar, com esse termo, um desnvel

    nesses estudos, que afirmam a escravido como estrutura fundamental, central, determinante,

    mas, ao mesmo tempo, ou nos pargrafos imediatos, afirmam que o negro tem poucacontribuio na constituio do pas, que a escravido por aqui tinha condies de

    confraternizao e mobilidade social, que o nexo a ser estudado para uma boa compreenso

    16Como tomarei partido com firmeza a respeito da algumas formas de escrever que esses pensadores utilizaram,gostaria de salientar a profunda admirao que constru por eles, especialmente Florestan Fernandes umhomem cuja vida e obra aprendi a admirar ao longo do aprendizado que me trouxe a essa dissertao. As crticasque doravante sero postuladas tm o propsito de discutir idias e posies, e no pretendem jamais esquecerou diminuir o trabalho intelectual desses homens.17Em Sergio Buarque de Holanda, as razes do Brasil so basicamente ibricas, restando claramente deixadas delado por opo terica as possveis razes africanas e escravas. Em Fernando Henrique Cardoso, ocorre a

    suposio, derivada de Florestan Fernandes, que o escravismo seria capaz de coisificar o escravo inteiramente,at na sua subjetividade. Escapa a o sentido de alteridade subjetiva que se torna fundamental para entender ahistria da maior parte da populao brasileira.18Jess Souza (2000) utiliza o termo impreciso. Preferi ambivalncia porque o estudo de Souza enfatizaoutros pontos da questo, sendo bastante til para entenderAo vencedor as batatase As idias fora do lugarcomo um livro sntese da problemtica do que Souza chama de sociologia da inautenticidade, cominautenticidade se referindo a um funcionamento das idias de modo externo s prticas sociais. Fique claro queSchwarz nunca defendeu que as idias e as prticas sociais no se relacionam. Sua tarefa era evidenciar que eracomum brasileiros falarem do Brasil a partir desse torcicolo cultural, que se fez concretizou em formasculturais, desde a msica, passando pela arquitetura e chegando literatura de um Jos de Alencar.

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    da sociedade do sculo XIX e sua literatura o nexo do favor. Essa ambivalncia ou

    contradio aparece na forma dos escritos, algumas vezes sendo evidentemente oposta ao que

    o pesquisador argumenta. Tentarei dar alguns exemplos e depois tratarei de apanhar o que

    ser importante para analisar Machado de Assis. Tive em mente sempre as seguintes

    perguntas: h um modo recorrente de organizar os textos sobre a escravido? A resposta a que

    cheguei foi sim, h. Ento esse modo tem algo a me dizer a respeito do romance Memrias

    pstumas? Espero estar, pouco a pouco, demonstrando que sim mas precisamos aguardar a

    segunda parte do trabalho para entrar no assunto. Cabe antecipar, para evitar interpretaes

    mecnicas, que de modo algum meu argumento o seguinte: existiu um protocolo de silncio

    sobre o escravo e a escravido no Brasil do sculo XIX, logo este silenciamento deve estar

    nasMemrias pstumas. Minha proposta gira em torno de outro eixo, qual seja: h um modo

    recorrente de escrever sobre a escravido e esse modo limita a maneira como muitas vezes se

    entende asMemrias, sendo que tal limitao coincide em parte com as zonas de cegueira que

    o romance apresenta como limites do narrador e seu ponto de vista. Essas perguntas e

    colocaes, espero, restringem o debate a um nvel preciso, para alm do qual a maneira como

    abordo os estudos aqui destacados no tm qualquer valia.

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    Gilberto Freyre, no primeiro captulo de Casa grande e senzala, procura as

    caractersticas gerais da colonizao portuguesa e de modo similar ao que far Caio Prado Jr.

    aponta, desde o ttulo do captulo, trs bases para a sociedade brasileira: agrria, escravocrata

    e hbrida. Vejamos o que ele escreve ao final deste captulo:

    Considerada de modo geral, a formao brasileira tem sido, na verdade (...), um processo deeqilbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europia e aindgena. A europia e a africana. A africana e a indgena. A economia agrria e a pastoril. (...)O grande proprietrio e o paria. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos osantagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo. (FREYRE, p. 116)

    No pargrafo seguinte, o ltimo, Freire complementa:

    verdade que agindo sempre, entre tantos antagonismos contundentes, amortecendo-lhes ochoque ou harmonizando-os, condies de confraternizao e mobilidade social peculiares aoBrasil: a miscigenao, (...) o fcil e freqente acesso a cargos e a elevadas posies polticas(...). (FREYRE, p. 117)

    Veja-se que a ambivalncia de que falo se apresenta como uma contraposio. Freire

    descreve a sociedade via antagonismos, para, em seguida, como que negar a prpria

    descrio, matizando-a, como se os antagonismos existissem sem existir. Para quem l a

    pgina 116, fica mais ou menos evidenciado que havia diversos antagonismos sociais e que a

  • 7/25/2019 o Narrador Iludido Machado de Assis

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    escravido constitua o principal deles isso ganha fora de um fato para o leitor mais

    descomprometido. Vira-se a pgina e os antagonismos contundentes se vem

    imediatamente harmonizados. Em termos formais, ocorre queda de tenso, pela alterao do

    campo semntico dos adjetivos. Primeiramente, as frases organizam dualidades, num

    crescendo que vai at despontar a relao senhor-escravo. Em seguida, o antagonismo deixa

    de ser o sentido que liga senhor e escravo para, no lugar dele, entrarem termos como

    confraternizao, mobilidade. O texto, que se embalava num crescendo de tenso, ao chegar

    no ponto mximo contundente arrefece. O pargrafo seguinte poderia soar como uma

    emenda de outro autor.19No por nada, inicia com verdade que, sendo uma resposta a um

    interlocutor que teria posto a questo da harmonizao dos contrrios, da democracia racial.

    Talvez, esse verdade que seja uma espcie de rachadura pela qual podemos espiar foras

    exteriores ao discurso20, comprometendo sua articulao lgica, mas, ao mesmo tempo,

    ligando-a com os problemas s