aldemir do nascimento - biblioteca.unilasalle.edu.br · variante do narrador em primeira pessoa é...
TRANSCRIPT
ALDEMIR DO NASCIMENTO
O NARRADOR NO ROMANCEVIDAS SECAS
CANOAS, 2007.
1
ALDEMIR DO NASCIMENTO
O NARRADOR NO ROMANCEVIDAS SECAS
Trabalho de conclusão apresentado à bancaexaminadora do curso de Letras do UNILASALLE -Centro Universitário La Salle, como exigência parcialpara a obtenção do grau de Licenciado em Letras –Português / Espanhol e respectivas Literaturas, soborientação do Prof. Dr. Cicero Galeno Urroz Lopes.
CANOAS, 2007.
2
TERMO DE APROVAÇÃO
ALDEMIR DO NASCIMENTO
O NARRADOR NO ROMANCEVIDAS SECAS
Trabalho de conclusão aprovado como requisito parcial para a obtenção do graude Licenciado em Letras, do Centro Universitário La Salle - UNILASALLE, pelo
seguinte avaliador:
Prof. Dr. Cicero Galeno Urroz Lopes.UNILASALLE
CANOAS, 12 de dezembro de 2007.
3
Dedico este trabalho à minha amada esposa,Graziele; ao meu precioso filho, Isaque; àminha estimada mãe, Jandira do Nascimentoe a todas as pessoas que influenciam minhavida positivamente.
4
Uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que
para trás ficam e avançando para as que estão
adiante de mim, prossigo para o alvo, pelo
prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo
Jesus.
Carta de S. Paulo aos Filipenses, cap. III, v. 14
5
Agradeço ao meu amado Senhor Jesus pelo
privilégio de alcançar um feito que, em nosso
país, ainda é restrito a poucas pessoas; à minha
esposa e filho, pelo amor e pela compreensão
que sempre demonstram; à minha mãe e irmãos
pelo incentivo; aos meus pastores, Jandyra e
Pedro Paulo, pela amizade e carinho e, em
especial, ao meu professor orientador Cicero
Galeno Lopes, por ministrar em cada aula e cada
encontro, uma aula de vida.
6
RESUMO
O presente trabalho é um estudo sobre o narrador do romance e como o narradordo romance Vidas secas, de Graciliano Ramos, se apresenta na referida obra. Otexto conceitua e mostra os tipos de narrador, depois analisa o narrador da obraem questão através de excertos, relacionando-os com a teoria. A fundamentaçãoteórica foi realizada, principalmente, em Oscar Tacca, com seu livro As vozes doromance; Cândida Vilares Gancho, em Como analisar narrativas e em Carlos Reise Ana Cristina M. Lopes com o Dicionário de narratologia.Palavras-chave: narrador, romance, teoria.
RESUMEN
El presente trabajo es un estudio acerca del narrador del romance y cómo elnarrador del romance Vidas secas, de Graciliano Ramos se presenta en la referidaobra. El texto conceptúa y muestra los tipos de narrador, después analisa elnarrador de la obra en cuestión por medio de fragmentos, relacionándoles con lateoría. La fundamentación teorica fue realizada, principalmente, en Oscar Tacca,con su libro As vozes do romance; Cândida Vilares Gancho, en Como analisarnarrativas y en Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, con el Dicionário denarratologia.Palabras clave: narrador, novela, teoría.
7
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 08
2 ESTUDO SOBRE O NARRADOR ..................................................................... 09
2.1 Conceito de narrador ..................................................................................... 09
2.2 Tipos e características do narrador ................................................................ 11
3 O NARRADOR NO ROMANCE VIDAS SECAS .................................................16
4 CONCLUSÃO .................................................................................................... 20
REFERÊNCIAS .................................................................................................... 22
8
1 INTRODUÇÃO
Graciliano Ramos é considerado um dos maiores escritores da prosa
nordestina e é apontado pela maioria dos críticos do Brasil como o autor de obras-
primas.
Em Vidas secas, o leitor conhece a vida do vaqueiro Fabiano: homem rude
que, acostumado à vida agreste, vagueia com sua família pela caatinga. Ele
emprega-se numa fazenda até a chegada da próxima seca, quando serão
novamente obrigados a fugir da seca.
Vidas secas integra o ciclo da seca do romance de trinta, juntamente com
Gabriela cravo e canela, O quinze e outras obras que abordam o tema da seca.
Nesta monografia, analisarei o tipo de narrador presente no romance Vidas
secas. Para isso, utilizarei os conceitos teóricos de alguns autores como Donaldo
Schüler, Georg Lukács, Ligia Chiappini, Oscar Tacca, Ronaldo C. Fernandes e
outros.
O trabalho será constituído das seguintes partes: introdução,
desenvolvimento em dois capítulos, conclusão e referências bibliográficas.
No capítulo inicial, analisarei os conceitos e os tipos de narrador, assunto
para chegar ao tema principal desta monografia. O segundo capítulo tratará sobre
o narrador do romance em questão. Terminarei o trabalho com um breve resumo e
com a conclusão.
O trabalho será feito a partir de pesquisas bibliográficas.
9
2 ESTUDO SOBRE O NARRADOR
2.1 Conceito de narrador
A palavra narrador vem do latim narratore e significa que ou aquele que
narra, conta, relata. Segundo Fernandes (1996), o narrador é o elemento
imprescindível no romance. Ele não é apenas mais um recurso, ele é a gênese, o
elemento inaugural. O narrador conhece a história, podendo estar muito próximo
ao que conta, sendo até mesmo personagem, como pode afastar-se e narrar com
suposta indiferença.
O Dicionário Houaiss da língua portuguesa traz a seguinte definição do
verbete narrador:
O narrador é uma entidade fictícia que, numa narrativa, possui a função deenunciar o discurso, sendo o protagonista da ação narrativa. A princípio, umnarrador pode assumir também o lugar de um personagem, narrando os fatosem primeira pessoa ou mantendo-se fora do enunciado, narrando osacontecimentos em terceira pessoa (HOUAISS, p. 1996).
Abdala Júnior (1995) procura estabelecer uma clara distinção entre o autor e
o narrador. Para ele, o primeiro é o sujeito que escreve, aquele que recebe da
realidade em que vive os estímulos que o levam a produzir o texto. O outro é uma
entidade fictícia, como os personagens e a história contada. Sendo assim, o
narrador acaba por constituir uma verdadeira persona (máscara, personagem) que
narra os acontecimentos.
Cabe ao narrador a tarefa de tornar claros para o leitor todos os aspectos
relevantes da obra, a fim de que este leitor compartilhe das alegrias e conflitos dos
10
personagens. Dessa maneira, o narrador é o responsável, dentre outras
atribuições, por mostrar a realidade social dos personagens e seus problemas.
É indispensável, em toda grande arte, representar os personagens no conjuntodas relações que os liga por toda parte, com a realidade social e com seusproblemas. Quanto mais profundamente estas relações forem percebidas,quanto mais múltiplas forem as ligações evidenciadas, tão mais importante setornará a obra de arte (LUKÁCS, p. 167).
Gancho (1991) esclarece que o narrador não é o autor, mas uma entidade de
ficção, isto é, uma criação lingüística do autor que, portanto, só existe no texto.
O narrador não é o autor, é um ser ficcional que só existe dentro do mundo
diegético criado pelo autor. O narrador não descreve apenas o cenário, mas
também o universo interior dos personagens: seus temores, suas dúvidas, seus
questionamentos etc.
Uma caracterização que não compreenda a concepção do mundo próprio dopersonagem não pode ser completa. A concepção de mundo é a mais elevadaforma de consciência [...]. A concepção do mundo é uma profunda experiênciapessoal do indivíduo singular, uma experiência altamente característica de suaíntima essência e reflete ao mesmo tempo os problemas gerais da época(LUKÁC’S, p. 167).
É através do narrador que tomamos conhecimento do enredo, das
características dos personagens, da descrição, dos cenários etc.
Na arte da narrativa, o narrador nunca é o autor, mas um papel por esteinventado: é um personagem de ficção em que o autor se metamorfoseia. Onarrador é um ser ficcional autônomo, independente do ser real, do autor que ocriou (D’ONÓFRIO,1995, p. 55).
O narrador exerce um papel fundamental na narrativa, pois, como afirma
Tacca (1983), pode haver um romance sem personagens (somente a narração de
fatos ocorridos) e também não se precisa da presença do autor nas obras, mas
sem a presença do narrador, de fato, não há obra. Nota-se que, em se tratando de
prosa literária, o narrador desempenha um papel relevante e fundamental no ato
de contar os fatos de qualquer obra, não importa qual seja.
Se, por um lado, o escritor não deve ser confundido com o narrador,
igualmente o leitor real ou potencial não deve ser confundido com aquele leitor a
quem o narrador se dirige ou para quem ele conta a história, ou seja, o narratário.
11
De acordo com Reis (2000), o narratário é uma entidade fictícia, um “ser de
papel” com existência puramente textual, dependendo diretamente de outro “ser
de papel”, o narrador que se lhe dirige de forma direta ou tácita. Para Reuter
(1996), o narratário é constituído pelo conjunto de signos que constroem a figura
daquele para o qual a história é contada no texto.
Narrar a história é a função principal do narrador. No entanto, Reuter (1996)
atribui-lhe outras funções. Cabe citar, por exemplo, as funções comunicativa,
metanarrativa, testemunhal, explicativa e ideológica. A função comunicativa
consiste em se dirigir ao narratário para agir sobre ele ou manter o contato. A
função metanarrativa consiste em comentar o texto e em assimilar a sua
organização interna. A função testemunhal exprime a relação que o narrador
mantém com a história que ele narra. Ela pode estar concentrada sobre aquilo que
o narrador sabe a respeito da história, sobre as emoções que a história ou a sua
narração suscitam nele ou sobre um julgamento que ele faz das ações e dos
atores. A função explicativa consiste em dar ao narratário elementos considerados
necessários para compreender a história. A função ideológica é a proposição por
parte do narrador de julgamentos gerais sobre o mundo, a sociedade, os homens.
2.2 Tipos e características do narrador
Todo narrador conhece os fatos da sua narração. Esse conhecimento pode
ser em maior ou em menor grau, mas é nele que o leitor se apóia ao tomar parte
da história.
Tacca (1983) distingue dois tipos de narrador: na terceira pessoa e na
primeira pessoa. O narrador em primeira pessoa, também conhecido como
narrador homodiegético, identifica-se como personagem, participando dos
acontecimentos e pode, inclusive, assumir um papel na história. Ou seja, ele pode
assumir um papel de protagonista, de personagem secundário ou de personagem
testemunha dos acontecimentos. A principal característica do narrador em
primeira pessoa é sua visão limitada, pois ele não é onipresente nem onisciente.
12
Como variantes de narrador em primeira pessoa temos o narrador-
testemunha, o qual geralmente não é personagem principal, mas narra os
acontecimentos dos quais participou, ainda que sem grande destaque. Outra
variante do narrador em primeira pessoa é o narrador-protagonista, o qual é
também personagem central da história.
Embora lhe seja vedada tanto a onipresença como a onisciência, o narrador-
protagonista pode utilizar-se de outros recursos, como, por exemplo, de sua
capacidade de retenção de memória e do fato de ter vivido a história, o que faz
dele a pessoa mais apta para narrá-la.
Escrever em primeira pessoa poderia ser decisão orgulhosa; mostrou-se,entretanto, nos casos de sucesso, gesto de humildade. O narrador que diz euestá limitado. Falta-lhe a mobilidade anônima. Não lhe é dado antecipar ofuturo. Mais seguro lhe é falar de si mesmo. A memória lhe é auxiliar valioso.Mesmo no estreito espaço de si mesmo, há limites. A memória falha. Recordarfatos não significa compreendê-los (SCHÜLER, 1989, p. 28).
Segundo Oscar Tacca (1983), o autor pode dar poderes limitados ao
narrador, sendo que o primeiro empresta poderes que poderiam ser seus, pois o
narrador é quem interfere até certo ponto da história, mas só cabe ao autor
comentários críticos mais aprofundados.
Aquele que conta (aquele que traz informação sobre a história que se narra) ésempre o narrador. A sua função é informar. Não lhe é permitida a falsidade,nem a dúvida, nem a interrogação nesta informação. Apenas varia (apenas lheé concedida) a quantidade de informação. Qualquer pergunta, ainda que surjaindistinta no fio do relato, não corresponde, a rigor, ao narrador. Bem vistas ascoisas, pode-se sempre atribuir ao autor, ao personagem ou ao leitor (TACCA,1983, p. 64).
O narrador em terceira pessoa, também conhecido como narrador
observador, é aquele que está fora dos acontecimentos da história e refere-se aos
fatos sem incluir-se neles. Este narrador tende a ser imparcial. As principais
características do narrador observador são a onisciência (o narrador sabe tudo
sobre a história) e a onipotência (o narrador está presente em todos os lugares da
história).
Como variantes do narrador em terceira pessoa temos o narrador intruso,
aquele que fala com o leitor ou que julga diretamente o comportamento dos
personagens. Além desse, temos o narrador parcial, caracterizado por identificar-
13
se com determinado personagem da história. Este narrador, embora não defenda
o personagem explicitamente, permite que ele tenha mais espaço, isto é, maior
destaque na história.
Segundo Tacca (1983), a relação entre o conhecimento do narrador e seus
personagens pode ser de três tipos: o narrador onisciente, o narrador equisciente
e o narrador deficiente.
O narrador onisciente é aquele que tudo vê e tudo sabe. Ele está a par de
todos os detalhes e fatos existentes na obra por ele narrada. O narrador
equisciente é aquele que sabe somente o que os personagens sabem. Ele tem o
mesmo nível de conhecimento dos personagens e possui uma visão e um
conhecimento debilitado quanto aos fatos existentes na história.
Onisciente (o narrador possui um conhecimento maior que o dos outrospersonagens); equisciente (o narrador possui uma soma de conhecimentosigual à dos seus personagens); deficiente (o narrador possui menor informaçãoque o seu personagem – ou personagens) (TACCA, 1983, p. 68).
D’Onófrio (1995, p.61) utiliza-se de outra nomenclatura para teorizar a
respeito dos tipos de narrador. Para este autor, as narrativas que não explicitam
narrador nem destinatário possuem o narrador pressuposto. O narrador onisciente
neutro é o foco narrativo no qual a história parece contar-se sozinha, prescindindo
da figura do narrador. Tal perspectiva é chamada de visão por trás, pois o
narrador se coloca atrás e acima das personagens. Sendo assim, ele sabe mais
do que elas, porque sabe tudo. O narrador onisciente intruso é aquele que, assim
como o onisciente neutro, tudo sabe e tudo vê, porém interrompe a narrativa para
tecer comentários e emitir julgamentos de valor. O narrador onisciente seletivo é o
narrador que, mesmo sendo o sujeito do discurso, apresenta o ponto de vista dos
personagens no momento presente, através da mente da personagem. O
narrador- câmera é o extremo oposto do narrador onisciente, pois tem a visão por
fora. Ele é como um camera-man que só pode mostrar o que a lente da objetiva
pode ver.
Leite (1993) torna mais claros os conceitos anteriormente apresentados a
respeito do narrador e fornece outras ferramentas para estudá-lo. A autora afirma
que, para tratar do narrador, é necessário saber se o narrador (se existe um
14
narrador na história) narra em primeira ou em terceira pessoa; o narrador se
posiciona por cima, na periferia, no centro, de frente ou mudando de posição em
relação à história; o narrador utiliza-se das suas palavras, pensamentos,
sentimentos e percepções ou das falas, pensamentos, sentimentos e percepções
da personagem ou, ainda, da combinação de todos esses elementos; o narrador
coloca o leitor próximo ou distante da história?
Leite (1993) apresenta as seguintes tipologias do narrador: narrador
onisciente intruso, narrador onisciente neutro, narrador-testemunha , narrador-
protagonista, narrador seletivo e narrador multi-seletivo. A seguir, examino mais
acuradamente cada um desses tipos de narrador.
O narrador onisciente intruso conhece tudo a respeito da história e goza de
plena liberdade para narrá-la e comentá-la. Não há limites para sua
movimentação. Ele pode colocar-se acima dos personagens ou narrar da periferia
dos acontecimentos. Também pode narrar como se estivesse de fora, de frente ou
adotar várias posições em relação aos acontecimentos. Este narrador utiliza suas
próprias palavras para expressar seus pensamentos e percepções do mundo
diegético. “Seu traço característico é a intrusão, ou seja, seus comentários sobre
a vida, os costumes, os caracteres, a moral, que podem ou não estar entrosados
com a história narrada” (LEITE, p. 27).
O narrador onisciente neutro, assim como o anterior, narra em terceira
pessoa. Este narrador desempenha as mesmas funções que o narrador onisciente
intruso, ou seja, ele caracteriza, descreve e explicita os personagens de qualquer
ângulo ou distância. O que os diferencia é que o narrador onisciente neutro não
tece comentários a respeito dos pensamentos e ações das personagens.
O narrador testemunha narra em primeira pessoa os acontecimentos dos
quais ele participou como personagem secundário. Ele possui um ângulo de visão
limitado, pois narra da periferia dos acontecimentos e não conhece os
pensamentos dos outros personagens. Este narrador sintetiza a narrativa e
apresenta-a tal como ele a vê.
O narrador protagonista também não tem acesso ao estado mental dos
demais personagens. Ele narra em primeira pessoa a partir de um centro fixo,
15
limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e
sentimentos. “[...] o personagem vive diante de nós os problemas de seu tempo,
mesmo os mais abstratos, como individualmente seus, que têm para ele uma
importância vital” (LUKÁCS, p. 171).
O narrador onisciente seletivo é o narrador que se utiliza dos sentimentos,
pensamentos e percepções de um único personagem, geralmente o protagonista,
para narrar a história.
É, como no caso do narrador protagonista, a limitação a um centro fixo. Oângulo é central e os canais são limitados aos sentimentos, pensamentos epercepções do personagem central, sendo mostrados diretamente (LEITE, p.54).
O narrador onisciente multi-seletivo, a exemplo do anterior, se utiliza dos
sentimentos, pensamentos e percepções de um personagem para narrar a
história. A diferença é que esse narrador se utiliza de vários personagens para
fazê-lo. Sendo assim, não há propriamente narrador. A história vem diretamente
das impressões e fatos que ficam marcados na mente dos personagens. O
narrador vê através dos olhos e sente através dos personagens. Enquanto o
narrador onisciente seletivo resume os fatos depois que eles acontecem, o
narrador multi-seletivo traduz os pensamentos, percepções e sentimentos,
filtrados pela mente dos personagens.
16
3 O NARRADOR NO ROMANCE VIDAS SECAS
Neste capítulo, identifico o tipo de narrador presente no romance Vidas
secas. Para isso, analisarei o papel desempenhado pelo narrador no decurso da
obra (que ele faz e como ele faz).
Minha primeira tarefa é descobrir se o narrador de Vidas secas participa
ativamente dos fatos narrados ou não. Tomo como base o primeiro parágrafo do
capítulo Mudança, no qual o narrador fornece as primeiras informações a respeito
dos personagens da história.
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Osinfelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante naareia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas queprocuravam uma sombra (RAMOS, 2003, p. 9).
No parágrafo seguinte, o narrador nomeia os personagens, os quais são
sinha Vitória, o menino mais novo, Fabiano, o menino mais velho e a cachorra
Baleia.
Arrastaram-se para lá, devagar, sinhá Vitória com o filho mais novo escanchadono quarto e o baú de folha na cabeça. Fabiano, sombrio, cambaio, o aió atiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda depederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás(RAMOS, 2003, p. 09).
O narrador descreve aspectos externos dos personagens e, a priori, não faz
qualquer consideração a respeito de sentimentos ou de quaisquer características
psicológicas dos personagens. No dizer de D’Onófrio, ele apenas descreve o que
a lente de uma câmera pode ver. O narrador informa, em terceira pessoa, aos
leitores características físicas dos personagens. Sendo assim, ele é um narrador
autogiegético.
17
19
O narrador acompanha a trajetória da família de retirantes e informa ao leitor
os sentimentos dos personagens, quando isso é relevante para a compreensão da
narrativa. É o narrador quem expressa os objetivos da jornada empreendida por
Fabiano e sua família.
O pirralho não se mexeu e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso,queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como umfato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esseobstáculo miúdo não era o culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiroprecisava chegar, não sabia onde (RAMOS, 2003, p.10).
A narração acima se refere ao momento em que o menino mais velho
sentou-se no chão e começou a chorar. O narrador penetra no mundo dos
sentimentos do vaqueiro e expõe ao leitor as impressões de Fabiano naquele
momento. A partir disso, identifica o retirante como um homem rude, conformado
com sua situação e que está em busca de um lugar que ele, Fabiano, ignora qual
seja.
Em outras passagens, o narrador mostra que possui conhecimento a respeito
do universo interior de todos os personagens da história. Ele nos revela, por
exemplo, o sonho de sinhá Vitória de ter uma cama igual à de seu Tomás da
bolandeira.
Pouco a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano eram insuportáveis.Não havia homem que roncasse tanto. Era bom levantar-se e procurar umavara para substituir aquele pau amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se. Por que não tinham removido aquela vara incômoda? Suspirou. Nãoconseguiam tomar resolução. Paciência. Era melhor esquecer o nó e pensarnuma cama igual à de seu Tomás da bolandeira (RAMOS, 2003, p. 10).
O menino mais novo imitava o pai. Em seu coração havia o desejo de
crescer e ser tão parecido com Fabiano quanto possível. “Trepado na ribanceira, o
coração aos baques, o menino mais novo esperava que o bode chegasse ao
bebedouro. Certamente aquilo era arriscado, mas parecia-lhe que ali tinha
crescido e podia virar Fabiano” (RAMOS, 2003, p. 50).
18
O menino mais velho, ao perguntar para sinha Vitória o significado da
palavra inferno, recebe um cocorote da mãe. Nesse instante, o narrador intervém,
a fim de revelar os sentimentos do menino. “Sentiu-se fraco e desamparado, olhou
os braços magros e os dedos finos. Pôs-se a fazer no chão desenhos misteriosos”
(RAMOS, 2003, p. 61).
Baleia, embora seja um animal, também tem suas emoções descritas pelo
narrador. O lento colapso dos sentidos da cachorra são descritos em detalhes. O
narrador alude, inclusive, ao destino eterno do animal: um mundo cheio de preás.
Baleia assustou-se. Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre,mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nempercebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe opequeno coração (RAMOS, 2003, p. 90).
O narrador adentra-se quase que imperceptivelmente nos pensamentos e
sentimentos dos personagens, caracteriza-os, faz uma abordagem de seu
passado e dá informações que só são explícitas na obra por suas palavras; opina
a respeito de atitudes que os personagens, especialmente Fabiano, devem tomar
frente a determinada situação. É o caso, por exemplo, da prisão de Fabiano. O
narrador deixa de ser um mero contador da história para dar seu parecer a
respeito daquela situação.
Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bonscostumes, sim senhor, nunca fora preso. De repente, um fuzuê sem motivo.Achava-se tão perturbado que nem acreditava naquela desgraça. Tinham-lhecaído todos em cima, de supetão, como uns condenados. Assim um homemnão podia resistir (RAMOS, 2003, p. 31).
O narrador, como quem sente as dores do protagonista, nos permite saber
o quanto Fabiano sofre com as injustiças das quais é vítima e como ele, Fabiano,
almejava uma vida mais humana e mais digna.
O narrador faz aquilo que Fabiano não é capaz de fazer. Ele nos revela a
enorme resignação do protagonista com relação à sua existência miserável. O
narrador, ao penetrar à mente de todos os personagens da história, inclusive da
19
cachorra Baleia, coloca o leitor a par de todos os sonhos e frustrações que eles
têm. “Que fazer? Podia mudar a sorte? [...] Era um desgraçado, era como um
cachorro, só recebia ossos. Por que seria que os homens ricos ainda lhe tomavam
uma parte dos ossos?” (RAMOS, 2003, p. 97).
Ao emitir juízos de valor a respeito dos personagens e posicionar-se frente
a determinadas situações, o narrador identifica-se como um narrador onisciente
intruso, pois ele não se limita a tão-somente narrar os fatos ocorridos, mas
também tece comentários a respeito desses fatos.
O narrador onisciente intruso confere à obra um aspecto singular, pois o
narrador onisciente intruso vê, ouve e sabe de tudo que se passa com os
personagens. Além disso, pode tecer comentários a respeito dos fatos. O leitor é
desafiado a responder às perguntas do narrador e, assim, aclarar sua impressão a
respeito da obra. O leitor não pode manter-se neutro, uma vez que o narrador,
indiretamente, o incita a posicionar-se frente aos acontecimentos, seja aprovando
ou reprovando o comportamento dos personagens.
Para que um pobre da laia dele usar conversa de gente rica? [...] Nas horas deaperto dava para gaguejar, embaraçava-se como um menino, coçava oscotovelos, aperreado. Por isso esfolavam-no. Safados. Tomar as coisas de uminfeliz que não tinha onde cair morto! Não viam que isso não estava certo? Queiam ganhar com semelhante procedimento? Hem? Que iam ganhar? (RAMOS,2003, p. 98).
Na citação acima fica evidente que o narrador de Vidas secas é um
narrador onisciente intruso. Justifico essa afirmação com base nos referenciais
teóricos utilizados neste trabalho. O narrador onisciente intruso é aquele que tudo
vê e que tudo sabe. Possui informações precisas de todos os detalhes e fatos
existentes na obra por ele narrada e, valendo-se desse conhecimento, tece
comentários a respeito dos personagens e das ações e reações expressas por
eles.
20
4 CONCLUSÃO
Baseado nas pesquisas bibliográficas, concluí que o narrador é um elemento
imprescindível na narrativa, pois a ele cabe o papel principal da história, ou seja, a
narração. O narrador nunca será o autor, mas um ser ficcional criado por ele.
Portanto, o narrador é integrante estrutural da narrativa.
O narrador que narra a história em terceira pessoa é chamado de narrador
observador. Ele não participa dos acontecimentos e refere-se aos fatos sem
incluir-se neles. As principais características do narrador em terceira pessoa são a
onisciência e a onipresença.
O narrador que narra a história em primeira pessoa recebe o nome de
narrador-personagem. Ele participa ativamente dos acontecimentos, podendo,
inclusive, assumir o papel principal da história. Como variantes do narrador em
terceira pessoa temos o narrador intruso (narrador que fala com o leitor ou julga o
comportamento dos personagens) e o narrador parcial (narrador que se identifica
com algum personagem da história). A principal característica do narrador em
primeira pessoa é seu campo de visão limitado. As variantes do narrador em
primeira pessoa são o narrador testemunha e o narrador protagonista. O primeiro
narra acontecimentos nos quais não teve grande destaque, enquanto o segundo é
o personagem principal da história.
Conforme ficou exposto, a relação entre o conhecimento do narrador e seus
personagens pode ser de três tipos: o narrador onisciente é aquele que tudo sabe
e tudo vê. Ele está a par de todos os detalhes e fatos existentes na obra por ele
narrada. O narrador equisciente sabe somente o que os personagens sabem. O
21
narrador deficiente possui um conhecimento dos fatos inferior ao dos
personagens.
O narrador pressuposto é o que pertence às narrativas que não explicitam
narrador nem destinatário e narram em terceira pessoa. O narrador onisciente
neutro se coloca atrás e acima dos personagens, pois tudo sabe. O narrador
onisciente intruso também tudo sabe, porém, diferentemente do narrador
onisciente neutro, interrompe a narrativa para tecer comentários. O narrador
onisciente seletivo apresenta o ponto de vista dos personagens no momento em
que a ação ocorre, utilizando-se da mente do personagem. O narrador onisciente
multi-seletivo se utiliza de vários personagens para narrar a história. O narrador-
câmera só mostra o que vê.
O narrador de Vidas secas desempenhou seu papel com excelência, visto
que narrou os fatos com riqueza de detalhes, descreveu habilmente as
características psicológicas de Fabiano (um homem sem cultura, embrutecido pela
vida, incapaz de reagir contra as injustiças. Por outro lado, valente, disposto a
continuar sua luta até o fim) e dos demais personagens e levou-nos a momentos
de profunda reflexão a respeito da correlação existente entre as desventuras de
Fabiano e a nossa própria vida. Se o destino do protagonista é andar errante pela
caatinga, desprovido de qualquer expectativa de vida melhor, não devo eu agir
como ele, mas reagir contra as adversidades do presente e ter esperanças no
futuro.
Concluí que o narrador de Vidas secas é um narrador heterodiegético
onisciente intruso. Graças à presença desse narrador na obra, é possível refletir a
respeito de situações que todos nós enfrentamos no nosso quotidiano a partir das
desventuras dos personagens da história. Entendo que, ao propor tal reflexão, o
autor da obra, Graciliano Ramos, pretende que o leitor adquira uma postura
diferente daquela adotada pelo protagonista do romance, Fabiano. Devo me
posicionar contra toda forma de dominação, lutar contra toda e qualquer injustiça e
acreditar que um mundo mais humano, mais igual e mais justo para todos é
possível.
22
REFERÊNCIAS
ABDALA Júnior, Benjamin. Introdução à análise da narrativa. São Paulo:Scipione, 1995.
D’ONÓFRIO, SalvatorEe. Teoria do texto: Prolegômenos e teoria da narrativa.São Paulo: Ática, 1995.
FERNANDES, Ronaldo C. O narrador do romance. Rio de Janeiro: Sette Letras,1996.
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel deMello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 5. ed. São Paulo: Ática,1998.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo ou a polêmica em torno dailusão. 6. ed. São Paulo: Ática, 1993.
RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 92. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.
REIS, Carlos Antonio Alves dos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário denarratologia. 7.ed. Coimbra: Almedina, 2000.
REUTER, Yves. Introdução à análise do romance. Tradução de ÂngelaBergamini, Milton Arruda, Neide Sette et alli . São Paulo: Martins Fontes, 1996.
SCHÜLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: Ática, 1989.
TACCA, Oscar. As vozes do romance. Lisboa: Coimbra, 1983.